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Título original: Sigmund Freud, Tolstoi e Nietzsche

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Zweig, Stefan, 1881-1942


Freud / tradução Murilo Jardelino, Raquel Abi-Sâmara. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2020.
192 p.

Título original: Sigmund Freud


ISBN 978-65-5640-147-8

1. Escritores austríacos - Biogra a 2. Freud,Sigmund, 1856-1939 - Biogra a 3. Psicanalistas -


Biogra a I. Título.

20-46421 CDD-838.092

Índices para catálogo sistemático:

1. Escritores austríacos : Biogra a 838.092

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964


Ponto de partida

“Nunca senti nenhuma predileção especial pela posição e atividade de


médico em minha juventude, tampouco depois”, admite Freud sem hesitar em
suas memórias com a tenacidade que lhe é tão característica. No entanto, essa
con ssão é complementada de modo muito revelador: “É mais provável que eu
me sentisse movido por uma espécie de sede de conhecimento, que no entanto
dizia respeito mais às relações humanas do que a objetos naturais.” Essa sua
demanda interna não é atendida, na verdade, pois a grade curricular do curso
de medicina da Universidade de Viena não oferece qualquer disciplina em que
as “relações humanas” sejam objeto de estudo. Mas, como o jovem estudante
tem de pensar em ganhar a vida em breve, não pode se dedicar por muito
tempo a suas inclinações, e tem de cursar pacientemente, junto com os outros
estudantes de medicina, os 12 semestres prescritos. Ainda na condição de
estudante, Freud já realiza com seriedade e de maneira independente algumas
investigações, enquanto cursa o ciclo de atividades acadêmicas “de maneira
bastante negligente”, conforme ele mesmo admite com franqueza, e “com um
atraso considerável” recebe apenas em 1881, aos 25 anos de idade, seu título de
doutor em medicina.
Destino de inumeráveis graduados: inseguro em relação a que decisão
tomar, Freud, ciente de sua inclinação intelectual, tem primeiro de trocá-la por
um trabalho prático pelo qual não ansiava. Pois, desde o início, o ofício da
medicina, a atividade acadêmica e a técnica de curar pouco atraem esse espírito
orientado para questões universais. Na essência mais profunda de quem já
nasceu psicólogo — embora por muito tempo não o soubesse —, o jovem
médico tenta de maneira instintiva pelo menos deslocar o âmbito teórico de
sua atividade para o campo da mente. Escolhe, portanto, a psiquiatria como
especialidade e passa a trabalhar com a anatomia do cérebro, uma vez que uma
psicologia de abordagem individual, ciência hoje em dia há muito tempo
indispensável para nós, ainda não se ensinava nem se praticava nas salas de aula
de medicina da época: restava a Freud concebê-la para nós. Na visão
mecanicista da época, tudo o que era desviante em relação à mente era
considerado meramente como degeneração do sistema nervoso, como alteração
patológica; inabalável era o delírio de que, graças ao conhecimento cada vez
mais preciso dos órgãos e às experiências feitas com animais, seria possível
calcular com precisão o automatismo da “mente” e corrigir qualquer desvio. É
por isso que o estudo da psicologia se alocava na época no laboratório de
siologia, e se acreditava que essa ciência seria praticada de modo conclusivo
quando nalmente se medissem as contrações musculares e as vibrações dos
nervos com bisturi e lanceta, com microscópio e aparelhos de reação elétrica.
Freud, portanto, também teve de se sentar à mesa de dissecação e procurar,
com todos os tipos de equipamentos técnicos, as causas que, na verdade, nunca
se revelaram de maneira visível ou palpável. Durante anos, trabalhou no
laboratório com Brücke, um famoso siologista, e Meynert, uma autoridade
em anatomia do cérebro na época, que logo reconheceram no jovem assistente
um talento inato e autônomo para a pesquisa e para a lida com o material de
que são feitas as grandes descobertas. Ambos os especialistas buscaram
conquistá-lo para a sua área de especialidade como colaborador permanente.
