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POBREZA URBANA

1. PODE-SE DEFINIR A "POBREZA"?

2. EXPLICAÇÕES PARCIAIS DA POBREZA URBANA

3. A POBREZA URBANA NO TERCEIRO MUNDO: MARGINALIDADE OU BIPOLARIZAÇÃO?

4. O CIRCUITO INFERIOR, CHAMADO "SETOR INFORMAL". POR QUE?

5. TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO E DA POBREZA: CONSUMISMO OU


IGUALITARISMO?

APRESENTAÇÃO

O problema da pobreza ganhou, em nossos dias, uma atualidade incontestável por duas
grandes razões: em parte pela gene- ralidade do fenômeno que aringe a todos os países,
embora em particular aflija mais duramente os países subdesenvolvidos, mas também pelo fato
de que a urbanização galopante que estes últimos co- nhecem é acompanhada pela expansão,
a um ritmo igual, da expansão da pobreza, mesmo que esta se apresente de forma particular e
específica em cada país e nas diferentes cidades de um mesmo país.

Este livro, dedicado a esse tema, compõe-se de duas partes: a primei- ra procura colocar a
questão de forma crítica, enquanto a segunda pretende oferecer uma bibliografia internacional
do assunto.

Na primeira parte retomamos a árdua questão da definição da po- breza (Capítulo 1 - Pode-se
Definir a "Pobreza"?), para indagar, em seguida, se o problema não tem sido frequentemente
colocado de modo equívoco (Capítulo 2-Explicações Parciais da Pobreza Urbana). Mais
adiante (Capítulo 3- A Pobreza Urbana no Terceiro Mundo: Margina- lidade ou Bipolarização?),
tentamos resumir um debate, apaixonante na época em que se fez, sobre o problema da
"marginalidade", e ao mesmo tempo sugerimos um enfoque que leva em conta a existência, na
economia urbana, de dois circuitos interdependentes mas hierarqui- camente organizados: o
circuito superior e o circuito inferior. Este vem sendo chamado de "setor informal",
denominação que permite urna discussão aprofundada, levando dos aspectos semânticos e
filosóficos ao lado propriamente político da questão (Capítulo 4 - O Circuito Inferior, Chamado
"Setor Informal". Por quê?). Finalmente, discutimos as relações entre pobreza e teoria do
desenvolvimento, para avançar algumas ideias relativas à esperada possibilidade de extinção
dessa chaga que se alastrou no mundo ao mesmo tempo em que a economia conhecia índices
de crescimento favoráveis (Capítulo 5 - Teorias do Desenvolvimento e da Pobreza:
Consumismo ou Igualitarismo).

Quanto à bibliografia, ela está longe de ser completa. Os títulos que ai reunimos, somando
cerca de oitocentos, permitirão, todavia, ao leitor melhor situar-se, diante de um elenco de
informações oriundo de diver- sas partes do mundo e atendendo a diversas tendências do
pensamento social. Estamos certos de que muitos trabalhos de valor escaparam ao nosso
recenseamento, e nos protegemos dessa falha no triste consolo de que tarefas desse tipo
terminam sempre por cometer injustiças, ainda que involuntárias. Nesse trabalho fui
pacientemente ajudado pela geó- grafa Maria Alice Ferraz Abdala, que se dispos ao ingrato
trabalho de percorrer bibliotecas e complerar a documentação também por outras vias. Desejo
exprimir-lhe, aqui, meu reconhecimento e minha gratidão. A publicação deste volume foi
possivel graças à colaboração que nos foi oferecida pela Universidade Federal de
Pernambuco, na ocasião em que se realiza no Recife o Seminário Nacional sobre Pobreza
Urbana e Desenvolvimento (4 a 7 de dezembro de 1978), promovido pelo Programa de Pós-
graduação em Desenvolvimento Urbano (mestrado). Um agradecimento particular é, aqui,
endereçado ao professor Adalmi Beserta Alencar, que reve a iniciativa de me sugerir esse
trabalho.

MILTON SANTOS Outubro, 1978

POBREZA URBANA

I. PODE-SE DEFINIR A "POBREZA"?

A abordagem do problema da pobreza nos países subdesenvol vidos é cheia de dificuldades e


ciladas. As dificuldades são Lencobertas pelos deficientes instrumentos de pesquisa, tais como
estatísticas e classificações duvidosas, enquanto a confusão a respeito dos objetivos e as
formulações teóricas falsas ou incompletas representam verdadeiras arapucas.

A FALENCIA DAS ESTATISTICAS

A maioria dos escritores queixam-se de que as estatísticas são inade- quadas, por não serem
adaptáveis ou por serem insuficientes, ou ainda devido a problemas de interpretação -
frequentemente insatisfatória -, isso para não mencionar a manipulação (Aguilar, 1974, p. 166)
que é feita sob o pretexto de ajustá-las ás condições locais, ou até mesmo com finalidades
abertamente políticas (Feder, 1973, pp. 5-6).

As perguntas essenciais se subordinam a um modelo internacional (Santos, 1972). As


pesquisas realizadas por organizações locais ou por pesquisadores independentes para
compensar as deficiências dos resultados são, infelizmente, muito poucas e pouco acessíveis.
Isso coloca problemas fundamentais e torna mesmo difícil qualquer tentativa de comparação ou
de compreensão das realidades locais. Frequentemente, o trabalho desenvolve-se com
material mal selecionado e interpretado erroneamente, visto que a elaboração das estatísticas
é feita obede- cendo a uma transferência de conceitos elaborados para a Europa ou América
do Norte e aplicados nos paises subdesenvolvidos. O peso das ideias feitas, a lei do mínimo
esforço, o prestigio do exemplo, tudo contribui para manter um instrumento de pesquisa
baseado em ideias preconcebidas.
É evidente que não se pode dispensar informações estatísticas, mas é preciso recusar a essas
informações um valor próprio e suficiente. As estatísticas só expressam a realidade quando
recolhidas através de uma teoria válida; estatísticas e teoria se completam.

No que diz respeito às estatísticas já existentes, o problema não é simplesmente abandoná-las


sem maior consideração, e sim selecioná-las e usá-las com aquele senso crítico agudo
reivindicado por Polly Hill (1966, p. 18). Isso poderia autorizar que fossem usadas totalmente,
em parte, ou simplesmente desprezadas. Assim, a utilização de dados estatísticos numa
estrutura de análise e interpretação suscita problemas metodológicos, o que nos leva
novamente aos problemas teóricos.

As estatísticas dependem de uma compreensão sistemática, do meca- nismo dos fenômenos


que se quer estudar. Há necessidade, portanto, de categorias analíticas que permitam a
obtenção de dados e também a correção dos não confiáveis, o que ajudará na escolha das
pesquisas complementares necessárias. Com efeito, segundo Ch. Bettelheim (1952), "toda
medida implica na elaboração do conceito daquilo que é medido [...] Uma medida resulta de um
processo de abstração que, desde o início, elimina totalmente certas qualidades". Seria
portanto necessário reexaminar e renovar nossos conceitos, antes mesmo de coletar
estatísticas (McGee, 1971, p. 68). Em outras palavras, são os conceitos, ou seja, a elaboração
teórica, que assumem o papel primor- dial. A menos que o pesquisador seja consciente disso,
os instrumentos de pesquisa, e aré mesmo os métodos, podem desempenhar um papel
determinante na construção teórica. Isso ocorre por exemplo com o problema da definição de
emprego, de desemprego e de sunemprego. Recentemente, Guy Caire (1971) deu uma
interpretação apropria da das estatísticas de subemprego e desemprego, lembrando-nos que
esses conceitos.

[...] quando aplicados aos paises do Terceiro Mundo, exigem uma reinterpre tação e que as
medidas estatísticas gerais ou específicas deixara muito a desejar; por exemplo, o método da
mais valia įdiferença entre a quantidade de trabalho disponível e a quantidade de trabalho
socialmente necessário, o que exige come- quentemente a escolha arbitrária de uma norma de
produtividade) ou o método da renda (número de trabalhadores de rempo integral, real ou
potencial, que possuem recursos abaixo de um determinado nível, o que leva a considerar o
trabalho pro- dutivo a longo prazo, curto prazo ou prazo indeterminado). Convém acrescentar
que é precária a adaptação dos coeficientes de emprego ativo, determinados pelos
recenseamentos, aos empregos tradicionais e às numerosas atividades organizadas em torno
das unidades familiares como unidades de trabalho.

A heterogeneidade das informações constitui outra dificuldade encontrada ao se elaborar


trabalhos mais meticulosos de comparação e síntese. A pesquisa socioeconômica está
interessada nos mais diferentes temas em cada país, dependendo de seu nível econômico, da
urgência com que os problemas precisam ser resolvidos e das opções políticas e interesses
governamentais. Além do que os procedimentos adotados na realização e execução do
recenseamento variam com frequência, como também variam os intervalos entre os
recenseamentos.

Outro tipo de obstáculo é a definição dos limites urbanos. Os critérios sobre o que é "urbano",
quase tão numerosos quanto os países a que se referem, são tão diversos que não permitem
nenhuma tentativa de generalização. O mesmo ocorre em relação à noção de "terciário" e
"terciarização". A maioria dos trabalhos sobre o Terceiro Mundo referem-se a uma terciarização
da sociedade e da economia, e a uma urbanização terciária. Na verdade, trata-se de uma
expressão de certo modo já clássica, usada para designar uma atividade nova, Por exemplo, a
população e as atividades que classificamos como sendo o Circuito Inferior da economia
urbana (Santos, 1971a) não são necessariamente terciárias, como também não o é o
protoproletariado estundado por MeGee (1974). O uso de uma perspectiva herdada - a
repartição tradicional da economia en setores primário, secundário terciário, uma divisão formal
proposta por Colin Clark-uma sanga das dificuldades em explicar, ou pelo menos em avaliar
corretamente us problemas ligados à pobreza nas cidades. O apargho estatístico é prisioneiro
de uma noção geral que não está de acordo com a reali dade. Outro inconveniente provém do
fato de que atualmente dá se muito mais atenção ao fenômeno das favelas do que mesmo à
situação da pobreza como um todo. Essa preferência aparece claramente nos resultados
estatísticos que frequentemente são de inreresse mais antro- pológico ou puramente
econométrico que socioeconômico. Contudo, seja qual for a motivação, o resultado é o mesmo:
o empobrecimento da pesquisa e uma tendência para distorcer a compreensão global das
realidades do mundo "marginal".

É necessário, portanto, insistir na dificuldade de chegar a uma comparação válida das


situações nacionais. Dificilmente seria possível uma comparação de variáveis isoladas, e isso
mesmo só se poderia obter após uma tentativa preliminar de identificação. Ademais, como os
fenômenos em questão são fatos essencialmente complexos-com- postos portanto de variáveis
múltiplas -, é preciso usar com cuidado a estrutura estatística, e ir além dela. Do contrário,
corre-se o risco de apenas oferecer uma lista, que pode até ser prolífica, de variáveis isoladas
que caracterizam uma determinada situação, e ao mesmo tempo bloquear quaisquer soluções.
É imprescindível dominar o pleno funcionamento das variáveis, sua tendência a reagir
reciprocamente, para poder então inferir leis, ou pelo menos reconhecer um comporta- mento
geral e características específicas. Isso para todos os fenômenos sociais, inclusive a pobreza.

O QUE É POBREZA?

Certas definições, como a de Moore (1963), para quem a pobreza é função de uma
participação maior ou menor na modernização, restringem o problema a parâmetros de
natureza puramente material. O. Lewis (1969, p. 115) é ainda mais explícito quando afirma que
se pode obter uma descrição aproximada de pobreza definindo-a como a incapacidade de
satisfazer necessidades de tipo material.

Isso ajudaría a distinguir miséria de pobreza, como fizeram Sidney e Beatrice Webb (1911)? Os
pobres, por essa definição, seriam "aqueles que têm um poder de compra mais reduzido que o
considerado nor- mal para o ambiente em que vivem". Os miseráveis estariam privados da
satisfação de algumas das necessidades vitais, de maneira que a saúde e a força física tornar-
se-iam precárias a ponto de fazer perigar a própria vida.

Carter (1970, p. 58) introduz a noção de "relatividade" ao afirmar que "a riqueza só traz
satisfação quando comparada com o nível de vida de outros". Ou seja, "estar satisfeito é ser
suficientemente rico para não sofrer de inveja". Mesmo assim, permanece o problema de definir
em que consiste a necessidade.

A questão da pobreza não pode, na verdade, ficar restrita a defi- nições parciais. Já se tentou
também estabelecer um limiar estatístico exato da pobreza, tomando como ponto de referência,
por exemplo, salários e horas de trabalho. Mas a noção de "linha de pobreza", avaliada dessa
forma por órgãos internacionais interessados, em in- formações quantitativas, e por
planejadores preocupados em oferecer soluções contábeis, não constitui um parâmetro válido
e não permite comparações. Conforme salientou J. K. Galbraith, a noção de "linha de pobreza"
nem ao menos conduz a uma medida precisa, sendo o defeito mais grave o seu caráter
estático: "Nurma economia de cresci- mento existe uma necessidade óbvia de definir o limiar
da pobreza ou de dar uma definição de pobreza que seja ao mesmo tempo relativa e dinâmica"
(1969, p. 252).

Os conceitos de recursos e necessidades são dinâmicos. A ideia de escassez, um corolário


dessas duas categorias, faz parte de sua própria natureza. Os recursos postos à disposição do
homem, em termos de sua posição na escala social, mudam.com o tempo co lugar. O valor dos
recursos é igualmente relativo, dependendo em grande parte da estrutura da produção e de
seus objetivos fundamentais. A noção de pobreza, ligada desde o início à noção de escassez,
não pode ser estática nem válida em toda a parte.

A pobreza existe em toda a parte, mas sua definição é relativa a uma determinada sociedade.
Estamos lidando com uma noção historicamen- te determinada. É por isso que comparações
de diferentes séries tem- porais levam frequentemente à confusão. A combinação de variáveis,
assim como sua definição, mudam ao longo do tempo; a definição dos fenômenos resultantes
também muda. De que adianta afirmar que um indivíduo é menos pobre agora, em comparação
à situação de dez anos atrás, ou que é menos pobre na cidade em comparação à sua situação
no campo, se esse indivíduo não tem mais o mesmo padrão de valores, inclusive no que se
refere aos bens materiais? A única medida válida é a atual, dada pela situação relativa do
indivíduo na sociedade a que pertence. Segundo Bachelard (1972) é mais importante
compreender um fenômeno do que medi-lo. A medida da pobreza é dada antes de mais nada
pelos objetivas que a sociedade determinou para si própria. É inútil procurar uma definição
numérica para uma realidade cujas di- mensões - agora e no futuro - serão definidas pela
influência recíproca dos fatores econômicos e sociais peculiares a cada país. Além do que um
indivíduo não é mais pobre ou menos pobre porque consome um pouco menos ou um pouco
mais. A definição de pobreza deve ir além dessa pesquisa estatística para situar o homem na
sociedade global à qual pertence, porquanto a pobreza não é apenas uma categoria eco-
nômica, mas também uma categoria política acima de tudo. Estamos lidando com um problema
social.

