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SUMÁRIO

SUMÁRIO
NOTA DA AUTORA
CAPÍTULO I – A PUNIÇÃO
CAPÍTULO II – O ACORDO
CAPÍTULO III – O LABIRINTO
CAPÍTULO IV – A DAMA
CAPÍTULO V – O ELÍSIO
CAPÍTULO VI – A PRIMAVERA
CAPÍTULO VII – OS TITÃS
CAPÍTULO VIII – A COLHEITA
CAPÍTULO IX – A MARÉ
CAPÍTULO X – A FÚRIA DO DEUS
CAPÍTULO XI – O TESTE
CAPÍTULO XII – A NOITE
CAPÍTULO XIII – A FEITICEIRA
CAPÍTULO XIX – O MONTE ETNA
CAPÍTULO XX – SANGUE DIVINO
CAPÍTULO XXI – A PROFECIA
CAPÍTULO XXII – O POETA
CAPÍTULO XXIII – A AURORA
CAPÍTULO XXIV – O PASSADO
CAPÍTULO XXIV – O TRAIDOR
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
ÁRVORE GENEÁLOGICA DOS DEUSES GREGOS
A Rainha Prometida:
Hades & Perséfone.

Copyright December 2023 por Helena Lopes

Preparação de texto e edição: Helena Lopes


Capa: Ellen Ferreira

Todos os direitos reservados. Este livro ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por
escrito, do autor ou editor. Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes,
títulos, lugares e situações ou são frutos da imaginação da autora e usados
de forma ficcional. Qualquer similaridade com pessoas, situações, nomes
ou fatos são mera coincidência.

PLÁGIO É CRIME.
NOTA DA AUTORA
Eu sempre quis escrever uma releitura do mito do Hades e da
Perséfone, já que é meu mito grego favorito. Seis meses atrás eu tinha o
esqueleto de uma história, mas esta não fluiu.
Então, absolutamente inspirada pelo romance A Touch of Darkness e
a história do musical Hadestown, a história deste livro veio a mim como
uma epifania. Escrito em 17 dias. 80 mil palavras, Hades e Perséfone me
encontraram.
Nesse livro você vai encontrar paixão, redenção e muito amor.
Amor meu, amor de Perséfone e amor de Hades.
Vocês vão perceber que os personagens desse livro se encontram
perdidos o tempo todo. Não é ao acaso.
Eu sou eternamente grata por ainda estar aqui, viva, para poder
contar histórias como essas. Escrever salvou minha vida incontáveis vezes.
Escrever me deu e dá a oportunidade de encontrar meu ar sempre que me
vejo perdida.
E é por isso que escrevi esse livro. Para me encontrar.
Espero que você também se encontre.
Aproveite a leitura e bem-vindos ao mundo dos deuses deliciosos ;)

Esta obra contém temas que podem ser gatilhos e sensíveis para algumas
pessoas, como: depressão, violência física, violência doméstica e sexual;
assédio sexual; descrições de morte; suicídio. Contém cenas eróticas
descritivas. Idade de leitura recomendada: 18 anos.

PLAYLIST SPOTIFY DE
A RAINHA PROMETIDA:
Para aqueles que abandonaram a esperança e entraram no inferno.
Bem-vindos ao mundo dos deuses.
“If i cannot move heaven, I will raise hell”
Virgil

“Quero fazer com você o que a primavera faz com as cerejeiras”


Pablo Neruda
CAPÍTULO I – A PUNIÇÃO

O sol se erguia sobre o vale


das almas, no horizonte do
submundo.
Perséfone, mais uma vez, acordou ao ouvir uma voz que a chamava.
Uma cantiga antiga que ouvira certa vez em seus sonhos.
Muito daquele mundo ainda a surpreendia. Depois de quatro anos
ali, aquela parte do dia havia se tornado a sua favorita. E quando estava de
volta ao mundo dos vivos, ela se pegava querendo retornar, para escutar a
voz, para assistir o amanhecer acima daquilo que não tinha mais vida.
Perséfone viu sua mãe pela última vez ao completar dezoito anos.
Sua mãe, Deméter, deusa da colheita, tinha lágrimas em seus olhos quando
partiu.
Ela lembrava-se do toque de sua mãe quando desapareceu no ar,
após mais uma vez lhe pedir perdão sem dizer uma só palavra. Em suas
mãos, Perséfone fora deixada uma flor. Uma flor que nunca tinha sido
permitida ser plantada nos palácios onde cresceu. Uma for de narciso.
A flor era amarela como o sol de primavera e significava seu
destino.
Seis meses no mundo dos mortos e seis meses no mundo dos vivos.
Aquela era a punição que sua mãe havia recebido, milênios antes,
após tentar assassinar um dos deuses mais poderosos do Olimpo. Sua
primeira e preferida filha teria de passar metade da existência no mundo
inferior.
Os primeiros anos não haviam sido fáceis. Perséfone estava
constantemente sozinha e as vozes vindas do vale das almas a assustavam.
Apesar de ser, assim como sua mãe, uma deusa, a deusa da primavera, ali,
naquele mundo que não era vivo, não era nada mais do que uma garota
perdida, servindo a sentença e a punição dada a sua mãe.
Quatro anos haviam se passado desde a última vez que vira sua mãe
e, agora, tudo estava diferente.
Quando o sol se posicionou sobre as permanentes nuvens de fumaça
que vinham do tártaro, Perséfone virou uma xícara de chá o mais rápido que
pôde e correu para seu pequeno jardim atrás de seu – ainda menor – chalé.
O chalé havia sido dado a ela pelo mensageiro dos deuses, Hermes,
assim que ele soube da punição de Deméter e o que Perséfone precisaria
fazer quando completasse dezoito anos. Ela o conhecia há alguns anos e ele
estava constantemente por ali, fazendo entregas e entregando mensagens ao
rei do submundo, Hades; um dos três deuses mais poderosos existentes – o
qual ela, após todos aqueles anos morando ali, jamais tinha visto.
Perséfone caminhou por entre as fileiras de girassóis, tulipas e suas
favoritas, dálias. O pequeno jardim a fazia se lembrar de seus palácios, onde
a primavera era presente durante os seis meses que ficava no mundo dos
vivos.
Mais a frente, uma gigante árvore com romãs maduras se erguia.
Aquela era apenas uma de um pequeno pomar que subia em direção oposta
ao mar, em direção aos campos e aos palácios de Hades, aonde ela nunca ia.
Com uma cesta nas mãos, Perséfone colheu todas as romãs que pôde
e seguiu em direção a pequena cidade de Asfódelos. Ela precisava cruzar os
campos e um dos cinco rios do submundo para chegar lá.
Asfódelos era a cidade que acolhia as almas que tiveram vidas e
mortes comuns. Essas almas eram presenteadas com a possibilidade de
viver em morte o que elas um dia tiveram em vida.
“Ei, Primavera!” Eurídice gritou de longe.
Erguendo a mão, Perséfone acenou para ela, que vinha correndo em
sua direção.
As duas tinham se conhecido no primeiro ano de Perséfone no
submundo. Ela tinha encontrado a deusa perdida nos campos que dividiam
os palácios de Hades e o Lete, o rio do esquecimento.
Desde então, as duas haviam se tornado inseparáveis.
Eurídice a alcançou e pegou uma das romãs da cesta, sem
cerimônia.
“Você já ouviu os sussurros?”
“Quais deles?” Perséfone perguntou, revirando os olhos.
Os vivos não eram seres naturais no mundo inferior, e era por isso
que Perséfone escutava vozes e os clamores de almas. Especialmente
aquelas que vinham dos vales distantes, pois eram almas recém-chegadas,
almas que não tinham sido julgadas e ainda tinham esperanças de voltar ao
mundo dos vivos, algo quase impossível de ser feito e um presente que só
poderia ser dado pelo rei, Hades.
Eurídice riu do comentário de Perséfone e bateu no ombro dela,
abrindo a romã entre os dedos.
“Ele voltou!”
“Quem?” Perséfone franziu o cenho. “Hermes?”
Ele tentava visitar Perséfone pelo menos uma vez durante os seis
meses que ela tinha que ficar ali. Geralmente, ele se recusava dormir na
única cama que havia no chalé e dormia sobre o tapete a frente da lareira,
na cozinha, o que impressionava Perséfone, pois no mundo dos vivos, os
palácios dele eram dez vezes maiores do que os dela.
“Não.” Eurídice revirou os olhos. Ela achava que Perséfone tinha
uma paixão escondida pelo mensageiro dos deuses. “Hades.”
Perséfone continuou caminhando como se nada tivesse mudado.
“Não tenho certeza como isso me impacta.”
“Você pode pedir uma audiência para ele...”
Perséfone parou onde estava e respirou fundo. Ela olhou para as
romãs e sentiu uma pressão no peito quando percebeu o que Eurídice queria
dizer.
“Você é uma deusa!” Ela disse rápido quando viu o olhar de
Perséfone. “Você está viva... e essa não é a sua punição. Você não precisa
estar aqui!”
Ela abriu um pequeno sorriso, que não alcançou seu olhar.
“Eu sei. Mas eu a aceito mesmo assim”
Eurídice olhou para a amiga por alguns segundos e ofereceu a ela
um pedaço da fruta que tinha nas mãos. O assunto ficou para trás.
Perséfone jamais diria a amiga que tinha pensado naquilo todos os
dias dos seus primeiros meses no submundo. E que, na verdade, no dia em
que ela a encontrou perdida nos campos, era porque Perséfone estivera em
busca do salão de julgamentos, onde Hades oferecia essas raras audiências.
Mesmo se um dia conseguisse falar com o deus da morte, ela sabia
que não havia nada que ele poderia fazer, pois com o passar dos últimos
anos ela começou a sentir algo dentro de si, algo que a dizia claramente que
estar no submundo fazia parte do destino dela, o destino que tinha sido
bordado pelas próprias Moiras, três mulheres que criavam o fado de mortais
e deuses.
Asfódelos surgiu a frente e as duas continuaram pela ponte que
atravessava o rio Cócito.
A cidade não possuía grandes templos, palácios ou castelos. Esses
eram elementos que eram encontrados no mundo dos vivos. Ali, as almas
não precisavam de riquezas ou de venerar deuses, afinal, já estavam mortas.
Apenas uma vez ao ano, no início do inverno, sempre no primeiro
dia que Perséfone chegava de volta, as almas acendiam uma fogueira de
chamas mortas, que tinham cor azul, e queimavam cartas com pedidos ao
deus. Era dito que Hades, às vezes, atendia a esses pedidos.
O único ser capaz de levar algo do mundo dos mortos para o dos
vivos era Hermes, e esse era proibido de falar sobre a vida lá fora quando
estava ali.
A cidade, sem templos ou palácios, consistia em pequenos chalés
feitos de pedras vulcânicas, negras como a noite, mas que durante o dia, sob
os raios de sol, brilhavam quase como se fossem pedras preciosas.
Perséfone havia encontrado um lugar lá, junto ao um grupo de
meninas e jovens mulheres que tinham morrido muito novas, geralmente
pela fome ou febre. Ela as encontrava todos os dias e oferecia frutas que seu
jardim dava, ou até mesmo o que encontrava nos vales próximos ao chalé.
Muitas vezes, elas se sentavam ao redor da deusa e lhe contavam
suas histórias, ou cantavam, ou esperavam que Perséfone lhes falasse sobre
o mundo dos vivos e dos deuses.
Naquela manhã, o grupo já estava à espera das duas, com chá e
biscoitos de aveia e mel. Ainda impressionava Perséfone que a comida no
mundo inferior era tão real quanto no mundo acima.
A cesta de romãs foi passada ao redor. Naquele dia, era a vez de
Eurídice contar sua história. Muitas almas novas tinham chegado em
Asfódelos nas últimas semanas, e algumas ainda se sentiam amedrontadas
ao saber que não eram mais seres vivos. O sentimento não durava muito e,
geralmente, elas conseguiam encontrar consolo no grupo.
A verdade era que, toda vez que escutava as histórias das almas,
Perséfone se sentia menos viva. Uma parte dela ficava ali sempre que subia
ao mundo dos vivos e agora ela era incapaz de olhar para a vida de outra
forma.
Aquela não era a primeira vez que Eurídice contava sua história e,
mesmo assim, Perséfone viu a amiga respirar fundo e fechar os olhos.

O nome dele era Orfeu. Ele era um poeta e cantava em bares pela
noite. Foi assim que ela o conheceu. Eurídice era uma viajante, sempre
passando de lugar a lugar sem criar raízes.
Na noite mais fria de inverno, onde ninguém é feito amante, Orfeu
cantou uma canção que aqueceu não só o corpo de Eurídice, mas seu
coração.
Ela tinha dezessete anos. Orfeu, dezoito.
Ela era a filha das estradas e de deuses abandonados.
Ele, o filho de uma musa e o deus dos sonhos.
Os dois, juntos, viajaram pelos mundos dos deuses e dos mortais,
até o dia em que Eurídice adoeceu.
Conhecendo os deuses, Orfeu decidiu pedir ajuda de seus pais, os
quais disseram que não poderiam fazer nada contra a morte caso viesse
buscar sua amada, pois o único que poderia fazer isso era Hades ou as
moiras.
Sabendo que não conseguiria uma audiência com o rei dos mortos
no mundo dos vivos, ou as moiras, pois elas eram impossíveis de serem
encontradas, Orfeu foi atrás de Hermes, pois além de ser mensageiro dos
deuses, ele também era seu padrinho, e famoso por ser o deus da trapaça.
Orfeu tinha a esperança de que ele pudesse trapacear a morte.
Hermes não podia.
Orfeu então voltou de sua busca para encontrar Eurídice a beira da
morte.
Eles se casaram pela noite e quando a manhã chegou, ela tinha
sucumbido a doença.

“Ainda me lembro seus olhos” Eurídice disse. “Quando ele cantava,


era como se dissesse que me amava com cada som que sua voz emitia”
Perséfone olhou para a amiga e para os dedos dela. Ela tocava,
despercebida, a aliança feita de carvalho que Orfeu dera a ela no dia de seu
casamento. Eles não tinham dinheiro para ouro, então ele esculpiu a aliança.
Na aliança havia o relevo dos caminhos que, juntos, eles tinham
atravessado.
O amor deles havia sido puro, Perséfone sentia. Como uma clareira
antes da primavera, coberta por seiva. Eurídice ainda o amava. Ela tinha
morrido aos vinte e dois anos, a idade de Perséfone. E estava ali em
Asfódelos havia dez anos.
As almas ao redor bateram palma para ela e Eurídice foi até o
assento mais próximo da deusa.
Antes a próxima história se iniciar, um grupo de crianças que estava
por ali foi até Perséfone e lhe entregou uma coroa feita de narcisos. Essa era
a flor mais comum do submundo. Era dita ser a flor preferida de Hades, por
isso que crescia em todos os cantos.
Não era a flor preferida de Perséfone, pois a fazia lembrar do dia em
que sua mãe desaparecera.
Ela sorriu e deixou as garotas colocarem a coroa sobre sua cabeça.
Uma garota mais velha, de doze ou treze anos, começou a trançar os
cabelos dela, enfeitando seus fios com ainda mais narcisos.
Perséfone era amada no submundo. E, às vezes, ela se perguntava
por quê. Não havia muito que poderia oferecer aquelas almas, pois estava
quase tão presa quanto elas.
Ainda assim, as almas a respeitavam como uma dos seus.
“O que acha, milady?”
Todos em Asfódelos chamavam-na daquela forma. A única exceção
era Eurídice, que geralmente a chamava de Primavera ou Perse, mas sempre
fora das vistas das outras almas. Afinal, Perséfone era uma deusa. E
desrespeito contra deuses era algo considerado perigoso.
A garota entregou um espelho oval, pequeno, a ela e Perséfone
encarou seu reflexo.
Seus olhos eram como âmbar, mas hoje pareciam mais escuros,
como chamas.
Seus cabelos longos eram da cor do mel, agora presos na trança que
caia sobre sua cintura, cobertos por flores amarelas.
Sua face era bela e Perséfone não fingia desconhecer sua beleza. No
mundo mortal, sua beleza seria capaz de enfeitiçar mil homens, mortais ou
divinos. No entanto, perto de Afrodite ou de sua própria mãe, Deméter, ela
sempre se sentia uma garota perdida e em farrapos.
“Majestosa, como sempre” Uma voz chegou entre eles antes que
Perséfone pudesse responder.
Hermes.
Perséfone sorriu, agradeceu a garota e se ergueu para encontrar o
deus, que estava parado na porta do chalé onde o grupo se encontrava todos
os dias.
Ela correu até ele e o abraçou. Hermes recebeu o abraço dela e a
apertou com força entre os seus. Hermes tinha o cheiro de hidromel. E seu
abraço era sempre quente.
“O que está fazendo aqui?” ela quis saber, se afastando, tomando a
oportunidade de olhar para ele.
Ele vestia uma armadura leve feita de prata, com seus símbolos em
relevo de ouro sobre o ombro. Entre a armadura e a pele, ele vestia trajes de
algodão branco.
Seus cabelos, loiros, quase brancos, estavam jogados para trás e
caíam sobre os ombros. Os olhos azuis dele passearam pelo corpo dela,
também aproveitando a oportunidade para admirá-la.
Ali, no mundo inferior, Perséfone tinha que fazer suas próprias
roupas, pois era incapaz de trazer objetos dos mundos dos vivos. Sua sorte
era que tinha sido ensinada bordados quando criança e encontrava prazer
em fazer as roupas que vestia.
Naquela manhã, ela usava um de seus melhores vestidos. Feito de
uma seda antiga, cor azul, o vestido caia até abaixo de seus joelhos e tinha
mangas largas que iam até o pulso. Sobre o decote do pescoço, usava o
colar que havia sido lhe dado em seu primeiro ano ali.
Era um medalhão de âmbar, como seus olhos. Dentro do âmbar
havia uma pequena rosa vermelha.
Quando o olhar de Hermes encontrou o medalhão, os olhos dele se
distanciaram. Isso sempre acontecia, era como se aquele medalhão o
lembrasse de algo importante, algo ameaçador.
“Eu venho aqui com uma mensagem” ele a respondeu, de repente.
“Para mim?”
“Na verdade, não.” Ele se afastou dela e olhou ao redor do chalé.
As almas não tinham parado de contar as histórias delas por conta
do deus. Elas sabiam bem que ele não poderia fazer nada por elas e ignorá-
lo era a melhor coisa que faziam.
No entanto, o chalé ficou em silêncio quando ele encontrou a alma
que estava à procura.
“Eu venho com uma mensagem para Eurídice.”
“O quê?” Eurídice sussurrou.
Perséfone encarou Hermes. O que quer que ele estivesse prestes a
dizer não seria bom.
“O rei solicita sua presença no salão de julgamentos”
“Mas... eu já fui julgada” Ela se ergueu de onde se sentava, com os
olhos arregalados.
“Você está certa. O julgamento não é o seu, mas alguém que você
ama.”
Eurídice ficou em silêncio por aquilo que pareceram longos
minutos. Perséfone foi até ela.
“Não...” Ela balançou a cabeça, sentindo lágrimas caírem.
Se Orfeu estivesse no salão de julgamentos, significava que estava
morto.
“Antes de fazer qualquer suposição, por favor, venha comigo. O rei
solicita sua presença agora.”
Ele disse a última palavra em um tom que só deuses poderiam usar.
Resoluto. Final.
Eurídice encontrou o olhar de Perséfone e soube que precisava ir
com ele.
“Eu irei com você” A deusa disse.
“Não.” Hermes voltou-se para ela. “Hades me deu instruções
específicas. Somente Eurídice pode vir”.
Foi naquele momento que Perséfone percebeu que o deus dos
mortos sabia, afinal, que ela existia. Por todos aqueles anos, se perguntou se
ele sabia ou ao menos se importava que ela estava ali, caminhando, viva,
nos domínios de seu reino.
“Então, ele sabe que estou aqui?”
Hermes respirou fundo. Havia um tom de impaciência na voz dele.
“Hades sabe de tudo que acontece em seu reino, Perséfone. E ele me
pediu, especificamente, que a deusa da primavera não interferisse nessa
ocasião. Não é um pedido, é uma ordem”
Perséfone sentiu um calor subir pelas entranhas. Ela tinha aprendido
a não pensar em Hades e deixá-lo em um lugar bem profundo dentro de si.
Ela não o conhecia. No entanto, havia algumas razões que a fazia querer
odiá-lo, mesmo sem saber quem ele era. Balançando a cabeça, ela afastou
esses pensamentos.
“Sinto muito” disse a Eurídice.
Aquele era o reino dele e como deus resoluto Perséfone não podia
fazer nada.
Eurídice conhecia pouco sobre a autoridade dos deuses, mas o
suficiente para saber que ninguém confrontava Hades.
Caminhando até Hermes, Perséfone assistiu quando a amiga ergueu
a mão para o deus, e assim que os dedos deles se encontraram, os dois
desapareceram no ar, como se nunca tivessem estado ali.

O entardecer caiu sobre o submundo. Perséfone não conseguia ficar


parada, Eurídice ainda não tinha voltado, o que poderia significar notícias
ruins.
Descalça, ela foi até seu jardim e sentou-se entre as tulipas,
respirando o aroma das flores ao redor, tentando não pensar no que
acontecia no salão de julgamentos.
Hades era famoso por seus julgamentos duros e... justos. No entanto,
Perséfone conhecia o amor de Eurídice e seu coração doía em não poder
ajudá-la.
A morte de sua amiga havia sido um evento normal, algo que não
afetava outros além daqueles que a amava. Por isso havia sido enviada a
Asfódelos.
No entanto, Orfeu era filho de deuses e isso poderia alterar seu
destino no submundo, caso estivesse de fato morto e virado uma alma.
Havia outros lugares além da vila onde Hades poderia enviá-lo. O Elísio era
um, o lugar feito para heróis, para aqueles que vivem pela honra dos deuses
e reis... E o Tártaro era o outro, o lugar onde aqueles que fizeram outros
sofrerem iam.
Isso significava que até em morte os dois poderiam ser separados.
Perséfone abriu os olhos, determinada.
Ela se lembrava de quando Eurídice a fizera companhia, nas noites
mais solitárias do seu primeiro ano ali. Isolada de tudo que conhecia, de
seus poderes, de seus palácios e servos. Isolada de quem era. Ela havia sido
a única alma entre todas as outras que não só a respeitava, mas que a
considerava igual. Não uma deusa... uma amiga.
Ela havia cantado para Perséfone e a ajudado a encontrar seu
caminho ali, naquele lugar que era, literalmente, o inferno.
Se erguendo do chão, a deusa da primavera olhou para oeste, onde o
sol de punha. Era naquela direção onde o salão dos julgamentos estava.
Ainda descalça, ela seguiu o pôr-do-sol. Primeiro, lentamente,
saindo de seu jardim e adentrando a sombria floresta feita de árvores de
romã. E então, quando viu o largo campo que a separava de sua amiga,
começou a correr.
CAPÍTULO II – O ACORDO

E la tinha se perdido uma vez,


por isso sabia qual caminho
evitar.
Perséfone tentou encontrar a aura de outros deuses. Eles podiam sentir um
ao outro, caso fizessem um esforço. E ela conseguia sentir a presença de
Hermes, fraca e distante, presente em algum lugar mais ao oeste do campo
por onde corria. Havia outra presença também. Uma, que ao contrário de
Hermes, era intensa.
Sombria como noites de inverno... como noites no inferno.
Ela correu e correu até o campo se erguer sobre uma colina. Ela viu
portas negras surgirem por entre um palácio de pedras escuras, com
vidraças azuis vibrantes.
Ao contrário do que estava esperando, o caminho de subida até lá
não possuía obstáculos.
Perséfone chegou até as portas enormes e respirou fundo. A trança
feita pela alma jovem mais cedo havia se desfeito e agora seu longo cabelo
cor de mel caia em ondas sobre os ombros, descendo até abaixo dos
quadris. Pouco da coroa de narcisos restava.
Ela respirou fundo, afastou fios rebeldes do rosto e colocou a mão
sobre as portas negras.
Dentro do salão, um alto estrondo ressoou por entre as paredes.
A porta se abriu carregando a deusa da primavera. Ela ainda vestia o
vestido feito por si mesma e tinha os pés descalços, agora machucados pela
corrida até ali.
Ela adentrou o salão e evitou olhar para trás quando as portas negras
se fecharam com um baque em suas costas. Perséfone ergueu o queixo
quando olhou ao redor.
O salão era feito de pedras nuas, escuras. Archotes iluminavam o
arredor e uma grande lareira se encontrava no exato centro, pois o salão era
um círculo perfeito. No teto, acima de todos, um domo de ouro se
encontrava, com um óculo que dava para as estrelas da noite do mundo
mortal – e ela sabia disso, pois as estrelas do submundo eram diferentes,
tinham outros nomes e outras histórias.
Do outro lado da fogueira, ela encontrou Eurídice. Sua amiga abriu
um sorriso quando a viu. Um homem um pouco mais velho que ela
segurava sua mão. Ele tinha a pele cor de terra molhada e lindos cachos
sobre a testa. Sobre suas costas havia um violão. Ele era Orfeu. O poeta.
Ao lado do casal estava Hermes.
Aquele era um julgamento incomum, Perséfone percebeu.
Geralmente, os três juízes dos mortos estariam presentes. Eles eram Éaco,
Radamanto e Minos. No entanto, no salão, só um juiz estava presente.
Aquele que geralmente preferia manter distância para permanecer
imparcial.
A frente deles, um imponente trono se elevava sobre as pedras
negras. Feito de ferro e ossos, era rústico e majestoso. Afinal, era o trono de
um rei.
Sobre este, ela o viu pela primeira vez.
Hades.
Ele, mesmo sentado, parecia ser um homem alto. Seus cabelos eram
negros, cortados como um soldado os cortaria.
Assim como Hermes, Hades portava uma armadura. A dele, no
entanto, era uma mistura de ferro em brasa e couro escuro. O completo
oposto do deus mensageiro.
O olhar dele encontrou o dela no instante em que entrou no salão.
Eles se entreolharam por um longo segundo. Seus olhos eram da cor
do trono, escuros, distantes como metal queimado.
Perséfone soube no instante que encontrou aqueles olhos frios que
tinha acabado de cometer um erro. No entanto, também soube que não
poderia voltar por onde tinha vindo.
Era tarde de mais.
Quebrando aquela conexão, caminhou até Hermes e o casal,
sentindo o coração bater como trotes de um cavalo dentro do peito e, de
repente, ficou sem ar.
Não sabia se era por causa da corrida até ali ou pelo fato de que
conseguia sentir o olhar agora quente... não, fervente, do rei dos mortos
sobre sua face.
Perséfone chegou até a frente do trono e fez uma mesura. Ela era
uma deusa, sim, mas Hades era um dos doze. E mais do que isso, ele fazia
parte da Trinidade de deuses mais poderosos. Aqueles filhos dos titãs,
aqueles que guardavam o mundo dos mortos e que lutavam pelo mundo dos
deuses.
Ela respirou fundo e tentou se preparar para encontrar a face dele
mais uma vez.
Nada poderia prepará-la. A intensidade do olhar dele era uma marca
em sua pele. O cenho dele se franziu assistindo a presença dela. Ele passeou
o olhar pelo corpo dela, se demorando em seu rosto e deixando-o cair nos
pés descalços e arranhados. Perse sentiu um toque de vergonha cobrir as
maçãs de seu rosto.
“Achei que tinha ordenado que...” A voz dele bradou entre eles,
rouca e grave.
“Eu venho para dar meu favor a Eurídice... e Orfeu.” Ela o
interrompeu, firme.
Hades apertou os olhos e suas mãos se fecharam em punhos.
Interromper o deus dos mortos não era uma boa ideia, ela pensou
imediatamente.
Ela nem mesmo sabia a razão do julgamento, e não importava.
“Eu já lhes dei minha decisão” Hades a respondeu, calmo e resoluto.
“O garoto voltará ao mundo dos vivos”
Perséfone voltou-se para Eurídice e Orfeu em choque. Ele não
estava morto. Então... como havia chegado até ali?
“Eu o ajudei” Hermes respondeu à pergunta silenciosa dela, um
tanto orgulhoso de si mesmo. “Eu o mostrei o caminho entre o mundo dos
vivos e dos mortos e disse a ele que lhe daria meu favor caso conseguisse
encontrar Hades.”
Hades pareceu achar graça nesse comentário, mas não disse nada.
“Você está vivo”
“Sim, deusa. Eu vim pedir ao senhor do submundo para dar a vida
de volta a minha amada”
Oh.
O olhar de Eurídice caiu no chão quando ele disse isso. Os dois
apertaram o enlaço das mãos. Era por isso que os três juízes não estavam
ali. Eles só julgavam aqueles que haviam morrido, e não pedidos de vivos.
E a presença de Hermes havia sido a razão pela qual Hades havia voltado
ao reino, pois deuses precisavam atender a audiências solicitadas por outros
deuses, mesmo que menos poderosos. Era uma lei entre eles, algo que
tentava fazê-los iguais.
“Dê-a vida. Deixe-os sair do submundo juntos.” Perséfone voltou-se
para Hades.
Ele olhou para ela por um longo segundo e disse, simplesmente:
“Não.”
“Por quê?” Ela o questionou, sentindo borboletas se agitarem no
estômago.
O único deus que Perséfone havia enfrentado em sua vida havia sido
sua mãe. E sua mãe a amava demais para puni-la.
No entanto, Perséfone pensou, ela já estava no inferno sofrendo uma
punição. Não haveria muito que o senhor dos mortos pudesse fazer para
piorar isso.
Hades não a respondeu, no entanto. Ela deu outro passo em direção
ao trono.
A deusa tinha ouvido os sussurros, as histórias. O rei do mundo
inferior tinha um só vício. Ele fazia acordos e, às vezes, apostas.
“Faça um acordo comigo”
As palavras escaparam da boca dela antes que ela pudesse pensar
uma segunda vez.
“Perséfone!” Hermes gritou sobre seu ombro. Ele se aproximou e
pegou o braço dela com força, falando rápido em seu ouvido. “Nada vale a
pena fazer um acordo com ele!”
Hades apertou os olhos e se encostou ainda mais no trono, assistindo
a proximidade dos dois e a mão de Hermes sobre ela.
Perse puxou o braço e mais uma vez se aproximou do rei do
submundo.
“O que a deusa da primavera poderia me oferecer... que teria meu
interesse?” Hades disse, com um tom esnobe. Ele levou a mão até o queixo,
assistindo-a.
“O que você quer?” A mão de Hermes tentou alcançá-la mais uma
vez quando disse isso, mas ela se virou para ele e o fulminou com o olhar.
“Eurídice é uma das minhas. Eu preciso fazer isso por ela.”
O deus mensageiro respirou fundo e balançou a cabeça,
consternado, abaixando os braços.
“Você está disposta a me dar o que eu quiser?” Hades perguntou,
sombrio.
Perséfone se deu conta de que aquela era uma oferta muito ampla.
Rapidamente, disse:
“O meu bem mais precioso. É seu.”
“Hm” Hades suspirou, ainda não satisfeito. Mas, olhou para
Perséfone e para o casal. “Eu aceito seu acordo, deusa. No entanto, não
posso permitir que eles saiam de meu reino sem um teste, caso contrário
nenhuma alma permanecerá no submundo.”
“Mas...” Perséfone tentou dizer.
Hades fez um movimento com a mão e isso foi o bastante para
silenciá-la.
Ele se ergueu do trono, imponente e ainda mais alto do que ela
imaginava.
“Você poderá voltar ao mundo dos vivos...” disse em direção a
Eurídice. “No entanto, vocês não poderão caminhar mão em mão. Ele terá
que caminhar a frente e você terá que segui-lo.”
Os dois olharam um para o outro, assustados, mas confiantes.
Hades se aproximou dos dois.
“No entanto, poeta, se você olhar para trás ou se sucumbir às
dúvidas, e eu garanto a você que elas existirão... Sua amada voltará a
Asfódelos e tudo será como se nada tivesse acontecido. Vocês acham que
podem fazer isso?”
“Sim” Orfeu respondeu.
Hades ergueu uma sobrancelha, como se assistisse algo interessante
na face do poeta. Ele parou sobre os dois, alto e distante, por alguns
segundos. E, então, se virou para os deuses parados mais adiante.
“Hermes, seu trabalho aqui está feito”
Quando ele disse isso, o deus loiro olhou para Perséfone e, no
segundo seguinte, despareceu.
“Sigam em direção ao fogo no centro do salão. As chamas levarão
vocês ao caminho que devem seguir.” Disse aos dois. O olhar de Hades
então recaiu sobre Perséfone. Frio. “E você, deusa da primavera, faça suas
despedidas. Quando terminar, me encontre em meu palácio.”
E no segundo seguinte, ele já não estava mais ali.
Eurídice a abraçou forte e Orfeu beijou suas mãos.
“Eu te encontrarei no mundo dos vivos em alguns meses” Eurídice
disse.
Perséfone sorriu. De um jeito ou de outro, ela encontraria a amiga
mais uma vez e isso fazia aquela despedida algo quase doce.
Ela deixou os dois seguirem o caminho que precisavam seguir.
Com as mãos entrelaçadas, eles caminharam em direção ao fogo no
centro do salão e assim que suas silhuetas desapareceram, o fogo abrandou,
se tornando brasa.

Perséfone deixou a água morna correr pela pele. No chalé só havia


uma banheira pequena e não havia água corrente. Sempre que se banhava,
precisava aquecer dois baldes de água sobre o fogo da lareira, os quais
jogava acima da água fria que coletava, balde por balde, de um poço velho
em seu jardim. Era assim como também conseguia água para regar suas
flores.
Ela se esfregou o máximo que pôde e fez questão de escovar os pés
e as unhas dos dedos.
Quando saiu a banheira, passou na pele um óleo de narciso que as
almas a tinham dado de presente. Não era seu favorito, mas ali ela não
possuía o mar de opções de óleos de flores que tinha em seus palácios.
Perséfone não sabia exatamente o que o deus queria com ela, mas
sabia que precisava evitar o olhar de desprezo dele, quando olhou para seus
pés descalços mais cedo.
Encontrando um vestido verde de algodão que amarrava na cintura e
estava em boas condições, se vestiu e calçou meias grossas para
acompanhar o único par de sapatos que tinha, botas grossas de couro que
um dia tinham sido de Hermes, mas que serviam bem e eram confortáveis.
Ela deixou os cabelos soltos e decidiu que aquilo era o bastante.
Caminhando de volta através do pomar de romãs e o campo que
cobria uma vastidão, Perséfone seguiu em direção ao terceiro rio que cobria
aquele reino, Lete, o rio do esquecimento. Ela sabia que o palácio de Hades
ficava naquela direção, pois ouvira as almas falando sobre isso mais de uma
vez.
Quando encontrou o rio, seguiu, lentamente, pela praia de pedras,
tomando cuidado para não tocar na água. Era dito que, deus ou mortal,
aquele que tocava a água daquele rio esqueceria o que mais amava.
Ela não precisou caminhar muito. De longe, foi capaz de ver as altas
torres do palácio de Hades.
As torres se erguiam por sobre o rio, como se fossem umas com as
águas. A escuridão da noite encobria parte do que ela podia ver. O palácio
era uma mistura de prata, vidro e sombras. Enorme, monumental.
O poder do deus dos mortos exalava em cada linha do palácio.
Ela caminhou até lá, encontrando escadas que davam para a
primeira parte do complexo e uma ponte. Ela não via portas, no entanto.
Apenas uma parede de pedras vulcânicas e vidro.
Ao colocar os pés sobre a ponte, Perséfone sentiu um poder antigo.
As sombras do castelo se moveram e, de repente, ela se sentiu puxada para
dentro do palácio.
Ela fechou os olhos, sabendo o que estava acontecendo.
Aquilo era magia de proteção, de engano. Ela sentiu ar quente no
rosto e um peso sobre os ombros, puxando-a para o chão.
Perséfone se sentiu cair e aterrizar com força, apoiando as mãos
sobre o chão que não era mais o mesmo que dois segundos atrás.
Abrindo os olhos, ela se ergueu. Magia dos deuses circulava o ar
que ela respirava.
A deusa agora estava dentro do palácio. O saguão de entrada não era
como esperava.
Ela estava no centro de um enorme salão em semicírculo, com
grandes escadarias que levavam para cima em confusos padrões. Ao redor
dela, janelas de vidraças de vinte metros se erguiam, trazendo a luz da noite
para dentro e exibindo uma densa floresta de pinheiros do lado de fora.
As paredes eram cobertas por folhagem e ornamentos em ouro.
Archotes se encaixavam entre os adornos, fazendo ainda mais luz e calor.
Talvez ela estivesse esperando algo sombrio e macabro, afinal ele
era o rei dos mortos, mas aquela parte do palácio era aberta, uma com a
natureza.
Ela percebeu que havia sido permitida dentro do palácio e essa era a
principal razão qual não havia portas. Algumas almas do submundo nunca
cansariam de tentar entrar ali, tentar encontrar o rei e tentar lhe pedir seu
favor.
Perséfone tinha visto almas contentes, almas que haviam deixado o
mundo dos vivos para trás. Assim como as que lamentavam tanto a vida que
havia sido interrompida que seriam capazes de fazer tudo para tê-la de
volta. E a angústia delas era a razão pela qual o rio Lete existia. Muitas
delas vinham até o palácio do deus sem conseguir uma audiência, e antes de
voltar a Asfódelos decidiam mergulhar nas águas e esquecer a vida que
abandonaram.
Esses pensamentos foram afastados da mente dela, quando, de
repente, ouviu os rugidos altos de um cachorro negro. O animal surgiu por
entre as sombras. Aquele era o maior cachorro que ela jamais vira na vida.
Os dentes dele eram afiados como os de um lobo e ele parecia faminto. O
rugido se intensificou.
Dando um passo adiante, sem medo, Perséfone agachou-se em
direção ao animal.
Este, lentamente, veio até ela com intensão de atacar, mas se deteve
em seguida. Devagar, ele parou de rosnar e começou a cheirá-la, como se
tivesse sentido seu cheiro antes.
Perséfone estava prestes a passar a mão na cabeça dele, prestes a
declarar vitória, quando ouviu a voz baixa e rouca do mestre do animal o
chamar:
“Cérbero!”
O cachorro se voltou à voz e saiu disparado em direção a Hades. O
olhar de Perséfone seguiu o cachorro.
Sobre o patamar mais alto das escadas elegantes que levavam para o
interior do palácio, ela o encontrou.
Alto, Hades não usava a armadura qual ela vira mais cedo.
Agora, ele vestia uma camisa de algodão e calças de couro,
completamente em preto. Os olhos dele eram sombrios.
O cachorro se juntou a ele, ficando ao seu lado. Ele repousou a mão
sobre a cabeça do animal, sério.
“Perséfone”
Uma eletricidade afiada subiu pela coluna dela.
“Lorde Hades.” Ela, mais uma vez, fez uma mesura.
De alguma forma, Perse ainda se via impressionada pelo fato de que
ele sabia quem ela era.
Punições entre os deuses eram tão comuns quanto o sol se erguer no
horizonte. E o mundo inferior estava repleto de deuses menores, semideuses
e até mesmo reis mortais que cumpriam sentenças. O primeiro que vinha a
mente dela era Sísifo, um rei que havia sido punido por Zeus, e que por
todos os dias, durante a eternidade, teria que rolar uma grande pedra
de mármore por uma colina.
Perséfone voltou-se ao presente, Hades ainda a encarava.
“Vejo que possui sapatos” falou.
Ela olhou para os pés, sem reação.
“Apenas um. Pertencia a Hermes.”
“Hm”
Hades continuou a olhar para ela, como se procurasse algo em sua
face. Perséfone sentiu suas bochechas ficarem quentes e evitou jogar seu
cabelo para trás da orelha. Não queria que ele percebesse que estava
nervosa.
“Por favor, me siga” disse ele, de repente. Com um movimento dos
dedos dele, o cachorro, Cérbero, desapareceu no ar.
O deus se virou e começou a subir o restante dos degraus, indo em
direção à ala oeste do palácio. Perséfone hesitou por um instante e depois o
seguiu.
Ela sabia que apesar de Hades ser um dos deuses mais poderosos,
ele era o mais privado e pouco falado em bailes dados.
A apesar de ser irmão de Zeus e Poseidon, a maioria dos deuses
escolhia fingir que ele não existia, então pouco se sabia dele, além de que,
como deus dos mortos, Hades era inescrupuloso em seus julgamentos, mas
sempre, sempre, justo. E que, mais recentemente, foi aquele que trouxera
vitória aos deuses na batalha contra os titãs. Ele era o mais poderoso
soldado do Olimpo.
Ela teve que apressar o passo para alcançá-lo, seguindo-o por um
longo corredor repleto de vidraças coloridas. A chama dos archotes se
acendia quando ele passava por elas.
Perséfone começou a perceber muito rapidamente o quão vazio o
palácio era.
“Você não tem servos?” ela quis saber, apressando-se um pouco
mais para perguntá-lo com voz baixa.
Hades parou ao ouvir a pergunta dela. De costas, ele pareceu
respirar fundo.
Perséfone ficou um bom metro de distância e esperou.
Ele se virou, encontrando a face dela mais uma vez.
Uma porta antiga feita de madeira de carvalho e decorada com ferro
entalhado se abriu a frente deles. Em silêncio, Hades ergueu a mão e
apontou para o salão agora visível. Perséfone se virou para o ambiente.
Ela sentiu o coração bater forte, se sentindo vulnerável, quase como
se estivesse prestes a entrar em uma armadilha.
Mesmo assim, deu um passo a frente e passou por ele, entrando no
salão.
Ela ouviu a porta se fechar com um baque atrás de si e sentiu a
presença de Hades, caminhando lentamente atrás dela, passando por seu
corpo com passos lentos.
Aquele era o lugar mais vivo que ela tinha visto naquele palácio até
agora. As pedras vulcânicas brilhavam ao calor da lareira enorme à parede
leste. As janelas que davam para a floresta de pinheiros estavam ali, caindo
do teto ao chão.
No centro da sala, havia duas grandes cadeiras feitas da mesma
madeira da porta. Elas eram esculpidas em detalhes, quais pareciam
imagens de uma batalha, e parte de uma das cadeiras estava queimada. Seu
olhar recaiu sobre a parte negra na madeira, ela pareceu ter visto algo que
lembrava a imagem de flores, mas não teve certeza.
“Sente-se” Ele sussurrou, rouco, perto demais.
Perséfone conseguia sentir a aura de Hades pesar sobre seus ombros,
sobre sua pele. Ele estava tão perto que ela parecia sentir o calor de sua voz
sobre a nuca. Arrepios cobriram-na.
Perséfone decidiu ficar em pé.
Ela tinha perguntas, mas naquele momento decidiu que as perguntas
não importavam. E mesmo se decidisse fazer as perguntas a ele, tinha a
impressão de que ele não as responderia.
Ela, de repente, levou a mão até o fecho do medalhão sobre o
pescoço.
Engolindo em seco, pegou o colar por entre os dedos e olhou para a
rosa entre o âmbar uma última vez.
Hades agora estava a sua frente.
“O que tenho de mais precioso” ela disse, em um murmúrio perdido.
Ele a encarou. Seus olhos recaíram sobre o medalhão. O deus ficou
calado por longos minutos, encarando a peça.
“Pegue-o, é seu” Sua respiração estava pesada e ela sentia uma dor
no âmago.
Hades acenou lentamente e buscou o olhar dela.
Os dois agora estavam parados perto demais e o calor do corpo dele
era presente ao redor do de Perséfone. Ela deu um passo a frente e viu a
mão dele se erguer para encontrar a sua.
Ela colocou o medalhão, lentamente, sobre a palma do deus e muito
brevemente seus dedos se encontraram.
Hades era quente. Como febre. Como o inferno.
Ela puxou a mão rapidamente, deixando-a cair sobre os lados do
corpo.
Ele percebeu isso. Seus olhos ônix se escureceram ainda mais.
“Você tem perguntas. Sente-se e jogue comigo”
De repente, entre as duas cadeiras de carvalho, uma pequena mesa
com um tabuleiro apareceu. Não era xadrez ou jogo de damas, pois esses
eram jogos para mortais.
Perséfone encarou o tabuleiro. As peças tinham diferentes cores e se
erguiam em pequenos degraus. Aquele era um jogo que ela tinha aprendido
quando criança, pois todos os deuses o jogavam.
O jogo se chamava Rainha Prometida.
“Quais são os riscos, se eu perder?”
Hades soltou uma pequena risada. Era grossa e rouca. Ele caminhou
até a cadeira queimada e colocou o medalhão dela sobre a mesa com o
tabuleiro.
“Você é sábia em fazer essa pergunta. Não são tantos aqueles que
sabem que perder um jogo para o deus do submundo significa perder algo
precioso.”
“Eu acabei de te entregar tudo o que tenho, milorde.”
Hades apoiou os braços na cadeira e respirou fundo, voltando a face
para ela.
“Eu não acredito em você, deusa...” ele parou por um instante. “Mas
hoje estou disposto a jogar pelo prazer de sua companhia”
Perséfone o encarou por um logo minuto. Ela não tinha certeza se
acreditava nele, mas lembrou-se de que apesar de ter fama de cruel, ele era
o mais justo dos deuses.
“Você promete?”
Hades balançou a cabeça, um tanto divertido pela desconfiança dela.
“Eu prometo.”
Ela soltou o ar que tinha prendido no peito e, lentamente, caminhou
até a outra cadeira. Ela se sentou e, apesar de ser de madeira, era
surpreendentemente confortável.
Hades levou seus longos dedos até as peças para organizá-las como
queria. Perséfone fez o mesmo.
Enquanto eles faziam isso, em silêncio, uma porta interior da sala
foi aberta e de lá um rapaz baixo e quieto veio trazendo uma bandeja de
prata, e sobre a mesa com o tabuleiro repousou dois cálices. Pelo aroma
doce, ela sabia ser hidromel. No segundo seguinte, o rapaz tinha
desaparecido pela porta.
“Até as almas precisam de descanso” Hades respondeu à pergunta
que Perséfone tinha feito. “Apenas poucos dos meus servos vagam pelo
meu palácio pela noite”
Ele pegou o cálice de hidromel entre os dedos e levou aos lábios.
Perséfone mordeu o lábio ao observá-lo e fez o mesmo. Ela já estava
no submundo há cinco meses, e durante esses cinco meses não tinha bebido
nada tão delicioso como hidromel. Em seus palácios, durante a primavera, a
bebida era sua favorita. Mas ali, como era uma bebida exclusiva para os
deuses, só Hades tinha acesso.
Ela fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o sabor doce, de mel,
sobre a língua.
Quando voltou a si, percebeu que ele a assistia com aqueles olhos
escuros, sombrios.
“Você não deveria ter ido ao salão de julgamentos hoje, deusa.” Ele
falou por fim, olhando para o tabuleiro e movendo sua primeira peça.
Perséfone apertou os olhos para ele e para o tabuleiro. Em silêncio,
moveu sua peça em resposta a dele. Ignorando o comentário, disse:
“Há quanto tempo você sabe que estou aqui... no submundo?”
Ele balançou a cabeça, como se aquela pergunta fosse estúpida. É
claro que ele sabia que ela estava ali desde o dia em que seus pés tocaram o
solo.
“Ok” ela suspirou, ignorando a expressão dele. “Onde você esteve
durante os últimos quatro anos?”
“Hm” ele grunhiu baixinho, movendo mais uma peça. “Por que
assume que eu não estive aqui? Afinal, esse é meu reino?”
“Mas... nenhuma alma viu você por quatro anos?”
Ele deu aquela pequena risada esnobe mais uma vez.
“Algumas almas estão em meu reino por milênios e jamais viram
minha face, deusa. Eu não sou um deus acessível.”
Perséfone moveu sua peça após ouvir a resposta dele, ficando
quieta. Estava tentando pensar na melhor pergunta possível. Enquanto isso,
o olhar dele recaiu no tabuleiro e ele ficou alguns segundos analisando as
peças.
Ela se pegou observando-o. A face dele. Seus cabelos eram bem
cortados e ele tinha longos cílios escuros que cobriam seus olhos sombrios
como uma cortina. O queixo dele era duro e seus lábios, firmes. Ela
percebeu que o nó da camisa dele estava desfeito, deixando alguns poucos
pelos sobre o peito musculoso a mostra. Os ombros dele eram enormes, e
ele era provavelmente duas vezes maior do que ela e pelo menos uma
cabeça mais alto.
Ela notou algo preto saindo por sobre o ombro e o peito dele, como
um risco, uma marca na pele, uma tatuagem.
“Sua vez” a voz rouca, baixa, do deus a assustou, pegando-a de
surpresa.
Perséfone tentou evitar o olhar dele e se voltou ao tabuleiro. A
jogada dele tinha sido boa, bem pensada. No entanto, ela tinha uma ideia da
estratégia dele. Demorando um pouco, fez sua jogada.
“Quem puniu minha mãe?” Perséfone perguntou, de uma vez.
Ela encostou-se na cadeira, esperando pela vez dele de jogar. Hades
estava olhando para o tabuleiro quando disse, calmo:
“O juiz da punição de sua mãe foi Zeus.”
“Por que ele a puniu?”
Hades suspirou alto.
“Você sabe a razão.”
“Eu quero que você me diga”
Ele moveu sua peça, tomando uma das dela.
“Temo que não seja assim que funciona.”
“Por que não?”
“Se desejar que o deus dos mortos responda a sua pergunta, você
deve oferecer algo em troca.” Ele sorveu mais um gole de hidromel.
“O que você quer?”
Hades parou ao ouvir essa pergunta novamente. Ele abaixou o cálice
nas mãos.
“É a segunda vez que você me pergunta isso, Perséfone. E pela
segunda vez eu vou fingir que essas palavras não saíram de seus lábios. Na
terceira vez, confie em mim, não haverá volta, pois o que eu quero custará a
você muito mais do que um medalhão.” A voz dele era pesada e resoluta. A
sombra de seu olhar se intensificou.
Perséfone engoliu em seco. Ela moveu sua peça sentindo seus dedos
tremerem.
“Onde ela está? Minha mãe?”
O jogo entre eles ficou suspenso.
“Não muito longe. Ela deve voltar para seus palácios nos próximos
meses.”
“Como sabe isso?”
“Porque ela me disse”
Perséfone perdeu o ar. Hades não era o tipo de deus que ia ao
encontro de outros deuses. E quando raramente visitava os irmãos ou o
conselho dos doze, era para ser juiz de alguma decisão importante.
Isso significava que Deméter, sua mãe, tinha visitado ele.
“Quando ela esteve aqui?” Perséfone sussurrou.
Hades viu o quanto aquela informação a impactou.
“Beba” ele falou rouco, entregando o cálice dela em suas mãos. O
calor dele a encontrou, levando ondas por seu corpo. “Deméter veio ao meu
encontro dois dias atrás”
Ela fechou os olhos. Por que sua mãe não tinha a visitado?
“Dê a tempo” Hades disse, o que a surpreendeu.
Perséfone conseguia entender o desaparecimento de sua mãe. Ela se
sentia culpada, mas ainda assim aquilo quebrava seu coração, pois sua mãe
sempre fora sua melhor amiga.
Ela moveu uma das peças sobre os pequenos degraus, tomando duas
peças de Hades. Ele se recostou na cadeira mais uma vez, encarando o jogo
com uma expressão curiosa.
“Minha vez” ele disse antes de fazer sua jogada. Mas, ele queria
dizer que era a vez dele de fazer perguntas: “Por que você vai a Asfódelos
todos os dias?”
Perséfone quis perguntar como ele sabia daquilo, mas afastou a
pergunta da cabeça. Ele sabe de tudo que acontece no submundo.
“Elas me fazem me sentir mais viva.”
“As almas?”
Perséfone balançou a cabeça e fez uma jogada logo que ele fez a
dele. Os dois agora tinham capturado umas dez peças cada. A dama e a
coroa permaneciam no centro do tabuleiro. O objetivo era capturar os dois
objetos, transformando a dama na rainha prometida.
“Me conte sobre isso” Hades apontou para o medalhão de âmbar a
frente dele.
“É o único objeto que posso levar daqui para o mundo dos mortais.”
Ela deu de ombros. “Você vê a rosa no centro? Está perfeita, mas quando o
medalhão sai do mundo inferior, a rosa murcha, como se tivesse morrido... é
quase como se o medalhão fosse uma lembrança daquilo que terei que viver
pelo resto de minha existência.”
Os dois jogaram, Hades continuou em silêncio, olhando para ela.
“Eu não sei exatamente quem me entregou o medalhão...” Perséfone
se viu admitindo. “Eu só sei que tive um sonho, no primeiro ano que
cheguei aqui, e quando acordei o medalhão estava ao redor do meu
pescoço. Depois desse sonho, viver no mundo inferior começou a ser menos
insuportável.”
Ela se pegou observando o tabuleiro do jogo. Estava prestes a
capturar a coroa e já tinha a dama nas mãos. Ela iria ganhar o jogo. Iria
ganhar um jogo contra o deus das apostas. A deusa estava prestes a abrir um
sorriso, vitoriosa, quando ouviu:
“Isso foi um erro” Hades disse baixo.
Os olhos dela encontraram os dele de repente.
“O quê?” ela franziu o cenho.
Hades empurrou a cadeira com força sob si e abaixou sua última
peça do jogo, admitindo que tinha perdido. No segundo seguinte, ele
buscou o medalhão que ela o tinha dado entre os dedos.
Perséfone sentiu a gravidade se mover mais uma vez sobre seus pés.
Ela estava prestes a desaparecer dali.
“Hades...”
No segundo seguinte, se viu em seu chalé. A pequena sala coberta
por sombras, fria, parecia tão distante do salão quente em que estivera dois
segundos atrás.
O amanhecer, mais uma vez, se erguia no horizonte do vale das
almas. Perséfone percebeu dizer o nome dele a havia deixado com um gosto
agridoce na boca, quase como hidromel, mas permanente, perigoso.
E sabia que o sabor permaneceria, assim como a memória do olhar
dele, quando ouviu a palavra sair de seus lábios.
CAPÍTULO III – O
LABIRINTO

