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Singularidades da transferência na psicanálise de adolescentes

Ana Laura Giongo1

A clínica com adolescentes é marcada por algumas singularidades relativas ao


que está em jogo neste tempo. Ao falar em tempo, antes de mais nada, cabe situar que
na psicanálise não tomamos a adolescência como uma etapa cronológica, ou uma fase
do desenvolvimento, mas sim como uma operação psíquica na qual entrarão em cena
processos constitutivos o sujeito. Uma operação psíquica que vai levar o tempo
necessário para que cada um realize em seu psiquismo uma passagem da condição
infantil, do lugar que ocupa na família, ao laço social. A adolescência é um fenômeno
determinado histórica e culturalmente, inscreve-se na cultura ocidental como substituta
e herdeira dos rituais e cerimônias de passagem que nas sociedades tradicionais
sustentavam simbolicamente uma passagem da condição de criança a de adulto. Hoje
um adolescente não conta com dispositivos simbólicos para esta passagem, e precisa
realizar em sua subjetividade um trabalho psíquico do qual a cultura não pode poupá-lo,
o trabalho do adolescer.
É importante situar brevemente as operações psíquicas que entram em cena neste
trabalho de passagem adolescente, afinal, pensando na clínica, a transferência vai ser
atravessada por estas questões. A partir de Rassial (1999), concebemos que a
adolescência vai convocar mudanças na ordem do Real, do Imaginário e do Simbólico.
Diz ele “o Real em jogo na adolescência não é somente o da puberdade, mas também o
que afeta a encarnação imaginária do Outro, que são os pais, o que vai exigir um
deslocamento”(p.203). É o Real que detona a operação do adolescer, a partir das
mudanças no corpo as quais produzem uma sideração do sujeito, que deixa de se
reconhecer em seu corpo e precisará recorrer a um trabalho de reconstrução de sua
imagem, até que assuma, então, uma imagem sexuada, diferente daquela da infância,
construída no Estádio do Espelho. As mudanças no corpo também produzem um novo
olhar sobre os pais, vistos agora como iguais, castrados, mortais. Afinal, o acesso à
genitalidade vai confrontar o adolescente com uma quebra na “promessa” que escutou
na saída do Édipo - de que um dia recuperaria o gozo com o Outro - pois chega a
conclusão de que o gozo sexual é somente parcial. Os adultos caem, então, da posição
ideal que ocupavam a seus olhos, o que certamente vai ter conseqüências sobre a forma
como se constitui a transferência, como veremos mais tarde.
Na esteira dos efeitos do Real, o adolescente vai ter um grande trabalho no
campo do Imaginário e do Simbólico. No que tange especificamente ao Imaginário,
precisará empreender o trabalho de recompor uma imagem na qual identificar-se,
entrando num processo que podemos compreender como uma reedição do Estádio do
Espelho. Se para um bebê foi necessário o olhar de um Outro que confirmasse sua
identificação a uma imagem, também o adolescente vai convocar um outro para este
trabalho. Um outro que tem agora um estatuto diferente pois, conforme nos diz Rassial
(1999), deve portar algumas características: ser um semelhante, mesmo que
diferentemente sexuado; provocar o desejo, sendo um objeto; e tomar o lugar dos pais
como referentes últimos da palavra. Este trabalho psíquico implicado na construção de
novas referências imaginárias vai se fazer presente de forma constante na transferência
com o adolescente. Seu discurso em análise vai estar marcado por uma necessidade de
elaboração destas novas referências, ao relatar extensamente suas aventuras na relação
com os semelhantes, os efeitos de sua imagem e sua palavra sobre os outros. Aos
clínicos menos avisados, pode parecer, por vezes, que estamos escutando uma simples
descrição infindável de cenas, de imagens, de detalhes pormenorizadas sobre roupas,
1
Psicanalista, membro da APPOA.
adereços, festas, encontros... Isso que pode parecer um discurso “excessivamente
imaginário”, precisa tomar um lugar de valor aos ouvidos do analista e no interior da
análise, justamente por fazer parte da necessidade de reconstituição dos suportes
imaginários para uma reconstrução da imagem do jovem sujeito, sendo esta uma das
singularidades que as mudanças no Imaginário vão produzir na transferência.
Se já abordamos brevemente os efeitos das mudanças impostas desde o Real e
do Imaginário, cabe situar também aquilo que, desde o Simbólico, vem se interpor ao
adolescente. Conforme Rassial (1999), na adolescência a ordem significante é abalada
nos três níveis de seu fundamento. No nível do significante-mestre, pois a submissão da