Ora, um fenómeno tão sintético e complexo não pode ser compreendido através do estudo
isolado de fragmentos de informações. Somente um exame do contexto, responsável num
dado momento por uma determinada combinação, pode ser de alguma ajuda para a construção
de uma teoria coerente e capaz de servir como base para a ação.

Há, na verdade, diferentes tipos de pobreza, tanto a nivel internacional quanto dentro de cada
país. Por isso, não tem sentido procutar uma definição matemática ou estática. Conforme
acentuou L. Buchanan (1972, p. 225) "atermo 'pobreza' não só implica um estado de privação
material como também um modo de vida - e um conjunto complexo e duradouro de relações e
instituições sociais, econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar segurança dentro
de uma situação insegura". O assunto exige um tratamento dinâmico, no qual todo o conjunto
de fatores élevado em conta-pois do contrário haverá ênfase em soluções parciais que são
mutuamente contraditórias. O problema essencial está na estrutura analítica escolhida, ou seja,
na tentativa de uma teorização adequada.

PLANEJAMENTO E ATRASO TEÓRICO

As teorias sobre o desenvolvimento - ou subdesenvolvimento - foram apresentadas como


diretrizes para a correção de desigualdades entre indivíduos, regiões ou países. O crescimento
baseado no mo- delo de países já industrializados começou - e continua sendo - a ser
considerado como a solução para o problema de desenvolvimento, tendo o planejamento como
instrumento de sua realização.

Entretanto, pode-se dizer que a própria ideia de planejamento contri- buiu para atrasar a
pesquisa das causas reais da pobreza. Pelo menos durante os primeiros vinte anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial, o planejamento era introduzido no Terceiro Mundo como
uma espécie de cavalo de Troia. O crescimento era, sem discussão, o objetivo do
planejamento, ainda que o sentido do crescimento fosse obscuro. As teorias do crescimento
especificavam necessidades que eram julgadas essenciais, e o planejamento era aplicado para
racionalizar a organização e a utilização de recursos, sem levar ern conta as realidades locais.
Ora, como a tentativa de interpretar as realidades dos países subdesenvol vidos consistia
principalmente em preparar uma lista de recursos para permitir seu planejamento, aquilo que
era elaborado e apresentado como teoria podia não ajudar e, em certos casos, até mesmo
trazer resultados perniciosos, apesar do esforço que representava. As explicações estavam
intrinsecamente contaminadas, porque eram precedidas de uma definição de objetivos,
equivaliam a por o carro à frente dos bois.

Não é exagero, portanto, afirmar que o planejamento atrasou a elaboração de uma adequada
teoria de desenvolvimento, contribuin- do dessa maneira, direta ou indiretamente, para criar ou
agravar o problema para o qual se devia oferecer uma solução. Devido à má compreensão ou
à compreensão incompleta de certos mecanismos, tais como por exemplo a pobreza, foi fácil
impor - de destro ou de fora - uma orientação ao planejamento, que tendia a desviar a pesquisa
para problemas menores, mantendo ou agravando assim o status quo.

TENTATIVAS DE EXPLICAÇÃO

Trinta anos passaram-se dessa forma, desde que os conceitos de desenvolvimento e


planejamento se impuseram como ideias-força, en- quanto as desigualdades continuavam a
crescer, não só a nível individual como também a nível regional e internacional.

A extrema privação em que vivem atualmente milhões de indiví- duos é objeto de copiosa
literatura. A pobreza urbana - ou melhor, os aspectos da pobreza vinculados à urbanização -
alimentou uma ativi- dade intelectual infatigável. Mas as explicações simplistas ou falsas a
respeito do que é pobreza e como ela é criada, como funciona e evolui continuam sendo o
verdadeiro problema.

Devemos, talvez, insistir no fato de que há também um grupo seleto de estudiosos cujo
verbalismo rigoroso, como poderia ser cha- mado, permite-lhes discorrer com inteligência a
respeito de questões superficiais, sem ir ao amago do problema. E como classificar aqueles
que se satisfazem, conforme acentuam Browne e Geisse (1971, p. 17), "em maximizar o
criticismo sem o risco de se comprometerem com a ação"?

Há muitas maneiras de esquivar-se no problema da pobreza, seja tratando o assunto como


uma questão isolada, seja ignorando que a sociedade é dividida em classes. Existem também
formas mais sutis de encobrir a realidade. Já não se procuroa fazer uma distinção entre
"favelas da esperança" e "favelas do desespero"? (Stoces, 19621. Já não se afirmou que o
pobre pode melhorar sua situação através do esforço individual, da iniciativa pessoal ou da
educação? É dessa maneira que se alimenta a esperança da mobilidade ascendente,
justificando, ao mesmo tempo, a sociedade competitiva. Assim, a pobreza é conside- rada
apenas como uma situação transitória, um estágio necessário na mobilidade social, evitando-se
procurar ideias para mudar esse estado de coisas. A pobreza deve ser tolerada como "inerente
às agruras do crescimento econômico", de acordo com a atitude que McGee (1971, p. 133)
denuncia.

O problema da pobreza também pode ser abordado parcialmente. A "crise urbana" seria o
resultado da explosão demográfica, respon- sável pelas migrações que contribuem para o
agravamento dessa crise. A falta de empregos seria a consequência da "pressão demográfica",
e responsável ao mesmo tempo pela manutenção da economia não mo- derna ou tradicional,
considerada como um obstáculo à modernização. Entre os que apoiam essa análise
encontram-se aqueles que aderiram à teoria dualista e seus múltiplos disfarces. Há também
aqueles que se preocupam com os aspectos políticos da pobreza, considerando-a un perigo de
explosão potencial. É fácil igualmente perder-se na discus- são das circunstâncias que
envolvem o comportamento dos pobres - serão porventura conformistas ou não conformistas,
conservadores ou revolucionários? -, enquanto os aspectos centrais da questão são
contornados.
Essas duas abordagens uma que procura evitar o problema da pobreza, outra que seleciona
certos aspectos da realidade estão se transformando em slogans multiplicados pelos meios de
comunicação de massa. E como as teorias são incoerentes, é muito mais simples impor uma
forma de planejamento que não conduz a nada. Por exem plo, ninguém se preocupa em
verificar se existe uma contradição entre considerar o éxodo rural pernicioso e as favelas
cheias de esperança.

Impostos assim à opinião pública, os mitos também não deixam de influenciar os


investigadores sociais; e aqueles que desejam orientar-se para uma visão mais global do
fenômeno da pobreza, com frequência se sentem impotentes e se desiludem. Isso não significa
que deixrm de procurar explicações coerentes dentro da dinâmica das condições atuais,
solidamente apoiados no movimento geral da História. Sen esse esforço seria impossível
discernir as verdadeiras causas da pobreza e procurar remediá-las.

II. EXPLICAÇÕES PARCIAIS DA POBREZA URBANA

Por que existem pobres? Que explicação poderíamos dar a esse problema que tem suscitado
uma multiplicidade de inter- pretações, as quais, em sua maioria, não fornecem uma expli-
cação satisfatória?

É inquietante, por exemplo, que ainda haja pesquisadores tentando explicar o fenômeno por
meio de dados climáticos! Mas A. Karmack (1973) dá-nos uma versão renovada das ideias de
Huntington, para quem o clima estava no centro de todas as explicações. Outros, sabendo
manejar as estatísticas a seu bel-prazer, creem que a educação é um ins- trumento
indispensável para integrá-los ao processo de modernização. Essa explicação, que confunde
uma coincidência com uma relação cau- sal, considera (C. G. Langoni, 1973, por exemplo) os
pobres como se rivessem algum poder de decisão sobre a qualidade e o tipo de educação que
lhes é destinada, e como se o processo de educação não fosse, ele próprio, condicionado
pelas necessidades da produção. Como essas necessidades são ditadas por interesses que
mudam rapidamente e cujo epicentro é frequentemente distante, há uma defasagem
permanente no tempo e nos objetivos, e os países do Terceiro Mundo não teriam a
possibilidade de adaptar o aparelho escolar às necessidades emergentes e tampouco aos
verdadeiros interesses nacionais.

A insuficiência da produção agrícola também é indicada como uma causa da pobreza. Como os
citadinos pobres têm que destinar uma im- portante parte da renda à alimentação e os gêneros
alimentícios custam caro, os dois fenômenos foram assimilados numa relação de causa e
efeito. Contudo, ocorre que não somente a produção agrícola não é toda ela destinada à
alimentação, como também a produção alimentar de um país nunca é totalmente consumida
dentro de suas fronteiras. Do mesmo modo, uma parte crescente da alimentação nacional, e
so- bretudo urbana, é assegurada pelas importações que provocam uma queda da produção
alimentar, por um processo de causação circular negativa (feedback).
EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA E EXODO RURAL

É frequente imputar-se a pobreza, e sobretudo a pobreza urbana, ao crescimento demográfico.


Para os que gostam da construção de gráficos, a tarefa pode ser apaixonante e muito simples:
a curva da população e a das carências aumentam simultaneamente. Usa-se, portanto, um
paralelismo para uma relação causal. Para o resto, o problema é facilmente resolvido: basta
retomar as ideias de Malthus ou alinhar mecanicamente as cifras de evolução demográfica ao
lado das do aumento do produto. E, portanto, fácil concluir que qualquer esforço de
crescimento é finalmente absorvido pelo aumento da população. O cálculo das rendas per
capita não é feito pela posição do crescimento demográfico em relação ao crescimento
econômico?

Um raciocínio mecânico conduz a outro: a limitação do crescimento demográfico é considerada


como indispensável à eficácia da manutenção do crescimento econômico. A expansão
demográfica é encarada como um verdadeiro "sinal de alarme" (Kishor e Singh, 1969, p. 241),
e provocaria um verdadeiro desastre nos países subdesenvolvidos, pela criação de um
desequilibrio no plano dos recursos. É, como dira Polanyi, um verdadeiro caso de ostentação
estatistica, baseado no fetichismo das taxas de crescimento (Lassudrie-Duchêne, 1966).
Esquece-se que, em outras fases da história, o crescimento demográfico foi contemporâneo do
crescimento econômico, tanto nos países desenvolvidos como nos países subdesenvolvidos.
Por ou- tro lado, o chamado "problema demográfico" em geral não aparece nos países de baixo
nível de renda e de desenvolvimento. A pobreza atual das massas do Terceiro Mundo não é
explicável pela explosão demográfica¹. Uma e outra estão ligadas, direta ou indiretamente, a
influências "externas" ao país.

Ligado ao fenômeno precedente (demográfico), o êxodo rural - que assumiu proporções


importantes na década de 1950-também foi incri- minado. Quantas vezes nos estudos das
ciências humanas, assim como nos documentos dos planejadores, não lemos que a economia
urbana não estava em condições de acolher a grande quantidade de migrantes,
responsabilizados assim não somente por seu próprio empobrecimento como também pelos
dos centros urbanos?

Mas as migrações não podiam ser consideradas como causa direta do processo de
marginalização, diz Munoz García (1971, p. 91). Não teriam elas suas mesmas raízes na
mesma fonte de marginalidade?

Como o volume das cidades aumenta vertiginosamente e a maior parte dos não citadinos não
encontra emprego permanente na cidade, é corrente falar-se de hiperurbanização (Friedman e
Lackington, 1966), de pseudourbanização, de urbanização caótica (Bose, 1965), de toda uma
série de qualificativos os quais procuram expressar que a cidade é incapaz de fornecer trabalho
a um grande número de seus habitantes, considerados, portanto, excessivos.

Aqui, reencontramos a polémica sobre o papel da urbanização. De um lado, há aqueles que


acreditaram que a cidade representava uma es perança de abolição da pobreza da massa (por
exemplo, Hoselitz, 1957, p. 48). Outros, impressionados pela multiplicação, no meio urbano, de
chagas sociais e das carências econômicas, veem, ao contrário, no fenômeno, a causa de
todos esses males. Esta última posição tem nu- merosas variantes: desde os que ressaltam o
perigo de uma urbanização precedendo a industrialização como consequência de um
crescimento demográfico rápido até aqueles que veem na expansão urbana uma causa de freio
na poupança, como F. Guyot (1968). Do efeito de bloqueio ao efeito de empobrecimento há
apenas um passo a ser dado. Isso foi feito por Philip Hauser (1962), quando liga a urbanização
à pauperização: "se os ritmos elevados de urbanização persistirem nas regiões subdesen-
volvidas, terão por efeito agravar ao invés de suavizar a pobreza e a miséria atuais das
cidades". O grande erro é considerar a urbanização como uma variável independente e não o
que ela realmente é: um epi- fenômeno. Com efeito, a cidade é o lugar privilegiado do impacto
das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos pontos do espaço que
oferecem uma rentabilidade máxima. O processo é velho, mas agravou-se recentemente. Por
conseguinte, procurar as explicações e os remédios a partir do próprio problema urbano
significa simplesmente lutar contra os sintomas do mal sem procurar suas causas.

A teoria do dualismo estrutural ou tecnológico-dualismo econômi- co, social ou geográfico-,


durante muito tempo impressionou os espí- ritos sábios, que encontraram na fórmula uma
explicação confortável e atraente do subdesenvolvimento e da pobreza (ver notadamente
Boeke, 1953 c B. Higgins, 1959). So recentemente estabeleceu-se uma revisão dessa teoria
(Stavenhagen, 1968; Quijano, 1971; Cardoso, 1969; Sunkel, 1969; McGee, 1971, entre outros).

Para os paladinos da tese do dualismo, a sociedade, assim como a economia, estariam


divididas em dois setores: um, moderno, aberto às transformações baseadas na modernização,
e outro, tradicional, incapaz de assimilação e de participação. Estariamos diante de "estruturas
hibridas, uma delas com a tendència de se comportar como uma economia capitalista e, a
outra, de se manter no plano das estruturas tradicionais" (Furtado, 1966, p. 126). A sugestão
de Boecke, que opurcha um setor inodermo ao setor peasant, na Indonesia, foi desenvolvida
para ser aplicada a toda a economia e a toda a sociedade no Terceiro Mundo.

Um crescimento falho, lento e retardado deveria ser imputado ao se- tor tradicional, que
desempenha o papel de freio por suas estruturas memtais e econômicas, responsável por atos
e atitudes que corroem e minam o progresso do país (Hirschman, 1958, p. 63). Myint (1970, p.
135) insiste na diferença de alocação de recursos como uma causa do que ele chama de
dualismo econômico. Ele imagina que "a permanência do setor de subsistência deve-se ao fato
de que as pessoas interessadas não querem os bens e os serviços da economia de troca e que
normalmente procuram minimizar seus recursos em função de alguns gostos e de algumas
preferências". Essa explicação subentende a noção de dualismo e supõe que o setor pobre da
economia não seja dependente do setor moderno. Essa dependência não deve ser
forçosamente procurada na escala do lugar; o setor evoluído é, ele próprio, um território
exterior do setor desenvolvido das economias ricas, segundo D. C. Lambert (1974, p. 214).