N ovas almas tinham chegado


em Asfódelos. Algumas
delas não conseguiam ser
consoladas. O grupo de mulheres e Perséfone foram até os recém-chegados
e lhes entregaram chá, biscoitos e bolos. Os chalés deles estariam prontos
no fim do dia. Aqueles que eram uma família poderiam ficar juntos, mas
muitos deles vinham sozinhos, deixando tudo que amavam para trás e esses
eram os mais difíceis de reconfortar.
As crianças eram as mais fáceis. Elas não entendiam por que
estavam ali.
Elas ficavam juntas em um só chalé e almas voluntárias cuidavam
delas. Ocasionalmente, Perséfone também as visitavam para ensiná-las a ler
e escrever.
Uma das novas almas era uma garota chamada Ariadne. Assim que
Perséfone a viu, soube que no mundo dos vivos ela tinha sido uma princesa.
Diferentemente dos outros, ela vestia longos trajes de seda com
cabelos longos loiros, trançados em fio de ouro. Ela estava assustada. Sua
morte havia sido em seu sono, ela tinha sido assassinada pelo amante.
Perséfone foi até ela e a entregou uma caneca com chá.
A garota arregalou os olhos quando a viu.
“Deusa” ela sussurrou, fazendo uma mesura. É claro que ela sabia
quem Perséfone era. Era comum para a realeza mortal comparecer a bailes
dos deuses. E a deusa dava um baile todo Equinócio, no primeiro dia da
primavera... assim que retornava ao mundo dos vivos.
“Aqui eu sou só Perséfone” disse em resposta, buscando chá para si
mesma e se sentando ao lado da garota. “Você está bem?”
Ariadne respirou fundo, sentindo o aroma do chá de narciso. Fechou
os olhos e Perse sabia o que ela estava fazendo, tentando se lembrar de algo
que desse indicação ao que seu amante fizera. Mas não conseguia pensar
em nada. Ariadne tinha sido traída.
“Eu o amava”
“Eu consigo sentir isso” Perséfone respondeu.
“Meu pai me julgou.” Ariadne disse em um tom triste.
“Seu pai?”
“Minos. Ele foi rei no mundo dos vivos e agora é um dos juízes
daqui... Aparentemente Hades confia nele e em seu julgamento.” Ela deu
uma risada irônica. Minos poderia ter enviado Ariadne ao Elísio, onde a
vida em morte era perfeita, livre de qualquer angústia, no entanto, ali estava
ela, junto às almas medíocres. “Ele me avisou sobre Teseu, meu amante, ele
me disse que um dia ele me trairia...”
Perséfone sentiu a dor dela.
Ficando em silêncio, indicou para ela beber o chá.
A semana passou rápido. Com as novas almas sempre havia muito o
que fazer. O sol se punha lentamente quando a deusa decidiu finalmente
voltar para seu próprio chalé e mergulhar na banheira até a água esfriar.
Quanto mais o tempo passava, mais Perséfone esquecia que tinha um
mundo completamente diferente a sua espera, e a vida ali passava a ser
normal.
No entanto, depois de seu jogo com Hades, ela só conseguia pensar
nele. No toque de seus dedos, e do jeito como ele havia dito que aquilo
havia sido um erro. Ela se perguntava o que ele considerava um erro. O
jogo, o acordo ou ela...?
Ela acenou para o grupo de crianças quando os deixou, indo em
direção ao caminho que dava para seu chalé, mais acima da colina, perto
dos pomares de romã.
Perséfone não tinha caminhado nem cinco minutos quando ouviu o
primeiro grito de horror. Ela se virou para Asfódelos, a vila de chalés de
pedra reluzentes, e viu quando um grupo de almas saiu correndo para a
praça principal, fugindo de algo que era aterrorizante.
Almas não podiam morrer uma segunda vez, mas elas podiam sofrer
eternamente.
Foi então quando ela o viu.
Um monstro. Enorme, de três metros de altura, um ser metade
homem e metade touro, vindo em direção as almas com um passo rápido e
violento. Aquele era um Minotauro. Perséfone não teve tempo de pensar em
como raios ele tinha chegado ali.
O lugar de monstros como ele era no Tártaro.
Ela deu meia-volta e correu em direção a praça, gritando para as
almas fugirem em direção aos pomares.
No meio da confusão, ela viu Ariadne. Ela estava especialmente
assustada. A princesa, assim que viu Perséfone, a puxou pelos braços.
“Ele está a minha procura!”
“Por quê?”
“Eu o deixei preso em um labirinto anos atrás e ignorei o pedido de
socorro dele. Ele quer vingança.”
Perséfone respirou fundo, olhando ao redor a procura de uma saída,
algo que pudesse protegê-las. No entanto, não teve tempo. O monstro
correu em direção as duas e com um soco, jogou Perséfone através da
praça, fazendo-a bater na parede de um dos chalés com força.
Todo o ar de dentro de seus pulmões desapareceu quando sentiu as
pedras frias sobre suas costas. Por um segundo, ouviu um zunido forte e
piscou pesado, tentando entender onde estava. Adiante, no entanto, ela
voltou a vê-lo.
O Minotauro tinha pegado Ariadne pelo pescoço e a segurava no ar.
A princesa batalhava contra o monstro, mas ela não tinha chance.
Perséfone soube que precisava fazer algo. Ela não tinha poderes no
mundo inferior, por isso só tinha uma opção.
Pegando uma pedra do tamanho de um punho e com toda a força
que ainda lhe restava, arremessou-a na cabeça dele.
Aquilo foi o bastante. O monstro foi pego de surpresa e deixou
Ariadne cair no chão. Ele olhou ao redor e encontrou Perséfone que agora
sentia o aroma de ferrugem escorrer por sua pele. Levando sua mão atrás de
sua cabeça, seus dedos voltaram cobertos por sangue rubro, vibrante.
Através da praça, Ariadne não esperou um só segundo e já estava
longe, conseguindo alcançar o grupo de outras almas.
O Minotauro, vendo o que Perséfone tinha feito, a encarou com
fúria.
Perséfone se ergueu e apertou as mãos em punho, determinada. O
que quer que ele estivesse a fazer, ela estava pronta.
O monstro correu em direção a ela, mas a meio caminho, estancou,
de repente.
Seus olhos ficaram vazios e ele caiu no chão com um baque.
Atrás dele, segurando uma espada afiada coberta de sangue, estava
Hades.
Ele olhou para baixo, para o monstro, com um olhar colérico.
Perséfone sentiu a visão ficar turva e, no segundo seguinte, havia
dois Hades a sua frente. Ela encostou as costas na parede do chalé e
escorregou para o chão.
“Deusa...” Ela ouviu a voz dele. “Você está ferida?”
“Eu... não tenho certeza”
Hades foi até ela, colocando sua espada ensanguentada de volta na
bainha. Ele deu passos longos e se agachou para encontrar os olhos dela.
Ele viu o sangue em suas mãos.
“Olhe para mim” ele sussurrou, rouco. Suas sobrancelhas estavam
franzidas, ele parecia irritado.
“Eu estou bem” ela o ignorou, tentando se erguer, sem sucesso.
Hades pegou o braço dela e a puxou de volta para o chão.
“Perséfone, olhe para mim”
Ela resmungou, mas ele ainda continuava a ser dois a sua frente. E
dois Hades era definitivamente pior do que um só.
“Ok.”
Vozes começaram a surgir ao redor da praça. As almas que tinham
corrido em direção à colina estavam voltando lentamente e aquelas que
tinham se escondido em seus chalés agora vinham para fora para ver o que
estava acontecendo.
“Eu vou tocar em você” Ele falou baixo.
“Onde?” Perséfone quis saber.
Hades abriu um leve sorriso e balançou a cabeça, ignorando-a. As
mãos dele então encontraram sua nuca e ele aproximou o rosto do dela. Ele
estava tão perto que ela sentia o aroma de sua respiração.
Hades cheirava a amoras maduras e a fumaça, à fogueira no inverno
após uma nevasca. Ele era um com o fogo e a natureza selvagem.
Suas mãos quentes tocaram a pele dela, encontrando onde o
ferimento estava. Ele colocou a palma sobre ela por alguns segundos.
Perséfone sentiu sua pele formigar, e lentamente sua visão dupla começou a
voltar ao normal.
Em seguida, havia um só Hades a sua frente.
Os olhos sombrios, a pele quente, os ombros largos e imponentes.
Perséfone sentiu quando ele começou a se afastar, mas algo dentro
dela não queria que isso acontecesse, e imediatamente puxou a camisa dele,
trazendo-o mais para perto, como se precisasse daquele calor para
sobreviver o que quer que fosse.
Ele, no entanto, franziu as sobrancelhas e ela percebeu seu erro no
exato momento. Sua mão deixou-o ir e ela sentiu um toque de
constrangimento cobrir a face.
“Obrigada, milorde”
Hades respondeu com um piscar de olhos.
Ele se levantou e ofereceu a mão para ela. Perséfone não disse nada
e não aceitou a oferta dele, se erguendo sozinha.
“A situação está sob controle” Ele falou, alto.
Ela então notou a multidão de almas ao redor.
As almas pareciam acreditar nele, pois uma explosão de aplausos se
ergueu sobre eles.
“Como um Minotauro conseguiu escapar do tártaro?” Perse quis
saber, falando em voz baixa para que outros não escutassem. Ele a ignorou.
Hades jogou sua espada para as costas e começou a caminhar para longe
dela.
As almas correram atrás dele, falando seu nome, agradecendo-o por
tê-los livrados do monstro.
Perséfone ficou para trás, olhando as costas musculosas dele
começarem a desaparecer de vista. Ela sentiu Ariadne se aproximar.
O deus continuou a caminhar a meio da multidão.
Então, para a surpresa dela, ele olhou para trás. Em seu olhar havia
uma pergunta... um convite, talvez.
Eles se encararam por um longo segundo. Um arrepio subiu pela
espinha dela.
No segundo seguinte, ele já não estava mais lá.
Ariadne dormiu com Perséfone naquela noite. Ela estava assustada
demais para dormir sozinha no chalé que agora era dela.
Só havia uma cama pequena dentro do quarto minúsculo do chalé e
quando a lareira da sala de estar estava acesa conseguia aquecer todo o
ambiente, por isso, a princesa dormiu no tapete grosso, no chão.
Durante o sono, ela falava. Ela repetia o nome de seu amante, Teseu.
Perséfone não conseguiu pegar no sono. O toque dele ainda
permeava sua pele e ela se sentia insuportavelmente quente.
Chutando as cobertas, se ergueu da cama e, nas pontas dos dedos,
conseguiu sair do quarto, deixando Ariadne ali, ainda adormecida. Ela foi
até a cozinha e abriu a pequena janela que dava para os campos da colina.
Uma névoa densa cobria o horizonte. A noites no mundo inferior eram
sempre assim, frias e desoladas. Ela ficou ali por um tempo, ouvindo o
crepitar do fogo e a respiração pesada da princesa que acolhia.
Nos seus primeiros meses ali, o sussurro das almas e da noite havia
sido assustador. Ela se lembrava daqueles dias com um toque de amargor.
Ela havia chegado sozinha ali e permanecido sozinha por um longo
tempo até encontrar Eurídice. Seu pensamento foi nela, mas se dissipou no
ar em seguida quando viu uma sombra aparecer por entre a densa névoa a
frente.
Ele caminhava em direção ao chalé, sem pressa. No início, era só
sua silhueta, mas conforme se aproximava, Perséfone pode vê-lo por
inteiro.
Hades vestia um longo robe negro que caia sobre seus pés, calças
pretas e botas que iam até o joelho. O robe cobria seu peito largo, mas ela
conseguia ver que ele não vestia nada por baixo.
Quando o olhar dos dois se encontraram, a deusa soube que ele
estava ali por ela.
Ela respirou fundo e pegou o único casaco que possuía, saindo pela
porta da cozinha e através do pomar de romã para encontrá-lo.
Hades observou os dedos dela moverem-se rapidamente nos botões
do casaco para proteger-se do frio. Ela enfiou as mãos nos bolsos quando
caminhou em direção a ele, tremendo levemente em reação à brisa gelada.
Ele apertou os olhos, parando para encontrá-la.
“O que faz aqui?” ela sussurrou, olhando para ele de cima a baixo.
Perse notou que os riscos negros que ela acreditava ser uma
tatuagem também se espalhavam pela parte superior do torso dele.
Ele piscou para ela.
“Esse é meu reino” disse, como se fosse óbvio que ele pudesse fazer
o que quisesse.
Ela suspirou. Aquela não era uma resposta aceitável.
“Por que você tem uma princesa dormindo em seus aposentos?”
Hades quis saber, rouco. “Você está viva, ela não está. Você não deveria se
envolver com almas”
“Ela está assustada” Perséfone ignorou o sermão dele e caminhou ao
leste.
Hades a seguiu, alcançando-a facilmente em passos longos.
Ela tremeu mais uma vez, pois o frio da névoa entrava por entre os
buracos daquele casaco surrado. Hades, apesar de apenas vestir calças e o
robe, parecia intocado pela temperatura baixa.
“A maioria delas estão assustadas. Isso não significa que...” Hades
continuou.
Ela parou de repente e apertou os olhos, tendo de erguer a cabeça
para encarar o rosto dele.
“O que faz aqui?” perguntou novamente, fazendo questão de
pontuar cada palavra.
“Hm” ele grunhiu baixo, assistindo o rosto dela.
Era a segunda vez que o interrompia.
Perséfone pôde jurar que o olhar dele parou em seus lábios, mas
Hades teve cuidado de quebrar a conexão no segundo seguinte.
“O que você fez foi corajoso, mas ser uma deusa não tem
importância para um Minotauro..., principalmente uma deusa sem poderes.
Não tente lutar contra monstros novamente, você pode não ter a sorte de me
ter por perto”
Perséfone o encarou com uma expressão de incredulidade.
“O quê?” Ele questionou ao assistir à face dela.
A deusa não acreditava no que ele havia dito.
“Deuses... Vocês são todos os mesmos.”
Hades pegou o braço dela, puxando-a para si.
“O que quer dizer com isso?”
Ela bufou e puxou o braço da mão dele.
“Você acha que é o primeiro deus que fala isso para mim? Eu
também sou uma deusa e não uma ninfa que se impressiona facilmente com
espadas e pequenos heroísmos. Eu sou capaz de lutar minhas próprias
batalhas.”
Hades esticou os dedos e os fechou em punho ao ouvi-la dizer
aquilo.
“Então, o que faz aqui, no submundo? Essa não é sua batalha.”
A voz dele foi afiada. Perséfone engoliu em seco e deu de costas
para ele mais uma vez.
Hades respirou fundo.
A deusa conseguia senti-lo ao seu ombro, pairando sobre suas
costas. O calor dele agora era tudo o que ela era capaz de sentir. O frio tinha
se dissipado como tinta em água.
“Eu tenho esperado você solicitar uma audiência. Pedir que essa
punição seja anulada. Pedir para voltar para o mundo dos vivos, para seus
palácios, para a primavera. Por que você está demorando tanto para me
pedir esse favor?”
A respiração dela pesou.
“Diga-me” o calor do murmúrio dele agora estava a centímetros de
seu ouvido.
Perséfone fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Ela não sabia o
que dizer.
“Eu pensei nisso por muitos meses, anos...”
“Então por que não veio até mim antes? Por que fazer um acordo
para outros... para almas e não para si mesma?”
“Estou esperando...”
Silêncio cobriu os dois quando ela disse aquilo. A respiração dele
tocava a pele do pescoço dela. Perséfone estava tentando fazer seu coração
bater mais lentamente, mas sem sucesso. Ela se sentia tonta.
“Pelo sonho” ele adivinhou. Afinal, ela tinha lhe entregue o que
possuía de mais precioso, o qual tinha vindo de um sonho.
A única certeza que a deusa tinha era que o medalhão havia sido o
presente de alguém que um dia invadira seus sonhos. Ela não se lembrava
quem ele era, mas sabia que ele estava por ali, em algum lugar. Todo o
inverno, quando seus seis meses se iniciavam no mundo inferior
novamente, ela tinha a esperança de encontrá-lo mais uma vez. Talvez,
dessa vez, ela se lembraria. Se lembraria dele.
Perséfone se virou para encontrar Hades.
“E eu sei que você não pode me livrar dessa punição, milorde.”
Hades continuou em silêncio e deu um passo para trás. Eles estavam
perto de mais um do outro. Ele enfiou as mãos nos bolsos, como estivesse
tentando evitar tocar naquilo que queria.
“Você está certa”
Ela balançou a cabeça, ouvindo aquilo pela primeira vez. Sempre
teve a desconfiança de que essa era uma punição prevista pelas moiras, o
que significava que era imutável por qualquer outro deus que não tivesse
sido o juiz da decisão, Zeus. E poucos eram aqueles que conseguiam falar
com o rei do Olimpo.
“Você sabia?” Perséfone afastou seus cabelos do rosto, e os dois
continuaram a caminhar lado a lado. Hades com as mãos nos bolsos.
“Da punição? Sim, eu estava lá, no julgamento.”
“Eu nunca consegui entender... minha mãe, a deusa da colheita, é
um ser generoso. Eu não consigo vê-la tentando tirar a vida de outro deus.”
Hades limpou a garganta e olhou para o horizonte, firme.
“Você se impressionaria com aquilo que deuses ou mortais são
capazes de fazer por amor”
“Por amor?” Perséfone parou mais uma vez, encarando o deus dos
mortos. Os olhos sombrios dele lhe alcançaram e ele colocou a mão firme e
quente sobre sua coluna baixa.
“Caminhe comigo” ele soltou um murmúrio, fazendo-a colocar um
pé a frente do outro. No entanto, o olhar dela não saia da face dele.
“Deméter deveria ter te dito a verdade. Talvez ela não seja tão generosa
quanto você acredita que ela é.”
“Por amor? Quem ela poderia amar tanto que...”
E então a ficha caiu e apesar de querer parar mais uma vez, a mão
quente e forte de Hades a guiou consigo, obrigando-a continuar
caminhando.
“Essa não é minha história para contar, mas sim, sua mãe fez o que
fez por você.”
“Por quê?”
“Uma profecia foi lida pelos oráculos” Hades disse, sua voz
distante. “Você precisa ouvir a verdade dos lábios de sua mãe, deusa. Isso é
tudo o que posso te dizer”
Perséfone engoliu em seco. Talvez fosse por isso que sua mãe
estivesse se escondendo e estivesse não só se sentindo culpada, mas não
quisesse que ela descobrisse essa versão dos acontecimentos.
Os dois deuses continuaram a caminhar, trespassando a névoa fria,
seguindo pelos campos que agora davam em direção ao vale das almas.
O vale das almas era como o mar no mundo dos vivos. Ele era
chamado de vale, pois as ondas eram baixas e, à distância, parecia
realmente um vale.
No entanto, era sobre a água onde o grande barco navegava,
trazendo novas almas todas as semanas. O capitão desse barco era chamado
de Caronte. Muitas almas chegavam em Asfódelos contando histórias sobre
ele e o mais curioso dessas histórias era que nenhuma das almas tinha a
mesma descrição de como ele era. Algumas almas o viam com um homem
velho, de cabelos brancos, outras, um homem jovem de cabelos cacheados e
longos.
Perséfone não percebeu quando pararam e ficaram assistindo às
águas silenciosas e calmas do vale a frente, coberto por névoa e um céu sem
estrelas. A mão de Hades ainda repousava sobre a cintura dela, quase como
se quisesse mantê-la ali, perto dele. O toque irradiava calor e agora Perse
sentia que não precisava daquele casaco velho.
“Quando verei você novamente?” Ela se pegou dizendo, assistindo o
rosto severo, selvagem e belo dele ser pego de surpresa.
Ele, em nem um milênio, esperaria que ela fosse fazer aquela
pergunta.
“Por que você iria querer isso?”
A voz dele era grave, suas sobrancelhas franzidas.
“Seria interessante descobrir que você não é aquele deus vil e
tedioso que todos os outros acham que você é.”
Ele soltou uma risada deliciosa. Perséfone estava começando a
apreciar as risadas dele quase tanto apreciava hidromel. Eram grossas,
doces e ricas.
“Eu sou vil.” Ele disse, divertido.
Perséfone deu de ombros.
“Isso quer dizer que você não é tedioso?”
“Hm”
Ele deixou a mão cair lentamente de sobre a cintura dela. Perséfone
sentiu o calor ir embora e não gostou muito da ausência daquele toque.
“Eu posso satisfazer esse pedido, mas... com uma condição.” Ela
esperou. Um pequeno sorriso plantou-se nos lábios dele, quando disse: “Eu
preciso de sua ajuda”
CAPÍTULO IV – A DAMA

A s almas chamavam-na de
dama. E ela estava morrendo.
Dama era uma árvore antiga,
de centenas de metros, que ficava no coração dos jardins do palácio de
Hades. Ela havia sido plantada, segundo as almas, quando Hades fora
coroado rei do mundo inferior, milênios antes, em uma era onde titãs ainda
caminhavam entre eles.
Hades não estava no palácio. Antes de desaparecer na noite anterior,
ele dissera a ela para ir ao palácio ao meio-dia e as almas a mostrariam
aquilo qual ele precisava de ajuda.
Dessa vez, agora sobre a luz do dia, o palácio do deus estava
agitado, com almas indo de um lado para outro. Umas trabalhavam nos
jardins e na horta, outras limpavam as longas janelas de vidro e algumas
simplesmente passeavam, conversando umas com as outras.
As almas dali vestiam roupas estranhas, mais antigas, outras usavam
coroas e espadas.
“Eles nos chamam de almas perdidas” O mesmo rapaz que havia
servido hidromel naquela primeira noite disse a Perséfone. “Meu nome é
Hipno, milady.”
Hipno então deixou-a só.
Perséfone olhou ou redor e notou que algumas almas a assistiam,
como se ela estar ali fosse algo curioso.
Ela encarou a árvore a sua frente. Por ser deusa da primavera, ela
tinha uma relação com plantas e árvores que era diferente de qualquer outro
deus da natureza. Ela era capaz de senti-las e, às vezes, até ouvi-las.
Era óbvio que a árvore estava morrendo. As folhas estavam secas e
caiam sobre o chão. O tronco estava descascado e fraco. Caminhando até lá,
colocou suas mãos na superfície e fechou os olhos.
Nada.
Seus poderes não funcionavam ali. Ela se perguntava por que Hades
havia pedido sua ajuda se ela não podia usar poderes para curar a árvore.
No entanto, ela conseguia sentir uma aura vindo dela. Assim como
sentia quando algum deus estava por perto. Era leve, mas estava lá,
irradiante.
Se afastando do tronco, Perséfone bufou. Já que seus poderes não
estavam funcionando, ela teria que fazer aquilo de outro jeito. Do jeito
manual.
Ela olhou para cima, para os enormes galhos e a aglomeração de
folhagem morta. Ela iria precisar de ferramentas e um ajudante.
“Posso ajudar, milady?” Hipno disse, surgindo lado dela, mais uma
vez, de repente.
Perséfone levou uma mão no peito, levemente assustada. Abriu um
sorriso e disse a ele:
“Sim”.

A noite caiu sobre o palácio de Hades muito rapidamente. Perséfone


se sentava no chão com as costas apoiadas no tronco da árvore. Ao redor,
Hipno e uma meia dúzia de almas colhiam e limpavam galhos e folhas
caídas no chão. Ela tinha passado boa parte da tarde sobre os galhos,
cortando-os, podando-os e limpando tudo que estava morto.
Havia sido um trabalho árduo e não estava nem perto de ser
finalizado, pois a árvore era imensa. Hipno havia chamado algumas outras
almas para ajudar na limpeza e se recusou deixá-la fazer mais do que já
havia feito.
Ele, de repente, veio até ela trazendo a mesma bandeja de prata do
outro dia e a entregou um cálice de hidromel sem dizer nada, apenas com
um sorriso no rosto.
Hipno tinha uma aparência interessante. Seus cabelos longos eram
presos em uma trança e ele tinha olhos distantes e olheiras escuras, como se
estivesse com sono o tempo todo.
Perséfone percebeu, ao assistir o rosto dele, que estava cansada.
Todo aquele trabalho tinha deixado seu corpo pesado.
O pôr-do-sol caia sobre o jardim do palácio, cobrindo as rosas
negras que floresciam sobre a superfície das paredes, aqui e ali. A presença
de Hades era evidente naquele lugar. Como se sua sombra ocupasse cada
fresta, cada molécula do ar, mesmo estando ausente.
Perséfone não tivera tempo de se questionar o que ele estivera
fazendo ou por que não esteve ali para recebê-la mais cedo, no entanto, se
pegou perguntando por que aquela árvore era tão importante para ele.
E o pior, se questionou o porquê estava disposta a ajudá-lo. Para vê-
lo novamente?
Ele era o deus dos mortos. O deus mais sombrio que existia. Até
uma semana atrás ele tinha ignorado sua presença, uma deusa como ele, em
seus domínios. Dias atrás ela ainda pensava nele como aquele que torturava
almas no tártaro.
Agora, Perséfone só pensava nele como... Hades. Em seus olhos
escuros, ônix, vibrantes como fogo. Na beleza proibida e selvagem dele.
E foi pensando nele que se viu mergulhando no sono, levada pelo
cansaço do dia. A taça de hidromel escorregou de seus dedos e desabou no
chão.
No segundo seguinte ela estava em um sonho que não se lembraria
quando acordasse.

Perséfone sentiu o calor do peito dele e seus braços ao redor do


corpo. Ele cheirava a fumaça de velas de rum antigas, e pinheiro após
chuva. A deusa se sentia estranhamente cansada. Mesmo assim, tentou lutar
o sono para abrir os olhos e ver quem a carregava no colo. Ela ouvia as
batidas rítmicas do coração dele e o leve sacolejo dos passos que ele dava.
Os lábios de Hades tocaram o ouvido dela, quentes, doces como
ambrosia.
“Durma” a voz rouca disse, baixinho.
Sem conseguir lutar mais contra aquele sono estranho, ela o
obedeceu.
O sol crepitava lá fora quando ela acordou.
Perséfone piscou pesado, olhando ao redor e percebendo que estava,
de fato, deitada em sua cama, em seu chalé.
Ela deu um pulo da cama ao perceber que tinha sido de fato
carregada até ali. Parte dela achava que a sensação da pele dele na sua havia
sido apenas um sonho. Passando os dedos sobre o rosto, ele ainda parecia
presente ali. Como o sol de verão.
Hades.
Um estrondo de panelas e risadas interrompeu o pensamento dela. O
barulho vinha da cozinha. Será que ele estaria ali... esperando-a acordar?
Perséfone tirou o vestido do dia anterior, feito de algodão de alguns
bordados simples cor amarela e se trocou rapidamente. Perséfone tinha uma
seleção limitada de vestidos e sabia que se fosse continuar se encontrando
com o rei daquele reino iria precisar de alguns novos, o que significava que
teria que encontrar tecido em algum lugar e costurá-los a mão. Ela bufou e
abandonou o pensamento. Em seus palácios ela tinha salões de vestidos,
feitos por ninfas e costureiras mortais experientes e tudo era mais fácil do
que ali.
Ela passou a mão nas saias do pior vestido que tinha, marrom sem
nenhum detalhe interessante apesar de ter mangas curtas e um decote até
bonito, mas agora que ela não tinha mais seu medalhão, seu colo parecia
vazio.
Dando uma olhada ao redor, Perséfone também notou que hoje seria
o dia de lavar roupas. Ignorando esse pensamento, abriu a porta do quarto e
foi em direção à cozinha.
Seu peito estava apertado na expectativa de encontrá-lo.
No entanto, não era Hades que estava ali.
Com os cabelos loiros jogados para trás, Hermes se virou para ela e
abriu um sorriso grande.
“Estávamos esperando por você!”
Ariadne parou do lado do deus e abriu uma bandeja com um
entusiasmo inesperado.
Perséfone riu da expressão dos dois. Parecia que eles eram duas
crianças que tinham acabado de fazer algo muito travesso.
O olhar dela pairou naquilo que havia sobre a bandeja.
Pequenos bolos cor de rosa cobertos por açúcar.
“Manjar dos deuses” ela sussurrou, dando um pulo até eles e
pegando um nas mãos. Aqueles, assim como hidromel, eram exclusivos a
deuses e, ocasionalmente, realezas e semideuses que tinham a sorte de
participar de festas dadas por divindades. Por isso, Ariadne os conhecia
bem. “Eu achei que você não podia trazer objetos do mundo dos vivos para
cá”
“E não posso” Hermes disse, enfiando um na boca e pegando a
cintura de Perséfone para uma dança rápida de alegria. Ela deu uma risada.
“Então, como conseguiu esses manjares?” ela continuou rindo.
“Roubou de Hades?”
“Sim”
Ariadne e Perséfone estancaram onde estavam. Ariadne tinha
metade de um manjar na boca. Ela parou de mastigar.
“O quê?” ela disse em um sussurro bloqueado pelo bolo.
Hermes deu de ombro, comendo outro.
“Confie em mim, ele não se importa”
“Eu vou para o tártaro... por causa de um bolo” Ariadne resmungou,
batendo a mão na testa.
Perséfone olhou para ela e não conseguiu segurar uma risada. A
princesa parecia completamente aparvalhada. Hermes seguiu a deusa em
uma gargalhada alta e Ariadne também não conseguiu se segurar, pegando
outro manjar e enfiando na boca como se dissesse: Eu já estou no inferno,
não tem como piorar muito do que isso.

Hermes passou o dia com as duas.


Ariadne o conhecia por Teseu, o amante que a matara. Eles não
tocaram no assunto, mas era claro que ela gostaria de saber o que estava
acontecendo no mundo dos vivos. Juntos, eles fizeram uma caminhada por
Asfódelos.
Perséfone e o deus mensageiro então seguiram caminhando
sozinhos pelos campos próximos ao pomar de romãs. Ariadne acenou para
os dois, dando-os privacidade, e disse que a encontraria no chalé mais tarde.
“Você tem notícias de Eurídice?” Perséfone quis saber.
Hermes ergueu o braço para tocar em uma romã que estava acima de
seu alcance.
“A viagem de volta para o mundo dos vivos é longa...” ele disse.
“Não ficaria surpreso se eles ainda tivessem a meio caminho de volta”
A deusa suspirou. Eles pararam sob a sombra e olharam para acima
da colina. Dali, o palácio de Hades era quase visível, distante e frio.
“Por que você está aqui?”
Hermes encarou Perséfone.
“É raro essa pergunta sair de seus lábios, deusa.” Ele disse.
E era verdade. Perséfone havia aprendido muito cedo que, com
deuses, saber pouco ou nada era o bastante. Mas ele estar ali significava que
tinha trazido uma mensagem a Hades.
“É o Olimpo?”
Hermes concordou. Eles continuaram a caminhar, voltando pelo
caminho do campo até o chalé.
“Zeus ou Poseidon?”
“Zeus... mais uma vez”
O deus tinha a fama de terrível e não era sem razão. Apesar de ser
aquele que liderava os doze deuses mais poderosos, todos sabiam que quem
mantinha Olimpo em ordem era Poseidon e... Hades. Todos reconheciam
isso, mas não podiam jamais dizer as palavras.
Zeus estava constantemente embriagado e se envolvendo em
situações horrendas com deusas menores, ninfas e até mesmo mulheres
mortais. Perséfone, naqueles quatro anos vivendo por ali, tinha conhecido
ao menos duas mulheres mortais que haviam sido enviadas a Asfódelos
após terem se envolvido com Zeus. O interessante era que elas não haviam
permanecido na vila. Perséfone tinha a suspeita de que Hades levara elas
para outro lugar, na tentativa de evitar boatos vergonhosos.
“Você vai convidar os doze, mais uma vez? Para seu baile?” Hermes
quis saber, de repente.
Perséfone pensou naquilo, lembrando-se que em alguns dias estaria
de volta ao mundo dos vivos. No primeiro dia de primavera, ela dava um
baile e sempre convidava os doze deuses mais poderosos, membros do
conselho divino, como praxe.
No entanto, como não era uma deusa tão importante, eles raramente
apareciam. Nem mesmo Hermes, quem ela considerava um amigo, havia
comparecido mais do que uma vez e havia sido por alguns poucos minutos.
Aquela seria a quinta vez que daria o baile com o início da
primavera e duvidava que receberia um dos doze. O convite era mais um
reconhecimento do poder deles, do que uma expectativa de que eles
comparecessem.
“Você virá por mais de dez minutos dessa vez?”
O deus riu.
“Depende...”
“Eu sei o que você vai dizer” ela riu.
Ele puxou a mão dela e a fez rodopiar ao redor do vento e do campo
a frente deles, coberto por narcisos. Hermes a puxou para si.
“Talvez uma dança com música alegre, manjares não roubados e
hidromel não seja tão ruim assim” ele falou.
Perséfone percebeu que Hermes estava perto de mais dela. A mão
dele a puxou pela cintura. Seus olhos, azuis como o mar dos mortais,
escondia algo. Perséfone quis saber o que era.
“Claro que dançarei com você, mensageiro.”
“A primeira dança?” ele disse, colocando um fio de cabelo dela
sobre a orelha.
Perséfone abriu um sorriso e se afastou levemente. Ela ergueu as
mãos.
“A primeira e a última. Talvez isso garanta que você fique a noite
inteira”
Ele riu.
“Acordo fechado.” De repente, ela viu Hermes ficar tenso. “Preciso
ir.”
A deusa olhou ao redor, mas só havia eles a milhas de distância e os
narcisos sob seus pés. Hermes deu um último sorriso e desapareceu em
seguida.
Se vendo sozinha, ela caminhou de volta ao chalé e encontrou
Ariadne lá, ao poço, com a cesta de vestidos dela.
Perséfone sabia que mesmo se reclamasse e pedisse para Ariadne
não fazer suas tarefas, não adiantaria. A princesa era grata por tê-la livrado
do Minotauro e na última semana tinha ajudado com a limpeza da casa,
pegar água para banhos e, agora, com sua roupa suja.
A deusa se aproximou da princesa e pegou um vestido nas mãos,
começando a lavá-lo sobre a água do poço. Antes de chegar no submundo,
Perséfone nunca imaginou que teria que lavar as próprias roupas. Ela teve
que aprender a se virar do pior jeito possível. Sozinha.
Depois de quatro anos, no entanto, ela estava lentamente apreciando
o tempo que passava fazendo coisas para si mesma, pois em seus palácios
nem mesmo penteava seus próprios cabelos.
As duas ficaram em silêncio por um tempo, esfregando as roupas,
até que todos os vestidos e alguns lençóis estivessem limpos. Elas
estenderam tudo à brisa daquilo que parecia uma tempestade vindoura e
Ariadne, antes de voltar ao poço para buscar água para o banho de
Perséfone, disse:
“Hermes gosta de você, milady”
“Ele é um amigo”
Ariadne balançou a cabeça.
“Ele não quer ser só seu amigo, confie em mim” A princesa colocou
a mão sobre o ombro da deusa e disse, finalmente: “Não deixe ele ser seu
primeiro amante. Eu conheci e morri por um homem como Hermes... ele
vai destruir você”
Perséfone abriu a boca para dizer algo em resposta, mas fechou em
seguida.
Ela não podia mentir, tinha considerado a opção de ter Hermes
como amante algumas vezes... especialmente em noites frias que tinha
passado sozinha ali.
Ariadne entrou no chalé, deixando a deusa às suas costas, no jardim.
Perséfone permaneceu e assistiu às nuvens carregadas cobrirem os céus
estranhos do submundo.
Da mesma forma que ela estava certa de que a chuva estava prestes
a cair, sabia que o que Ariadne havia dito era mais do que um conselho, era
um aviso.

A deusa estava completamente ensopada quando ultrapassou o


portal sobre a ponte do palácio de Hades. A noite e a tempestade tinham
chegado rápido demais.
Com Hermes ali ela não pôde vir mais cedo para checar a árvore,
que agora sabia ser uma macieira.
O portal levou-a exatamente para onde precisava estar e em questão
de segundos estava a frente do tronco enorme, olhando para os galhos que
havia podado no dia anterior. O jardim estava completamente vazio,
diferentemente da tarde passada. Mesmo assim, suas ferramentas haviam
sido deixadas em um baú elegante de couro aos pés da árvore.
Sem pensar duas vezes, Perséfone pegou um cerrote e subiu,
devagar, sobre a superfície escorregadia do tronco e dos galhos que ainda
estavam verdes e começou a cortar aqueles que estavam secos e mortos. Ela
achava que precisaria de mais um dia inteiro fazendo aquilo até terminar,
mas se pegou cortando tudo o que precisava em algumas horas.
Ela jogou o cerrote no chão e encostou-se em um galho grosso,
flexionando os dedos cansados, analisando seu trabalho.
A chuva não tinha parado e parecia ficar pior. Era sempre assim no
submundo. As tempestades duravam dias. Dias de calor eram comparados a
estar no deserto. A neve e o frio eram imperdoáveis. Era quase como se o
tempo e as estações ali não fossem naturais.
Ela se pegou sentindo falta de seus palácios e da primavera. Do
aroma das flores sob o céu azul, a brisa do verão, o sabor de bolos gelados e
hidromel ao gelo.
“Até mesmo deuses não são imunes a resfriados”
A voz de Hades a fez dar um pulo e, sem querer, ela escorregou do
galho, prestes a cair de cara no chão. Ela fechou os olhos, se preparando
para o impacto, mas sentiu o calor fervente dos braços dele em seguida.
“Deuses!” ela exclamou, o coração cavalgando ao peito.
“Você precisa ser mais cuidadosa, deusa” ele suspirou contra os
cabelos dela, grave.
Perséfone agarrou a jaqueta de couro que o deus trajava e soltou um
suspiro pesado.
Hades a colocou no chão lentamente. Ele demorou-se, assistindo o
rosto dela. A chuva caia sobre os dois. Os cabelos dela estavam encharcados
e seus olhos cor de âmbar pareciam mais escuros do que o normal. Seu
vestido marrom caia sobre o corpo dela, colando nas curvas de seu corpo.
Ela sentiu a respiração pesar quando a mão dele, coberta por uma luva
grossa, tocou sua face. Mesmo com aquela barreira, ele exalava a fogo.
Perséfone precisava olhar para cima para encontrar aquele olhar
sombrio. A beleza dele era realçada pela escuridão da noite e ainda mais
pelas gotas da tempestade violenta ao redor.
“Hm” ele murmurou.
O que ele queria dizer? Perséfone sentia que ele estava prestes a
tomá-la pela nuca e puxá-la pelos cabelos para examinar seu rosto sob a luz
fraca que vinha do palácio.
Para a infelicidade dela, no entanto, Hades deu um passo para trás,
abaixando as mãos sobre o corpo.
Repentinamente, duas almas apareceram no jardim trazendo toalhas.
“Venha” Hades disse, dando as costas para ela e indo em direção à
saída do jardim. Assim que eles atravessaram um arco em ogiva, o palácio
se ergueu entre eles, mas os dois não precisavam caminhar por todo o
palácio para chegarem aonde precisavam.
Um instante após atravessar o arco, Hades transportou ambos para
aquela mesma sala onde jogaram Rainha Prometida.
O tabuleiro ainda estava lá, no centro da sala. As peças haviam sido
organizadas, prontas para um novo jogo.
“Aqui” Hades agora estava às costas de Perse. Ele colocou algo
quente sobre os ombros dela. Tinha o aroma de fumaça.
A deusa se virou para ele e viu que era a jaqueta de couro que ele
estivera usando. Mais uma vez, Hades trajava preto da cabeça aos pés e
aparentemente ele só tinha um estilo de camisa, as que eram impossíveis de
ficar amarradas sobre o peito.
Os riscos da tatuagem dele agora eram um mistério que ela havia
decido que teria que desvendar. Só não sabia como...
Hades caminhou envolta dela e sentou-se na cadeira de madeira
queimada.
Um cálice de hidromel o esperava.
A deusa tentou secar o máximo que pôde do seu cabelo longo com
as toalhas e deixou-as sobre um aparador elegante perto da lareira. O
ambiente estava incrivelmente quente. Uma taça de hidromel também
estava a sua espera.
Ela deu um gole na bebida, sedenta, ficando em pé.
“Há quanto tempo você conhece Hermes?”
Perséfone franziu o cenho e começou a andar ao redor, inquieta pelo
olhar dele.
“Eu tinha dezessete anos quando o conheci”
Ela ouviu Hades respirar fundo atrás de si.
Ela não tinha reparado na primeira vez que estivera ali, mas a sala
possuía inúmeras relíquias. Algumas de guerra, algumas que pareciam ter
sido recuperadas do meio do mar ou do centro da terra. Sobre as paredes de
pedra vulcânica havia espadas e outras armas que pareciam prontas para uso
a qualquer momento. Perséfone não duvidaria se esse realmente fosse o
caso.
Em uma estante elegante de vidro havia um objeto que brilhava. Era
um bracelete bem masculino, de prata. Sobre ele havia inscrições longas e
belas em grego antigo. Perséfone sentiu uma vontade quase excruciante de
tocá-lo e abruptamente viu sua mão indo em direção ao objeto.
Hades a impediu, pegando-a pelo pulso com um estalo.
“Você não quer tocar nisso, deusa”
Ela engoliu em seco, balançando a cabeça para afastar a sensação
estranha que sentira um segundo atrás.
“O que é? Parece magia negra”
“E é. Hécate me deu de presente alguns milênios atrás. Ela tinha a
intenção de me transformar em um porco”
Hécate era a bruxa mais talentosa e poderosa de todos os deuses.
Também era famosamente conhecida por transformar homens quais ela não
tinha muita afinidade em porcos ou ratos. Perséfone se viu rindo de Hades,
se perguntando o que ele tinha feito para causar a fúria da bruxa. O deus
soltou o pulso dela com delicadeza e apertou os lábios. Apesar de sério, ela
viu a sombra de um pequeno sorriso.
“Eu ouvi sobre Zeus...”
Hades balançou a cabeça e resmungou baixo, voltando para a
cadeira. Perséfone notou que ele tinha retirado as luvas. Ele enfiou os dedos
languidos nos bolsos das calças pretas.
“Hermes deveria aprender a manter a boca fechada”
“Eu perguntei a ele...”
Hades a fuzilou com o olhar. Perséfone se lembrou de uma história
que ouvira alguns anos antes, de que Zeus sabia quando outros deuses
falavam seu nome. Era uma forma de ele saber como puni-los caso não
gostasse do que havia sido dito.
“Achei que você fosse mais sensata do que isso”
“Por quê? Você não me conhece...” ela fez uma pausa. “Apesar de
eu achar que você deveria”
Hades apertou os olhos em reação a última parte da frase dela e a
encarou quando ela se sentou a sua frente. Ele ficou em silêncio. Havia uma
pergunta no ar.
Perséfone tomou uma lufada de ar e tocou na peça da dama sem
coroa a sua frente.
“Essa é minha punição, Lorde Hades. Eu estarei aqui, nos seus
domínios, seis meses ao ano pelo resto de minha existência.” Ela deu de
ombros. “Você poderia me conhecer agora e poderíamos ser amigos ou
podemos esperar um milênio. Nada vai mudar o fato de que estarei aqui
todos os invernos.”
“Amigos?” ele ergueu uma sobrancelha.
“Amigos. Por que não?”
“O deus da morte não tem amigos”
Ela riu.
“Sim, você os tem”
“Quem?” ele apoiou o cotovelo no apoio da cadeira e a assistiu,
divertido.
“Caronte, Hipno...?”
“Eles não são meus amigos. Eles me servem. Eu sou o senhor deles”
“E seus irmãos?” ela fez uma careta.
Hades riu da expressão dela.
“Poseidon, sim. Mas depende do dia e do tanto de vinho dourado
que ele tomou naquele dia.”
A deusa fez um movimento de vitória. Ela quase não deixou a
pergunta escapar dos lábios, mas acabou saindo mesmo assim:
“E Zeus?”
“Não somos próximos” Ele disse, calmo, como se esperasse a
pergunta. Os lábios dela se abriram no mesmo instante em que a mão dele
se ergueu. “E não, não lhe direi a razão”
O tom de voz dele era tranquilo.
“Como você e Hermes se conheceram?” Hades quis saber,
inquisitivo. Ele parecia bem interessado na relação deles. Perséfone
encostou a cabeça no encosto.
“Como os deuses geralmente conhecem o mensageiro? Por
mensagens. Antes de descobrir a punição... que tinha que vir até aqui, eu
costumava receber cartas de pretendentes.” Perséfone riu da lembrança. Ela
recebia ouro, prata, vestidos, presentes vindo do leste e oeste junto a
pedidos de casamentos de reis e deuses menores.
Antes, ela considerava tudo como um elogio. Agora, a ideia de virar
uma rainha em algum lugar bonito, onde a primavera era constante o ano
todo, lhe parecia ridícula.
Hades pareceu ver esse pensamento nos olhos dela.
“Você os respondia?”
“Nunca.” Ela negou com o queixo, sorvendo mais um gole da
bebida.
“Por quê?”
“Parte de mim sabia que eu era prometida a alguém ou a algo... E
apesar de não ser oposta a casamentos arranjados, não era sempre que eu
acreditava que seria entregue a um rei qualquer. Às vezes, eu acreditava que
estava prometida a uma tarefa divina e um dia sairia de meus palácios como
deusa da primavera e retornaria uma heroína.”
“Ainda há tempo” Hades disse, sério.
Perséfone sorriu.
“Tempo é algo que pareço nunca ter no mundo dos vivos. A
primavera lá fora sempre passa rápido demais”
“Você odeia meu reino tanto assim?” Hades também encostou a
cabeça na cadeira, curioso. A expressão dele era leve, como se ele não
achasse estranho o fato dela não gostar dali, afinal, era compreensível.
Aquele era o inferno. O lugar não tinha muitos fãs devotos.
Perséfone encarou Hades.
A beleza dele era única. Seu queixo quadrado e a expressão austera
a fazia imaginar coisas que nunca tinha imaginado antes. Coisas como seria
sentir o peso dos braços e do peito amplo e musculoso dele sobre seu
corpo...
A luz das chamas ao redor bruxuleava sobre a face dele.
Deus do submundo. Deus dos mortos. Um soldado, um general
divino.
Ela notou, curiosamente, que só o vira com sua espada no dia em
que ele matou o Minotauro. Alguns deuses, como Apolo, por exemplo,
sempre exibiam a arma. Era uma forma de mostrar que tinham participado
da batalha com os titãs, de expor a honra, quando, na verdade, poucos
deuses tinham lutado. Ao contrário de Hades. Ele não precisava de armas
para que outros soubessem como era perigoso e letal.
Perséfone ficava cada vez mais curiosa com a presença dele. Nas
poucas vezes que se pegou imaginando como o deus era, deveria admitir
que o homem belo, musculoso e sério, não era o que tivera em mente.
Ele era o irmão mais novo dos três deuses mais poderosos.
Zeus, o mais velho e por si parecia como um mortal mais velho, de
quarenta, às vezes cinquenta anos. Poseidon seguia um pouco mais novo. E
Hades tinha a aparência de um mortal de trinta e cinco anos, mas ela sabia
bem que a existência do deus se estendia por milênios.
Ele estava ali, reinando o submundo, há mais tempo do que o
próprio tempo.
“Perséfone?” A voz dele a trouxe de volta a realidade. Rouca,
presente. Próxima demais. Quente, quente como ela acreditava que os
lábios dele seriam.
Ela notou que o modo como ele falava seu nome era diferente de
todas as outras pessoas que conhecia. Era como se ele já tivesse dito o nome
dela milhares de vezes e conhecia cada sílaba como se conhecesse o próprio
nome.
“Eu não odeio seu reino” Ela respondeu, finalmente. “Eu odeio o
fato que não tive escolha.”
“E se tivesse escolha? Você viria aqui?”
“Somente se conhecesse você.”
Hades ficou em silêncio por um instante. E, durante aqueles
segundos, Perséfone achou que ele iria mandá-la para o chalé como fizera
na última vez.
“Posso mostrá-la algo, deusa?”
“Algo perigoso?” ela ergueu uma sobrancelha, abrindo um sorriso.
“Você é uma deusa peculiar, Perséfone. Você tem perigo escorrendo
pelas veias.” Ele se ergueu. “Não, nada perigoso. Algo... brilhante.”
Hipno, de repente, surgiu por entre a porta interior da sala, trazendo
um pequeno baú nas mãos, aproveitando a deixa. O rapaz de tranças longas
colocou o objeto sobre um dos aparadores ao redor da sala e saiu
rapidamente.
“Ele é um deus, não é?” Perséfone quis saber, se levantando da
cadeira junto a Hades. Sua taça de hidromel, vazia.
“Sim. Eu evitaria olhar em seus olhos. Hipno é o deus do sono”
Ah, isso explicava o sono estranho que ela sentiu no dia anterior. E a
fazia lembrar do calor dos braços de Hades carregando-a para sua cama. Ela
abriu a boca para perguntar se havia sido realmente ele, mas ele a
interrompeu:
“Roupas secas” Hades apontou para o baú.
“Oh” ela olhou para seu corpo. Ela parecia ter esquecido que ainda
estava completamente molhada apesar do calor de cem graus que fazia ali.
“Chame meu nome quando estiver pronta” O deus disse,
desaparecendo no ar, deixando-a só na sala.
Perséfone olhou ao redor. Estava completamente sozinha.
Ela abriu o baú, encontrando um longo vestido rosa-claro feito da
mais bela seda que já vira na vida. Até mesmo em seus palácios ela não
tinha visto uma vestimenta como aquela.
Ela pegou o vestido nas mãos. As mangas eram curtas e cobertas por
bordados, feito a ouro. As saias escorriam como ondas, drapeando em
dobras elegantes. Sobre o colo havia um decote que descia pelos ombros,
cobertos por pérolas.
Quando Perséfone o vestiu, sentiu o toque da seda na pele e era
suave. Tocando as pérolas sobre o pescoço, ela não conseguiu evitar o
pensamento de que talvez aquele vestido um dia tivesse pertencido à única
deusa que tinha pérolas como suas pedras favoritas: Afrodite.
Afrodite e Hades? Perséfone balançou a cabeça, incapaz de
imaginar. A deusa do amor era conhecida por seus casos amorosos com
outros deuses, mas Perséfone havia ouvido um sussurro de que deusa do
amor agora estava casada com Hefesto, que, pelo que as histórias diziam,
morava por ali, em algum lugar secreto do submundo.
Perséfone secou o que podia de seus cabelos e os trançou, deixando
alguns fios soltos sobre o rosto. Não havia espelhos por ali, e ela se sentiu
um tanto exposta, principalmente após imaginar Hades com a deusa mais
bela de todos. A deusa qual diziam ser perfeita.
“Hades” ela suspirou por fim, abandonando os pensamentos e se
contentando com o que tinha.
O que importava se Hades e Afrodite tinham um caso e ela estivesse
trajando um dos vestidos da deusa do amor... da amante dele?
Por mais que dissesse a si mesma que não importava, só aquela
imagem a deixava sem ar. Repentinamente o vestido começou a pesar sobre
os ombros.
Hades apareceu de volta, de repente.
Os olhos dele passearam pelo corpo dela por um milésimo de
segundo, e ele se deteve em seu rosto. A face dela era coberta por leves
sardas e seus lábios cheios, rosados, eram como fruta madura... pareciam
deliciosos.
“Hm” ele grunhiu baixinho.
Hades jamais vira uma deusa como ela. Jamais vira beleza como a
dela. Leve, bela... única.
Como flores na primavera.
Como amantes sob chuva.
Como sangue e fogo após uma batalha.
Perséfone assistiu a expressão dele e podia jurar que ele estava
prestes a dizer algo a respeito de sua aparência.
Mas quando ele abriu os lábios, falou rouco:
“Pronta?”
“Sim”
E no segundo seguinte, a gravidade girou ao redor deles e eles
desapareceram no ar.
CAPÍTULO V – O ELÍSIO

