Você está na página 1de 15

A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA NA TRAJETÓRIA DE VIDA/

FORMAÇÃO DOCENTE
Ana Altina Cambuí Pereirai
Edileide Maria Antonino da Silvaii
Sara Menezes Reisiii

EIXO TEMÁTICO 4: Formação de professores, memória e narrativas.

RESUMO:

O presente trabalho emerge da necessidade da escuta na formação docente da


contemporaneidade. Compreendendo a escuta a partir de três desdobramentos- a escuta
autônoma, a escuta de si, e a escuta psicanalítica- a pesquisa tratará da relevância deste
processo- o de escutar o outro, particularmente o sujeito professor- nos contextos dentro e
fora da escola. O objetivo é investigar o papel da escuta no conhecimento das histórias de
vida dos professores, apresentando a vertente denominada escuta pedagógica. Apresenta um
trabalho que vem sendo desenvolvido em escolas da Rede Municipal de Salvador, a partir da
escuta dos docentes. Dialoga com autores diversos [como Souza (2006), Contreras (2002),
Ornellas (2008) e Bauman (2009)], cujas propostas articulam-se para a construção desta
pesquisa, caracterizada como fornecedora de pistas para outras tantas que ainda surgirão.

PALAVRAS-CHAVE: Formação docente. Escuta. Contemporaneidade.

RESUMEN:

Este trabajo surge de la necesidad de la escucha en la formación de maestros en la


contemporaneidad. Comprende la escucha desde tres ejes - la escucha autonoma, la escuta del
yo y la escucha de psicoanalisis. La investigación se ocupará de la relevancia de este proceso -
el de ecuchar al otro, en partular al sujeto profesor - en los contextos, dentro y fuera de la
escuela. El objetivo es investigar el papel de la escucha en el conocimiento de la historia de
vida de los profesores, presentando la corriente llamada escucha pedagogica. Presenta,
todavía, un trabajo que se desarollan en las escuelas de la Rede Municipal de Salvador, con la
escucha de los maestros. Hace un dialogo teórico com varios autores como Souza (2006),
Contreras (2002), Ornellas (2008) e Bauman (2009), cuyas propuestas se articulan para la
construcción de este estudio, caracterizado como una proveedora de huellas para muchas otras
que aun surgiran.

PALABRAS-CLAVE: Formación de Maestros, Escucha, Contemporaneidad.


PARA INÍCIO DE ESCUTA...

Esta proposta investigativa nasce dos entrecruzamentos entre as temáticas:


Contemporaneidade, Formação docente e Escuta. Esta, por sua vez, se inscreve neste trabalho
em três diferentes vertentes, mas que se articulam, a saber: a “escuta autônoma”, a “escuta
psicanalítica” e a “escuta de si”. Escutar é precisoiv!

Por meio dos muitos diálogos surgidos durante o componente curricular Bases
Filosóficas da Contemporaneidade, oferecido pelo Mestrado em Educação e
Contemporaneidade, por meio Programa de Pós- Graduação em Educação e
Contemporaneidade (PPGEduc), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)], as
pesquisadoras articularam-se em suas temáticas e objetos específicos para um eixo comum: a
escuta como um ponto de partida para conhecer e valorizar as trajetórias de vida-formação de
professores.

Sabedoras de que são muitos os desafios docentes na Contemporaneidade, as


professoras-pesquisadoras inscrevem esta proposta no intuito de contribuir com as discussões
que vem sendo estruturadas no contexto da formação de professores. Dentre os muitos saberes
que tem encontrado lugar nas propostas de formação docente, a escuta ainda tem poucas
produções e essas precisam ser (des)veladas a fim de colaborar com as demais pesquisas
propostas nesta área.

Aqui será materializado um diálogo que visa à compreensão da complexidade


estabelecida em (alguns tantos) desafios da docência na contemporaneidade. Como docentes,
inseridas num contexto contemporâneo repleto de desafios diversos (dentro e fora da sala de
aula), e enquanto pesquisadoras, questionamos as razões que marginalizam o lugar da escuta
na formação docente. Não somos preparados/ formados para escutar a nós mesmos nem aos
outros. Não há muitos lócus de escuta para professores. Aflora uma inquietação outra, que se
inscreve como objetivo deste trabalho. Trata-se de tentar investigar qual é, então, a
importância/ o papel da escuta no conhecimento das histórias de vida dos professores.
Apresentamos também uma experiência em andamento que vem sendo desenvolvida
com a escuta de professores da Prefeitura Municipal de Salvador, e as possibilidades fecundas
que daí emergem para a estruturação desse e de outros trabalhos futuros.