É errado, portanto, tentar explicar o não emprego como consequên- cia de uma situação de
dualismo tecnológico, como muitos fizeram. Ainda recentemente, Meyer (1964, p. 68)
reutilizava esses argumentos e Dasgupta (1964, pp. 177, 184 e 185) tentava explicá-los,
considerando correta a abordagem que considera "a teoria do subemprego e a do dualismo
como ligadas entre si". Esta posição baseia-se no pressupos- to de um crescimento limitado a
um só circuito econômico oposto à estagnação do outro circuito, para o qual o crescimento
demográfico contribuirta. Como o freio do crescimento do setor moderno se devesse ao outro
setor, a solução natural seria difundir mais ainda a moderni- zação, de modo a evitar os
bloqueios.

A posição de Eckaus (1955) seria contraditória, quando, a partir dessa teoria sobre as
proporções dos fatores (factor proportions problem) e sobre os limites a sua substituição, prega
a necessidade de modernizar para eliminar a pobreza. É falso explicar o subdesenvolvimento e
não o emprego, portanto também a pobreza, como consequências de uma situação de
dualismo tecnológico.

Em primeiro lugar, não há setor propriamente tradicional. Toda a economia toda a sociedade
estão penetradas por elementos de modernização, se bem que em diferentes níveis
quantitativos e qualitativos. Em seguida, não se pode considerar os dois setores como se
fossem separados, independentes ou autônomos. É antes a modernização, pela forma que
assume em pleno período tecnológico, que é responsável pelo desenvolvimento do
subemprego e da marginalidade.

A FALTA DE CAPITAL DOMÉSTICO

Estreitamente ligada à ideia do crescimento econômico baseado na modernização tecnológica


encontra-se a teoria que atribui o "atraso" - e, portanto, a pobreza - dos países
subdesenvolvidos à falta de capital doméstico para ser investido na indústria³. Essa formação
insuficiente de capital seria, em parte, uma consequência do efeito-demonstração: querendo
consumir como as pessoas do mundo desenvolvido, as do Terceiro Mundo não podem poupar.
Mas, como disse Hagen (1962, p. 42), é melhor ser cético em relação ao que se chama de
efeito-demons- tração, que é mais fruto de uma posição etnocêntrica (dos economistas
ocidentais) que uma observação dos fatos reais. Portanto, é arriscado atribuir-lhe um lugar tão
importante na explicação.

Entretanto, essa posição de princípio, tão largamente aceita, acaba por justificar a entrada do
capital estrangeiro, o único em condições de criar rapidamente atividades recomendadas nos
planos de desenvolvi- mento e para as quais faltaria o capital local. Essa invasão do capital
estrangeiro destinado a substituir uma poupança interna, que estaria faltando, torna o
argumento falso. De um lado, trata-se antes de um aumento da escala e da indivisibilidade dos
investimentos. Uma grande parte dos capitais locais torna-se ociosa em vez de se tornar
rentável, e isso favorece sua fuga para os países ricos onde se acumulam nos bancos antes de
serem reexportados para os países de origem, nos quais, investidos nos ramos rentáveis,
multiplicam se para depois retornar aos países do centro. Por outro lado, esses investimentos,
por seus efeitos econômicos e geográficos, não contribuem para melhorar o nível de emprego,
nem o nível de vida das populações, mas para agravar a pobreza das massas. A acuroulação
doméstica de capital não pode ser considerada uma solução válida (M. Frankman, 1969, p. 2;
Maza Zavala, 1969, p. 59), pois é fundamental saber em que contexto e em que direção são
feitos os investimentos. As "barreiras particulares" (Hagen, 1962, pp. 49-51) não se devem à
falta de acumulação interna do capital que é cada vez mais internacional, mas sobretudo à
estrutura de produção adotada, que torna impossível a utilização dos capitais formados
localmente, e à má distribuição dos resultados. A propensão para consumir, as baixas taxas de
poupança e de investimento não podem ser colocadas, pois, a despeito delas, há a criação de
atividades novas e crescimento estatístico da economia.

A estreiteza do mercado não é um fator essencial do bloqueio do crescimento, como pensou


Nurkse (1953); principalmente agora que uma nova divisão do trabalho atribui aos países
pobres a produção de bens de consumo correntes.

A "CULTURA DA POBREZA"

Que dizer da teoria de O. Lewis (1964, 1966) sobre a cultura da po- breza? Para esse autor, o
meio pobre age como um verdadeiro caldo de cultura, de modo que o indivíduo pobre está
condenado a viver pobre, salvo se houver um acidente em sua vida. Uma vez estabelecida, "a
pobreza tenderia a perpetuar-se a si própria de uma geração a outra, devido a seus efeitos
sobre as crianças" (Lewis, 1966, p. 45). A pobreza, portanto, se autocriaria e automanteria. A
teoria é atraente, se não se for ao fundo da questão. Se é verdade que os pobres tendem a
perma- necer pobres - essa espécie de pobreza por herança (Blaut, 1973, p. 2) -, é ainda
necessário jogar a culpa sobre eles mesmos? Como Valentine (1969, p. 65) observou, o autor
de La Vida dispôs de um imponente arsenal estatístico para tentar representar o
comportamento econômico dos habitantes dos squatter settlements como um grupo, mas ele
não se interessou pelas instituições econômicas às quais está subordinada a vida deles. É por
isso que O. Lewis (1966, p. 51-53) pôde chegar à conclusão de que é mais difícil eliminar a
cultura da pobreza que a pobreza em si mesma. Ele censurava os pobres por sua pobreza,
para utilizar uma fórmula de G. Kolko (1965). Tratar-se-ia, assim, de um grupo social marcado
por uma enfermidade incurável: sua própria cultura. Como se a chamada cultura da pobreza
pudesse ser imune às múltiplas correntes que atravessam o corpo social.

CRESCIMENTO OU DESENVOLVIMENTO?

Finalmente, afirma-se que a pobreza viria do fato de um país passar por um crescimento sem
que nele haja desenvolvimento. Po- deríamos perguntar se essa velha querela de vocabulário
pintada com um conteúdo ideológico merece ser perpetuada. O crescimento seria o simples
aumento das quantidades globais. O desenvolvimento seria acompanhado pela transformação
das estruturas sociais e mentais. A isso acrescentou-se que seria necessário que o
desenvolvimento fosse humano (ver pe. L. J. Lebret, 1958, defensor dessa ideia). Para ele, o
crescimento seria iníquo cada vez que não viesse acompanhado de uma maior redistribuição e
de um aumento do bem-estar das massas desamparadas. Ora, diante da realidade, que está
sob nossos olhos, não se pode pensar em crescimento que não seja acompanhado por
transformações estruturais frequentemente profundas, mas esse cresci- mento, considerado
como uma condição prévia, termina por se tornar um obstáculo ao desenvolvimento "humano",
devido aos bloqueios de estruturas que ele provoca por toda parte.

PROCURA DE UMA EXPLICAÇÃO SINTÉTICA E VALIDA

Enquanto regurgitam interpretações e em função delas planifica- se e se age, a pobreza


aumenta por todo lado. Dir-se-ia, assim, que o verdadeiro problema reside nas explicações.

É necessário contentar-se em repetir que tudo isso é apenas o resul- tado de um excedente da
população urbana, ou seja, de uma situação em que a explosão demográfica e o êxodo rural
são responsáveis pelo subemprego? Ou ainda afirmar que as indústrias modernas são incapa-
zes de fornecer os empregos demandados, criando assim uma situação que se agrava, à
proporção que a urbanização se acelera? É necessário crer que a crise da habitação é o
resultado da transferência da pobreza do campo para a cidade (G. Ardant, 1963), ou seja, de
um êxodo ru- ral que não encontra contrapartida no número insuficiente de novos empregos?
Ou ainda que a erosão da renda média dos citadinos é uma consequência da invasão da
cidade pelos rurais desenraizados?

Essas explicações são satisfatórias? Aceitar seria admitir que acabar com o êxodo rural e,
melhor ainda, a limitação dos nascimentos são uma solução, e pretender que com uma
população urbana estacioná- ria ou com fraco aumento a indústria pudesse atender à demanda
de emprego; de igual modo, isso equivaleria a apresentar o crescimento industrial como capaz,
em condições de estabilidade demográfica, de melhorar o nível de renda. Assim, as favelas,
que são apenas um as- pecto chocante entre tantos outros da cidade subdesenvolvida, seriam
suprimidas.

De fato, se há crise, trata-se de uma crise global, sendo a crise urbana apenas um
epifenômeno. As condições nas quais os países que comandam a economia mundial exercem
sua ação sobre os países da periferia criam uma forma de organização da economia, da
sociedade e do espaço, uma transferência de civilização, cujas bases principais não dependem
dos países atingidos. As raízes dessa "crise urbana" encon tram-se no sistema mundial. É,
portanto, nesse nível que se podem encontrar explicações válidas. É necessário voltar-se para
as raízes do mal, para fazer uma análise correta e estar em condições de fornecer soluções
adequadas.

Agosto, 1975

III. A POBREZA URBANA NO TERCEIRO MUNDO: MARGINALIDADE OU


BIPOLARIZAÇÃO?

Os últimos anos, a discussão sobre os fenômenos da pobreza N tem sido tão intimamente
ligada ao que é chamado de teo- ria da marginalidade que os dois termos quase se tornaram
sinônimos. De fato, a palavra marginalidade, criada pelos sociólogos latino-americanos com a
bênção das instituições e universidades Internacionais, tornou-se um novo slogan no arsenal
das ideias-força, substituindo praticamente a palavra tradicional pobreza no vocabulário
acadêmico e oficial.

A despeito de muitos esforços, a antiga, e entretanto ativa, discus- são desse problema não
resultou na elaboração de nenhuma teoria real. A imensa literatura sobre o assunto ainda não
conseguiu ofere- cer a inspiração necessária para a solução do problema. Serviu, sem dúvida,
para criar uma consciência do problema, mas agora é preciso ir além das meras discussões e
tentar estudar os processos, a fim de ajudar a formular uma teoria válida para, em seguida,
elaborar uma política coerente.

UM DEBATE SEMANTICO

A noção de marginalidade foi julgada inadequada na opinião de muitos, pois mostrou-se


ambigua. O uso da expressão marginalidade e sua conceituação frequentemente permitiram
que a chamada "po- pulação marginal" de um país fosse julgada excedente, ou que, sob o
aspecto econômico, fosse considerada uma população inútil. Para Vekemans e Fuenzalida, os
marginais nem ao menos existem do ponto de vista econômico e social, porque estão
relegados e excluídos (1969, p. 44). Joan Nelson não hesita em aceitar a palavra marginal
como correta (1969, p. 5). Mas pode-se porventura admitir que esses indivi- duos "são
economicamente marginais porque pouco contribuem para o crescimento econômico do qual
também pouco se beneficiam"?

A própria palavra foi condenada. Paulo Freire lembra que "os opri- midos não são marginais"
(1968, p. 61), não são homens que vivem fora da sociedade. Assim como seria incorreto
considerar a favela um mundo autônomo, isolado e à parte (Valladares, 1970), também é
incorreto contrapor marginais à sociedade global, porque esta não pode ser definida sem os
pobres "que constituem a maioria numérica, embora minoria sociológica" (Delgado, 1971, p.
165). Os pobres "não são socialmente marginais, e sim rejeitados; não são economicamente
marginais, e sim explorados; não são politicamente marginais e sim reprimidos" (Gunder, 1966,
p. 1).

A discussão do problema da marginalidade reabriu o debate ini- ciado por Marx sobre o
exército industrial de reserva. Muitos autores têm preferido usar o termo superpopulação à
expressão de Marx. Como Marx também falou de superpopulação relativa, a ambiguida- de
torna-se possível, se não intencional. A ideia de superpopulação supõe que existe una
superabundância de pessoas e que estas devem ser eliminadas ou responsabilizadas, social e
economicamente, por sua inutilidade. Ao contrário, a noção de superpopulação relativa leva a
discussão de volta à relação entre necessidades e recursos, definida em certo momento da
história de uma determinada localidade. Se a relação fosse adequadamente modificada, não
mais haveria problema de escassez; os recursos seriam suficientes para servir a toda a
população. Do contrário, seria como partir de Marx para chegar a Malthus, uma abordagem
pela qual muitos autores são culpados (Harvey, 1973, p. 41).
A tese da marginalidade também tem sido criticada porque permiti- ria ocultar um
etnocentrismo inconsciente (Coulaud, 1973, p. 9), e ao mesmo tempo retomaria a questão da
problemática ideológica (Castells, 1970), ou ainda por sua dependência do esquema dualista
rural/urbano, agro/industrial, tradicional/moderno (Niemeyer Pinheiro, 1970, p. 42). Para Samir
Amin, a marginalização não chega a constituir um conceito, e sim "um caminho conveniente
para descrever uma combinação de fenômenos, decorrentes de uma lei (a da acumulação
capitalista) que se expressa numa estrutura concreta (a do capitalismo contemporâneo), assim
como a expressão "exército industrial de reserva" corresponderia à descrição realista dos
efeitos da mesma lei dentro de outra estrutura" (Amin, 1973, p. 320). Indubitavelmente, o tom
de certos trabalhos, nos quais o jogo conhecido das referências recíprocas entre autores
frequentemente substitui uma análise dos fatos, tem contribuído para a perpetuação do debate,
que, embora pretenda atacar o problema em profundidade, perde-se numa guerrilha semântica
confusa.

A pobreza, como muitos outros problemas, prestou-se a uma ava- lanche de papel escrito, que,
entretanto, mostrou-se incapaz de encon- trar um tratamento eficiente para o mal. Chegou a
hora de chamar a pobreza pelo seu nome real e, respondendo ao desafio lançado a toda a
humanidade, identificar seus mecanismos fundamentais.

A IDEIA DE "MASSA MARGINAL"

Dentro do mesmo contexto, mas em outro nível, a ideia de "massa marginal" levou a uma
discussão enfadonha e desordenada. O conceito de José Nun de "massa marginal" (Nun,
1969, 1972) esta próximo da noção de Y. Durroux de "pobreza oficial" (Durroux, 1970), com
uma diferença essencial: enquanto este fala de "reserva da reserva" (com relação ao exército
industrial de reserva), Nun acredita que a "massa marginal" é "uma parte funcional ou
disfuncional da superpopulação ativa (Nun, 1969, p. 201).

Além do mais, continua Nun, "esse conceito assim como o do exército industrial de reserva -
está situado no nível das relações que se estabelecem entre a população excedente e o setor
produtivo hege- mônico". E, concluindo, afirma: "o sistema que cria esse excedente não precisa
dele para continuar a funcionar".