“Bem-vinda ao Elísio”
Elísio. A cidade de deuses bondosos e heróis. A sua frente, a cidade
se erguia como um diamante. Elísio era longe daquilo que ela sabia ser o
submundo, ou, no caso, Asfódelos.
Meus deuses, ela suspirou entre os lábios, impressionada.
Elísio era uma cidade densa, alta, com prédios, catedrais e palácios
que brilhavam sobre a luz do luar. A chuva não havia seguido até ali e o ar
era fresco. A lua cheia fulgia em esplendor. Ela nunca tinha visto uma lua
tão cheia quanto aquela.
O céu, claro, seco, estava coberto em um tapete infinito de estrelas
que só existiam ali.
Entre os grandes palácios brilhantes e catedrais, um rio lânguido e
cristalino dividia a cidade.
“Hades...” ela encontrou o olhar dele, maravilhada com o que via.
Hades exibia um sorriso satisfeito.
“É, eu sei.”
Com um movimento das mãos, um tecido negro surgiu entre os
dedos dele, como se Hades tivesse acabado de fazer um truque de mágica.
Ele foi até ela e colocou a capa leve sobre seus ombros. O deus veio até
Perséfone e olhando em seu rosto, deu um nó no laço sobre o colo.
“Para que é isso?”
“Eu ainda sou Hades, o rei dessas terras. E raramente caminho pelo
meu reino com a intenção de ser notado” ele disse, puxando o capuz da
capa sobre os cabelos dela. “Essa é uma capa de invisibilidade”
Ela arregalou os olhos. Ele riu.
“Pronto.” Hades se afastou e olhou-a de pé a cabeça. “Eu serei o
único que poderá vê-la, deusa. Não se preocupe, eu manterei você segura”
“Cadê a sua capa?”
Hades fez uma expressão curiosa e ergueu uma das sobrancelhas.
“Eu não preciso de uma”
Ele tinha o poder de invisibilidade? Perséfone tomou um segundo
para aceitar essa informação. Ela duvidava que havia muitos outros deuses
que sabiam disso. Ela, de fato, nunca ouvira falar de um deus com esse tipo
de habilidade.
Esse era um poder que causaria intrigas e mortes. Talvez fosse por
isso que ele o mantinha em segredo.
Hades começou a caminhar, com as mãos cruzadas atrás das costas,
como se conhecesse aquele caminho como conhecia a palma da própria
mão. Perséfone manteve o passo dele, o que significava ter que dar um
passo e meio para cada longa passada que ele dava.
A colina onde eles estavam dava para a margem do rio que cortava a
cidade. Rapidamente, eles se aproximaram de um pequeno embarcadouro
próximo às águas.
“Esse é o rio Estige.” Perséfone percebeu. Aquele era o quinto rio
do submundo. Era a primeira vez que o via. Era similar ao rio Lete,
cristalino com leves correntes, mas diferentemente do Lete não tirava suas
memórias. A verdade era que ela não sabia o que o Estige era capaz de
fazer.
Hades alcançou a corda de um pequeno barco sobre a água. O barco
era da cor de ametista e brilhava como tal. No centro dele havia uma
lamparina que continha uma vela acessa.
O deus do submundo então ergueu a mão para Perséfone,
convidando-a para subir no barco.
Dando um passo lento até ele, Perséfone deslizou seus dedos por
entre os dele.
Quente como se estivesse tocando fogo. Os dois se olharam por um
segundo que pareceu durar horas. Havia desejo no olhar dele,
vulnerabilidade no olhar dela.
O coração de Perséfone bateu rápido, deixando-a tonta.
Ela se sentou de costas para a frente do barco e abaixou as palmas
das mãos sobre os joelhos, ainda capaz de sentir a pele dele na sua.
O barco começou a mover-se sozinho por entre as águas cristalinas.
A luz da cidade vibrava ao redor.
“Eu não entendo... As almas de Asfódelos, por que elas não podem
vir para cá também?”
“Há uma ordem para as coisas, Perséfone. As almas de Asfódelos
estão onde devem estar. Elas não são infelizes.”
“Não.” ela olhou ao redor. “Mas tudo isso...”
“Só porque algo reluz não significa que tem mais valor” Hades
disse, tenro.
Perséfone olhou para ele, respirando fundo.
“Todas as almas do meu reino são julgadas justamente. E a verdade
é que a maioria daqueles que estão em Asfódelos estão confusos,
insatisfeitos com a morte. Asfódelos os dá uma chance de viver entre outros
e ter uma existência... normal.”
A deusa da primavera pensou no que ele disse. Eles passaram por
uma ponte coberta por lamparinas suspensas no ar. A luz alaranjada tocou a
face dela.
“Por que você não vai aos bailes dados por deuses?”
“Hm” Hades abriu um sorriso canto de lábio, seus olhos estavam
perdidos na cidade brilhante ao redor dos dois. “Eu não danço”
Ela soltou uma risada. O olhar dele voltou a ela para assisti-la.
“Os convites são raramente sinceros.” Ele falou a verdade.
Balançando a cabeça, a deusa murmurou:
“Eu não acredito nisso. Você é...” Fez uma pausa, não sabendo
exatamente com o que completar. Absurdamente lindo? Normal? Longe de
ser um monstro ou um velho com rugas e olhos como a morte?
Perséfone não teve tempo de completar a frase. Eles pararam de
repente sobre o banco do rio. Hades pulou do barco e amarrou a corda em
um tronco. Dessa vez, ele não ofereceu a mão para ela e os dois seguiram
lado a lado adiante em direção às luzes.
O caminho era feito de pedras negras e levava a uma ruela pequena,
iluminada por archotes. As ruas estavam cheias. Almas iam e vinham,
algumas dançavam, outras carregavam cestas de frutas nas cabeças. Eles
estavam adentrando a praça principal, onde, ao luar, havia uma feira.
Eles pararam e ela admirou o ambiente. As casas eram coloridas e
cobertas por vinhedos. A praça estava começando a ficar ainda mais
agitada, com almas se aglomerando próximo a centro, onde, para a surpresa
dela, havia uma estátua de Hades.
O Hades da estátua era austero, com uma longa espada entre os
dedos e uma coroa feita de ossos sobre o cenho. Ela se virou para olhar para
o Hades verdadeiro, a seu lado. Foi quando ele deu um passo para mais
perto dela e abaixou a face para dizer sobre seu ouvido:
“Olhe.”
Um raio de eletricidade correu pela espinha dela.
Perséfone então se tornou para a praça e, de repente, a meio dela,
lanternas de ar quente começaram a subir os céus. Uma a uma, o céu
estrelado agora estava coberto por elas.
A deusa duvidava jamais ter visto algo tão belo.
“Isso faz você odiar meu reino um pouco menos?” Hades perguntou,
a voz dele sobre a pele sensível dela.
Encontrar a face do deus dos mortos perto dela a fez se sentir mais
viva do que nunca, e ela não deixou de notar a ironia disso.
Com as lamparinas a sua cabeça e Hades ao lado, Perséfone teve
três certezas naquele momento:
Uma. Hades não era quem o mundo acreditava ser.
Duas. Ela queria beijá-lo enlouquecidamente.
Três. Ela acreditava que ele compartilhava do mesmo sentimento.
Os dois ficaram ali, juntos, mas distantes, assistindo às lamparinas
desaparecerem nos céus até que nenhuma mais podia ser vista. Em silêncio,
voltaram ao barco e quando retornaram à colina, Hades os transportou para
Asfódelos.
Chuva ainda caia ali, forte. Raios cobriam o horizonte do vale das
almas. Eles aterrissaram sobre o pomar de romãs. Hades não se despediu
dela, apenas virou as costas e começou a caminhar pelo campo acima em
direção ao palácio.
“Não acho que posso salvar sua árvore!” ela gritou por fim, sob a
chuva pesada.
“Tudo pode ser salvo, deusa”
Ela suspirou.
“Até mesmo aquilo que está entre os mortos?”
Ele virou-se para ela, distante, sem parar de caminhar e disse for
fim:
“Especialmente aquilo que está entre os mortos.”
“Afrodite” A palavra saiu da boca de Ariadne no instante em que
colocou o vestido sobre a mesa de madeira velha do chalé.
Perséfone riu.
“Pensei o mesmo”
“Como você conseguiu isso, milady?” A princesa pegou o tecido nas
mãos, admirando a seda. Ela, assim como a deusa, conhecia a melhor seda e
os melhores bordados. Perséfone sabia que ela seria a melhor pessoa em
Asfódelos com quem falar a respeito do vestido.
“Hades”
Ariadne arregalou os olhos.
“O deus do submundo lhe deu esse vestido?” A garota estava prestes
a engasgar.
“Foi mais como um empréstimo...”
O que Perséfone realmente queria era a capa de invisibilidade, a
qual desapareceu de seus ombros quando ele foi embora na noite anterior.
“Você acha que Hades e Afrodite são amantes...?”
Perséfone deu de ombros em resposta a pergunta.
“Não vejo por que não. Explicaria isso...” ela apontou para o
vestido.
Ariadne soube imediatamente que havia algo estranho naquele
interesse dela.
“Onde ele levou você ontem, milady?”
“Para o Elísio”
Ariadne respirou fundo.
“Deuses...” Ela esmaeceu. “Vocês não são muito melhores que
mortais... talvez até piores”
Perséfone a encarou sem entender.
“Você parou para pensar que talvez isso tenha sido um presente...?”
Um presente? Perséfone balançou a cabeça, negando. Por que Hades
a daria presentes?
As duas abandonaram o vestido e passaram o dia trabalhando em
Asfódelos, pois novas almas tinham chegado.
E naquele dia foi a primeira vez em que ela ouviu uma das almas
descrevendo Caronte, o barqueiro do mundo inferior, como um soldado de
cabelos negros.
Quando a noite chegou, Perséfone estava cansada demais para
atravessar o campo e ir ao palácio checar a macieira, afinal, não tinha
dormido na noite anterior. Ariadne e ela caíram no sono logo após
retornarem ao chalé.
A deusa ainda se pegava acordando no meio da noite, tanto pelos
sussurros quanto a sensação de que alguém a observava.
Quando a manhã chegou, Ariadne já estava de pé e lhe ofereceu chá
quente e pão fresco.
Perséfone vestia seu vestido favorito, verde com mangas longas. O
tecido era surrado, mas vestia bem sobre o corpo e suas curvas.
Ela havia deixado os cabelos longos caírem sobre as costas. Ariadne
o penteou e fez um delicado coque com tranças e flores enquanto ela
tomava o chá. Pela janela, a deusa assistia as águas calmas do vale adiante
enquanto os dedos delicados da princesa trabalhavam em suas mechas.
Elas caminharam juntas até o chalé onde as almas contavam suas
histórias. Quando a tarde chegou, Perséfone foi então a caminho do palácio
de almas perdidas. A brisa estava fria, mas o sol deixava a sensação térmica
agradável.
Quando chegou no jardim, viu que as almas perdidas não se
assustaram com sua presença. Era como se ela fosse esperada.
A macieira ainda estava lá, meio sem vida, mas a retirada dos galhos
secos havia trazido um pouco de cor às folhas restantes.
Hipno encontrou a deusa e com outros ajudantes eles limparam ao
redor do tronco e então colocaram as folhas secas em um monte cobrindo a
superfície das raízes. A ideia era que as folhas servissem como adubo.
Quando ela terminou de fazer o que pôde, Hipno lhe trouxe uma
taça de vinho dourado. Era uma bebida levemente mais seca do que o
hidromel. Era quente e tinha aromas de cravos e canela.
Ela sentou-se em um dos bancos próximos e assistiu ao átrio repleto
de almas trabalharem na horta e nos jardins.
“O senhor do submundo não está aqui, milady” Hipno disse, de
repente, aparecendo ao seu lado. “Olimpo solicitou sua presença. Ele nos
deu a instrução de dizer que não voltará por vários dias”
“Oh” Perséfone mordeu o lábio inferior, olhando para o líquido
vermelho brilhante no cálice. A primavera estava se aproximando e os dias
dela no submundo estavam quase ao fim. Depois que voltasse ao mundo
dos vivos, teria que esperar por mais seis meses para vê-lo.
Ela buscou o vestido da sacola de couro que trazia consigo e
entregou-o para o rapaz.
“Diga a ele... obrigada”
Hipno fez uma mesura e fez menção de sair de perto dela.
“Hipno... você me disse que eles chamam as almas do palácio de
almas perdidas. Por quê?”
“Nós não sabemos quem somos, milady.” Ele disse, voltando-se
para ela. “Um nome, uma memória... isso é tudo o que temos, se tivermos
sorte, quando chegamos aqui. Mestre Hades nos acolhe. E juntos, somos
um.”
A deusa sentiu tristeza tomar o peito.
“Ele não pode trazer essas memórias de volta? Ajudar vocês a
entender quem são?”
“Hades é o deus dos mortos, milady. Devolver memórias ou
desfazer aquilo que nos trouxe aqui não é seu trabalho...”
“Sinto muito.”
Hipno abriu um sorriso calmo. Ele evitava olhar diretamente no
olhar dela.
“Às vezes, não lembrar o que nos assombra é o melhor presente que
podemos ter.”

Os dias se alongaram durante a semana. Perséfone voltou ao palácio


todas as tardes na expectativa de tê-lo ali, a sua espera. No sétimo dia,
ignorando os apelos de Hipno, ela ficou ali, no jardim, abaixo de mais uma
tempestade. Dessa vez, trovões rebombavam acima dela e a chuva caia sem
misericórdia. A macieira continuava ali, imóvel e seca. Não havia muito que
ela pudesse fazer agora sem seus poderes.
A chuva assolava as rosas e os narcisos ao redor. Mesmo assim, ela
ficou. A noite chegou rápido e, por fim, submetendo-a a insistência de
Hipno decidiu esperar dentro do palácio.
Atravessando o enorme arco em ogiva que dava para o interior, ela
subiu as escadas ornadas por hera. O palácio de Hades às vezes parecia o
oposto do dela, que era coberto por superfícies claras e flores.
Hipno a levou para um aposento quente onde poderia trocar suas
roupas e secar os cabelos. O aposento era enorme, feito da mesma pedra
negra presente em todo lugar. Um leito ficava no centro do ambiente, com
altos dosséis feitos de madeira de carvalho e encravados por aquilo que ela
achava ser pedras preciosas. Os lençóis eram vermelhos, de seda.
Dentro do aposento, para a surpresa dela, havia duas ninfas a sua
espera.
Perséfone sentou-se sobre um longo espelho oval dourado e assistiu
enquanto as ninfas secavam e penteavam seus cabelos. Quando elas
terminaram, a deusa tinha uma longa trança sobre os ombros, entrelaçada
por um fio prata.
As ninfas então trouxeram a ela um vestido seco e quente.
Diferentemente daquele da semana anterior, longo e coberto por detalhes
intricados, esse era simples. Era como o que usava no momento. Ia até
abaixo dos joelhos e tinhas mangas longas, largas, com um decote simples e
elegante sobre os seios. As ninfas ajudaram-na se trocar e saíram do
cômodo em seguida, deixando-a só.
Perséfone respirou fundo ao olhar-se no espelho. Estava bela.
Simples, como uma camponesa prestes a colher flores no primeiro dia de
primavera.
Primavera. Ela iria embora do submundo no dia seguinte.
Por quatro anos, ela passou os seis meses esperando ansiosamente
pelo dia do equinócio. Agora, no entanto, se viu desejando ter alguns dias a
mais ali.
Hades não ia ao mundo dos vivos. Pelo menos não que fosse
notado.
Abandonando seus devaneios, ela saiu dos aposentos em direção a
um longo corredor. Este dava para o átrio lá embaixo, onde o jardim estava.
A macieira se erguia alta e imponente dali.
A deusa encontrou outras escadas e, sem destino, se perdeu entre as
dezenas de corredores iluminados. Ao contrário de palácios de outros
deuses, ali, as paredes eram desnudas de qualquer ornamento ou pinturas.
Ela caminhou até seus pés começarem a doer e o amanhecer se
erguer no horizonte, por entre a floresta de pinheiros que guardava o
arredor. Ela passou por centenas de quartos vazios e um enorme salão de
baile, qual parecia nunca ter sido usado.
Após algumas horas, ela decidiu que era a hora de voltar para o
chalé. Ariadne ficaria preocupada se passasse a noite fora. De repente, no
entanto, enquanto caminhava por mais uma sala de armas – Hades havia
umas cinco... que ela encontrara – Perséfone ouviu uma melodia doce.
Era uma a melodia de uma canção antiga, tão antiga quanto os
deuses. A deusa seguiu a música familiar. A cada passo que dava ela podia
ouvi-la ainda mais clara.
No fim de um dos corredores, uma porta estava aberta. De dentro, o
calor do fogo a convidava. Perséfone foi até lá e encostou o ombro no
batente, assistindo-o.
Hades estava sobre um piano. O piano era rústico, como tudo ali. Os
dedos dele dançavam sobre as teclas. Ele era a origem da melodia.
De costas, o deus vestia aquele roupão longo, que caia sobre o chão.
Quando a música terminou, os ombros largos dele subiram e desceram,
respirando fundo.
Ele ficou ali, parado, aguardando por um tempo. Perséfone percebeu
que era um convite silencioso. Com passos lentos, ela caminhou até ele e se
sentou ao seu lado, no banco estreito à frente do piano. Os ombros deles
roçaram um no outro.
Os dedos do deus ainda estavam sobre as teclas, como se esperasse
por algo que o fizesse começar a tocar novamente.
“Por que está a minha espera, deusa?” A voz rouca dele era baixa,
firme.
Perséfone achava que já estava acostumada com a intensidade dele,
mas não estava. A voz de Hades a fez arrepiar. Seu coração bateu forte no
peito. Ela deveria se sentir envergonhada por estar à espera dele, mas a
verdade era que não estava. Tinha ansiado vê-lo todo e cada minuto daquela
semana.
“Eu não sei...” ela respirou fundo.
E então, Hades tornou o rosto para encontrá-la. Perto, perto demais.
Ele não vestia uma camisa dessa vez. O roupão sobre si cobria
apenas parte dos ombros e os braços, deixando o peitoral nu dele a mostra.
Perséfone precisou se concentrar em sua respiração. O torso do deus
era forte, musculoso... selvagem. Uma pequena camada de pelos pretos
cobriam os músculos quase violentos. O corpo de Hades era ornamental,
belo como uma estátua, e brutal como o de um soldado.
Ele se ergueu do banco onde se sentava, ciente do olhar dela sobre
si.
“O inverno está no fim” ela disse por fim. “Essa é minha última
noite do ano no submundo”
O rosto dele não demonstrou nenhuma emoção, como se ele
soubesse bem daquilo. Hades parecia ainda mais distante do que as últimas
vezes que eles se viram. Ela se ergueu do banco e se apoiou no piano
quando disse:
“Nós concordamos... em sermos amigos”
Hades a encarou longamente e então deu dois passos em direção a
ela.
“Não podemos ser amigos, deusa” A expressão dele era severa,
final.
Perséfone sentiu sua garganta se fechar e ficou grata por estar
apoiada.
“O que aconteceu... no Olimpo?”
Ele balançou a cabeça, ignorando-a, e virou as costas mais uma vez.
A deusa correu até ele e puxou-o pelo antebraço. No segundo que o
fez, o choque do calor da pele dele a fez recuar.
Hades parou e olhou para o rosto dela. Para os lábios dela. A luz o
amanhecer tocava os dois como promessa. Os olhos cor de âmbar dela
reluziram sob o olhar ônix dele.
“O que aconteceu?” ela repetiu, baixinho.
Hades tornou o corpo para o dela. A mão dele se ergueu até o rosto
de Perséfone. Lentamente, os dedos quentes dele tocaram-lhe a maçã do
rosto. A deusa se viu fechando os olhos e inclinando a face em direção ao
toque.
“Não podemos fazer isso, Perséfone” O coração dela retumbou ao
peito quando ouviu as palavras dele. “Olhe para mim” ele murmurou,
rouco. E ela o fez. A deusa abriu olhos para encontrar o olhar sombrio dele.
“Diga-me. Quem sou eu?”
Ela engoliu em seco.
“Hades”
“Não. Diga quem eu sou”
Perséfone teve que usar toda sua força para manter o olhar ao dele,
sabendo o que ele estava fazendo. Ela parou de respirar e quando não deu a
ele o que pediu, Hades falou por fim:
“Sou o deus da morte, general dos mortos e guardião das almas. Rei
do submundo e do inferno.” A mão dele se afastou do rosto dela e sua
palma moveu-se entre os dois. “Isso... não pode acontecer”
Ele deu dois passos para trás. Perséfone abaixou a cabeça, tentando
recuperar o ar. Suas entranhas queimavam. O embaraço que não sentira
minutos atrás a atingiu como uma tonelada. A deusa fechou os olhos e
deixou aquela onda quente e vergonhosa navegar seu âmago.
Ela sabia que precisava ir embora. Tê-lo esperado havia sido um
erro.
Ainda assim, havia algo que precisava dizer:
“Venha ao meu baile”
“Perséfone” Hades rugiu.
“Meu convite é sincero” A voz dela estava prestes a quebrar e ela
ficou orgulhosa que se manteve inteira.
Hades a encarou sério. Absolutamente um com as sombras, sombrio
como uma alma vil. Quando ele não respondeu, assistiu então decepção
surgir no olhar dela. Depois da noite no Elísio, Perséfone realmente
acreditou em algo que não era real. Ele havia compartilhado um segredo,
ela queria fazer o mesmo.
No entanto, o que ela acreditava ter descoberto não era nada mais do
que uma fábula.
Ela olhou para as janelas e o sol adentrando o ambiente. E então
sentiu o poder dele envolvê-la e gravidade mover-se aos pés. Estava prestes
a ser transportada ao chalé.
Antes disso acontecer, os dois se entreolharam. Havia ali, entre eles,
uma sensação antiga. Um laço que ia além da realidade e dos poderes dos
deuses. Era algo costurado nos fios do destino.
Ela queria dizer ‘até logo’, mas não sabia se o veria novamente.
No segundo seguinte, os pés dela encontraram o chão de seu chalé,
longe do palácio.
Longe dele.
CAPÍTULO VI – A PRIMAVERA

A s cerejeiras tinham
desabrochado e as pétalas
rosa cobriam o chão de
grama verde dos palácios de Perséfone como um tapete.
E era por isso que seu palácio era chamado de Palácio das Cerejeiras.
Ela respirou fundo. O ar era fresco, único. Era primavera.
Finalmente.
De volta em seus palácios, suas ninfas já haviam preparado sua sala
de banho e a sauna. O sol entrava por entre as vidraças coloridas, trazendo o
calor da nova estação.
Era bom estar de volta em casa, ela pensou.
Os palácios dela eram um conjunto de prédios largos e altos, com
torres que se erguiam dez metros do chão. A maioria das janelas era feita
por vidraças especiais, de cores verdes e vermelhas e quando o sol
trespassava o vidro, o mármore ao chão se cobria de cor.
Perséfone tinha se despedido de Ariadne antes de desaparecer do
submundo quando o equinócio chegou. Ariadne tinha prometido cuidar do
chalé em sua ausência e deixá-lo pronto para quando ela voltasse, em seis
meses.
Ainda assistindo a brisa lá fora, Perséfone se despiu, com ajuda das
ninfas que lhe serviam, do vestido velho de algodão e seguiu em direção a
um enorme tanque de água quente que estava a sua espera.
A água estava perfumada com óleos de lavanda e o vapor da sauna
trazia um leve aroma de hortelã.
A deusa da primavera deixou a água quente tocar sua pele nua e
enquanto lavavam seus longos cabelos cor de mel, ela tentava pensar em
qualquer coisa que não fosse Hades.
Ainda assim, o rosto dele estava impregnado a mente dela como
uma tatuagem. Sempre que fechava os olhos, se lembrava das sombras de
seu olhar, do queixo austero, o torso quente e musculoso. E o pior... de seu
toque.
Ela ergueu a mão das águas quentes da grande banheira em que
estava e encarou seus dedos por um longo tempo. Os quais ele tocara dias
antes.
Por que ela estava se sentindo assim?
Perséfone tinha pensado em ter amantes antes. Como Hermes, por
exemplo. E mesmo assim, nunca se sentiu daquela forma. Perdida.
Completamente perdida.
E devastada.
Pois ele era o deus errado para se envolver... não, ele era mais do
que errado. Hades era proibido.
Ao contrário de outros deuses, que gostavam de exibir seus amantes
e casos amorosos, Perséfone nunca havia ouvido falar sobre o deus do
submundo e suas aventuras amorosas... ou carnais.
Talvez ele amasse uma mortal, ou uma deusa prometida a outro.
“Você está bem, milady?” Uma de suas ninfas a perguntou, Flora.
Perséfone olhou ao redor.
As ninfas que lhe serviam eram ninfas das flores e da natureza. Ali,
nos palácios de Perséfone, elas podiam viver eternamente em flor. Elas
tinham cabelos coloridos, assim como flores em um jardim. As peles delas
eram brilhantes, quase douradas, e trajavam longas túnicas brancas cobertas
por fios de ouro.
Perséfone sorriu em resposta a pergunta dela.
Quando a água esfriou, elas começaram a prepará-la para seu baile
anual que aconteceria ao entardecer. Muitos deuses menores compareciam.
Principalmente aqueles da natureza. Seus amigos e amigos de sua mãe.
As ninfas pentearam seus cabelos deixando-os soltos, com lindas
ondas caindo sobre os ombros e ao redor do rosto. Elas tinham prendido
pequenos ornamentos florais sobre sua cabeça e Perséfone se pegou
contente com sua aparência pela primeira vez em seis meses.
O vestido que caia sobre seu corpo era longo, de seda. Tinha uma
base preta, mas era coberto por rosas vermelhas. As mangas do vestido
eram correntes delicadas de ouro.
“Eles começaram a chegar, milady” Flora disse, lhe trazendo sua
primeira taça de vinho dourado.
Seus aposentos tinham paredes brancas com elementos florais aqui e
ali. Uma porta francesa estava aberta para seu jardim particular e do lado de
fora o pôr-do-sol escorria pelos céus.
A deusa encarou seu reflexo e respirou fundo. Parte dela era
orgulhosa demais para admitir que queria que Hades a visse assim. Mais do
que bela, mas em seu próprio elemento.
Ela não era uma rainha, não possuía um reino, como ele. Mas ela era
uma deusa, ao contrário do que poderia parecer quando estava no
submundo... Sozinha, sem poderes, deixada a mercê do tempo instável e da
sorte.
Ela deu um gole grande no vinho e decidiu afastar ele de sua mente.
E foi nesse instante em que a porta de seus aposentos se abriu para
revelar um deus sorridente.
“Hermes!”
Ela correu até ele e o deus mensageiro a pegou nos braços, com
força. Ele mergulhou o nariz nos cabelos dela.
“Você está inacreditável!” Ele suspirou entre os lábios quando a
puxou do abraço e a fez rodopiar.
Ela viu desejo no olhar dele. E não era a primeira vez que via isso.
Ele vestia trajes elegantes, feito de couro marrom e detalhes de lã branca.
Algumas medalhas descansavam sobre o peito dele, afinal, Hermes também
tinha sido um soldado na batalha dos titãs. Os cabelos loiros dele estavam
jogados para trás e o rosto belo evidente.
“Você está pronta?”
“Sim” ela abriu um sorriso e levou o cálice de vinho aos lábios,
entornando-o de uma vez. “Primeiro de muitos”
Hermes deu uma risada.
“Pronta para a primeira dança?”
Perséfone entregou o cálice para uma das ninfas a espera e então
deslizou sua mão na dele, que a esperava.
Lustres com velas feitas de rum cobriram o teto do enorme salão de
dança. O pôr-do-sol navegava as grandes vidraças altas do palácio. A
música era alta e alegre. Hidromel e vinho dourado eram servidos por
ninfas que circulavam por entre deuses e reis.
Mais uma vez, a maioria dos convidados era deuses pequenos e
havia também alguns mortais. Divãs e grandes sofás cercavam a pista de
dança, mas a maioria dos convidados estava em pé, animados.
Quando Perséfone entrou no salão, aos braços de Hermes, todos
aplaudiram e a música se intensificou. O salão estava cheio. Todos tinham
ansiado pela primavera e agora ela estava ali, sorrindo para eles.
Depois da primeira dança com Hermes, Perséfone teve que dividir
seu tempo entre conversar com uns e dançar com os mais ávidos por uma
dança. Muitos dos reis mortais presentes ali estavam completamente
apaixonados por ela e tinham lhe pedido em casamento. No entanto, esses
pedidos haviam se dissipado no ar quando eles descobriram sobre a
punição, sobre que ela passaria metade de sua existência no submundo.
Mesmo assim, eles vinham aos bailes todos os anos para vê-la, para ver a
beleza imortal dela.
Muitos, na verdade, faziam questão de tentar levá-la para a cama já
que não podiam se casar com ela.
Depois de pelo menos umas trinta danças, Perséfone aceitou um
cálice de hidromel com gelo e parou para conversar com deuses da floresta.
Alguns deles tinham várias encarnações e suas aparências mudavam a cada
nova estação. Um falou o quão feliz estava de o inverno ter tido seu fim, já
que aquele tinha sido particularmente frio e intenso.
Quando ela terminou sua bebida, se viu nos braços de outro deus,
voltando para a pista de dança. Quando essa música acabou, ela encontrou
Hermes a meio da multidão.
“Você é uma deusa popular” ele disse, rindo. O deus mensageiro
ergueu a mão para afastar uma mecha do cabelo dela que estava sobre seu
rosto agora corado pelo esforço da dança. “Você acha que eles acreditariam
se eu lhes contasse onde você mora durante seis meses ao ano... um
pequeno chalé que possui uma só cama?”
Perséfone soltou uma gargalhada, aceitando mais uma taça de
hidromel, já levemente alta.
Ela olhou ao redor, para o enorme salão de dança e as centenas de
seres ali, dançando, bebendo, se beijando agora sobre a luz de uma noite
clara.
“Eu acho que eles chorariam por mim” ela respondeu, divertida.
“Você ainda tem tempo, Perséfone” Hermes disse e ela se lembrou
de quando Hades lhe disse o mesmo. A imagem dele e de sua face a
inundou mais uma vez.
“Para o quê?” a voz dela quebrou ao lembrar-se do deus dos mortos
tão vividamente. Ela limpou a garganta com mais um gole de vinho.
“Para ter uma vida aqui” Hermes pegou a mão dela e tirou o cálice
de seus dedos, como se dissesse que era o bastante. “Você terá metade de
sua vida aqui, no mundo dos vivos. Não a jogue fora por ele.”
Ela apertou os olhos.
“Hades?”
Hermes respirou fundo e se aproximou dela.
“Você acha que os deuses e reis do mundo dos vivos não querem
você, mas olhe ao redor... Eles dariam toda a riqueza que possuem para ter
você por seis meses ao ano”
A deusa olhou por sobre o ombro. Os olhares desejosos deles
estavam ali, dos reis, dos deuses.
“Eles só querem uma noite”
“Você se surpreenderia se os desse uma chance... ou talvez a mim.
Eu sei que você já pensou sobre isso”
“Hermes” ela o fuzilou com o olhar.
Ele riu e tocou de leve no queixo dela, então sua mão caiu para
baixo e ele deu um passo brusco para trás. Os olhos grandes dele encararam
as portas douradas do salão.
Todos ao redor sentiram o mesmo que ele e a música parou, de
repente. A noite caia sobre todos dentro do salão. As portas douradas se
abriram com um estrondo.
Uma voz grave surgiu sobre todos ali.
“Rei dos mares, deus dos oceanos. Um de três. Diga viva a
Poseidon”
Os convidados entraram em um frenesi. Burburinho explodiu pelo
ambiente. Poseidon estava ali. Ele raramente vinha a bailes de deuses
menores.
E então, a comitiva do deus dos mares adentrou o salão.
Poseidon era alto e um homem incrivelmente bonito. Ele tinha uma
face madura e cabelos cor de castanha que caiam sobre os ombros. Seus
olhos eram verdes como mar em verão. Dali, ela conseguia sentir o aroma
de água salgada e alga fresca.
Com ele, o deus trouxe ninfas marinhas, nereidas, e em seus braços
havia uma mulher. E ao contrário do que todos acreditavam, a esposa de
Poseidon não era uma deusa. Era uma jovem mortal. Ele havia se
apaixonado por ela ao encontrá-la quase sem vida após um náufrago onde
ela perdera toda sua família.
O deus dos mares vestia trajes formais, um uniforme militar cor
azul-marinho. Sobre o peito, assim como Hermes, ele tinha medalhas, mas
possuía muitas mais. Poseidon tinha um aspecto forte e musculoso.
A aparência dele era completamente diferente de Hades, que tinha
olhos negros e cabelos escuros cortados como um soldado. Poseidon era um
deus visual, não um deus funcional como o deus dos mortos. Pois, Hades,
ao contrário de Poseidon, parecia sempre pronto para uma guerra, sempre
pronto para luta.
A comitiva do deus veio até Perséfone. Os deuses menores e reis
dando espaço para ele.
“Perséfone, deusa da primavera” O deus dos oceanos veio até ela e
pegou sua mão, beijando o nó de seus dedos. “Sua beleza não é nada como
foi me descrita.” Ele suspirou, com um sorriso delicado. Ao contrário de
todos os homens ao redor do salão, o olhar dele e seu comentário não lhe
trouxe calafrios. Pelo contrário, sua voz era inesperadamente respeitosa.
Perséfone fez uma mesura longa. Hermes, ao seu lado, fez o mesmo.
“Milorde, obrigada por vim”
“É meu prazer. Por favor, conheça minha esposa, Anfitrite.”
Afritrite veio até Perséfone e a surpreendeu com um abraço.
“Me chame de Trite. É um prazer conhecer você, milady”
Perséfone riu e apertou-a em um abraço. A mulher de Poseidon era
tão bela quanto Helena de Troia. Sua beleza era sensual e incrivelmente
destrutiva. Ela tinha cabelos cacheados sobre o rosto cor de terra molhada.
Ela vestia um delicado vestido de seda verde como algas, colado em suas
curvas voluptuosas.
“Me dê sua próxima dança” Ela exigiu, pegando a mão de
Perséfone. Poseidon soltou uma risada e se juntou a Hermes, dando
batidinhas no ombro do deus mensageiro como se fosse bom vê-lo por ali, e
as duas se afastaram para a pista.
A música então explodiu ao redor deles e o burburinho se tornou
exalação de alegria. Um dos deuses mais poderosos, um dos três, estava ali,
no baile dela. A fofoca e os sussurros se espalhariam por entre palácios de
outros deuses muito rapidamente.
Trite e Perséfone dançaram até seus pés doerem. Elas também
beberam tanto que Perséfone não conseguia parar de rir.
“Você precisa acreditar em mim, sem ofensa a você, mas esses
deuses são malucos...” Trite disse, rindo. Ela deu uma mordida generosa em
um manjar salgado, que ao contrário do manjar normal era feito por uma
leve camada de massa folheada recheado por bife. “Poseidon me deixou
louca por meses. E quando finalmente decidi que não tinha razão para lutar
por ele, ele me pediu em casamento.” A mortal deu de ombros e olhou
através do salão. O olhar do deus dos mares estava sobre ela. “Eu consigo
sentir o que ele sente por mim a distância” ela murmurou para a deusa. O
álcool havia levado as duas a se tornarem íntimas em questão de meia hora.
Perséfone ficou em silêncio, assistindo-a e sorriu.
“Ah, me perdoe, milady. Quando eu bebo demais, falo o que não
deveria. Que tal uma próxima dança?”
A deusa riu da expressão dela.
“Por que você não dá sua próxima dança a Poseidon? Eu preciso
descansar meus pés por alguns minutos.”
Trite abriu um sorriso.
“Tem certeza, milady?”
Perséfone acenou para ela, divertida. A mortal então encarou a deusa
por um segundo.
“Você é realmente bela, milady. Meu marido não estava exagerando
com o elogio. Nada do que ouvimos é verdade. Você não é a deusa da
primavera, é a personificação dela, de tudo que é majestoso e bom.”
Trite foi ao encontro do deus dos mares após dizer isso e abrir um
sorriso para ela. Os dois se encontraram e compartilharam um beijo quente.
Perséfone assistiu quando o deus levou a esposa para o centro do
salão, com outros dando espaço para eles. Poseidon colocou a mão sobre a
cintura de Trite e com os corpos colados eles dançaram sob a luz das velas
de rum e da noite.
Um calor surgiu por entre as entranhas de Perséfone. Um aperto no
peito a atingiu.
Parte dela acreditava que nunca seria amada assim. No olhar de
Poseidon havia não só amor, mas devoção. E ser devotada por um deus era
a maior forma de amor que existia.
Sentindo o peito apertado, Perséfone revirou o resto de sua bebida,
que agora nem sabia o que era, e decidiu escapar dali.
A dança entre Poseidon e Trite havia tirado a atenção de sobre ela e
Perséfone conseguiu escorregar pela porta lateral que dava para um enorme
jardim, feito por grandes cerca vivas e altas plantas.
Quando saiu porta afora, respirou profundamente na tentativa de
desfazer o nó que tinha no peito. Ela sentiu a brisa fria sobre a pele quente e
levemente suada.
Ela ainda ouvia a música dali, como um zunido atrás de si.
“Meu irmão tem o hábito de monopolizar tudo e todos” A voz dele a
atingiu como um soco. Era firme, baixa e rouca.
Perséfone abriu os olhos e o viu saindo por entre as sombras da
noite.
Hades.
Ele tinha aceitado seu convite.
O deus do submundo deu um passo adiante e então ela pode vê-lo
por inteiro.
Hades usava calças e uma camisa preta simples, que caiam
perfeitamente no corpo musculoso dele, com uma jaqueta de couro por
cima dos ombros largos. Seu rosto tocou o pouco de luz que vinha de dentro
do palácio e Perséfone achou que ia, mais uma vez, perder todo o ar.
A beleza dele era selvagem, sombria e misteriosa. Hades dançou
seus olhos por ela.
“O que está fazendo aqui?” As palavras escaparam da boca dela.
Perséfone percebeu que estava levemente irritada com ele.
Hades ergueu uma sobrancelha.
“Você me convidou, deusa.”
“Então, por que está aqui, em meus jardins? Escondido entre as
sombras?”
“Daqui eu tenho a melhor vista” Ele sussurrou, dando um passo em
direção a ela.
Perséfone balançou a cabeça. Ela queria a verdade, mas sabia que
ele não lhe diria. E a verdade era que Hades não era como o irmão. Todos
ansiavam pela presença de Zeus e Poseidon em seus bailes. Hades, no
entanto, nunca seria bem-vindo como eles.
Perséfone caminhou até ele e fechou as mãos em punho. Ela queria
bater no peito dele por como a fizera se sentir naquele último dia. O silêncio
dele era pior do que qualquer palavra que dissesse.
“Por que está com raiva, deusa?” Hades franziu o cenho, divertido.
“Eu vim. Eu estou aqui”
“Mas você não está lá... Você não está...” ela bufou, balançando a
cabeça. “Deuses... há algo errado comigo”
“O quê?” ele quis saber, a mão enluvada pegando o rosto dela pelo
queixo, examinando-a sério. Seu toque a pegou de surpresa. Era possessivo
e protetor, como se ele estivesse à procura de algo visível que a ferisse.
Perséfone não podia dizer a ele. Não poderia se abrir assim com o
deus do submundo. Não depois daquela última noite. E se ela dissesse o que
estava pensando... sentindo, e ele desaparecesse de sua vida?
“Eu preciso que você venha me ver durante os próximos seis meses”
Hades a encarou, soltando o ar dos pulmões, como se estivesse
aliviado.
“Você precisa?” Ele soltou uma risada leve. “Não posso fazer isso,
deusa. O que seus servos irão achar do deus dos mortos te visitando?”
“Eu não me importo. Você é um amigo.” ela deu de ombros.
Hades puxou o rosto dela mais para cima, para olhar bem em seus
olhos. O olhar dele caiu sobre os lábios dela.
“Eu te disse. Não somos amigos. E eu me importo. Você já tem seis
meses no submundo, por que iria querer eu aqui... no mundo dos vivos?”
Perséfone sentiu o calor do hálito dele sobre a pele. Ela inalou o
aroma, forte, masculino, proibido. Eles estavam muito perto um do outro. O
olhar do deus se encheu de algo que parecia fúria e desejo. Hades batalhava
contra algo dentro de si. Algo forte, algo mais poderoso do que ele.
“Por favor...” ela sussurrou entre os lábios.
Hades ficou em silêncio por um segundo.
“Nada parece ser simples com você, deusa.”
“Prometa para mim”
Hades tomou um longo minuto e então as palavras saíram de seus
lábios, baixas, relutantes.
“Eu prometo”
Promessas entre deuses eram como lei.
Ela respirou fundo, tomando todo ele. Tomando tudo o que ele podia
dá-la naquele momento. Perséfone subiu suas mãos até a jaqueta dele,
repousando as palmas sobre seu peito. Ela achou tê-lo ouvido grunhir
baixinho.
“Vem comigo, junte-se a nós no salão”
Os olhos dele se fecharam e suas mãos seguraram as dela,
afastando-as.
“Com tempo, talvez, você possa me entender. Com tempo... talvez
você possa apreciar o que estou fazendo... tentando ficar longe de você” Ele
roçou os dedos sobre a face dela. Abaixou ainda mais a voz para um timbre
sombrio, e disse: “Você é a mulher e deusa mais bela que já vi em toda
minha existência.”
“Perse!”
Hades deu um passo para trás e ela ouviu-o murmurar:
“Sua última dança chegou”
Hermes passou pelas portas, erguendo os braços.
“Aqui está você!”
O deus estava levemente embriagado.
Depois da chegada de Poseidon eles passaram a beber sem pena.
Perséfone fez uma nota mental de recusar qualquer convite para festas no
Olimpo quando fosse convidada. Ela ouvia as histórias e podia imaginar o
quão decadente eles ficavam no fim da noite.
“Poseidon está prestes a ir embora e eu vou aproveitar a deixa para
ir também..., mas não sem nossa última dança” Ele disse, pegando a mão
dela, puxando-a para dentro.
A deusa olhou ao redor, mas Hades já não podia mais ser visto.
Ela respirou fundo e abriu um sorriso.
“Claro.”
Hermes então parou e olhou firme no rosto dela. Ele soltou ar.
“Deuses, se Afrodite um dia ver você, eu acho que seus seis meses
no mundo dos mortos se tornarão permanentes.”
Ela riu.
“Obrigada?”
Ele riu e então voltou a puxá-la pela mão, adentrando o salão em
seguida, mergulhando entre deuses e reis. A música agora estava alta, viva.
Hermes a puxou para o centro da pista e a fez rodopiar. Ele a pegou
pela cintura e começaram a dançar. Outros se juntaram a eles. Durante a
dança, no entanto, Perséfone notou algo estranho.
Poseidon encarava as vidraças, em direção à escuridão. Quando a
música parou, Hermes se aproximou e a beijou sobre o rosto, próximo
demais de seus lábios. E então beijou os nós de seus dedos e fez uma
mesura.
Em seguida, ninfas passaram servindo um cálice final de hidromel e
Hermes fez questão de erguer a taça e gritar:
“Para a deusa da primavera!”
Todos deram viva.
No entanto, para Perséfone, os gritos não passavam de um zunido
abafado e tudo o que via agora era as sombras da noite. Ele estava lá. Hades
havia assistido ela dançar com o mensageiro.
Antes de todos irem embora, Perséfone encontrou o olhar de
Poseidon à distância uma última vez. Sem se despedir, o deus dos mares só
acenou com a cabeça para ela.
Naquele instante, ela começou a achar que a presença do deus
parecia um tanto planejada e suspeita.
Horas depois, se viu deitada sobre a cama, ainda com seu longo
vestido ao corpo e incapaz de fechar os olhos e dormir.
Ela pensava nele e no que ele tinha dito sobre ficar longe dela.
Perséfone também pensou em sua última dança e como queria que
tivesse sido os braços de Hades sobre seu corpo e não Hermes.
Sem saber quanto tempo ficou encarando o teto de sua cama, o
amanhecer adentrou a porta francesa e as persianas. Mais uma manhã de
primavera.
Perséfone ainda teria outras cento e oitenta até que pudesse voltar a
Asfódelos.
CAPÍTULO VII – OS TITÃS

“Eu posso trazer mel de Hipno essa noite, milady. Irá ajudá-la a
dormir um pouco melhor” A ninfa chamada Flora disse a Perséfone. Ela
passava um pouco de pó sobre o rosto da deusa e suas olheiras.
Perséfone se encarou no espelho. Seus cabelos tinham acabado de
ser penteados.
Ela estava de volta ao mundo dos vivos há um mês e não tinha
conseguido dormir direito desde então. Ela sempre acordava no meio da
noite, com a horrível sensação de ter estado em um pesadelo, mas assim que
abria os olhos não se lembrava de nada.
Aquele mês havia sido solitário. Ela passava os dias caminhando
pelos jardins, usando de seu poder para criar flores com cores vibrantes,
como as do vaso de cristal sobre sua penteadeira.
Suas criações eram, geralmente, cheias de vida e cor. As que
estavam no vaso, no entanto, eram lindos lírios-roxos e pretos. Eram flores
para Hades. A deusa não admitia, mas era. Havia as criado com ele na
mente.
Ela saiu de seus aposentos acompanhada de Flora, vestindo um leve
vestido de seda branco que ia até abaixo de seus joelhos, com mangas
delicadas que pareciam feitas de pétalas coloridas.
“Isso chegou para você, milady” Outra ninfa se aproximou, trazendo
uma carta nas mãos. Perséfone encarou o papel delicado. Sobre a parte de
trás havia apenas uma nota que dizia:
Para a deusa da primavera.
Perse viu o selo. Cera cor azul-marinho.
“Tomarei meu café da manhã nos jardins leste” ela disse, enfiando a
carta dentro da bolsa de couro que carregava, onde estava seu kit de costura.
As duas ninfas fizeram mesura a ela e saíram adiante pelos longos
corredores.
Sozinha, Perséfone então seguiu descalça até os jardins. Ela
caminhou vários minutos pela grama verde, deixando seus palácios atrás de
si. Os jardins lestes eram os mais reclusos, com um grande caramanchão no
centro e uma mesa redonda onde ela podia fazer pinturas, criar plantas ou,
naquele dia, treinar costura.
Altas árvores frutíferas cercavam o ambiente, protegendo o interior
do lado de fora. Devido as frutas, ela passava o dia escutando o cantar de
pássaros que iam e vinham para procurar o que comer.
Quando chegou no caramanchão, o café da manhã já estava servido.
Chá de menta, pães de rum amanteigados e uma variedade das frutas
que tinham vindo das árvores ao redor.
A deusa retirou seu kit de costura na intenção de trabalhar em um
bordado, mas não conseguiu se concentrar. A carta a chamava. Ela puxou o
papel da bolsa e quebrou o selo.
Dentro havia um convite. Um convite vindo de Trite, esposa de
Poseidon.