No intuito de colaborar com as pesquisas que já vem sendo desenvolvidas na área de


formação de professores, inserimos esta proposta investigativa compreendendo a pertinência
desta pesquisa, partindo do pressuposto que a escuta de professores proporciona o desvelar de
suas andanças e o saber sobre quem são. Escutar os professores pode proporcionar a inserção
deles como autores neste processo. Eles não estarão simplesmente dentro das suas histórias;
serão autores/atores/sujeitos e, neste percurso, podem se (trans) formar ou transformar suas
práticas (pessoais ou profissionais), em um movimento que não é estanque. É dinâmico,
criativo e não se finda nos escritos, mas continua em suas trajetórias.

A metodologia utilizada para estruturação deste trabalho é de cunho qualitativo.


Optamos pelo trabalho com as histórias de vida, configuradas enquanto estratégia de pesquisa
pessoal e coletiva, politicamente desestruturadas de certos paradigmas tradicionais de
investigação. É relevante apropriar-nos do pensamento de Souza quando este afirma, sobre os
estudos com as histórias de vida, que se trata de uma forma de mediar estratégias que
permitam ao professor “tomar consciência de suas responsabilidades pelo processo de sua
formação, através da apropriação retrospectiva do seu percurso de vida” (SOUZA, 2006, p.
262). O mesmo autor enfatiza ainda a necessidade de realizar pesquisas educacionais, tendo
como pano de fundo as narrativas das trajetórias de escolarização e formação. Outros autores
também serão utilizados para somar com os escritos acima mencionados. Trata-se das obras
de Freire (ano), Contreras (2002), Barbier (2000), Nóvoa (1998;2000) Josso (2002), Freud
(ano), Pereira (2005;2010;2011) e Ornellas (ano). Compreendemos que as pesquisas desses
autores nos embasam para a discussão proposta sobre a escuta das histórias de vida-formação
de professores.

Ao construir esta proposta reafirmamos o desejo de investir na busca pela valorização


das histórias de vida/profissão dos professores a partir da escuta das mesmas, ressaltando a
sua relevância no espaço acadêmico. Anelamos pela junção desses percursos formativos, que
destacam a singularidade de cada docente e de sua história, numa perspectiva de valorização e
respeito.
Convidamos os leitores a um (outro jeito de) olhar a formação docente, a partir das
articulações entre as (nossas) leituras que embasam essas linhas e nossas próprias histórias e
itinerâncias tantas que nos fizeram chegar até aqui...

ESCUTANDO POSSIBILIDADES E DESAFIOS: TRÊS DIFERENTES FORMAS DE


ESCUTAR

Nossas trajetórias e itinerâncias formativas são repletas de sentidos, pessoas, saberes e


experiências que se entrecruzam com outras tantas a nossa volta. Quando dialogamos sobre a
docência, não podemos deixar de contemplar aspectos que nos marcaram (positiva ou
negativamente) em nossas vidas pessoais e profissionais. Há uma indissociabilidade entre
essas dimensões, como nos lembra Nóvoa (1992; 2000).

Sabedoras dessa complexidade que se instaura e cujas discussões ganham força na


Contemporaneidade, inserimos a escuta como elemento fundamental no processo formativo
dos professores.

Dialogaremos com três formas diferentes de escutar, que se articulam


harmonicamente: a escuta autônoma, a escuta psicanalítica e a escuta de si. Empreendemos
uma aventura de escutar desafios e possibilidades de professores a partir desses vieses,
entrecruzando-os com uma experiência que já vem sendo empreendida com docentes do
município de Salvador.

POR UMA AUTONOMIA NA ESCUTA...