Esse parece ser também o ponto de vista esposado num dado mo- mento por M. Castells,
quando afirma que existe uma "justaposição da população urbana com uma grande massa de
desempregados que cresce continuamente, não tem função específica na sociedade urbana e
acima de tudo rompeu suas ligações com a sociedade rural" (Castells, 1970, p. 103). Martinez
Pio também segue a mesma linha (Martinez, 1972, p. 18).

Uma versão mais sofisticada do mesmo princípio é oferecida por J. Friedmann e F. Sullivan
quando declaram que os pobres participam apenas parcialmente do mercado de trabalho
(Friedmann e Sullivan, 1973, p. 28). Esse ponto de vista poderia levar erroneamente à con-
vicção de que a pobreza urbana não afetaria o preço da mão de obra, nem a taxa de
exploração.
Para José Nun, a ideia de superpopulação relativa pertence à teoria geral do rnaterialismo
histórico, enquanto a do exército industrial de reserva corresponderia a certas teorias do modo
de produção capita- lista. De acordo com esse autor, a noção de marginalidade não pode ser
esclarecida sem se recorrer à teoria do materialismo histórico, a única propícia a uma análise
das formações sociais. Segundo esse autor, Marx apenas teria delineado essa teoria. Assim,
os escritores que se valem do marxismo para chegar a esse tipo de explicações estariam
equivocados.

Fernando Cardoso contesta veementemente essa teoria. Argumenta que se o materialismo


histórico pudesse interpretar a história fora das relações criadas pelos modos de produção em
cada época, tudo se resu miria a uma questão de metafisica. Para Cardoso, o conceito
sugerido por Nun não é específico, porque "abrange individuos socialmente em níveis
diferentes e que têm relações heterogêncas no processo de produção". O erro de Nun estaria
principalmente no seu desejo de claborar "uma teoria de funcionamento da sociedade em
relação aos sistemas de produção, não levando em conta a teoría da acumulação". Cardoso
acha, portanto, que a distinção entre exército industrial de reserva e "massa marginal" não é
justificada. Ele preferiria que Nun declarasse abertamente que a teoria marxista não considera
essa situa- ção e, consequentemente, propõe outra explicação para a acumulação (Cardoso,
1971, 1972).

José Nun responde que não se trata "nem de conceito empírico, nem de elaboração hipotética
e sim de conceito teórico" (Nun, 1972, p. 122). Tudo não passa de uma espécie de orgia
epistemológica sern sentido.

Conforme acentua Ernesto Cohen, "um conceito explica uma abstração da observação de um
conjunto de determinados fenômenos [...] a seleção de conceitos, na medida em que pretende
explicar e prever um fenômeno, constitui uma teoria" (Cohen, 1973, p. 3). Se a definição de
elementos dentro de uma relação impõe uma interpretação que é externa ao objeto observado,
isso não impede que o ponto de partida seja empírico. Segundo Godelier "os objetos sem
relação constituem um sentido desprovido de existência” (Godelier, 1967, p. 254).

O erro de Nun não está tanto no fato de confundir os conceitos, mas em dar muito pouca
atenção às realidades de seu continente e do seu tempo. D. Harvey previne contra esse tipo de
explicação: "A um certo nível, e para serem comprovadas, as ideias devem transcender o
campo da abstração e serem incorporadas na prática humana" (Har- vey, 1973, p. 38).

Longe de ser afuncional, a "massa marginal" desempenha um papel so processo da


acumulação, não só a nível local como também a nível nacional, mas, acima de tudo, em
escala mundial. Aquilo que Salama ainda denomina de "terciário" nos países subdesenvolvidos
tem um "papel regulador na economia mundial [...] uma causa e consequência da reprodução
da economia mundial como estrutura hierárquica" (Salama, 1972, p. 179).
A formação do salário nas atividades modernas também coloca em risco a tese da "massa
marginal". As enormes possibilidades de trabalho da "massa marginal" pesan fortemente sobre
o mercado de trabalho não intelectual no circuito moderno e baixam os salários. Implica, ao
mesmo tempo, um aumento do excedente do empresário, e também um aumento na taxa de
lucro. Portanto, não se pode concordar com Nun quando afirma que a "massa marginal" é
afuncional ou disfuncional. Ao contrário, ela tem um papel preciso no funcionamento da fase
atual do sistema capitalista, porque facilita a acumulação no centro e na periferia.

PARA SUPERAR O IMPASSE

Nos países do Terceiro Mundo têm-se desenvolvido novos esforços com o objetivo de dar
seguimento à discussão das categorias expressas por Marx no século passado. Analisemos,
por exemplo, a distinção proposta por Aníbal Quijano entre "pequena burguesia marginal" e
"assalariado marginal" (Quijano, 1972, p. 91). A "pequena burguesia marginal" compreende os
que se tornam marginais em consequência da posição marginal de sua profissão no sistema
econômico renovado: artesãos, pequenos produtores de serviços e pequenos comerciantes.
Mas é preciso, insiste Quijano, não confundi-los com o setor médio as- salariado, geralmente
incluído na pequena burguesia, do ponto de vista social. A pequena burguesia marginal
constitui, sob certos aspectos, uma extensão da pequena burguesia existente na economia
e/ou um resíduo da que existiu anteriormente.

Os assalariados marginais, por sua vez, constituem uma espécie de extensão do restante do
proletariado industrial urbano. Tendo abandonado as atividades da pequena burguesia
marginal na cidade ou no campo, e não tendo ainda ingressado na força de trabalho, são
obrigados a procurar ocupações de salários marginais.

Em trabalho recente, T. McGee, descontente com as formulações conhecidas, introduziu a


noção de protoproletariado (McGee, 1973). Reconhece as importantes contribuições de outros
escritores, principalmente dos sul-americanos e africanos apoiados nurna linha de pensa-
mento neomarxista, expressa, segundo o autor, no trabalho de Fanon (1963), Gunder Frank
(1969) c Worsley (1972). Esses escritores falam principalmente de um semiproletariado, cuja
presença representa um importante elemento na estrutura de classe das zonas urbanas.
Baseado em estudos empírico-teóricos e teórico-empíricos, realizados durante um longo
período de pesquisa em grande número de cidades asiáticas, McGee propõe a introdução de
uma quarta e nova categoria, que não se encontra na classificação marxista (burguesia,
proletariado, lumperm- proletrariado). Esse autor sugere o nascimento de uma nova classe-
uma vítima da urbanização sem industrialização, segundo Worsley (1972, p. 209). É verdade
que A. M. Niemeyer (1970, pp. 19-20) também fala de uma quarta categoria, comparável a um
estamento mais baixo do exército industrial de reserva, categoria essa que seria perdida para o
capital. McGee, porém, parte de uma posição diferente, fazendo uma distinção entre sua
própria categoria e o exército de reserva, estudando analiticamente fatos ainda não
suficientemente analisados nos países do Terceiro Mundo, para em seguida dar-lhes uma
explicação teórica.
Embora não cheguem ao mesmo resultado, tanto os trabalhos de Quijano, na América Latina,
quanto os de McGee, na Ásia, têm um valor inestimável: sua teorização, não de um raciocínio a
priori mas de um estudo da experiência humana, demonstrando a unidade pro- blemática do
Terceiro Mundo.

O "protoproletariado" de McGee é também o "polo marginal" da economia e da sociedade de


que fala Quijano. O que há de novo na for- mulação de McGee (1974, p. 15) é que ele teria
rompido explicitamente as categorias rígidas de burguesia, proletariado e lumpemproletariado,
embora aderindo às normas de método do marxismo.

Para enfrentar o problema têm sido usados adjetivos demais. Porém, uma discussão semântica
pura e simples não leva a nada - exceto se palavras antigas ou inventadas se tornam
indispensáveis para identificar as categorias de análise que permitem identificar melhor as
realidades sociais, para estudá-las mais profundamente e descobrir, ao mesmo tempo, a
explicação e a solução dos problemas correspondentes.

MODERNIZAÇÃO TECNOLÓGICA E OS DOIS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA

A abordagem do problema da pobreza através da tese da marginalida- de não nos parece


satisfatória. Da mesma forma, não nos parece satis- fatória qualquer outra abordagem que não
leve em consideração os efeitos da modernização, a nível internacional e local, sobre a
economia urbana dos países pobres, ou o funcionamento da economia urbana pobre e sua
relação com a economia moderna. Ainda está por completar-se a análise das relações entre o
"exército industrial de reserva" ou "superpopulação relativa" e a economia global; ou entre a
economia moderna e a popu- lação pobre. E é justamente af - acreditamos - que se encontra a
chave para a teorização e a pesquisa de soluções verdadeiras.

O estudo do processo de modernização facilita o seu amplo enten- dimento em todos os níveis.
O investimento de substituição, necessário à modernização tecnológica, desloca de suas
atividades uma boa parte daqueles que aí aplicavam seu capital ou trabalho (Salama, 1972).
De acordo com a fórmula sugerida por Singer, a criação de empregos resulta no crescimento
do desemprego (1970, pp. 70-71). Isso não é um jogo de palavras. Com efeito, onde antes
dois, très ou às vezes uma dúzia de trabalhadores dividiam o trabalho, agora basta un
trabalhador. E frequentemente esse novo cargo não caberá a nenhum daqueles que antes
desempenhavam as atividades tradicionais originais.

Há também uma "separação entre trabalhadores de um lado e os meios de produção de outro;


ambos existem, mas separados".

O mecanismo da "modernização, exclusão e marginalização" (Tavares e Serra, 1972, p. 52) é


marcado por uma dialética infernal. Se, por um lado, a economia incorpora um certo número de
pessoas ao mercado de trabalho efetivo, através de empregos recém-criados, por outro ela
expulsa um número muito maior, criando de um golpe o subemprego, o desemprego e a
marginalidade. O número desses "postergados" aumenta cada vez mais. É para esses
remanescentes da força de trabalho nos níveis mais baixos do espectro socioprofissional que
foi reservado o termo marginal.

O progresso técnico atual muda profundamente a composição récnica do capital e reduz rápida
e drasticamente a demanda de mão de obra, principalmente nos setores mais afetados pela
moderniza- ção. Se a clássica ideia de um exército industrial de reserva não for modificada,
levando em conta novas realidades, perderá o sentido quando aplicada a países
subdesenvolvidos. De qualquer maneira, quem permanecer fora do mundo do emprego
permanente não está perdido para a economia como um todo. Assim, a economia urbana deve
ser estudada como um sistema único, mas composto de dois subsistemas. Nós chamamos
esses dois subsistemas de "circuito su- perior" e "circuito inferior". A cidade não pode mais ser
estudada como um todo maciço.

O circuito superior emana diretamente da modernização tecnológi- ca, mais bem representada
atualmente nos monopólios. O essencial das relações do circuito superior não é controlado
dentro da cidade ou de sua região de influência e sim dentro da estrutura do país ou de países
estrangeiros. O circuito inferior é formado de atividades de pequena escala, servindo,
principalmente, à população pobre; ao contrário do que ocorre no circuito superior, essas
atividades estão profundamente implantadas dentro da cidade, usufruindo de um
relacionamento privilegiado com a sua região.

Essa abordagem, que poderia parecer fruto da teoria dualista, tem sido objeto de uma
variedade de definições na literatura do subdesenvolvimento. Parece-nos, contudo, que assim
como a existên- cia de um dualismo dentro da economia e da sociedade dos países em
desenvolvimento tem sido refurada, também a expressão dualismo urbano deveria ser
rejeitada.

Os contrastes, ou melhor, as contradições entre situações de desenvolvimento são produto de


causas encadeadas; a própria existência de dois circuitos na economia das cidades constitui
um resultado desse conjunto de causas. Portanto, não se deveria falar de uma balcanização do
mercado de trabalho, como fez Miller (1975, p. 240), nem mesmo da existência de um mercado
de trabalho duplo, pois existe apenas um (Quijatno, 1971, 1973).

Cada circuito é um sistema, ou, mais precisamente, um subsisterna urbano. Mas, apesar de
sua interdependência, o circuito inferior é dependente do circuito superior.

As análises econômicas, e os estudos sociológicos e geográficos, des- de seus primórdios,


durante muito tempo confundiran o setor moderno da economia urbana com a cidade como um
todo. O resultado é que a maioria dos estudos não se refere à cidade inteira e sim apenas a
uma parte da cidade, tomando-a como um ponto de partida até mesmo para a formulação de
teorias de urbanização e emprego pleno.

É grande o número de escritores que direta ou indiretamente se orien- taram para o que
chamamos de circuito inferior da economia urbana dos países em desenvolvimento. Muitos,
porém, fizeram-no dentro da estrutura de outros estudos, tratando o assunto como um simples
aspecto de suas considerações básicas, ou como um fenômeno isolado. Além dos trabalhos
clássicos de Boeke (1953) e Geertz (1963), foram feitas várias tentativas que transcendem as
teorias tradicionais e oferecem uma nova interpretação, apoiada na teoria (McGee, 1971;
Quijano, 1970; Santos, 1971).

Mas, como frisou Quijano (1971, p. 318), a elaboração de uma teo- ria definitiva ainda está
para ser feita: "diante desse fenômeno, a teoria contemporânea não possui uma elaboração
conceitual adequada". E, segundo nos consta, Quijano é um dos poucos que propuseram uma
interpretação do funcionamento do que chama de "polo marginal" da economia (Quijano, 1973).

A fim de que uma teoria da pobreza sirva como paradigma aos estudos urbanos, ao
planejamento econômico e regional, e, acima de tudo, ao planejamento do emprego, ela deve
definir a relação entre a economia da pobreza e a economia moderna, assim como a relação
entre a população pobre e a economia pobre.

Para isso, devem ser considerados os dados gerais do fenômeno, seus modelos operacionais
e suas inter relações com dados culturais, sociais, económicos e institucionais em escala
mundial, nacional e local.

Foi essa a abordagen que propusemos alguns anos atrás (1966, 1971), e que recentemente
elaboramos (1974). Aqui procuraremos apresentar certas ideias e perspectivas novas a esse
respeito

A FORMAÇÃO DO CIRCUITO INFERIOR DA ECONOMIA URBANA

A modernização atual, uma consequência do modelo tecnológico, é impulsionada pela força da


grande indústria, representada pelas corpo- rações multinacionais. É ainda motivada pelo novo
peso da tecnologia (que atribui certa autonomia à pesquisa dentro do sistema) e por elementos
de apoio, tais como as formas modernas de difusão da informação.

As repercussões desse novo período histórico sobre os países sub- desenvolvidos são
múltiplas e profundas. Pela primeira vez na história, variáveis elaboradas fora do país usufruem
de uma difusão geral em grande parte do território e entre a maioria da população, se bem que
em diferentes graus. A difusão da informação e novas formas de consumo constituem dois
importantes dados da explicação geográfica. Suas repercussões, são, ao mesmo tempo,
geradoras de forças de con- centração e de dispersão. Essa dialética define as formas de
organização do espaço. A revolução na área de consumo tem sido acompanhada de uma
mutação da estrutura do consumo, incluindo novas formas de produção e de troca (Furtado,
1968).

