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PRIMEIRA ESCRITA Recebido em 18/11/19

2020 | Volume 7 | Número 1 | Páginas 33-41 Aceito em 17/03/20

O PROCESSO DIGLÓSSICO ENTRE AS LÍNGUAS TERENA E PORTUGUESA NAS


COMUNIDADES INDÍGENAS TERENA DE CAMPO GRANDE
Guadalupe Vilhalba Cabral Xavier
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Onilda Sanches Nincao
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

RESUMO RESUMEN
Este trabalho tem por objetivo apresentar a El objetivo de este trabajo es presentar la
configuração do processo diglóssico da Língua configuración del proceso diglósico de la lengua
Portuguesa e da Terena de comunidades portuguesa y la lengua Terena de las
indígenas de Campo Grande, Mato Grosso do comunidades indígenas de Campo Grande en
Sul. Tal temática é relevante em razão do Mato Grosso del Sul. Dicha temática se torna
aumento crescente da população indígena que relevante por la razón del creciente aumento de
sai de suas aldeias em busca de novas la población indígena que sale de sus aldeas en
oportunidades de trabalho na capital (URQUIZA; búsqueda de nuevas oportunidades de trabajo
VIEIRA, 2012). Em Campo Grande existem 9 hacia la capital (URQUIZA e VIEIRA, 202). En
aldeias urbanas e um quiosque no Mercadão Campo Grande hay 9 aldeas urbanas y un
Municipal com um quadro sociolinguístico quiosco en el Mercado Municipal con un cuadro
complexo pelo fato de os habitantes serem sociolingüístico complejo porque los habitantes
provenientes de diversas aldeias com provienen de varios pueblos y algunos buscan
manutenção e uso da língua Terena e outras el mantenimiento y uso de la lengua Terena y
com perda e deslocamento da língua indígena, otros muestran pérdida y desplazamiento de la
tendo a língua portuguesa como língua materna. lengua indígena, teniendo la lengua portuguesa
A metodologia da pesquisa de mestrado de como lengua materna. La metodología de esta
caráter qualitativo e etnográfico buscou analisar investigación de maestría es de carácter
os resultados obtidos em interação com os cualitativo y etnográfico que buscó analizar los
participantes da pesquisa (SEVERINO, 2016). A resultados obtenidos con interacción con los
fundamentação teórica baseia-se nos conceitos participantes de la investigación. (SEVERINO,
de fenômenos linguísticos relacionados a 2016). La fundamentación teórica se basa en
línguas em contato (BRAGGIO,1998; MAHER, conceptos como fenómeno lingüístico
2007) e aos processos diglóssicos (HAMEL; relacionados a lenguas en contacto (BRAGGIO,
SIERRA, 1983). Os resultados mostraram a 1998; MAHER, 2007) y los procesos diglósicos
presença do bilinguismo diglóssico (HAMEL e SIERRA, 1983). Los resultados
diversificado com uso significativo da Língua mostraron la presencia de un bilingüísmo
Portuguesa e o uso diferenciado da língua diglósico diversificado con un uso preferencial
Terena entre as faixas etárias presentes na hacia la lengua Portuguesa y otro diferenciado
comunidade Terena. Dessa forma, espera-se hacia la lengua Terena entre los grupos de
contribuir com a comunidade Terena e com edades presentes en la comunidad de Terena.
órgãos capacitados para definição de diretrizes De esta forma, se espera contribuir con el
para a preservação e ensino da Língua Terena Pueblo Terena y órganos competentes para
no contexto das aldeias indígenas urbanas da definir directrices que ayuden a la preservación
capital. y enseñanza de la lengua Terena dentro del
Palavras-chave: Língua Terena; Língua contexto de las aldeas indígenas urbanas de la
Portuguesa; Diglossia; Aldeia Urbana. capital.
Palabras clave: Lengua Terena; Lengua
Portuguesa; Diglosia; Aldeia Urbana.