Meynert até ofereceu ao jovem médico que o substituísse em suas aulas de
anatomia cerebral. Mas Freud segue uma demanda interna, inconsciente, que o
leva a resistir e a rejeitar o honroso convite. É possível que na época tenha
tomado essa decisão instintivamente. No entanto, suas detalhadas investigações
clínicas e histológicas foram su cientes para lhe garantir a docência no curso de
neurologia da Universidade de Viena.
Ser instrutor de neurologia em Viena, na época, signi cava uma posição
não só muito desejada como também bem remunerada para um jovem médico
de 29 anos, sem patronato nem riqueza para seguir carreira. Bastava-lhe então
tratar de seus pacientes ao longo dos anos, seguindo à risca as instruções
prescritas pela universidade para ser agraciado com melhores posições
acadêmicas, tornar-se professor adjunto e nalmente ser recompensado como
Hofrat, conselheiro da corte, título o cial concedido como prêmio a professores
universitários. Mas já a orava nesse período seu agudo instinto de autocrítica
que o acompanhou ao longo de toda sua vida. Pois esse jovem professor
admitiu, sem hesitação, aquilo que os outros neurologistas tinham ansiedade
em ocultar de seus pares e até de si mesmos, a saber, que toda a técnica de
tratamento de sintomas psicogênicos por meio de medidas que in uenciavam o
sistema nervoso, ensinada por volta de 1885, havia chegado a um impasse, era
completamente impotente e, sobretudo, não auxiliava na cura. Mas como
praticar algo diferente, se nenhuma outra técnica era ensinada em Viena? Tudo
o que os professores tinham a ensinar lá em 1885 (e ainda muito depois), o
jovem docente aproveitou até o último detalhe, trabalho clínico impecável,
anatomia extremamente precisa e, além disso, as principais virtudes da Escola
de Viena: a meticulosidade rigorosa e a disciplina implacável. O que mais ele
podia aprender com homens que não sabiam mais do que ele? Estava,
portanto, em um beco sem saída. É por isso que a notícia de que a psiquiatria
em Paris estava sendo praticada há alguns anos de maneira completamente
diferente recaiu sobre ele com força e como uma tentação irresistível. Surpreso
e descon ado, mas também seduzido, foi informado de que Charcot, embora
originalmente trabalhasse com anatomia cerebral, estava fazendo experiências
peculiares com o auxílio da hipnose, prática infame e desacreditada, banida de
Viena desde que Franz Anton Mesmer fora felizmente expulso da cidade. À
distância, Freud reconheceu de imediato que não se pode avaliar essas
experimentações de maneira precisa através apenas de publicações de
periódicos médicos, era necessário observá-las pessoalmente para julgá-las. E,
assim, o jovem estudioso, com aquela intuição misteriosa, que sempre leva os
gênios criativos a adivinharem o verdadeiro destino a ser trilhado, apressou-se
em direção a Paris. Seu professor Brücke endossou a solicitação do jovem
médico, ainda sem recursos nanceiros, por uma bolsa de estudos. Com a
concessão da bolsa, o jovem docente viaja para Paris em 1886, para mais uma
vez recomeçar, para novamente aprender antes de ensinar.
Em Paris, ingressa de imediato em outra atmosfera. Embora Charcot,
tanto quanto Brücke, se ocupasse com a anatomia patológica, ele já a
transcendera. Em seu famoso livro La foi qui guérit (A fé que cura), o grande
especialista francês examinara, em relação às suas condições psicológicas, os
milagres religiosos da fé, até então rejeitados como não con áveis pela ciência
médica, e encontrara certas regularidades típicas em suas manifestações. Em vez
de negar os fatos, começou a interpretá-los e, com a mesma imparcialidade,
abordou todos os outros sistemas milagrosos de cura, entre os quais o
desacreditado mesmerismo, doutrina do médico alemão Franz Anton Mesmer
(1734-1815) sobre magnetismo animal e hipnotismo na cura de doenças. Pela
primeira vez, Freud encontra um estudioso que não descarta de antemão nem
com desprezo, como o faz sua escola vienense, a histeria como simulação, mas
que demonstra — esta que é a mais interessante, porque a mais plástica de