Considerando o progresso tecnológico atual, a indústria cria apenas um número limitado de


empregos, porquanto é "capital intensivo". Além do mais, uma boa parte do emprego indireto é
criado nos países centrais ou a partir deles. A agricultura também se moderniza: indus-
trializando-se, expulsa sua população. Isso explica o êxodo rural e a chamada urbanização
terciária. Uma alta percentagem da população fica sem atividade e sem salário permanente, o
que por sua vez resulta na deterioração do mercado de trabalho.

A sociedade urbana é divida entre aqueles que têm acesso às merca-

dorias e serviços numa base permanente e aqueles que, embora tendo as mesmas
necessidades, não estão em situação de satisfazê-las, devido ao acesso esporádico ou
insuficiente ao dinheiro. Isso cria diferenças quantitativas e qualitativas de consumo.

Os pobres não têm acesso a um grande número de mercadorias modernas. Os mais pobres só
podem obter bens de consumo corrente através de um determinado sistema de distribuição
frequentemente complementado por um mecanismo de produção igus Imente específico. Esse
sistema surge em resposta às condições de pobreza em que vive uma grande parte da
sociedade.

A população pobre é obrigada a optar entre consumir esporadica- mente bens manufaturados
e/ou diminuir o consumo desses bens, substituindo-os por mercadorias equivalentes novas ou
tradicionais produzidas por pequenas empresas ou mesmo por artesãos. Esses pro- dutos
tendem a sobreviver mais ou menos dinamicamente, dependendo de cada caso ou cidade em
particular. O acesso a produtos modernos é com frequência conseguido através do uso de
formas de circulação me- nos modernas e menos capitalistas, encarregadas de distribuir tanto
os produtos artesanais como as mercadorias manufaturadas modernas.

Quando nos referimos aos subsistemas como circuitos, estamos aludindo às relações criadas
dentro de cada um deles. No circuito inferior elas resultam em grande parte das relações
mantidas com o circuito superior, do qual dependem. McGee interpretou corretamente a
denominação que escolhemos: o termo circuito "demonstra melhor o Auxo interno entre os dois
subsistemas. Esse modelo reconhece os dois subsistemas como parte de uma estrutura
urbana global, e contudo admite que é formado de partes inter-relacionadas" (McGee, 1973).

Além de permitir a distinção entre as atividades econômicas dos dois sistemas, torna possível
distinguir a população ligada a cada circuito, embora parte da população de um circuito possa
vender temporariamente sua força de trabalho ao outro setor. Por exemplo, não é raro em
Hong Kong os vendedores ambulantes trabalharem pe- riodicamente em fábricas para
suplementar sua renda. A grande dúvida é, naturalmente, onde se enquadram nesse modelo
os empregados do governo nos países do Terceiro Mundo, particularmente em certos países,
como a Indonésia (Santos, 1971; McGee, 1973, p. 138).

Falamos a princípio do "circuito moderno" e do "circuito tradicio nal" (Santos, 1970), mas não
tardamos a renunciar a esses termos, por várias razões. Antes de mais nada, qualquer
discussão que vise distinguir o que é moderno do que é tradicional resulta inevita- velmente em
etnocentrismo. Os termos constituem também uma fonte de ambiguidades. Nem sempre é
possível datar corretamente as atividades do circuito superior em comparação com anvidades
semelhantes dos países desenvolvidos, porquanto sua definição não se baseia tanto na data
de sua instalação quanto na forma de sua organização e na sua função. Da mesma maneira,
parece inadequa- do referir-se ao circuito inferior como tradicional, visto que é um produto da
modernização e está também num constante processo de transformação e de adaptação. Além
do mais, alguns dos forne- cimentos do circuito inferior provêm direta ou indiretamente dos
chamados setores modernos da economia. Também rejeitamos o termo circuito informal. O
circuito inferior não é informal, conforme poderiam sugerir alguns autores; tem sua própria
organização e suas próprias leis operacionais e de evolução.

É claro que se deve fazer uma distinção entre países dorados de uma civilização urbana antiga
e os que só recentemente testemunharam o fenômeno da modernização. Nos primeiros, a
modernização cria novas estruturas que se impõem diretamente sobre as estruturas já existen-
tes nas cidades e provocam modificações. No caso dos segundos, a modernização cria,
concomitantemente, as duas formas integradas de organização econômica. Em ambos os
casos está presente o fenômeno dos dois circuitos. Mas não há dualismo nisso, os dois
circuitos têm a mesma origem, o mesmo conjunto de causas e são interligados. Não obstante
sua interdependência aparente, o circuito inferior é de fato dependente do circuito superior.

OS ELEMENTOS DOS DOIS CIRCUITOS

A definição dos dois circuitos pressupõe, antes de mais nada, uma identificação dos elementos
e das características da economia global da cidade. Usando as peculiaridades de cada circuito
como ponto de partida, chegar-se-á à compreensão de sua dinâmica e dialética.

O circuito superior inclui bancos, comércio de exportação e importação, indústria urbana


moderna, comércio e serviços modernos, bem como comércio atacadista e transportes. Esses
dois últimos elementos formam os elos que ligam os dois circuitos, o atacadista operando
também no topo do circuito inferior.

O circuito inferior é formado essencialmente de diferentes tipos de pequeno comércio, e da


produção de bens manufaturados de capital não intensivo, constituída em grande parte de
artesanato e também de toda uma gama de serviços não modernos.

Mas, os circuitos não são definidos pela mera enumeração desses elementos. Cada circuito é
explicado, primeiro, pela combinação de atividades desempenhadas dentro de um certo
contexto; e, segundo, pelo setor da população a ele vinculado através, principalmente, da
atividade e do consumo. A definição não é rígida. Todas as classes da sociedade podem
consumir fora do circuito ao qual estão mais ligadas, ainda que seja apenas ocasional ou
parcialmente.

Não existe um circuito intermediário. Poder-se-ia pensar que a classe média criaria seu próprio
circuito econômico mas, na verdade, ela usa ora um, ora outro. A enumeração das atividades
dos dois circuitos não significa que todas as cidades do Terceiro Mundo dispõem de todas elas.
Se algumas possuem todos esses elementos, sua importância não é necessariamente a
mesma. Outras aglomerações possuem apenas um número limitado de elementos ou
atividades, o que depende das condições históricas do crescimento urbano. Considerando os
aspectos quantitativos e qualitativos das diferentes atividades, encontramos tantas variações
quanto o número de cidades existentes. Todavia, à parte dessas diferenças, praticamente
todas as cidades do Terceiro Mundo se enquadram na definição comum dos elementos que
formam os dois circuitos.

O circuito superior consiste de atividades "puras”, "impuras" e "mistas". A indústria urbana


moderna, e os serviços e comércio mo- dernos constituem elementos puros, porquanto são ao
mesmo tempo elementos específicos da cidade e do circuito superior. A industria de
exportação e o comércio de exportação constituem atividades impuras. Embora possam estar
estabelecidas na cidade, para se aproveitarem da localização, seus interesses essenciais estão
fora da cidade, para onde também sua produção é enviada. Os bancos poderiam ser incluídos
nessa classificação, pois servem para ligar as atividades modernas da cidade com as grandes
cidades do país ou do exterior. O atacadista cotransportador têm atividades do tipo misto,
devido à dualidade de suparticipação. Ambos têm uma ligação funcional tanto com o circuito
superior como com o circuito inferior da economia urbana. O atacadista, que muitas vezes
opera numa área restrita, encontra-se à frente de uma cadeia de intermediários. Através
desses intermediários e do uso do crédito, o atacadista adquire um grande número de
mercadorias que serão vendidas no circuito inferior para uma grande faixa de consumidores. O
volume global dos negócios que realiza no circuito inferior dá a dimensão de seus negócios
bancários e indica o potencial de sua participação no circuito superior. O atacadista está no
topo do circuito inferior, ao mesmo tempo em que integra o circuito superior.
O transportador, por sua vez, desempenha dois papéis distintos: serve como elemento de
ligação entre agentes dos dois circuitos e a região de influência urbana, e, ao desempenhar
diretamente uma atividade em qualquer dos dois circuitos, pode também tornar-se um
comerciante.

CARACTERÍSTICAS DOS DOIS CIRCUITOS

Seria difícil caracterizar os dois circuitos da economia urbana através de variáveis isoladas. O
que se deve considerar é a combinação das variáveis que torna cada circuito um subsistema
no sistema urbano. Pode-se afirmar imediatamente que a diferença fundamental entre as
atividades dos circuitos superior e inferior está nas diferenças de capital, tecnologia e
organização, entre outras. O circuito superior usa em geral uma tecnologia "capital intensivo"
importada, ao passo que no circuito inferior a tecnologia é, em grande parte, baseada no uso
de uma mão de obra numerosa. Enquanto a primeira é principalmente imitativa, a segunda
oferece considerável potencial de criatividade.

O circuito superior opera com crédito bancário. Frequentemente grandes firmas criam e
controlam seus próprios bancos, um meio de dominar e eventualmente absorver outras
atividades. Uma boa parte dessa manipulação é realizada através de papéis. As atividades do
formam os elos que ligam os dois circuitos, o atacadista operando também no topo do circuito
inferior.
O circuito inferior é formado essencialmente de diferentes tipos de pequeno comércio, e da
produção de bens manufaturados de capital não intensivo, constituída em grande parte de
artesanato e também de toda uma gama de serviços não modernos.

Mas, os circuitos não são definidos pela mera enumeração desses elementos. Cada circuito é
explicado, primeiro, pela combinação de atividades desempenhadas dentro de um certo
contexto; e, segundo, pelo setor da população a ele vinculado através, principalmente, da
atividade e do consumo. A definição não é rígida. Todas as classes da sociedade podem
consumir fora docircuito ao qual estão mais ligadas, ainda que seja apenas ocasional ou
parcialmente.

Não existe um circuito intermediário. Poder-se-ia pensar que a classe média criaria seu próprio
circuito econômico mas, na verdade, ela usa ora um, ora outro. A enumeração das atividades
dos dois circuitos não significa que todas as cidades do Terceiro Mundo dispõem de todas elas.
Se algumas possuem todos esses elementos, sua importância não é necessariamente a
mesma. Outras aglomerações possuem apenas um número limitado de elementos ou
atividades, o que depende das condições históricas do crescimento urbano. Considerando os
aspectos quantitativos e qualitativos das diferentes atividades, encontramos tantas variações
quanto o número de cidades existentes. Todavia, à parte dessas diferenças, praticamente
todas as cidades do Terceiro Mundo se enquadram na definição comum dos elementos que
formam os dois circuitos.

O circuito superior consiste de atividades "puras", "impuras" e "mistas". A indústria urbana


moderna, e os serviços e comércio mo- dernos constituem elementos puros, porquanto são ao
mesmo tempo elementos específicos da cidade e do circuito superior. A indústria de
exportação e o comércio de exportação constituem atividades impuras. Embora possam estar
estabelecidas na cidade, para se aproveitarem da localização, seus interesses essenciais estão
fora da cidade, para onde também sua produção é enviada. Os bancos poderiam ser incluídos
nessa classificação, pois servem para ligar as atividades modernas da cidade com as grandes
cidades do país ou do exterior. O atacadista e o transportador têm atividades do tipo misto,
devido à dualidade de sua participação. Ambos têm uma ligação funcional tanto com o circuito
superior como com o circuito inferior da economia urbana. O ataca- dista, que murtas vezes
operá numa área restrita, encontra-se à frente de uma cadeia de intermediários. Através
desses intermediários e do uso do crédito, o atacadista adquire um grande número de
mercado- rias que serão vendidas no circuito inferior para uma grande faixa de consumidores.
O volume global dos negócios que realiza no circuito inferior dá a dimensão de seus negócios
bancários e indica o potencial de sua participação no circuito superior. O atacadista está no
topo do circuito inferior, ao mesmo tempo em que integra o circuito superior. O transportador,
por sua vez, desempenha dois papéis distintos: serve como elemento de ligação entre agentes
dos dois circuitos e a região de influência urbana, e, ao desempenhar diretamente uma
atividade em qualquer dos dois circuitos, pode também tornar-se um comerciante.

CARACTERÍSTICAS DOS DOIS CIRCUITOS


Seria difícil caracterizar os dois circuitos da economia urbana através de variáveis isoladas. O
que se deve considerar é a combinação das variáveis que torna cada circuito um subsistema
no sistema urbano. Pode-se afirmar imediatamente que a diferença fundamental entre as
atividades dos circuitos superior e inferior está nas diferenças de capital, tecnologia e
organização, entre outras. O circuito superior usa em geral uma tecnologia "capital intensivo"
importada, ao passo que no circuito inferior a tecnologia é, em grande parte, baseada no uso
de uma mão de obra numerosa. Enquanto a primeira é principalmente imitativa, a segunda
oferece considerável potencial de criatividade.

O circuito superior opera com crédito bancário. Frequentemente grandes firmas criam e
controlam seus próprios bancos, um meio de dominar e eventualmente absorver outras
atividades. Uma boa parte dessa manipulação é realizada através de papéis. As atividades do
circuito inferior também se baseiam no crédito e no dinheiro corrente, mas nesse circuito o
crédito tem outra natureza. Uma grande percen- tagem do crédito é pessoal e direto,
indispensável para os que não tem possibilidade de acumular. A obrigação de pagar ao
fornecedor periodicamente faz com que haja uma procura desenfreada de dinheiro. Até mesmo
os intermediários precisam de dinheiro para honrar seus débitos com o banco.

As atividades do circuito superior envolvem um grande volume de mercadorias, enquanto as do


circuito inferior lidam com pequenas quantidades. Contudo, no circuito superior, as quantidades
também podem ser limitadas, como por exemplo no caso das butiques espe- cializadas, onde
os altos preços são devidos à qualidade do produto, à moda e a certo tipo de clientela. No
circuito superior o capital é geralmente volumoso, o que tem relação com a tecnologia usada.
No circuito inferior, ao contrário, as atividades "trabalho intensivo" usam menos capital e
operam sem uma organização burocrática.

O emprego oferecido pelos circuitos é o resultado de uma combina- ção dessas variáveis, Se,
por um lado, as atividades modernas originam uma expansão do assalariado, por outro há uma
diminuição absoluta ou relativa do número de trabalhadores em relação ao volume e ao valor
da produção. Na indústria a tendência constante é para reduzir o emprego. Se nos serviços há
tendência ao aumento de emprego, isso é devido, em grande parte, à participação do governo.
Quanto aos serviços privados ligados diretamente à atividade econômica do circuito superior,
uma grande parte do emprego é criado nas cidades ou regiões mais desenvolvidas do país e
mesmo no exterior.