criança ao adulto, à ordem parental que a sustenta por delegação, não basta mais para
garantir sua identidade. No nível do significante fálico, já que este não garante de
antemão uma relação válida com o outro sexo, embora seja necessário fundar a
intersubjetividade aquém ou além deste significante. E no nível do Nome-do-Pai já que
este não é mais tão sustentado pela organização familiar e terá que ser validado como
uma operação puramente lógica, simbólica, totalmente destacada do pai da realidade,
bem como do pai imaginário. Vai ser necessário, então, escrever novos nomes-do-pai,
ou seja, construir as metáforas que sucederão a metáfora paterna propriamente dita.
Neste sentido, entra em cena a constituição de um sintoma sexual, como um dos novos
nomes-do-pai, onde a partir da sexuação como homem ou mulher, o sujeito transforme a
neurose infantil em neurose adulta.
Na psicanálise com adolescentes muitas vezes vamos nos ocupar em sustentar
este trabalho de construção de novos nomes-do-pai. Freqüentemente se trata de amparar
e dar vez ao trabalho de encontrar novas referências simbólicas, para além das
representações imaginárias na família, que estão sendo questionadas. Muitas vezes nos
dedicamos a “garimpar”, junto com o adolescente, significantes capazes de fundar
referências que o sustentem fora da família e na sua circulação pelo mundo. Recordo-
me aqui de uma passagem de minha experiência clínica, o caso de um adolescente que
chega à análise após a morte do pai, se queixando da incapacidade deste em lhe deixar
uma herança. Seu pai não havia conseguido construir qualquer patrimônio, lhe deixando
somente seus instrumentos de trabalho, instrumentos de calista. Morreu cedo, em
decorrência de uma vida “fora da lei”, sendo por esta via, do “fora da lei”, que o
jovenzinho fazia sintomas. Os instrumentos de calista ficaram guardados no fundo de
uma gaveta, mas, após alguns anos de análise, foram encontrados e tomaram um lugar
na vida deste rapaz que, em lugar de atos “fora da lei”, passa a esculpir personagens
“fora da lei” com os instrumentos que o pai lhe deixara como herança. Tornou-se um
artesão, encontrando uma profissão, a partir de uma herança paterna que ganha um
estatuto simbólico através do trabalho de análise. Neste breve recorte, vemos que uma
análise na adolescência pode sustentar o processo solitário de constituição de novas
referências simbólicas.
As mudanças no campo do Simbólico na adolescência vão trazer inúmeras
conseqüências para esta clínica. Dentre elas, destaca-se a mudança na posição do Outro.
Se para a criança o Outro estava representado imaginariamente pela figura do adulto,
especialmente pelos pais, um adolescente já não conta com esta representação. Como
diz Rassial (1995), para o adolescente há uma pane na consistência imaginária do Outro.
Assim, a possibilidade de constituir uma suposição de saber em relação ao analista está
abalada. Se o adulto neurótico, ao buscar análise, coloca o analista na posição de Outro -
posição da qual no fim da cura este vai cair -, o adolescente faz o caminho inverso.
Temos aqui uma importante singularidade da psicanálise com adolescentes: a queda do
sujeito-suposto-saber está no início da cura e a análise vai se passar ao inverso, se
fizermos um contraponto ao trabalho com neuróticos adultos.
Mas como operar diante da não suposição de saber? Autores como Dolto,
Octave Manonni e Rassial falam da importância do analista de um adolescente não
responder a esta “não suposição” através de um lugar de saber - saber que faz parte do
mundo que o adolescente contesta -, mas, pelo contrário, posicionar-se como não
sabendo mais do que ele. Poderíamos dizer que uma posição interessante a um analista
de adolescentes seria uma posição “socrática”2. Segundo Rassial (1997) será preciso, na
transferência, tentar construir uma encarnação imaginária ao Outro e, ao mesmo tempo,
lhe conferir um poder simbólico, ou seja, um sujeito-suposto-saber vizinho ao nome-do-
pai no Outro. Em outras palavras, procurar uma ficção do sujeito-suposto-saber é o que
pode vir a consolidar o Outro.
A questão da não suposição de saber do adolescente se associa à singularidade
em relação à formulação e sustentação da demanda de análise, já que na maioria das
vezes não é o adolescente quem busca ajuda. Ele é trazido, seu sintoma está produzindo
incômodo na família ou nas instituições pelas quais transita. Um primeiro trabalho será,
então, o de desdobramento desta demanda. Neste percurso, o analista precisará ocupar
uma posição terceira ao, por um lado, não tomar diretamente o pedido dos pais, não