A autonomia na relação docente torna-se um fator decisivo para o constante


aprimoramento do processo de ensino e aprendizagem. Segundo Freire (2011, p. 133), “o
sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que
se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na
história”. Implica dizer que falar em autonomia requer professores que assumam a condição
de protagonista, ou seja, não permitir omissão no exercício de sua função docente.
A autonomia na escuta é saber ouvir a voz do professor e lançar um novo olhar para
um ensino democrático, construtivo, ético e contextualizado e, assim, ser descobridor de
caminhos é a saída para uma educação permeada na valorização do outro, no entendimento do
outro enquanto um ser que constrói, desconstrói e reconstrói. O processo de autonomia se dá
na coletividade e não de forma unilateral/individualizada, já que a autonomia se constrói no
encontro, é processo, é vir a ser, sem data e hora marcada. Assim sendo, apoiamos em Freire
(2011) para discorrer sobre a importância do ato de escutar. No emaranhado dessas
indagações, o processo de escuta é:

[...] a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a


abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isso não
quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua
redução ao outro que fala. Isso não seria escuta, mas autoanulação. A
verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o
direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo contrário, é
escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar
do ponto de vista das ideias. Como sujeito que se dá ao discurso do outro,
sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com
desenvoltura. (FREIRE, 2011, p.117)

Percebe-se que é preciso escutar, pois o educador que escuta é capaz de transformar o
meio em que está inserido e, assim, contribuir de forma eficiente e eficaz no processo de
construção crítica do conhecimento entre os seus educandos.

[...] se a aposta deve ser feita em torno da valorização da pessoa humana,


considero então que a formação de professores constitui um período
fundamental de crescimento pessoal que não pode ser negligenciado, pois
inscreve-se num contexto mais amplo de desenvolvimento global da pessoa.
[...] E ele quer ser pessoa, pessoa com a tal dimensão pessoal partilhada, que
see respeita e respeita o outro. E a dimensão pessoal não se outorga, ela
adquire-se, ela conquista, ela forja-se pelo exercício dos valores humanos,
em cumplicidade com os outros. (SOUSA, 2000, p.257)

A figura do professor é de extrema importância para o processo de ensino-


aprendizagem, principalmente porque este se configura nos dias atuais como um mediador
que deve provocar e levantar questionamentos, recusando o título de ser um mero transmissor
de conhecimentos. A dinâmica da sala de aula precisa favorecer o aprendizado do aluno, e
fortalecer a relação do professor com a turma, mas, ao mesmo tempo, desafiar o docente para
a aplicação de uma metodologia de ensino que valorize a autonomia intelectual do educando.

POR UMA ESCUTA SUBJETIVA

Consideramos importante salientar que a diferença entre ouvir e escutar é sutil, mas
de intensa relevância. Escutar o outro está para além da compreensão da palavra dita, o que
caracteriza a escuta psicanalítica que aqui trazemos como instrumento relevante para o
processo educacional. Defendemos aqui a necessidade de se ampliar a escuta aos profissionais
de educação, considerando que para a promoção do bem-estar na escola é de fundamental
importância que se possa escutar os atores que compõem a cena escolar, espaço em que se
constata um reflexo da crise de autoridade que se percebe na pós-modernidade. De certa
forma, esta pesquisa propõe um novo estilov de escuta para a educação, uma vez que traz
como fundante o enlaçamento destes três tipos acolhimento à escola: a escuta sensível, a
escuta psicanalítica e a escuta autônoma, tentando de alguma forma (re)inventar um novo elo
para este desenho: a escuta pedagógica.

Será por meio de uma escuta minuciosa e pela acolhida da demanda “através de um
olhar que possa contemplar e alcançar a singularidade das existências”vi que pretendemos
alcançar o docente em sua subjetividade; nesta perspectiva, o ato de escutar conceberá a
subjetividade de cada um na relação com o outro e ainda com Outros, enfatizando os
componentes internos e intrapsíquicos.

Freud, desde o início, utilizou-se da escuta como forma de tratar os sintomas


apresentados pelo paciente pela via da transferência. Durante toda a sua trajetória, apesar de
inserir modificações nos métodos utilizados de modo a aperfeiçoá-los para seu viés clínico,
jamais perdeu de foco a fala do paciente e a escuta cuidadosa do analista. A psicanálise,
inicialmente, era uma arte interpretativa que induzia o paciente, através da sugestão, a
abandonar suas resistências. Contudo, foi percebido que para o inconsciente tornar-se
consciente tal método não era suficiente, o que fez o pai da psicanálise abandonar a hipnose,
passando pelo método catártico até chegar à associação livre, método no qual o sujeito é
encorajado a falar livremente sobre qualquer ideia, por mais embaraçosa, irrelevante ou tola
que lhe pareça, trazendo ao nível consciente suas lembranças ou pensamentos reprimidos.