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Guadalupe Vilhalba Cabral Xavier é mestre em dividida em nove povos. Números divulgados
Estudos de Linguagens pela UFMS. pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
E-mail: dalupe10@hotmail.com Estatística (IBGE), no Censo de 2010,
Onilda Sanches Nincao é docente da apontaram que a população indígena de Mato
Licenciatura Intercultural Indígena no câmpus Grosso do Sul cresceu 3,1% em 10 anos, uma
de Aquidauana da UFMS e docente permanente vez que 73.295 pessoas se declararam como
do Mestrado Profissional em Letras do câmpus indígenas. A nível de Brasil, o Censo do IBGE
de Três Lagoas da UFMS. (2010) registrou 896,9 mil indígenas no país,
E-mail: onilda.sanches@ufms.br sendo que 36,2% são moradores da região
urbana e 63,8%, moradores da região rural
(ALTENHOFEN, 2013, p. 35).
1 INTRODUÇÃO
A capital de Mato Grosso do Sul, Campo
Este trabalho tem por objetivo apresentar a Grande, ocupa o sétimo lugar entre os
configuração do processo diglóssico da Língua municípios brasileiros onde habitam populações
Portuguesa e da Terena de comunidades indígenas, sendo que o Estado abriga duas das
indígenas de Campo Grande, Mato Grosso do cinco maiores etnias indígenas do Brasil: os
Sul, a partir de pesquisa realizada nas Guarani e os Kaiowá 1, com 37,4 mil indivíduos,
comunidades indígenas localizadas nessa e os Terena com, aproximadamente, 28,8 mil
capital de estado. indivíduos.
O Brasil é um país multilíngue com mais de No que diz respeito a Campo Grande, na
180 línguas indígenas, além de línguas de região urbana, várias etnias indígenas
imigrantes, Libras e a língua portuguesa, brasileiras estão firmadas em locais comuns,
herança do processo colonial brasileiro, mas foi denominados aldeias urbanas 2, convivendo em
no século XVIII que se definiu uma politica contato com a sociedade não indígena e, dentre
linguística homogeneizadora, quando o elas, estão os Terena que buscaram novas
Marquês de Pombal tornou obrigatório o uso da oportunidades fora do lugar de suas origens
língua portuguesa em território nacional, (SILVA; BERNADELLI, 2016).
passando a ser visto como um país monolíngue.
Do ponto de vista linguístico, a população
Cavalcanti (1999) discute a questão do indígena do município define-se com um
multilinguismo no Brasil em contraposição ao quadro sociolinguístico complexo,
mito do monolinguismo instaurado. Da mesma considerando as várias aldeias de origem de
forma, Mello (2011, p. 353), esclareceu a outros municípios, algumas falantes da língua
diversidade linguística nativa, presente no indígena e outras não falantes, com diversos
território brasileiro, afirmando que “somos sim, processos diglóssicos, aliados à necessidade
o país da língua Portuguesa, mas também o país de utilizar a língua portuguesa para a sua
da língua Xerente, Karajá, Apinajé [...]”, dentre inserção no mercado de trabalho, a fim de
outras línguas indígenas. Essa realidade atender a demanda de sobrevivência junto à
assumiu uma apresentação peculiar no Estado sociedade local.
de Mato Grosso do Sul (MS), onde se encontra
a segunda maior população indígena do Brasil

1
A concordância entre o artigo e os nomes obedece a indígenas Terenas. Assim, os termos empregados para
uma regra antropológica ao referir-se aos povos nomeá-la variam entre: aldeia urbana, comunidade e
indígenas. assentamento indígena.
2
A denominação aldeias urbanas faz referência à união
dos povos indígenas na região urbana e divergiu entre os

