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COM A FORÇA DA ÁGUA

Uma visita à escritora moçambicana Paulina Chiziane,


ganhadora do mais importante prêmio literário da língua
portuguesa
José dos Remédios | Edição 192, Setembro 2022
De Maputo
O s termômetros registram 34ºC em Maputo. O calor, além de intenso, é

muito úmido. Por isso, ninguém deveria sair de casa nesta tarde de fevereiro senão
para fazer coisas indispensáveis. Mesmo assim, pelas ruas da capital moçambicana, no
sudeste do continente africano, o movimento está acelerado. As paragens dos
transportes, sem cobertura nenhuma, transbordam de gente. Às vezes, os pontos
contam com a sombra abençoada de uma árvore ou um edifício. Na maioria dos casos,
porém, nada os protege do Sol forte. Quem não pretende tomar algum rumo encontra-
se ali para vender qualquer artigo que possa converter-se em pão à mesa. Uns
negociam recargas de celulares e máscaras contra a Covid. Outros preferem tentar a
sorte do lucro com bolachas e doces baratos ou roupas doadas por pessoas de vários
cantos do mundo.

A certa altura da Avenida Guerra Popular, uma das mais agitadas de Maputo,
desponta um ônibus – ou machimbombo, no linguajar dos moçambicanos. Mesmo de
longe, consigo ver que boa parte dos passageiros viaja espremida e de pé. Uma
pequena placa apoiada no para-brisa, dentro do veículo, anuncia em tinta vermelha:
Albazine. É um bairro pobre e periférico, a 20 km do Centro. Lá, durante o período
colonial, viveu a família dos irmãos José e João Albasini, pioneiros da imprensa que
fundaram O Brado Africano em 1918. O jornal, extinto na década de 1970, lançou Rui de
Noronha, Noémia de Sousa e outros figurões da poesia moderna de Moçambique. O
nome Albazine homenageia os Albasini, apesar da grafia diferente.

Hoje, no bairro, mora a principal escritora do país. A casa simples que divide com uma
neta e um empregado tem apenas dois quartos, mas ocupa um terreno bem amplo, de
1,2 mil m². Um par de casebres, destinados às visitas, circunda a residência de paredes
bege-claras. Indiferente à azáfama doméstica, Paulina Chiziane recebe-me no quintal,
sob uma jovem mangueira. Está descalça, como de hábito, e acomoda-se numa
poltrona de madeira. O jardim onde a árvore floresce é muito colorido. De um lado,
rosas vermelhas e acácias amarelas espalham um odor fresco. Do outro, uma relva bem
verdejante evidencia a regularidade das chuvas de verão num país em que, ao longo
das demais estações, a seca dissemina fome, dor e luto nas populações rurais alheias à
existência de água canalizada.

“Nesta máscara preta e nestes óculos escuros, quase que nem te reconhecia. Vá lá,
senta-te aí”, diz Chiziane assim que me vê. Mal a conversa inicia-se, lembramos que já
estivemos juntos no mesmo quintal em 20 de outubro do ano passado, quando a
escritora ganhou o Camões, o prêmio literário mais importante da língua portuguesa.
Até então, nenhuma africana o havia conquistado. Agora, é entre gargalhadas que
Chiziane – uma negra retinta – evoca alguns episódios que a tornaram uma autora de
referência dentro e fora do país.
Num piscar de olhos, somos transportados para Manjacaze, outrora sede do Império
de Gaza, que englobava o Sul de Moçambique e o sudeste do Zimbábue no século XIX.
Em Manjacaze, reinou o imperador Gungunhana entre 1884 e 1895. Muitos o
consideram um herói audaz, por ter lutado contra o regime colonial português. Mas há
quem o mencione com desprezo e horror, por ter perseguido os chopes, povo a que a
autora pertence. Gungunhana era de outra etnia: a Nguni. Das inúmeras histórias
sobre o imperador, uma parece a favorita dos chopes, que propositadamente
ridicularizam o homem que lhes fez tanto mal. A escritora recorda que o pai dela, o
alfaiate Ricardo Chiziane, quando estava bem-disposto, contava como Portugal
derrotou o monarca, que se intitulava Leão de Gaza. Diz-se que, certo dia,
Gungunhana resolveu tirar a sesta debaixo de uma árvore e mandou os seus guerreiros
imporem silêncio em todo o império. A ordem cumpriu-se. Às tantas, porém, uma
andorinha pousou num galho da tal árvore e soltou uma caganita que atingiu o rosto
do soberano. Furioso, Gungunhana exigiu que os guerreiros andassem atrás do pássaro
malcriado. Com a partida dos melhores soldados, o imperador ficou sem segurança e,
tão logo os portugueses chegaram, o capturaram facilmente. Assim, garantem os
chopes, caiu a última resistência contra a penetração colonial em Gaza. Por causa de
uma andorinha.

A autora cresceu ouvindo essa história. Em 2009, à beira dos 54 anos (atualmente está
com 67), apropriou-se da narrativa e a transformou no conto Quem Manda Aqui?, o
primeiro dos três que compõem o livro As Andorinhas, pouco divulgado em
Moçambique e no mundo. Chiziane pretende reeditá-lo.