Lady Perséfone,
Junte-se a nós, nos Palácios dos Corais, para assistir à subida da
maré.
Acontecerá no dia da primeira lua cheia da primavera, em algumas
semanas.
Seria uma honra ter você aqui.

Esperamos você,
Trite,
Rainha dos Sete Mares.

Rainha. A palavra ressoou pela cabeça de Perséfone. Apenas três


deusas ou mortais poderiam ser rainhas divinas. Aquelas que se casavam
com os irmãos divinos. Zeus era casado com Hera, rainha do Olimpo,
apesar de todos saberem que a união deles tinha sido por conveniência e
Zeus não era fiel há muito. Agora, Poseidon tinha sua rainha.
O que significava que havia apenas uma posição a ser preenchida.
Perséfone abaixou a carta e olhou ao redor. Ela precisava sair dali.
Havia se isolado nos palácios por tempo demais. E sabia o porquê. Estivera
a espera dele.
Perséfone então, com um clicar de dedos, desapareceu dos jardins
lestes. No segundo seguinte, estava parada a meio da rua mais agitada do
monte Olimpo, chamada Roma.
O Olimpo ficava no topo do mais alto monte do mundo dos vivos.
Sobre ele, e uma camada de magia, estava a cidade dos deuses, onde muitos
moravam, já que nem todos tinham palácios como ela.
Todos os seres divinos, pequenos ou grandes, eram permitidos ali.
No entanto, sobre a colina mais alta havia apenas um palácio. O dia estava
claro e a névoa que geralmente encobria os palácios de Zeus não estavam
presentes. Os palácios dele eram uma combinação dos de Hades, um
complexo de castelos e torres, mas iluminados e brancos.
A rua Roma tinha de tudo um pouco. De oráculos à bares de
hidromel. Havia também costureiras e o que ela estava atrás, livros. No fim
da rua, no precipício do monte, havia uma biblioteca enorme, onde a
maioria dos deuses do conhecimento ficavam dias a fio.
Ela caminhou até lá, notando que aos seus pés agora tinha delicados
sapatos que combinavam com as mangas de seu vestido. Às vezes ela
esquecia dos poderes que tinha.
A deusa subiu as grandes escadas do prédio feito de mármore
branco, com enormes colunas apoiando um friso com esculturas dos doze
deuses que faziam parte do conselho do Olimpo.
No canto esquerdo ela viu a imagem de sua mãe. A qual ainda
estava sumida.
Ela parou um segundo para observar todos os deuses e à direita do
centro viu Poseidon, com seu tritão na mão. No centro, ela viu Zeus com
um olhar benévolo, segurando uma lança, e ao lado esquerdo estava Hades.
O deus dos mortos olhava para o oeste e trajava sua armadura, com
uma espada nas mãos. Perséfone notou que ele era o único dos doze deuses
que não olhava para o espectador.
“Curioso, não é?” Uma voz a fez dar um pulo. Perséfone se voltou
para mulher ao seu lado e colocou a mão no coração, sentindo-o pulsar
rápido. “Me perdoe, milady. Não quis assustá-la.”
Perséfone respirou fundo e fez uma mesura rápida. Quem falava
com ela era Atena, a deusa do conhecimento e guerreira, filha de Zeus.
Ela tirou seu olhar do rosto de Perséfone e voltou-se para o friso
acima delas, analisando a imagem. Ela mesma, Atena, estava lá. Ao lado de
Poseidon, com um olhar severo, ela também vestia uma armadura e usava
uma espada.
Atena era bela como todos diziam que ela era. Sua pele clara
contrastava com seus cabelos escuros, lisos sobre os ombros. Seus olhos
eram verdes e ela tinha uma cicatriz grande sobre o lado direito do rosto
que ia de sua têmpora até o pescoço. Uma cicatriz de guerra.
“Muito curioso como o artista que fez essas esculturas escolheu
retratá-lo” Ela ergueu uma sobrancelha.
“Não me surpreende. Os vivos parecem não o entender” Perséfone
sussurrou.
Atena encarou o rosto dela.
“E você acha que o compreende, milady?”
Perséfone riu, irônica. Ela estava longe disso.
Aquela foi resposta suficiente para Atena.
“Venha comigo, acho que sei o que você veio fazer aqui”
As duas deusas caminharam adiante. As portas se abrindo para elas
quando passaram.
Dentro da biblioteca havia um enorme salão de mármore cinza e no
centro desse salão, a estátua de Atena olhava ao redor, para as incontáveis
estantes de livros que se erguiam a centenas de metros do chão. A biblioteca
estava cheia de deuses e mortais. Alguns possuíam asas e flutuavam no ar
em busca dos livros nas mais altas prateleiras. Outros estavam
completamente perdidos em leituras. Uns com livros antigos, enormes,
sobre mesas, outros deitados sobre divãs longos e confortáveis.
Atena caminhou por todo o salão, ignorando os olhares que recebia.
Ela estava ali todos os dias, e mesmo assim olhares a seguiam aonde fosse.
No fim do salão, a deusa abriu uma pequena porta secreta entre uma
das estantes e fez um movimento para dentro para que Perséfone entrasse
primeiro. Ela o fez. Atena a seguiu, trancando a porta atrás das duas.
A sala privada de Atena era pequena, mas aconchegante. Hidromel
já tinha sido servido, como se os servos da deusa do conhecimento
soubessem que ela receberia visita. Um sofá de couro grande tomava a
maioria do espaço e uma mesa absolutamente coberta por papéis e livros
cobria a outra. Sobre as paredes, estantes de livros estavam abarrotadas. Em
algumas dessas estantes, Perséfone percebeu pequenas pinturas em
aquarela.
Atena entregou o cálice de hidromel para a deusa e Perséfone se viu
caminhando ao redor, parando a frente das aquarelas. Muitas dela
mostravam Atena jovem, sorrindo ao lado de uma bela mulher. Em delas
tinha a imagem de Atena já adulta com os tios. Poseidon e Hades. Os três
usavam armaduras e sorriam para quem pintava a cena.
“As pinturas são de minha mãe” Atena disse, se aproximando dela.
“Antes dela morrer na batalha.” A deusa pegou a pintura nas mãos. “Ela era
uma mulher sábia e talentosa, como você pode ver. Seu único erro de
julgamento foi o de se envolver com Zeus... meu pai.”
Atena encarou a pintura por um longo minuto.
“Sinto muito...”
Atena dispensou-a com a mão.
“Aqui, pegue” A deusa foi até a mesa coberta por papéis e retirou de
lá um pequeno baú de prata. Dentro do baú havia outras aquarelas feitas em
papel grosso. As pinturas eram inacreditavelmente belas, cada traço
delicadamente desenhado. Perséfone folheou todas elas. Elas pareciam ser
do mesmo período, pois Atena usava a mesma armadura em todas.
Perséfone parou com as mãos quando encontrou uma aquarela em
específica.
Era só ele. Hades.
O deus estava sentado ao redor de uma fogueira, a meio do que
parecia uma floresta. Seus cabelos na foto pareciam mais longos e seu rosto
estava coberto de fuligem, mas seus olhos tinham um aspecto calmo, com a
sombra das chamas tocando a face. A pintura era delicada e única.
“Você pode ficar com essa” Atena ofereceu, assistindo o interesse
dela.
Perséfone ignorou o que ela disse e enfiou a pintura de volta no baú.
“Eu vim aqui atrás de um livro sobre...”
“A batalha. Eu sei. Pude ver o interesse em seus olhos antes mesmo
de entrar na biblioteca”
Era dito que um dos poderes de Atena era ler mentes. Ninguém
sabia se isso era realmente verdade, mas todos concordavam que ela tinha
uma capacidade anormal de entender o que os outros queriam e suas
intenções. Por isso e outras qualidades, ela havia sido uma das mais
importantes guerreiras na batalha contra os titãs.
A deusa se sentou sobre o sofá e bebeu um gole longo do hidromel.
“Eu posso responder suas perguntas, milady. Eu estava lá”
“Você não precisa...”
“Do que você tem medo?” A deusa do conhecimento perguntou,
erguendo uma sobrancelha. “De que eu descubra que você está aqui em
busca dos segredos do meu tio?”
Perséfone respirou fundo.
“Hades e eu somos amigos, apenas”
“Meu tio não tem amigos”
A deusa riu baixo, ele tinha dito o mesmo.
“Vocês são realmente da mesma família”
“Não por escolha...” Atena falou. “A verdade, Perséfone, é que
nenhum de nós, deuses, temos... amigos.”
“Bem... Hades tem a mim”
Atena abriu um sorriso doce.
“Muito bem, deusa. Meu convite continua em pé. O que você quer
saber?”
Perséfone sentou-se ao lado de Atena, um tanto relutante. Elas
trocaram um longo olhar e a deusa decidiu que não haveria mal nenhum em
aceitar a oferta.
“Tudo... Eu quero saber tudo”

Atena fora trazida ao mundo dos deuses milênios após Cronos ter
sido derrotado.
Cronos, o deus do tempo, um dia, muito atrás, havia sido rei do
mundo dos mortais e dos deuses. Ele era o pai de Hades, Zeus e Poseidon.
O que Atena sabia sobre a vida dele não era muito, mas o bastante para
dizer a Perséfone que o reino de Cronos era cruel. Então um dia, os três
irmãos decidiram em lutar contra ele.
Hades havia sido encarregado de cuidar da prisão do pai, após sua
derrota, e de mantê-lo preso no submundo, em um lugar secreto no tártaro.
No entanto, Cronos conseguira fugir. Ninguém nunca soube como, e
não importava.
A batalha contra ele e outros titãs então se iniciou.
Muitos lutaram e muitos morreram.
Assim como a mãe de Atena e sua amante, uma mortal que havia
dado a vida pela causa dos deuses. Atena contou que sua mãe, antes de
morrer, havia tido a ideia de transformar Cronos em mortal, pois essa seria
uma punição mais severa do que enviá-lo de volta ao mundo inferior.
Aparentemente, a mãe dela havia até mesmo criado uma arma com o poder
para tal, mas a arma não funcionava como deveria e precisava da ajuda de
poderes que não tinha durante a batalha.
Hades havia tido um papel fundamental no combate, liberando o
exército de almas. O maior exército de todos os deuses.
No fim, Cronos caiu, morto, sob a espada dele. A espada de Hades
garantia que a alma ficasse presa no tártaro para sempre. E foi assim que
eles venceram a batalha.
“Ele também salvou minha vida” Atena falou.
Ela colocou os longos cabelos pretos sobre a orelha, deixando sua
cicatriz ainda mais evidente. Ela não tinha razão para escondê-la. Atena
carregava aquela marca da batalha com orgulho. “Cronos achou que meu
pai viria me salvar se ameaçasse me matar.” Ela deu uma risada irônica. “E
então ele fez isso... para que Zeus lembrasse de sua própria covardia, pois
meu pai simplesmente me ignorou. Cronos estava prestes a me matar
quando Hades atravessou o mar de titãs, matando um por um, por fim
cortando suas mãos antes de enviá-lo para as profundezas do tártaro.”
O olhar da deusa agora era distante, vazio entre lembranças.
“Eu nunca vi nada igual antes ou depois daquilo... Foi ali que eu
soube que Hades realmente nasceu para ser o deus dos mortos, juiz e
castigador das almas”
“Ele não é como os outros” Perséfone se viu dizendo.
“Não” Atena balançou a cabeça. “Eu concordo com você.”
“É por isso que os outros deuses não gostam dele, por que ele é
diferente?”
Atena a encarou longamente.
“Hades não é como nós porque ele não quer ser. Meu tio não sabe o
que é crueldade, Perséfone... Ele é o criador dela. Não é que os outros
deuses desgostam dele, eles o temem... pois ele causa dor e punição todos
os dias. E você deveria fazer o mesmo.”
Perséfone sentiu um calafrio ao ouvir aquilo. Sua mãe havia dito
algo parecido quando contou a ela sobre a punição. Fique longe do deus dos
mortos. Aquele tinha sido o último pedido de Deméter antes de sumir.
Ainda assim, ela se lembrava dos olhos dele. Ônix, sombrios e...
perdidos. Ela sentia a solidão dele, presente como a realidade. A deusa se
perguntava se outros também viam em Hades o que ela via.
“Eu preciso ir.” Disse ela, baixo, se erguendo do sofá.
Atenas a acompanhou e foi até a mesa, deixando lá as duas taças
vazias.
“Você é uma deusa nova. Há muito que ainda vai aprender. Mas há
algo em você, Perséfone, que talvez até você não reconheça ainda... Algo
que eu pressinto ser parte de quem você é, daquilo que faz você divina:
Bondade e coragem.” A deusa do conhecimento veio até Perséfone e
colocou algo em suas mãos. “São raros os deuses quais consigo sentir essas
qualidades como sinto em você. Então, quando descobrir a verdade que
escondem de você, pense nisso. Pense em quem pode, e não quem deveria
ser.”
Ela olhou longamente para Atena e respirou fundo. Atena abriu um
sorriso de despedida e no segundo seguinte, Perséfone desapareceu da
biblioteca, seus pés voltando ao jardim leste, onde o sol agora caía sobre os
céus.
Em suas mãos estava a pintura de Hades ao redor da fogueira.

O mel de Hipno não fizera nenhum efeito.


Perséfone despertou de repente, sentindo sua cabeça pulsar. O
coração batia forte, como se no sonho ela estivesse em perigo, como se
estivesse correndo de algo ruim. Seus ouvidos zuniam.
A deusa puxou as cobertas de seda de sobre o corpo e foi até a bacia
com água fria sobre a penteadeira. Havia apenas uma vela iluminando o
ambiente. Ela jogou água sobre o rosto e sentou-se na cadeira a frente do
espelho, encarando a quase escuridão abraçá-la como amante.
Uma sensação profunda apertava suas entranhas. Era algo estranho e
antigo. Sem notar, ela levou a mão até o peito, tentando afastar aquele nó.
Então, as sombras as suas costas se moveram. E, lentamente, Hades
surgiu por entre o reflexo do espelho.
“Pesadelos?” ele perguntou.
Perséfone estava começando a se acostumar com ele aparecendo
daquela forma. No último mês, toda vez que encarava a noite tinha a
impressão de que ele estava lá, se escondendo na penumbra.
“Eu não sei... não consigo me lembrar”
Pelo espelho, ela viu que ele usava parte de sua armadura, mas sem
a parte do peito. Em vez, ele trajava o longo sobretudo negro que ia até os
joelhos.
Ele ficou ali, atrás dela por um longo minuto, como se admirasse
sua beleza.
“Você demorou...” Perséfone virou-se em direção a ele.
“Hm... Eu não sabia que você me esperava, deusa.”
Todos os dias, ela quis dizer, mas ficou em silêncio.
“Eu conheci Atena”
“Eu sei” Ele murmurou rouco, indo até a cama dela e sentando-se.
Ele parecia cansado.
“Como sabe?”
“Ela veio me ver algumas horas atrás.”
“Vocês são próximos.” Não era uma pergunta. Perséfone sabia ser
verdade.
“Poucos sabem” Ele admitiu, como se também dissesse que a
relação deles fosse um segredo.
“Por quê? Por causa de Zeus?”
“Não fale o nome dele” Ele pediu, baixo, sombrio. Ciente das
consequências.
“Eu não entendo.” Ela se ergueu, ficando em pé à penteadeira.
O olhar de Hades recaiu sobre o corpo da deusa. Seus cabelos
estavam ao redor do rosto, longos e volumosos, cor de mel. Perséfone vestia
apenas uma camisola de linho fino, coberta por detalhes florais, elegantes,
mas que sob luz se tornava quase transparente.
Ela era como uma pintura antiga de uma musa sensual e proibida.
Hades virou seu olhar, olhando em direção à porta francesa que levava aos
jardins.
“Meu irmão ressente minha posição da batalha dos titãs.”
“Você salvou a filha dele” Ela argumentou.
“Atena é modesta. Eu não a salvei, ela salvou a si mesma. Eu apenas
ajudei tirar a vida de Cronos”
Perséfone abriu os lábios para fazer outra pergunta, mas Hades a
interrompeu com um movimento.
“Você ouviu toda a história, Perséfone. Não há nada mais que valha
a pena saber.”
“E por que parte de mim acha que há muito mais?”
Hades suspirou.
“Eu prometi vir até você, agora preciso que você também me
prometa algo...” Ele se ergueu da cama e foi até as portas francesas. Ele as
abriu e com um movimentar das mãos acendeu todos os archotes do
exterior, iluminando as lindas rosas-vermelhas do jardim.
Perséfone foi até ele. A luz tocando a face dela com delicadeza.
Hades tirou seu sobretudo e colocou sobre os ombros dela. Ele não
disse nada, apenas saiu porta afora.
A deusa enfiou os braços nas mangas do sobretudo e apertou-o sobre
o peito, seguindo o deus que ia em direção a uma fonte no centro do jardim.
Ali também havia uma mesa de metal ornamental e sobre essa mesa, uma
nova adição à decoração.
O jogo de tabuleiro. A Rainha Prometida.
Hades sentou-se em uma das cadeiras e esperou ela fazer o mesmo.
“Prometa a mim que não irá mais atrás de histórias antigas.”
“Não posso” ela disse, sinceramente.
Ele pegou uma das peças entre os dedos e encarou o detalhe da
madeira.
“E se eu as contar a você, você promete?”
Perséfone sentiu o coração bater mais forte. Isso significava que ele
teria que vir vê-la mais vezes.
“Eu prometo”
Hades colocou a peça de volta no tabuleiro e encarou o olhar dela.
Uma brisa fria trespassou os dois. As folhas das roseiras farfalharam ao
redor deles.
“Você parece cansado, milorde.”
“Dias de julgamento” ele respondeu, apenas. Sua peça foi
posicionada e ele iniciou o jogo.
“Almas ruins ou boas?”
Ele riu baixo.
“Eu não julgo almas boas, apenas as ruins”
“Você julgou Orfeu...” ela o lembrou. Orfeu, pelo que Eurídice tinha
dito, era um homem bom.
“Orfeu era um intruso no meu reino... e não era uma alma.”
“Você tem notícia dele?” Perséfone quis saber, movendo sua peça.
Hades se manteve em silêncio.
“O caminho para fora do submundo é longo...”
Ela respirou fundo, ignorando aquela resposta enigmática.
“Você foi ao casamento de seu irmão?”
Aquela pergunta fez Hades erguer o olhar do tabuleiro e rir. Foi uma
risada rouca e gostosa. Perséfone se pegou rindo com ele.
“Por que está me perguntando isso?”
“Eu quero começar com perguntas leves...”
Ele balançou a cabeça, divertido.
“Eu estava lá. Por que quer saber?”
Ela deu de ombros.
“Queria saber se sua aversão a festas é algo que se estende à sua
família.”
“Esse é o primeiro casamento de Poseidon... foi um momento
histórico, é claro que eu iria comparecer.” Ele soltou um riso irônico.
“Primeiro?” ela achou estranho aquilo, como se ele esperasse que o
casamento não fosse durar muito. Hades reagiu franzindo o cenho.
“Ela é uma mortal, Perséfone...”
“Deuses podem fazer mortais imortais... não é algo incomum” Ela
dispensou o comentário dele.
“Hm. Você já pensou que talvez ela não queira ser imortal?”
A deusa mordeu o lábio inferior. Era algo que realmente não tinha
passado pela mente dela.
“Eu tenho a impressão de que você não aprova a relação deles”
“Não é da minha conta” Ele disse, simplesmente. Sua peça moveu,
pegando a coroa da dama dela. Perséfone respirou fundo e fixou o olhar no
tabuleiro. Se não focasse no jogo, iria perder.
“Eles pareciam apaixonados”
Hades não tinha comentário para aquilo. Os dois jogaram por alguns
minutos em silêncio. Perséfone conseguiu recuperar sua coroa e capturou a
dama dele em seguida.
Hades abaixou sua última peça, em derrota. Ela tinha vencido
novamente.
“O que aconteceu no Olimpo... naquela noite?”
“Outra garota.”
Suas palavras foram firmes e Perséfone soube imediatamente do que
ele se referia. Além de Zeus ter a fama de bêbado, ele também tinha a fama
de se forçar em garotas mortais. E se elas o recusassem ele fazia coisas
horrendas com elas. Certa vez, Perséfone ouviu sobre como ele havia
transformado uma garota que passeava em campos de gado e havia o
recusado em uma vaca. O pai da garota procurou os deuses em ajuda e
nenhum deles poderiam trazer a garota de volta a ser como era, humana.
“E por que você estava lá, no Olimpo?” Perséfone franziu o cenho.
“Para evitar que as coisas piorassem. Poseidon não tem a paciência
que eu tenho e, geralmente, quando se irrita com as coisas que Zeus faz, os
mortais acabam com tsunamis e meu reino com almas que não deveriam
estar ali antes do tempo” Hades se encostou na cadeira e assistiu a face dela.
Perséfone fez um movimento com as mãos e dois cálices de vinho
dourado apareceram a frente deles. Hades levou o cálice aos lábios,
lentamente, assistindo-a atentamente.
“Você gostaria de usar seus poderes no submundo, deusa?”
“Eu não sabia que tinha a escolha” Ela sorveu um gole, admirando-o
por sobre a taça.
Os ombros largos dele subiam e desciam sob uma respiração calma.
A camisa preta sobre o torso estava, mais uma vez, sem nó, deixando parte
do peito dele a mostra. Seus músculos pareciam dourados sob a luz das
chamas, cobertos por pelos que pareciam macios. Os riscos negros da
tatuagem permaneciam, atormentando-a com o mistério. O rosto dele, como
sempre, tinha um aspecto selvagem, único. Ele afastou o cálice dos lábios e
ela se perguntou qual gosto ele teria se fosse até lá e colasse sua boca na
dele.
“Tudo o que você precisa fazer é pedir... afinal, é meu reino” Ele
parecia um tanto divertido ao assistir o olhar dela sobre seu corpo.
“Preciso oferecer algo em troca?”
Parte dela queria que ele dissesse sim.
“Eu acho que já passamos da fase de barganhas, deusa.”
Perséfone riu, colocou o cálice sobre a mesa e disse:
“O que você disse... sobre tentar ficar longe de mim. Você me dirá,
algum dia, a razão?”
“Eu acho que você deve saber” O deus disse, rouco. “Você é a deusa
da primavera.” Ele olhou ao redor, para a vida nos jardins na brisa da noite
e então, a face dela, quente e presente... linda. “O mundo dos vivos é onde
você pertence.”
“Mas...”
“Confie em mim. Não há nada para você no submundo” Ele
interrompeu.
“Então, por que fui punida a ficar metade de minha existência lá?”
“Porque Zeus queria me punir”
O coração de Perséfone bateu rápido. A mão dela se afastou
bruscamente da mesa, fazendo o cálice cair. Hades o apanhou sem esforço.
Com seus dedos longos, ele colocou o objeto de volta sobre a mesa
e se ergueu. O amanhecer agora ameaçava a noite no horizonte. Os céus
tinham cor azul e roxa.
“Está na hora de eu voltar”
Perséfone se ergueu junto a ele.
“Fique...”
Hades apertou os olhos, se perguntando por que ela iria querer
aquilo depois de ele ter dito o que tinha dito.
“Você tem mais perguntas?”
Ela tinha, mas sabia que ele não lhe responderia.
“Não consigo dormir. Só... fique comigo, até eu cair no sono.”
O peito dele subiu e desceu em uma respiração pesada. Por que ela
continuava a pedir coisas que para ele eram quase impossíveis?
Em silêncio, ela caminhou de volta para o quarto e foi até a cama.
Hades seguiu-a e quando fechou as portas a suas costas, todos os archotes
se apagaram, a vela sobre a penteadeira voltando a ser a única luz do
ambiente.
Perséfone assistiu quando ele se aproximou da cama e, lentamente,
se sentou no canto. Ela se deitou sobre os lençóis, apertando o sobretudo
dele ao redor do corpo. A deusa se aproximou de onde ele estava na
expectativa de sentir seu calor, mas eles não se tocaram.
“Eu espero que suas amantes não se incomodem de você estar na
cama de outra deusa”
A gargalhada dele preencheu o ambiente. Rouca e profunda.
“Eu dificilmente consideraria isso estar em sua cama. Acredite em
mim, quando eu estiver na sua cama, você saberá.” Um calafrio atravessou
a espinha dela. E então, ele murmurou: “Ficar longe de você está se
tornando minha batalha pessoal”
Por entre as sombras, Perséfone respondeu:
“Então, não fique.”
Quando Perséfone acordou, com a manhã entrando por entre as
persianas e as janelas francesas, Hades já não estava mais lá.
No entanto, ela ainda se lembrava do tom da voz dele, quando disse
a meio da escuridão, antes de ir embora:
“Não se preocupe, deusa. Essa batalha eu perdi há muito tempo.”
CAPÍTULO VIII – A COLHEITA

O calor da primavera tinha


chegado. Perséfone esticava
as pernas sobre a grama, com
os pés tocando a água fria do rio. Ela fechou os olhos e se concentrou na
sensação do sol. Ela e suas ninfas haviam feito a longa caminhada dos
Palácios das Cerejeiras até um lago que ficava na fronteira entre os
domínios dela e o deus das florestas.
As ninfas estavam nadando na água fria enquanto a deusa apreciava
o horizonte. Olhando ao redor, Perséfone viu que havia outros deuses e
alguns mortais fazendo o mesmo que ela. Aquela parte do rio se estendia
por longos quilômetros, coberta por grama e flores selvagens, até encontrar
uma densa floresta.
De repente, a meio do campo, caminhando em sua direção, havia
uma mulher.
Bela, de cabelos quase da cor do seu, a mulher vestia um longo
vestido bege.
Era Deméter. Sua mãe.
Perséfone se ergueu de onde estava deitada, surpresa, e correu até a
deusa.
As duas trocaram um abraço apertado. Deméter afastou a filha e
pegou o rosto dela nas mãos.
“Sua beleza parece ser infinita, minha filha”
“Eu senti sua falta, mãe.” Perséfone disse.
“Estou aqui..., mas brevemente apenas. Vem, vamos aos seus
palácios.”
As duas então desapareceram do vale, os pés descalços das duas
encontrando os jardins lestes no segundo seguinte.
Elas caminharam pelas árvores frutíferas em silêncio e foram em
direção ao caramanchão. Sobre a mesa havia um bule de chá. Era chá de
trigo e amora. Uma combinação estranha que sua mãe gostava.
As duas se sentaram e Perséfone serviu a mãe.
“Onde esteve esse tempo todo?”
A deusa levou a xícara de porcelana aos lábios.
“Caminhando entre mortais... conhecendo o mundo deles.”
“O quê?!”
Sua mãe sempre havia sido boa e gentil a respeito dos mortais, mas
aquela informação realmente assustava Perséfone.
“Não se preocupe...” Deméter disse, dando batidinhas na mão da
filha. Perséfone percebeu que sua mãe, que sempre tinha a aparência de
uma jovem mortal de vinte e poucos anos, agora parecia ter envelhecido uns
dez, quinze anos nos últimos quatro.
“Mãe... você desapareceu por quatro anos... os quatro anos que
estive no submundo”
“Eu sei...” ela disse, com um tom de vergonha.
“Eu preciso de algumas respostas”
“Perséfone, esse não é o momento” a voz dela era firme.
A raiva que Perséfone tivera tentando evitar sentir naqueles quatro
anos tentou explodir dentro de si. No entanto, ela só fechou as mãos em
punho e disse, calma:
“Quem você tentou matar?”
“Perséfone...” Deméter balançou cabeça, resignada.
A deusa da primavera bateu sobre a mesa e se ergueu.
“Eu sou aquela que precisa gastar metade da minha existência no
submundo... não você. Eu estive esperando até agora por essa resposta, pela
razão pela qual estou sofrendo essa punição.”
“Não é tão simples assim”
Perséfone encarou a mãe. O que ela sentia agora era decepção.
Tinha esperado todo aquele tempo na expectativa de que sua mãe lhe desse
alguma explicação. No entanto, ela estava sendo tão escorregadia quanto os
outros deuses.
“Eu conheci... o rei do submundo, Hades” Perséfone disse, por fim.
Sabendo que iria impactá-la.
“Não!” Deméter soltou, furiosa. “Eu especificamente te disse para
ficar longe dele!”
“Você vai me dizer a verdade? O porquê a sua punição se tornou a
minha punição?”
Deméter parou e observou a filha. Ela nunca tinha visto Perséfone
daquela forma, vingativa. E a verdade era que a deusa não era assim, mas
estava exausta. Cansada de meias respostas.
“Foi uma profecia...” Deméter falou por fim.
“Eu já sei disso. Eu quero saber a razão.”
A deusa da colheita virou de costas e disse:
“Eu preciso ir”
“O quê!?” Perséfone foi até ela e a pegou pelo braço. “Estou
implorando, mãe. Eu mereço saber a verdade”
Deméter olhou a filha e tocou em seu rosto.
“Contanto que Hades fique longe de você... como ele me prometeu,
tudo ficará bem”
Silêncio profundo cobriu as duas. Pássaros voaram ao redor delas. A
mão de Perséfone caiu ao redor do corpo.
“Hades prometeu ficar longe de... mim?”
“Sim.”
“Quando você o visitou, alguns meses atrás.” A ficha caiu. A deusa
respirou fundo. “Por que ele faria isso?”
“Porque ele sabe que estou certa”
“Sobre o quê?”
Deméter ficou calada. Seu rosto envelhecendo a cada segundo que
passava e não dizia Perséfone a verdade.
“Só me diga, mãe.” Ela estava tão cansada, percebeu. Quatro anos
de silêncio e agora isso. Ela se sentia terrivelmente traída e nem tinha uma
razão para isso. Por que Hades prometeria ficar longe dela? “Quem você
tentou matar? Qual deus? E por quê?”
“Eu preciso ir” Deméter repetiu, devagar dessa vez.
E foi naquele momento que Perséfone soube que sua mãe já não era
mais a mesma e ela duvidava que um dia fosse quem realmente acreditava
ser.
Perséfone era nova demais quando descobriu a punição e não
entendeu, não compreendeu o que estava acontecendo, ou porque sua mãe
havia desaparecido. Agora, parte dela via que além de culpa, Deméter
escondia segredos. Segredos que assim como a punição, iriam acabar
ferindo Perséfone. Segredos obscuros.
“Eu te vejo em breve, minha filha” A deusa se aproximou da filha e
beijou sua face, desaparecendo no ar em seguida.
Perséfone fechou os olhos e deixou aquele sentimento alastrar por
todo o corpo. Ela achava que a raiva explodiria, mas pelo contrário, ficou
ali, contida, vibrante em seus dedos.
Ela sentiu o poder emanar, crescendo dentro de si. Com ele, uma
sensação profunda de solidão.
Perséfone agora percebia que sua mãe a havia deixado sozinha no
pior momento de sua vida e não tinha intenções nenhuma fazer diferente.
A raiva contida se tornou em tristeza. Ela sentiu uma lágrima cair
sobre o rosto e rapidamente a limpou. A última vez que tinha chorado havia
sido no submundo, nos seus primeiros meses lá. Sozinha, cansada, confusa
com frio e fome.
Ela voltou a caminhar pelos jardins, percebendo que sua vida de
deusa nos mundos dos vivos se consistiria nisso até o dia que morresse.
E pela primeira vez, desejou que o inverno chegasse o mais rápido
possível, assim, ela poderia voltar para onde realmente se sentia em casa.

Aquele era o dia da primeira lua cheia. O dia a subida das marés.
Perséfone leu mais uma vez o convite de Trite e o deixou sobre a
penteadeira, olhando-se no reflexo do espelho.
Ela havia decidido se arrumar sem as ninfas naquele dia, escolhendo
um vestido verde, colado ao corpo que descia um palmo abaixo de seu
joelho. As mangas eram curtas, mas altas sobre os ombros, como se
parecerem o bulbo de uma flor prestes a florescer. Ela tinha prendido uma
parte do cabelo com um pequeno grampo de ouro sobre a têmpora e
passado sob os lábios uma pasta feita de rosas-vermelhas.
Seus olhos cor de âmbar não brilhavam naquele dia.
Perséfone se sentia cansada. A visita de sua mãe alguns dias atrás
tinha tirado dela toda sua energia.
Aos pés, ela calçava um sapato alto, que subia por seus tornozelos
em tiras de couro e detalhes florais de ouro, combinando com o detalhe de
seus cabelos. Dando de ombros, ela decidiu que estava pronta. Não sabia
exatamente como se vestir para a ocasião, não tinha certeza se seria um
jantar ou um baile. E, também, não sabia como chegar dos Palácios de
Corais. Havia apenas ouvido falar deles, mas não onde ficava.
Era apenas um dos lugares onde Poseidon morava. Ele também
havia palácios abaixo do oceano, mas claro, Trite não podia viver neles,
pois era mortal.
Perséfone estava prestes a ler o convite mais uma vez para tentar
saber como chegaria até lá quando notou uma pequena concha surgir por
sobre o papel. A concha tremeluziu, surgindo como se estivesse ali aquele
tempo todo.
A deusa sorriu e pegou o objeto na mão, percebendo que vinha com
um pedaço delicado de couro, como se fosse um colar. Ela levou-o até o
pescoço e no segundo seguinte, já não estava mais em seus palácios.
As ondas do mar quebravam com força, explodindo sobre um
paredão de pedras à beira-mar. As águas eram cristalinas, azuis como o céu.
O dia estava quente e belo, límpido. A praia se estendia por milhas e milhas,
Perséfone não conseguia saber onde terminava. Sobre a areia, os palácios de
Poseidon se erguiam.
Assim como corais, a textura e as cores das paredes eram como um
caleidoscópio. Do vermelho ao azul, cada superfície do palácio era tomada
pela riqueza que havia dentro dos mares e, no fundo do oceano. A água do
mar tocava as paredes, indo e vindo, deixando uma camada de alga por
onde passava.
Perséfone respirou fundo e olhou ao redor. A praia parecia vazia. Ela
tirou os sapatos e enfiou os dedos na areia quente, abrindo um sorriso. No
submundo, o único mar que ela tinha acesso era o vale das almas e em
nenhum momento em seus quatro anos lá ela pensou em caminhar sobre as
praias ou entrar na água. Ela sabia que aquele mar era feito para trazer as
almas até Asfódelos, nada mais.
Caminhando em direção às enormes torres coloridas, ela viu dois
braços se movimentando no ar. Trite gritava seu nome à distância.
“Perséfone!”
A deusa da primavera foi até ela, com a rainha dos sete mares
correndo para encontrá-la a meio caminho, puxando-a para um abraço
apertado.
“Ah, eu achei que você não viria” A mortal disse quando se afastou.
Os cabelos cacheados de Trite estavam revoltos ao redor do rosto,
como se ela estivesse em constante contato com a brisa do mar. Sua pele
estava ainda mais morena, bronzeada pelo sol. Ela vestia um longo vestido
feito de pequenas cordas que pareciam redes de pesca que não cobriam
muito de seu corpo, mas o bastante para ser decente.
“Uau...” A rainha admirou Perséfone. “Você precisa me emprestar
suas costureiras...” ela continuou, baixo. “As daqui são horrendas”
Perséfone riu.
“Eu costurei esse vestido, na verdade” Trite estancou e abriu os
lábios, chocada. A deusa riu da expressão dela e disse: “Não tenho
costureiras no submundo, então precisei aprimorar meus dons de costura e
bordado...”
“O quê?!” a boca dela se abriu ainda mais na menção de Perse não
ter costureiras no submundo. “Eu vou ter uma palavrinha com Hades”
Perséfone riu.
“Ele não pode fazer nada”
A rainha franziu o cenho e puxou a deusa pela mão, levando-a para
o interior do palácio.
“Deixe comigo” ela disse. “Mas mesmo assim... uau, você tem um
dom.”
“Obrigada”
Perséfone se sentia satisfeita. Havia trabalhado naquele vestido
desde o momento em que voltou ao mundo dos vivos. Não havia ficado
como tinha imaginado, mas admitia que não estava tão mal.
As duas adentraram o palácio e Perse quase soltou uma exclamação.
Ela acreditava que nada poderia ser melhor do que o lado de fora, mas
assim que entrou na primeira sala, soube que não era verdade.
O interior era coberto por cor. As janelas tinham cores diferentes e
quando a luz batia parecia que estavam em um arco-íris. Portas abertas e
enormes davam para uma parte da praia que ela não tinha visto, pois era
uma área reclusa, só para aqueles que moravam ou estavam no palácio.
Uma enorme porta dava para lá. O mar quebrando-se em ondas a
metros de distância.
Nereidas, ninfas dos mares, vieram até as duas e lhes entregaram
bebidas geladas. Quando Perséfone levou o cálice aos lábios, soube que
estava provando, pela primeira vez, a famosa bebida dos seres das águas.
Era simplesmente chamada de Lágrima. Era levemente salgada com um
toque de rum. Não era uma bebida divina, mas era deliciosa.
Sofás e cadeiras acolchoadas cobriam o espaço. Mezaninos e
escadas davam para a parte mais íntima do palácio. Sobre a varanda, a
frente do mar, havia uma grande mesa com comida, bolos e garrafas de
hidromel, lágrima e vinho dourado.
As duas, descalças, caminharam até lá.
“Estamos esperando por outros convidados?” Perséfone quis saber,
dando mais um gole na bebida.
“Ah, não. A subida da maré é um evento que Poseidon gosta de
manter entre família.”
Família. A rainha levou um manjar para os lábios e sorriu para
Perséfone, como se tivesse feito algo travesso. E então, ela viu alguém se
aproximar sobre o ombro de Perséfone.
“Meu rei!”
Ela apertou o ombro de Perséfone como se dissesse ‘não se
preocupe’ e correu para encontrar o deus.
A deusa se virou para eles e assistiu Trite encontrar Poseidon. O
deus dos oceanos estava com o torso musculoso nu, coberto por suor. Ele
tinha deixado a barba crescer levemente desde o baile da primavera.
Trite pulou sobre ele e o deus a aparou, puxando-a do chão,
acariciando os cabelos dela e a trazendo para um beijo quente.
Atrás de Poseidon vinha outra pessoa. Parte de Perséfone já sabia
quem era.
De repente, ela quis desviar o olhar, mas não conseguiu.
Hades apareceu por sobre a areia. Ele, assim como o irmão, estava
sem camisa. Os dois eram quase do mesmo tamanho, no entanto, os ombros
fortes de Hades demonstrava seu uso constante da espada. O torso dele era
completamente coberto por músculos firmes, definidos, que brilhavam
sobre a luz do sol e o calor. Suor escorria por seu v de adônis.
Ele ainda não a tinha visto, pois estava concentrado em tirar algo da
boca de seu cachorro, Cérbero. E foi o cachorro que a viu primeiro. O
animal, assim que olhou para Perséfone, abandonou o dono e veio
disparado em direção a ela, chegando perto e oferecendo sua cabeça para
que ela fizesse aquilo que não tinha feito quando se conheceram.
O cachorro tinha pelo negro, mas parecia diferente de quando ela o
vira no submundo. Era como se o mundo dos vivos o fizesse mais... normal,
e menos ameaçador.
Perséfone se agachou e o acariciou.
Ela então encontrou o olhar de Hades, à distância. O deus respirou
fundo e balançou a cabeça, em negativa. Ele não parecia feliz.
E a verdade era que Perséfone não se sentia muito diferente dele.
Depois que sua mãe tinha dito que ele prometera ficar longe dela,
Perséfone havia criado um ressentimento silencioso. E tinha ficado grata
que ele não a visitara naqueles últimos dias.
Parte desse ressentimento era alimentado pelo fato de que ela se
sentia indesejada e tola. A deusa tinha se arrependido de todas as vezes que
tinha ido no castelo em busca dele, ou quando pediu para que ele ficasse
com ela... naquela noite.
E agora ela estava decidida em dar a ele o que queria, o que tinha
prometido a sua mãe: distância.
“Lady Perséfone” Poseidon anunciou quando se aproximou. A deusa
se ergueu e fez uma mesura longa.
“Milorde”
“Não precisa ser formal.” Ele fez um movimento com a mão,
assistindo com divertimento o cachorro de Hades lamber os dedos dela.
“Vocês se conhecem... e muito bem, pelo que posso ver. Nunca vi esse
cachorro infernal gostar de alguém tanto assim. Ele estranha até a mim.”
Perséfone riu e coçou a cabeça do animal.
“Apenas uma vez. Quando invadi o Palácio das Almas Perdidas.”
Poseidon e Trite se entreolharam, curiosos.
“Invadir?”
“Ela foi convidada” Hades esclareceu, chegando mais perto.
“Não foi o que pareceu” ela murmurou, evitando olhar para ele.
Mesmo assim, fez outra mesura para ele. “Milorde”
Hades abaixou a cabeça levemente, encarando o corpo dela, naquele
vestido colado.
“Milady”
Perséfone voltou a encarar Cérbero na tentativa de não encontrar o
olhar do deus. Os quatro ficaram em silêncio por alguns segundos até Trite
fazer uma careta e limpar a garganta.
“Refrescos?” A rainha quis saber, indo até a mesa feita de corais e
enchendo cálices com Lágrima e gelo. Ela pegou a taça de Perse e a encheu.
E então, se virou aos dois irmãos e disse: “Quem ganhou?”
Poseidon riu.
“Ninguém. Estamos empatados”
Trite deu de ombro e puxou Perséfone consigo.
“Ótimo. É uma boa chance de mostrar a Primavera aqui o que os
deuses mais poderosos do Olimpo fazem quando estão entediados”
Hades soltou uma gargalhada, como se o que ela houvesse dito fosse
longe da verdade.
“Eu acho que já é o bastante para mim”
A rainha o fuzilou com o olhar.
“Entretenha minha convidada” ela sibilou.
Hades então ergueu as mãos em defesa própria.
Os dois irmãos se entreolharam e Poseidon segurou uma risada. O
desafio de entreter Perséfone tinha sido aceito.
Eles então socaram o ombro um do outro e viraram a bebida de uma
vez, correndo de volta pela praia.
Perséfone e Trite caminharam até a beira-mar onde havia toalhas
sobre a areia. Mais a frente, próximo à água, havia uma longa corda
dourada jogada no chão. Sobre a areia, uma divisão.
Os deuses se posicionaram, cada um pegando uma ponta da corda.
Trite foi até eles e limpou a linha que marcava o centro dessa.
Perséfone se sentou sobre as toalhas, assistindo-a falar algo baixo
para os dois, e então correu em direção onde a deusa estava. Cérbero foi até
elas e se deitou próximo, aos pés de Perse.
“Cabo de guerra?”
Trite deu um sorrisinho.
“Cabo de guerra versão deuses-que-trapaceiam. Eu disse a eles para
se comportarem. Não quero que você saia daqui com uma impressão
errada”
Perséfone riu.
E então, os dois começaram a puxar a corda.
Perséfone não conseguia tirar seu olhar de Hades. Ele enfincou os
pés descalços na areia e então cada músculo de seu corpo se tensionou.
Poseidon fez o mesmo e a corda não parecia se mover nem um centímetro.
“Como eles trapaceiam?” Perséfone quis saber, sem conseguir tirar
seu olhar do corpo do deus dos mortos. Ela, de repente, notou que a
tatuagem dele não estava lá, havia sumido. Como se ele a tivesse removido
ou escondido.
“Bem... depende. Eu já vi Poseidon mandar um tubarão atacar
Hades e Hades abrir um buraco no chão para engolir as pernas de
Poseidon.”
Perséfone riu, dando um gole na bebida salgada.
“Posso perguntar...” A rainha se aproximou da deusa. “O que há
entre vocês dois?”
Perséfone se assustou com a pergunta, voltando o olhar de Hades
para rosto dela.
“Nada”
A rainha fez muxoxo, mas não se aprofundou no assunto,
percebendo que era melhor deixar quieto.
“Sua festa foi incrível, deusa, mas...” Trite bufou, como se decidisse
se valia a pena ou não contar a ela. “Você precisa saber disso, pois tenho
uma impressão de que eles estão escondendo coisas de mais de você. E eu
lembro bem como é ser a última a saber dos segredos dos deuses. Hades
pediu a Poseidon para ir a sua festa.”
Perséfone engoliu em seco e se viu engasgando com a bebida.
“O quê... Por quê?”
“Eu não sei o porquê, mas geralmente quando os dois concordam
em algo... o que é raro, tem a ver com...” Ela parou e respirou fundo. “O
outro irmão.”
Uma onda de decepção e choque explodiu dentro de seu âmago.
Os segredos, as mentiras. Tudo estava se tornando demais para ela
suportar. No fundo, quando ela assistiu Poseidon olhar para as sombras da
noite do dia do baile, soube que a presença dele lá era suspeita demais. E
agora, sabia que era verdade, mas não a razão. E isso quebrava seu coração.
De repente, Perséfone quis sumir dali.
Sua mãe e agora Hades. Ela não tinha mais ninguém em quem
pudesse confiar.
Perséfone se sentia completamente só.
Ela ouviu Poseidon dar um urro de vitória. Trite o ignorou,
assistindo a face a deusa se transformar, ficando pálida.
“Você está bem?” A mortal sussurrou, tomando a mão de Perséfone.
A tristeza que Perse sentia havia removido de dentro dela qualquer
emoção. Ela se sentia vazia. A deusa precisava de respostas e como sabia
que nem sua mãe e nem Hades a daria, só havia outro deus capaz de ajudá-
la.
“Me desculpe, Trite, eu preciso ir...” falou, com a voz baixa, quase
inaudível.
Perséfone se ergueu das toalhas e Hades e Poseidon assistiram
quando ela deu de costas para o mar, caminhando rápido em direção ao
palácio.
“Perse, espere!” A rainha gritou, se erguendo. Ela encarou os dois
deuses. “Hades, faça alguma coisa!”
Hades largou a corda e deu um passo em direção a ela, vendo
quando ela tocou na concha ao colo e desapareceu sobre a brisa do mar.
CAPÍTULO IX – A MARÉ