aceitando a proposta de que “conserte” o boneco estragado de seu narcisismo e, por
outro lado, não ficar situado do lado de uma cumplicidade com o adolescente,
propondo-se como seu defensor contra a autoridade e demanda dos pais. Deste modo, a
clínica com adolescentes implica uma re-afirmação constante do desejo do analista, a
fim de que este não caia nas armadilhas que esta transferência propõe.
Em minha experiência e levando em conta a singularidade de cada caso,
costumo trabalhar num primeiro momento com os pais, situando que a partir do
encontro com o adolescente o que vai definir a possibilidade de um trabalho também
com eles, pais, é a demanda do filho. Há uma sutil diferença nesta questão se
compararmos a psicanálise com adolescentes à prática com crianças. Dificilmente
passamos por uma análise de criança sem uma intervenção junto à família, dada a
condição de dependência psíquica da criança e o próprio fato de que estamos lidando
com um Outro encarnado nos pais. Com adolescentes, os pais ficam do lado de fora da
análise, podendo ser chamados em alguns momentos pontuais, muitas vezes a partir de
um pedido do filho. Costumo deixar esta questão clara aos pais, situando, muitas vezes,
que sua demanda pode ser diversa a do adolescente e que o filho está justamente num
momento de diferenciação de seu discurso. Penso que os pais podem suportar esta
questão na medida em que tenham, de início, sido escutados e encontrado um espaço
para interrogar-se sobre os sintomas do filho, para além de sua própria demanda.
Para encerrar, penso ser interessante trazer o que Rassial (1999) coloca sobre as
posições que um analista pode ser convidado a ocupar na cura do adolescente. Ele
afirma que freqüentemente num primeiro tempo o adolescente toma o analista na
mesma posição de qualquer adulto, como alguém incapaz de entender sua demanda.
Esta posição muitas vezes é acompanhada por um certo mutismo do adolescente, afinal,
de nada adianta falar... Uma virada é possível na medida em que o analista possibilite ao
adolescente a formulação de uma demanda própria, situando que o tratamento pode vir a
acontecer ou não, dependendo de sua escolha. Nas palavras de Rassial “à solidão do
adolescente, o analista responde com sua própria solidão, seu não poder, e não com uma
tentativa de subjugação, sedução ou autoridade”(p.163).
Ao se distanciar do discurso corrente dos adultos, o analista pode correr o risco
de ser colocado numa posição de cúmplice frente ao mundo, especialmente se ficar
identificado à solidão do adolescente. Tenho experiência de receber adolescentes saídos
de psicoterapias interrompidas justamente por esta questão, sendo interessante perceber
2
No sentido da posição proferida por Sócrates ao afirmar “Tudo que sei é que nada sei”.
que os próprios adolescentes são capazes de identificar que o terapeuta se comovia com
seu sofrimento e acabava “brigando” com seus pais, o que inviabilizava o tratamento.
Uma terceira posição para qual o analista é puxado é a do mestre. Sendo a
adolescência um momento de desorientação, perda de referências, construção de novos
ideais, Rassial (1999) coloca o quanto pode ser tentador ao analista responder de uma
posição de filósofo ou, pior, de diretor de consciência. Aqui cabe lembrar o quanto o
analista deve se diferenciar desta posição, não se deixando tomar como um sujeito que
sabe e permitindo que o adolescente passe de um sistema de crença à uma ética da
suposição. Ou seja, não deve ter respostas para tudo, mas abrir questões e deixá-las em
aberto. Se esta é uma posição a ser ocupada em qualquer caso, na adolescência se
mostra essencial, afinal é deste modo que o analista pode permitir ao adolescente
suportar a suspensão de sua identidade e de seu saber, e jogar algumas destas questões
para o futuro, enlaçando o adolescente ao seu porvir.
Enfim, pensando sobre a psicanálise com adolescentes - suas especificidades,
seus entraves - nos deparamos com o quanto esta experiência nos convoca a renovar
nosso desejo de analistas a cada intervenção, já que é somente sustentados neste desejo
que poderemos apoiar nosso trabalho em meio aos difíceis desdobramentos desta
prática.

Referências Bibliográficas

Mannoni, Octave. A adolescência é analisável? Em: Mais tarde é agora, ensaios


sobre a adolescência. Salvador: Ágalma, 1996
Rassial, Jean-Jacques. Entrevista. Em Adolescência:Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. Ano V, Numero 11, Novembro de 1995.
Rassial, Jean-Jacques. O adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999.

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