Foi justamente em Manjacaze que a escritora nasceu, no dia 4 de junho de 1955. À


época, a vila não abrigava mais os ngunis do antigo imperador, que se dispersaram
para outras partes do país. Já os chopes continuavam na região. A filha de Ricardo
Chiziane e da dona de casa* Adelina Khau chegou ao mundo com baixo peso e saúde
frágil. Embora fossem cristãos presbiterianos, os pais apressaram-se a consultar
curandeiros de modo a descobrir as razões de toda aquela situação e evitar a morte da
menina. Nessas sondagens, o casal ficou sabendo que, ao contrário dos seus receios, a
bebê era uma privilegiada: um poderoso espírito a elegera para se destacar entre os
conterrâneos. Mas a sobrevivência da criança dependia de alguns rituais. Um dos mais
importantes: a escolha de seus nomes ancestrais. A garota, além de Paulina, deveria
chamar-se Phangamazi e Dungamazi. Ambos os nomes remetem à água e provêm do
zulu, uma das línguas faladas na vizinha África do Sul. Antigamente, vários povos que
habitavam o atual território sul-africano emigraram para Moçambique, onde
permanecem até hoje. Phangamazi significa “mulher que luta pela água” e Dungamazi
quer dizer “aquela que, quando se zanga, tem a força da água para rebentar tudo”. A
autora usa os nomes ancestrais somente em circunstâncias religiosas.

Logo depois de recebê-los, Chiziane ganhou peso e acabou crescendo saudável, na


zona rural e em companhia de sete irmãos. Por ser a mais nova das meninas, os pais a
pouparam de muitas tarefas domésticas. Até os 7 anos, a futura escritora falou apenas a
língua chope. Só aprendeu o português quando se mudou para Lourenço Marques, a
então capital da colônia, que virou Maputo depois de Moçambique proclamar a
independência, no dia 25 de junho de 1975.
Na cidade, a rapariga morou num bairro histórico da periferia, Chamanculo, e estudou
na Missão Católica, escola de freiras onde se tornou ótima aluna. Desde cedo, ela
ativou em si o gosto pelas artes, apesar de não conviver com artistas na família. As
danças tradicionais dos chopes e o ritmo frenético da timbila, instrumento de
percussão que se assemelha ao xilofone, já a fascinavam na infância. Mais tarde, na
adolescência, a garota descobriu a pintura. Usava o pincel e as tintas “para expressar
emoções, sensibilidades e expectativas”, ainda que não lembre se fazia quadros
abstratos ou figurativos. Paralelamente, mantinha um diário, em que anotava os
próprios sonhos. Foram seus primeiros escritos.

E nquanto conversamos, um passarinho aterrissa num dos ramos da jovem

mangueira e põe-se a cantar, mais bem-intencionado que a andorinha malcriada do


século XIX. A escritora faz uma pausa, acende um cigarro e observa a ave. “Por isso,
gosto muito de estar aqui no meu cantinho. Ouvir os pássaros longe daquela agitação
do Centro. Pena que os tempos mudam rapidamente e já começa a haver barulho em
todo lado…” De fato, Albazine vem se transformando num bairro movimentado. À
frente da casa de Chiziane, passa agora uma avenida que vai dar na Estrada Circular
de Maputo. Os chapeiros – como são chamados os motoristas e cobradores dos
machimbombos – querem lá saber se por ali vive uma autora carente de silêncio para
escrever? A maior parte deles, porém, encara a residência de Chiziane como um lugar
especial. Ela sabe disso, mas não se envaidece.

Terminada a contemplação do passarinho, que se vai embora sem deixar nenhum


presente indesejado, a escritora avança da adolescência para a década de 1980. Ainda
sob os ecos da independência, a literatura moçambicana reinventou-se naquele período
e abriu mão de uma estética que se apoiava muito na propaganda política. Foi quando
Chiziane publicou as primeiras ficções na imprensa. Não era comum que mulheres
enfrentassem toda uma sociedade machista para, em vez de cuidar das panelas e do
fogão, provar que poderiam escrever. Na ocasião, a autora já havia abandonado a
faculdade de linguística por discordar das teorias baseadas no pensamento europeu.
Ela trabalhava na Cruz Vermelha, executando funções administrativas.

Em 1989, ansiosa para estrear como romancista, Chiziane aproximou-se da Associação


dos Escritores Moçambicanos (Aemo). A instituição privada encarrega-se de promover
a literatura nacional por meio de premiações, conferências, debates e edição de livros.
O jornalista Albino Magaia, então secretário-geral da entidade, recebeu da autora os
originais de Ventos do Apocalipse. A narrativa retratava os sofrimentos causados pela
guerra civil que estourou no país logo depois da independência e durou dezesseis
anos. O conflito opôs a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) – organização
de esquerda que derrotou os portugueses e implantou um regime de orientação
marxista-leninista – e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), grupo
guerrilheiro de direita que queria derrubar o novo governo. Magaia apreciou a trama,
mas disse que a associação não iria publicá-la. O país vivia dias difíceis, explicou.
Iniciada em 1976, a guerra civil afetara a produção agrícola, já castigada pela seca, e
provocou o racionamento de comida. Em consequência, a fome tomou conta de tudo.
Como havia se convertido num Estado marxista-leninista, Moçambique absteve-se de
relações com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, o que agravou a
situação. A crise atingiu o setor artístico, e a Aemo deixou de ter dinheiro para editar
projetos com mais de oitenta páginas.