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No Brasil, usar a língua oficial é uma de origem em conjunto com a língua


questão de sobrevivência para o índio, pois é a portuguesa.
língua da interação, da comunicação A respeito da metodologia, delimitou-se
(PRUDENTE, 2011). Portanto, no contato entre que esta pesquisa é de cunho etnográfico, com
Terena e não indígena, é perceptível o abordagem qualitativa, por meio da qual
desenvolvimento da habilidade de falar e procurou-se colher, organizar e analisar os
entender a língua portuguesa juntamente com o resultados em contato com os participantes da
uso da língua Terena. É importante ressaltar que pesquisa, buscando compreender os processos
os Terenas possuem uma política linguística diários de vida do indivíduo ou de um grupo a
própria de apropriação da língua portuguesa fim de desenvolver registro sobre a vida do
como uma ação estratégica de sobrevivência sujeito da pesquisa, a partir da observação das
junto à sociedade brasileira (NINCAO, 2003; relações socioculturais (SEVERINO, 2016). A
2008). Assim, a relevância do tema deu origem coleta de dados foi realizada por meio de
a este artigo, que resultou de pesquisa realizada levantamento bibliográfico sobre os Terenas
no ano 2017 na UFMS, Universidade Federal do através de questionários, entrevistas e
Mato Grosso do Sul, localizada no município de observação participante, com anotações no
Campo Grande, no estado de Mato Grosso do Diário de Campo. A grande concentração de
Sul, desenvolvida sobre o uso da língua indígenas Terenas provenientes de diferentes
portuguesa e da língua terena nas aldeias áreas configura uma diversidade de uso da
indígenas urbanas da cidade. língua portuguesa e da língua terena, o que
A pesquisa que deu origem a este artigo provoca certa complexidade, tornando-se
teve por objetivo geral investigar como se necessário conhecer, registrar, organizar e
configura o uso da língua Portuguesa e da analisar o perfil linguístico dessa população
língua Terena no contexto das aldeias urbanas urbana.
na cidade de Campo Grande/MS, tendo em vista A nova realidade mundial social traz para a
traçar um perfil sociolinguístico e etnográfico da sociedade o falante de língua materna
população Terena. Diante disso, cabe denominado de povos originários, indígenas
perguntar: Como se configura o quadro que se deslocam para o contexto urbano
sociolinguístico das comunidades Terenas de (URQUIZA; VIEIRA, 2012) e que, por fim,
Campo Grande? Como se dá o uso da Língua nomeiam a língua materna de definidas
Terena e da Língua Portuguesa? Quais os sociedades, povos, como línguas minoritárias
significados desses usos para essas (MAHER, 2007), mas também apresentada por
comunidades? Silva (2011) como língua minorizada. Assim,
Levando-se em conta o locus de espera-se que os dados obtidos possam
investigação desta pesquisa, observa-se que a contribuir para o entendimento dessa
língua portuguesa e terena estão fixadas no importante demanda do povo Terena em Campo
espaço urbano da capital, onde se estabelecem Grande/MS, já que a presença dessa etnia é
em convívio comum, um lugar de relações entre relevante e significativa para a construção
diferentes povos que definem as aldeias histórica do estado (BITTENCOURT; LADEIRA,
indígenas urbanas 3. Portanto, é importante 2000), assim como também para o
compreender esse processo de uso da língua

3
O termo aldeia indígena urbana, nesta pesquisa, diz
respeito ao conjunto de diferentes etnias reunidas em um
mesmo espaço geográfico.

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estabelecimento de políticas de atendimento a linguísticas baixa e alta presentes em contexto