Lacan faz um retorno ao sentido de Freud, parte do Édipo para a Função Paterna. Seus
conceitos fundantes se deram no sentido da investigação da relação do sujeito com o seu
sintoma. Ele também utilizou a escuta para acessar os significantes do sujeito (S) (que ele
nomeou Falasservii). Sua visão estruturalista permite interpelar que, enquanto o sujeito fala,
ele é Sujeito e, se há alguém que fala há necessidade de alguém que escute, pois a fala de um
sujeito é sempre direcionada a alguém que o remete, partindo de uma dinâmica inconsciente à
relação primeva vivida com as figuras parentais.
O Sujeito é, antes de tudo, desejante, marcado pela falta, pela incompletude. Segundo
Ornellasviii, é essa identificação com o outro ser faltante que constitui o sujeito, cada um no
seu estilo, que é dito pela mesma autora como “marca singular de um sujeito,[...] é seu
manejo em falar, escrever, escutar, etc; é o seu jeito de enfrentar sua falta-a-ser (o sujeito que
demanda serix)”. A escuta vem, neste contexto, mostrar-se instrumento de junção das duas
faces que encaminham e direcionam a construção subjetiva do sujeito: a educação e a
psicanálise.

A escuta pelo viés da psicanálise acontece na leitura das entrelinhas do discurso,


pautando-se também nos gestos e atitudes; a escuta psicanalítica é prerrogativa do
psicanalista, mas também nos oferece bases para a construção de um método que aqui
nomeamos de “escuta pedagógica”, refutando qualquer tentativa de aprisionamento do sujeito
em uma determinada posição, rotulação ou diagnóstico. A proposta maior é escutar esta
escola para melhor compreendê-la como aparelho formador e transformador do sujeito.

A NECESSIDADE DE UMA “ESCUTA DE SI”

Escutar a si mesmo é mais do que um componente no processo de formação do


professor. Insere-se, neste contexto, como uma necessidade de fazer emergir memórias,
trajetórias e narrativas, para além do que é dito. Nóvoa (1995) discorre sobre a pertinência da
indissociabilidade entre vida-formação-profissão docente. Nossas trajetórias profissionais
dizem muito do que somos enquanto pessoas: quais palavras utilizamos, em quais ideologias
acreditamos (e propagamos), de que lugar nós somos...ou seja, nos denunciam, desnudam, em
um processo fluido, contínuo, dinâmico do que somos e não somos. Compreende-se, então, o
que Nóvoa diz tão enfaticamente: “O professor é a pessoa, e uma parte importante da pessoa é
o professor.” (Nóvoa, 1995, p.9).

A nossa vida, a nossa história de vida e itinerâncias pessoais e formativas são


complexas e plurais, avivando a nossa memória e aquecendo os nossos corações. Ao buscar
na memória os objetos, os desenhos, as fotografias, as imagens, os momentos que passamos,
as histórias que ouvimos e que narramos também, os fatos que marcaram, as experiências
vivenciadas, as lições aprendidas, podemos encontrar possibilidades de melhor atuar,
ressignificando nossa prática e refletindo sobre o nosso saber-fazer.
É no âmbito de toda essa problemática, de todos os fios aqui entrelaçados, que nos
apropriamos da metodologia das Histórias de Vida como um caminho que comporta a
complexidade de uma vida, em prol da compreensão das dimensões formativas subjacentes a
ela. Em suas reflexões, Dominicé (2010) aponta que:

[...] a história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se


trata de aproximar a educação da vida, como nas perspectivas da educação
nova ou da pedagogia ativa, mas de considerar a vida como o espaço de
formação. A história de vida passa pela família. É marcada pela escola.
Orienta-se para uma formação profissional, e em consequência beneficia de
tempos de formação contínua. A educação é assim feita de momentos que só
adquirem o seu sentido na história de uma vida. (DOMINICÉ, 2010, p. 199).

Escutar os sujeitos nos proporciona uma privilegiada condição de conhecimento das


suas práticas, sensações, sentimentos. Estudar e nos apropriar das histórias de vida dos
professores nos permitirá evocar as suas concepções, memórias, vozes. São essas vozes que
intentamos ouvir sensível e respeitosamente:

É essa escuta do subjetivo e do desenvolvimento pessoal do professor que


preciso considerar no processo de sua formação, seja inicial ou continuada.
Conseqüentemente, a história de vida permitirá transpor a voz, há muito
calada, das diferentes necessidades do professor (SOUZA, 2006, p.55).