Magaia apresentou uma alternativa: e se a principiante reduzisse as quase trezentas


páginas de Ventos do Apocalipse para oitenta? Apegada aos personagens como aos dois
filhos, Chiziane recusou-se veementemente. “Diminuir meu livro? Nem pensar!
Melhor partir para outro.” Ela arquivou a ficção e, em um ano, produziu uma nova,
bem menor: Balada de Amor ao Vento. Lançada na sede da Aemo, em Maputo, no dia 14
de setembro de 1990, a obra fez história. É o primeiro romance publicado por uma
moçambicana.

Em Balada de Amor ao Vento, a camponesa Sarnau casa-se com o rei Nguila, apesar de
gostar do plebeu Mwando desde a adolescência. Num determinado momento, resolve
ser dona do próprio destino, abandona o monarca e assume a velha paixão, o que a
conduz à miséria. Durante a tormentosa jornada, a moça questiona as decisões de sua
família, as tradições religiosas, o poder do rei e as convenções sociais. O enredo instiga,
assim, o debate sobre a condição da mulher africana. Ainda hoje, os moçambicanos
insistem em restringir a liberdade feminina, especialmente a das raparigas, que nas
zonas rurais são dadas como aptas para casar tão logo menstruam pela primeira vez.
Isso reflete diretamente nas altas taxas de desistência escolar. Segundo o Ministério da
Educação e Desenvolvimento Humano, 14 mil meninas deixaram os estudos por causa
da gravidez e dos casamentos prematuros em Moçambique, entre 2014 e 2018.
Geralmente, a evasão acontece no sétimo ano de escolaridade. Cerca de 8 milhões de
crianças frequentam o ensino primário no país, que termina justamente na sétima série.

Até o advento de Chiziane, a literatura moçambicana criticava pouco a sociedade


machista. Com Balada de Amor ao Vento, a escritora demonstrou que as mulheres não
devem fechar os olhos para os erros dos homens nem aceitar a servidão, mesmo que
paguem caro pela ousadia de desafiar as tradições.

N a casa da escritora, uma porta é aberta. Do interior, sai um homem alto de

45 anos. Chama-se Domingos, mas Chiziane trata-o por Duque. É o filho mais velho
dela. Ele senta-se numa cadeira de plástico, voltado para o Sol que mal se vê devido às
sombras das diversas árvores no quintal. São 18 horas, e a temperatura está baixando.
Agora, os termômetros marcam 29ºC. Ao inteirar-se da conversa, Domingos pergunta:
“Minha mãe te disse em que condições costumava escrever?” À resposta negativa, o
filho conta que, quando ele e a irmã, Salomé, eram miúdos, Chiziane acordava bem
cedo, punha-se à mesa da cozinha e enfrentava o papel em branco. Para se prevenir do
frio da madrugada, usava um pesado casaco. Se o traje fosse insuficiente, a autora
caminhava até o fogão e o deixava aceso. “Ficar perto do fogo enquanto escrevo é
essencial. Até hoje.” Ela não entra em detalhes sobre a peculiaridade porque mal lhe
sabe explicar as razões. Antes de ser expulso da conversa por estar a contar os segredos
da escritora, Domingos acrescenta: “Lembro que, depois de o Sol raiar, já sob um calor
considerável, Salomé e eu íamos ter com a minha mãe e pedíamos que retirasse o
casaco. Ela não nos dava a mínima. Conservava-se ali, sentada, quieta, a escrever à
mão, com o fogão ainda aceso.” A autora confirma, sorrindo: “Os miúdos
incomodavam, e eu mandava-lhes passear.” Sem precisar ouvir mais nada, afinal a
sentença da sua retirada estava traçada, Domingos levanta-se e some pela mesma porta
que abrira dez minutos antes.

Já com um romance nas livrarias, Chiziane continuava a querer publicar o


anterior, Ventos do Apocalipse. Como nenhuma editora interessou-se pela narrativa, a
escritora lançou-a com recursos próprios em 1995. Mais tarde, confiou os originais
datilografados em papel A4 à dramaturga e curadora austríaca Margit Niederhuber,
que passava uma temporada em Maputo e assessorava o artista plástico moçambicano
Malangatana. Ela dissera à escritora que possivelmente conseguiria arranjar um editor
na Europa. Em 1997, uma tradução da obra saiu na Alemanha pela Brandes & Apsel,
sem chamar muita atenção.