essas comunidades. comum de falantes. Sendo assim, o fenômeno
da diglossia, é apresentado por Ferguson
2 O CAMPO DE PESQUISA (1959) como:
As aldeias urbanas visitadas nesta pesquisa [...] Uma situação linguística relativamente
foram: 1) Aldeia urbana Marçal de Souza; 2) estável, na qual, além das formas dialetais de
Aldeia urbana Água Bonita; 3) Aldeia urbana uma língua (que podem incluir um padrão ou
Assentamento Jardim Inápolis; 4) Aldeia urbana padrões regionais) existe uma variedade
superposta muito divergente, altamente
Darcy Ribeiro; 5) Aldeia urbana Água Funda; 6)
codificada (quase sempre gramaticalmente
Aldeia urbana Jardim Vila Romana; 7) Aldeia mais complexa) veiculando um conjunto de
urbana Santa Mônica; 8) Aldeia urbana Estrela literatura escrita vasta e respeitada [...]
da Manhã; 9) Aldeia urbana Tarsila do Amaral, (FERGUSON, 1959 apud CALVET, 2002, p.
com acréscimo do grupo de comerciantes 60).
Terenas localizados em três quiosques do
Mercadão Municipal da capital. A diglossia define-se como um fenômeno
que acontece no convívio de comunidades
De acordo com as informações levantadas bilíngues a partir da relação de uso de duas
no campo de coleta de dados, as aldeias foram línguas, sendo uma língua majoritária e outra
definidas como comunidades diversificadas minoritária, que fazem a opção pelo uso de uma
entre si, formadas por várias etnias, como mesma língua em situações sociais diferentes.
Guarani, Kaiowá, Kadiweu, Guató e outras, mas Conforme Franceschini (2011), os grandes
com a presença predominantemente de Guarani conflitos delimitados no período da colonização
e Terena, sendo expressiva a presença e desencadearam, além do extermínio de povos,
atuação social destes em contexto urbano. o extermínio de línguas, tornando-se um
As aldeias indígenas urbanas estão fixadas conflito diglóssico (FRANCESCHINI, 2011).
em diferentes regiões da capital, sendo que Após a fase de intensas críticas, o processo
alguns bairros possuem mais de uma e elas de diglossia recebeu novos posicionamentos
estão espalhadas em diversas áreas do teóricos (MAHER, 1997), passando de uma
município de Campo Grande. visão de estudiosos nativos como um
fenômeno de pressão sobre as línguas de
3 O PROCESSO DIGLÓSSICO ENTRE AS menos prestígio para a perspectiva dos
LÍNGUAS TERENA E PORTUGUESA estudiosos europeus que o classificam como
COMUNIDADES INDÍGENAS TERENAS DE parte do social do uso da linguagem. Assim,
CAMPO GRANDE traçou-se uma nova linha de conceito e, nesse
Levando-se em conta o foco deste trabalho sentido, Maher (1997) explica que:
relacionado ao uso das línguas portuguesa e [...] Europeus, por outro lado, concebendo o
terena no contexto das comunidades indígenas conflito como parte constitutiva da dinâmica
Terenas de Campo Grande, destacou-se a social, argumentavam que, em situações
configuração do processo diglóssico existente. diglóssicas, não existe apenas uma
Nesse sentido, para apresentar a diferenciação funcional, aparentemente
neutra, entre as línguas, pois o que está em
convivência de duas línguas diferentes no
jogo é que a cada função corresponde uma
mesmo espaço, Calvet (2002) retoma o
valoração social diferenciada (MAHER, 1997,
conceito histórico de diglossia apresentado por p. 21).
Ferguson (1959) sobre as variedades

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Nesse sentido, conforme discutem Hamel levantadas diante do choque de dominação


e Sierra (1982), a ideia de línguas em contato linguística.
foi substituída pela de línguas em conflito Nessa direção, na realidade brasileira, a
(HAMEL; SIERRA, 1983, p. 96). língua portuguesa, historicamente construída
A partir desse entendimento, Hamel e como de prestígio, foi definida como língua
Sierra (op.cit.) argumentam que foi proposto nacional e tem sido base e fundamento para as
que a relação diglóssica não fosse mais diversas produções linguísticas no país
pensada como de contato estável entre uma (MAHER, 1997). Assim, ela tem ocupado o
língua alta e uma baixa, mas sim como uma espaço de domínio e destaque e as línguas
relação de conflito não estável, assimétrico, minoritárias passam a ocupar o lugar de
entre uma língua dominante e outra dominada. dominadas pela língua dominante. O
Essa concepção deixa transparecer que as duas reconhecimento desse jogo de posições e valor
línguas não se encontram mais no mesmo nível, permite considerar que o conflito diglóssico
mas em lugares de conflito, desenvolvendo um afeta todas as áreas sociais, isto é, áreas que
embate de valor real e de uso competitivo. envolvem o falante (MAHER, 1997, p. 20-22). A
Nesse jogo de forças, vence a de maior seguir, é apresentada a configuração do
prestígio, até que novas estratégias de processo diglóssico nas diferentes
valorização da língua desprestigiada sejam comunidades indígenas Terenas de Campo
Grande, conforme o quadro a seguir:

