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Andressa Mendonça

Brigar com a vida

Coube a mim escrever esta história. Outros falariam sobre os


personagens com maior ternura, talvez. Mas coube a mim. Para
que eu fosse livre, resolvi contá-la numa sexta-feira, dia no qual
as pessoas estão mais felizes, mais esperançosas, como se o
sábado trouxesse a chave que abre todos os cadeados. Esta é a
história de uma dívida. Sim, alguém está devendo um desfecho.
Ou seria melhor dizer que alguém está devendo uma continuação?
De qualquer forma, esse alguém não sou eu. Isento-me da
responsabilidade de responder, pois já é castigo suficiente
carregar uma mala de histórias tristes para contar. Como alguém
jogando alianças quebradas no mar, eu estou a escrever. Quase
como quem se livra de uma culpa.

A história é simples: uma jovem conhece um rapaz nas noites


de quermesse. Não precisou de um grande evento, porque,
quando os olhares se cruzaram, tudo silenciou. Se alguém tivesse
visto a cena, perceberia que até as estrelas brilharam com mais
intensidade. Os dois viram um no outro a possibilidade de amar,
quase como se o amor fosse uma escolha. Eu jamais acreditei
nisso. Os dois inocentes não sabiam que todo encontro é o início
de uma despedida, e que o amor não é suficiente para dois
amantes ficarem juntos. Às vezes, o encontro nem acontece;
guardam-se apenas os acasos: uma folha que foi pisada pelos dois,
uma música escutada no mesmo horário em lugares diferentes,
um riso sem motivo compartilhado pelos desconhecidos. Eles
carregam apenas um amor em potencial. Nossos personagens
chegaram a trocar confidências, beijos e abraços, mas não sei
dizer se isso foi vantajoso. Uma carta escondida sob as calcinhas
na gaveta foi suficiente para incriminar: para alguns, parece
mesmo que o amor é um crime.

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Quando a mãe da moça soube do envolvimento dos dois,
proibiu a filha de viver. Digo, viver aquilo que tornaria a vida
mais suportável; aquilo que aliviaria o fardo em dias difíceis.
Antes de crescer, a semente já foi morta: não vimos as flores, os
frutos. Não houve sequer a possibilidade do sol matar essa
semente, ou dos espinhos sufocarem-na. Aqui nasce a dívida.
Quem poderá pagá-la? Ninguém, pois o tempo passou, novas
sementes foram plantadas. Agora não há sequer um endereço para
onde a cobrança possa ser enviada.

O rapaz foi quem primeiro perdeu as esperanças: ele era


daquela espécie humana que diz que a vida deve seguir; daqueles
rapazes que decidem não brigar com a vida. Se fosse hoje, ele
repetiria as frases dos livros: o que tem de ser tem muita força.
Esses homens só não entendem que, apesar da força do destino,
os braços não podem ficar cruzados; caso contrário, essas
palavras só escondem a covardia daqueles que não conseguem
lutar. Ele arrumou um novo amor para preencher a falta daquilo
que não foi. Como se fosse possível esconder-se de um fantasma
que foi preso com uma corrente aos pés do castigado. Nessa
história, quem sofre é o vivente, que é perseguido pelos sons dos
grilhões que acompanham seus passos.

A moça, por sua vez, demorou um pouco mais. Para


infelicidade dela mesma, era daquelas pessoas que sentem muito:
estão sempre avisando a cor do sangue que tem corrido pelas
veias. No seu interior, ainda havia a esperança de que aquele amor
pudesse ser vivido, mesmo que anos se passassem. Ela tinha
vergonha de admitir que sonhava com outras realidades, lugares
onde pudesse viver. À noite, antes de dormir, fechava os olhos e
repetia: em outra vida, estamos dormindo juntinhos. Mas ao ver
o rapaz seguindo, não pôde continuar esperando; era doloroso
demais. Torcia para que o amor passasse, mas aquele sentimento
ficava como uma mala, acompanhando todos os seus passos. Eu
entendo o que é carregar algo indesejado, algo capaz de tirar o
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sono e trazer cansaço mesmo depois das noites tranquilas.
Encontrou, então, um amor tranquilo, daqueles que são vistos nas
simpatias das noites juninas. Não era avassalador, como
redemoinhos. Se ela pudesse encontrar algumas palavras para
expressar, diria que mais parecia com um travesseiro cheio de
penas de ganso. Anos depois, diria que, lá no fundo, já sabia o
desfecho, pois, em uma noite junina, a garrafa com água benta
mostrara a silhueta de um homem com enxada. O primeiro
pretendente nunca havia segurado essa ferramenta na vida, já o
segundo mantinha calos nas mãos depois de passar o dia limpando
o roçado. Todavia, por sentir muito e tanto, ela decidira fechar os
punhos e lutar contra o que chamam de destino.

Para o rapaz, que não terá aqui um nome, pois os nomes


existem para os homens, tornou-se pai. A moça casou. Dizem que,
no dia do casório, embaixo de uma árvore, lá estava o rapaz a
chorar, lamentando as maldades da vida: dá e tira, como um
adulto malvado brincando com crianças pidonas. Foi por isso que
eu disse que não sabia se ter trocado alguns carinhos tinha sido
vantajoso, porque, quando se tem contato, fica mais difícil viver
com a ausência. Como esquecer o sabor do beijo? Meses depois,
a moça engravidou. Aquele que primeiro perdeu as esperanças foi
quem primeiro falou: quem sabe nossos filhos possam dar
continuidade ao amor que não tivemos direito. A vida também não
realizou esse desejo.

O amor não vivido faz jus ao nome: ele também não pode ser
vivido por outro alguém. Como não pude dar continuidade, coube
a mim escrever, para que, pelo menos, essa história tenha
continuidade no mundo dos livros. As pessoas nunca lembrarão
daquelas noites como palco dessa história, mas agora você, leitor,
carrega essa mala comigo. Nestas páginas, o amor existiu; nestas
páginas, eu passo esse caso adiante. Enquanto houver leitor para
segurar essa mala comigo, as noites de quermesse estarão com as

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luzes acesas; as fogueiras queimando e, ao redor, as moças
confiando nas simpatias.

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