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Cadê o tempo escolar que estava

aqui?
Por LOURDES ATIÉ 11 de outubro de 2019
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As escolas precisam construir um currículo rico de experiências e desacelerado. Mas qual o tempo
necessário para que todos os alunos possam aprender? Crédito: reprodução.

Dizem que a pressa é inimiga da perfeição. Mas acreditamos nisso? O ano


está acabando, mas parece que só em 2019 atravessamos vários anos,
tamanho é nosso cansaço.

A passagem do tempo é organizada de forma diferente de acordo com cada


cultura. Com certeza os moradores do Nepal não sentem o tempo da mesma
forma que os paulistanos, pois o tempo é uma construção histórica e social.

Na sociedade contemporânea da qual fazemos parte, somos treinados desde a


infância fazer as coisas o mais rápido possível. Isso nos faz viver com pressa.
E, por mais que tentemos, nunca conseguimos estar em dia com tudo que nos
é oferecido ou cumprir todas as tarefas às quais nos propomos.
Por isso estamos sempre em alerta, sempre correndo atrás – e sempre
devendo. Assim aprendemos que a arte de viver é esticar cada vez mais o
tempo além do limite para caber cada vez mais coisas a serem feitas. Quando
chegam as tão esperadas férias, temos tantas coisas para fazer que voltamos
ao trabalho exaustos.

Leia mais: O impacto do sono (ou da falta dele) no processo de aprendizagem

Vivemos também um tempo orientado para o consumo. É o jogo do mercado.


Consumimos tudo. Queremos muitos amigos nas redes sociais, queremos
todas as novidades lançadas no mercado, queremos provar tudo, consumir de
tudo e mais um pouco, nos endividando nos cartões de crédito.

Os adultos estão acelerados demais por aqui e como consequência estão


acelerando igualmente as crianças, que tem que cumprir uma série de
compromissos e atividades, tornando cada vez mais difícil ser simplesmente
criança.

Onde foi parar o tempo de não fazer nada? É hora de questionarmos onde foi
parar o tempo vazio. O tempo de ficarmos a sós com as nossas ideias: onde foi
parar o tempo livre? O tempo de reflexão? O tempo de encontros sem
obrigações? O tempo de aprender?

Este cenário nos afeta em todos os âmbitos. E a escola, como uma das
organizações sociais, também é afetada por este ritmo acelerado. Está na hora
de refletirmos a respeito daquilo que parece “natural”. Não é! As crianças estão
adoecendo e os adultos também. Vamos aqui focar na escola e pensar que
pode ser diferente.

Leia mais: Por que depressão e ansiedade afetam cada vez mais
universitários

Como ser criança em tempos acelerados?


As crianças talvez sejam as maiores vítimas dessa aceleração excessiva.
Desde muito cedo, elas são altamente estimuladas.

Começa no carrinho de bebê cheios de penduricalhos, assim como seus


primeiros brinquedos que apresentam muitos estímulos e cores excessivas.
Essas coisas contribuem para uma poluição visual e excesso de estimulação.

O mesmo acontece nos espaços considerados infantis, como os delimitados


nos shopping centers e nos salões de festas infantis –na decoração, um
excesso de incitamentos visuais e sonoros. Tudo muito poluído visualmente e
de segurança máxima.
Há também os brinquedos que deixam as crianças encapsuladas, cercadas de
telas por todos os lados. Tudo previsível e com o discurso da proteção, mas
que na verdade roubam delas a possibilidade de criarem, desfrutarem desses
espaços com autonomia.

Assim as crianças crescem sem tempo para ficar à toa, para brincar como
quiserem, para serem donas do seu tempo.

Leia mais: Brincar na natureza: por que é tão importante para as crianças

Assim as crianças vão sendo aceleradas, sem que os adultos deem tempo
para elas poderem se desenvolver no seu ritmo. Tudo é antecipado, apressado
e acelerado. Mais adiante, quando apresentarem algum déficit de atenção ou
hiperatividade, os adultos ficarão estarrecidos, sem saber como é possível.

Será mesmo que não perceberam nada?

E pensar que tudo isso poderia ser resolvido tão facilmente. Apenas dando
tempo para as crianças crescerem, deixando que simplesmente sejam elas
mesmas, podendo entender o mundo pela brincadeira e usando sua
criatividade.

O tempo da escola é o tempo de consumir e de


acelerar
As escolas brasileiras estão a cada ano oferecendo mais atividades e
informações para seus alunos. Isso pode ser bom para os pais, que garante
que num mesmo espaço seus filhos aprenderão mais coisas e estarão mais
preparados para o futuro. Grande engano!