Em outubro do mesmo ano, aconteceu a Feira do Livro de Frankfurt, o evento literário


mais importante do mundo, mas o governo de Moçambique e a Aemo não convidaram
Chiziane para representar o país no evento. Nem por isso a autora se intimidou.
Financiou a viagem e desembarcou na feira sem conhecer ninguém, exceto seu editor
alemão. “Na verdade, eu não sabia direito aonde ia”, admite. Ela ficou num pequeno
estande, fora do salão principal, onde expôs a tradução de Ventos do Apocalipse. De
repente, apareceu um jornalista: “A senhora é moçambicana?” A escritora respondeu
que sim. “A senhora fala português?” Que pergunta! “Claro, estou a falar consigo em
português, ora essa.” O jornalista não se incomodou nada com o tom meio ríspido.
Continuou a fazer o seu trabalho de prospecção: “Por que a senhora está cá fora e não
no salão dos atos nobres?” A resposta foi dada sem divagações: “Sei lá… Frankfurt é
esta feira, e cada um vem como pode.”

O que parecia uma conversa banal teve uma repercussão imensa. O jornal alemão para
o qual o repórter lusófono trabalhava publicou uma notícia mais ou menos assim:
enquanto os grandes celebram no salão principal, uma escritora negra exibe seus livros
num estande como que a pedir esmola. Nos dias seguintes, uma vaga de jornalistas
procurou a moçambicana, querendo saber tudo sobre ela.

Chiziane levanta-se da poltrona. Ajeita a almofada que está quase a cair no chão. “Em
Frankfurt, vi editores portugueses. Vários”, relembra. Atraídos pelo burburinho da
imprensa, cinco representantes de editoras lusas fizeram propostas à escritora. Ela
acabou escolhendo a Caminho, que já publicava autores de Moçambique e Angola.
“Sou o que sou graças a isso. Comecei de fato na Alemanha.” Em 1999, a Caminho
lançou Ventos do Apocalipse. A seguir, colocou no mercado O Sétimo
Juramento (2000), Niketche: Uma História de Poligamia (2002), Balada de Amor ao
Vento (2003) e O Alegre Canto da Perdiz (2008). Ainda hoje, Chiziane tem contrato com a
editora em Portugal.

Além daqueles romances e do livro de contos As Andorinhas, a moçambicana escreveu a


coletânea de poemas O Canto dos Escravizados (2017), o infantojuvenil Tenta! (2018) e
três obras ensaísticas, assinadas com coautores, que tratam de religião: Na Mão de
Deus (2012), Por Quem Vibram os Tambores do Além (2013) e Ngoma Yethu: o Curandeiro e
o Novo Testamento (2015). Quero Ser Alguém (2010), por sua vez, apresenta 43 histórias
baseadas em testemunhos de crianças com HIV. Já A Voz do Cárcere (2021) reúne
depoimentos de homens e mulheres que se encontram presos em Moçambique. A
própria escritora e o filósofo Dionísio Bahule colheram os relatos. Depois do alemão, as
narrativas da autora foram traduzidas para o espanhol, francês, italiano, sérvio, croata
e inglês.[1]

A inda de pé, Chiziane cala-se e abandona o local da conversa sem qualquer

promessa de retorno. Escusa-se dizer que caminha descalça. Vai dar uma volta ao
outro lado da casa, como que a cavar memórias. O Sol já quase nem se vê. A brisa do
anoitecer deixa cair flores da acácia. “Podemos continuar”, avisa a escritora, depois de
se ausentar por quinze minutos. Ela senta-se novamente e confessa nunca ter pensado
fazer da literatura uma missão. “Sou uma pecadora, uma mulher comum. Não quero
ser missionária de coisa nenhuma. Esforço-me apenas para ser livre. O que realizei até
aqui foi por amor ao meu povo, à minha cultura.”

A liberdade a que se refere implica principalmente remar contra a maré num mundo
dominado pelo masculino. “Tudo é sempre em nome do pai. Em nome da mãe,
jamais”, lamenta. Na opinião da escritora, o descompasso ocorre porque tanto as
religiosidades tradicionais do país quanto o sagrado cristão desprezam o feminino. “O
Antigo Testamento está muito próximo das crenças patriarcais bantu. A mulher é
excluída desde o nascimento. Ela nunca teve espaço para expressar a sua voz mais
profunda.” Em Moçambique, o catolicismo divide espaço com o protestantismo, o
islamismo e as tradições bantu – dos curandeiros, que fazem a ponte entre os vivos e os
mortos. Vários moçambicanos acreditam em Cristo ou no profeta Maomé, mas também
nos próprios antepassados, a quem pedem benesses e proteção, inclusive contra
feitiços. Embora não se considere mais cristã, a escritora mantém a fé em seus espíritos
ancestrais.
Todos os romances de Chiziane são atravessados por questões relacionadas à condição
da mulher, sobretudo às amarras culturais, políticas e religiosas que tornam muito
estreito o horizonte das africanas. Niketche, por exemplo, coloca em xeque uma antiga e
recorrente prática moçambicana: a poligamia masculina. Trata-se do livro mais lido e
traduzido da autora. É tão popular que Chiziane já nem quer ouvir falar dele. Quando
descobre que o marido mantém diversas relações extraconjugais, Rami, a esposa oficial
e protagonista da trama, vai procurar as amantes. De início, as insulta, mas logo se
arrepende e decide lutar pelos direitos de cada uma. Por tabela, vira porta-voz das
insatisfações emocionais e sexuais que as mulheres de Moçambique costumam ocultar
ao se verem enredadas num sistema matrimonial que as rebaixa. Apesar de não
reconhecida judicialmente, a poligamia dos homens é muito comum em todas as
regiões do país e nem sempre se dá às escondidas. Com frequência, os parentes das
noivas só as liberam depois de receber o lobolo – indenização que o noivo paga, em
dinheiro ou espécie, para tirar as moças da casa paterna e incorporá-las à nova família.
Outro costume que ainda persiste é o levirato, a obrigação de a viúva se unir a um
irmão do marido morto, mesmo que seja casado.