No circuito superior, os preços em geral são fixos, pelo menos oficialmente. Até mesmo nos
oligopólios o limite do preço mínimo não pode ser muito inferior ao preço de mercado sem pôr
em risco o futuro da empresa. No circuito inferior, o preço da mercadoria não é fixo e suas
variações são acentuadas. Uchendu estudou esse problema detalhadamente (Uchendu, 1967).
Enquanto no circuito superior os preços são manipulados visando lucros a longo prazo, no
inferior o importante é o prazo curto. A ideia de lucro é diferente em cada um dos circuitos: no
superior é uma questão de acumulação de capital, indispensável para a continuação da
atividade e para sua renovação em relação so progresso tecnológico; no inferior, a acumulação
de capital não constitui o objetivo mais importante; na verdade, frequentemente nem existe. A
sobrevivência e a garantia de satisfação das necessidades da familia no dia a dia é a
preocupação mais importante; a participa- ção de certas formas de consumo modernas
também é secundária, na medida do possível. A relação entre o agente e a clientela é pessoal
c direta no circuito inferior, mas impessoal no circuito superior, onde é centralizada e
hierárquica (Brookfield, 1973).

Apesar do controle de preços exercido nas atividades do circuito superior e dos elevados lucros
em relação ao volume total de produ- ção, o rendimento por unidade é baixo. No circuito inferior
ocorre o oposto. O resultado total é fraco, mas a margem de lucro por unidade é elevada. Isso
se deve ao grande número de intermediários necessá- rios entre o fornecedor original de
insumos e o eventual consumidor. O volume desses lucros permite a subsistência da enorme
população envolvida nas atividades do circuito inferior e constitui um dos ele mentos principais
que explicam a sobrevivência de grande parte das aglomerações do Terceiro Mundo.

A atividade no circuito superior baseia-se principalmente na publicidade, instrumento metódico


de modificação de gostos e alteração do perfil da demanda. No circuito inferior a publicidade é
desnecessária devido ao contato pessoal com a clientela; na verdade é inviável, porque os
ganhos são usados diretamente pelo agente para sua subsistência e a de sua família. Contudo,
o agente beneficia-se da publicidade do circuito superior. Este também opera com custos fixos
bastante altos, e que normalmente aumentam com o tamanho da firma segundo o lugar e o
ramo da produção. No circuito inferior, quase não há custos fixos e os custos diretos não são
importantes. A relação entre custos diretos e o volume da produção é proporcional, visto ser
uma atividade "trabalho intensivo".

No circuito superior, quase não ocorre o reaproveitamento de bens de consumo duráveis, ao


contrário do que se verifica no circuito inferior, onde a base das atividades é justamente a
reutilização de certas mercadorias. Isso ocorre no aproveitamento de roupas, automóveis e
máquinas e até mesmo na construção de casas com materiais usados.

As atividades do circuito superior apoiam-se direta ou indiretamente na ajuda governamental,


enquanto as do circuito inferior, ao contrário, não contam com tal apoio; e em muitas cidades
são até perseguidas, como é o caso dos vendedores ambulantes. Remy e Weeks (1972) con-
sideram que o apoio do Estado constitui a distinção primordial entre os dois circuitos (McGee,
1973; Patch, 1967; Reinoso, 1970). O Estado poderia ser considerado um elemento do circuito
superior, visto que de sua atividade depende, em grande parte, a viabilidade de capital social
novo (overhead) suprido principalmente pelo Estado, e do qual as atividades modernas não
prescindem. Já no circuito inferior isso não é um pré-requisito necessário à criação de
atividades.

O circuito superior emprega um número considerável de estrangeiros que varia, naturalmente,


com o grau de industrialização e modernização do país. No circuito inferior, os empregos são
ocupados por nacionais e apenas ocasionalmente há uma participação de estrangeiros.
Outra diferença essencial entre os dois circuitos é o fato de o circuito inferior ser integrado
localmente (Santos, 1971), enquanto as atividades do circuito superior são desempenhadas
localmente mas integradas com as de outra cidade de nível mais alto, ou com as de outra parte
do país, ou ainda com as de outro país. Até mesmo a metrópole eco- nômica de um país
subdesenvolvido industrializado depende de países estrangeiros para obtenção de tecnologia e
outros insurnos, tais como capital, matéria-prima e know-how.

Comparando as características das mesmas variáveis em cada um dos dois circuitos, nota-se
entre elas uma contradição. Mas, dentro de cada circuito, as variáveis próprias, isto é, a
tecnologia, a organi- zação, a importância da atividade, as relações de trabalho, o número de
empregos etc. constituem um verdadeiro sistema dotado de uma lógica interna.

Quando suas características são consideradas isoladamente, cada circuito aparece como um
subsistema; quando consideradas dentro da economia urbana total, cada circuito aparece
como um complemento do outro. Há interação entre os dois, ainda que o circuito superior seja
dominante. O estudo da cidade como uma totalidade não é possível sem o exame dessa
dialética entre os dois circuitos, responsável pela definição social e econômica e pelas
possibilidades e formas de evolução tanto do organismo urbano como de sua área de
influência.

IV. O CIRCUITO INFERIOR CHAMADO "SETOR INFORMAL". POR QUÊ?

O modelo de crescimento capitalista adotado pela maioria dos países subdesenvolvidos,


somado à explosão demográfica, resultaram numa explosão urbana e concentração de riqueza
e pobreza nas cidades. Pensava-se antigamente que a industrialização capitalista podia trazer
uma solução à crise social que gerou. Quando se tornou claro que isso não ocorria, o problema
foi atacado por outros meios indiretos, como habitação, educação etc. Mais recentemente, a
questão do emprego foi objeto de estudos aprofundados por parte de pesquisadores
particulares e instituições governamentais.

ESTUDOS SOBRE POBREZA HUMANA

Entretanto, a abordagem do problema da pobreza continuou sendo se- torial ou unilateral e


ainda prejudicada pelo preconceito contra a economia urbana pobre, que a ideologia do
planejamento reforça ainda mais.

A abordagem do problema da habitação, que tanto entusiasmo provocou entre os planejadores


do governo e particulares, interna- cionais ou locais, e influenciou enormemente a pesquisa
urbana, foi deficiente e não trouxe resultados válidos. O tema da marginalidade por um lado
ofuscou o mecanismo global da sociedade, e por outro lado inspirou interpretações dos
trabalhos de Marx, sem contudo trazer grande contribuição. Faltava aos empiristas da
marginalidade uma estrutura conceitual adequada, e, quanto aos teóricos, a maioria voltou as
costas às novas realidades.
A economia dos pobres que vivem nas cidades, conhecida a princípio como setor terciário, era
em geral considerada parasitária e arcaica.

Ainda que ocasionalmente a dinâmica do "setor terciário fosse reconhecida, só no final da


década de 1960 é que se publicam os primeiros estudos feitos deliberadamente nesse sentido.

DOS FATOS A CONCEPÇÃO

O material relevante, abrangendo o passado até nossos dias, tinha de ser reunido e
classificado para se poder chegar a uma síntese teórica. Essa tarefa foi realizada, entre outros,
por T. G. McGee, A. Quijano e M. Santos.

T. G. McGee começou indagando porque as atividades dos pobres se mantêm nas cidades que
se modernizam e como ocorreu a elasti- cidade do mercado de trabalho - apesar de não ter
havido expansão do emprego fixo - enquanto a população aumentava. O estudo das atividades
dos vendedores ambulantes colocadas na perspectiva da evolução da sociedade e nas
condições de urbanização tecnológica prestava-se a essa investigação.

Essas reflexões sobre a pobreza urbana levaram esse autor a apre- sentar uma nova categoria
dentro da divisão habitual das classes sociais: a do protoproletariado. Para McGee (1974, p.
18), o protopoletariado está sujeito a três dimensões econômicas: 1) é possível identificá-lo
pelo fato de suas atividades serem exercidas principalmente em um dos setores do modelo de
organização econômica "dualista" das cidades do Terceiro Mundo, ou seja, naquilo que nós
próprios chamamos de circuito inferior; 2) o protoproletariado também pode ser definido por
uma abordagem estrutural sempre que for considerado como a base do modo de produção do
qual participa; 3) a terceira abordagem leva em conta os vários empregos ou oportunidades de
renda oferecidos pelas atividades do modo de produção correspondente. Quanto às formas de
organização econômica do protopoletariado, McGee nota uma predominância de pessoas que
trabalham por conta própria, e empresas familiares cujas atividades abrangem principalmente
pequenas fábricas, pequeno comércio, incluindo vendedores ambulantes, ativida- des de
consertos, serviços, biscateiros, prostituição e outras atividades classificadas como antissociais
ou tipicamente ilegais.

Aníbal Quijano interessou-se pela formação de classes e segmentos de classes dentro da


estrutura da urbanização do pós-guerra, numa situação de desenvolvimento econômico
dependente. Visto por esse ângulo, o estudo das classes inclui a análise dos modos de
produção concretos e a posição de cada grupo dentro da sociedade.

Para Quijano, é preciso não confundir o processo de exclusão, como ocorreu no passado,
quando era associado à formação de "mar- ginais", com o atual processo de reestruturação das
classes sociais urbanas. Essa população, tal como está marginalizada atualmente, é muito
maior e engloba três grupos principais: 1) a pequena burguesia marginal constituída pelos que
foram marginalizados apenas devido à qualidade marginal de seu papel no sistema, e que foi
levada a uma vida pequeno-burguesa: artesãos, fornecedores de serviços de pequena escala,
pequenos comerciantes, cuja posição na sociedade é diferente da do setor de assalariado
médio, também classificado sob a denomi- nação de pequena burguesia, porém de um ponto
de vista social; 2) um segundo grupo formado por indivíduos que se afastaram das atividades
rurais ou que nunca tiveram qualquer emprego e que se entregaram a uma atividade
aşsalariada de nível marginal. São os assalariados mar- ginais, uma extensão do proletariado
urbano-industrial; 3) um terceiro grupo origina-se do mesmo processo de marginalização de
ocupações pequeno-burguesas e da degradação das condições do assalariado mar- ginal,
engrossando as fileiras do proletariado marginal. Este tende a ser numericamente o maior. A
tendência básica desses três grupos é para a concentração em duas linhas de ocupação: as da
pequena burguesia e as do proletariado marginal.

Nosso ponto de partida foi diferente. As relações interurbanas haviam chamado nossa atenção
para o que denominamos de "terceira dimensão da rede urbana" (Santos, 1970b). Concluímos,
após analisar a situação de vários continentes, que, na medida em que a cidade não é uma
estrutura maciça, já que consiste de dois setores econômicos, as relações interurbanas não
ocorrem da mesma maneira nos dois setores. Procedemos então a um detalhado estudo
desses setores, considerando- os porém interdependentes, complementares mas ao mesmo
tempo possíveis de estudo particular, embora não separados, dos subsistemas genuínos do
sistema urbano. Cabe, ao mesmo tempo, definir suas es- truturas dentro de níveis diferentes:
cidade, país, mundo.

OS DOIS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA

Enquanto Geertz (1963) fala de uma "economia centrada na empresa" (firm centred economy)
e de "economia de bazar", para poder levar em consideração a variedade de situações nas
cidades do Terceiro Mundo, nós preferimos falar de dois circuitos da economia urbana: o
circuito superior e o circuito inferior (Santos, 1970b, 1971a). Em trabalho anterior falamos de
"circuito moderno" e "circuito tradicional" (Santos, 1970b),
mas abandonamos essa terminologia porque os termos moderno e tradicional prestam-se a
controvérsias e as atividades do circuito superior não são tão definidas pela sua idade quando
comparadas com atividades semelhantes nos países do centro e sim pelo seu modo de
organização e de comportamento. Quanto às do circuito inferior, parece difícil manter a palavra
tradicional, não só porque nos dias atuais estão estruturalmente subordinadas às condi- ções
de modernização como também porque esse setor se alimenta em parte dessa modernização e
está envolvido num processo permanente de transformação e adaptação.

Assim chegamos às seguintes características dos dois circuitos (Santos, 1972).


Esses circuitos já estão bem definidos e McGee (1973, p. 138) expôs nosso ponto de vista
muito bem - pois circuito é "uma palavra que caracteriza melhor o fluxo interno que existe
dentro dos subsiste- mas. Esse modelo aceita os subsistemas como parte de uma estrutura
econômica da cidade, global e interligada "5.

Em outras palavras, dentro de cada circuito as características são mutuamente elucidativas e


fazem parte de um sistema. Considera- das isoladamente, cada característica de um circuito é
o inverso da característica correspondente do outro circuito e portanto opostas. Realmente,
essa oposição é dialética, visto que as características do circuito inferior são explicadas pela
economia como um todo, na qual o circuito superior está em posição dominante. É por essa
razão que os dois circuitos formam dois subsistemas dentro do sistema urbano. Ambos são
opostos e complementares. Essa complementaridade é acompanhada de dominação, o que
constitui a característica das es- truturas e sistemas de estruturas. A economia urbana como
um todo é um sistema de estruturas e não um sistema de elementos simples. Daí a
impossibilidade de estudar um circuito isoladamente.

Paralelamente a esses estudos, uma outra forte tendência procura impor-se. Suas preferências
inclinam-se para o estudo de um setor único ou economia urbana denominada setor informal.
Convém lembrar que as designações circuito superior e circuito inferior foram criadas para
chamar a atenção ao fato de que a economia urbana, sendo uma totalidade, deveria ser
analisada como uma estrutura "à dominante", segundo a já clássica expressão de L. Althusser
(1965). A complernen- taridade é garantida à custa da dependência do circuito inferior em
relação ao circuito superior, sendo ambos subordinados às mesmas leis gerais do
desenvolvimento capitalista. E quanto à designação setor formal e setor informal?

O SETOR INFORMAL

A expressão setor informal foi atribuída por Sheldon G. Weeks (1973, p. 111) a Tina Wallace
(1973) no estudo que essa autora fez de Baganda (Uganda), enquanto muitos autores, entre os
quais Peter Worsley (1972, p. 228) e Dorothy D. Remy e John Weeks (1973, p. 11) são de
opinião que devemos essa designação a Keith Hart (1973).

A expressão "economia de bazar", usada como analogia de formas persistentes (embora a


substância tenha mudado) de comércio de peque- na escala no Oriente, praticamente
desapareceu da literatura sobre o assunto, o mesmo tendo acontecido ao termo "setor não
estruturado", usado até recentemente por M Blaug (1974, p. 58). A expressão se- tor de
transição (transição para o quê?), sugerida por J. Bougnicourt (1974) também não pegou,
apesar do livro de Lerner The Passing of Traditional Society (1958). Outras designações
tiveram o mesmo destino, ao passo que as expressões setor formal e setor informal se
impuseram. Neste ponto verifica-se o que se poderia considerar como um caso de fetichismo
da palavra. Quando uma instituição importan- te, como por exemplo o Banco Mundial ou o
Instituto de Estudos de Desenvolvimento da Universidade de Sussex decide, seja qual for a
razão, adotar uma palavra, a pesquisa oficial e os pesquisadores em geral fazem o mesmo, a
maioria sem ao menos procurar entender o que a expressão encerra além de pura semântica.

Aliás, mesmo que nos restrinjamos à semântica pura, podemos indagar: por que setor
informal?

Informalidade ou Irracionalidade à Maneira de Max Weber?