Esse movimento envolverá dimensões como a lembrança. Sabedoras de que a


“lembrança é a percepção de uma imagem que se desloca de um tempo que já passou para o
tempo presente” (CHIARA, 2001, p. 22), e que não segue uma ordem cronológica, nos
posicionaremos diante desses professores de forma que suas lembranças sejam cuidadosa e
sensivelmente ouvidas. Permeadas pelo passado, mas num contexto presente, precisaremos
sinalizar aos professores que o lugar da lembrança terá que ser garantido para que suas
histórias constituam-se como elementos de investigação para nós.

As falas dos professores desvelarão as histórias e leituras dos próprios mundos, como
também as de outros tantos, favorecendo a compreensão do processo construtivo do ser
sujeito/professor, ao vivenciar histórias cotidianas, sejam das suas trajetórias pessoais ou
resultantes da profissão. A partir dessas garantias aos tempos/espaços da escuta de
professores, é possível a descrição de passagens repletas de significados e sentidos das nossas
vidas, dores e sabores da docência que, de uma ou outra forma, descrevem um pouco do que
somos, enquanto pessoas e profissionais.

UMA EXPERIÊNCIA COM A ESCUTA DE PROFESSORES


Falar das itinerâncias pessoais e formativas que nos constituíram/constituem enquanto
docentes nos insere em um movimento dinâmico. Em um “ir e vir” contínuo, ultrapassando as
fronteiras entre passado e presente, repleto de sentidos que permeiam o ser/fazer docente.

Em busca de possíveis esclarecimentos acerca dessas questões, intentamos adentrar


ao espaço da formação docente para compreender, através da escuta, as dificuldades do ensino
e possíveis passos para amenizar (ou direcionar para soluções) parte dos desafios enfrentados
pelos professores.

Iniciamos um movimento de escuta ao profissional da educação (da Rede Municipal


de Salvador), aqui compreendido como todo sujeito envolvido no trabalho com o aluno ou
famílias no espaço da escola, incluindo o grupo gestor, coordenadores e professores. Nestes
sujeitos centraremos nossa escuta. O desejo da pesquisa surgiu a partir da constatação da
existência de afetos prazerosos e desprazerosos, declarados pelo professor, no ambiente
escolar; afetos ambivalentes, pendulantes entre o desejo e o não-desejo, a espera e o desespero
do bem-estar.

Por meio de trabalhos que envolvem a escuta e o movimento, favorecendo espaço de


fala num ambiente horizontal e circular, continuaremos a investigação sobre os afetos que
perpassam o profissional em seu trabalho docente, utilizando, para tanto, a modalidade de
pesquisa denominada grupo focal (GATTI, 2005), na qual os sujeitos ficam à vontade para
expor suas angústias num espaço comum ao grupo. Elegemos seis unidades educativas, dentre
escolas municipais e empresas educativas da Fundação Cidade Mãe.

As escolas têm em comum o fato de serem municipais e se localizarem em bairros


periféricos; as unidades da Fundação Cidade Mãe (FCM) são empresas educativas que
atendem jovens e crianças em situação de risco social/pessoal, complementando a educação
formal com oficinas lúdico-pedagógicas e com cursos profissionalizantes, também localizadas
em bairros da periferia de Salvador. Nas escolas encontramos um universo de professoras
(gênero feminino), funcionárias da rede municipal. Nas unidades da Fundação os educadores
sociais estão em equilíbrio numérico quanto ao gênero; quanto ao regime de contratação,
apenas cerca de quarenta por cento (40%) dos educadores são professores da rede municipal
(cedidos em convênio de cooperação técnica), ou seja, a maior parte é composta por
educadores contratados por empresas terceirizadas e não necessariamente com licenciatura
(concluída) para o exercício das oficinas ofertadas. Estes dados tornam-se relevantes para que
se possa perceber de que lugar fala o educador-sujeito dessa pesquisa.

A inspiração de cunho qualitativo deste “embrião” de pesquisa será fundamentada


em três maneiras de promover a escuta que, embora aportados em locais diferentes, articulam-
se harmonicamente. A primeira delas será a escuta autônoma, pois compreendemos que é
dever do pesquisador sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro, para poder
compreender de dentro de suas atitudes, comportamentos e sistemas de ideias, de valores, de
símbolos, de mitos, de forma sensível. Essa postura abre espaço para possíveis
transformações em diversas dimensões (pessoal, profissional, emocional). Para Barbier
(2002), a escuta sensível não faz juízos de valor, mas aceita, através da empatia, a existência
dos outros enquanto sujeitos. Na socialização das experiências não há espaço para
julgamentos ou a pretensão de comparar o que é compartilhado. Os estudantes apenas
posicionam-se como sujeitos que escutam e se colocam no lugar do outro:

A escuta sensível reconhece a aceitação incondicional de outrem. O ouvinte


sensível não julga, não mede, não compara. Entretanto, ele compreende, sem
aderir ou se identificar às opiniões dos outros, ou ao que é dito ou feito. A
escuta sensível pressupõe uma inversão de atenção. Antes de situar uma
pessoa em seu lugar começa-se por reconhecê-la em seu ser (BARBIER,
2002, p.1).