O custo para conseguir uma


audiência com Zeus, assim,
de última hora, era o de dez
moedas de ouro divino. Aquelas que haviam sido tocadas por Midas.
Perséfone sabia que as tinha em algum lugar, apesar das moedas serem
extremamente raras.
“Encontre-as!” Ela ordenou as suas ninfas, que correram pelos
corredores do palácio em busca das moedas.
A deusa começou a revirar o quarto que tinha sido de sua mãe e
quando não as encontrou lá, passou para os jardins. Todo jardim possuía
pequenos lugares escondidos onde baús com riquezas podiam ser
encontrados. Ela já estava no terceiro jardim, com o chão sobre seus pés,
completamente destruído, quando ele apareceu.
“Esse não é o momento, Hades!”
Ele encarou-a. O vestido verde que ela estava usando coberto por
terra molhada. Suas mãos estavam sujas e ela tinha um pouco de barro
sobre a face.
“O que Trite te disse?”
Ela o ignorou, sentindo a presença dele em suas costas. As mãos
dele então encontraram os braços dela e ele a puxou para si.
“Olhe para mim” ele rugiu. “O que você está fazendo?”
“Me diga por que Zeus queria punir você”
“Não fale o nome...”
Perséfone o empurrou com força. Ele não tinha se vestido para ir
encontrá-la ali. Seu torso ainda estava nu.
“Vá embora!”
Hades deu um passo para trás, vendo a ira no olhar dela.
“Sua mãe esteve aqui” ele adivinhou.
Perséfone deu uma risada.
“E foi como se não estivesse. Eu não entendo a razão de todas essas
mentiras” ela passou a mão sobre o rosto, sujando ainda mais a face.
Fechou os olhos, exausta. “Você prometeu a ela que ficaria longe de mim,
então por que está aqui?”
O fato de que agora ela tinha ciência daquela promessa pegou Hades
de surpresa.
“Kore” ele suspirou, por entre os dentes.
Kore era um nome antigo, tão antigo quanto o tempo.
Significava a mais bela dama. Era um apelido que amantes
costumavam dar um ao outro. Mas Perséfone não era amante de Hades.
Aquilo fez a raiva dela subir até a superfície.
Flora, de repente, surgiu com um baú antigo, coberto por veludo. A
garota estancou sobre a entrada do jardim, olhando quem estava lá. Ela fez
uma mesura para ele e correu até Perséfone, lhe entregando o objeto e
sumindo de vista.
Perséfone abriu o baú e lá estavam, as moedas que precisava. Ela
colocou o objeto sobre os braços prestes a se transportar para o Olimpo,
sem dizer uma só palavra em resposta ao que ele tinha dito.
No entanto, Hades a puxou mais uma vez pelo braço e a gravidade
atingiu os dois com força, o poder deles empurrando um contra o outro até
que Hades soltou um rugido e, de repente, eles foram jogados sobre um
chão duro e frio.
Perséfone precisou de um segundo para voltar a realidade. Ela se
apoiou na parede mais próxima e se ergueu. Ela havia tentado se transportar
para o Olimpo, mas não estava no Olimpo. As paredes negras do ambiente a
fez pensar que estava no submundo, mas sabia que Hades não a levaria até
lá. A deusa olhou ao redor e viu as costas dele se moverem, se servindo uma
bebida de um aparador abarrotado de garrafas contendo líquidos marrons.
Não era hidromel, eram bebidas feitas por mortais. Ele se serviu um
copo generoso de rum e revirou-o todo em um gole.
“Onde você me trouxe?” ela disse com voz pesada.
“Eu também, assim como Poseidon, possuo palácios do mundo dos
vivos.”
Ele falava sem olhar para ela. O baú de moedas dela agora estava
sobre o aparador a frente dele. Perséfone precisava delas para a audiência.
“Eu pedi para você não fazer isso” ele disse, rouco.
“Você me pediu para não ir atrás de histórias antigas... Eu estou indo
atrás da minha história”
Hades soltou uma risada sombria.
“Sua história é tão velha quanto eu”
“Me dê as moedas!” ela rugiu, cansada das meias verdades.
“Não.” Ele jogou o copo na parede. O estilhaçar do cristal assustou-
a.
Hades se virou para encarar a deusa e em seu olhar havia algo
sombrio, algo coberto por violência.
“Você não vai chegar perto dele. Eu não vou permitir”
“Você não tem nada a ver com isso” ela sussurrou.
Ele balançou a cabeça.
“Você é tão ingênua...” Hades veio até ela, impassível. “Eu tenho
tudo a ver com a história. Eu te disse, Perséfone, Zeus puniu sua mãe e, ao
mesmo tempo, me puniu...”
“Por quê?”
“Quando sua mãe ouviu a profecia do oráculo, quando ainda
carregava você no ventre, soube que não poderia deixar a profecia se tornar
realidade. A profecia envolvia a mim!”
A respiração de Perséfone falhou.
“Então, ela tentou me matar. Sem sucesso, é claro. Sua mãe não foi
criativa na tentativa. Ainda assim, ela precisava ser punida. Deuses não
podem matar outros deuses, é a lei.” Ele suspirou, abrindo os olhos para ver
o rosto dela. “Quando Zeus a puniu, ele decidiu condenar você, a filha ainda
não nascida dela, ao submundo pelo resto de seus dias assim que
completasse dezoito anos. Sua mãe, no entanto, fez um acordo com Zeus, e
por causa desse acordo ele concordou que você ficaria apenas a metade de
sua existência no mundo dos mortos. Seis meses do mundo mortal, seis
meses no submundo. Não importava a quantidade de tempo para Zeus, ele
só queria que você ficasse presa em meus reinos para que o inevitável
acontecesse...”
Perséfone sentia lágrimas quentes se juntarem nos olhos.
“Inevitável...” ela sussurrou. Um calafrio cobriu o corpo dela. “O
que é inevitável?”
Os olhos ônix de Hades se escureceram ainda mais. Após um longo
silêncio, ele disse:
“A profecia dizia que a primeira e única filha de Deméter se
apaixonaria pelo deus dos mortos... E Zeus soube que havia encontrado,
finalmente, uma forma de criar uma fraqueza minha. Algo que um dia ele
pudesse usar para me ferir como acredita ter sido ferido quando eu venci
batalha dos titãs no lugar dele.” Hades apertou a mandíbula, irado. Suas
mãos em punho pareciam prestes a quebrar algo. E então, por fim,
murmurou: “Ele havia consultado os oráculos e as moiras... ele sabia que eu
não conseguiria ficar longe de você.”
Perséfone tinha perdido sua voz e a capacidade de respirar. Ela se
apoiou na parede de pedras nuas. Hades a encarava com força. As sombras
de seus olhos agora dando lugar à preocupação.
“É por isso que não posso deixar você chegar perto dele.”
“Eu não preciso de sua proteção” ela conseguiu dizer, baixo. Hades
abaixou olhar.
“Profecias não são imutáveis, Perséfone. O que os oráculos disseram
não precisa ser a verdade... Você não precisa ficar perto de mim, mas eu
preciso proteger você.”
“Foi por isso que não vi você nos quatro anos que estive no
submundo... sozinha?”
Ele franziu o cenho.
“Você não estava sozinha, deusa”
Ela riu. As lágrimas que tinham se acumulado em seus olhos
finalmente escaparam quando ela não conseguiu mais suportar aquela dor.
“Eu estava mais do que só. Eu estava perdida” ela disse, quase
sufocando no peso das palavras. Ela só conseguia se lembrar das noites
horrendas que tivera. Da solidão e do frio.
Hades respirou fundo, seu peito nu subindo e descendo.
“Você acreditaria em mim se eu dissesse que estava lá... cuidando de
você?”
Ela fez que não. Sua mão foi até o peito, apertando-o, tentando
libertar aquele nó mais uma vez.
“Shh...” Hades trocou a mão dela pela sua, colocando a palma sobre
o peito dela, quente. Os dedos dele tocaram suas lágrimas. “Eu estava lá,
acredite em mim”
Ela o encarou e viu verdade em seu olhar. Então, o aceitou.
Seus dedos se enrolando nos dele. A face de Hades estava
contorcida em dor, como se vê-la sofrer fosse pior do que uma ferida de
guerra.
“Como?”
Ele tomou a face dela na mão, apertando a outra em seu peito.
“Em sonhos” Hades murmurou, rouco. “Eu estava com você em
seus sonhos, todas as noites... Eles eram o único lugar que eu sabia que
Zeus não olharia, onde ele não pensaria em vigiar”
“Foi você” ela disse por fim. “O sonho que tive”
A mão sobre o peito dela se tornou uma carícia. Ali, onde estava a
concha do mar, estivera por quatro anos o colar de âmbar que ela havia
dado a ele em troca do acordo, aquilo que era mais precioso para ela. A
deusa sabia que tinha vindo de um sonho, um sonho que havia transformado
como ela via o submundo.
A luz tocou o rosto de Hades e ele se aproximou ainda mais dela,
apertando-a sobre a parede.
“Sim”
“Por que eu não me lembro?”
“Porque... Eu não consegui suportar mais e certo dia...” Os olhos
negros dele agora estavam profundamente perdidos na face da deusa. Hades
abaixou o rosto e levou seu polegar até os lábios dela. O aroma da pele dele
era inebriante para Perséfone. “Eu roubei um beijo... mesmo sabendo que
não deveria”
O coração dela bateu sobre as costelas. Ela não se lembrava. Ela não
se lembrava de nada. E talvez fosse por isso que disse o que disse em
seguida.
A deusa passou a língua por sobre os lábios. Os olhos dele recaíram
ali.
“Me beije”
“Eu não posso” ele sibilou, rouco.
“Me beije, Hades”
A segunda vez foi o bastante. Hades a empurrou ainda mais em
direção à parede, apertando o corpo dela sobre o seu, e seus lábios
encontraram os dela com força.
Hades a beijou com vontade, como se tivesse se segurado por
milênios por aquele momento. Ele agarrou a nuca dela e a puxou contra si,
quente, doce, voraz.
Ele parecia com fome, parecia tomado por um desejo que nem
mesmo entendia.
Perséfone levou seus braços para ao redor dos ombros dele,
puxando-o para si. Ela soltou um gemido quando ele mordeu seus lábios,
enfiando a língua em sua boca para experimentá-la ainda mais.
Hades a puxou contra si, tirando-a do chão e fazendo-a entrelaçar as
pernas sobre sua cintura. O deus dos mortos soltou um pequeno rugido
quando ela passou as unhas por suas costas, apertando os dedos em sua pele
quente.
Ele se afastou, de repente, deixando-a respirar. O deus repousou a
testa sobre a dela. Perséfone levou as mãos até seu pescoço e enfiou os
dedos entre os cabelos curtos dele.
“Vem comigo de volta para o palácio de Poseidon. Não podemos
ficar aqui”
“Onde estamos?”
“Castelo das Tempestades. Aqui é onde as tempestades do
submundo se iniciam”
“E é seu?”
O deus apertou o queixo dela, sem responder. É claro que era dele.
Ele tocou seus lábios rosados mais uma vez com o polegar e se
mergulhou nela, lenta e suavemente. A fome ainda estava lá, mas agora
estava contida, firme.
Os lábios dele dançaram sobre os dela por longos minutos.
As palmas das mãos de Perse estavam firmes sobre o torso dele,
tocando os músculos e a pele fervente. Quando eles se afastaram, Hades
repetiu:
“Precisamos ir”
“Não podemos ficar?” ela sussurrou, puxando-o ainda mais para si.
Ela queria que ele se afundasse em seus lábios mais uma vez.
Hades não respondeu. A abaixou no chão e se afastou, respirando
fundo. Eles se entreolharam.
Ela engoliu em seco, pois o que via no olhar dele era furioso. O
desejo entre os dois era como fogo grego. Queimava terrível e
avassaladoramente.
O deus ofereceu a mão e quando ela deslizou a palma sobre a dele,
os dois desapareceram dali e areia quente surgiu por entre seus pés.
Hades afastou a mão dela com delicadeza e enfiou os dedos dentro
dos bolsos, encarando o oceano. Agora, ela via algo interessante cobrir a
face dele: culpa.
“Graças aos deuses!” Perséfone ouviu o grito de Trite.
Era ela dolorosamente mortal, a deusa percebeu. A rainha corria pela
areia em direção aos dois. Poseidon seguia-a calmamente, com longas
passadas. Trite pegou as mãos de Perséfone, e a deusa assistiu Hades passar
pelo irmão em direção ao palácio, com as mãos nos bolsos. Os dois
trocaram um longo olhar, mas isso não interrompeu Hades, ele
simplesmente caminhou para longe da praia.
“A maré está prestes a subir” Poseidon disse para as duas. “Fique
conosco, milady”
“Claro, milorde” ela respondeu, levemente envergonhada por sua
saída brusca. Na expressão do deus dos mares, no entanto, ela conseguia ver
compreensão.

A maré subiu no entardecer.


Hades eventualmente retornou de dentro do palácio. Agora ele
vestia uma das suas camisas pretas e parecia ter lavado o rosto. Seus
cabelos estavam levemente úmidos.
Perséfone tinha se livrado da terra sobre o rosto e do vestido. E
apesar de Trite ter oferecido um de seus vestidos, ela recusou.
Trite e Perséfone voltaram a se sentar sobre as toalhas na praia.
Agora havia travesseiros grandes e uma pequena mesinha com ambrosia,
manjares e taças com lágrima.
Poseidon voltou dos palácios com Hades. Eles conversavam baixo.
O deus dos mares também tinha colocado uma camisa e tinha seu tritão nas
mãos.
Perto um do outro, Perséfone conseguia ver a similaridade de
irmãos. Poseidon trajava sua cor, azul marinho, que ficava em contraste ao
seu cabelo castanho, enquanto Hades trajava roupas pretas. Sua pele clara,
dourada, tocada pelo sol, ficando em contrate com seus cabelos e olhos
escuros.
Os dois caminharam até a água. Poseidon deixou o mar tocar seus
pés. Hades ficou levemente distante. O deus do submundo então tocou o
ombro do irmão e caminhou em direção às duas. Ele ficou em pé, ao lado
delas, assistindo o deus do mar caminhar em direção as ondas, até que o
mar o engoliu por inteiro.
Perséfone rapidamente percebeu que aquele era um dia importante.
O pôr-do-sol dançava em cores ao redor deles, sobre o mar. A lua
cheia podia ser vista nos céus, como uma ameaça da noite.
Lentamente, conforme o sol foi se pondo e os céus foram
escurecendo, a água começou a subir e subir. A lua então se tornou o único
membro celeste na noite e foi nesse instante em que a água do mar tocou os
pés dos três, a maré subindo tanto que antes onde havia areia tinha se
tornado parte dos reinos de Poseidon.
O deus apareceu por entre as águas, com um sorriso, satisfeito. Seus
cabelos completamente molhados. Trite se ergueu de onde estava e foi até
ele. Ele pegou a mão dela e os dois se voltaram para as águas, caminhando
pelas ondas até bater na cintura deles.
Foi então que Poseidon colocou a mão sobre o ventre da mortal.
“Deuses” Perséfone soltou um suspiro.
Trite carregava o primeiro filho de Poseidon.
Hades ofereceu a mão para ela e a deusa o aceitou, se erguendo de
onde agora havia água. Seu vestido estava completamente encharcado.
“As consequências” ela sussurrou para o deus dos mortos.
“Eles estão cientes.” Hades respondeu.
Desde o último filho de Zeus com uma mortal, Hércules, o conselho
dos doze havia proibido que os irmãos tivessem filhos com mortais.
Semideuses eram uma ameaça natural para os deuses. Eles eram
incrivelmente poderosos, mas a mortalidade deles os fazia odiar os deuses,
com muitos matando os próprios pais em busca de poder e imortalidade. E
Hércules havia sido um exemplo disso.
Ele tinha tentado matar Zeus e no processo acabou matando outros.
No fim, Zeus havia empurrado o próprio filho de sobre o monte Olimpo e o
semideus pereceu com a queda.
Perséfone sentiu a mão de Hades se afastar da dela mais uma vez.
“Eu preciso ir. Almas me esperam” Ele falou, olhando para além da
noite.
Ela não queria fechar os olhos, pois pensaria no beijo que
compartilharam. E não queria pedir para ele ficar com ela. Acenando com a
cabeça, viu Hades desaparecer no ar. A brisa do mar tocou a face dela,
quando ele já não estava mais ali.
A deusa notou que Poseidon também tinha desaparecido. Trite vinha
em sua direção com passos curtos.
A mortal pegou a mão de Perséfone e elas deixaram a praia,
deixando o mar e a noite para trás, voltando ao palácio.

Por insistência de Trite, Perséfone passou a noite ali, no Palácio dos


Corais. As nereidas prepararam-lhe um banho quente e trouxeram roupas
secas, feitas de renda e seda pura. Os aposentos em que ela dormiria
naquela noite ficavam na parte oeste do palácio, com grandes paredes
coloridas e uma abertura que dava para o mar. Sem portas ou janelas, a
abertura trazia a brisa da madrugada e o aroma da água salgada para o
interior.
Quando a deusa terminou de se vestir, Trite apareceu pela porta
principal, trazendo uma bandeja de comida. Ela sorriu para Perse e as duas
se sentaram no chão da varanda, compartilhando o jantar, peixe frito com
batatas em manteiga e trufas. Quando terminaram, as ninfas colocaram um
prato de manjar e cálices de lágrimas entre elas.
“Deuses e a noite...” a mortal falou, de repente. “Eles são um. Não
me lembro da última vez em que adormeci junto a Poseidon. Ele sempre
está lá quando acordo, mas nunca quando vou dormir.”
Perséfone levou o cálice aos lábios.
“Minha mãe costumava me dizer que os três não dormem. São
escravos de seus reinos em vez de reis”
Trite riu.
“Sua mãe me parece sábia”
Perséfone respirou fundo ao ouvir aquilo. Até alguns dias atrás,
achava o mesmo. Agora, tinha certas dúvidas.
“O que aconteceu?” A rainha quis saber. Pela forma como ela tinha
ido embora naquela tarde e por sua expressão em reação ao comentário,
Trite soube que havia algo errado.
Sabendo que podia confiar nela, Perse então contou sobre a visita da
mãe e parte da conversa que teve com Hades. Ela decidiu deixar o beijo de
fora da história.
A rainha balançou a cabeça e apertou a mão dela.
“Você está certa em procurar por respostas. Me surpreende que
tenha ido ao submundo sem entrar em guerra contra sua mãe e os deuses
que decidiram seu destino”
“Eu fui criada na expectativa de agradar.” Perséfone se pegou
dizendo. Aquela foi a primeira vez que admitia aquilo a si mesma. “Sempre
soube que se não acabasse em um casamento por conveniência, acabaria
como apenas outra deusa menor, sem jornada, sem vida... Eu tinha
esperanças de ser diferente, claro, mas sempre soube que meu destino tinha
sido decidido por mim. Então, quando descobri sobre o submundo, vi a
punição como um desafio e uma forma de me sacrificar por quem me
amava.”
“Nem sempre se sacrificar por quem te ama vale a pena” A rainha
sussurrou. E Perséfone viu fantasmas em seu olhar, como se ela falasse
aquilo por experiência própria. “Você precisa lutar por si mesma, Perséfone.
Não deixe o tempo passar para perceber isso, pois quando o fizer, talvez
seja tarde demais.”

Trite dormia calmamente ao lado de Perséfone. A noite lá fora era


quieta, agora mais clara nas primeiras horas da manhã. O sol deveria se
erguer em breve. O mar parecia leve, as ondas iam e vinham, murmurantes.
Trite tinha decidido em compartilhar a cama com Perséfone, já que não
queria deixá-la só. As duas tinham conversado sobre a vida dela antes de
conhecer Poseidon e sobre aquilo que tinha aprendido vivendo com os
deuses.
A perspectiva dela sobre os deuses era graciosa e Perséfone
percebeu que a mortal tinha conhecido muitos mais deuses do que ela
mesma tinha. Ser esposa de um dos três irmãos parecia ter mais benefícios
no mundo divino do que uma deusa menor.
As duas riram quando Trite contou histórias sobre festas inusitadas e
algumas situações em que ela havia visto Hermes bêbado. Não demorou
muito para a mortal dormir, cansada pelo dia. Sua mão tocava o ventre. Ela
ainda não estava mostrando a gravidez, mas seria uma questão de tempo.
“Milady” Uma voz vinda do nada fez Perséfone pular da cama.
Ela tentou controlar a respiração quando viu Poseidon na varanda,
com cabelos e roupas molhadas. Ele deu um passo para frente, se
aproximando.
“Milorde” Ela disse, ainda sentada sobre a cama. Trite ainda dormia
ao seu lado.
O deus do mar foi até ela e passou os dedos sobre a face da rainha.
“Obrigado.” Perséfone balançou a cabeça tentando dispensar o
agradecimento, mas ele a interrompeu. “As noites não são fáceis para ela.
Trite tem... pesadelos. Ela sonha com o náufrago da família.” Ele respirou
fundo. “Ela costumava amar o mar, agora o teme. Eu nunca entendi por que
ela aceitou se casar comigo. Eu sou uma constante lembrança daquilo que
ela perdeu”
Perséfone olhou para o deus. Era estranho ver alguém tão poderoso
diante de tanta vulnerabilidade.
“Para mim parece que você é a esperança dela.”
O deus encarou Perséfone.
Ele então, lentamente, pegou a esposa no colo. O amanhecer estava
cada minuto mais próximo. Trite se acolheu nos braços dele e Poseidon foi
em direção à porta. Mas antes, se virou e disse:
“Você sempre será bem-vinda em nosso reino, milady.”
A deusa abriu um sorriso e o agradeceu, assistindo-o levar Trite nos
braços para o que imaginava ser os aposentos deles. Perséfone se jogou de
costas na cama mais uma vez.
Ela assistiu ao amanhecer chegar e, antes de ir embora, escreveu
uma nota para Trite, agradecendo-a.
Respirando a brisa do mar uma última vez e assistindo o sol tocar as
águas salgadas, se transportou para seus palácios.
CAPÍTULO X – A FÚRIA DO DEUS

C riar flores era ciência com um


pouquinho de mágica. Os
meses tinham passado rápido.
Perséfone havia decidido fazer algo produtivo com seu tempo no mundo
dos vivos e desde então não tinha saído de sua estufa. Um prédio grande,
onde possuía diferentes plantas de todo o lugar do mundo, divino ou mortal.
As paredes e o teto eram feitos de vidro e traziam a luz do sol,
deixando o interior tão quente que ela se via obrigada a vestir poucas
roupas. Especialmente quando sabia que iria passar o dia ali, com a mão em
terra molhada, criando raízes e bulbos de flores que eventualmente testava
fazendo-os crescer. Muitas flores ela acabava precisando fazer alterações
pós-florescimento.
Seu laboratório ficava na parte de trás da estufa, em uma seção
fechada onde plantas que precisavam mais ar ficavam. Dali, ela podia ver
suas ninfas aguarem e cuidarem das outras plantas.
Perséfone estivera trabalhando em um tipo de flor que era uma
mistura híbrida de crisântemo e um gerânio, que também era chamado de
viúva negra. Ela tinha pegado a cor do gerânio e tinha a dado ao
crisântemo.
A deusa achava que iria ser fácil conseguir a flor perfeita, mas a
verdade era que aquela já era sua quinta vez tentando. Ela tinha as mãos em
uma bacia de terra preta molhada e os olhos fechados, completamente inerte
no que fazia. Seu poder aquecia a ponta dos dedos e quando abriu os olhos
viu a flor crescer na palma das mãos.
Lentamente, a flor começou a florescer e a abrir. Primeiro, branca,
sua cor original, e então um roxo profundo começou a tocar as pétalas,
lentamente.
Por um segundo ela achou que tinha conseguido, mas não. Quando a
flor floresceu completamente, ela analisou a cor ao redor das pétalas,
percebendo que havia falhas aqui e ali.
“A escuridão não é fácil de aperfeiçoar...” Hades disse, fazendo-a
dar um pulo.
“Deuses” ela apertou os olhos, tentando controlar o coração. Suas
mãos ainda completamente imersas na terra molhada.
Ela o ouviu dar uma risada baixa.
“Fico feliz em saber que me assustar te diverte.”
“Nunca.”
Ela não conseguia vê-lo, pois ele estava sobre suas costas, e não
podia se virar para encontrá-lo por suas mãos presas na terra.
A deusa respirou fundo, arrancou a flor do solo e começou de novo,
irritada. Um pouco pela tentativa malsucedida e ele aparecendo ali, meses
após terem compartilhado aquele beijo quente. Até Trite tinha vindo visitá-
la algumas semanas atrás e, ele, nada.
E isso piorava, pois ela tinha sonhado com ele todos as noites depois
daquele dia, o que não ajudava seu sono. A deusa tinha a impressão de que
só voltaria a dormir direito quando voltasse ao mundo inferior.
“O que posso fazer por você, Lorde Hades?” ela disse, movendo as
mãos entre a terra com mais força que necessário. Ela fechou os olhos e
soltou ar pelos lábios, deixando a magia fluir.
Quando abriu os olhos, ele estava a sua frente, assistindo-a. A
primeira coisa que ela havia percebido era que os cabelos dele estavam
levemente mais longos e a camisa que ele usava, mais uma vez, mostrava os
riscos da tatuagem. Sobre os ombros havia aquela jaqueta de couro preto.
Os dois se entreolharam em silêncio por um segundo. Eletricidade
cortando o corpo dela como uma faca. Ela sentiu seu coração voltar a bater
desnecessariamente rápido e umedeceu os lábios.
“Sem perguntas hoje?” ele ergueu uma sobrancelha, curioso.
Hades tinha posicionado suas mãos na mesa dela, deixando os
músculos em evidência pela parte de cima – desamarrada - da camisa de
algodão preto.
“Bem...” ela respirou fundo, apertando os olhos. “Por que escondeu
sua tatuagem naquele dia...?” ela limpou a garganta. “No dia da subida da
maré.”
Um sorriso canto de boca surgiu na face dele. Hades assistiu às
mãos dela dentro da terra molhada.
“É algo pessoal, não acho apropriado que outros vejam, mas você...
a notou e já tem um tempo”
Ela revirou os olhos. Se ele amarrasse a camisa como deveria de vez
em quando talvez ela não tivesse notado. Ela quis dizer isso, mas ficou
quieta e se voltou ao que fazia, analisando a flor e percebendo que estava
quase lá. Alguns pontos brancos sob a cor escura, mas sabia que era uma
questão de tempo até conseguir cobri-los.
“Você está curiosa?”
“A respeito de sua tatuagem?”
Perse arrancou a flor mais uma vez com força e pegou outro bulbo,
começando tudo de novo.
“Eu posso te mostrar, se quiser”
Ela bufou e olhou ao redor, meio impaciente. Suas ninfas ainda
continuavam trabalhando na parte mais ampla da estufa, aguando e podando
plantas.
“Seria interessante ouvir os sussurros de que o deus do submundo
estava seminu na minha estufa. Ia dar o que falar.”
Hades soltou uma gargalhada.
“Achei que você não se importasse com comentários”
“Eu não me importo. Mas recentemente descobri que tem um deus
poderoso me vigiando... então talvez seja melhor eu ser prudente a respeito
de quem eu deixo ficar seminu em meus palácios”
“Hm... Tem certeza de que é só um deus que te vigia?”
Ele a assistiu, quase predatoriamente, vindo para mais perto dela.
A flor surgiu por entre seus dedos e ela analisou a cor. Estava
perfeita. Perse abriu um sorriso.
“Me alcança aquele vaso”
Hades o fez e trouxe até ela. Perséfone fez água surgir no vaso com
um toque e em seguida pegou uma tesoura, cortando a flor que tinha
acabado de criar, deitando-a sobre a mão e fazendo-a multiplicar em um
buquê generoso de vinte flores.
Ela colocou as flores no vaso e olhou para elas, satisfeita.
“Por favor me diga que não está me vigiando também” ela falou,
sem olhar para ele.
Hades, no entanto, pairava sobre ela.
“Não posso” ele disse baixo.
Ela balançou a cabeça, consternada.
“Eu disse que não preciso de sua proteção, milorde”
Ignorando-o, Perséfone foi até uma bacia de água morna e lavou as
mãos, após organizar as flores. Ela pegou uma toalha e se virou para
encarar Hades mais uma vez.
“Meses... você desapareceu por meses”
Hades ficou em silêncio. Perséfone colocou a toalha sobre a mesa e
enfiou as mãos nos bolsos do avental que vestia.
Seus cabelos estavam soltos, jogados sobre os ombros em elegantes
ondas. Ela tinha terra molhada aqui e ali sobre os braços. Sob o avental, ela
vestia um delicado vestido de seda que era possivelmente o mais curto que
tinha. As mangas eram feitas de pequenas correntes de ouro.
Hades dançou o olhar por sobre o corpo dela, parando em suas
coxas nuas, delicadas.
“O que você quer fazer hoje?” ele disse, baixo, voltando a encontrar
sua face.
Hades foi até ela e ficou à sua frente.
“Posso escolher?”
Perséfone tinha algumas ideias. Ela abriu um pequeno sorriso.
“Eu retiro o que disse... eu não posso te dar o que você quer”
“Eu não disse nada”
“Mas está pensando...”
Ela riu.
“Há qualquer coisa que você possa me dizer sobre o submundo...
Asfódelos?”
“Nada mudou em um milênio, deusa. Nada mudará em cinco
meses.”
Perséfone se apoiou sobre a bancada e olhou para sua estação de
trabalho.
“Você quer me ajudar?”
“Criar flores?” ele fez uma expressão engraçada. “Não acho que
esse seja um trabalho para o deus dos mortos”
Ela revirou os olhos e o ignorou, voltando para sua estação e
buscando mais alguns bulbos que ainda precisavam de trabalho. A deusa
não sabia exatamente o que eles eram, pois quando os criou não tivera nada
específico em mente.
Hades a seguiu e se posicionou do outro lado do balcão. O deus
então tirou sua jaqueta de couro, deixando-a em uma cadeira ao lado.
Perséfone assistiu cada movimento do corpo dele, quando fez aquilo.
Quando voltou para ela, eles se entreolharam.
Perséfone quebrou o olhar quando pegou um bulbo na palma de um
pote ao lado, mergulhando suas mãos dentro da bacia de terra molhada.
Hades pareceu saber o que fazer, mas em vez de pegar outro bulbo, ele só
enfiou as mãos por entre a terra, encontrando as dela.
O calor da pele dele a fez se sentir alerta. O deus entrelaçou seus
dedos nos dela, deixando o bulbo trancado entre as duas palmas.
Não demorou muito para que o bulbo começasse a crescer em uma
flor. E não somente uma flor, era uma planta que Perséfone jamais vira
antes.
A planta cresceu entre as palmas de ambos, de repente, abrindo as
pétalas para se tornar algo que parecia uma dália, mas infinitamente mais
bela. Era vermelho como o suco de romã e aromático como a flor do
narciso. Aqueles eram elementos do submundo, e agora estavam
combinados em um só. Por causa do poder de Hades.
“Como você a chamará?” ele quis saber, ainda com as mãos sobre as
dela. Seu olhar estava fixado no rosto belo de Perséfone.
Ela olhou para a planta e soube imediatamente qual seria seu nome.
“Kore”
Hades abriu um sorriso.

“O que você faz nas noites do submundo?”


Perséfone tinha deixado seu avental na estufa. Ela caminhava ao
lado dele por entre o tapete de pétalas de cerejeiras no chão. A fileira de
árvores se erguia sobre os dois, brilhantes, cheias de cor. A brisa da
primavera passava sobre o rosto dela. Perséfone estava descalça.
Ela olhou para Hades e achou engraçado como ele se destacava ali,
com suas roupas negras, seus quase dois metros de altura e ombros fortes.
“Eu disse a você, deusa”
“Julgamentos?”
“A maioria das vezes” Hades falou em um tom sombrio.
Ela pensou no que isso significava.
“Você pune almas?” perguntou em seguida.
“Sim”
“Como?”
Hades parou e respirou fundo, enfiando as mãos ainda mais dentro
dos bolsos.
“Essa não é uma pergunta que você quer fazer”
“Por que não?”
“Porque você não quer saber a resposta”
“Eu não sou tão ingênua assim.”
“Eu discordo”
Perséfone então disse:
“Como você conseguiu vencer a batalha dos titãs?”
Hades pareceu satisfeito com aquela pergunta.
“Meu exército já estava morto. Nada que os titãs fizessem podia
retardá-los... E eu tive ajuda. Poseidon, Atena, Ares, eles estavam todos lá.”
“Ares também é seu sobrinho, não é?”
Ele riu.
“Você não vai demorar a descobrir que tenho muitos deles por aí...”
Perséfone sabia disso. Ela abriu um sorriso, divertida.
“Vocês são próximos como você e Atena?”
Ele fez uma expressão resignada.
“Minha relação com Ares é difícil. Na batalha lutamos lado a lado
em união. Ele não é o deus da guerra sem ter bons motivos. No entanto, há
complicações. Ares é conselheiro do pai.”
“Ah” Perséfone entendeu.
Ela fez uma pausa enquanto eles caminhavam e aquele foi o
momento em que uma brisa forte passou por eles.
Pétalas voaram ao redor deles e algumas caíram sobre cabelos
longos de Perséfone. Hades observou aquilo. O mais impressionante era
que cada vez que uma pétala tocava os cabelos dela, era absorvida por ela e,
onde a pétala esteve, um pequeno fio de ouro aparecia.
“O mundo dos vivos cai bem a você, deusa.”
Perséfone olhou ao redor, para o sol e a vida ao redor deles. Era real
e permanente. Ela não quis responder a ele, então fez outra pergunta:
“Você vem para cá com frequência?”
Ele discordou.
“Aqui não é meu lugar”
“Por quê?”
A deusa sabia que aquela era uma pergunta complicada e não
esperava pela resposta honesta que ele lhe deu.
“Eu sempre soube onde eu pertencia. Eu escolhi reinar o submundo.
Eu queria o poder que tenho.”
Poder. Perséfone olhou para ele. Poder emanava dele.
“Eu achei que você não teve escolha... Afinal, é o mais novo dos
irmãos”
“Nós três sabíamos onde pertencíamos desde o início. Era nosso
destino, costurado nas tapeçarias das Moiras... planejado pelo nosso pai.”
“Me diga sobre ele” Perséfone sussurrou. “Me diga sobre Cronos”
A face de Hades se transformou. Ela soube ali que aquele era um
assunto que ela não podia entrar.
“Você o prometeu.” ele sussurrou, rouco. “Fique longe de histórias
antigas, Perséfone. Assim como você não iria querer me ver em minha
verdadeira forma, você não quer descobrir meu passado”
“Você está errado.”
“E isso é o que eu mais temo.” Ele deu um passo adiante. Sua mão
se ergueu, tocando a face dela com delicadeza. “Eu não sou um deus como
Hermes. Minha vida é sombria... e perigosa”
Ela levou a mão até a ele, trazendo-o mais perto de seu rosto.
“O que de pior pode acontecer? Eu já estou presa no submundo por
metade da minha existência.”
Nos olhos dele surgiu algo doloroso. Como se ela admitir aquilo
sempre fosse razão para ele se lembrar quem eles eram.
Ela, a deusa da primavera, pertencia ali, no mundo dos vivos. Ele,
não.
“Desculpe-me, eu não quis dizer...” ela tentou falar.
Hades abaixou a mão, afastando a dela.
“Você está certa. Não há muito de pior que pode acontecer, mas
você é uma deusa nova, Perséfone. Ainda não viu a fúria real dos deuses.”
“Me mostre, então”
O olhar dele ficou mais escuro quando ela disse aquilo. Hades
concordou com a cabeça e, de repente, fez algo surgir nas mãos.
“Use isso. Eu te levarei no único lugar onde Zeus não é permitido. O
único lugar onde ele se recusa vigiar.” Ele entregou a capa nas mãos dela e
se aproximou, tocando o colar de concha que ela ainda usava, desde aquele
dia da subida da maré. O indicador dele tocou no objeto e de repente este se
transformou em um colar mais pesado.
Perséfone tomou-o nas mãos. Com surpresa, agora tinha sobre o
colo o medalhão de âmbar que tinha dado a ele meses atrás em troca do
acordo de Eurídice. A rosa que ficava dentro do cristal, onde no submundo
era viva e de um vibrante vermelho, agora estava morta e seca.
“Diga meu nome ao colar à meia-noite. O âmbar te levará onde eu
estiver.”
A brisa passou por Perséfone mais uma vez, levando mais pétalas de
cerejeira aos seus cabelos. Quando as pétalas caíram no chão, a Hades já
não estava mais lá.

Perséfone colocou a capa ao redor dos ombros e respirou fundo,


lembrando-se das palavras que ele lhe dissera.

O âmbar te levará onde eu estiver.

Ela evitou se olhar no espelho, não querendo ver a determinação em


seu olhar, pois tinha uma só intenção naquela noite.
Já era quase meia-noite. Os céus estavam estrelados e a noite era
quente. Suas ninfas achavam que ela tinha tomado mel de Hipno e estava
dormindo; elas não notariam sua ausência.
Perséfone tocou no colar sobre o peito e fechou os olhos. E então,
disse o nome dele.
“Hades”
Quando os abriu, assistiu ao horizonte se estender adiante.
Ela estava na ilha de um vulcão. Sabia disso, pois o vulcão se erguia
sobre ela, no topo de uma montanha, ameaçador. Ao redor, ruínas daquilo
que um dia tinha sido o templo de uma divindade antiga. Enormes colunas
de mármore deixadas à mercê do tempo estavam cobertas por vegetação, no
entanto, ali havia archotes com chamas verdes que iluminavam um caminho
por dentro do tempo destruído e adiante.
Perséfone, reticente, seguiu o fogo ao redor das ruínas, tendo certeza
de manter a capa de Hades colada ao corpo.
A deusa desceu o monte, seguindo uma trilha que dava para uma
praia não muito convidativa. Aquela era bem diferente de onde os palácios
de Poseidon se encontrava.
Os mares ali eram impetuosos, as ondas explodiam com violência à
costa pedregosa. Era quase como se aquela ilha estivesse onde não deveria
estar. A praia abrigava pedras grandes cobertas por algas viscosas. A
barreira conseguia quebrar as ondas apenas o bastante, no entanto. O mar
ainda conseguia atingir a praia, e o pouco da areia que havia ali parecia
constantemente molhada.
Os archotes a levaram para uma caverna alguns metros de distância
do mar. Dali, ela pôde ver as costas de homem alto e magro. Ele estava a
sua espera.
Perséfone foi até ele. Na caverna, havia apenas uma fogueira alta
com aquele fogo estranho; fogo grego.
O verde das chamas tocou a face do homem quando ele se virou
para encontrá-la.
Ela sabia quem ele era sem nem mesmo precisar que se
apresentasse.
O homem vestia longos trajes cor cobre. Sua pele era dourada, como
se passasse todos os dias trabalhando sob o sol. Seus olhos, azuis. Da cor
dos olhos de seu pai, ela imaginava. Seus cabelos, cor bronze, eram
espetados para cima. Ele seria belo, caso não fosse o que possuía na face.
Metade do rosto do deus era deformado, uma deformação que ia de
sua testa e cobria seu braço e perna esquerda.
Perséfone conhecia a história.
Ele era o príncipe real. O filho mais velho de Zeus e sua esposa,
Hera. O filho que assumiria o trono quando e se Zeus um dia morresse.
Mesmo assim, quando nasceu, Hera, sua mãe, ficou dessatisfeita
com a aparência do filho e pediu para o marido jogá-lo de cima do Olimpo,
como fizera com Hércules. Como Hefesto era apenas um bebê, eles
acreditavam que ele morreria com a queda como o semideus.
Não se sabia como, mas ele sobrevivera. E hoje fazia parte do
conselho dos doze.
“Deusa da Primavera” o príncipe a saldou, formal.
“Lorde Hefesto” Perséfone soube que usar o nome dele era de bom-
tom.
O deus sorriu e deu a mão para ela.
“Estávamos a sua espera”
A deusa o aceitou e no segundo seguinte seus pés tocaram um chão
feito de pedras quentes, vermelhas. Ela agora estava no subsolo da ilha, no
palácio escondido dele.
As paredes não eram realmente paredes e, sim, parte da montanha
acima. Lava corria por entre algumas fissuras, como se todo o arredor fosse
explodir a qualquer momento.
Apesar de não haver janelas, o ambiente era iluminado e tinha o
aroma de comida fresca. Ela percebeu rapidamente que estava em uma
cozinha. Uma grande mesa de metal retorcido com lindos contornos ficava
no centro, com cadeiras tão elegantes quanto. Havia peças feitas com ferro
por todo o canto. Algumas tinham formas, como flores, animais. Outras
eram abstratas, e lembravam Perséfone as ondas do mar e os raios do sol.
“Finalmente!” uma voz feminina chegou até ela e Perséfone se
pegou surpreendida por um abraço.
Quando se afastou lentamente, não conseguiu esconder seu espanto.
A mulher a sua frente era a pessoa mais bela que já tinha visto na vida.
Com pele negra e olhos claros, a face da deusa era perfeita. Ela tinha
cabelos cacheados ao redor do rosto e lábios cheios da cor de amora. Ela
trajava um longo vestido vermelho de seda, trapejado nas barras com
pérolas sobre o colo. Seu corpo era exuberante, luxurioso e inesquecível.
Ela era a deusa do amor. Afrodite.
“Milady” Perséfone fez uma mesura.
A deusa pegou o rosto de Perséfone na mão.
“Você é realmente bela...” ela sussurrou. “Ouvi boatos de que teria
inveja de sua beleza, mas a verdade é que estou impressionada.”
Afrodite então se afastou e sorriu para ela. Perséfone olhou ao redor
rapidamente.
“Você está se perguntando onde ele está”
A deusa engoliu em seco. O problema de estar perto de deuses
poderosos era a capacidade deles de usar os poderes que tinham para
identificar aquilo que lhe era mais íntimo. Primeiro Atena, agora Afrodite.
A deusa riu da expressão que ela fez. Apertando seu ombro, disse:
“Ele está dormindo.”
“Dormindo?!” Perséfone franziu o cenho.
“Ah, sim. Hades passa a noite aqui, ocasionalmente. A ilha ajuda a
afastar os pesadelos... você vê, essa montanha protege aqueles do mal que
os persegue. Por exemplo, aqui Zeus não pode nos vigiar. Hades pode
dormir sem pesadelos. Hefesto pode trabalhar sem dor... porque você sabe,
os ferimentos dele ainda doem e eu... bem, não há nenhum mortal me
perturbando.”
Hefesto foi até as duas e deu um beijo leve no rosto de Afrodite. Ela
sorriu para ele e o deus se afastou, indo para aquilo que parecia um fogão a
lenha bem desenhado e feito a mão. Perséfone soube que tudo ali tinha sido
feito por Hefesto, afinal, ele era o ferreiro divino.
E era tudo aquilo que Hades queria que ela visse.
Um príncipe abandonado pelos próprios pais, deuses se escondendo
da tirania de outros.
A fúria dos deuses era saber que apesar de felizes ali, só seriam
assim contanto que fugissem da realidade.
“Essa capa fica melhor em você do que Hades” Hefesto disse por
fim, pegando com as mãos nuas uma bandeja de cobre que tinha estado no
forno um segundo atrás. O metal ainda estava vermelho, emanando calor.
Foi então que Perséfone percebeu que ainda usava a capa dele. Ela
abaixou o capuz e perguntou:
“Como soube que era eu na praia?”
Hefesto riu e trouxe o pão fresco até as duas, cortando fatias
generosas.
“Eu fiz essa capa para ele. É minha criação”
“Ah”
Afrodite trouxe uma caneca de metal até ela.
“Não temos hidromel, não bebemos bebidas divinas. Espero que
goste de cerveja preta”
Ela não disse nada, apenas levou a caneca aos lábios, sorvendo a
bebida incrivelmente amarga. Hefesto colocou o pão quente em um prato na
frente dela.
Perséfone observou Afrodite ir até ele e os dois trabalharem juntos
no que quer que estivessem cozinhando.
“O que está achando da punição?” Afrodite quis saber. Ela encolheu
os ombros, mexendo algo em uma panela grande. “Metade do ano no
submundo... Mal consigo suportar alguns minutos quando preciso ir até lá...
todas aquelas pobres almas e os sussurros delas me fariam ir à loucura.”
“Não é tão ruim assim” Perséfone se viu dizendo, dando uma
mordida no pão.
Hefesto e Afrodite pararam o que faziam e encararam a deusa,
surpresos com aquela admissão. Hefesto riu entre os dentes e Afrodite
mordeu o lábio, divertida. Eles se entreolharam como se soubessem algo
que ela não sabia.
“Ok, já chega” Hades disse, de repente.
O deus adentrou o ambiente, puxando sua camisa para baixo,
ajustando-a para o mais decente que podia.
Ele encontrou Perséfone apoiada na bancada da cozinha de Hefesto.
Ela vestia um vestido escuro com saias da mesma cor do medalhão de
âmbar. O tecido agarrava todas suas curvas, deixando-a não só elegante,
mas sensual. O decote era revelador, as linhas de seus seios estavam em
evidência. Sobre eles, o colar de âmbar repousava e nos ombros ela tinha a
capa dele.
“Você está adiantada, deusa...”
Ele caminhou até ela e olhou em seus olhos, tentando disfarçar o
óbvio deslumbre de como ela estava linda naquela noite.
Perséfone se pegou abrindo um sorriso ao perceber aquilo.
“Venha comigo”
“Espere, fique para o jantar!” Afrodite pediu.
Hades revirou os olhos.
“Vocês dois só querem ter a oportunidade de fazer perguntas
inapropriadas para a deusa.”
“Como o quê?” ela perguntou inocentemente, encarando os dois.
Hades resmungou baixo e a puxou pelo braço em direção a um
corredor iluminado.
Ela ouviu Afrodite e Hefesto gargalharem atrás deles.
“Não os tome a sério.” ele falou, firme. A risada dos dois ficou para
trás, mas a deusa ainda conseguia ouvi-los.
Perséfone não viu muito bem para onde estava indo, mas não
demorou muito para que uma porta se fechasse atrás de si.
A mão de Hades se afastou do braço dela e ele seguiu a frente,
abrindo o espaço para que ela olhasse ao redor.
Perséfone estava nos aposentos dele. Sabia disso, pois tudo ali era
escuro, como a noite. Tapeçarias elegantes cobriam a superfície das
paredes, já que não havia janelas. No exato centro do quarto havia uma
cama grande, com quatro grandes dosséis e lençóis de algodão branco, um
tanto revirados, o que provava que ele estivera deitado ali alguns minutos
atrás.
Do lado esquerdo da cama havia uma mesa, também feita de ferro, e
do outro uma lareira onde fogo grego queimava.
O deus foi até um aparador repleto de garrafas estranhas e se serviu
uma bebida. Ela ergueu a caneca de cerveja que Hefesto havia lhe
entregado minutos atrás e sorveu um gole.
“Eu não durmo aqui todas as noites...” Hades disse, de repente,
como se respondesse à pergunta silenciosa dela.
Perséfone deu mais um gole na cerveja. Ele tinha se servido um
cálice de vinho dourado.
“Apenas quando tem pesadelos”
Hades suspirou, apertando os olhos com os dedos, balançando a
cabeça. Ela riu da expressão dele.
“Ela não deveria ter me dito”
“Não, é claro que...” Ele bufou. “Eu venho aqui quando sinto o olhar
de Zeus em meus movimentos. É o único lugar onde posso evitá-lo”
Perséfone o assistiu ir até a lareira e ficar ali, admirando as chamas
verdes. A cama os separava, no meio do ambiente. A distância entre eles
era, como o silêncio, dolorosa.
“São todos os filhos de Zeus danificados de uma forma ou outra?”
Ela quis saber.
Devagar, Hades encarou o olhar dela, com o cálice nas mãos. Os
olhos ônix dele pareciam nublados por algo. A deusa olhou de cima a baixo,
sabendo que não eram muitos aqueles que o viam assim, quase
despreparado, íntimo.
Aquela foi a primeira vez que Hades não disse a ela para não falar o
nome de Zeus.
“É a maldição deles” O deus dos mortos respondeu, assistindo-a
caminhar ao redor da cama. Ela analisou as tapeçarias. Eram enormes, cada
uma contava a história de uma batalha em que os deuses haviam sido
vencedores. “De onde vem sua curiosidade?”
Ela deu de ombros. Os olhos dele eram como os de falcões sobre
ela.
“Minha mãe não é curiosa, então talvez meu pai. Mas não sei quem
ele é.”
“Poucos de nós conhece os dois pais, deusa”
Ela o encarou por sobre os ombros.
“Você não, no entanto. Você conheceu sua mãe e seu pai”
“Eu achei que tínhamos terminado de falar desse assunto”
Perséfone se virou e apoiou as costas na tapeçaria.
“O vestido que você me deu, na noite do Elísio... Era de Afrodite,
não era?”
Hades a encarou por um segundo. Perséfone então tirou a capa dos
ombros e deixou-a deslizar para chão. O vestido escuro tocava suas curvas,
seus quadris amplos e sua cintura esbelta. O olhar dele seguiu a capa,
retornando em seguida para a face da deusa. Quente, convidativa.
Uma só intenção.
Ele então abriu um pequeno sorriso.
“Está sugerindo que eu tenho um caso com a deusa do amor?”
“E você está insinuando que não tem amantes?”
Ele virou a cabeça de lado, analisando-a.
“Hm”
“Não faça isso”
“Faça o quê?”
“Me ignore”
“Confie em mim, deusa. A última coisa que farei hoje é ignorar
você”
Ela sentiu a respiração falhar.
“Então...?”
Hades levantou seu cálice de vinho e olhou para o líquido por um
segundo. Antes de levá-lo aos lábios, sussurrou:
“É isso que quer saber, se eu tenho amantes?”
Perséfone ficou em silêncio e esperou. De onde Hades estava, podia
ver a luz da lareira tocar o rosto delicado e absurdamente belo dela. Seus
olhos cor de mel tinham escurecido. Era desejo.
“Me responda” Ela exigiu, se aproximando, dando passos lentos até
a lareira. A luz iluminou seus lábios rosados, cheios.
Os aposentos se cobriram de silêncio por alguns longos minutos.
Hades revirou o vinho de uma só vez e sussurrou:
“Alguns anos atrás”
“Anos?”
“Está surpresa?” ele ergueu uma sobrancelha.
“Estou” Ela deu uma risadinha. “Olhe para você... sempre achei que
você era o tipo de deus que teria ninfas diferentes em sua cama todas as
noites.”
O olhar do deus escureceu e sua expressão de tornou dura.
“Eu tinha” Hades falou firme, ríspido.
O modo como ele disse aquilo foi quase ameaçador. Perséfone
sentiu sua confiança vacilar... então, ele era realmente quem achava que era.
Ela se viu dando um passo curto para trás.
“Você não aprende, deusa. Se não vai gostar das respostas, não faça
as perguntas”
O coração dela bateu forte. Ele colocou o cálice sobre cornija da
lareira e se moveu em passos largos até ela, predatoriamente. Hades
respirou fundo, sentindo o aroma floral que vinha dos cabelos da deusa.
Único.
Lavanda e rosas.
O torso dele se expandiu a frente dela, esticando seus fortes
músculos.
Hades ergueu a mão, tocando o rosto dela, gentilmente. E, então, a
tomou pela nuca, puxando-a para olhar a face dela mais de perto,
possessivamente.
Perséfone parou de respirar, soltando um gemido.
“E você, milady? Conte-me sobre seus amantes.”
“O que você quer saber?” ela murmurou, sentindo a voz tremer, o
hálito dele se aproximando de sua pele.
“Você e Hermes...”
“Não.”
“Hm”
“Quantos amantes você já teve?” A voz dele agora era rouca,
coberta por luxúria.
“Nenhum”
Aquela palavra pareceu assustar Hades. Ele se afastou dela
ligeiramente, analisando seus olhos. Ele queria saber se ela mentia. Mas
Perséfone não mentia. Ela nunca tinha sido tocada por um homem... ou
deus antes.
“Eu fui seu primeiro beijo” Hades disse em uma voz dolorosa. Não
era uma pergunta, pois ele sabia bem que era a verdade.
Ele levou o polegar aos lábios dela, se perdendo ali.
Quando Hades a tocava, ela sentia como se a primavera estivesse
recomeçando. Para ela, Hades era a brisa quente do Oeste e a seiva das
flores, a chuva de verão e as ondas calmas do mar. Ele era o proibido e
inalcançável, e apesar de saber que ele quebraria seu coração, a deusa não
se importava, ele era aquilo o que ela mais queria.
Perséfone fechou os olhos, sentindo-o por inteiro. O deus estava
extasiado com a reação dela a seu toque.
Quando ela abriu as pálpebras, ouviu-o dizer rouco:
“Eu não sou gentil”
“Não quero que você seja gentil”
“E o que você quer, Perséfone?”
“O que você quiser”
“Não...” ele grunhiu, fechando os olhos com força, apertando a testa
na dela. “Não... não fale isso.”
Perséfone soltou um gemido baixo quando a mão em sua nuca se
apertou ainda mais. Ele a puxou pelos cabelos, trazendo-a para mais perto.
“Eu te avisei, deusa. Na terceira vez que me dissesse isso, iria custar
caro.”
Ela abriu um sorriso.
“Eu estava contando que você se lembrasse”
E foi quando ele abaixou os lábios sobre os dela com força. A língua
de Hades não demorou para encontrar o caminho entre os lábios dela,
fazendo-a se abrir ainda mais. Ela ouviu um rosnado baixo.
A outra mão dele a puxou pela cintura, colando seus corpos. As
curvas dela eram macias em contraste do corpo severo e rígido dele.
A boca de Hades era firme e deliciosa. O sabor do vinho estava ali,
mas havia algo mais. O aroma de fumaça que vinha dele era algo quase
impossível de resistir. Ela passou os braços pelo pescoço dele, puxando-o
para mais perto de si, abrindo seus lábios ainda mais para receber o desejo
que parecia querer devorá-la.
E então, ela sentiu a mão dele correr por seu corpo. Hades não teve
pudor ao descer os dedos quentes por sobre seus quadris, fazendo-a arrepiar,
e indo mais para baixo, pegando a barra do vestido dela e puxando-o
levemente para cima. Era a primeira vez que ela era tocada assim. Ela se
sentia nervosa e excitada.
Os dedos dele tocaram muito suavemente a parte de trás de suas
coxas e naquele momento Perséfone perdeu o ar. Ela precisou empurrar o
peito dele e respirar fundo.
Quando encontrou os olhos dele, soube que estava prestes a fazer
algo que não tinha volta.
O deus dos mortos assistiu a face dela cobrir-se por uma camada de
timidez, fazendo-a enrubescer. Ele tocou a face dela com dedos quentes,
delicadamente, como se fosse a primeira vez que visse aquilo no rosto de
suas amantes: pudor.
Ele respirou fundo e murmurou rouco:
“Tem certeza, deusa?”
Ela levou as mãos até a camisa dele, puxando-o para si mais uma
vez, ficando na ponta dos dedos para beijá-lo profundamente. A deusa o
desejava tão intensamente quanto nunca havia desejado algo na vida.
“Hm” ele grunhiu, aceitando o desejo dela, pegando seus pulsos
com força de sobre seu peito quando ela abaixou os dedos para tocar sua
pele. “Não”
Perséfone ergueu o olhar para o dele, apreensiva, Hades tinha uma
expressão séria. Naquele milésimo de segundo, ela se perguntou se sua
inexperiência seria um problema para ele. Os dedos do deus apertavam-na
tão forte que ela soube que teria hematomas na manhã seguinte.
“Ajoelhe-se”
A voz dele era profunda.
O coração dela bateu forte. Calor subiu por entre seu âmago.
Hades deixou os pulsos dela para o lado e pegou seu queixo.
“Eu não vou só te tomar, deusa. Eu vou te marcar como minha”
Perséfone sentiu os lábios dele roçarem sobre os seus e, inalando o
aroma único dele, esperou pelo beijo que não veio. Ele repetiu:
“Ajoelhe-se”
Então, ela o fez.
Os joelhos de Perséfone tocaram o chão e ela ergueu a face para
olhar para ele. Dali, Hades parecia ainda mais imponente, indomável. Seus
músculos se esticaram sobre a camisa preta e as calças. Ele tocou o queixo
dela com o indicador.
“Eu tenho esperado por isso” A rouquidão de sua voz era inebriante.
O indicador dele passou por sobre os lábios rosados dela. Seu olhar
perdido em luxúria. Perséfone nunca tinha visto nada igual. Seu sangue
pulsava forte e ela estava, compreensivelmente, nervosa. Ela tinha fechado
as mãos em punho para evitar que ele visse que tremia.
Hades então tirou a camisa. Cada movimento que seus braços
faziam esticava a elevação de seus músculos.
Perséfone respirou pesado. Ela tinha o visto sem camisa, mas agora
era diferente. Completamente diferente. Os músculos dele se tensionavam,
violentos, ameaçadores.
Ele então levou a mão sobre os botões da calça. E ela assistiu
quando ele, lentamente, desabotoou um por um.
“Você está com medo?”
“Não”
Ele grunhiu, respirando fundo. Ela mentia.
“Sim”
“Olhe para mim”
Perséfone engoliu em seco e as mãos dele pegaram as dela. Hades
levou os dedos dela até o último botão da calça.
Aquela era a primeira vez de Perséfone e apesar de sua apreensão,
ela não era tão inocente assim. As ninfas falavam sobre seus amantes o
tempo todo e por anos a deusa tinha prestado atenção.
Ela desfez o botão e engoliu em seco. O tecido caiu ao chão e a
ereção de Hades surgiu firme, apontando para o teto. Ele era enorme. Como
ela imaginou que ele seria.
Sem demora, ela o tomou nas mãos, delicadamente.
Havia algo no fato de que ele estava completamente nu e ela
completamente vestida que revertia o papel deles, apesar de ela ser quem se
ajoelhava.
“Deuses!” Hades sibilou, puxando-a pelo cabelo para olhar em seus
olhos. Ele parecia completamente imerso no toque dela.
A deusa fechou sua mão em punho ao redor do membro dele,
morno, tomando coragem para fazer o que queria. Ela não sabia como
começar, mas não teve importância.
Afastando da mente o pensamento de que ele tivera milhares de
ninfas que provavelmente tinham feito melhor, ela passou a língua por ele
de baixo acima.
Ela ouviu-o urrar. E foi então que o colocou entre os lábios.
Primeiro, devagar, sentindo-o, testando, experimentando-o. Ele tinha gosto
de água do mar.
Ela moveu os lábios ritmicamente, tentando olhar para o rosto dele.
Ele a encarava com um olhar que ia além de desejo agora. Era perdição.
Perséfone não parou. Ela levou as mãos até as coxas dele e o enfiou
mais profundo na garganta. A cada movimento, Hades sibilava de prazer.
Ele segurava um tufo de cabelo dela, mas a deixava se movimentar
livremente.
A deusa soltou um gemido doce, sentindo algo salgado sobre a
língua quando o puxou para fora. O topo do membro dele estava brilhante
com um líquido transparente.
Ela se pegou tomando-o nas mãos mais uma vez, mas Hades a
parou, pegando-a pelos pulsos e a puxando para cima. Sem dificuldade, ele
a pegou no colo e atravessou o quarto para encontrar a cama.
Ele a jogou sobre os lençóis revirados de algodão branco e ela
assistiu quando ele se moveu a frente dela, sensualmente. E não só isso, ele
se movia como um animal prestes a dar o bote. A deusa sabia que seria sua
próxima vítima.
Hades colocou um joelho sobre a cama e foi até ela, ficando no
topo, com as mãos ao redor de seu rosto. Ele se abaixou lentamente e tomou
um beijo. Sobre a língua dela ela tinha seu gosto.
Quando o deus se afastou, a encarou longamente e seus dedos
começaram a trilhar um caminho sobre o vestido dela. Não demorou muito
para que Perséfone notasse que do dedo dele saia algo como fogo, que
destruía o vestido por onde passava.
O vestido, no minuto seguinte, não era nada mais do que farrapos.
Ela assistiu quando ele puxou o tecido e jogou no chão. Os ombros
dele subindo e descendo em uma intensa respiração quando a viu nua pela
primeira vez. Os cabelos dela estavam jogados sobre o rosto. Seus lábios
inchados pelos beijos, e pelo que tinha acabado de fazer...
“Nem mesmo em mil anos eu poderia imaginar uma beleza quanto a
sua” Hades murmurou, se abaixando sobre ela, aprofundando-se em um
beijo quente.
O calor do fogo grego tocava os dois. Perséfone enfiou os dedos por
sobre os cabelos dele. Hades beijou-a pela face e o queixo, descendo para o
pescoço e a fazendo arrepiar.
As mãos dele estavam sobre sua pele, em todo o lugar, e então
encontraram seus seios fartos. Eles não cabiam nas mãos grandes dele.
Hades observou os mamilos rosados e tocou-os com o indicador, se
abaixando para tomá-los entre os dentes.
Perséfone arqueou as costas, em prazer. Ele passou a língua nos
dois, brincando com aquela parte sensível até ela sussurrar seu nome,
extasiada.
Ela então sentiu o corpo dele descer sobre o seu, com a boca
deixando um traço de saliva onde sua língua passava.
Hades afastou suas coxas bruscamente e se posicionou entre suas
pernas. Ele sentia o aroma do sexo dela, clamando por ele, exigindo que ele
a tomasse.
“Eu...” ela quis dizer algo, com a voz presa na garganta. No entanto,
não conseguia.
“Eu sei... Eu consigo sentir” Hades disse, com um sorriso canto de
boca. Ele levou o polegar até os lábios dela, lá embaixo, sentindo a tumidez
de sua pele quente. Perséfone arfou.
“Suave como uma flor” ele rosnou.
Ela enfiou as unhas sobre os ombros dele, quando Hades desceu
entre suas pernas e a devorou.
Perséfone pareceu desassociar. Ela ergueu o olhar para o teto da
cama, sentindo prazer a invadir a cada toque da língua dele naquela parte
terna, e qualquer pensamento que teve se dissipou no ar. Seus gemidos
ficavam mais altos a cada segundo.
E então, uma onda de prazer como nunca sentira antes lhe atingiu.
Seus dedos do pé formigaram e seu âmago se sentiu vazio.
Hades subiu sobre seu corpo, pegando-a pelo rosto.
“Você sentiu isso, deusa?” O rosto tomado por satisfação pelo prazer
dela.
Perséfone o puxou para outro beijo e ele desceu sobre ela,
aceitando-a, pressionando os músculos rígidos sobre a pele macia dela.
A deusa sentiu o membro dele tocar onde a boca dele estivera um
segundo atrás.
“Quando eu estiver dentro de você, não conseguirei parar” ele
murmurou. “É um acordo sem volta”
Perséfone enrolou as pernas sobre os quadris dele.
“Esse é um acordo que decidi fazer quando te vi pela primeira vez”
Ela respondeu, baixo, sob os lábios dele.
Hades roçou os lábios sobre os dela, seu membro adentrando-a
levemente.
“Nós estamos condenados” ele grunhiu, empurrando-se dentro dela
com força.
Perséfone soltou um grito abafado pela boca dele. E então, a voz
sombria do deus a alcançou novamente:
“Eu te disse, deusa. Eu não sou gentil!”
Hades apertou os quadris dela com a mão e a manteve presa
enquanto ia e voltava com seu membro rígido, em movimentos fortes e
profundos.
Perséfone sentia uma dor intensa e fechou os olhos, tomada por ela.
Hades urrava de prazer, tomando os lábios dela, mordendo-a, marcando-a
onde queria.
Quando ela achou que a dor não ia parar, as estocadas do deus então
ficaram mais lentas, ainda fortes.
“Você é tão pequena para mim” ele murmurou, seu torso grande
coberto por suor. Ele pegou a coxa dela, subindo-a para cima, deixando-a
mais aberta. Os movimentos dele então se suavizaram e a dor foi substituída
por um prazer intenso.
Perséfone mordeu o lábio inchado, enfiando as unhas nas costas
dele, em sua pele fervente. Agora, ele se movia como ondas, gentil e
intensamente.
“Hades”
Ele tomou o lóbulo da orelha dela entre os dentes e sussurrou:
“Você é minha. Diga-me.”
“Eu sou...” Mais uma onda se aproximava sobre o ventre dela.
Hades se movimentou mais rápido e os sons selvagens dos corpos se
movendo um sobre o outro preencheram o ambiente. “Sua.”
“Novamente” ele rosnou.
“Eu sou sua!”
O ápice chegou aos dois com intensidade e, Perséfone, a meio de
seu êxtase, sentiu Hades se despejar completamente dentro de si.
Ele ofegou sobre os lábios dela e a tomou para mais um beijo,
desabando ao seu lado.
A mão dele encontrou a dela, levando-a ao seu peito.
Perséfone encarou o teto da cama mais uma vez e a meio do prazer
que formigava por seu corpo, foi tomada por um medo.
Tentando controlar sua respiração e seus pensamentos, fechou os
olhos. Ela nunca tinha se sentido daquela forma antes, e ela jamais seria
capaz de esquecer o que acabara de acontecer.
E o pior, o que ela acabara de dizer era verdade. A deusa estava
completa e irremediavelmente apaixonada pelo deus dos mortos.
Ela era completamente dele.
E sabia que ele a destruiria por causa disso.
CAPÍTULO XI – O TESTE