A noção de organização informal, em oposição à de organização formal, origina-se
principalmente do conceito de racionalidade intro- duzido por Max Weber. De acordo com esse
conceito, só a organização formal poderia ser eficaz, contando com "normas e papéis
definidos, procedimentos sistemáticos para seleção, treinamento e promoção dos agentes da
economia, a medida exata de controle [...] necessários para melhor aproveitamento dos
recursos à sua disposição, na busca das finalidades propostas" (T. Lipton 1972, p. 45). A
distinção seria portanto útil para, de um lado, definir uma situação onde o uso de capital e suas
limitações estão determinados de antemão, como no caso das sociedades capitalistas, e, de
outro lado, as sociedades que ainda se encontram no estágio pré-capitalista.

Quando se referem a países subdesenvolvidos, os dualistas creem numa oposição entre o


setor desenvolvido e o não desenvolvido, um contraste entre um todo coerente de ações
eficientes e racionais e um conjunto inarticulado de ações arcaicas, irracionais e ineficientes".
Uma ação irracional seria aquela que não tem motivo ou causa racional; mas nesse caso seria
suficiente passar de um subsistema para o outro a fim de que um mesmo agente deixe de ser
irracional e se torne racio- nal. E o que dizer também daqueles que participam alternativamente
das atividades de ambos os circuitos, sem contudo mudar de situação socioeconômica? O
caráter ideológico e etnocêntrico da distinção é óbvio. A noção de racionalidade que se procura
aplicar como gabarito às sociedades pré-industriais é um caso típico de arrogância cultural na
opinião de Wilkinson (1973, p. 198), que acrescenta: "se alguém de outra sociedade toma uma
decisão diferente da nossa, é porque provavelmente tem uma hierarquia de valores e
prioridades diferentes e não porque o seu comportamento é irracional ou errado". Realmente,
conforme realçou Godelier (1967, p. 298), não existe apenas uma racionalidade econômica,
mas diversas.

A Economia da Pobreza, "Formalidade", Alienação

Existe um setor informal da economia paralelo ou em contraste a um setor formal?

N. Anderson (1964, p. 57) acreditava que o urbanismo industrial era o único modelo racional de
pensamento e trabalho, enquanto P. Gutkind (1967) associa a racionalidade à modernização,
modernuzação a cientificismo. O próprio Richard R. Morse não afirmou (1964) que o "terciário"
é economicamente tão improdutivo quanto irracional?

Geertz (1963, p. 43), Saylor (1967, p. 99) e Polly Hill (1970, p. 4), ao contrário, mostraram a
profunda racionalidade da economia da pobreza urbana no Terceiro Mundo. Isso também se
aplica a outros pesquisadores que se livraram de frases feitas e estereótipos. Se a ir-
racionalidade está intimamente ligada à impulsividade, na medida em que a ação decorre de
forças psicológicas cegas ao invés de um cálculo deliberado, nesse caso, diz Alejandro Portes
(1972, p. 269-270), não há irracionalidade no comportamento dos habitantes das favelas da
América Latina.

Para McGee (1974, p. 40), que realizou estudos detalhados em Hong Kong e outras cidades do
Extremo Oriente, as atividades do "setor informal" se desenrolam eficientemente. Até mesmo
os vende dores ambulantes são muito eficientes no que diz respeito à atividade comercial que
abastece a população pobre com trabalho e mercadorias baratas. Por outro lado, G. Shepard
(1955) mostra como numa área de Kampala (Uganda) os membros da cooperativa Katwe
funcionam de uma maneira que poderia ser considerada informal apesar de seu status legal
tipicarnente formal. É no chamado setor informal que se verifica uma maior flexibilidade e
fluidez, e é por isso que Halpenny, que cita aquele autor (1972), chega à conclusão de que as
classificações formais de status são irrelevantes.

Para poder-se rotular uma ação humana de irracional, é preciso estar em condições de provar
que essa ação não possui um objetivo permanente nem um comportamento suficientemente
firme para re- sultar em normas efetivas. E no circuito inferior existem - conforme julgamos já
ter demonstrado (Santos, 1971a, 1971b, 1975a) - alguns relacionamentos que se repetem em
toda parte e todo o tempo, entre agentes, entre agentes e clientes, no exercício da própria
atividade e na sua significação global dentro da sociedade. Por exemplo: os custos
operacionais são consideravelmente diminuídos no circuito inferior. Por outro lado, o que dizer
a respeito do papel do intermediário e do crédito pessoal? E a respeito da formação de preços
e da pulverização da atividade? Até mesmo a dependência em relação ao circuito superior é
ditada por uma lógica. Cada civilização ou classe se reserva a palavra como característica
superior de suas próprias ações. Mas a atividade econômica dos pobres também funciona de
acordo com uma lógica e portanto é racional.

O circuito inferior na economia urbana constitui um mecanis- mo permanente de integração que


oferece um número máximo de oportunidades de emprego com um volume mínimo de capital.
Esse circuito corresponde exatamente às condições gerais de emprego e disponibilidade de
dinheiro, assim como às necessidades de consumo de uma importante fração da população.
Seu funcionamento é dirigido por leis, isto é, por uma constância de comportamento devida a
causas que por sua vez também se repetem. As características apresentadas por Keith Hart
(1973, p. 5) considerando-o como "informal" - uma existência baseada no dia a dia, marcada
pela irregularidade das des- pesas em função dos pagamentos, flexibilidade do consumo e
proliferação do crédito constituem, ao contrário, o indicio da racionalidade desse circuito
econômico, que encontra os princípios que governam sen mecanismo dentro de uma economia
capitalista global cuja lógica permanece a mesma, embora apareça sob diferentes formas en
cada subsistema. Na verdade, o circuito inferior constitui um subsistema dentro de um sistema
maior, o sistema urbano, e este mesmo não é nada mais que um subsistema do sistema
nacional.

Aplicada a uma sociedade, a noção de informalidade ou irracio- nalidade de um dos dois


setores significaria que essa sociedade não opera de forma global. Esse ponto de vista
corrobora, obviamente, a abordagem dualista que considera os dois circuitos como paralelos e
permitiria a eliminação do problema da dependência de um em relação ao outro.

O funcionamento do circuito inferior responde a diferentes fatores ligados entre si por uma
lógica que é ao mesmo tempo econômica, social e política. A questão é mais de necessidade
que de escolha, um resultado universal das leis gerais que governam o sistema capitalista em
seu estágio atual. E, conforme salienta S. Avineri (1968, p. 15), “só o universal pode ser
racional". Se o necessário é também o verdadeiro, de acordo com Aristóteles, o inverso
também é verdade, porquanto o verdadeiro é também o necessário¹2.

A noção de racionalidade de Max Weber constitui, de acordo com Lukács (1959) um ataque à
razão. Essa racionalidade, ou cálculo racional, tem seu fundamento lógico baseado na
"conformidade da ação com a lógica de un sistema de valores" (Kende, 1971, p. 63). Esse
sistema de valores só pode ser o do capitalismo que necessita da racionalidade weberiana
para sua expansão. Para que uma máquina produtora baseada no valor de troca e na mais-
valia tenha sucesso, torna-se necessária uma total racionalização na utilização de fatores;
racionalidade aqui ten o sentido de mutação da qualidade em quan ridade, de primazia de
sistemas abstratos sobre sistemas concretos, ou seja, de alienação. Lukács (1960) Acredita
que existe um paralelo entre a categoria weberiana de racionalidade e a categoria marxista de
reificação, que é "uma espécie dentro de um gênero de aliena- ção". Associando-os, ele mostra
como a expansão capitalista está acompanhada de uma objetividade reificada (F. Riu, 1968, p.
24), articulada com a eliminação progressiva dos atributos qualitativos individuais e humanos
do trabalhador. São exatamente os homens que formam parte do circuito inferior ("setor
informal") que escapam a essa alienação que caracteriza o mundo trabalhador das sociedades
modernas, pois eles ainda são capazes de se identificar com o produto de seu trabalho 13.

A designação informal, dada ao circuito inferior, poderia ser significa- tiva se fosse efetivamente
associada à noção de racionalidade. Seria então possível considerar o assim chamado setor
informal como destinado a desaparecer e dar lugar a uma nova ordem, onde toda a economia
seria "formalizada", isto é, totalmente sujeita às leis do capitalismo tecnoló- gico, que é a forma
atual do capitalismo em fase internacional.

Não estamos muito preocupados em levar adiante uma discussão sobre a validade do termo,
mas sim sobre o seu significado profundo e a definição do que se supõe que designa. Embora
Keith Hart parecesse mais preocupado com a situação do emprego, isso serviu de pretexto
para ir além e definir todo um setor da economia.

Para alguns autores, a investigação de uma definição de "setor infor- mal" devia levar ao
reconhecimento de sua oposição em relação ao "setor formal" (Sethuraman, 1974, p. 6).
Contudo, o uso de critérios arbitrários para identificar as iniciativas do "setor informal" e para
juntar informações e formular normas tira parte da validade científica da abordagem. Essa é, na
realidade, a fraqueza geral das pesquisas orientadas diretamente para as necessidades de
planejamento, pois a tendência é começar de premissas a serem demonstradas ou de ideias
preconcebidas para serem justificadas, e cujos resultados são muitas vezes cegamente
implantados por planejadores que não são essencial- mente pesquisadores e pelos governos
interessados.

A deficiência dessas definições provém do fato de inverterem a realidade social, ao invés de


analisá-la tal como é. A necessidade de quantificar ou de levar em conta um único critério, o da
produtividade do trabalho, resulta na procura de um ponto limite que na realidade é impossível
de ser definido, porquanto a evolução social é assimétrica. Assim, os aspectos qualitativos são
afastados a priori, ao invés de serem antes examinados para se elaborar, e eventualmente
serem traduzidos em variáveis quantificáveis.

A adoção desses critérios poderia levar a se imaginar que tudo se resolveria injetando maior
produtividade no circuito inferior, isto é, tornando-o mais capitalista.

Isso entretanto implicaria a omissão do fato de que a maneira pela qual o circuito inferior opera
está diretamente ligada à maneira pela qual o circuito superior opera em todos os níveis: local,
nacional e internacional.

Para M. Bienefeld (1975, p. 4), a economia urbana da pobreza, isto é, o circuito inferior, é
explorada pelo outro setor através das condições do comércio, que limita a capacidade dos
pequenos fabricantes de se desenvolverem cumulativamente durante períodos prolongados.
Na verdade, é preciso ir ainda mais longe, pois a provável função essencial do circuito inferior é
difundir o modo capitalista de produção entre a população pobre através do consumo, e
absorver para o circuito superior a poupança e a mais-valia das unidades familiares, por in-
termédio da máquina financeira, de produção e de consumo. Vários são os canais de
transmissão formais e informais: agências bancárias, cooperativas, firmas construtoras de
residências e o próprio Estado, através do duplo canal da taxação e da distribuição desigual de
recur sos. Todos esses constituem instrumentos que despejam mais-vaba nos bancos e nas
poderosas empresas nacionais e estrangeiras. Essa função também caracteriza, às vezes até
com grande eficiência, todos os tipos de intermediários, atacadistas, motoristas de caminhão e
comerciantes de feiras, todos possuindo uma notável flexibilidade de comportamento (Santos,
1975a, 1975b).

Assim sendo, uma melhoria no mecanismo de trocas muito pouco significará se o fluxo da
mais-valia continuar empobrecendo uns e enriquecendo outros. Singer e Jolly se iludem
lastimavelmente quando afirmam a respeito do Quênia que "o setor informal, urbano e rural
representa uma parte vital da economia do país, e sua existência reflete uma adaptação
necessária, e benéfica no conjunto, as limitações impos- tas pela situação econômica
predominante". Necessária e benéfica para quem? Admitir isso significa dar uma interpretação
literal às palavras de Joan Robinson (1962, p. 45): "a desgraça de ser explorado por
capitalistas não é nada comparada à desgraça de não ser explorado de nenhuma maneira". A
adoção desse ponto de vista no planejamento do circuito inferior é, para dizer o mínimo,
perigosa. Ao estabelecer objetivos setoriais, acaba-se aumentando ainda mais o setor moderno
da economia, sem contudo criar empregos e reduzir a pobreza.

A eliminação da situação de dependência do circuito inferior em relação ao circuito superior só


será possível com uma mudança estru- tural. O ideal, evidentemente, seria que "o circuito
inferior se tornasse menos inferior, mas isso só poderia ocorrer se o circuito superior se
tornasse menos superior". Do contrário, a situação de dependência continuará e até se
agravará, embora sob formas diferentes. Os estudos do setor informal não podem trazer
nenhuma contribuição, porquanto
afastam a realidade sem ao menos examiná-la. Naturalmente, o circuito inferior poderia ser
definido como um sistema, e nós já o fizemos (Santos, 1971b). Todavia, deixando de levar em
conta os níveis de decisão ou a escala como condição epis- temológica fundamental para
permitir a divisão de uma totalidade, a verdade pode ser escamoteada. É por essa razão que
não pode haver nenhum setor informal dentro de uma sociedade formal global. O todo é
dirigido pelo mesmo sistema de normas. Ainda que o sistema inferior

seja dinâmico, seu dinamismo é dependente. Desse modo, não pode ser objeto de análise ou
de planejamento que não levem em conta o dinamismo que caracteriza o outro circuito dentro
de uma economia que também é dependente.

V. TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO E DA POBREZA: CONSUMISMO OU


IGUALITARISMO?

As teorias do desenvolvimento têm sido apresentadas como soluções para corrigir as


desigualdades entre indivíduos, regiões e países. Admite-se, geralmente, que essas teorias
exigem um quadro de referência internacio- nal, ou seja, um modelo estranho aos países
envolvidos. A ideia de plane- jamento, um corolário do desenvolvimento, muito contribui para
reforçar esse ponto de vista, o chamado objetivo final, que seria encontrar medidas para
eliminar, tanto quanto possível, as disparidades. Todavia, apesar de terem decorrido trinta anos
desde que os conceitos de desenvolvimento e planejamento tornaram-se ideias-força, as
desigualdades não pararam de aumentar a nível individual, regional e internacional. A
interminável discussão a respeito do que constitui crescimento e desenvolvimento tem sido
estéril. Isso ocorre porque, ao invés de partirem da realidade, os reó- ricos tendem a adotar
uma formulação irreal como quadro de referência, perseguindo uma "ilusão", como diria
Bachelard. O medo de continuar a planejar a pobreza indefinidamente é um estímulo suficiente
para se fazer uma tentativa de abordar o problema de maneira diferente.

A extrema penúria em que vivem centenas de milhões de seres hu- manos tem sido objeto de
vasta literatura. A pobreza urbana, ou melhor, os aspectos da pobreza ligados diretamente à
urbanização, têm sido alvo de grande parte dessa atividade intelectual febril e determinada,
Contudo, o problema real encontra-se na explicação da pobreza.

TEORIAS OU SLOGANS?