Quadro 01: Configuração do processo diglóssico por aldeia indígena urbana


Nome da aldeia Configuração do processo diglóssico na Comunidade Terena
indígena urbana
Água Bonita A língua Terena é usada em contexto de intimidade, reservado à
comunidade Terena, com a LP 4 sendo falada dentro e fora da
comunidade.
Jardim Inápolis Valoriza, ensina e fala a LT através da participação das novas
gerações e usa a LP como língua franca. Vive processo diglóssico
pró-língua portuguesa.
Vila Romana A LT é falada, ensinada na comunidade, tendo por objetivo seu
fortalecimento e preservação. A LP funciona como língua franca
pela comunidade indígena urbana. Portanto, vive um processo de
diglossia pró-língua portuguesa.
Água Funda Usa a LT e a LP no contexto da comunidade Terena, sendo o
bilinguismo praticado entre os Terena. A LP é usada como língua
franca na comunidade e com a sociedade não indígena,
superando o isolamento social caracterizado na localização da
aldeia.

(A tabela continua na próxima página)

4
A Língua portuguesa é sempre língua franca, de uso diferentes etnias e em cada comunidade indígena urbana,
geral em todas as aldeias indígenas urbanas, entre as como a comunidade urbana Terena.

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Usa a LP em elevada proporção em todas as interações sociais e


Santa Mônica como língua franca na comunidade Terena e sociedade não
indígena. Demonstrou forte ausência de uso da LT em festa
indígena cultural e no meio familiar. Assim definiu-se significativa
presença do processo diglóssico pró-língua portuguesa.
Marçal de Souza É uma comunidade bilíngue diglóssica, usa a LT na comunidade
Terena urbana, no meio familiar e a LP como língua franca na
família, comunidade Terena e sociedade não indígena.
Darcy Ribeiro Revelou uso acentuado da LT em apresentação cultural, com
ênfase na intenção política e no uso da LT com tradução para a
LP. Usa a LP como língua franca na comunidade geral. Constatou-
se avançado processo diglóssico pró-língua portuguesa.
Centro Comercial Revelou uso sutil da LT em contexto familiar, na presença de
do Mercadão turista e não indígena, sendo a LP usada em elevada proporção
Municipal no ambiente comercial e no contato com o não indígena.
Fonte: organização das autoras

Com a configuração do uso das línguas linguístico, pela opção de uso conforme a
terena e portuguesa por aldeia indígena urbana situação e a necessidade. Esse fato não significa
foi possível identificar e compreender o que seja um uso despercebido, pois foi
processo diglóssico em cada comunidade apresentado pela comunidade Terena durante a
indígena Terena de Campo Grande. Como foi pesquisa que as gerações mais novas ouvem,
constatado, o contexto linguístico das aldeias aprendem ou no mínimo compreendem e falam
em estudo se caracteriza por um processo palavras simples, conforme a idade do falante
diversificado de uso das línguas terena e Terena.
portuguesa, considerando que são originárias Desse modo, a língua terena ocupou seu
de diferentes aldeias do estado, com situações espaço de importância para a comunidade.
de uso da língua Terena como língua materna, Durante as entrevistas e coleta de dados, foram
como é o caso das Aldeias Cachoeirinha, constatadas amostras de uso dessa língua e
Bananal, Água Branca e Lagoinha na região de demonstrações de conhecimento da língua
Miranda e Aquidauana. Nesses mesmos terena. Entretanto, não foram revelados
municípios há aldeias que têm a língua momentos de ensino dessa língua para as
portuguesa como língua materna: aldeias do novas gerações, mas sim momentos de
Limão Verde, Ipegue, Buriti, Água Azul, Córrego interação uso maior pela geração dos adultos e
do Meio, as últimas três nos municípios de Dois idosos.
Irmãos do Buriti e Sidrolândia.
Como é próprio dos contextos indígenas no
Dada essa diversidade de origens e Brasil em situação de convivência com os
situações linguísticas, o processo de diglossia espaços urbanos, o uso da língua portuguesa
varia entre as comunidades de Campo Grande. assumiu o valor fundamental de sobrevivência
O uso da língua Terena se manifestou em no contexto de aldeia indígena urbana, sendo a
momentos selecionados pelo sujeito Terena, na língua materna das crianças e jovens.
interação dentro da comunidade indígena, entre Historicamente, foi construído o valor do uso da
parentes, familiares e eventos sociais, culturais, língua portuguesa pelos terenas como uma
religiosos e festas familiares. Dessa forma, seu estratégia de sobrevivência para inserção na
uso aconteceu na esfera do controle do uso