P ela falta de janelas, Perséfone


não sabia se já era manhã,
mas deveria ser, pois tinha a
sensação de que havia dormido por horas. Ela se esticou sobre os lençóis,
sentindo seu corpo reclamar aqui e ali. A lareira tinha virado cinzas
cintilantes, velas iluminavam o ambiente.
Hades dormia ao seu lado. Ele tinha a face virada para ela e os
músculos de seu torso forte eram delineados pelas sombras.
Ela percebeu, no entanto, que o deus estava coberto por uma fina
camada de suor e expressão de sua face era severa e profunda, contorcida
como se ele estivesse em dor.
Ele apertava os lençóis ao redor de si com força.
O deus estava tendo um pesadelo. Parecia que o fato de estar ali não
fazia seus pesadelos desaparecerem completamente, afinal.
“Não” ele rosnou, ainda dentro dos sonhos. “Cronos!”
“Hades...” Perséfone sussurrou.
Ele parecia completamente vulnerável. O que fez o coração dela
doer.
A deusa levou sua mão até o peito dele, tentando despertá-lo
gentilmente.
No entanto, assim que seus dedos o tocaram, a mão de ferro do deus
a atacou. Os olhos dele abrindo com força, violentos.
Ela soltou um silvo de dor.
Parecendo um tanto confuso, Hades a encarou por um longo
segundo. Quando a realidade o atingiu, o deus empurrou os lençóis com
força de sobre si, e pulou da cama.
“Espere...” Ela se ergueu sobre o colchão, sentindo seu pulso
queimar.
Ela o assistiu vestir uma calça rapidamente a sua frente e, então, os
ombros dele subir e descer em uma longa respiração, como se precisasse se
controlar.
O deus se virou após alguns segundos e veio até a cama, com a
expressão levemente mais tranquila. O aroma dele preencheu o espaço da
deusa quando se aproximou... assim como seu silêncio.
“Você estava tendo um pesadelo...” Ela tentou dizer, trazendo o
lençol de algodão sobre os seios desnudos.
Ele trajava calças limpas, pretas como sempre, sem camisa.
“Está tarde” disse calmo, com uma expressão vazia. Ele sentou-se
sobre a cama e levou os dedos até os ombros dela, afastando os cabelos que
estavam lá, vendo um hematoma resultado da noite anterior, assim como
que tinha acabado de deixar no pulso.
“Onde estamos?” Perséfone quis saber, baixinho.
“Etna” o deus respondeu.
Sob a luz das velas, ela viu a tatuagem dele, finalmente.
Perséfone levou seu indicador até lá, atraída pelas linhas que
ficaram escondidas dela por tanto tempo.
A tatuagem tinha a forma de um medalhão que se espalhava pela
pele dele em sombras e linhas escuras contorcidas. Olhando de mais perto,
Perséfone achou que mais parecia um relógio.
Hades tomou o pulso dela antes que ela tocasse a figura. Dessa vez,
suavemente.
E foi ali que ela viu a imagem da tatuagem se mover. Era realmente
um relógio. Os ponteiros se movimentavam para lá e para cá, como se a
contagem do tempo tivesse sido danificada.
“O que é isso?”
Hades respirou fundo em resposta e se ergueu da cama, deixando-a
lá.
“Você precisa ir, deusa”
Perséfone franziu o cenho, sentindo o estômago imediatamente se
fechar como se tivesse sido socada. Ela apertou os lençóis sobre sua nudez
e se ergueu da cama devagar.
A deusa queria dizer alguma coisa em resposta. No entanto, não
conseguiu.
Ela não sabia explicar a sensação, mas um calor profundo de
vergonha cobriu seu corpo, assim como ele a cobrira na noite anterior.
Notando que sobre a mesa dele havia roupas limpas, já que seu vestido
havia sido destruído na noite anterior, caminhou até lá e pegou o vestido
que definitivamente era um empréstimo de Afrodite, sem prestar atenção na
cor, se tinha pedras ou não, apenas o enfiando pelos braços e ajustando-o
sobre as pernas.
Perséfone passou a mão sobre os cabelos e de costas fechou os
olhos, engolindo em seco, sentindo sua saliva escorregar pela garganta
como fogo.
Ela apertou o peito tentando afastar o nó que sentia. Então, percebeu
que o colar de âmbar não estava mais no pescoço.
E aquilo a deixou tonta, sem ar.
O punho de ferro, que agora estava entalado na garganta, cresceu
com força. Ela umedeceu os lábios e se virou para Hades, pois sentia que
ele se aproximava.
Ela respirou fundo mais uma vez e encontrou o olhar vazio, distante
dele. A mão do deus encontrou sua face, leve e errada.
“Não espere por mim.” Ele falou, resoluto. “Essa é a última vez que
venho para o mundo dos vivos por um tempo.”
Hades então tocou o queixo dela e se aproximou, alto, imponente.
Ele olhou para baixo, encontrando o olhar confuso dela e a beijou
levemente. Perséfone não compartilhou do beijo, apesar de saber bem que
era um beijo de despedida.
O deus deu dois passos para trás e em seguida, desapareceu. E com
ele, a ilha Etna. No instante seguinte, ela estava ao redor de seus jardins
pessoais. O vestido de Afrodite pesando sobre seus ombros, o toque dele
queimando maldição.
Perséfone se sentiu usada, mesmo sabendo que não deveria. Ela
tinha concordado com aquilo e soubera desde o início que ele quebraria seu
coração em um milhão de pedaços.
A verdade era que tinha esperado algo diferente, ela tinha ousado a
ter esperança.
Um grande erro.
O sol da tarde e a brisa da primavera tocaram seu rosto e ela se viu
cansada. Se lembrando de uma frase antiga que um dia lera em um livro
sobre o submundo.
Um poeta, certa vez, havia escrito para aqueles que um dia se
vissem na entrada dos reinos de Hades, para abandonar todas suas
esperanças, pois aquele não era o reino feito para elas.
Ela sentou-se sobre a cadeira a frente do tabuleiro da Rainha
Prometida e sentiu o aroma dele ali, impregnado nas peças.
Parecia que o único lugar onde ele perdia para ela era naquele jogo
estúpido.
Ela então empurrou o tabuleiro da mesa, assistindo as peças se
desfazerem no chão, como fogo em água e entrou em seus aposentos, não
olhando para trás.

Aquilo já estava virando um absurdo. Ela tinha sonhado com ele


novamente.
Perséfone despertou do sonho, suas pálpebras abrindo devagar.
Suas memórias pareciam querer voltar, pouco a pouco. As memórias
dos sonhos que tivera anos antes, quando foi para o submundo pela primeira
vez.
Agora a deusa se lembrava de caminhar por um longo campo
cobertos por narcisos. A grama indo de verde a amarelo. O sol sobre sua
cabeça. Ela sempre se encontrava perdida, sem saber onde estava. E então,
o via por entre as flores. Caminhando em sua direção, como naquela noite
que a levara para o Elísio. Névoa sobre sua face, vestindo um sobretudo
negro como sombras, voando pela brisa. Ele vinha até ela e quando ela
erguia a mão para tocar nele, o sonho acabava.
No sonho ele a buscava, procurava por ela. Na realidade, ele havia
pedido que ela fosse embora.
Perséfone se sentou sobre os lençóis de seda e observou a porta
francesa de seus aposentos, fechada. Ela não mais dormia com elas abertas.
O frio tinha chegado. A noite descia lá fora e quando o amanhecer chegasse,
também chegaria o último dia de primavera.
Ela desceu da cama e vestindo apenas sua camisola de algodão, foi
até as portas e as abriu, sentindo o vento gelado cortar a pele.
A deusa caminhou por entre seus jardins sem parar, sem se dar conta
do tempo. Não importava. Era o último dia dela ali em seis meses. Ela
queria tocar o que era vivo e o que era seu enquanto pudesse.
Quando o sol apareceu pelas nuvens, ela se deitou sobre a grama e
olhou o céu. As flores já não cresciam como antes e o tapete de pétalas de
cerejeira tinham desaparecido.
Ela adormeceu sobre a grama e quando voltou a si, sabia que já era
meio-dia.
Voltando lentamente aos seus palácios, ela encontrou o caminho que
dava para a entrada principal. A fachada de seus palácios era majestosa,
com colunas altas cobertas por plantas verdes e uma entrada feita por vidro
entalhado a ouro.
Suas ninfas já estavam a sua espera e assim que a viram, correram
até ela, entregando-lhe um roupão cor de rosa pesado, já que estava
levemente frio lá fora.
“Você tem visitas, milady” Flora disse baixo.
Perséfone estranhou. Desde Trite, ela não tivera nenhuma outra
visita. Seus dias finais por ali haviam sido solitários. Mas essa não era
nenhuma novidade.
A deusa então foi em direção a seu salão de visitas e franziu o cenho
quando viu as costas de dois homens a sua espera.
“Hermes!” ela se surpreendeu, não o tinha visto desde o baile da
primavera.
O deus mensageiro se virou para encontrá-la, mas em vez de ir até
ela e abraçá-la como sempre, ele respirou fundo com uma expressão séria.
Foi ali que Perséfone soube que algo estava errado.
E então, o outro homem se virou para a deusa.
Com os cabelos cacheados e a pele cor de terra molhada, ela viu
Orfeu. Seus olhos tinham profundas olheiras e estavam vermelhos,
confusos.
O coração da deusa se afundou ainda mais no peito. E se houvesse
como quebrar algo que já estivesse quebrado, aquilo aconteceu quando
Orfeu sussurrou o nome de sua amante:
“Eurídice”
A razão por que eles estavam ali atingiu a deusa em questão de
segundos.
Sua amiga. O teste de Hades. Os dois nunca tinha alcançado o
mundo dos vivos... juntos.
“Sou o padrinho de Orfeu, por isso estou aqui” Hermes disse. “Você
precisa ajudá-lo, Perséfone. Eurídice voltou ao mundo dos mortos.”
“Ela nunca saiu” Orfeu esclareceu e foi até a deusa, pegando suas
mãos. Ele estava magro. Seu violão tinha desaparecido. O poeta tinha se
perdido no luto mais uma vez. Pela segunda vez, tinha visto sua amada
deixá-lo. “O teste foi cruel... Nós passamos meses caminhando um atrás do
outro, entre chuva e sol, entre as condições mais horrendas já vistas no
mundo dos vivos ou mortos. E então... as vozes começaram”
“Vozes?” Perséfone sussurrou.
“Eles diziam a mim que Eurídice nunca me seguiria. Que eu estava
fazendo aquele caminho sozinho desde o início. Que ela nunca me amou... e
no último segundo, quando eu já não tinha mais esperança de que ela estava
ali, quando já podia ver a saída, não consegui suportar e tive que olhar para
trás... E ela estava, e então, não estava mais.”
“Hades deu essa jornada aos dois, pois sabia que falhariam.” O deus
mensageiro disse.
Um calafrio passou pelo corpo dela ao ouvir o nome dele depois de
tantos dias.
“Ele nos enganou” Orfeu disse, fechando os olhos, lágrimas
escorrendo pelo rosto. “Sabemos que hoje você retorna ao submundo,
milady. Por favor, você precisa falar com ele... precisa pedir que ele nos dê
uma última chance.”
Perséfone encarou Hermes. Ambos sabiam que isso não seria
possível.
“Eu não...”
“Eu disse a ela que tiraria minha própria vida para encontrá-la em
morte.” Orfeu a interrompeu. “E em resposta a isso, Eurídice me disse o
que faria caso voltasse ao submundo. Ela disse que mergulharia nas águas
do rio Lete, o rio do esquecimento, e se tornaria uma alma perdida, uma
alma que não se lembra quem é... que não se lembra de mim, para que eu
pudesse viver em paz no mundo dos vivos.”
“Ela não faria isso” Perséfone murmurou.
“Você não a conhece como eu conheço” Orfeu disse por fim.
“Você precisa impedi-la, milady” Hermes argumentou.
Perséfone balançou a cabeça.
“Ainda é cedo, o inverno ainda não chegou”
Hermes apontou para a mão dela.
“Não. O inverno já está aqui.”
A deusa abriu a mão e sobre sua palma crescia um narciso. Era seu
aviso de que estava prestes a ser transportada para Asfódelos.
“É cedo demais” Perséfone sussurrou para a flor.
“Algo me diz que Hades te chama...” Hermes disse, vindo até ela.
“Eu não posso entrar no submundo sem permissão dele. Eu tentarei te
seguir, mas... Perséfone, Eurídice é sua amiga. É você quem deve ajudá-la.
E você não tem muito tempo, pois ela voltou ao submundo duas horas
atrás.”
A deusa engoliu em seco e encarou Orfeu.
“Diga que a amo” O poeta falou entre os dentes. “E que espere por
mim. Eu estou chegando”
Perséfone espremeu o narciso sobre a palma da mão e o chão
desapareceu sob seus pés. Ela se viu caindo e caindo. O dia começou a
escurecer e neve, de repente, tocou sua face. Seus pés descalços atingiram o
chão. Ela olhou ao redor. Ainda estava vestindo seu roupão cor de rosa. Os
chalés de Asfódelos estavam ali, imutáveis como seis meses antes, mas
agora estavam cobertos por uma grossa camada de neve fresca.
“A deusa!” ela ouviu uma alma exclamar. Outra alma seguiu e logo
várias delas haviam saído de seus chalés para vê-la.
Perséfone ergueu o olhar e viu seu chalé à distância, sobre o campo.
Suas árvores de romã estavam lá, ainda dando fruto.
“Milady!” Ariadne correu até ela, segurando as saias nas mãos.
Perséfone saiu de seu desvaneio assim que a viu e gritando à
princesa, disse:
“Hermes está a caminho. Mostre-o o caminho até o rio Lete!”
A deusa começou a correr o mais rápido que pôde. Talvez já fosse
tarde demais, mas ela não iria desistir de Eurídice. Ela havia sido a única
alma que não tivera medo de se aproximar quando chegou ali. Elas tinham
sido amigas por longos quatro anos.
Seus pés batiam na neve congelante, deixando-a sem ar. A deusa
atravessou o campo e quando estava prestes a se aproximar do rio,
escorregou feio.
Ela caiu no chão com um baque, batendo sua cabeça. Ignorando a
dor, se ergueu e voltou a correr até encontrar a primeira corrente do rio.
Aquela era a primeira vez que via o rio congelado.
O rio do esquecimento ficava perto do palácio de Hades e a sombra
das grandes torres de vidro tomou a atenção dela. Cobertas por neve, ela
sentiu a presença do deus ali, perto.
E então, viu a silhueta dele, saindo das águas do rio, onde o gelo
parecia quebrado. Com roupas negras e um olhar furioso, Hades estava
ensopado. Sua camisa colada sobre o peito.
Ele trazia alguém nos braços.
“Não!” Perséfone gritou, correndo até ele. “O que você fez?!”
O olhar dele caiu sobre a face de Perséfone.
Ela evitou olhar em seus olhos, no entanto. Aquela noite ainda
queimava sua memória. O modo como ele havia a tomado tão
selvagemente, a feito sua amante, a feito sua.
E então, a abandonara.
A deusa passara semanas tentando esquecer, tentando afastá-lo da
mente... e agora as imagens dele entre suas pernas estavam de volta.
Apertando as mãos em punho, Perséfone agora tinha lágrimas de
raiva nos olhos. Ela deu um passo adiante, encarando Eurídice desacordada
nos braços do deus dos mortos.
“Ela caiu” Hades falou rouco, caminhando adiante para repousá-la
sobre pedras distantes das águas.
Perséfone foi até ela e colocou a cabeça de Eurídice no seu colo. Ela
estava fria, seus lábios azuis. A deusa apertou os olhos, algo dentro de si se
estilhaçando.
“Ela vai esquecer quem é?” perguntou a ele, sussurrando.
Adiante, no horizonte, Perséfone viu Hermes e Ariadne correndo em
sua direção.
“Você sabe a resposta para essa pergunta” Hades respondeu,
resoluto.
Perséfone sentiu lágrimas frias escorrerem por sua face.
“Devolva as memórias dela.” ela respirou entre os dentes.
“Sua amiga decidiu dá-las ao rio Lete. Não posso devolvê-las,
apenas quem rege o Lete pode”
A deusa da primavera se lembrou do primeiro dia que vira Eurídice.
Ela estava perdida nos campos, perto daquele mesmo rio. Ela tinha
guiado Perséfone de volta a Asfódelos e, então, depois daquele dia, ela
sempre ia até o chalé e ficava olhando para dentro, onde Perséfone se
isolava... se escondia. Um dia, a garota sorriu para Perséfone e a deusa foi
até ela. As duas se sentaram na grama e Eurídice lhe ofereceu uma romã do
pomar. Aquele havia sido o primeiro dia de muitos. Elas cozinhavam,
tentavam costurar e riam juntas. Eurídice tinha sido a esperança da deusa.
A esperança de que sua vida ali, no inferno, fosse suportável. E com
o tempo, passou a ser mais do que isso. Passou ser aquilo que Perséfone
ansiava viver todos os invernos. Uma amizade.
Hermes chegou até eles e encarou Hades de cima a baixo. Ele então
veio até as duas e pegou Eurídice nos braços. Perséfone respirou fundo e se
ergueu.
“Você está sangrando, milady” Ariadne disse, ignorando a presença
do deus dos mortos tão próxima.
“Está tudo bem.”
“É assim que minhas almas te chamam? De milady?” Hades apertou
os olhos.
Perséfone voltou o olhar para ele, fuzilando-o.
“Perséfone, ignore-o” Hermes disse.
O deus dos mortos virou o olhar para o deus mensageiro,
ameaçador. Hermes deu um passo para trás em resposta. Ele era um deus,
claro, mas não era páreo para Hades. O mensageiro sabia bem com quem
estava lidando.
“Eurídice agora pertence ao Palácio de Almas Perdidas” Hades disse
por fim. “Ela vem comigo”
Os três encaram o deus. A face de Perséfone se transformou, fúria
tomando-a. Ela não ia permitir que ele tirasse dela mais uma de suas
esperanças.
“Leve-a ao chalé” A deusa disse para os dois. “Agora!”
“Kore” Hades sibilou, furioso.
A deusa deu dois passos em direção a ele, decidida.
“Não me chame por esse nome.”
Hades abriu um sorriso, como se a raiva dela o divertisse.
“Você esquece onde está, deusa. Esse é meu reino”
“E ainda assim, seus súditos sofrem e você os ignora”
“Esse é o papel do submundo.”
“Não deveria ser”
Ele riu, ameaçador. O comentário dela pareceu tocar em algo vil
dentro dele. Hades se aproximou dela e a pegou pelo braço, com força.
“Você deveria me agradecer por não te mostrar o que o submundo
realmente é. Talvez quando eu o fizer você entenderá onde a maioria das
almas vão e o que eu faço pela noite.”
“Hades, não faça isso” O mensageiro exclamou.
O deus dos mortos fuzilou Hermes.
“Ainda está aqui, mensageiro?”
Com um mover da mão, Hermes, Ariadne e Eurídice desapareceram
da frente deles e Perséfone se debateu, empurrando-o pelo peito.
“Olhe para mim” Ele a pegou pelos ombros, seus olhos negros,
imersos em algo que ela não sabia explicar. “Você quer conhecer o papel do
submundo? Deixe-me te mostrar”
No segundo seguinte, Perséfone sentiu sua cabeça explodir em dor.
Ela fechou os olhos com força e, soltando um grito estridente, aterrissou no
chão com um baque. Quando olhou ao redor, percebeu que estava sobre um
precipício, acima de uma montanha.
O calor do ambiente era insuportável, um rio de lava corria lá
embaixo.
Apoiando as mãos no chão, se ergueu devagar. E foi fazendo isso
quando seus olhos encontraram o horizonte, e o que ela viu adiante arrepiou
cada um de seus poros.
Aquela era a dor, o sofrimento eterno, o terceiro elemento do
submundo. O lugar que ela ainda não tinha visto.
Perséfone estava no tártaro.
Não havia como explicar o tinha lá embaixo. A montanha era
composta de círculos e nesses círculos de fogo havia almas que sofriam
pelo que fizeram na vida mortal. Deuses, monstros, mortais. Eles todos
estavam ali, presos no próprio sofrimento.
Ao contrário do que ela imagina, o sofrimento não era físico. As
almas simplesmente se sentavam em rodas, olhando adiante, para o vazio da
escuridão. Ela ouvia gritos ecoarem pelo ar, apesar das bocas deles não se
moverem.
“A punição acontece na cabeça deles” Hades falou ao ouvido dela,
sombrio.
Perséfone engoliu em seco e se virou para encontrá-lo. O deus agora
vestia roupas diferentes.
Uma toga negra cobria seu corpo, com um suporte no ombro feito
por metal. A tatuagem do relógio em sombras estava evidente no outro
ombro forte e desnudo. A espada dele ficava presa sobre as costas, longa e
mortífera.
Sobre sua cabeça, Hades tinha uma coroa feita de ossos.
Ele era o rei. A deusa nunca tivera dúvida daquilo, no entanto,
aquela era a primeira vez que sentia tamanho o poder que ele tinha.
“É isso o que você queria ver? O que eu realmente faço, quem eu
realmente sou? A fúria dos deuses?”
Perséfone não conseguia se mover. Ela sentia a dor de cada um ali,
apesar de eles não estarem sofrendo visivelmente. E a violência nos olhos
de Hades era paralisante.
“O sofrimento deles depende do que temem”
Perséfone notou que o precipício da montanha aos seus pés estava
de desfazendo e ela estava a cada segundo mais próxima do vazio que
levava até o rio de fogo, o Flegetonte. Ela tentou ficar mais calma e fechou
os olhos.
“Hades, me leve daqui”
“É isso que eles pedem de mim... imploram de mim.”
“Não implorarei nada a você... não mais.”
Ele pairou sobre ela, altivo, poderoso. Perséfone ergueu o olhar para
ele ver que não tinha medo, que agora estava decidida. O deus grunhiu,
reconhecendo aquilo, e pegou o queixo dela entre os dedos.
“Pergunte a mim o que eles o temem!”
“Não”
“Pergunte-me!” Ele rosnou.
“Eu já sei.” Ela se surpreendeu com sua voz calma. “Eles temem a
você.”
“E isso é o que você deveria fazer. Olhe para mim, deusa. Se você
não teme ao deus dos mortos, o que teme?”
“Ficar no submundo pelo resto na minha vida!”
Aquela resposta pareceu enraivá-lo ainda mais.
“Por que então se comporta como lady do mundo inferior?”
“Elas me chamam assim. Eu nunca...”
“Você achou que uma só noite comigo faria você rainha?”
Perséfone perdeu o ar. Ela ficou tonta. As palavras dele a cortaram
como ele havia dilacerado aquele Minotauro, meses antes.
A deusa tentou dar um passo para trás, mas a beirada da montanha
se aproximava dela. Ela ia cair a qualquer momento. Hades levou suas
mãos até ela para puxá-la de lá.
“Não toque em mim” ela murmurou.
E foi ali que os olhos dele escureceram ainda mais. Seu olhar ônix
se tornou tão sombrio quanto a escuridão do inferno abaixo deles.
Hades deu um passo para trás.
O toque dele era exatamente o que ele fazia com as almas lá,
naquela montanha, pois estava fazendo o mesmo com ela. A pior punição é
aquela que fica com você, impregnada em sua mente como uma memória.
Havia sido por isso que Eurídice caíra no rio do esquecimento.
Esquecer era fácil.
Lembrar da noite que passaram juntos seria, para sempre, a razão
pela qual Perséfone se sentiria assim. Perdida, esquecida... usada e vazia.
A deusa se sentia sufocada, ela precisava sair dali. Ela se virou de
costas para ele e respirou fundo, sua cabeça rodopiando.
A mão de Hades foi até ela, mas a deusa estava decidida.
“Não!”
“Não me desafie. Você não pode vencer” ele sussurrou, rouco.
Ela não sabia se havia sido o que ele tinha dito, a imagem das almas
ou que agora estava certa de que ele não era nada além de um deus cruel.
Pois, de repente, a deusa se viu concordando com o que ele acabara de
dizer. Ela encarou o rosto dele uma última vez e disse, calma como a brisa
no dia em que caminharam por entre as cerejeiras.
“Meu erro foi não perceber isso antes de me apaixonar por você”
Ela assistiu a expressão séria da face dele se dissolver. A deusa não
sabia se era surpresa ou irritação.
“Eu já vi seu pior. Agora, por favor, me leve para meus amigos”
Hades ficou parado ali, por alguns longos segundos. Seu rosto e
corpo eram um com as sombras.
Sem expressão, ele levantou a mão e o calor do ambiente
desapareceu. As árvores de romã então surgiram à frente da deusa e ela
sentiu a neve aos pés. Perséfone quase caiu no chão, pois suas pernas
estavam sem força.
Com certo alívio, ela olhou ao redor.
Hades não estava mais ali e agora estava de volta a Asfódelos.

Eles assistiram à fogueira se acender no centro da praça da vila.


Como era o primeiro dia do inverno, as almas erguiam o fogo morto e
escreviam cartas para o rei.
Dali, do chalé, eles viram almas, uma por uma, queimar cartas com
pedidos que muito provavelmente seriam ignorados.
Eurídice ocupava a cama de Perséfone. Ela agora estava enrolada
em lençóis grossos e a lareira da cozinha crepitava alto, jorrando calor por
todo o chalé. A deusa sentia seus músculos reclamarem. A viagem até o
tártaro havia tirado dela as forças que não tinha.
“O que digo a Orfeu?” Hermes apertou os olhos entre os dedos.
“A verdade” Perséfone disse, distante.
Ariadne estava mais a frente, na cozinha, fazendo-os chá sobre o
fogo da lareira.
O deus suspirou e agradeceu a princesa quando ela chegou com as
canecas.
“Como você se tornou o padrinho dele?” Ariadne quis saber.
“O pai dele e eu éramos amigos. Ele me fez padrinho antes de
morrer”
A princesa balançou a cabeça, bebendo um longo gole do chá de
narciso. Perséfone não conseguia tirar a imagem das almas olhando para o
vazio... e os olhos de Hades quando havia admitido que tinha se
apaixonado. Ela encarou o líquido quase transparente do chá e envolveu a
caneca entre os dedos, deixando o calor encontrar sua pele.
“Sua mãe não vai gostar de saber que você esteve no tártaro...”
Hermes disse, por fim, virando-se a ela.
“O que minha mãe tem a ver com isso?” ela franziu o cenho.
“Ela é mestre em acordos” o deus riu. “Quando foi condenada e
soube que você iria passar sua vida aqui; ela fez dois acordos. Um com
Zeus, diminuindo seus dias no submundo para seis meses invés de um ano
inteiro. E fez Hades prometer que você não se aproximaria do tártaro.”
E que não se aproximaria dela. Perséfone manteve isso para si
mesma.
“Como ela fez isso? O que minha mãe teria para dar a eles?”
“Nada” Hermes disse, respirando fundo. Ele olhou ao redor, como
se procurasse entre as sombras a presença de alguém... ou algo. “Ela estava
lá... no início, quando eles eram apenas crianças, se escondendo do pai...
Cronos.”
“Por que eles precisariam se esconder?”
“Cronos era cruel com os filhos... Por causa de uma profecia que
dizia que um de seus filhos o mataria. A mãe deles... dos três, soube que era
questão de tempo até que Cronos matasse todos os filhos, então eles
fugiram. Eu acho que sua mãe era uma ninfa da natureza na época. Uma das
que deu asilo aos três pequenos deuses e a mãe deles, ajudando-os a mantê-
los vivos. Os deuses devem a vida a ela.”
“Eu não sabia disso...” Perséfone colocou a caneca de chá sobre a
mesinha de centro entre eles.
“Ninguém sabe”
“Como você...?”
Hermes abriu um sorriso. Ele não era apenas o deus mensageiro, ela
lembrou. Hermes também era considerado o rei das trapaças. Realmente era
uma surpresa para Perséfone que deuses confiassem nele para levar e trazer
suas correspondências... ou segredos.
A deusa respirou fundo e caiu sobre a poltrona.
“Então, sim... Deméter não vai ficar feliz”
“Não diga a ela”
“Não vou. Mas ela vai descobrir de um modo ou de outro”
“Deixe-a vir até mim quando ela o fizer.”
Hermes se ergueu e bebeu o chá de uma só vez.
“Preciso ir. Vocês ficarão bem?”
Perséfone e Ariadne se entreolharam e então lançaram o olhar para a
cama onde Eurídice estava. Elas concordaram. Hermes foi até Perséfone e
beijou o rosto dela, desaparecendo em seguida.
“Orfeu virá atrás dela?”
“Ah, sim. Com toda certeza” Perséfone falou, cansada. Ela lembrou-
se do olhar do poeta quando falou que a amava Eurídice. Era real, profundo
e único. “A questão é não quando, mas como. E eu tenho um
pressentimento de que dessa vez ele não estará vivo.”
CAPÍTULO XII – A NOITE

“Eu não sei onde estou” A voz dela era como brisa quente.
Ela tentava falar com as plantas. Às vezes, algumas ajudavam, mas
ali no submundo, as plantas eram inertes, sem vida. Ela tinha se perdido
nos campos mais uma vez.
Perséfone estava à procura do palácio de Hades. Ela queria
solicitar uma audiência, pedir para que ele a livrasse daquela punição, mas
não conseguia encontrá-lo.
Ela só tinha dezoito anos. E agora estava presa naquele lugar por
metade de sua existência.
“Para onde quer ir, deusa?” Uma voz rouca a encontrou.
Um homem alto de cabelos pretos e olhos escuros como a noite
agora estava ao seu lado. Ele usava uma jaqueta de couro negro, e era
forte demais para ser apenas uma alma.
“Você é um deus.”
Ele não disse seu nome a ela. Os dois caminharam lado a lado em
silêncio.
“Estou tão confusa” a deusa disse, de repente. “Pode me ajudar?”
“Esse não é um lugar para os vivos. É por isso que está confusa. O
submundo sabe que você não pertence aqui”
Ela apertou os olhos. A mente de Perséfone estava nublada, coberta
por névoa e dor.
Ela agora se lembrava que tinha esquecido algo, e que algo que
precisava esquecer ainda lembrava.
“Quem é você?”
“Um rei” ele disse, sinceramente.
Ela encarou para ele.
Ele era Hades, o deus dos mortos, julgador de almas e rei do
submundo.
“Quebre minha punição”
“Não posso. Mas eu daria minha própria alma para fazê-lo, se
pudesse.”
Perséfone tinha a impressão de que não era a primeira vez que ele
lhe tinha dito aquilo.
“Acho que estou em um sonho”
Hades se aproximou dela, tocando sua face ligeiramente.
“Essa é uma memória. E nessa memória, eu tomei seu primeiro
beijo”

Ele estava lá. Nas sombras.


“Hades” Perséfone sussurrou o nome dele, sentando-se na cama
com um pulo.
A brisa da noite, fria, adentrou seu pequeno quatro, as cortinas da
janela dançando contra ela. Não havia nada ali, apenas o luar.
A deusa cobriu o rosto com as mãos e soltou um grito abafado.
Aquela já era sua segunda semana de volta no submundo e dormir estava
mais impossível do que no mundo dos vivos. Ela jogou os lençóis para o
lado e saiu da cama. A sua sala de estar havia virado o lugar onde Ariadne e
Eurídice dormiam agora.
Elas tinham colchões e descansavam gentilmente abaixo das janelas
e da noite clara lá fora.
A deusa da primavera assistiu ao vale das almas. As águas calmas
carregavam mais um barco com almas, navegando lentamente em direção à
costa. O barco chegaria em Asfódelos pela manhã. Ela deixou o chalé e foi
até seu jardim.
Nos últimos dias, ela tinha percebido que algo estava começando a
nascer aqui e ali pelos campos, ao redor da vila... e, principalmente, em seu
jardim. Era a flor que havia criado com Hades.
Kore.
Nas primeiras vezes que a vira, Perséfone achou que havia
começado a delirar.
No entanto, elas estavam ali. Crescendo por entre suas outras flores.
Crescendo como erva daninha. Abrindo espaço por entre tudo e impossível
de matar.
Ela foi até elas e arrancou-as do chão, uma por uma, mesmo
sabendo que estariam ali de volta quando o amanhecer chegasse.
Perséfone não sabia o porquê elas estavam crescendo ali e não
queria entender.
E foi a meio de sua fúria com as flores que ela ouviu uma doce
risada.
“Achei que a deusa da primavera gostasse de flores” Afrodite falou,
baixo.
Perséfone encontrou a deusa entre suas árvores de romã. Ofegante,
ela largou as kores no chão e fez uma mesura.
“Milady”
“Ah, esqueça isso”
A deusa pegou uma romã nas mãos e caminhou até ela. Ela vestia
um de seus longos vestidos. Dessa vez, azul-escuro. Sua pele negra brilhava
sob o luar. A beleza dela era tanta que Perséfone se viu distraída analisando
as linhas de sua face.
“Chegou a minha atenção a situação de sua amiga”
Perséfone franziu o cenho e limpou as mãos. Ela vestia a camisola
que tinha trazido no corpo do mundo dos vivos. Seu roupão rosa tinha sido
usado para fazer um vestido elegante para Ariadne. Ela mesma o costurou e
ficou bem satisfeita com o resultado.
“Hermes me disse” Afrodite clarificou. Ela caminhou até um
pequeno banco por entre os girassóis, elegante, sensual.
“Ela perdeu as memórias” E a si mesma, a deusa queria dizer. O rio
tinha feito-a esquecer tudo, incluindo o próprio nome. Nas últimas semanas,
Ariadne e Perséfone tinham ficado ao lado dela e a explicado o que
acontecera, mas ela simplesmente não compreendia. Ela gostava da
companhia das duas, no entanto. Por isso, tinha ficado ali. Ela ria e fazia
piadas. A garota tinha a mesma personalidade de antes, mas nenhuma
memória. E, às vezes, seu olhar parecia vazio, como se, no fundo, não
tivesse nada lá.
“Por amor”
“É por isso que você está aqui?” Perséfone franziu o cenho. Afrodite
era a deusa do amor, afinal.
“Mais ou menos”
Ela encarou a deusa e Perséfone soube que Afrodite sabia sobre a
noite que tinha passado com Hades. A deusa do amor não disse nada.
Rubor passou pelo rosto de Perséfone, no entanto, e ela ficou um
tanto grata que a lua não estava tão clara assim, deixando a noite com
algumas sombras.
“Trite veio me ver... e eu paguei uma visita a Atena”
Perséfone riu. As três pareciam uma combinação impossível. Não
conseguia imaginá-las juntas em um só ambiente.
Afrodite também compartilhou do divertimento dela.
“Acredite, Atena não é minha deusa favorita, mas eu soube que ela
ajudaria.”
“Agora estou curiosa”
Perséfone sentou-se ao lado da deusa. Ela tinha o aroma de poção do
amor. Era doce e suave, irresistível.
“Nada vale a pena esquecer quem você é, Perséfone... nem mesmo
por amor. Sua amiga estava tomada por dor, mas sei que se você estivesse lá
para dizer isso a ela, ela não pularia no rio. Então... Atena achou uma forma
de trazer as memórias dela de volta”
“Apenas quem rege o Lete pode fazer isso.” Perséfone repetiu as
palavras de Hades.
“Exato!” Afrodite disse, abrindo a romã com as unhas bem-feitas.
Ela enfiou os dedos na fruta, seus dedos tingindo-se com o suco vermelho
como sangue. “Atena descobriu onde ela está”
“Ela?”
“Ah, sim. A regente do Lete é uma bruxa que mora aqui no
submundo há muitos, muitos milênios” ela fez um movimento delicado com
os dedos, indicando que era bem mais distante do tempo que Perséfone
conseguia imaginar.
“Onde posso encontrá-la?”
Afrodite suspirou, comendo da fruta. Ela fez um som satisfeito.
“Uau, essa é a melhor romã que já comi... Enfim, ela mora onde os
cinco rios do submundo se encontram.”
“Eu não sei onde é isso”
“Bem, é por isso que você precisa usar seus poderes... Se você se
transportar para lá, só precisará fazer uma pequena caminhada para
encontrá-la. Pelo que Atena me disse, a regente pode ser uma bruxa
compreensível. Se explicar o que aconteceu com sua amiga, é possível que
ela te atenda”
Perséfone gostava da ideia, mas só tinha um problema. Para ela usar
seus poderes, tinha que fazer o pedido ao rei do submundo. E ele era a
última pessoa que ela queria ver.
“Uma amiga me disse que nem sempre se sacrificar por quem te
ama vale a pena” Afrodite piscou para ela, parafraseando Trite. “Você acha
que Eurídice vale a pena você engolir seu orgulho e falar com ele?”
Como aquela deusa conseguia sentir tudo o que ela sentia, Perséfone
não queria saber.
“Não é só meu orgulho” Ela se ergueu e se voltou para Afrodite,
séria.
“Deuses... eles são horríveis. Confie em mim, eu sei muito bem”
“Hades...”
“Foi seu primeiro”
Nem era isso que Perséfone estava a dizer. O rubor voltou com
força.
“Você é tão jovem, deusa. Haverá outros.” Afrodite se ergueu e foi
até ela, pegando seu rosto nas mãos. “Talvez eu vá para seu próximo baile,
e então não haverá pausa para você e seus pretendentes”
“Eu achei que Hades era seu amigo”
“E é. Mas naquela manhã, quando você não apareceu para o café da
manhã, eu seriamente pensei em mandá-lo para o inferno... até me lembrar
que ele já mora aqui”
Perséfone caiu na gargalhada.
“Meu tempo acabou. Falei para ele que você precisava de algo
decente para vestir quando estivesse aqui, já que não pode trazer seus
próprios vestidos. Eu deixei algo para você, a princesa e sua amiga na
cozinha.”
“Obrigada, Afrodite” Ela não estava agradecendo pelos vestidos, e
sim pelo que tinha acabado de fazer.
A deusa do amor sorriu e estava prestes a desaparecer quando falou:
“Você plantou essas árvores?”
Perséfone franziu o cenho.
“Não, estavam aqui quando cheguei pela primeira vez.”
“Hermes?”
A deusa balançou com a cabeça. Certo dia, no primeiro ano dela ali,
quando o mensageiro veio visitá-la, ela o pegou surpreendido pelas árvores
no quintal. Aparentemente, o pomar tinha aparecido do nada quando ela
começou a morar no chalé.
“Você sabe que elas são um de meus símbolos... as romãs?”
Perséfone não sabia.
“Elas significam amor em morte. Plantar uma árvore de romã com
alguém em mente é o mesmo que dizer a essa pessoa que daria sua alma por
ela.” Afrodite ergueu uma sobrancelha, curiosa. “E você tem um pomar
delas...”
A deusa do amor então deu um pequeno sorriso e desapareceu por
entre a noite.