todas as doenças mentais —que suas convulsões e surtos resultam de choques e
tensões internas e, portanto, devem ser de natureza psicogênica. Num de seus
seminários, em auditório público, Charcot mostrou em pacientes hipnotizados
que as conhecidas paralisias histéricas podiam ser tanto provocadas quanto
suprimidas a qualquer momento, com a ajuda da sugestão, num estado de
sonambulismo, e que não resultavam de mudanças patológicas nos nervos,
nem muito menos de ilusão, mas de causas mentais que in uenciavam a
vontade do paciente. Ainda que as particularidades de sua doutrina nem
sempre parecessem convincentes ao jovem médico vienense, ele cou bastante
impressionado com o fato de, no âmbito da neurologia em Paris,
reconhecerem-se e valorizarem-se não apenas as causas físicas, mas também as
psíquicas e até as metapsíquicas. Ficou satisfeito ao perceber que a psicologia
estava novamente próxima da velha ciência da mente, e esse método mental o
atraía bem mais do que aqueles que lhe tinham sido ensinados antes. Freud
tem mais uma vez a sorte de, em seu novo círculo de atividade, ser recebido
com um interesse especial por seus professores — mas podemos chamar de
sorte o que na verdade é uma instintiva atração mútua e eterna entre mentes
excepcionais? Como Brücke, Meynert e Nothnagel, em Viena, Charcot
também reconhece imediatamente em Freud a nidades intelectuais e criativas e
o atrai para o círculo de suas relações pessoais. Ele delega a Freud a tradução de
suas obras para o idioma alemão e frequentemente o distingue com sua
con ança. Freud retorna a Viena depois de alguns meses com outra visão de
mundo. Mas mesmo o ponto de vista de Charcot, e isso ele sentia claramente,
não o satisfazia completamente, uma vez que Charcot ainda se preocupava
muito com experimentos corporais e muito pouco com seus resultados mentais
ou psíquicos. Esses poucos meses, no entanto, resultaram em amadurecimento
e produziram novo ânimo e um desejo de autonomia no jovem estudioso.
Agora, ele estava pronto para iniciar o seu trabalho independente.
Antes disso, porém, ainda havia uma pequena formalidade a ser
cumprida. Todos os bolsistas da universidade deviam elaborar um relatório
sobre sua experiência acadêmica no exterior após o retorno. É isso que Freud
faz na Sociedade dos Médicos. Ele explica os novos caminhos de Charcot e
detalha os experimentos hipnóticos de Salpêtrière. Desde as experiências de
Franz Anton Mesmer, no entanto, a comunidade médica vienense continuava
profundamente descon ada de qualquer terapia sugestiva com o corpo. A
constatação de Freud de que era possível produzir arti cialmente os sintomas
da histeria foi descartada com um sorriso de superioridade, e sua exposição de
que existiam até casos de histeria masculina despertou uma jocosidade
indisfarçada entre seus colegas. Primeiro, deram-lhe tapinhas no ombro com
benevolência, expressando o sentimento por ele ter se deixado ludibriar tão
facilmente em Paris; mas Freud não desiste, embora passasse a ser tratado como
um apóstata, uma pessoa indigna, e por isso foi proibido de entrar no espaço
sagrado do laboratório de pesquisas cerebrais, onde — graças a Deus! — a
psicologia ainda era praticada com “seriedade cientí ca”. Desde então, Freud
cou sendo o bête noire, a ovelha negra da Universidade de Viena, e não
entrava mais na sala da Sociedade dos Médicos, e somente graças à proteção
particular de uma paciente muito rica (como ele próprio tranquilamente
admite) é que ele conseguiu o título de professor adjunto depois de anos. Mas a
ilustre faculdade se mostrou extremamente relutante em se lembrar de sua
a liação ao corpo docente acadêmico. No seu aniversário de setenta anos, ela
até preferiu não se lembrar explicitamente e evitou quaisquer cumprimentos ou
felicitações. Ele nunca se tornou professor catedrático, tampouco Hofrat,
conselheiro da corte, nem Geheimrat, conselheiro titular, permaneceu sendo
apenas o que era desde o início: um professor adjunto entre os catedráticos.
Com sua rebeldia contra o procedimento mecanicista da neurologia
praticado em Viena, que tentava curar desordens psicológicas exclusivamente