Assim que Niketche veio a público, houve acadêmicos que acusaram a autora de estar a
levar feminismos à literatura, um lugar sagrado. As objeções nunca apareciam por
escrito. Eram feitas nos bares, em reuniões sociais ou nas salas de aulas. Maledicências
semelhantes já corriam quando Chiziane lançou o primeiro livro. Àquela altura, dizia-
se que a autora explorava temas menores e não conseguiria impor-se no ofício. “As
críticas afetaram-me sempre. Mas a minha sorte tem a ver com a minha forma de ser.
Quando alguém me provoca e se julga forte, nesse momento eu fico calada. Depois, lhe
digo: ‘Espera aí que tu vais saber quem sou.’ Diante de um obstáculo, ninguém me
vence. Pode-me vencer hoje, mas vou recuperar-me e mostrar que a razão está do meu
lado. A minha escrita sempre foi saltar barreiras, desde o princípio. Por isso, fico muito
grata aos meus adversários. Sem eles, eu não teria chegado até aqui.”

A presença de Chiziane no meio literário obrigou os estudiosos a levarem em conta a


situação das mulheres mesmo ao analisarem o trabalho de outros escritores. O assunto
resultou incontornável – e não apenas na academia. Os meios de comunicação, os
políticos e os artistas também passaram a abordá-lo com mais regularidade. Hoje, ao
lado da poeta Noémia de Sousa (1926-2002), Chiziane é o maior nome feminino da
literatura de Moçambique. Seu prestígio contribui para que autores em ascensão
atinjam o mercado internacional. Editores estrangeiros que admiram a escritora
acabam prestando mais atenção no que os compatriotas dela estão produzindo.

Além de questionar e redefinir o papel das moçambicanas na sociedade, os livros de


Chiziane incorporam – e, muitas vezes, reinventam – as diferentes oralidades que se
espalham pelo país. Não por acaso, ela rejeita enfaticamente a classificação de
romancista. Prefere se intitular uma contadora de histórias. Afirma não estar
preocupada com os conceitos à volta do romance nem com os aspectos técnicos que
definem o gênero. Deseja apenas contar.

Quem lê a ficção de Chiziane desemboca inevitavelmente num realismo mágico à


africana. Os rituais, as poções, os feitiços e as palhoças dos curandeiros se fazem muito
presentes nas narrativas. O Sétimo Juramento, um dos melhores romances da escritora,
exemplifica bem esse aspecto. O personagem principal, David, é um ex-revolucionário
que agora dirige uma empresa à beira da falência. Na tentativa de manter seus
privilégios, sai em busca de feiticeiros. Como tende a acontecer nesse tipo de
negociação com as forças das trevas, o executivo terá de matar para alcançar o que
deseja e, assim, colocará em risco os próprios familiares. O Sétimo Juramento, no fundo,
é a miniatura de Moçambique, um universo onde as diversas crenças religiosas ora
convivem, ora se confrontam. O catolicismo dá certo alento para a família de David.
Ele e a mulher Vera, com quem tem dois filhos, sempre vão rezar à igreja e
demonstram profunda devoção num Deus único, onipotente e onisciente, que lhes
oferece a chance de encontrar paz na eternidade. Longe dos olhares, porém, o
executivo invoca uma conexão com espíritos poderosos, capazes de solucionar
problemas materiais graves. Ou seja: a fé católica funciona bem para a ideia de futuro,
de um paraíso a ser alcançado depois de o mundo acabar. Já a fé bantu é mais
imediatista, mais terrena.

Com um enredo como esse, a escritora mexeu em alguns tabus. Apesar de recorrerem a
curandeiros e feitiçarias, os moçambicanos evitam abordar o tema publicamente.
Chiziane é uma das raras personalidades que ousam fazê-lo. Agindo desse modo, ela
afronta a autoridade das igrejas cristãs e legitima a tradição bantu. Uma coisa é toda
gente saber que aqueles costumes existem. Outra é aparecer alguém como Chiziane a
dizer que se deve valorizá-los, embora não cegamente.

Também quando se distancia da ficção, a autora contesta o status quo. O livro


ensaístico Ngoma Yethu: O Curandeiro e o Novo Testamento mostra como o cristianismo
trazido à África pelos colonizadores europeus alimentou os preconceitos contra as
religiosidades locais. Enfatiza, ainda, que as tradições bantu não são necessariamente
antibíblicas e que é possível vivenciar os ensinamentos de Cristo sob um viés
afrocentrado. Chiziane escreveu a obra em parceria com Mariana Martins, uma
curandeira de formação cristã. Logo nas frases iniciais do ensaio, a dupla deixa bem
claro que se norteia por um ponto de vista decolonial: “O cristianismo foi a arma [do
colonialismo] através da qual se fez e ainda se faz a expropriação das mentes africanas,
num processo de usurpação do ser.”