Com essas palavras, percebemos a importância da validação do outro no processo de


construção autônoma da sua formação, quer no âmbito profissional ou social, sendo a
autonomia da escuta aqui percebida como uma qualidade do ofício docente. Para Contreras
(2002, p. 201), a autonomia só pode ser construída no encontro, “mediadas pelo entendimento
e o diálogo”. Desse modo, corroboramos também com Freire quando ele sinaliza a
importância de uma educação que seja realmente libertadora, autônoma e criativa, mesmo que
para isso precisamos constantemente correr riscos, pois:

[...] Nadar contra a corrente significa correr riscos e assumir riscos. Significa,
também, esperar constantemente por uma punição. Sempre digo que os que
nadam contra a corrente são os primeiros a ser punidos pela corrente e não
podem esperar ganhar de presente fins de semana em praias tropicais.
(FREIRE; SHOR, 1986, p.29).

Por essa via de pensamento, cabe-nos dizer que hoje mais do que nunca, é de extrema
necessidade uma transformação na forma de escutar os docentes, já que vivemos numa era de
supercomplexidade, extremamente efêmera e líquida (BAUMAN, 2009).
A segunda forma de escutar será a escuta psicanalítica, que vai além da palavra dita
e da palavra não dita e que se estende pelo olhar ao sujeito completo, consciente e
inconsciente. Uma escuta de palavras e gestos que abrem acesso à significação. A grande
proposta é acessar esse sujeito pessoal que se enlaça ao profissional e tem suas angústias
misturadas e potencializadas, numa tentativa de revelar se é a ambiência da escola e o
exercício docente que leva o mal-estar ao sujeito ou se é o mal-estar que se instala na
contemporaneidade que adentra o espaço escolar. Torna-se relevante levar a escuta
psicanalítica para o espaço de labor do docente para que se possa desvelar a origem desse
sintoma, um possível canal de comunicação. Ornellas (2008) nos diz que:

[...] Diante desse mal-estar no ambiente escolar, a escuta psicanalítica pode


abrir um canal de comunicação, porque este instrumento da escuta envolve
não só o sentido do ouvir, mas o de fazer uma leitura subjetiva do discurso,
simbolizado pelo sujeito escutante (ORNELLAS, 2008, p.3)x.

No texto citado, a autora faz alusão à escuta não só ao professor, mas ao aluno e à
escola, de forma mais ampliada, como um processo fundante de onde pode emergir a criação.
“Ao escutar os ditos e os não-ditos, produz-se, amplia-se e repete-se o afeto prazeroso e
desprazeroso e, nesse processo de repetição, pode emergir a criação”, é o que afirma a
Lourdes Ornellas.

Para além da escuta pura e simples, ou partilha de experiências, o trabalho proposto


aqui deseja alçar novos horizontes, novos voos, instituindo a escuta pedagógica. As sessões de
encontro com os professores serão divididas em 10 movimentos com temáticas diferenciadas
(tais como o toque, a partilha, a escuta, o olhar). Não será uma proposta que envolverá apenas
nossos sentidos orgânicos. O que se pretende é que essa se configure como um lugar de trocas
significativas: as histórias de vida, as trajetórias e itinerâncias formativas e as experiências
docentes terão um lócus para desabrochar e serem trabalhados.

A terceira maneira de trabalhar com essa proposta se firmará na análise/partilha das


experiências e trajetórias formativas, por meio da escuta de si, das histórias de vida dos
professores. A apropriação das histórias de vida de cada professor será possibilitada durante
as sessões dentro do espaço das escolas e da Fundação Cidade-Mãe. A tentativa na qual se
insere esta proposta investigativa valida-se por se tratar de uma prática reflexiva,
possibilitando além do “conhecimento de si” (SOUZA, 2006), uma “reinvenção de si”
(JOSSO, 2002). Ainda utilizando o pensamento de Souza (2006), é relevante destacar que o
método autobiográfico e as narrativas de formação consolidam-se como possibilidades de
conhecimento do ser e são facilitadores no processo de realização da pesquisa na formação de
professores. As narrativas podem oportunizar espaços nos quais o sujeito seleciona suas
idéias, possibilita a reconstrução de sua experiência de vida e, numa visão (auto) reflexiva,
busca compreender a trajetória de si e do(s) outro(s), sem perder de vista as próprias
itinerâncias formativas.