por meio de choques elétricos ou administração de medicação, Freud não só
arruinou suas chances de uma carreira acadêmica, mas também as
possibilidades de sucesso no trabalho em sua clínica particular. Teve de
prosseguir então de maneira solitária. No início, sabia pouco além do aspecto
negativo dos tratamentos, isto é, que não se podia esperar descobertas
psicológicas decisivas nem no laboratório de anatomia do cérebro nem por
meio do dispositivo de medição de reações nervosas. Somente um método
muito diferente e elaborado a partir de outros pressupostos poderia se
aproximar dos misteriosos emaranhados do mundo psíquico. Encontrar esse
método, ou melhor, inventá-lo, será agora o esforço apaixonado de seus
próximos cinquenta anos. Paris e Nancy lhe deram certos sinais que indicavam
o caminho. Mas, assim como na arte, na esfera cientí ca nunca um único
pensamento é su ciente para um projeto de nitivo; também na pesquisa, a
verdadeira fecundação só acontece quando uma ideia se sobrepõe a uma
experiência. Um pequeno impulso é su ciente para dar vazão à energia criativa.
Esse gatilho foi disparado pela convivência pessoal e amigável com um
colega mais velho, o dr. Josef Breuer, a quem Freud conhecera no laboratório
de Brücke. Breuer, um médico de família muito ocupado, extremamente ativo
no âmbito cientí co sem ser decisivamente criativo, já relatara a Freud, antes
de sua viagem a Paris, um caso de histeria em uma jovem, em que alcançara
resultados curiosamente bem-sucedidos. Essa jovem apresentava os sintomas
dessa patologia — considerada a mais multiforme de todas as doenças nervosas
—, reconhecidos pela academia, como paralisias, contrações musculares,
inibições e confusão mental. Breuer observara que aquela jovem se sentia
aliviada sempre que podia lhe contar livremente a respeito de si mesma. O
habilidoso médico encorajara, portanto, a paciente a falar, pois percebera que
toda vez que ela conseguia expressar verbalmente suas fantasias afetivas,
melhorava temporariamente. A garota falava, falava, falava um pouco mais.
Todavia, em todas essas autocon ssões bruscas e desarticuladas, Breuer
percebeu que a paciente nunca abordava a fundo o fator decisivo do
desenvolvimento de sua histeria. Notou que essa pessoa sabia algo sobre si
mesma que não queria saber e, portanto, o reprimia. A m de desembaralhar o
percurso obstruído até a experiência reprimida, Breuer teve a ideia de
hipnotizar regularmente a jovem. A expectativa era, nesse transe hipnótico,
poder remover permanentemente todas as “inibições” (pergunta-se qual palavra
poderia ser usada aqui se a psicanálise não a tivesse inventado) que
atrapalhavam a revelação de nitiva dos fatos. E, de fato, sua tentativa foi bem-
sucedida; no estado de hipnose, quando todo pudor era abolido, a garota dizia
livremente o que mantinha tão persistentemente em segredo do médico e,
sobretudo, de si mesma, a saber, que sentira e suprimira certos sentimentos ao
lado da cama do pai quando ele estava enfermo. Esses sentimentos, reprimidos
por motivos morais, haviam encontrado, ou melhor criado, esses sintomas
patológicos como desvio. Porque toda vez que a garota, quando hipnotizada,
confessava livremente esses sentimentos, seu substituto desaparecia
imediatamente: o sintoma histérico. Nesse sentido, Breuer continuou o
tratamento sistematicamente. E, à medida que a paciente conhecia mais sobre
si mesma, os perigosos fenômenos histéricos desapareciam — tornavam-se
desnecessários. Após alguns meses, a paciente teve alta, estava completamente
curada e saudável.
Breuer relatara esse fato curioso ao colega mais jovem como um caso
notável. O que mais o agradara nesse tratamento fora sobretudo o retorno
bem-sucedido de uma paciente neurótica à vida saudável. Freud, no entanto,
percebeu de imediato uma lei geral por trás dessa terapia descoberta por Breuer,
a saber: “energias psíquicas são deslocáveis”, e que no “subconsciente” (ainda
que essa palavra não tivesse sido inventada), deveria haver uma certa dinâmica