As agendas das crianças estão tão cheias de obrigações quase como um


executivo adulto. As escolas estão transmitindo tantas informações que já não
fecham durante o ano. Quando as crianças entram de férias, outras atividades
são oferecidas no mesmo espaço para mantê-las “ocupadas”.

Leia mais: Quem disse que passar mais tempo na escola é bom?

A vida assim vai perdendo o sentido e na adolescência o quadro se agrava e


pode ter consequências gravíssimas e até irreversíveis.

A escola está se tornando um lugar de muitas atividades e poucas


aprendizagens, porque já sabemos que na mesma proporção, informações
demais representa aprendizagem de menos. Porque para aprender é preciso
tempo. Tempo para refletir, para experimentar, para interagir. Tempo com
sentido, que significa tempo desacelerado.
Esta escola brasileira, em sua maioria é uma correria sem fim, onde brincar só
no recreio está vivendo seus últimos dias. Não será possível continuar assim.
Os estudantes estão adoecendo e os professores também. Assim como os
currículos extensos, com conteúdo excessivo. A escola em pleno século 21
ainda está organizada com as mesmas inovações do século 22.

O tempo na escola está cristalizado em efemérides, classes, séries, bimestres,


semestres, rituais de avaliação, reprovação e repetência. Essa lógica temporal
vem sendo reduzida a tempos cada vez mais curtos frente ao excesso de
conteúdo. O valor está nos “ritmos médios” de aprendizagem,
independentemente da diversidade dos alunos e da pluralidade dos processos
de aprendizagem.

Este caminho da aceleração na escola tem acarretado a competitividade


negativa, tornando a instituição um espaço desumanizado, com ocorrências
de bullying, estresse do professor, agressividade entre alunos, déficit de
atenção, entre outros. Essa aceleração gera ainda a desigualdade entre os
alunos, distanciando aqueles que têm ritmos de aprendizagem diferentes.
Portanto é preciso desacelerar!

Leia mais: Desmonte do PNLL dificulta acesso à literatura na escola

O tempo da escola precisa ser o tempo de


aprender
As escolas brasileiras estão vivendo o tempo da BNCC – a Base Nacional
Comum Curricular. Mas a BNCC não é currículo! Ela é um documento
normativo que define as linhas mestras para que todas as escolas construam
seus currículos compatíveis com a história de cada instituição, somando a sua
tradição pedagógica, seu contexto e as decisões que cada escola deve tomar
para fazer a escola como um lugar compatível com o seu tempo e que tenha
relevância social.

Este é o tempo que as escolas têm para construir a escola dos seus sonhos. E
não podemos perder a oportunidade, reproduzindo algo que já não faz sentido.
Ou copiando modelos que não dialogam com a realidade. É tempo de se ter
coragem para construir um currículo rico de experiências e desacelerado.

Para isso é preciso se perguntar: qual o tempo necessário para que todos os
alunos possam aprender? Difícil de responder, porque não existe um tempo
único.

O tempo a ser vivido de verdade na escola é aquele que seja necessário para
que todos os alunos aprendam. Não como consumidores daquilo que julgamos
importante para eles, mas como protagonistas de suas descobertas e
experiências. Só assim serão capazes de dotarem de sentido as informações
escolares. Só assim a escola fará sentido em suas vidas.
Por isso, é preciso discutir a necessidade de devolver o ritmo adequado para a
aprendizagem de cada um dos alunos, visando garantir que a educação
realmente responda às necessidades que a sociedade necessita para continuar
se desenvolvendo.

Então vamos aproveitar que “já já” vai começar um novo ano letivo e vamos
desacelerar. Vamos construir uma escola com sentido, que é aquela que
ensina aquilo que é relevante. Não para conseguir boas notas ou se classificar
em algum ranking, mas para conseguir entender o mundo que vivemos,
conhecendo o passado, entendendo o presente e construindo o futuro. Só
desta maneira a escola será insubstituível.

Do contrário, morrerá pela sua irrelevância. Já que todas as informações estão


disponíveis, sem que precise ir à escola.

Tem sido difícil ser feliz na escola. E sem alegria não temos curiosidade e sem
isso não somos criativos. Sem criatividade não teremos condições de inventar
uma vida melhor. Se a vida fosse uma parlenda, poderíamos afirmar que, se
não mudarmos nosso ritmo, o que vai acontecer é que: “a gente é fraco, cai no
buraco. O buraco é fundo, acabou-se o mundo!”

https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/tempo-escolar/

Acesso em 10/04/2021

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