Em novembro de 2013, dois anos antes de lançar o livro, a escritora discorreu sobre
assunto similar durante uma palestra na Primeira Feira Literária Brasil-África de
Vitória, no Espírito Santo: “Por incrível que pareça, no meu país, falar de africanismo é
quase um tabu. Os africanos independentes ainda reproduzem os estereótipos do
colonizador sobre si mesmos. Todo negro que foi submetido à dura repressão colonial
começou a olhar-se com medo de si próprio. Ele autorreprime-se. Fica vigilante de si
próprio para não fazer algo que desagrade o opressor. Por temer nova repressão,
talvez, adotou o discurso do colonizador. Começou a condenar-se constantemente e a
aceitar como verdades as teorias de quem domina. A repressão foi de tal maneira
violenta que, muitos anos depois das independências em África, o cidadão comum
parece temer fazer uma reflexão sobre si mesmo, recalcando-se com medo do regresso
da repressão da sociedade ocidentalizada. Muitos de nós ainda têm medo de abordar a
nossa essência dentro do nosso próprio território. […] A religião, a medicina, o
pensamento, quando é africano, é etiquetado logo de tradicional. Quando é europeu, é
considerado moderno. Isso ainda nos priva de dar passos em direção a nós mesmos,
com medo de sermos vistos como tradicionalistas, atrasados, supersticiosos etc.”

Mal Ngoma Yethu chegou às lojas, algumas igrejas pentecostais indignaram-se com a
escritora. Nenhuma se manifestou às claras, mas Chiziane tomou conhecimento da
revolta. Curiosamente, o livro esgotou em pouco tempo, e não faltaram teorias da
conspiração. Acredita-se que certas igrejas compraram praticamente todos os
exemplares e os queimaram. Nos cafés de Maputo, o boato correu solto, mas ninguém
nunca o comprovou.

A par de Mia Couto, Chiziane é a autora moçambicana que mais vende no país e no
estrangeiro. Todos os títulos dela, até os recentes, estão em reedição. Alguns foram
adotados por escolas públicas e particulares de Moçambique. Niketche tornou-se leitura
obrigatória para o acesso à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2022 e
2023. Difícil precisar quanto a escritora já faturou, mas sabe-se que o mercado local é
muito pequeno. Um livro vira best-seller se vender somente 1,5 mil exemplares – num
país com 30 milhões de habitantes. Por isso, a autora não sobrevive apenas de direitos
autorais. Também ministra palestras, orienta pesquisas, envolve-se em projetos
humanitários e participa de debates. Outros ficcionistas moçambicanos de destaque são
Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Aldino Muianga, Marcelo Panguana
e Luís Carlos Patraquim.

“Não escrevo para agradar ninguém”, costuma proclamar Chiziane, mesmo ciente de
que hoje tem uma legião de admiradores e boa recepção crítica. A literatura lhe parece
uma confrontação necessária. “Habituei-me à condição de ser incômoda, ainda que o
conflito não faça parte de minhas motivações.” Em 2016, fatigada de tantas batalhas, a
autora quase atirou a toalha ao chão. No programa Artes & Letras, transmitido por um
dos principais canais moçambicanos de televisão, o STV, ela anunciou que iria largar o
ofício. “É normal que alguém se canse de certa profissão e mude. Não gostaria de
voltar a escrever, não. Posso publicar eventualmente qualquer coisa, mas escrita como
carreira, basta! Chegou a minha hora de sentar”, prometeu à época – e não cumpriu.

I nstituído pelos governos de Portugal e do Brasil em 1988, o Prêmio Camões já

agraciou treze brasileiros, como Jorge Amado, Rubem Fonseca, João Cabral de Melo
Neto, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Dalton Trevisan,
Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro e Chico Buarque. Entre os portugueses, estão José
Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa-Luís, Miguel Torga e
António Lobo Antunes. O prêmio também foi concedido aos moçambicanos José
Craveirinha e Mia Couto, ao angolano Pepetela e ao cabo-verdiano Germano Almeida.
Para Chiziane, porém, o Camões parecia nem existir mais. Fazia tempo que a escritora
não o acompanhava. Até que, em 20 de outubro do ano passado, o telefone dela tocou.
Era de tarde, e Chiziane – que se gaba de cozinhar bem – preparava mboa, verdura
que se come com amendoim e coco, muito apreciada no Sul de Moçambique. “Ligo
para informar que a senhora é a grande vencedora do Camões 2021”, disse a voz que se
encontrava do outro lado da linha. A autora desconfiou. Pensou ser brincadeira e
recusou-se a acreditar. No entanto, porque contra fatos há poucos argumentos,
Chiziane acabou percebendo que o dia aparentemente banal terminaria de maneira
espetacular. Quando desligou o telefone, todo um percurso foi-lhe à memória. Ela
recordou-se da sua origem, das suas lutas e dos seus personagens. A panela de mboa
queimou. A emoção tomou conta da casa, e ninguém se lembrou de sentir fome.
Naquela noite, não houve jantar. Quando a notícia ultrapassou os limites de Albazine,
o celular da escritora começou a tocar incessantemente. Chegou um momento em que
ela já não conseguia atendê-lo. Restou à sua neta de 21 anos, Rita, assumir a missão de
secretária.