de mudança que transmutava os sentimentos que eram desviados de suas
reações espontâneas (ou, como dizemos desde então, “dissipados de sua reação
natural”), transformando-os em outros processos psíquicos ou físicos. O caso
apresentado por Breuer iluminou as experiências trazidas de Paris, por assim
dizer, com outra perspectiva, e os dois amigos decidiram explorar juntos essa
nova trilha de investigação. As obras que escreveram em conjunto, “Sobre o
mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, de 1893, e Estudos sobre a
histeria, de 1895, foram as primeiras a estabelecer essas novas ideias, e nelas,
pela primeira vez, brilhou a aurora de uma nova psicologia. Nessas
investigações conjuntas, mostrou-se pela primeira vez que a histeria não
consistia, como anteriormente se supunha, em uma doença física orgânica, mas
em um distúrbio causado por um con ito interior, do qual o próprio paciente
não está ciente, e cuja pressão resulta em “sintomas”, em alterações patológicas.
Assim como a febre resulta de uma in amação interna, os distúrbios mentais
podem ser produzidos por um bloco que interfere na corrente normal dos
sentimentos de modo a causar estagnação e transbordamento. E, assim como
no corpo a febre diminui quando a supuração começa a drenar, esse
deslocamento violento e as contrações da histeria se dissolvem assim que é
possível drenar a sensação reprimida e congestionada, “dirigindo-a para
caminhos normais, por onde possa escoar a força afetiva que havia sido
anteriormente desviada para caminhos errados e, por assim dizer, sido
aprisionada e usada para a manutenção do sintoma”.
Inicialmente, Breuer e Freud usaram a hipnose como instrumento de
liberação psíquica. Naquela era pré-histórica da psicanálise, no entanto, isso
não signi cava a cura em si, mas apenas um meio. Destinava-se apenas a ajudar
a aliviar a tensão dos sentidos, assim como um anestésico é usado para facilitar
uma operação cirúrgica. Só quando cessam as inibições impostas pela
consciência, o paciente expressa livremente aquilo que omitia, e o simples fato
de confessar abranda as pressões perturbadoras. Essa liberação é criada para
uma alma sufocada, inicia-se a liberação da tensão, que a tragédia grega já
elogiava como elemento de liberação e de prazer, razão pela qual Breuer e
Freud chamavam inicialmente seu método de “catártico”. Através do
conhecimento, do autoconhecimento, o ato falho doentio e arti cial se torna
supér uo; o sintoma, que tinha apenas uma função simbólica, desaparece.
Falar, até certo ponto, também signi ca esgotar o sentimento, e assim o
conhecimento se torna libertação.
Breuer e Freud haviam chegado juntos a esses resultados importantes. A
partir de então, o caminho de ambos se bifurcou. Breuer, o médico, voltou-se
novamente à medicina, temendo os perigos das incursões no domínio da alma;
e ocupou-se essencialmente das possibilidades de cura da histeria e da
eliminação de seus sintomas. Freud, por sua vez, que só então descobriu o
psicólogo dentro de si, cou fascinado exatamente com esse enigmático
processo de deslocamento do sentimento no interior da mente, o fenômeno
psíquico. O fato recém-descoberto de que sentimentos podem ser recalcados e
substituídos por sintomas, estimula-o a fazer cada vez mais perguntas; em um
único problema, ele percebe toda a problemática do mecanismo psíquico. Se os
sentimentos podem ser recalcados, quem os recalca? E, acima de tudo, para
onde eles são recalcados? De acordo com quais leis as energias do psíquico são
transferidas para o físico, e em que espaço ocorrem essas inevitáveis mudanças,
que o homem ignora e, no entanto, conhece imediatamente assim que é
forçado a tomar conhecimento delas? Uma esfera desconhecida, na qual a
ciência ainda não ousara se aventurar, começa a emergir na sombra diante dele,
um novo mundo se torna visível de longe, em contornos vagos: o inconsciente.
E, a partir de então, essa “exploração da parte inconsciente na vida psíquica do
indivíduo” passou a grande paixão de sua vida. A descida às profundezas
começou.

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