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Assis
24 de novembro de 2019
Fonte: https://vermelho.org.br
HTML: Fernando Araújo.
Machado de Assis foi um escritor atento aos problemas de seu tempo, e um arguto
observador do comportamento de membros da classe dominante ante estas contradições. Sua
obra traz inúmeras e precisas referências, quase documentais, de atitudes comuns da elite
financeira, latifundiária e escravista de seu tempo.
O melhor exemplo são as referências à escravidão feitas em sua obra. Aquele era o grande
problema da segunda metade do século XIX, período em que a obra machadiana floresceu.
Há críticos que acusam Machado de não ter tido uma atitude abertamente contrária àquele
estatuto iníquo, e se surpreendem por ele (que era mestiço de negro e branco) não ter sido um
abolicionista militante. A opinião destes críticos comete aquilo a que, em escritos históricos, se dá
o nome de anacronismo. É uma forma de não compreender a atitude do escritor em seu próprio
tempo e pretender que tivesse a vontade de outro tempo, a vontade de hoje. Essa atitude impede
a compreensão completa e radical da obra do escritor ao não permitir entendê-la no quadro das
contradições de sua época.
Contra os escravos fujões havia o ofício de pegar escravos fugidos, emprego de Cândido
Neves, o pai a que o título deste conto se refere.
Sobre as fugas, Machado registra: "Há meio século, os escravos fugiam com freqüência.
Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada,
e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém
de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos
houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo [o
mercado de escravos no Rio de Janeiro – nota da redação], deitava a correr, sem conhecer as
ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos [uma forma de referir-se
aos escravos nascidos no Brasil], pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo
fora, quitandando".
A defesa da propriedade privada aparece com clareza na posição do Barão de Santa Pia, em
"Memorial de Aires" (1908), onde Machado descreve a reação senhorial à iminência da abolição.
Santa Pia era um grande senhor de terras no Vale do Paraíba, produtor de café e dono de muitos
escravos. Ele escreveu ao irmão, o desembargador Campos, sobre um boato da proximidade da
lei de abolição. Em 20 de março, quase dois meses antes da lei de abolição, o Barão pensou em
dar alforria coletiva a seus escravos. O irmão quis saber o que o levava a isso, pois "condenava a
ideia atribuída ao governo de decretar a abolição". A resposta do Barão foi um primor da
arrogância senhorial e da clara condenação da intervenção do Estado na propriedade privada:
"Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de
um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o
quero e posso". Uma independência ante o Estado típica dos atuais neoliberais, e que podia leva à
oposição ao Imperador: Santa Pia referiu-se também à reorganização do trabalho que resultaria
da abolição, que chamou de "desmantelo que [o governo] vai lançar às fazendas". E, como
comentou o desembargador Campos, seria capaz de convocar outros senhores de terras e
escravos a alforriar os escravos já, "e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-
lo por lei”. E havia também uma "esperteza" senhorial que a alforria coletiva podia representar.
Sobre ela Santa Pia disse: "Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará
comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer
onde nasceram".
O registro de Machado de Assis se refere, com certeza, ao ato de Rui Barbosa que, quando
ministro da Fazenda, em 14 de dezembro de 1890, teria mandado queimar os documentos sobre
a escravidão que existiam no ministério , para evitar pedidos de indenização pelos antigos
senhores de escravos. Pode ser – e Machado de Assis tem razão: a queima de leis, decretos e
avisos não apaga a mancha histórica da escravidão.
Há também, no "Memorial de Aires", uma sugestão sobre o destino dos ex-escravos. Quando
o Barão de Santa Pia morreu, sua filha Fidélia herdou a fazenda com os Iibertos, lá ficaram. E a
solução que ela deu à propriedade foi a que teria sido preferida de Machado de Assis: Fidélia
deixou a fazenda aos libertos. "Eles que a trabalhem para si". E Aires registrou: "Aplaudi a
mudança do plano, e aliás o novo me parece bem. Se eles [Fidélia e o marido, Tristão] não
precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos."
Há também, em "Esau e Jacó" (1904), a sugestão de que o fim da escravidão poderia ser o
prenúncio de outra revolução, mais larga. Os protagonistas, os gêmeos Pedro e Paulo, avaliaram
a abolição de maneira diferente. Para o monarquista Pedro era um ato de justiça; para o
republicano Paulo, mais radical, seria o anúncio de outra revolução, como disse num discurso
feito na Faculdade de Direito, em São Paulo, em 20 de maio: "A abolição é a aurora da liberdade;
esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco".
Machado de Assis não foi certamente um revolucionário social, embora tivesse revolucionado
as letras no Brasil. Mas, escritor sensível, percebeu as graves contradições de seu tempo, e as
registrou de maneira magistral em sua obra.
Inclusão: 12/11/2021