Nos dias que se seguiram, Moçambique entrou em festa. As redes sociais, as tevês, as
rádios, os jornais e os frequentadores dos cafés não falavam em outra coisa. “Paulina,
Paulina, Paulina… Nós te amamos! Parabéns!” Os críticos de outrora se calaram, e o
país comemorou o triunfo como se fosse uma façanha esportiva. Com a popularidade
de Chiziane em alta, lá surgiram os convites. “Tive propostas de costureiros para me
vestir e de cabeleireiros para me pentear.” Até estilistas sul-africanos a procuraram. Ela
mandou essa gente toda passear, como gosta de dizer. “Meu corpo não é cabide e
adoro um penteado despenteado”, explicou-lhes, bem-humorada.

O Camões veio a calhar numa altura em que a escritora estava txonada – sem dinheiro,
no linguajar local. Os 100 mil euros do prêmio, que ainda não foram pagos, servirão
principalmente para saldar dívidas e acelerar reformas em sua casa. Com a quantia,
correspondente a 6,5 milhões de meticais, a moeda de Moçambique, é possível comprar
um apartamento confortável num prédio antigo de Maputo, daqueles construídos há
cinquenta anos, durante o período colonial. Imóveis equivalentes e mais novos podem
atingir preços muito superiores.

Desde outubro, Chiziane pergunta-se por que fez jus à honraria, mas até agora não
achou nenhuma resposta satisfatória. A explicação oficial pouco a convence. Formado
por seis integrantes (dois portugueses, dois brasileiros, um bissau-guineense e uma
moçambicana), o júri do Camões afirma que a premiou devido à “sua vasta produção”,
ao “reconhecimento acadêmico e institucional da sua obra”, à “importância que dedica
nos seus livros aos problemas da mulher africana” e a “seu trabalho recente de
aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e
outras artes”.

Não obstante a satisfação da vitória, o Camões tem ensinado Chiziane sobre as


limitações humanas. Mais do que nunca, ela vem recebendo convites para viajar a uma
série de países, em especial Angola, Brasil, Portugal e Alemanha. Entretanto, como é
evidente, não consegue aceitar a maioria das propostas. “Todo mundo quer estar
comigo e eu com todo mundo, mas onde encontro as energias e a capacidade? O
prêmio trouxe-me ao meu lugar de pequenez. Não passo de um grão de areia.”

Depois da conquista, os pedidos de reedição dos seus títulos explodiram. O súbito


interesse, por um lado, lhe agrada. Por outro, a inquieta, em razão de velhos traumas.
Há onze anos, Chiziane estava insatisfeita com a editora moçambicana que publicava
sua obra, a Ndjira, do grupo português LeYa, o mesmo que administra a Caminho. A
escritora rescindiu o contrato e imaginou que tudo ficaria em paz. No entanto, a Ndjira
continuou a imprimir os livros sem o conhecimento da autora. Em 2021, quando se
apercebeu do sucedido, Chiziane revoltou-se publicamente contra a antiga casa, que se
desculpou e prometeu reparar o erro. O episódio levantou algum debate sobre os
direitos autorais no país.

A partir de então, a escritora já não quer saber de entregar seus títulos a ninguém de
Moçambique. Por isso, a Matiko & Arte – pequena editora que Chiziane abriu em 2015
– almeja republicar aos poucos todo o catálogo da autora, sempre com tiragens de
quinhentos exemplares ou menos e o patrocínio de instituições locais. Matiko é uma
expressão da língua chope para convocar e dignificar espíritos ancestrais.

Em 2016, o cineasta mineiro Joel Zito Araújo lançou Niketche – a Rainha das Rivais, série
de televisão inspirada no livro da autora. As atrizes negras Adriana Lessa, Sheron
Menezzes, Erika Januza, Roberta Valente, Juliana Alves e Léa Garcia compuseram o
elenco, além do ator angolano Ery Costa. O diretor agora planeja realizar um longa-
metragem a partir do romance. Outro cineasta do Brasil, Renan Ramos Rocha, assinou
o documentário Paulina Chiziane – Do Mar que nos Separa à Ponte que nos Une. O filme
registra uma visita que a escritora fez à Universidade Federal de Santa Catarina em
2019.

Embora ainda não tenha chegado ao cinema moçambicano, a obra da escritora é


adaptada para os palcos com alguma continuidade. No dia 23 de outubro de 2020, por
exemplo, Chiziane assistiu à montagem de Na Mão de Deus. Dirigida pela célebre atriz
moçambicana Lucrécia Paco, a peça integrava a programação da Feira do Livro de
Maputo, que homenageava a autora. O livro parte de um episódio real: a internação de
Chiziane na ala psiquiátrica de um hospital ao longo de uma semana, em 2010, devido
a uma crise depressiva. A experiência motivou a escritora a colher depoimentos de
outras internadas e, com base neles, criar Alice, protagonista do ensaio. A personagem
é uma mulher bem-nascida que se vê acometida por alucinações de natureza religiosa.
Chiziane escreveu Na Mão de Deus em parceria com a médium Maria do Carmo da
Silva.