Havia pequenos prazeres para almas no submundo.


Por isso, Ariadne estava extasiada com seu novo vestido. De acordo
com ela, era exatamente o que usava quando estava viva. As mangas eram
fofas e as saias, longas, cobertas por renda, em camadas belas e cores vivas.
Eurídice não sabia o que gostava, então ficou satisfeita e agradeceu a
Perséfone com um sorriso verdadeiro. Ela então se sentou a frente da lareira
e começou a murmurar uma cantiga.
Perséfone a observou e soube que Afrodite estava certa. Ela
precisava ir até Hades pedir que desse a ela seus poderes de volta. Ela não
suportava ver Eurídice daquela forma.
A deusa colocou o vestido que havia ganhado, o qual tinha uma saia
ampla e o decote apertado, deixando as linhas de seus seios delineados. As
mangas eram feitas de seda e pareciam pétalas de rosas.
Perséfone não se olhou no espelho e deixou seus cabelos longos
soltos sobre os ombros. Ela disse a Ariadne que iria para uma caminhada,
mas a verdade era que estava indo em direção ao palácio de Hades.
A última vez que tinha ido até lá tinha esperado por ele por horas.
Embaraço apertou seu estômago. Ela havia sido tão ingênua.
Assim que se aproximou à ponte, foi transportada para o jardim do
palácio. Ela tocou os pés na grama verde e a primeira coisa que viu, além
das almas ocupadas trabalhando na horta, foi a macieira, a dama.
A árvore estava completamente seca. Morta.
Perséfone colocou uma mão no quadril e abriu um sorriso, satisfeita.
Ela não tinha feito nada para contribuir com a morte da pobre árvore, mas
ficaria bem feliz se aquilo irritasse Hades.
“Se divertindo?”
A voz profunda dele a atingiu de uma vez. Ela apertou as pálpebras,
tentando fingir que não tinha se assustado. Ela ficou calada e assistiu-o
caminhar ao redor de seu corpo e parar a sua frente.
Hades estava sem camisa e sua pele coberta por uma fina camada de
suor. As calças que ele vestia pairavam sob sua cintura, dando a um
caminho que ela tinha experimentado. Os músculos dele se contrariaram.
A deusa então encontrou a face dele. Ele havia cortado o cabelo e
agora estava, mais uma vez, curto como o de um soldado.
“Afrodite realmente veio ao seu encontro. Achei que ela só estava
jogando conversa para o alto... o que não é incomum” Ele olhou-a de
cabeça aos pés, analisando o vestido dela, detendo-se em seus pés.
Perséfone estava descalça. “Talvez ela lhe traga sapatos na próxima vez.”
“Eu não preciso de sapatos” A deusa disse, afastando o cabelo do
rosto. Ainda estava sarando, mas agora tinha uma cicatriz onde havia caído
e se machucado no dia da neve.
“Hm” O peito dele subiu e desceu em uma respiração profunda. “O
que posso fazer por você, milady?”
“Eu quero usar meus poderes no submundo”
“Não.”
Ele deu de costas e começou a caminhar de volta por onde viera.
Perséfone franziu o cenho, perplexa.
“Você disse que só eu precisaria pedir!”
“E você disse que não imploraria a mim por nada”
Hades pegou um grande machado que estava enfiado no meio de um
tronco e voltou a fazer o que estivera fazendo quando ela chegou ali,
cortando lenha.
“Não estou implorando... estou pedindo.”
O deus colocou uma lenha sobre o tronco e atacou-a com o
machado. O pedaço de madeira partiu-se no meio como se fosse manteiga.
“Não”
“Hades!”
“Eu não sei o que Afrodite disse a você, mas não vai dar certo” Ele
pegou outro pedaço de madeira e Perséfone caminhou para mais perto.
“O que você quer...”
“Não termine essa frase” Ele rosnou, partindo a lenha com mais
força do que necessário.
Perséfone ficou ali, parada, com a mão sobre a cintura. Então, soube
que precisava jogar o mesmo jogo mesquinho que ele estava jogando.
“Sabe o que eu quero fazer quando voltar ao mundo dos vivos?”
Ela caminhou em direção a ele, parando bem na frente do tronco,
impedindo que ele colocasse outra lenha ali. Perséfone sabia que só poderia
fingir por pouco tempo. Ela não tinha mais confiança, era tudo mentira. E
quando sentiu o aroma da pele dele, soube que precisava ser rápida.
Pinheiro queimado, chuva no inverno, noites quentes em claro.
“O quê, deusa?” Ele perguntou, mostrando sincera curiosidade.
“Encontrar seu irmão”
Hades franziu o cenho.
“Já que você é inútil em seu próprio reino, incapaz de desfazer
simples punições, talvez ele esteja disposto a fazer um acordo comigo... Eu
realmente não sei por que demorei tanto para decidir fazer isso”
A íris de Hades escureceu de um segundo para o outro. Ele deixou o
machado cair no chão e deu um passo largo em direção a ela.
“Não me toque” Ela repetiu calma e pausadamente, erguendo o
queixo para encontrar a face dele.
Hades empacou onde estava. Sua respiração era pesada e, sua
expressão, violenta.
“Você arriscaria sua própria segurança?”
“Por quê? Eu não sou nada para você. Não entendo que razão Zeus
teria para me machucar”
“Não fale o nome dele” Hades rosnou, vindo até ela.
Perséfone deu um passo para atrás, ficando presa pelo tronco. O
deus não a tocou, mas a prendeu contra seu corpo, apoiando as mãos no
tronco atrás dela.
“Diga-me...” ela sussurrou, sentindo o peito pulsar sobre as costelas.
“Que razão ele teria?”
“Perséfone.”
“Dê-me meus poderes”
Ele fechou os olhos e bufou.
Em seguida, concordou com a cabeça e deu um passo para trás.
Perséfone tomou um longo lufo de ar, assistindo-o ir até onde tinha
deixado sua camisa e vesti-la.
Ela soube que precisava desaparecer dali o mais rápido possível e
fechou os olhos, tentando se transportar para onde precisava ir. Mas nada
aconteceu. Seus poderes estavam ali, zunindo dentro dela, no entanto, nada
aconteceu.
Quando abriu os olhos, viu a face de Hades, divertida. Ela
imediatamente soube das intenções dele.
“Não...”
Se afastando, deu passadas longas para fora do jardim, indo em
direção ao arco em ogiva que dava para o castelo. Hades tinha bloqueado o
poder dela ali no palácio, o que só poderia significar que ele tinha intenções
de ir com ela onde quer que fosse.
“Você realmente acha que vou deixar você rondar pelo meu reino,
sozinha?”
“É o que tenho feito pelos últimos cinco anos!” ela esbravejou,
pegando as saias compridas e começando a correr pelo salão de entrada em
direção as portas largas.
Ela ouviu a risada de Hades ecoar pelas paredes. O deus a alcançou
rápido, quando ela estava um passo da saída. Ele a puxou contra si e pelo
impacto, Perséfone caiu sobre o corpo dele.
Os braços do deus seguraram a cintura dela, quando eles acertaram
o chão. O corpo de Hades serviu como um acolchoamento firme. Perséfone
inspirou o aroma dele, sabendo que ele conseguia sentir as batidas rápidas
de seu coração inconveniente.
Os lábios de ambos estavam a centímetros. Os cabelos de Perséfone
caiam como uma cortina sobre eles, encasulando-os do exterior. Era apenas
os dois ali.
Hades levantou a mão esquerda e levemente, quase sem tocá-la,
colocou uma mecha de cabelo dela atrás da orelha.
“Hm”
A deusa soube que não podia se deixar distrair. O toque dele era
delicado e quase impossível de resistir. Ela queria deixar que ele a tomasse
mais uma vez, mesmo se fosse só para usá-la. No entanto, ela sabia que
nada havia mudado e nada mudaria.
Perséfone então deu um pulo para cima e correu em direção às
portas.
Ela ouviu-o chamar seu nome, mas quando passou pela abertura, seu
poder surgiu por entre seu sangue e no, segundo seguinte, tinha se
transportado para longe.

Perséfone não fazia a menor ideia de onde estava. Ainda era dia
naquele lugar, e ela sabia que estava distante de Asfódelos, distante do
Palácio de Almas Perdidas.
Seus pés descalços tocavam grama seca. Ela estava sobre um morro
alto. Dali, podia ver o que havia lá embaixo. Cinco pequenas casas feitas de
diferentes pedras, diferentes modos, formando um círculo. Ao lado de cada
uma delas havia correntes de água e fogo.
Uma, tinha pequenos telhados marrons, com uma varanda pintada e
aberta. Outra era como seu chalé, normal e simples. As outras três eram
estranhas. Uma não tinha teto e parecia que tinha sido completamente
destruída por fogo. Outra só restavam ruínas, como se o tempo tivesse
esquecido dela. A última parecia normal, mas havia uma pessoa sentada à
frente, que chorava.
“Cócito é dramático”
Perséfone se virou para ver uma garota se aproximar. Ela tinha
longos cabelos cacheados. Sua pele era branca como um fantasma. Seus
olhos eram pálidos, sem vida. A garota tinha os dedos e os braços pintados
de preto, a imagem de runas antigas a cobria.
O ser desconhecido encarou Perséfone.
“Você pertence ao submundo” ela falou, como se fosse uma
curiosidade. “Já te falaram isso, milady?”
Perséfone riu.
“Me disseram o contrário”
“Ah, sim. Mortais. Vocês gostam de mentir. Eles estão mentindo a
você. Você pertence ao submundo... e, na verdade, vai escolher ficar aqui
muito em breve”
“Quem é você?” Perséfone franziu o cenho.
“Algos!” A voz de Hades trovejou às costas das duas. “Não se atreva
a se aproximar dela!”
A garota riu, absolutamente divertida.
“Oops, seu protetor chegou.” Ela deu de ombros e desapareceu no
ar.
“Deuses, Perséfone” Hades se aproximou rápido dela, consternado.
“Você precisa me ouvir. O submundo é um lugar perigoso”
“O que a garota poderia possivelmente fazer?”
Hades tensionou a mandíbula.
“A garota... é a deusa da dor, protetora do Aqueronte – rio da dor.
Ela adora torturar damas solitárias.”
A deusa apertou os olhos.
“Eu te disse isso antes... eu não preciso de sua proteção!”
Perséfone virou as costas para ele e começou a caminhar em direção
das casas. Se a protetora do Aqueronte estava ali, a do Lete também estaria.
Ela sentiu Hades às suas costas e ele a não demorou muito para
alcançá-la.
Em silêncio, os dois chegaram até as casas. Algo que a deusa não
tinha visto lá de cima surgiu quando se aproximou ainda mais. As nascentes
dos rios vinham de dentro das casas. Cada rio com uma cor, com um poder.
Na casa de pequenos telhados marrons, ela sentiu a presença do
esquecimento e então começou a caminhar até lá.
“Espere” Hades pediu.
Ela se virou para ele, impaciente.
“A protetora do Lete é... complicada. Deixe-me falar com ela. Fique
aqui.”
“Por que eu faria isso? Se você quisesse me ajudar já teria vindo até
aqui”
“Eurídice não é minha amiga. Não é meu lugar fazer pedidos por
ela.”
“Mas eu achei que você era o meu”
Hades suspirou.
“Eu te disse que não poderíamos ser amigos”
Perséfone virou as costas em resposta e voltou a caminhar em
direção à varanda. No entanto, ela não precisou bater na porta. Uma mulher
bela, com longos cabelos negros, caminhou para fora, olhando o horizonte,
encontrando Hades e depois virando para ver Perséfone ali, sobre sua
varanda.
A mulher abriu um sorriso e então deu uma risada. Ela olhou para
Hades e falou:
“Eu te avisei, milorde. Eu te avisei que esse dia chegaria”
CAPÍTULO XIII – A FEITICEIRA

O nome da bruxa era Hécate, a


mesma que havia dado a
Hades aquele bracelete com
magia negra que o transformaria em um porco. E um dia ela havia se
apaixonado pelo rei do submundo.
O amor dela tinha sido negado por Hades.
E para que ele nunca esquecesse de que um dia a rejeitara, Hécate
criou um rio que cortava o reino dele e que dava o poder a todos que
quisessem esquecer, o que ela nunca poderia fazer. Era isso que Hades tinha
feito para merecer o ódio da bruxa.
Os três se sentaram ao redor de uma pequena mesa redonda na
varanda. Hécate tinha lhes servido hidromel, mas Hades não havia tocado
em seu cálice. Perséfone observou a bruxa. Ela era incrivelmente bela.
Ela era mais madura, com sinais do tempo e envelhecimento em sua
face. Sua pele era dourada, com cabelos longos, volumosos ao redor do
rosto, agora presos em um elegante coque. Ela vestia trajes antigos, belos e
escuros. A deusa se pegou com um pouco de ciúme.
Hécate e Hades fariam um par perfeito. Eles compartilhavam das
mesmas cores, da mesma expressão sombria... e haviam, definitivamente,
compartilhado uma cama.
A deusa limpou a garganta e encarou a bruxa, respirando fundo.
“Me perdoe, deusa, pela forma que chegamos até aqui... Eu venho
pedir que as memórias de uma amiga sejam devolvidas”
“Eurídice?” A bruxa ergueu o cálice, dando um gole.
A deusa concordou.
“Não é um pedido impossível.”
“O que você precisa para fazer esse pedido possível?”
A bruxa riu e umedeceu os lábios. O olhar dela sobre Hades tinha
uma mistura de desejo e diversão. Ela sabia algo de Hades que ele não
queria que ninguém soubesse.
Hades, em troca, deu a ela um olhar tranquilo, distante.
“Eu posso fazer uma troca, deusa” ela voltou-se para Perséfone,
ainda com o sorriso no rosto. “Uma memória por outra”
Perséfone assistiu Hades balançar a cabeça, consternado.
“Nem pensar”
“São as memórias dela...” A bruxa ergueu uma sobrancelha. “Não
suas. Ela que deve decidir”
Aquilo pareceu quebrar a fachada calma dele. Hades bateu na mesa,
apertando os olhos para bruxa.
“Você realmente acha que vou deixar você mexer com a cabeça
dela?” ele rugiu.
Hécate levou o cálice aos lábios e deu de ombros, calma.
“Você o fez. Por que outra pessoa não poderia fazer?”
Perséfone piscou, tentando entender o que estava acontecendo.
“Espere... o quê?”
Hécate arregalou os olhos e deu uma gargalhada alta.
“Você não sabe, deusa? Ah! Isso está até melhor do que em minha
previsão.”
Perséfone se ergueu da mesa e foi até Hades.
“Me diz o que está acontecendo ou eu juro pelos deuses que...”
“Ela está falando dos sonhos...” Ele estalou, tensionando a
mandíbula. “Os sonhos, seus sonhos... não foram sonhos.”
A deusa deu um passo para trás.
“Eles foram reais.” Hécate disse, de repente, atrás deles.
“O que ela quer dizer com isso?” Perséfone murmurou.
A face dele estava coberta por escória.
Hécate foi até a deusa e sussurrou no ouvido dela:
“Seus primeiros seis meses aqui, no submundo... você se apaixonou
pelo deus e ele roubou um beijo. E então, apagou suas memórias para que
você não lembrasse, para que ele não fosse responsável por aquilo que você
sentia”
A deusa encontrou os olhos sombrios, ônix, de Hades e soube que o
que a bruxa dizia era verdade. Por que ele faria aquilo com ela? E agora,
estava fazendo pela segunda vez?
Perséfone não entendia.
Ela tinha se culpado por ter se entregue a ele com esperanças, mas
agora era diferente. Hades tinha, deliberadamente, feito aquilo com ela.
Brincado com seus sentimentos.
Ela se sentia vazia. Complemente vazia. Seu coração apertava no
peito.
“Elas são suas.” Ela sussurrou para a bruxa. “Fique com elas em
troca das memórias de Eurídice.”
Hades assistiu a dor na face dela, mas não disse nada. Hécate tirou
um frasco de perfume dos bolsos da saia. Esse estava cheio e tinha um
aroma agridoce. Eram as memórias de Eurídice. Do outro bolso, tirou um
frasco vazio.
“Tem certeza, deusa? Quando entregá-las a mim, não terá como
recuperá-las”
No canto da varanda, Hades fechou os olhos e virou as costas para
as duas, apertando o suporte da sacada com força.
“Elas não fazem falta” A deusa respondeu, sinceramente.
Hécate fez uma careta em reação ao comentário e pegou o rosto dela
nas mãos. A bruxa fechou os olhos e uma aura roxa se formou sobre ela.
“O favor é seu.” Hades rosnou. “O que você quiser, eu farei.”
E então, a aura foi interrompida.
Hécate se afastou de Perséfone e abriu um sorriso satisfeito.
“O deus dos mortos não dá favores assim tão fácil” Hécate
sussurrou, tocando o queixo de Perséfone. “Mas acho que manter suas
memórias vale a pena. Aqui.” Ela colocou as memórias de Eurídice sobre a
mão de Perséfone. “Leve-as até ela. Ela é uma das poucas almas qual eu
lamentei ver em minhas águas”
A bruxa era sincera.
“Obrigada” Perse disse, em um murmúrio.
Hécate balançou a cabeça e voltou-se a sentar na cadeira, bebendo
um longo gole do hidromel. Ela encarou os dois longamente.
“Você quer saber o que eu disse a ele?”
“Não” Perséfone engoliu em seco. Hades voltou o olhar para ela,
surpreso com a dureza da voz dela. “Quanto menos eu souber, melhor”
Agarrando as memórias de Eurídice, ela saiu da varanda com passos
longos e determinados, deixando os dois antigos amantes para trás. A deusa
sabia que precisava voltar ao morro para poder se transportar para
Asfódelos. A magia ali era estranha, retorcida.
Estando grata por estar descalça, ela correu monte acima, sujando
toda a barra de seu vestido. Quando alcançou o lugar aonde chegou,
desapareceu no ar e o chalé de Hermes surgiu a sua frente.
Chovia pesado ali e o sol tinha ido embora completamente. Ela
correu para dentro do chalé e encontrou Ariadne na cozinha, fazendo chá. A
deusa foi até ela e colocou as memórias em suas mãos.
“Você conseguiu!” A princesa abriu um sorriso, mas este
desapareceu quando viu o olhar irado da deusa.
“Espere por mim”
Perséfone então voltou ao jardim pela porta aberta e o encontrou lá,
esperando-a. Ela sabia que ele estaria ali.
“Me deixe explicar”
“Como você se atreve?!”
“Eu não sabia que...”
Perséfone foi até ele e o empurrou pelo peito. Ele não se moveu um
só centímetro. A chuva caia pesada sobre os dois.
“Deusa, me escute”
“O que você possivelmente poderia dizer?” Ela vociferou. “Que
tirou seis meses da minha vida?!”
Ela não entendia. Se o que a bruxa tivesse dito era verdade, eles
tinham se conhecido no primeiro inverno dela ali e ela tinha se apaixonado
por ele. E não só isso, naquela noite no Castelo das Tempestades, ele tinha
mentido para ela sobre ser apenas um sonho.
“Eu não queria que você lembrasse de mim... as outras memórias
ficaram”
“Por quê?”
“Porque eu queria que você tivesse a chance de ter uma vida no
mundo dos vivos!” ele rosnou. “Eu te mostrei quem sou, Perséfone. Não há
nada aqui para você!”
Ela balançou a cabeça, ofegando, absolutamente irada. Estava quase
impossível de respirar.
“Essa é minha escolha para fazer, não sua!”
Ele exibia uma expressão severa. O deus se aproximou, firme.
“Sua face tem me assombrado por anos, Perséfone. E depois que
beijei você, e daquela noite... da nossa noite, eu não soube o que fazer.”
“Pare, não diga mais nada!” ela pediu. “Não faça isso comigo”
Ele respirou fundo.
“Sinto muito”
Havia tantas coisas pelas quais ele deveria estar se desculpando.
“Pelo quê?” Ela precisava saber.
“Por não conseguir ficar longe de você.”
Ela deveria se afastar.
Ela deveria entrar no chalé e deixá-lo lá. Mas ela não o fez. Hades
deu mais um passo, vendo essa decisão trespassar os olhos dela.
Ela ficou.
“Eu achei já estar condenado ao inferno quando virei rei do
submundo. Mas... ficar longe de você me provou errado.” A voz dele era só
um sussurro rouco.
Hades ergueu a mão e parou-a no ar, reticente. Perséfone apertou os
olhos. Ela queria fugir dali, mas não podia. Estava presa a ele, como estava
presa naquele reino.
“Toque me” ela permitiu.
Os dedos quentes dele encontraram a face dela em seguida.
Delicados e dolorosos. Perséfone se inclinou para o toque fervente. Ele era
como uma droga.
“Eu quero beijá-la, deusa”
Perséfone parou de respirar, perdida na escuridão dos olhos ônix
dele.
A outra mão de Hades deslizou pela cintura dela, puxando-a para
perto com força. Os dois revolveram no ar e no segundo seguinte estavam
de volta ao quarto dele, em Etna.
Hades a empurrou contra a parede e mergulhou os lábios nos dela
sem demora. Aqueles meses não tinham ajudado a fome dele... ou a dela.
Perséfone ergueu as mãos para puxá-lo pelo pescoço, mas ele pegou
seus pulsos, prendendo-os sobre sua cabeça com as mãos. A boca dele
descia sem misericórdia, doce, firme. Ele enfiou a língua por entre seus
lábios e Perséfone soltou um gemido alto.
“Deuses” ele rosnou, pegando a coxa dela e puxando-a para si.
O deus pressionou seu centro contra o dela e a deusa sentiu como
ele estava rígido entre as pernas. Um calafrio subiu por sua espinha. Ela iria
deixar ele tomá-la novamente. Ela se sentia envergonhada, usada e ferida.
Ainda assim, quando as mãos dele acariciaram a pele delicada de sua coxa,
ela não conseguiu pensar nas consequências.
Com a mão livre, ela enfiou a palma por entre a camisa dele,
buscando o toque selvagem dos músculos do deus.
Quando ela o fez, Hades deixou sua coxa e tomou-a pelo pescoço,
sem quebrar o beijo. Primeiro, com força, depois, suave.
Ele roçou os lábios sobre os dela, levando a mão por entre seu
vestido. Hades não demorou para encontrar a nudez dela por baixo das
saias, ardente, completamente túmida, a sua espera.
“Tão molhada... para mim.”
O deus enfiou um dedo dentro dela e Perséfone arqueou as costas
em reação.
“O modo como você reage a mim é pior do que qualquer
maldição...” ele sussurrou entre os dentes, mordendo o lábio dela. “Não
consigo parar, deusa. Não consigo parar de pensar em você.”
Ele enfiou um segundo dedo e encontrou o botão delicado entre as
pernas dela, levando o polegar até lá.
Perséfone arfou, não demorando a sentir uma onda de prazer
avassaladora quebrar em seu âmago. Hades capturou cada um dos gemidos
dela com a boca. Ela arranhou sua pele, puxando-o mais para si, levando a
mão até as calças dele. Ela precisava dele urgentemente dentro de si. Mas
Hades a interrompeu, segurando seus pulsos. A boca dele então desceu por
seu pescoço. Sua pele era suave e ela tinha o gosto de chuva.
Hades rascou a parte de cima do vestido com só movimento,
colocando os mamilos dela na boca, voraz.
Perséfone estava perdida em prazer. Seu ápice ainda corria pelas
veias. Tudo o que ela pôde fazer foi pegar o pescoço dele e trazê-lo para
mais perto.
E então, Hades se ajoelhou. Ele ergueu uma das pernas dela e
empurrou suas saias para cima, se colocando entre suas coxas.
Ele elevou o olhar para encontrar o dela. Selvagem e tomado por
desejo, Hades abaixou a língua sobre os lábios molhados dela, lá embaixo, e
deu uma longa lambida, fazendo as pernas dela perderem a força. O deus a
manteve segura, apertando os quadris dela com os dedos de ferro.
A boca dele dançou por entre as pernas de Perséfone e quando ela
chegou ao ápice mais uma vez, gritou o nome dele, desesperada,
implorante. Mas ele não parou, ele se aprofundou nela, sentindo-a convulsar
vez e vez, sentindo-a rasgar sua pele com as unhas.
Quando Perséfone já não conseguia mais abrir os olhos, exausta, ele
a pegou pelos braços e levou-a para a cama.
Ela abriu os olhos o bastante para assistir ele se despir, lentamente.
A camisa e a calça caíram ao chão, o membro enorme entre as
pernas dele, inchado e firme. Ele colocou um joelho sobre a cama e a puxou
para si, tirando aquilo que restava do vestido molhado dela.
A deusa o ajudou, e então ele a puxou para seu colo para um longo e
tórrido beijo. Ele a prendeu contra si pelos cabelos e ela gemeu baixo, entre
os lábios dele.
Perséfone apoiou-se nos ombros do deus e pegou seu membro
pulsante entre os dedos, levando-o até sua entrada. Ela brincou com sua
pele úmida soltando um gemido, assistindo os olhos sombrios dele,
desenhados por prazer e então desceu sobre ele, de só uma vez.
Hades rosnou, pegando-a pelos quadris e deixando a se movimentar
sobre si. A boca dele trilhava o pescoço dela, beijando-a por onde passava.
Perséfone sentiu outro pico de prazer se aproximar e suas estocadas
começaram a ficar mais fortes, mais consistentes. Hades fechou os olhos em
torpor, roçando os lábios nos dela. Ele deu um gemido rouco e alto quando
se despejou dentro da deusa, prendendo os quadris dela sobre os seus.
A deusa gozou com a cabeça jogada para trás. Ofegante, sentiu os
lábios dele encontrar os seus mais uma vez.
“Eu sonhei com você” ele disse rouco. “Todos os dias desde aquela
noite...”
“Espero que tenha arruinado seu sono”
Hades riu e a puxou para si, tocando a face dela delicadamente.
“Fique comigo hoje”
A deusa apertou os braços sobre o pescoço dele. Parte dela se odiava
por estar ali, mas no olhar de Hades ela via rendição e a outra parte dentro
de si queria descobrir o que isso significava.
“Para onde mais eu iria?” sussurrou, colocando a testa sobre a dele.
Hades ficou em silêncio por um tempo, dançando os dedos em suas
costas quentes e nuas, ainda rígido dentro dela.
“O que você está pensando?” A deusa quis saber.
O olhar escuro dele a alcançou.
“Em você” Hades murmurou, profundamente. “Estou sempre
pensando em você. Você é o único pensamento que tenho, dia e a noite.”
“Não” ela tocou o rosto dele. “Você está pensando em como fugir”
O deus respirou fundo, longa e pesarosamente. Seus músculos
subindo e descendo. Perséfone sabia que estava certa.
Ele então a jogou sobre a cama, pairando sobre o corpo nu dela.
“Vou deixar os planos de fuga para a manhã.” Os olhos ônix dele
brilharam em divertimento. “Nós ainda temos muito o que fazer hoje a
noite”
Perséfone abriu um sorriso.
“Como o quê?”
Hades respondeu abaixando-se e roubando um beijo profundo,
movimentando-se dentro dela, deixando-a sem ar.

Perséfone arqueou as costas, o sono dissipando-se de sua mente. Ela


olhou para baixo e assistiu o deus dos mortos entre suas pernas, devorando-
a.
A língua dele era como veludo. Subia e descia sobre seus lábios
túmidos, clamantes.
Ela soltou um longo gemido baixo, enfiando os dedos pelos cabelos
dele, exclamando seu nome.
“Hades!”
Nunca, em toda sua vida, passaria em sua cabeça que um dia
acordaria com o deus do submundo lhe dando prazer oral.
O deus olhou para cima, vendo o peito dela subir e descer, ofegante,
e escalou o corpo dela, beijando por onde passava.
Hades pairou sobre a deusa, completamente nu, seus músculos
intensos flexionando sobre ela, imponente e irresistível. Ele abaixou os
lábios e captou os dela, lenta e sofregamente. Tudo o que a deusa pôde fazer
foi enlaçar as mãos no pescoço dele e se submeter àqueles lábios quentes e
deliciosos.
Quando o deus se afastou, tocou o rosto dela.
“Bom dia, milorde”, ela murmurou, com a voz ainda perdida em
prazer.
“Hm. Não é manhã ainda.” ele grunhiu baixinho, com um pequeno
sorriso.
Hades a pegou no colo, surpreendendo-a, e desceu da cama. Ele deu
alguns longos passos para outra parte do aposento que ela não tinha visto
antes. O deus desceu algumas pequenas escadas de pedra e adentrou uma
grande sala de banho. Por estarem no subterrâneo, a luz natural não era
presente, mas inúmeras velas de rum cobriam o ambiente.
Alguém havia preparado a grande banheira de cobre no centro do
ambiente com água quente e sais. Hades entrou nela e se abaixou, trazendo
Perséfone para seu colo.
Assim que a água quente tocou sua pele, ela deu um silvo de prazer.
A noite havia sido longa... e Hades tinha feito com ela coisas que
Perséfone nunca ouvira as ninfas comentarem. Havia sido quente, selvagem
e único.
A luz das velas tocou o rosto dos dois. Sobre o braço da deusa havia
um hematoma, e não era o único. Ela os tinha nos quadris, onde os dedos de
ferro dele a manteve presa enquanto devorava seu sexo. Havia alguns
pequenos também em seu pescoço e suas coxas.
Hades afastou o cabelo da deusa delicadamente e abaixou um beijo
sobre o ombro dela.
“Eu deveria ser mais cuidadoso”
“Achei que você não era gentil...” a deusa riu.
“Não gentil, apenas cuidadoso...” Ele sussurrou, sombrio, levando
uma das mãos até o braço dela, fazendo o hematoma sumir.
“Não.” Perséfone tocou a mão dele, fazendo-o parar meio caminho
de outro. “Deixe-os”
“Por quê?”
Perséfone se virou, devagar, e se sentou sobre o colo dele, olhando
em sua face. A água quente cobria os dois. Rubor alastrou por sua face dela
e a deusa tocou o peito dele, coberto pela fina camada de pelo e músculos
fortes. Na pele dele havia arranhões que ela tinha feito com as unhas.
“São provas de que não foi só um sonho” a voz dela era baixa.
Hades fechou os olhos e tomou as mãos dela, trazendo-as para mais
perto.
“Kore...”
“Por que você não me disse a verdade sobre as memórias?”
“Eu te expliquei, deusa. Eu não posso te dar nada.”
“Você é um dos deuses mais poderosos...”
“Não. Eu sou um dos deuses mais cruéis.” Ele voltou o olhar para
um dos hematomas sobre o quadril dela e passou a mão por lá, fazendo-o
desaparecer.
Ela respirou fundo.
“Foi por isso que você recusou o amor de Hécate? Por que você não
pôde dar nada a ela?”
Hades franziu o cenho, estranhando a mudança de assunto. Ele
levou a mão até as coxas dela e o hematoma dali foi embora em seguida.
“Você conheceu a bruxa, ela não é do tipo que se entrega a
sentimentos assim tão fácil. O que ela tinha por mim não era amor.”
“A história...”
“A história é falsa. Sim, eu a recusei, mas a única razão que ela
queria ficar ao meu lado era para se tornar rainha do submundo. E eu não
estava à procura de uma companheira na época.”
“Mas vocês compartilham a cama...”
Ele deu um sorriso e tocou o queixo dela com o indicador e o
polegar. Todos os hematomas tinham sumido.
“Você está com ciúmes?”
“Longe disso” ela ergueu uma sobrancelha. “Mas vocês transaram e
isso é interessante para mim.”
Ele deu um sorrisinho.
Perse passou os dedos sobre a face dele. Era tão entranho vê-lo
assim, em um momento tão vulnerável e íntimo. Ainda mais íntimo do que
a noite de paixão que compartilharam.
“Me fale sobre Hermes”
Foi a vez dela de franzir o cenho. Ela delineou os músculos do peito
dele com o indicador.
“Não há nada o que dizer”
“Você o queria como um amante”
“Sim”
“Hm”
“Não tenho certeza se quero enfrentar o ciúme do deus dos mortos,
talvez seja melhor eu não dizer mais nada.” ela sussurrou perto dele, dando
um beijo leve em seus lábios.
Hades apertou os dedos ao redor dos quadris dela mais uma vez,
com força.
“Não, você não quer.” ele grunhiu baixo.
“Hermes é um amigo”
“Ele não quer ser só um amigo”
Ela encarou o deus longamente. Ela queria entendê-lo, queria
compreender o que passava por dentro daquela cabeça.
Perséfone sentia que estava no olho de um furacão. Ali, com ele,
com o calor de sua pele sobre a sua, tudo parecia estar bem, mas sabia que
assim que saíssem daqueles aposentos, tudo se transformaria e seria súbito e
violento. Ela era corajosa o bastante para enfrentar aquela tempestade
novamente, mas não sabia se sobreviveria dessa vez.
“Assistir você dançar com ele me fez não sair do tártaro por uma
semana inteira...”
“Pobre almas” ela sussurrou, séria. “Talvez, se um dia você decidir
comparecer ao meu baile, eu possa te dar uma dança”
“Eu gosto dessa ideia” Ele respirou fundo, passando a boca sobre o
colo dela, acariciando as nádegas com os dedos firmes. O membro grosso
dele estava rígido entre as pernas da deusa.
Perséfone levou a mão até a tatuagem dele. Os ponteiros iam de um
lado para o outro sob a camada de tinta negra.
Dessa vez, Hades deixou que ela tocasse a imagem e disse:
“É uma chave”
Ele colocou a mão quente sobre a dela, deixando-a ali.
“Para a prisão de Cronos.” Ela adivinhou. Hades apenas concordou.
“Por que você a carrega na pele?”
“Para que na próxima vez que ele pense em fugir, saiba que terá que
me matar primeiro”
Ela sentiu um calafrio correr pelo corpo. A deusa fez menção de se
afastar da tatuagem, mas ele a manteve ali, presa em seu toque.
“Não se preocupe, ele não vai fugir de novo”
“Essa não é minha preocupação.”
“E qual é?”
O coração dela batia forte no peito. Perséfone não encontrou as
palavras, mas sabia que havia uma liga de deuses e monstros que odiavam
Zeus como o líder do Olimpo e que gostariam que os titãs fossem instalados
como reis novamente. Isso significava que Hades era a primeira barreira
que eles teriam que enfrentar para libertar o titã.
“É por isso que você se isola?” ela perguntou, com a voz perdida na
garganta.
Hades pareceu notar aquilo.
“Essa é uma das muitas razões.”
“Deve ser solitário...”
Hades riu baixo, uma risada leve e gostosa. Ela franziu o cenho,
assistindo o entretenimento dele. Ele, mais uma vez, passou os dedos pelo
cabelo dela.
“Todos nós, deuses, somos solitários. Por isso há tantos bailes,
festas, bacanais...”
Perséfone apertou os olhos para ele em reação a última palavra. Ele
riu mais uma vez. A deusa tinha decidido que aquela versão dele que era sua
favorita.
“Não, minha deusa. Assim como não participo de bailes, não vou à
bacanais.”
“Por que não?” ela se pegou querendo saber, de repente, se
arrependendo em seguida.
Os dedos quentes dele desceram pela espinha dela, e toque sobre o
quadril se tornou uma massagem deliciosa. Hades levou os lábios até o
pescoço dela e subiu lentamente, tocando a parte sensível de sua orelha.
“Eu não compartilho. O que é meu, é meu” A voz dele era rouca e
resoluta.
Os dedos pararam a massagem e no segundo seguinte ele colocou-a
sobre seu membro rígido, abaixando os quadris dela com um só movimento
firme e intenso. Perséfone soltou um gemido alto. Ela fechou os olhos e
deixou a tumidez dele preencher todo aquele vazio dentro de si.
Perséfone desceu sobre a face dele e tomou seus lábios firmes e
quentes. Ele a aceitou, ávido, pegando-a pelo cabelo e trazendo-a mais para
si.
Quando ela se afastou, por um só segundo, sussurrou entre os lábios
dele:
“Eu sou sua”
Na primeira noite deles ela tinha se entregue completamente e tinha
dito aquelas mesmas palavras.
Hades se afastou para ver o rosto dela. Os olhos dele se
solidificaram em pedras firmes, da cor de corvos. O rosto dele era
impetuoso, feroz.
O deus se ergueu da banheira de repente, trazendo-a no colo, ainda
dentro dela. Ele deu longas e pesadas passadas até a cama e a deitou sobre
os lençóis de algodão.
“O que você faz comigo, deusa...” Ele rosnou baixo, saindo de
dentro dela apenas para que ela soltasse um silvo baixo.
O vazio que ele deixou a atingiu como um soco.
Hades então a pegou pelas coxas e a virou na cama com um
movimento brusco, descendo a mão firme pelas costas dela, grunhindo
quando puxou os quadris para os seus. Perséfone virou o rosto para encarar
o corpo dele, massivo.
O deus pegou o membro firme nas mãos e colocou sobre a entrada
dela.
Com um firme puxão, ele enfiou-se por inteiro dentro a deusa.
Perséfone soltou um arquejo pesado e ele deixou um silvo alto
escapar entredentes.
“Perfeita.” Ele rosnou. “Perfeita para mim.”
A deusa mordeu o lábio e o assistiu mover os quadris, enfiando o
membro duro ainda mais profundo dentro de seu centro quente. O prazer
era intenso e impetuoso, como as ondas lá fora, na praia daquela ilha.
Hades a puxou pelo queixo, erguendo-a para beijar seu pescoço,
investindo dentro dela sem parar. A deusa gemeu alto e recebeu a boca dele,
quente e doce.
“Você é minha!” O deus dos mortos sussurrou, resoluto.
Abrindo um sorriso, o prazer das estocadas dele a preencheu por
inteiro.
Perséfone soube que a tormenta estava mais próxima, o olho do
furacão agora se distanciava dali.
Ela era dele. Complemente dele.
E quando a tempestade chegasse, isso não mudaria.
CAPÍTULO XIX – O MONTE ETNA

H ades a deixou aproveitar a


água quente por longos
minutos depois de mais
uma vez voltarem para banheira. A banheira era grande demais para ela,
mas a deusa apreciou o espaço e o calor que envolvia sua pele e músculos.
Cansada, se viu caindo no sono. Não soube por quanto tempo ficou
ali, mas quando acordou estava de volta na cama, com lençóis ao redor do
corpo.
Piscando levemente, sentiu o toque dele sobre seu rosto. A deusa se
esticou em direção a ele e soltou um resmungo baixo. Hades riu.
Ela se espreguiçou sob os lençóis e viu que o deus estava
completamente vestido e segurava uma caneca nas mãos. Aquilo a fez
respirar fundo. Ela se perguntava se ele tinha dormido naquela noite...
Em silêncio, se ergueu sobre a cama e aceitou a caneca. Hades
caminhou pelo quarto e sentou-se sobre a grande mesa de carvalho no
canto, perto da lareira.
“Por quanto tempo dormi?”
“Algumas horas”
“Já é manhã?”
Ele concordou com a cabeça e pareceu finalizar o que estivera
fazendo, voltando até ela e se apoiando no dossel da cama.
“Precisamos sair do quarto ou Afrodite vai quebrar a porta a
qualquer momento” ele disse, com um tom de desaprovação.
Perséfone deu um longo gole no chá, olhando para ele por cima da
caneca, como se dissesse que aquilo parecia ser um problema dele, não
dela.
“Não tenho que voltar para o submundo? Achei que não podia voltar
para o mundo dos vivos durante o inverno”
“Estamos no submundo... no limiar, na verdade”
“Como assim?”
“Monte Etna é um dos lugares que ficam entre o submundo e o
mundo dos vivos. Aqui, por exemplo, é um dos lugares que há uma
passagem para o mundo inferior. A passagem que Orfeu usou para entrar em
meus reinos.”
Perséfone se lembrou de quando ouviu que Hefesto morava em
algum lugar secreto no submundo. Aquele lugar era a ilha.
“Há outros lugares assim?”
Hades concordou.
“Poucos.”
“Você vai me dizer quais são eles?” Ela ergueu uma sobrancelha,
curiosa com o mistério.
“Como deusa, você não precisa de entradas mortais para meu
reino... basta pedir minha permissão.”
“E se eu não quiser sua permissão?” Ela deu de ombros.
“Então, seis meses por ano é o bastante”
Bebendo mais um gole, ela apertou os olhos.
“Preciso de roupas.”
Hades olhou para o corpo dela, nu, parecendo discordar.
Os lençóis cobriram sua metade de baixo, mas os seios dela, cheios,
o convidavam para um toque. Os mamilos eram rosados como pêssego.
O olhar dele a deixava sem ar. Ela queria que ele viesse até ali e
colocasse os lábios sobre seus mamilos clamantes. Ele parecia querer o
mesmo. Apertando o dossel da cama com força, o deus então limpou a
garganta e deu um passo adiante.
“Se você insiste...”
“Não estou insistindo” ela riu, mordendo o lábio inferior.
Hades deu a mão para ela e ela lhe entregou a caneca vazia,
descendo da cama em seguida, segurando o lençol sobre o colo para evitar
que eles voltassem para a cama e só saíssem de lá no dia seguinte.
O deus caminhou pelo ambiente iluminado por velas e arrodeado
por tapeçarias. Ele fez um movimento com a mão e uma dessas tapeçarias
desapareceu e sobre a parede de pedras agora havia uma alcova onde vários
tipos de vestimenta estavam pendurados.
Perséfone foi até lá e franziu o cenho, pegando um dos vestidos nas
mãos. Era feito de seda e definitivamente não eram o estilo de Afrodite.
Aqueles eram vestidos como os que ela usava em seus palácios, mas mais
escuros. Enquanto em seus palácios havia muito rosa, amarelo e pastéis, os
vestidos dali tinham azul-marinho, verde-escuro e preto, muito preto.
A deusa se virou para Hades e o encarou. Ele estava encostado sobre
a mesa, bebendo aquilo que parecia ser hidromel.
“O que é isso?”
“Vestimentas”
“Você mandou fazê-las?” ela quis saber.
Ele ficou em silêncio, encarando-a.
O deus deu mais um gole no cálice que segurava e não disse nada.
“Hades”
Ele abaixou a bebida para assisti-la.
“Eu não sabia que você costurava seus próprios vestidos...”
“O quê?” Ela estava perplexa. “Como não...?”
“Eu vi você trabalhando em sua costura em seus palácios. E Trite e
Afrodite me disseram... não, me infernizaram.”
Perséfone o assistiu.
“O que mais você não sabia?”
“Que os únicos sapatos que você tem são aquelas botas de Hermes”
“No submundo.” ela o corrigiu, erguendo uma sobrancelha. “E eu
gosto das botas. Elas são confortáveis.”
Hades apertou os olhos, como se não gostasse nadinha do que ela
acabara de dizer. Ele olhou para a parede e fez outro movimento com a
mão.
Outra parte da alcova apareceu. O olhar da deusa caiu lá.
Sapatos. Das mesmas cores escuras que os vestidos, os sapatos
vinham em salto altos e baixos com delicados adereços de flores e rosas-
vermelhas sangue, e algumas botas confortáveis de couro.
“Qual o seu problema com pés descalços?” Ela se voltou para ele.
Hades vinha em sua direção.
“Nenhum. Só não quero que você se machuque” O deus pegou o
queixo dela e a beijou de leve. “Você não gosta dos vestidos?”
“Quem os fez?”
“Eu também tenho servos” ele a lembrou. A verdade era que Hades
provavelmente tinha mais ninfas a disposição do que ela.
“Obrigada” ela disse for fim, baixo.
“Não me agradeça, eu deveria ter sabido antes...” ele sussurrou,
beijando o ombro dela.
Ela levou a mão até o pescoço dele, sentindo-o passar os braços por
sua cintura por trás. A deusa respirou fundo. O aroma dele era inebriante,
esfumaçado com hidromel. Ela fechou os olhos e o inalou.
“Vou te dar alguns minutos de privacidade.” Ele sussurrou ao
ouvido dela. “Enquanto tento convencer a Afrodite que você continua
viva...”
Perse riu e sentiu, com pesar, o corpo dele se afastar do seu. Hades
desapareceu no ar no segundo seguinte.
A deusa olhou para as vestimentas a sua frente respirou fundo.
Ela escolheu um dos vestidos mais simples da coleção. Um de linho
cor azul-marinho que tinha mangas curtas e desciam pelo ombro com doces
detalhes bem-feitos de fios de ouro, e uma saia delicada que descia por seus
joelhos. Ela ignorou os sapatos mais requintados e pegou uma das botas
mais firmes. Ainda assim, a bota era forrada por pelo de urso e cabia
perfeitamente em seus pés. Não havia espelhos por ali, então ela só prendeu
os lados do cabelo em uma pequena trança, deixando as ondas longas
caírem sobre as costas.
Hades estava de volta no segundo que ela atou o último nó dos laços
das botas.
Ele chegou por trás e afastou os cabelos dela para deitar um beijo
em seu ombro mais uma vez.
“Minha deusa” Ele murmurou.
Os dedos dele, então, passaram de leve sobre o pescoço dela e ela
sentiu algo pesar em seu colo em seguida.
“O que...” Ela levou os dedos até lá, encontrando seu medalhão de
âmbar. Perséfone bufou, sentindo a mesma dor que sentira quando o
medalhão sumira de seu pescoço da última vez.
“Eu não podia deixá-lo com você naquele dia” Hades sussurrou para
ela, respondendo àquela pergunta invisível. Perséfone se virou para ficar de
frente a ele.
“Por que não?”
“Três razões. Primeira: O âmbar te levará onde eu estiver...” Aquilo
era o que ele tinha dito para ela quando caminharam pelas cerejeiras.
“Ainda posso te encontrar onde você estiver?” Ela levou a mão até o
medalhão, apertando-o nos dedos. Ele estava sério, como se soubesse que
dar a ela aquele poder fosse uma decisão tortuosa.
“Sim. No entanto, você não deve abusar desse poder, deusa.
Raramente estou em lugares onde eu gostaria que você estivesse. Mas, se
estiver em perigo, use o medalhão.”
A deusa se encostou sobre a parede e assistiu a expressão dele.
“A segunda?”
Ele umedeceu os lábios, como se preparasse para o que estava
prestes a dizer.
“Você gostaria de suas memórias de volta? As que tirei de você?”
Perséfone ficou em silêncio. Sua garganta ficou seca e ela voltou ao
momento em que Hécate lhe dissera que tudo tinha sido real.
“Eu não sei...” ela sussurrou, sinceramente.
“Você era jovem demais, Perséfone. E estava perdida. Eu não
deveria... ter me aproximado”
“Perdida?” Aquela parecia a palavra perfeita para definir o que ela
sentira naqueles primeiros seis meses. “Ainda assim, você não tinha direito
de tirar minhas memórias de mim.”
Hades apertou os olhos e pairou, altivo, a frente dela.
“Quando decidi que não era justo que você se lembrasse de mim...”
ele fez uma pausa sombria. “Eu as entreguei a você. Suas memórias sempre
estiveram com você”
“O quê?” ela franziu o cenho, a ficha caindo rapidamente em
seguida. Ela apertou o medalhão no peito. “Elas estão aqui”
Hades apenas balançou a cabeça.
“É por isso que eu me sentia tão emocionalmente apegada a ele” Ela
admirou o âmbar, vendo a rosa vermelha viva, uma prova de que estava no
submundo. “E por isso... o dei a você.”
A cabeça dele concordava com tudo o que ela dizia.
“Elas continuam aí, dentro do âmbar, guardando aquilo que sempre
foi seu” ele disse baixo, rouco.
“E se eu nunca quiser saber o que aconteceu?”
“É sua escolha”
Ela encarou o medalhão dourado e depois o rosto dele.
“Espera... Eu dei o medalhão a você como parte do acordo de
Eurídice”
“Sim, essa é a terceira razão. Eu não posso devolvê-lo a você, mas...
você pode cuidar dele para mim. Você faria isso?”
Ela abriu um pequeno sorriso, sem precisar responder à pergunta.
“Pronta?”
A deusa concordou.
“Linda” Hades murmurou, de repente, tocando o rosto dela.
Ele abaixou e roubou mais um beijo, deixando-a sem fôlego.