Ainda que a descrição do fenômeno seja quase sempre completa e frequentemente objetiva, as
explicações para não usar o pretensioso termo "teoria" - podem ser divididas em três grupos
principais:

1) As que evitam o problema da pobreza.

2) As que abordam o problema da pobreza parcialmente.


3) As que procuram dar uma interpretação completa da pobreza. Essa situação lembra uma
história sobre Sêneca, o senador romano, que certa vez teve a ideia de exigir que todos os
escravos passassem a usar roupas iguais para distingui-los dos homens livres. Sua proposta
não chegou a ser votada, pois o Senado previu que tão logo percebessem que constituiam
maioria, os escravos se revoltariam. Essa preocupação existe atualmente, e é uma das razões
por que o problema permanece obscuro.

Muitos são os estratagemas usados para fugir do problema da pobreza. Primeiro, esse
problema é tratado como um tema de estudo à parte; a sociedade é analisada como se não
tivesse classes. Essa forma grosseira de ocultar a realidade pode ser substituída por métodos
mais elaborados. Por exemplo, a pobreza pode ser considerada uma situação de transição,
uma fase apenas, urna etapa necessária na mobilidade ascendente. As "favelas de esperança
não foram diferenciadas das "favelas de desespero"? (Stokes, 1962). Essa atitude é
semelhante aquela que admite que as pessoas podem mudar de condição através de soluções
isoladas, como por exemplo uma iniciativa individual bem orientada, educação ou capacidade
empresarial. Isso faz com que as pessoas não percam as esperanças, e ao mesmo tempo
constitui a base de una sociedade competitiva, impedindo assim que a ideia de mudança
conquiste terreno. Conforme salienta McGee (1971, p. 133), os defensores dessa posição
consideram a pobreza uma condição temporária que deve ser tolerada como inerente "ao
paroxismo do crescimento econômico".

O problema da pobreza também pode ser tratado parcialmente. Nessa abordagem, a "crise
urbana" resultaria da explosão demográfi- ca, responsável pelas migrações que a agravam. A
falta de empregos é então atribuída à chamada "pressão demográfica", que também seria
responsável pela sobrevivência de uma economia não modema ou tradicional, considerada um
obstáculo à modernização e, ao mesmo tempo, a raíz do que ainda é chamado de dualismo.
Como esses fenó- menos - pressão demográfica, desemprego, "dualismo" - apresentam certa
colincaridade, a ambiguidade aumenta e torna-se mais fácil impor soluções erróneas. A
preocupação maior é de evitar agitações e não de impedir a pobreza. É por essa razão que
encontramos tantos estudos que tratam dos "perigos" políticos da rápida urbanização.

Essas duas abordagens, uma que procura ocultar a realidade e outra que seleciona apenas
alguns de seus aspectos, são promovidas pelos meios de comunicação de massa e tornaram-
se slogans. Pouco importa se existe uma contradição entre considerar o éxodo rural nocivo e
as favelas uma esperança. Os meios de comunicação de massa também disseminam
interpretações diferentes, às vezes opostas, quando não paradoxais, do mesmo fenômeno.
Além do mais, as contradições entre as teorias são úteis para os grupos que controlam esses
meios de comunicação. Em vista dessas incongruencias, torna-se impossível encontrar uma
solução cocrente; portanto, é mais fácil insistir no pla- nejamento, que, na realidade, não
resolve nada.

Além disso, o "bom" planejador é aquele que apresenta as chama- das soluções "objetivas" e
"viáveis" dentro do sistema, de maneira a não abalar a sua continuidade e a afastar as
soluções abrangentes, com a alegação de serem inviáveis. De uin lado, existe uma confusão
deliberada entre objetividade e sobrevivência do sistema e, de outro, a não objetividade e as
propostas de mudança.

Conforme salientou Varsavsky (1969. p. 80), essa abordagem é mais fácil porque o controle
dos meios de comunicação de massa constitui uma defesa, em nome da "liberdade de
expressão", contra qualquer esforço de planejamento verdadeiramente nacional. Essa
abordagem é ainda mais incentivada pelo prestígio do cientificismo, ou seja, a atiru- de
competitiva na ciência, em nome da modernização e da integração cultural; esse consumo da
"cultura de submissão" (Schweizer, 1972) é alimentado através de bolsas de estudo e
intercâmbio entre estudiosos do assunto. Como é necessário competir na arena internacional e
parti- cipar da proliferação de publicações, de acordo com o lema "publicar ou perecer", pouco
tempo resta para a reflexão sobre outros assuntos, e menos ainda para o desenvolvimento de
uma consciência política. Assim, muitos estudiosos que começaram um trabalho diguo de con-
sideração desiludiram-se, enquanto outros que lutam a favor de uma visão total do problema da
pobreza sentem-se impotentes diante da grande inércia das lendas, solidamente estabelecidas
e que precisam ser desfeitas.

Essa tarefa é particularmente difícil, pois o assunto deve ser examinado à luz das
circunstâncias em constante mudança das con- dições atuais.

O DESENVOLVIMENTO DA POBREZA

O modelo de modernização da economia é acompanhada, segun- do Eckaus (1955, p. 548),


por imposições tecnológicas que causam a limitação de possibilidades quanto à substituição de
fatores de produção. Essa rigidez impede a expansão do mercado de trabalho. Com efeito, as
técnicas mais eficientes para a expansão industrial são concebidas como se o trabalho fosse
uma mercadoria rara (Isbister, 1971, p. 33). Embora esse modelo esteja longe da perfeição nos
países desenvolvidos, nos países subdesenvolvidos constitui simplesmente uma aberração
(Due, 1963, p. 17-18), e produz o crescimento industrial com aumento do subemprego e do
desemprego. O paradoxo da situação que isso cria foi descrito por Singer (1970, pp. 70-71) em
termos adequados: "a criação de emprego leva ao aumento do desemprego".

Quando um mercado monopolista ou oligopolista se impõe, torna- se mais difícil absorver o


trabalho excedente do que em condições competitivas. De acordo com Sylos-Labini (1969, p.
159), o problema do desemprego nesses casos é dinâmico e não estático, visto que a or-
ganização monopolista tem uma capacidade reduzida de proporcionar emprego e desvia
trabalhadores potenciais para setores da economia em geral incapazes de oferecer salários e
empregos permanentes. Não resta dúvida de que outros fatores além dos puramente técnicos
estão em jogo. As empresas maiores, principalmente as corporações multina- cionais, não
estão interessadas em usar técnicas de trabalho intensivo, porque as massas operárias, com
suas reivindicações e poder político, representam uma ameaça.

Na realidade, a pobreza está aumentando nos países subdesenvolvi- dos. Isso tanto ocorre nos
países que recentemente ingressaram no "caminho para o progresso material" como nos que
adotaram as ideias de progresso há mais tempo. "A pobreza é até coerente com o cresci-
mento rápido, se o crescimento tem origem recente" (E. A. Johnson, 1970), porque a
modernização tecnológica produz uma crescente disparidade econômica e social. Em nome do
progresso e à custa de uma injustiça cada vez maior, uma importante parcela dos recursos
nacionais são distribuídos de maneira a beneficiar aqueles que já são ricos (Peter Marris, 1962,
p. 131). Assim estabelece-se um círculo vi- cioso: à medida que a renda continua a se
concentrar, o consumo dos grupos de alta renda diversifica-se cada vez mais e o
desenvolvimento do perfil da demanda torna-se ainda mais inadequado, produzindo uma
subutilização de fatores de produção. Os pobres sofrem dupla desvantagem, pois apenas têm
acesso aos produtos que os empresários consideram lucrativos, enquanto que
simultaneamente a produção de bens de consumo popular vai diminuindo. Isso também
provoca o aparecimento de um teto do emprego e limita a seleção daqueles que podem
associar-se ao processo da modernização.

Portanto, as desigualdades de renda são mantidas, através de uma estrutura de produção


orientada para os ramos que mais se beneficiam da modernização tecnológica e que,
consequentemente, são os mais rentáveis. Como o setor capitalista não está em posição de
transferir uma quantidade suficiente de capital para o setor doméstico (Watters, 1967, p. 19),
observam-se baixas cumulativas da renda das pessoas ocupadas nesse setor.

Nas atividades de tecnologia intensiva, o emprego de trabalhadores altamente especializados


exige o pagamento de salários elevados. Esses trabalhadores não são facilmente substituíveis,
o que lhes dá um poder de barganha muito grande. Em São Paulo, 20,8% dos trabalhadores na
indústria siderúrgica recebiam, em 1968, mais de Cr$ 370,00 mensais, salário esse alcançado
apenas por 6% dos trabalhadores da indústria têxtil (Mahon, 1970, p. 67). Na Colômbia, a faixa
de salários médios de trabalhadores especializados varia de vinte para um nas indústrias de
petróleo e de vestuário. No Chile, o salário médio dos trabalhadores especializados na indústria
metalúrgica de base é dezenove vezes maior do que na indústria madeireira (Ramos, 1970, pp.
254-255).

Nessas condições, a expansão limitada das classes médias e de sua capacidade de consumo
surge como um elemento de luta e de afirmação dos setores capitalistas modernos (Niemeyer
Pinheiro, 1971, pp. 36-37). Não obstante, a interpretação dos dados disponíveis leva à
conclusão de que até mesmo essa expansão foi desacelerada recentemente. A mobilidade
social ascendente é seletiva e discriminatória, resultando em pressão mais intensa sobre os
níveis salariais das classes baixas (Sunkel, 1970, pp. 46-47). O crescimento da classe média
não torna a distribuição da renda mais igual: ao contrário, torna-se menos igual (McGee, 1971,
p. 28).

O crescimento é oligárquico e não igualitário (Ramos, 1970, p. 231), pois beneficia apenas uma
minoria. A melhoria das condições de alguns não é significativa do ponto de vista social, visto
que a renda per capita da população ativa aumenta apenas nos grupos de renda mais elevada.
Os empregados em setores estratégicos usufruem um direito de maior participação no produto
obtido na produção capitalista em troca de seu engajamento prévio na sociedade de consumo.
Não é difícil, pois, compreender porque os sociólogos da América do Sul aplicaram o termo
marginal às massas deserdadas, vítimas da evolução da produção capitalista. Queriam chamar
a atenção para o problema da pobreza, justaposto à modernização. Em consequência,
elaboraram uma teoria em torno do tema marginalidade (A. Quijano, 1970 e 1971; F. H.
Cardoso, 1971; J. Nun, 1969; R. Cardona, 1968). Na verdade, é um velho termo usado para
definir uma realidade nova. Park foi um dos primeiros a usá-lo (1928, p. 892) ao referir-se a hí-
bridos culturais, ao homem que vive "à margem de duas culturas e de duas sociedades".
Também Cuber (1940, p. 28) referiu-se a "pessoas que ocupam um lugar periférico entre duas
instituições, complexos culturais ou outros segmentos sociais diferenciados, porém em grande
parte exclusivos".

Todavia, com relação ao empobrecimento de extensas camadas da sociedade, decorrente da


economia moderna, talvez seja impróprio falar em termos de marginalidade. Embora Joan
Nelson tenha afirmado que o termo é correto (1969, p. 5), com bastante razão pergunta se na
cidade os pobres consideram-se marginais. Essa população, ou super- população, como
alguns autores preferem chamá-la, não constitui um excedente nas áreas rurais e não é inútil
do ponto de vista econômico (Bettelheim, 1950, p. 74; Niemeyer Pinheiro, 1971, p. 14). O que
houve foi uma distorção do processo de desenvolvimento através da modernização
tecnológica, impedindo a participação dessa parcela da população denominada por McGee
(1972) de "protoproletariado".

CONSUMISMO VERSUS IGUALITARISMO

Alguns autores estão atualmente começando a defender o "consu- mismo, argumentando que
as pessoas não tolerarão mais que lhes seja negado aquilo que, a seu ver, é o próprio símbolo
da promoção social. Assim, para conquistá-las deve-se dar-lhes acesso aos produtos de
consumo básico. No entanto, há certa recusa em definir quais são as mercadorias básicas e
quais não são... Não é contraditória essa atitude? O consumo, imposto atualmente á
população, é ditado pelo sistema de produção. Controlando os meios de comunicação de
massa, esse sistema pode impor uma forma predeterminada de comportamento aos
consumidores potenciais - isto é, pode distorcer seu perfil de demanda. Não se pode, portanto,
falar de livre escolha.

As firmas que controlam a produção controlam também o consumo, que é uma função da
renda e do crédito. Dessa maneira, subir na escala de consumo torna-se, paradoxalmente, um
dos objetivos da "expectati- va de ascensão", esse novo tipo de ethos imposto ao cidadão
comum por aqueles que acumulan cada vez mais, "supranacionalmente", os benefícios do
trabalho de todos.

Defender o "consumismo" pode ser uma hábil manobra política ou uma forma de oportunismo
sofisticado, com o qual provavelmente se pode conquistar o povo e ganhar o poder, sem
contudo mudar fun- damentalmente a estrutura do poder - isto é, sem colocar o povo no poder.
Como Paulo Freire (1968, p. 61) salientou de forma tão sagaz o problema da pobreza não é
uma questão de integrar a população pobre em uma estrutura opressiva, a fim de que possa
tornar-se mais parecida com o opressor, mas, sim, de transformar essa estrutura, de maneira
que cada indivíduo seja o que é.

Enfrentamos, portanto, um dilema: ou perpetuamos esse modo de consumo e ajudamos os


gigantes da indústria e do comércio, que de forma tão frequente são considerados
"opressores", ou, a fim de eliminar sua dominação, advogamos a causa da mudança nos objeti-
vos da produção, isto é, da própria estrutura de produção. Sem essa última medida, é
impossível mudar a estrutura do consumo. Impõe-se, desse modo, como tarefa preliminar,
definir os modos de consumo e a estrutura de produção que permitirão o aparecimento de uma
sociedade igualitária, uma sociedade na qual ninguém seja dominado para que outros possam
perpetuar seu papel de dominadores.

Sobre o autor:

Milton Santos, falecido em 2001, considerado um dos expoentes do movimento de renovação


crítica da Geografia, foi professor da Universidade Federal da Bahia até 1964, quando se
afastou do país em virtude do regime autoritário que se instalou. Ensinou em diversas
universidades na Europa, na África, na América do Sul e do Norte. Foi consulter da
Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OJT), de
cujo Comité para o Estudo da Urbanização e do Emprego fol membro diretor.

Doutor honons causa por universidades do Brasil, da Itália, da França, entre outras, rece- beu
em 1994 o mais alto prêmio internacional em Geograha, o Premio Vautrin Lud, cansi- derado o
equivalente ao Nobel de Geografia. Também foi professor titular da Universidade de São Paulo
e membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano.

Milton Santos é autor de vasta obra que abarca aproximadamente quarenta livros e tre- zentos
artigos, estes últimos editados em re- vistas de projeção mundial (como a norte-ame- ricana
Antipode), e em todos os textos sempre abordou questões pertinentes à cidade e ao
subdesenvolvimento.

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