Ao articular esta proposta, planejamos articular mais que “métodos” de trabalho, ou de


escuta. Desejamos fornecer pistas para consolidação de uma escuta pedagógica. Intentamos
articular vidas, escutas, histórias e trajetórias, nas quais os professores sintam-se protagonistas
dessa trama complexa e desafiadora, entrecruzando olhares diversos.

E PARA (NÃO) TERMINAR...

Consideramos a escuta pedagógica um novo estilo de escuta e um poderoso


instrumento para consolidar no sujeito/professor o valor de sua história enquanto ferramenta
constitutiva do profissional que atua na escola. No mundo pós-moderno o ato de escutar se faz
enquanto discurso e ética e, certamente, se opõe a qualquer solução de adaptação do sujeito à
cultura. Neste sentido, acreditamos que por meio da escuta estará se ofertando ao educador o
suporte necessário para que possa se confrontar com seu desejo e com suas faltas, com sua
história e sua autonomia, podendo assim enlaçar os afetos do oficio de ser professor.

Para Goodson (2007, p. 69), “o ingrediente principal que vem faltando é a voz do
professor. [...]. Necessita-se agora de escutar acima de tudo a pessoa a quem se destina o
‘desenvolvimento’.” Como aspectos que se entrelaçam na dinamicidade de uma bricolagem
pedagógica, por seres individuais e coletivos ao mesmo tempo, a escuta sensível e a validação
do Ser Professor são premissas fundamentais para uma formação coerente, criativa,
competente e com possibilidades de esperanças num mundo cada vez melhor. Por fim,
“ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso
estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas”. (FREIRE, 2011, p.75).

A pretensão desse estudo não é esgotar as possibilidades de trabalho com a escuta na


formação docente na Contemporaneidade. As aprendizagens não se encerram, nem as
sugestões de trabalho são absolutas, estanques, imóveis. Temos a clareza de que provocações
e inquietações são apenas possíveis molas propulsoras de pesquisas outras. E foi nessa
condição que partimos para investigar o trabalho de professores da Rede Municipal de
Salvador, pois na reflexão de nossa prática e (re)analisando seus fundamentos podemos ter
consciência de nossa inconclusão enquanto seres humanos.

Considerar os professores como seres que constroem suas aprendizagens,


estabelecem significados e alimentam a subjetividade, estabelecendo relações com as
realidades das quais participam é necessário. O que se espera é proporcionar um trabalho
significativo que não dissocie a produção de conhecimentos das próprias escutas das histórias
de vida dos docentes envolvidos na pesquisa.

Assim sendo, somente uma formação voltada para a emancipação e para a escuta
pode contribuir para que os sujeitos desenvolvam a capacidade de compreender, interpretar e
agir sobre/com o mundo e a realidade na qual estão inseridos. É necessário conceber um lugar
que propicie uma reflexão para além da constatação dos limites enfrentados no cotidiano. Um
momento que valorize suas histórias de vida e os valorize, enquanto profissionais e sujeitos
que são.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo:
Mestre Jou, 1982.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida.Tradução: Plínio Dentzien. São Paulo: Editora
Zahar, 2001.

CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.

DELORY-MOMBERGER, C. (2008). Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto.


Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus.

DUTRA, Elza. Considerations on the meanings of clinical psychology in our times. Estud.
psicol. (Natal)., Natal, v. 9, n. 2, 2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X2004000200021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 maio 2007.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986. Tradução de Adriana Lopez.

______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREUD. S. Além do princípio do prazer. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de
janeiro: Imago, 1996.
_________. Esboço de psicanálise. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro:
Imago, 1996.
_________. O futuro de uma ilusão. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro:
Imago, 1996.

GOODSON. Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu
desenvolvimento profissional. IN.: NÓVOA, Antônio. (Org). Vidas de professores. Porto,
Portugal: Porto Editora, 2007. p. 63 – 78.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

LACAN. J. Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

______. Seminário 20 - Mais Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

MARQUES, Mario Osório. Escrever é preciso: o princípio da pesquisa. 5ª ed. Ijuí, Ed.
Inijuí: 2006.

