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acontece-quando-uma-crianca-encontra-a-outra

Publicado em NOVA ESCOLA 21 de Maio | 2019

Desenvolvimento da criança

Socialização na Educação infantil:


o que acontece quando uma
criança encontra a outra
Por mais conhecimento que o professor tenha, há coisas que só uma criança
vai saber ensinar a outra
Nairim Bernardo

A escola ganha importância como espaço de convivência e interação social Crédito: Getty
Images

Até começarem a frequentar instituições escolares, geralmente por volta dos 3 anos de idade, muitas
crianças têm um convívio muito limitado com outras. Principalmente se compararmos com o que
acontecia há décadas atrás, pois a queda da taxa de natalidade diminuiu o número de irmãos e
primos. Esse fato reforça o papel e importância da escola como um espaço de convivência e interação
social. Mas como se dá o encontro da criança com o mundo para além do que lhe foi apresentado em
casa e qual o papel do professor nesse processo?

Antes de tudo, a primeira tarefa dos educadores é entender que as crianças têm modos próprios,
válidos e interessantes de se relacionar entre si e perceber a beleza dos momentos de interação entre
elas. “Os adultos precisam se convencer de que crianças já são pessoas, não que serão apenas no
futuro”, explica a professora Maria Letícia Barros Pedroso, coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil da Universidade de São Paulo. Segundo ela, o
sociólogo Émile Durkheim [1858-1917] acreditava que a socialização era “vertical”, do adulto para a
criança. “Mas estudos realizados nos últimos 50 anos mostram que esse processo se dá principalmente
entre elas. O professor não é o centro”, diz ela.
LEIA MAIS Como estimular a criança no processo de aquisição da fala

Hoje, a própria estrutura educacional brasileira já valoriza ações que envolvam o contato e a interação
entre pares. A nona e a décima competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
tratam, respectivamente, sobre Empatia e cooperação e Responsabilidade e cidadania. “A relação entre
pares nos faz pessoas. Nós não somos seres isolados, não construímos identidade sem os outros,
sendo eles próximos ou distantes. É um direito da criança conviver com outras crianças e adultos”,
defende Maria Letícia.

Willian Corsaro, sociólogo da infância e professor titular da Faculdade de Sociologia da Universidade de


Indiana (EUA), apresenta o termo culturas infantis. Em suas pesquisas, ele percebeu que havia uma
lógica na organização das brincadeiras e que nelas as crianças trabalham coletivamente atividades ou
rotinas, artefatos, valores e interesses que dizem respeito a uma cultura mais ampla. Ou seja, elas já
interagem de modo a compreender o mundo adulto, no que diz respeito às suas relações de gênero,
classe, raça, papéis sociais, etc. O brincar de “faz de conta” dá à criança a possibilidade de antecipar
papéis que ela poderá desempenhar no futuro.

LEIA MAIS Por que as crianças fazem tantas perguntas (e como lidar com elas)

Nossa sociedade valoriza muito o modo de interação adulto-criança. Mas por mais conhecimento que
o adulto tenha, há coisas que só uma criança vai saber ensinar para outra. “O professor fica tão
preocupado em cumprir o protocolo que acaba dificultando um processo que deveria ser mais
natural”, explica Alysson Massote Carvalho, doutor em Psicologia e diretor geral do Instituto
Presbiteriano Gammon. Há um mito, diz, de que o professor deve estruturar as brincadeiras como se
fossem uma disciplina. “Mas o professor precisa deixar tempo para a recreação livre. As crianças não
estarão ‘perdendo tempo’, e sim desenvolvendo e consolidando habilidades”. Segundo ele, para que
isso aconteça, é importante oferecer espaços cuja disposição favoreçam o agrupamento em duplas,
trios, quartetos e outras organizações. Nos momentos de recreação livre, o professor deve
desempenhar o papel de monitor da atividade, não de guia.

Para incentivar uma socialização rica e saudável, é muito importante que os educadores se empenhem
em incluir todos da turma em todas as atividades. Caso haja alunos com deficiência física ou
mental, é papel da escola providenciar espaço, materiais e estratégias que possibilitem sua
participação junto à turma. No que diz respeito a gênero, a Educação não pode aceitar a constante
separação entre meninos e meninas como algo inevitável. Criar espaços, caixas de brinquedos e
atividades separadas entre os gêneros é uma atitude equivocada e que não é interessante para
ninguém em um processo de socialização humana.

Uma proposta bastante interessante é a de organizar momentos de atividades entre crianças de


idades e turmas diferentes. Ao contrário do que o senso comum supõe, essa relação não se resume
em um risco para a segurança das menores. Crianças tendem a se interessar muito pelas mais novas e
até pelos bebês; e, quando colocadas em contato, podem desenvolver um senso de cuidado e
proteção. Também ganham a possibilidade de realizar algo essencial na socialização humana: ensinar
aprendizados já adquiridos. “Um ambiente diverso pode ser um fator de proteção e desenvolvimento
social e afetivo. As mais velhas reforçam para si mesmas o que estão ensinando e quem aprende tem
a oportunidade de fazer isso com uma figura que não é adulta. Outro fator de importância é o
aprendizado de modos de trabalhar em equipe e confiar no outro”, comenta o psicólogo Alysson.

LEIA MAIS O desafio do tudo junto e misturado

No que diz respeito aos professores, a tarefa mais importante nesse momento em que as crianças
começam a se relacionar e construir repertório juntas é justamente o da observação. “O professor tem
que verificar do que as crianças estão brincando e como elas estão brincando, como se agrupam, se há
crianças afastadas ou mesmo excluídas do grupo e qual repertório elas trazem de casa”, explica a
professora Maria Letícia. “Não dá para ser um bom profissional sem saber com quem se trabalha”.
Segundo ela, o professor deve ter uma postura de pesquisador e um olhar sensível (que pode ser
desenvolvido com o tempo), pois é frequente que durante suas observações, ou na falta delas, perca
momentos interessantes – enquanto estava na expectativa fixa de obter outro resultado. “Se
surpreender com as crianças é uma competência que o professor tem que desenvolver. Até na
mesmice e na recorrência do que os pequenos apresentam pode haver algo interessante”,
complementa Maria Letícia.

Entretanto, não se deve julgar ou esperar do educador e da escola que seu trabalho seja inteiramente
responsável pela formação social e humana de quem passa por ela. Esse processo é bastante
complexo e se dá no ambiente doméstico, na rua, no contato com as pessoas em outros espaços e no
que veem nos meios de comunicação. Não é algo restrito a um período específico, mas um processo
contínuo ao longo da vida. “As crianças são o que são no presente, depois elas vão se modificando”,
afirma Maria Letícia. “Nós as educamos hoje, e por mais que tenhamos esperanças, não podemos
garantir que elas vão se tornar ‘isso ou aquilo’. Temos que incentivá-las a ter experiências significativas
enquanto crianças, no presente. Mas elas não vão se apropriar de tudo o que apresentamos”, avisa a
professora Maria Letícia.

Indicações de leitura

CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011

"A gente gosta é de brincar com os outros meninos!" Relações sociais entre crianças num Jardim
de Infância

O desenvolvimento social da criança e seus contextos de emergência

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