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sociedade do outro por meio de uma política comunidades terenas urbanas do município de
linguística própria, sempre repassada para as Campo Grande.
novas gerações (LADEIRA, 2001; NINCAO, Sendo assim, o contexto de comunidade
2008). E dessa maneira ela se fez presente em indígena TERENA urbana se definiu como
todos os ambientes da comunidade, sendo complexo e diversificado, em que a língua
usada de forma isolada ou intercalada com a portuguesa funciona como fundamental para
língua terena e, assim, vem ocupando cada vez sobrevivência. O contexto da aldeia indígena
mais espaços entre os Terena em contexto urbana faz com que a língua portuguesa seja
urbano. importante devido à necessidade de interação
Dessa forma, as línguas terena e social, profissional, comercial e estudantil
portuguesa ocuparam espaços de valorização vivenciada pelas populações indígenas
na comunidade terena urbana, definindo uma estabelecidas em regiões urbanas da capital.
relação não tão harmoniosa quanto aparenta São populações que vieram de aldeias e que
(SILVA, 2011). É uma relação que instalou o procuraram manter ativo o uso da língua terena,
valor de conflito entre a língua majoritária e vivendo em contato com populações que já
minoritária e que definiu no contexto de uso um possuem a língua portuguesa como língua
jogo de ocupação linguística que tende a materna, uma realidade comum no contexto
deslocar a língua minoritária 5, a menos que seja indígena contemporâneo (MAHER, 2016).
levantada uma estratégia contrária ao
movimento diglóssico (MAHER, 1997).
CONCLUSÃO
Na comunidade Terena, percebeu-se uma
As aldeias indígenas urbanas definiram-se
tentativa de levantar resistência ao processo
na formação populacional como diversificadas.
diglóssico, por meio do uso da língua terena no
meio familiar e do ensino realizado nas aulas em A respeito do convívio da etnia Terena com
contexto escolar, ainda praticado em pequena outra retoma o fato de que, ao longo da história,
proporção e em salas de reforço da língua a característica expansionista do Terena
indígena que foram estabelecidas em um lento, favoreceu o convívio com outros povos
independente e até precário processo de (AZANHA, 2005). Elas são formadas por terenas
constituição nas aldeias urbanas da capital. e guaranis, sendo expressiva a participação e
Entretanto, a família ocupa relevante papel na atuação dos primeiros em ações sociais e
tarefa de valorização da língua terena. culturais indígenas no município de Campo
Grande.
Essa análise permite responder às
perguntas da pesquisa a respeito do uso das Dessa forma, o quadro sociolinguístico das
línguas terena e portuguesa em contexto de aldeias indígenas urbanas definiu-se como
aldeia urbana, pois se identificou o uso da língua complexo, tendo como um dos motivos as
de origem da etnia, em sua maioria, em espaços diferentes procedências dos povos indígenas,
reservados e selecionados, e o uso da língua especificamente do terena, e as diferenças
portuguesa em todo contexto de interação do linguísticas estabelecidas em cada comunidade 6
indígena terena. Essa etnia reafirmou a sua
sujeito terena. Trata-se de uma realidade que
própria política linguística (NINCAO, 2003;
manifestou a presença do bilinguismo
2008) de utilização de duas línguas, a LP e a LT,
diglóssico pró-língua portuguesa nas
em um processo de bilinguismo compulsório

5
Termo utilizado por Maher (1997). 6
É definida comunidade indígena terena o grupo indígena
presente em cada aldeia indígena urbana.