Enquanto acompanhava o espetáculo, a escritora chorou silenciosamente. Como estava


de costas para o público, já que se encontrava na primeira fila, poucos viram as
lágrimas. Ainda bem que as câmeras das tevês captaram a emoção do instante.
“Aquela encenação marcou-me muito. Foi um trabalho maravilhoso”, recorda a autora.
R ita surge entre as árvores e, sem qualquer cerimônia, interrompe a conversa.

“É filha do Duque”, esclarece a avó, que tem mais quatro netos. Mal resolve o assunto
doméstico com a matriarca, a jovem vai tocar violino num canto do quintal.
Instrumentista amadora, Rita executa uma peça de Beethoven. A escritora levanta-se
de novo e caminha ao interior da casa. “Quero-te mostrar uma coisa.” Quando
regressa, traz o CD Cantos de Esperança, que gravou em 2019. Chiziane canta?! Sim,
canta. Nunca estudou música, mas solta a voz por diversão há muito tempo. Chegou,
inclusive, a estrelar um show em Moçambique e outro em Angola. Ela mesma escreveu
as letras das doze canções do álbum, o único que ousou lançar até agora. A direção
artística do projeto coube a Eduardo Salmo, que em certo momento aparece no quintal
e é convidado a participar da conversa. Por razões exclusivamente afetivas, o poeta e
produtor de 31 anos chama a escritora de avó.

A autora põe o disco no aparelho de som, montado no próprio quintal, e assume o


controle remoto. Vai tocando faixa por faixa. As composições exibem ritmos variados.
Ora se inspiram nas melodias dos pássaros ou emulam os coros das igrejas evangélicas,
ora transitam pelo reggae e hip-hop ou por sonoridades típicas do país, como a
marrabenta.

Cantos de Esperança tem a participação dos intérpretes Grande Homem, Fermina da


Neta, Helena Promisse e Larícia Rita. Um dos maiores rappers moçambicanos,
Azagaia, também integra o álbum. A colaboração dele, afirma Salmo, acabou
prejudicando a promoção do trabalho – de tal modo que nenhuma televisão ou jornal
cobriu o espetáculo de lançamento do disco. Desde o início da carreira, em 1997,
Azagaia faz uma oposição inteligente e incisiva às lideranças políticas de Moçambique,
que hoje é uma democracia presidencialista, ainda governada pela Frelimo. Em 2008, o
artista incendiou o país com Povo no Poder: Já não caímos na velha história/Saímos pra
combater a escória/Ladrões/Corruptos/Gritem comigo pra essa gente ir embora/Gritem
comigo, pois o povo já não chora. O rap lhe custou uma intimação para se apresentar na
Procuradoria-Geral da República, sob a suspeita de atentar contra a segurança
nacional.

Tão logo o aparelho de som toca a quinta canção do álbum, os presentes se empolgam
e aplaudem: Quando o amanhã chegar/Quando o novo Sol nascer/Vós sereis a luz do
mundo/Meu povo de África. Chiziane fica encabulada, mas tenta disfarçar. A conversa já
vai longa. Estou no quintal há quase oito horas e sei que não esgotamos nada. A
trajetória da escritora é um mar sem fim. Um ponto, ao menos, restou claro. A autora
quer seguir adiante sem pressões, realizando o que gosta e quando bem entender.
Imensas vezes repetiu a frase: “O Camões vale pelo que fiz e não pelo que vou fazer.”
Ela garante que continuará a viver de forma simples e descomprometida. Ninguém vai
tirar essa ideia de sua cabeça teimosa. Quando finalmente me levanto da cadeira,
lembro que nem conversamos sobre outras condecorações da autora: a Medalha de
Mérito Artes e Letras, oferecida por Moçambique, o grau de Grande Oficial da Ordem
Dom Infante Henriques, concedido pelo Estado português, e o grau de Oficial da
Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, uma láurea brasileira. Chiziane sorri e dá de
ombros, como se não levasse nenhuma daquelas honrarias muito a sério. Satisfeito,
despeço-me, cruzo o portão do quintal e enveredo pelos ermos do bairro Albazine.

No Brasil, Paulina Chiziane lançou Niketche: Uma História de Poligamia pela


[1]

Companhia das Letras, O Alegre Canto da Perdiz pela Dublinense e As Andorinhas, O


Canto dos Escravizados e Tenta! pela Nandyala.

*Uma versão anterior da reportagem informou equivocadamente que Adelina Khau


era empregada doméstica. No português de Moçambique, as donas de casa são
chamadas de domésticas. Daí o equívoco.

José dos Remédios

É jornalista, ensaísta e professor de literatura moçambicano. Publicou O Horizonte e a


Escrita (Fundza)

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