NÓVOA, Antônio e FINGER, Matthias. O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa:


MS/DRHS/CFAP, 1988.

_____________(coord.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 2000.

_____________. Professores: Imagens do futuro presente. Lisboa: EDUCA, 2009.

ORNELLAS, M.L.S. Afetos manifestos na sala de aula. São Paulo: Annablume, 2009.

______. Estilo: marca que obtura a falta do outro. Texto apresentado no II Colóquio
Estadual de Educação, UNEB. CD ROM.

SOUSA, Jesus Maria. O professor como pessoa: a dimensão pessoal na formação de


professores. Porto, Portugal: ASA Editores II, 2000.

SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: Estágio e narrativas de formação de


professores. Rio de Janeiro: DP&A; Salvador: UNEB, 2006.

TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários:


Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas
conseqüências em relação à formação para o magistério. In: Revista Brasileira de Educação,
nº 13. São Paulo: Anped, jan. - abr., 2000, p.5-24.

_____________. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento: subjetividade, prática e


saberes no magistério. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Didática, currículo e saberes
escolares. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
i
Mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Especialista em
Novas Tecnologias na Educação pela Escola Superior Aberta do Brasil – ESAB e Graduada em Relações
Internacionais. Membro do Grupo de Pesquisa Docência Universitária e Formação de Professores – DUFOP /
UNEB. Diretora Acadêmica do Sistema Bahia de Ensino (FAZAG, FHR, FACSA e FACET). Consultora
Educacional para Assuntos da Educação Superior: (Autorização, Reconhecimento de Cursos e
Recredenciamento de IES). E-mail: cambuiana@gmail.com
ii
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – UNEB; Pedagoga (UFBA),
Psicopedagogia (IBPEX), Terapeuta Comunitária Sistêmica Integrativa (MISC-BA/ABRATECOM), Técnica da
Fundação Cidade Mãe (PMS); Pesquisadora do GEPE-RS (Grupo de Estudos em Psicanálise, Educação e
Representação Social); contato: leideantonino@yahoo.com.br
iii
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – UNEB; Pedagoga (UNEB),
Especialista em Alfabetização e Letramento (FAMA). Professora da Rede Municipal de Salvador (PMS);
Pesquisadora do Grafho (Grupo de Pesquisa em (Auto)Biografia, Formação e História Oral). E-mail:
saramre@hotmail.com.

iv
Alusão ao livro de Mário Osório Marques: Escrever é preciso: O princípio da pesquisa. 5ª ed. Ijuí, Ed. Inijuí:
2006.
v
Estrutura pautada pela verdade do desejo.

vi
DUTRA, E.(2004). Considerations on the meanings of clinical psychology in our times. Via web
Em seus seminários finais Lacan irá contrapor o conceito de Falasser ao conceito de sujeito. Esse sujeito Falasser
ao qual ele se refere encontra-se vinculado a uma vertente mais linguageira, fundamentada nos significantes
vinculados aos sentidos e às significações, com um direcionamento maior para o simbólico.
vi
Ornellas, M.L.S. (2009). Estilo: marca que obtura a falta do outro. Texto apresentado no II Colóquio Estadual
de Educação, UNEB.

vii
Em seus seminários finais Lacan irá contrapor o conceito de Falasser ao conceito de sujeito. Esse sujeito
Falasser ao qual ele se refere encontra-se vinculado a uma vertente mais linguageira, fundamentada nos
significantes vinculados aos sentidos e às significações, com um direcionamento maior para o simbólico.
vii
Ornellas, M.L.S. (2009). Estilo: marca que obtura a falta do outro. Texto apresentado no II Colóquio Estadual
de Educação, UNEB.

viii
Em seus seminários finais Lacan irá contrapor o conceito de Falasser ao conceito de sujeito. Esse sujeito
Falasser ao qual ele se refere encontra-se vinculado a uma vertente mais linguageira, fundamentada nos
significantes vinculados aos sentidos e às significações, com um direcionamento maior para o simbólico.
viii
Ornellas, M.L.S. (2009). Estilo: marca que obtura a falta do outro. Texto apresentado no II Colóquio
Estadual de Educação, UNEB.

ix
Nota da autora.

x
Texto apresentado por Ornellas na 31º Reunião anula da ANPED, intitulado Afetos: nos fios dos bastidores da
sala de aula.

Você também pode gostar