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(MAHER, 2007), vivendo uma nova realidade REFERÊNCIAS


que se definiu ao longo do tempo cada vez mais ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Migrações e
complexa na área urbana do município de contatos linguísticos na perspectiva da
Campo Grande. geolinguística pluridimensional e contatual.
Vinculadas à vida urbana vieram situações Revista de Letras Norte@mentos Estudos
conflituosas, como a questão de quando usar Linguísticos, Sinop, v. 6, n. 12, p. 31-52,
uma ou outra língua, a LT e LP, situação já jul./dez. 2013.
definida em suas aldeias de origem, mas com
AZANHA, Gilberto. As terras indígenas Terena
necessidade de um novo posicionamento nas
no Mato Grosso do Sul. Revista de Estudos e
comunidades indígenas urbanas. Diante do
Pesquisas. FUNAI, Brasília, v. 2, n. 1, p. 61-
impasse, o terena manteve o que era de
111, jul. 2005.
costume da etnia, o uso da língua de origem
entre os familiares e parentes. E, quanto ao uso BITTENCOURT, Circe Maria; LADEIRA, Maria
da LP, a língua nacional (MAHER, 2016), eles Elisa. A história do povo Terena. Brasília: MEC,
decidiram mantê-la no lugar da interação entre 2000.
terena e não terena, em contexto comunitário,
e assumir a LP como meio básico para BRAGGIO, Silvia Lucia Bigonjal. Contato entre
sobrevivência. línguas: subsídios para Educação Escolar
Indígena. Revista do Museu Antropológico,
Nesse sentido, os terenas da capital sul- UFG, Goiânia, v. 2, n. 1., 1998.
mato-grossense demonstraram, no uso da
alternância de línguas, diversas intenções, CALVET, Louis – Jean. Sociolinguística: uma
como uma forma de estabelecimento do povo introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
terena e de sua língua no meio urbano, na
CAVALCANTI, C. M. Estudos Sobre Educação
convivência junto ao não indígena, revelando a
Bilíngüe e Escolarização em Contextos de
sua capacidade de manejar duas línguas em
Minorias Lingüísticas no Brasil. REVISTA
conjunto (MAHER, 1997). Assim, em muitas
D.E.L.T.A, no 15, p. 385-417. Número
situações, eles intercalaram falas da LM 7 após
Especial, 1999.
a exposição de frases inteiras na LP, deixando
nítida a intenção de usar a LT para manter a FRANCESCHINI, Dulce do Carmo. Línguas
intimidade entre terenas e parentes e na Indígenas e Português: Contato ou Conflito de
presença do não indígena. Línguas? Reflexões Acerca da Situação dos
Espera-se que os resultados desta Mawé. In: SILVA, Sidney de Souza. Línguas
pesquisa possam contribuir com a comunidade em contato: Cenários de bilinguismo no
terena e com órgãos governamentais para a Brasil. Coleção Linguagem e Sociedade, v. 2.
definição de diretrizes e políticas linguísticas Campinas: Pontes Editores, 2011, p. 41-72.
direcionadas à preservação e ao ensino da HAMEL, Rainer Enrique; SIERRA, Maria Teresa.
Língua Terena no contexto das aldeias Diglossia y Conflicto Intercultural: la lucha por
indígenas urbanas da capital. un concepto o la danz de los significantes.
Boletín de Antropología Americana, n. 8, p.
89-110, dez. 1983.

7
Foi acrescentado a abreviação LM para a referência de
língua materna.

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MAHER, Tereza Machado. Do casulo ao
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Maris Bortoni. (Org.). Transculturalidade, Goiânia. In: SILVA, Sidney de Souza. Línguas
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MAHER, Tereza Machado. O dizer do sujeito SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do
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Divisão de Estudos e Pesquisas - Rio de
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Primeira Escrita | 2020 | Número 7 | ISSN 2359-0335 | Página 41

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