Os dois seguiram em direção à cozinha em silêncio. Hades foi a


frente, deixando-a alguns passos atrás. Logo, ela conseguiu ouvir vozes
entusiasmadas vindo do ambiente adiante.
Dando um passo em saída do corredor que dava para o quatro dele,
Perséfone engoliu em seco quando o entusiasmo das vozes morreu quando
entrou na cozinha.
A deusa estava esperando só Afrodite e Hefesto. No entanto, sobre a
mesa de ferro fundido estava não só o casal, mas também Trite e, para a
surpresa dela, Atena.
Afrodite se segurou para não dar uma risadinha quando viu a
expressão no olhar das duas. Elas pareciam completamente em choque.
Perséfone encontrou Hades através do ambiente, parecendo calmo e
tranquilo. Ele havia se recostado na parede vulcânica e parecia comer algo
que Hefesto tinha colocado sobre a mesa a frente das duas convidadas.
O olhar de Trite ia e vinha de Perséfone a Hades, de Hades a
Perséfone.
“Acho que finalmente pedi minha sanidade” A deusa ouviu Atena
sussurrar para si mesma.
Hades balançou a cabeça, desaprovando aquela reação, e Perséfone
seguiu até as duas, dando um abraço em Trite, que ainda não tinha palavras
para o que estava vendo. Hefesto veio até ela e sorriu delicadamente. Os
cabelos dele estavam especialmente espetados naquela manhã.
Ele puxou uma das cadeiras para ela e colocou um prato de comida
mortal a sua frente. Ovos mexidos, bacon crocante e pão de cerveja preta
com sementes. Perséfone olhou para o prato e se sentiu faminta. Ela levou
os ovos mexidos à boca e suspirou de prazer.
“Há quanto tempo você está aqui?” Atena quebrou o silêncio que
pesava pelo ambiente.
Hefesto e Afrodite voltaram à mesa. O ferreiro tomou a cadeira no
topo e Afrodite tomou a outra, ao oposto. Hades continuou em pé,
assistindo-os com uma curiosidade sombria.
Perséfone respirou fundo. Ela não sabia exatamente o que responder.
Poderia dizer a verdade, mas não tinha certeza se isso era algo que Hades
queria que ela fizesse.
“Ela passou a noite comigo” Hades disse então, de repente,
tranquilo.
O garfo de Trite caiu no prato. Atena voltou a encarar Perséfone
como se tivesse visto o sol e a lua colidirem.
“Você escolheu vir até aqui ou...” Trite perguntou, apertando a mão
dela com força.
Hades bufou atrás delas. Perséfone riu.
“Por que vocês estão tão surpresos? Não é como se eu não pudesse
ter um amante, ou o deus da morte não as tivesse...”
“Ele não as tem, no entanto... pelo menos não nas últimas duas
décadas” Hefesto comentou, cortando seu bacon devagar. Afrodite o
fuzilou, como se não pudesse sair dizendo aquelas coisas. O ferreiro ergueu
as mãos em defesa, rindo.
Duas décadas.
Perséfone voltou o olhar para Hades. Ele não parecia incomodado
com o comentário, pois era a verdade.
“O que isso significa... O que vocês significam?” Trite sussurrou
para ela.
“Nada” Perséfone disse ainda mais baixo, sentindo o olhar de todos
ali na expectativa de uma resposta. “Por que você está aqui?” ela mudou de
assunto.
“Há um problema com monstros lá fora e Poseidon quer que eu
desapareça pelos próximos meses, enquanto os deuses lidam com isso.” A
mortal disse, levando a mão para sobre o ventre que agora estava levemente
inchado. Os cabelos dela estavam presos e ela usava um longo vestido feito
de pequenas conchas do mar. “Poseidon acha que é a melhor maneira de
proteger nós dois”
“Mas ela não pode ficar aqui” Afrodite disse, de repente. “O monte
Etna só pode ser usado para permanências curtas...”
“E não pode ficar no Olimpo... por razões óbvias” Atena completou.
A deusa do conhecimento tinha seus cabelos sobre a face, mas sem cobrir a
cicatriz de guerra. Ela vestia seu uniforme militar, com várias medalhas
sobre o peito. Era cor pastel com listras vermelhas. “Ah, sim. Os doze
deuses têm uma reunião hoje para começar a planejar o ataque” ela falou,
séria, em resposta ao olhar de Perséfone em suas vestimentas.
A atenção da deusa da primavera então caiu sobre Hades, de
repente. Ela não precisava perguntar, sabia ele teria que ir também e se
envolver no que quer que estivesse acontecendo. Assim como Afrodite e
Hefesto. Os dois, no entanto, pareciam relaxados como se soubessem que
seus papéis nesse tipo de problema era ficar bem longe da ação.
“Poseidon já está lá... no Olimpo” Trite mencionou, já que sua
ausência era evidente. Isso queria dizer que Hades estava atrasado, já que
fazia parte dos três principais deuses. “Hades, seu irmão e eu estávamos
pensando que talvez...”
“Não. O submundo não é um lugar para mortais vivos.” Ele falou,
ríspido, sabendo exatamente o que ela iria pedir.
Perséfone olhou a expressão da amiga esmaecer. Ela tinha a
intenção de talvez tomar refúgio no submundo.
“Fique em meus palácios.” Perséfone disse, sincera. “O inverno é
cruel quando não estou lá, então você vai precisar de muitas camadas de
roupa... por isso poucas ninfas escolhem permanecer. Haverá algumas delas
para cuidar e proteger você, mas, em geral, estará vazio e seguro.”
Trite mordeu o lábio, pensando na ideia. Os palácios de Perséfone
eram de fato bem reclusos. E como era uma residência divina, haveria um
nível a mais de proteção.
“Acho que é uma boa ideia.” Trite disse, por fim. Ela olhou para
Atena, que concordou.
“Eu informarei Poseidon. Preciso ir, eles já estão a minha espera.”
Hades disse, firme. Ele encarou Perséfone à distância e disse: “Quando
estiver pronta, seu poder te levará a Asfódelos onde suas amigas lhe
esperam”
Ela concordou.
Hades fez um movimento em direção ao colo dela, como se
dissesse: Se estiver em perigo, sabe o que fazer.
Em seguida, ele desapareceu.
“Posso perguntar algo?” Perséfone quis saber, olhando para os
deuses ao redor da mesa. “Por que dizem que o deus dos mortos não tem
amigos?”
Afrodite riu.
“Ele não tem amigos”
Trite apertou a mão na dela e disse for fim:
“Ele tem uma família”
CAPÍTULO XX – SANGUE DIVINO

O barco de Caronte tinha


aportado em Asfódelos
naquela manhã e as novas
almas agora estavam sendo recebidas por Perséfone, Ariadne e o grupo de
mulheres. Aquele era o quinto barco naquela semana.
Eurídice encarou o grupo de almas a sua frente, procurando por ele,
procurando por Orfeu. Ela tinha recuperado suas memórias há um mês e
todos os dias acordava cedo e ia para o porto, na esperança de que ele não
estivesse entre as almas que chegavam ali.
Todos os dias, quando não o via, a garota conseguia respirar fundo.
Mais chalés estavam sendo construídos na vila e o salão, onde elas
recebiam as novas almas, estava cheio. Uma a uma, as almas que se sentiam
confortáveis em contar suas histórias, o faziam. Naquela manhã, Ariadne
contou sua história na tentativa de motivar outras.
“Ele era um herói e um príncipe. E quando o conheci, não tive
escolha a não ser me apaixonar. O nome dele era Perseu. Ele vinha das
belas terras em duna no Sudoeste e tinha a pele da cor da noite, os mais
belos olhos que eu já vira. Sua cidade era ameaçada pela fúria do Minotauro
há séculos e seus anciões faziam sacrifícios anuais para o monstro, tentando
garantir a segurança de todos. Quando ele me conheceu, pediu minha ajuda
para entrar no labirinto do Minotauro e guiá-lo para que ele matasse o
mostro, podendo liberar seu povo dos sacrifícios que tinham que fazer...”
“Por que ele pediu sua ajuda?” Uma das almas perguntou.
Perséfone e Eurídice passavam entre elas, entregando biscoitos de
manteiga e chá de narciso. A princesa respondeu:
“O Minotauro... era meu meio-irmão e não poderia me ferir no
mundo dos vivos.”
As almas soltaram um suspiro. Ariadne continuou.
“Quando Perseu finalmente matou o monstro, me levou consigo
para sua próxima jornada, confiante de que livraria outras cidades como a
dele de monstros com tais... Ele estava errado, no entanto. Quando o barco
zarpou, Teseu se transformou de um belo príncipe para um herói arrogante e
bêbado. E quando paramos em uma ilha próxima, ele tirou minha vida
enquanto eu dormia, após fazermos amor. Ele tinha a intenção de casar-se
com a princesa da cidade em que aportaria em seguida e não queria que eu
atrapalhasse”
“Eles são sempre assim” Uma das almas disse, uma garota de
quinze anos que tinha cabelos curtos. “Heróis... deuses. Eles usam o poder
para o benefício próprio, sempre ignorando outro.”
Perséfone parou onde estava e assistiu os olhares das almas sobre
seu rosto.
Assim que a garota notou tinha dito aquilo na frente de uma deusa,
abaixou a cabeça e sussurrou:
“Me perdoe, milady”
A deusa respirou fundo.
“Eu concordo com você, Maya.” Esse era o nome dela. Ela tivera
uma vida similar a Eurídice. Havia sido difícil e breve. Ela tinha morrido
após passar semanas sem achar comida para comer, vagando por uma
floresta sem fim, depois de rezar para cada um e todos os deuses. Eurídice
foi até a garota e encheu a caneca dela com mais chá.
O que Perséfone dissera era a verdade. Ela concordava plenamente
com o que a garota tinha dito. Os deuses eram mesquinhos e, podendo dar
mais aos mortais, eles os ignoravam.
Quando o dia terminou, as três subiram a colina em direção ao chalé
de Hermes, o qual havia passado por algumas mudanças nas últimas
semanas. Com a ajuda de algumas almas e o poder que Perséfone agora
tinha, eles haviam criado um andar a mais no chalé, onde ficava o quarto de
Ariadne e Eurídice. Já que elas se recusavam a voltar para seus próprios
chalés, Perséfone decidiu que precisavam fazer alguma coisa já que elas
não podiam continuar dormindo na cozinha.
As três cozinharam um jantar leve, com presuntos e alguns pães que
Perséfone havia aprendido a fazer recentemente. Juntas, elas comeram
enquanto comentavam sobre o dia, ao redor do fogo.
A noite caiu sobre o vale de almas e o céu cintilou com estrelas
brilhantes.
Eurídice e Ariadne já estavam dormindo quando Perséfone, ainda
acordada, assistiu uma sombra surgir em seu pomar, por entre a névoa da
madrugada.
Ela apertou o medalhão de âmbar ao peito, por um segundo,
achando que seria Hades, mas não era ele.
Hades não tinha vindo vê-la durante todo aquele mês. Parte dela se
sentia magoada por causa disso, outra parte acreditava que o que quer que
acontecia no mundo dos vivos, justificava sua ausência. Ela queria vê-lo,
desesperadamente, mas não podia deixar seus sentimentos tomá-la daquela
forma.
O problema era que a deusa tinha um pressentimento doloroso de
que Hades, em algum momento, desapareceria completamente de sua vida,
e ela tinha que se preparar para isso.
A sombra em seu pomar ficou ali, esperando por ela.
A noite estava fria. Perséfone calçou suas botas e vestiu o cardigã
mais quente que tinha, seguindo para seus jardins e então para entre as
árvores.
“Deusa da primavera” a voz disse, curioso. “Estive esperando o dia
que encontraria você”
Perséfone adentrou o pomar e sob uma das maiores árvores de romã,
lá estava ele. O deus a sua frente tinha cabelos brancos, mas não era velho.
Na aparência de mortais, ele teria vinte e cinco anos, talvez. Uma aparência
levemente mais velha que a dela, que agora tinha vinte e dois.
“Sou Ares” O deus da guerra. “Filho de Zeus”
Perséfone sentiu um calafrio correr pela espinha. Ela fez uma longa
mesura para ele, afinal, Ares era um príncipe. Depois de Hefesto, ele era o
segundo filho legitimo de Zeus com sua esposa, Hera.
O deus vestia uma armadura de couro com um manto feito de pele
de animal sobre os ombros. Assim como Atena e Hefesto, ele também tinha
visíveis cicatrizes no rosto. As suas, no entanto, eram grosseiras e duas
delas cortavam seus olhos. Perséfone percebeu que os três, apesar de
diferentes um do outro, tinham a mesma aura. Poderosa, calma e...
vingativa.
“A que devo sua honra, milorde?” Ela disse, baixo, apertando o
âmbar entre os dedos.
“Você não está em perigo” O deus falou, assistindo o toque dela ao
medalhão.
Perséfone deu um passo para trás, surpresa que ele soubesse o que o
medalhão continha. Ares riu.
“Consigo sentir o poder de meu tio sobre você à distância... E essa é
uma das razões pela qual estou aqui.” O deus da guerra fez uma pausa. “Há
um conflito vindo. Um conflito divino. E você será a causa desse conflito.
Eu vim aqui para te dar um presente, deusa.” Ares tirou uma adaga de entre
sua capa e ergueu-a para ela.
Perséfone encarou a arma. Era feita de metal e tinha pequenos rubis
encrostados no cabo.
“Por que está me oferecendo essa arma?”
“Porque é parte de sua profecia. E quando o dia chegar, você saberá
usá-la. Essa não é uma arma normal, deusa. Não é como nenhuma que você
jamais viu ou virá. Assim como você, ela tem um propósito.” ele falou,
sombrio. “Hades e sua mãe já sabem o seu futuro, mas talvez com a ajuda
disso você possa escrever seu próprio destino.”
Perséfone sabia que não deveria aceitar a adaga, mas algo no objeto
a atraia. Ela foi até ele e encarou-o nos olhos através de suas cicatrizes.
“Como saberei que isso não é uma armadilha?”
“Sou o deus da guerra, milady. Não de trapaças. Esse é o papel de
seu amigo, Hermes.”
Perséfone pegou a adaga na mão, sentindo seu peso. Era leve e cabia
perfeitamente em sua palma.
“A única coisa que posso levar para o mundo dos vivos é o
medalhão” Perse pensou alto.
Ares apenas ergueu uma sobrancelha.
“Quando a hora chegar” o deus sussurrou, desaparecendo a frente
dela. “A adaga virá até você. Então, use-a”
Encarando as sombras no segundo seguinte, a deusa revirou a adaga
nas mãos. Havia algo naquele objeto que era antigo e fatal.
Perséfone voltou para seus aposentos pequenos e deixou a arma ali,
escondida entre os lençóis. Se Ares agora estava livre para pagar visitas, a
deusa imaginou que o conflito com os monstros tinha finalizado. Isso
significava uma coisa.
A deusa então encarou o horizonte e pegou o âmbar nas mãos,
sussurrando o nome dele.
“Hades”
Quando abriu os olhos, se viu entre paredes cinzas e nuas, rústicas.
Havia pouca luz no ambiente. Ela olhou ao redor, tentando enxergar pela
escuridão, pois estava a meio de um corredor esguio e escuro. Mais a frente
havia uma janela pequena. Ela caminhou até lá e pelo espaço, viu o mar
violento do lado de fora lutando contra uma tempestade que assolava as
águas e as paredes do castelo.
Então, soube onde estava.
Onde ela e Hades tiveram seu primeiro beijo... que ela se lembrava.
Aquele era o Castelo das Tempestades.
Ela ouviu um rugido de dor vir de outro ambiente. Uma porta se
escancarou de repente e uma ninfa saiu de lá com pressa, segurando uma
bandeja de prata com alguns panos ensanguentados.
Ela sabia, pela cor do sangue, que era de Hades. Apenas três deuses
tinham sangue dourado, os descendentes direto dos Titãs. Poseidon, Zeus e
Hades.
O coração da deusa pulou uma batida.
A ninfa passou por ela devagar, sem estranhar sua presença ali, e fez
uma longa mesura. Perséfone fez uma vela aparecer na mão e seguiu até a
porta aberta.
Parando sobre o batente, a deusa encontrou Hades sentado em uma
cadeira a frente da lareira. Outra ninfa estava ali e tinha agulha e fio de ouro
na mão, na tentativa de conter o grande corte que ele tinha no braço. Sangue
escorria pela pele dele, dourado como ouro.
Hades levantou o olhar para encontrar o dela. Ele balançou a cabeça,
imediatamente.
“Você não deveria estar aqui, volte para Asfódelos” Ele pediu, com
o olhar sombrio e cansado.
Hades estava com o peito nu, e suas calças estavam surradas. A
espada dele se encontrava no chão, coberta de sangue vermelho. O sangue
de monstros.
Perséfone respirou fundo e caminhou para mais perto dele e da
ninfa, que parecia ter feito aquilo um milhão de vezes.
“Você pode ir” ela comandou à garota.
Dela, pegou a agulha e o fio de ouro, deixando-os de lado em uma
mesinha de carvalho junto ao seu candelabro. A ninfa não disse nada,
apenas fez uma mesura e saiu do ambiente, fechando a porta atrás de si.
Hades a seguiu com o olhar quando a deusa buscou uma pequena
bacia com água e um pano de linho seco. Ela molhou o pano e foi até ele.
Seus olhos se encontraram.
“O que aconteceu?”
“Os monstros... Eles estão atacando os mortais como nunca”
Perséfone respirou fundo. Agora fazia sentido porque eles estavam
recebendo novas almas em Asfódelos quase todos os dias.
Ela passou o pano úmido por sobre o braço dele, limpando o sangue
que estava ali, gentilmente. Hades a assistiu e puxou o braço dela com
força, grunhindo de dor.
“Volte para o chalé”
“Não” ela falou, resoluta.
Poucos deuses possuíam o poder da cura. Além dos três mais
poderosos, Apolo era um deles, por exemplo. O problema com esse poder
era que ele não funcionava contra si mesmo, então Hades não poderia se
salvar caso fosse mortalmente ferido.
O que poucos sabiam, no entanto, era que Perséfone também tinha
esse dom. Ela tinha aprendido com a mãe quando ainda era criança. O dom
era mais um aprendizado do que qualquer coisa. No entanto, poucos deuses
tinham paciência e tempo a perder aprendendo-o, especialmente quando
viviam em paz.
A deusa nunca tivera chance de usá-lo, então não sabia se
funcionaria.
Quando limpou o sangue, olhou para o ferimento dele. Era grande e
profundo.
“Fique quieto, a última vez que fiz isso foi há anos...”
Ela respirou fundo e encarou o corte, passando seus dedos lá.
“Perséfone” Hades rugiu de dor, apertando a mão sobre o braço
dela com força.
O corte, então, lentamente, começou a se fechar e fechar. Quando a
deusa terminou, só havia um risco sobre a pele. Não estava completamente
sarado, mas o sangue não jorrava mais.
Ela puxou o braço das mãos de ferro dele e voltou à mesa, pegando
mais um pedaço de linho, rasgando-o com os dentes e enrolando-o sobre o
ferimento que restava.
Hades tinha os olhos fechados, o rosto contorcido por violência. Ele
então ergueu o queixo e encostou a cabeça sobre a cadeira, assistindo-a
buscar um copo da mesma bebida que ele bebera a última vez que estiveram
ali.
Perséfone colocou o rum em um cálice de prata e levou até ele.
“Aqui”
A sombra do fogo tocava o rosto exuberante dela. Seus lábios, como
pêssegos, como seiva de verão, estavam levemente afastados. Os olhos cor
de âmbar tão resolutos como nunca. Hades se pegou admirando-a. Nunca,
em toda sua existência, tinha visto alguém como a deusa que agora saber
ser sua.
Lentamente, ele levou os dedos quentes até a mão dela e aceitou a
bebida.
“Eu te disse para usar o medalhão somente quando...”
Perséfone se afastou dele e sentou-se na cadeira ao lado, a frente da
lareira.
“Eu conheci Ares.”
O olhar de Hades se endureceu.
“O que ele queria?”
A deusa pensou em contar a verdade para ele, mas não o fez. Hades
também guardava segredos e provavelmente mentia para ela, então ela
achou que era justo fazer o mesmo.
“Kore” ele sussurrou quando percebeu que ela não lhe daria uma
resposta.
“Após desaparecer por um mês sem explicação, você perde o direito
de me chamar assim” ela sibilou.
“Eu estava em batalha”
“Por que não mandou Hermes?”
“Eu não o quero perto de você”
Perséfone fechou os olhos. Deuses. Eles eram iguais. Possessivos e
arrogantes. Ela sentiu os dedos quentes dele alcançarem os seus.
“Eu senti sua falta” a voz dele a alcançou.
Perséfone encontrou o rosto dele em seguida. Ainda severo, austero.
Ela assistiu seus dedos se enlaçarem sob a luz do fogo. Borboletas
esticaram as asas em seu âmago. O que ele fazia com ela era poderoso. A
deusa era incapaz de se sentir assim com qualquer outro alguém.
“Esse castelo é outro lugar no limiar do submundo, não é?”
“Sim. Mais próximo do mundo inferior, no entanto. São poucos os
mortais que conseguem encontrá-lo, pois é possível caminhar até Asfódelos
daqui.”
“A batalha acabou?”
Ele concordou.
“Os monstros recuaram, mas voltarão em breve”
A deusa assistiu às chamas e então o rosto dele. Os dedos quentes do
deus se enlaçaram ainda mais nos seus.
“Vem aqui, Perséfone” Hades comandou, baixo.
Ela hesitou, encarando os olhos sombrios dele. Se erguendo, foi até
lá, ficando em pé a frente dele, entre suas pernas fortes. Hades levou as
mãos até a cintura dela, o olhar coberto por malícia.
“Eu não vim aqui para isso” ela disse, séria.
“Hm. Então, qual foi a razão?”
Os dedos dele abaixaram para os quadris dela. Perséfone estava
prestes a tirar as mãos dele de si quando ele a puxou para que ela se
sentasse em seu colo.
A deusa não podia deixar-se distrair. Os dedos dele subiram por sua
coluna, parando sobre a nuca. Hades trouxe-a para si. O aroma de fumaça
dele agora estava misturado a sangue divino, o qual tinha um cheiro
interessante. Era quase doce como uma fruta madura e ainda assim amargo
como ferrugem. Ele passou os lábios por sobre os ombros dela.
“Eu quero saber quem você é”
Hades riu.
“Você já me conhece”
“Não” ela pegou o rosto dele entre os dedos. “Eu não quero
conhecer o deus. Eu quero conhecer o homem que olha para mim assim. O
homem que não teve amantes por décadas, o soldado, o tio, o irmão...”
“Não há nada o que dizer” Ele sussurrou, tocando o queixo dela.
“Por que você se esconde dentro de si mesmo?”
Hades suspirou, sabendo que ela não iria desistir. Ele acariciou o
rosto dela, tocando seus cabelos longos e cobertos por ondas.
“Te darei três perguntas, deusa... e três perguntas apenas”
“Me fale sobre Cronos... seu pai”
“Isso não é uma pergunta” ele ergueu a sobrancelha. Perséfone
parou um segundo e então falou:
“Como conheceu minha mãe?”
Hades franziu o cenho e então soube o que ela queria saber. Ele
balançou a cabeça, fazendo uma expressão de desaprovação. Aquilo não era
o tipo de informação que era disponível para todos. Ele sabia exatamente de
onde tinha vindo.
“Aquele deus traiçoeiro...” ele grunhiu baixo.
Perséfone se ajustou sobre o colo dele e ele puxou o vestido dela
para cima, repousando a palma quente sobre a pele dela.
“Então...?”
Hades encostou a nuca no encosto da cadeira e disse, com um olhar
vazio:
“Deméter era uma ninfa da natureza na época. Ela era nova, ainda
na adolescência quando a conheci. Eu não era nada mais do que uma
criança. Minha mãe, Rea, pediu ajuda das ninfas para se esconder de
Cronos. Nós tínhamos caminhado pelas florestas densas de Gaia por pelo
menos três meses, sem comida, sem água. Se não fossemos deuses já
estaríamos mortos. Então, certo dia, minha mãe encontrou a sua e ela nos
levou para uma caverna que ficava distante, escondida de tudo o que se
conhecia. Cronos não nos encontraria lá. Ela salvou minha vida e a vida de
meus irmãos. E foi assim que a conheci”
“Por que vocês estavam fugindo?”
Uma sombra cruzou o olhar escuro dele.
“Eu tinha sete irmãos.” Hades admitiu. “Cronos comeu os mais
novos e nos fez assistir.”
Perséfone colocou a mão no peito dele, sem conseguir afastar o
susto e horror de sua face.
“Eu te disse que ir atrás de histórias antigas era um erro” ele tocou a
face dela delicadamente. E então, continuou: “Havia uma profecia... de que
um dos filhos dele o mataria e roubaria seu trono, então ele fez questão de
mostrar aos filhos mais velhos, Zeus, Poseidon e eu, o que aconteceria caso
seguíssemos a profecia. Minha mãe lutou contra ele, mas ela não era forte o
bastante. Ele... batia nela, constantemente. E em meus irmãos. Essa é uma
das razões por que Zeus me odeia. Eu era o favorito de Cronos... o mais
parecido com ele.”
Perséfone tocou o rosto do deus. Ela duvidava daquilo. A cada dia
que Hades se abria com ela, a deusa descobria uma camada de ternura
dentro do deus dos mortos.
“Cronos nos encontrou, eventualmente. O tempo tinha passado e nós
crescemos, ficamos mais poderosos. Zeus era o mais velho e conseguiu
derrotá-lo, exilando-o para o mundo inferior, onde eu seria rei. Seria minha
responsabilidade manter nosso pai preso.”
“O que aconteceu com Rea?”
“Minha mãe morreu no dia em que Cronos nos encontrou. Na idade
de mortais, eu teria apenas doze anos.” ele falou, com a voz pesada.
Perséfone sentiu seu coração se espremer. Ela abaixou os lábios e
tocou os dele. A mão de Hades acariciou a pele suave das coxas dela.
“Aquela noite... na nossa primeira noite. Com o que você sonhava?”
Hades se afastou e enfiou os dedos entre os cabelos da deusa, sua
outra mão subindo pela coxa fervente dela.
“Três perguntas apenas, minha deusa.” Ele abriu um sorriso.
Perséfone se aquiesceu sobre ele, sentindo a mão quente e firme do
deus encontrar o centro entre suas pernas.
“Me diga o que você o quer” Hades mordeu o lábio dela, o hálito
doce, sabor de rum, sobre sua boca.
“Você”
“Diga que não consegue parar de pensar em mim quando não estou
com você... diga que sente um vazio quando não estou dentro de você.”
Perséfone umedeceu os lábios secos.
“Eu... Sim” ela respirou fundo.
Hades enfiou dois dedos dentro dela. Perséfone estava
completamente encharcada entre as pernas. Seus lábios lá embaixo estavam
inchados, clamantes por ele.
“Minha deusa” ele disse rouco, descendo sobre a boca dela como a
tempestade lá fora descia sobre o mar, violentamente.
Ele a beijou sofregamente, colocando a língua dentro dela e a
puxando pelos cabelos para mais perto. Perséfone enfiou as unhas na pele
dele, soltando um gemido baixo quando ele enfiou um terceiro dedo dentro
de si. Ela soltou um gemido alto, chegando ao ápice assim, de repente e
com força.
Respirando fundo, a deusa se afastou para ver a expressão de
satisfação na face dele. Ela deu um pequeno sorriso e afastou a mão dele de
dentro de si.
Hades a assistiu descer de seu colo e ficar em pé.
Enquanto a assistia, ele levou os dedos que estiveram um segundo
atrás dentro dela até os lábios e enfiou-os na boca, com uma expressão
selvagem.
“Doce” ele rosnou, predador. “Volte aqui.”
Perséfone fez que não com o queixo e levou a mão até o nó do
vestido, desfazendo-o lentamente. Ela olhou para o quadril dele e notou que
o centro da calça estava completamente cheio, tensionada pelo membro
rígido.
“Eu posso fazer isso melhor do que você” Hades brincou, se
ajeitando na cadeira para acomodar seu membro inchado entre as pernas.
O vestido deslizou sobre o corpo dela, deixando-a completamente
nua.
Hades tomou um segundo para admirá-la, mais uma vez. Os cabelos
cor de mel de Perséfone caiam sobre os ombros, descendo em cascatas ao
redor dos quadris. Ela tinha uma cintura fina e a pele macia, cor de leite. A
silhueta dela era como um violão. Os seios firmes e inchados pareciam
maduros, com mamilos cor de fruta. Hades queria colocá-los na boca.
Essa não era a intenção dela, no entanto.
Perséfone se ajoelhou sob ele.
“Hm” O olhar do deus escureceu, completamente tomado por
luxúria.
Ela foi até ele e deslizou lentamente as mãos sobre as coxas firmes.
O deus dos mortos soltou um silvo rouco quando ela encontrou seu
membro, não demorando para desfazer os botões da calça e deixando-o
pular para fora.
Perséfone agarrou o membro grande dele com um toque quente,
gentil, sentindo o calor do olhar dele sobre sua face.
Hades então pegou a base do membro nas mãos e segurando-a pelos
cabelos, a guiou até lá, roçando a cabeça de seu sexo rijo nos lábios dela.
“Abra seus lábios doces, minha deusa” Pela expressão dele,
Perséfone sabia que ele não seria gentil. Lentamente, ela o fez, observando-
o. “Mais... assim.”
Perséfone colocou a língua para fora e o devorou em seguida.
Hades gemeu, fechando os olhos e sentindo os lábios de veludo dela
descerem e subirem por sobre ele, deliciosamente.
Os gemidos do deus ficaram altos conforme ela subia e descia sobre
ele mais rápido.
“Deuses...” Ele tentou afastá-la, mas Perséfone apertou as mãos nas
coxas dele e enfiou-o para mais profundo na garganta, indo e voltando. Ela
tinha lágrimas nos olhos, mas não parou. “Eu vou goz... Kore” ele rosnou
quando chegou ao ápice com força, empurrando os quadris para cima para
enfiar-se ainda mais profundo em sua garganta, despejando-se inteiro na
boca dela.
Perséfone sentiu o sabor dele preencher sua língua. Salgado e
grosso. Ela engoliu tudo, lambendo-o até que não restasse mais nada.
Quando a deusa olhou para cima, viu o peito dele subir e descer em
uma respiração pesada. Hades tocou o queixo dela.
“Deusa gulosa”
Ela riu, se erguendo e subindo sobre ele. Ele a pegou pela cintura e
colocou o membro dentro dela, fazendo-a arquear baixo.
Ela achou ter ouvido altos trovões explodirem ao redor do castelo,
mas era apenas eles e o som de seus corpos. Perséfone o beijou com força,
querendo que aquela tormenta ficasse ali, para sempre.
Hades tomou a fúria dela, ao mesmo tempo, aceitando sua
tempestade.
CAPÍTULO XXI – A PROFECIA

E le estava mais uma vez tendo


um pesadelo. A madrugada
se erguia nos céus, a pouca
luz do amanhecer cortando as nuvens pesadas deixadas pela tempestade da
noite anterior.
Perséfone despertou com o grunhido violento dele. Pela claridade da
lareira que havia virado cinza e a janela no meio da parede, ela assistiu ao
rosto dele contorcido de dor e raiva.
Ela não sabia o que fazer. Na última vez, tinha tocado nele e
concordava que não havia sido sua melhor decisão.
“Hades?” ela tentou, calma.
Uma fina camada de suor cobria o cenho e o peito dele.
A voz dela pareceu ter um impacto, pois a expressão do deus se
suavizou levemente.
Ele então piscou, acordando devagar, virando a face para encontrá-
la. Ele passou a mão sobre os olhos, tomando um longo lufo de ar.
“Toque-me, por favor” A voz dele era nada mais do que um
murmúrio.
Perséfone atendeu ao pedido.
Ela se aproximou e colocou o rosto sobre o peito musculoso dele, as
mãos em seu abdômen firme. Ele mergulhou o rosto nos cabelos dela e
ficou ali, em silêncio, por alguns minutos. O quarto estava levemente frio
por falta do fogo da lareira e do vento pós-chuva que vinha da janela.
Hades buscou uma coberta feita de lã e cobriu a pele nua dela,
fazendo-a se aninhar ainda mais em seu corpo.
“Você tem pesadelos todas as noites?” Ela quis saber, baixinho.
“Não. Eu não costumo dormir todas as noites... passo a maioria
delas no tártaro.”
Perséfone bufou.
“Você vai me dizer com o que sonha?”
“Não são sonhos” O deus respondeu aos cabelos dela, inalando seu
aroma. Perséfone cheirava a lavanda. “São memórias”
Ela sabia que ele não diria mais nada além daquilo, mas imaginou se
eram as memórias de sua infância... de seus irmãos, sendo engolidos vivos
pelo titã Cronos. Ou da morte de sua mãe.
“Como estão suas amigas?”
Perséfone franziu o cenho, virando-se para encará-lo. Ele abriu um
sorriso.
“Eu me importo” Ele sussurrou. “Fiquei sabendo de uma construção
no chalé...”
“Então, você me vigiou, mas não pode me mandar um bilhete
dizendo que a luta contra os monstros no mundo mortal iria demorar
algumas semanas?”
“Sua fúria me deixa duro...” Hades tocou a face dela, divertido.
Perséfone revirou os olhos. “Fiquei sabendo quando cheguei aqui mais
cedo. Foi a primeira coisa que quis saber... o que você tinha feito nos
últimos dias.”
“E se eu tivesse encontrado outro amante?”
“Entre as almas?”
“Por que não?”
O peito dele reverberou em uma risada deliciosa.
“Essa alma sortuda teria uma existência horrenda, posso te garantir”
Ele tinha um sorrisinho no rosto, mas sua fala era sombria. “Por que
precisou construir mais quartos no chalé? Suas amigas possuem chalés em
Asfódelos. Todas as almas possuem seu próprio lar e é onde deveriam
estar.”
Ela deu de ombros.
“Gostamos da companhia uma da outra. Eu não quero que elas se
vão e elas querem ficar comigo...”
“Se companhia é o problema, você poderia morar no palácio real...
comigo. É o lugar mais seguro do submundo. Suas amigas são bem-
vindas.”
Foi a vez de Perséfone de soltar uma risada.
“Acho que não é uma boa ideia. Definitivamente não ajudaria na
situação de Zeus nos vigiando.”
“Podemos dar um jeito nisso. Hefesto pode criar uma proteção sobre
alguns aposentos...” Sob o cobertor de lã, o deus acariciava os seios dela.
Ela franziu o cenho e negou com a cabeça.
“Não é uma boa ideia, Hades.”
“Explique”
“Não sou sua concubina... ou esposa. Não faz sentido.”
“Você poderia ser” ele disse, calmo.
“Concubina ou esposa?”
Hades olhou para ela, sério. Seus olhos negros estavam suaves,
presentes. A expressão dele e aquela ideia a deixou sem ar. O deus abaixou
os lábios para encontrar os dela, deixando a pergunta em aberto.
“Você lê as cartas que as almas de Asfódelos queimam, no primeiro
dia do inverno?”
O deus pareceu um tanto infeliz pela forma como ela mudou de
assunto tão rapidamente.
“Todas elas”
“Todas?” Perséfone se surpreendeu. Hades concordou.
“A maioria são pedidos impossíveis, pedidos para voltarem ao
mundo dos vivos, para viverem uma vida excepcional e ter a chance de ir
até o Elísio. Algumas, no entanto, são atendidas, pois são pedidos simples,
aceitáveis.”
“Como o quê?”
“Que a família ou pessoa que deixaram no mundo dos vivos tenha o
que comer ou que não passem frio no inverno”
Perséfone deixou o queixo cair.
“Achei que você era o deus mais cruel”
“Eu não faço nada.” ele ergueu uma sobrancelha. “Meus servos que
o fazem”
A deusa balançou a cabeça, passando os dedos no queixo dele,
maravilhada. Mais uma camada removida. O deus não precisava admitir,
mas ela via bondade em seu coração.
“Eu tenho uma curiosidade. Nunca entendi por que quando cheguei
no submundo fui enviada à Asfódelos. No início, imaginei que iria para o
Elísio, afinal, sou uma deusa.”
“Essa foi uma decisão minha” Perséfone franziu o cenho. Hades
explicou: “Minha residência principal no submundo é o Palácio das Almas
Perdidas, apesar de ocasionalmente ficar no Palácio de Espelhos, no Elísio.
Se você estivesse em Asfódelos, eu poderia manter você perto de mim e
assim evitar que causasse problemas com as almas”
Ela riu. Hades brincou com o cabelo dela.
“Há alguma coisa que eu poderia fazer para fazer sua vida no
submundo mais suportável?”
“Não desaparecer” A deusa murmurou.
“Não posso prometer isso”
“Então, não”
Ela se aninhou ainda mais sobre peito dele, sentindo o calor de sua
pele. Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, só a respiração deles
preenchendo o ambiente. Eles assistiram o amanhecer se erguer nos céus.
Perséfone lutava contra o sono, pois não queria que ele não estivesse ali
quando acordasse.
Hades pegou a mão dela nas suas e beijou o topo de sua cabeça,
apertando-a contra seu corpo quente.
“Durma, minha deusa”
E, apesar de relutante, o calor do corpo dele, seu toque delicado e
aroma de sua pele fizeram com que ela deslizasse em um sono profundo,
pela primeira vez em meses.

Mais uma vez, ela acordara e ele não estava lá.


Ninfas haviam preparado um banho quente e roupas para ela, além
de trançarem seus longos cabelos. Com uma caneca de chá quente de
narciso, ela seguiu as garotas em direção aos estábulos, onde Hades estivera
naquelas últimas horas.
A tempestade tinha se ido, mas assim que a deusa colocou os pés
fora do castelo, assistiu ao mar violento explodir sobre a praia de pedras
cobertas por alga. Era o mesmo mar que assolava a ilha Etna. Um mar que
não era normal, nem divino. Perséfone, na verdade, teve a impressão de que
não de fato um mar, mas sim o Aqueronte. O rio da dor, que levava alguns
mortais chegarem até ali, no limiar da morte.
Ela olhou para cima, admirando a grande fortaleza. O castelo era
enorme, com largas torres ameaçadoras. Manchas escuras tomavam essas
torres, como se fossem sombras vivas. Elas escorregavam pelas paredes,
deslizantes, ameaçadoras, e delas a deusa ouvia sussurros. Eram ninfas da
natureza morta, ninfas que comandavam o tempo e o clima do submundo.
Um tanto assustada e maravilhada, a deusa abandonou as torres,
sendo conduzida pelas servas de Hades por uma trilha de vegetação alta,
seca, até que ela viu o primeiro dos cavalos dele.
Ela também ouviu um latido e soube que Cérbero estava ali. O
animal veio correndo até ela, lambendo seus dedos quando o acariciou na
cabeça. As ninfas fizeram uma mesura e se foram no segundo seguinte.
O cachorro infernal guiou-a até seu mestre. A frente dos estábulos
havia um grande pessegueiro e sob ela, outro cavalo descansava, fugindo do
sol do meio-dia.
Hades encontrou-a ali, admirando o cavalo. Ela havia aprendido a
cavalgar quando era criança. A verdade era que a Perséfone tinha sido
treinada em tudo que uma deusa deveria ser treinada. Dança, andar a
cavalo, pintura, piano, esgrima.
“Esse é Alastor” A voz rouca dele se aproximou, se referindo ao
cavalo que ela passava a mão. Ele trazia outros dois cavalos pelas rédeas.
“Esses são Orfaneus e Aeton... O que você viu pastando mais a frente é meu
favorito, Nicteus.”
Perséfone ergueu seu olhar para ver Nicteus, trotando à distância.
Todos os cavalos eram negros, mas os outros três tinham detalhes brancos
na crina, ao contrário de Nicteus.
“Eles são lindos” Ela falou, sincera. Perséfone amava animais.
Desejava passar mais tempo com eles ou até mesmo ter um de estimação,
mas com sua vida dividida entre o mundo dos vivos e dos mortos, sabia que
não seria justo como o animal.
Hades deixou os cavalos que trazia próximos ao pessegueiro e veio
até ela. Ele usava preto de pé a cabeça, com aquela jaqueta de couro sobre
os ombros e luvas de montar nas mãos. Ele a puxou pela cintura e a beijou
longamente.
“Minha deusa”
Ela se afastou um pouco e abriu um sorriso para ele. Hades assistiu
ao olhar de âmbar dela suavizar com sua presença.
“Cavalga comigo até o Palácio”
Perséfone franziu o cenho, pensando em como isso seria possível e
então lembrou-se que ele havia dito que poderiam caminhar até Asfódelos
dali. Concordou com o queixo.
Hades buscou Alastor enquanto, sem nenhuma instrução, Nicteus se
aproximou sabendo que seu mestre precisava dele. Selas de montaria
apareceram sobre o flanco dos animais no segundo seguinte.
Hades veio até ela e a pegou pela cintura, facilmente levantando-a
para cima do cavalo. Perséfone ajustou as saias e assistiu quando ele pulou
sobre Nicteus. Foi um movimento experiente e um tanto sensual. A deusa se
pegou mordendo o lábio inferior. Hades abriu um sorriso, notando o olhar
que ela lhe dava.
“Uma corrida, milady?”
Ela riu.
“Você vai perder, milorde”
O olhar dele se preencheu de divertimento.
“Você percebe que esses são os meus cavalos?”
“Nós poderíamos fazer uma aposta. E, então, eles seriam meus.” Ela
ergueu uma sobrancelha, desafiante.
Hades soltou uma gargalhada gostosa e assistiu quando ela esporou
o animal, o qual cavalgou ferozmente adiante pelo campo, a trança dela
ricochetando ao vento.

O deus deu outra risada quando ajudou-a descer do cavalo,


assistindo à expressão de desaprovação ela. Hades, no fim das contas, havia
ganhado a corrida e ela estava certa de que ele tinha trapaceado, mas não
sabia como.
Ninfas vieram até eles e levaram os cavalos para dentro do castelo.
Perséfone afastou a trança de sobre os ombros e os dois caminharam
lado a lado pela ponte sobre o Lete, aparecendo em seguida nos jardins
dele.
A primeira coisa que Perséfone viu foi a macieira, a dama. No dia
anterior, a macieira estava completamente seca, quase morta. Naquele dia,
no entanto, alguns galhos pareciam vivos, com folhas verdes aqui e ali.
“Essa árvore é estranha. Por que você quis que eu a salvasse, aliás?”
“Eu nunca te pedi isso” ele falou, caminhando pela horta. Ele
entregou as luvas para Hipno, que estava ali a sua espera. As almas ao redor
deles, que trabalhavam no jardim, faziam mesura conforme eles passavam.
“Você pediu que eu cuidasse dela”
Semântica.
Hades concordou, os dois caminharam até lá.
“Por quê?”
O deus ergueu uma mão em direção as folhas secas e então uma
maçã vermelha como sangue apareceu entre seus dedos.
“A árvore está conectada a mim. Sente o que eu sinto. Eu sabia que
se você ficasse perto dela, eu sentiria você. E saberia que estaria protegida,
dentro do palácio”
Ele ofereceu a maçã a ela. A fruta era completamente perfeita.
“Obrigada” ela murmurou. “Então, quando tentei revivê-la...”
“Só há uma forma de revivê-la completamente. E temo que seja
impossível.”
Perséfone pensou no que ele queria dizer. Quando encontrou a
macieira quase morta, foi depois de ele tê-la levado ao Tártaro. Quando
ficaram separados. Agora, a árvore tinha alguns brotos verdes, cobertos por
seiva. Ela acreditava que isso significava que ele estava... feliz?
Hipno então chegou perto deles e encarou Hades.
“Me dê um minuto” ele sussurrou para a deusa, indo até ela e
tocando seus dedos com leveza, se afastando em seguida.
Perséfone olhou ao redor, notando que não muito tinha mudado,
almas cuidavam da horta e aguavam as flores. Muitas kores permeavam o
ambiente, uma lembrança vívida da paixão que ela sentia pelo deus dos
mortos. Suas ferramentas ainda estavam ali, ao lado da árvore, dentro do
baú de couro.
Ela voltou o olhar para Hades e notou que o que quer que Hipno
dizia, não parecia ser bom. A face dele estava contorcida em uma expressão
severa. Pelos lábios do deus do sono, Perse conseguiu captar uma só
palavra. Deméter.
Hipno então fez uma mesura e se afastou. Hades caminhou até ela,
decidido.
“O que está acontecendo? Minha mãe está aqui?”
“Se eu pedir que você fique aqui no palácio, comigo, você ficaria?”
“Onde está ela?”
Perséfone tinha esperado meses por uma oportunidade de falar com
a mãe, e dessa vez não iria deixar que ela escapasse de suas perguntas. A
deusa se preparou para se transportar para o chalé quando Hades pegou sua
mão e disse:
“Fique aqui, não vá”
Pelo seu olhar, Perséfone sabia bem o que deveria fazer. Ela puxou a
sua mão do toque e no segundo seguinte seus pés bateram no pomar de
romãs.
Sua mãe estava ali, a frente do chalé, de costas, assistindo o vale das
almas lá no horizonte.
“Mãe!”
Deméter se virou para ver a filha. Mais uma vez, a deusa vestia
longos trajes cor de trigo, feitos de tule que dançavam à brisa. Seus cabelos
estavam presos e a face dela guardava um olhar de preocupação.
Perséfone foi até lá, lentamente. Deméter puxou a filha para um
abraço, afastando-se em seguida. A preocupação na face da deusa da
colheita se transformou em escárnio. Deméter franziu o cenho, como se
sentisse algo fétido.
“Eu posso sentir o cheiro dele em você... Deuses, Perséfone, você
tinha um só trabalho. Ficar longe dele!”
Perséfone deu um passo para trás, se assustando com as palavras
dela. A brisa do submundo passou pelas duas. O olhar de Deméter se fixou
sobre algo atrás de Perséfone, que vinha pelo jardim. A deusa da primavera
se virou para ver seu amante se aproximar. O olhar dele era duro sobre
Deméter.
“Você me prometeu que manteria distância dela!”
“Se ela fizesse o mesmo... E acredite em mim, eu tentei.” Hades
respondeu, intenso.
Aquela frase socou Perséfone na garganta. Eu tentei.
Ela fechou os olhos e respirou fundo.
“Por que está aqui, mãe?” Ela sentiu o estômago embrulhar.
“Você queria respostas. Agora é melhor que você as tenha. Por que
não diz a ela, Hades? A verdade!”
Quando o deus ficou em silêncio, Deméter o fuzilou com o olhar. E
então, se virou para Perséfone.
“A profecia dizia que você se apaixonaria por ele...”
“Ele me disse” A deusa sussurrou em resposta.
“Você contou a ela o resto da profecia ou só essa parte?”
“Resto?” Perséfone encarou Hades.
O olhar dele era vazio, nenhuma emoção foi demonstrada quando a
deusa da colheita se virou para a filha e disse:
“A profecia dizia que, juntos, vocês lutariam contra Zeus e quando
isso acontecesse, Olimpo teria um novo rei... Hades.”
“Não...” Perséfone ouviu escapar de seus lábios.
Deméter riu ironicamente.
“Há apenas uma forma de ele ser deus do Olimpo. Se matar Zeus e
usurpar o trono dos príncipes... Matar o próprio irmão e enganar os
sobrinhos. E o pior, a profecia diz que você se sacrificaria por amor... Por
isso, eu tentei matá-lo. Eu sabia que era a única forma de manter você longe
dele e viva.”
A cabeça de Perséfone girou. Ela fechou os olhos, tentando
processar o que tinha acabado de ouvir.
“Eu conheci Hefesto... Hades jamais faria isso com ele. Eles são
uma família”
A gargalhada de Deméter ecoou pelo campo mais uma vez. Ariadne
e Eurídice agora tinham saído do chalé e assistiam os três deuses mais a
frente, no campo. A tensão entre eles era visível.
“Diga a ela, deus dos mortos... Diga a ela o que você fez com sua
família”
“Não faça isso.” A voz de Hades era sombria, baixa.
“Diga a ela!” A deusa rosnou. “Diga a ela que você é a causa da
morte de sua própria mãe! Diga a ela que foi você quem disse a Cronos
onde sua mãe e seus irmãos estavam escondidos! Diga a ela quem você
verdadeiramente é! Cruel, vil... traiçoeiro assim como os titãs que te
criaram.”
Perséfone deu um passo para trás, sentindo todo o ar de seus
pulmões desaparecerem. Ela sentiu horror cobrir a face. E então, Deméter
falou, por fim:
“Diga a ela que você ajudou Cronos a fugir da prisão dele... na
expectativa de que Zeus morresse na batalha e assim, como grande herói,
você virasse rei do Olimpo. E quando isso não deu certo, quando você viu
deuses e mais deuses morrerem por sua causa... e Atena quase perecer em
seus braços, foi então que o matou, pois soube que Cronos mataria você
também”
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Perséfone. Ela olhou para a
mãe. Sua visão estava turva. Tomando coragem, ela então virou o olhar para
encontrar o dele.
“Me diz que isso não é verdade” ela pediu, em um murmúrio.
O olhar dele estava distante, sombrio.
Perdido.
Hades estava completamente perdido. Na face dele, ela via a
resposta que não queria ouvir. Que o que sua mãe dizia era verdade.
“Deuses! Como eu pude ser tão cega?”
Ela deu um passo em direção a ele, mas sua mãe a parou meio
caminho. A deusa se livrou daquele toque e se aproximou dele mesmo
assim.
“Eu te pedi para me mostrar a fúria real dos deuses... e agora eu
posso vê-la. Toda essa ganância, violência. E, para quê? Por um trono?” Ela
encarou-o firmemente.
Hades tensionou a mandíbula.
Ele parecia consternado. Os dedos dele tocaram a face dela.
“Kore...”
Nada mais saiu dos lábios dele. Nenhuma explicação, nenhuma
súplica que ela ficasse ao seu lado.
Perdido.
Hades estava completamente perdido.
Perséfone sentiu uma dor profunda preencher seu peito. Ela queria
perguntar a ele se a paixão que compartilharam também era parte daquela
mentira. Mais uma mentira.
No fim, Perséfone queria dizer alguma coisa, qualquer coisa. Mas
nada saia de seus lábios. E de certa forma, sabia que isso era o que Hades
merecia. Seu silêncio. Sua ausência.
Assim como ele fizera com ela tantas vezes, assim como estava
fazendo naquele momento. Ela não queria mais jogar aquele jogo. O jogo
que só ele vencia.
A deusa deu um passo para longe e se virou em direção ao chalé,
deixando-o às suas costas. Sem demora, Deméter a seguiu.
Hades permaneceu, no entanto. Mãos em punho, ele assistiu
Perséfone entrar no chalé, a espera. A espera de algo, uma esperança. Mas
agora ela a havia abandonado.
A porta do chalé se fechou atrás dela, das duas deusas e as duas
almas.
Perséfone não olhou para trás.
CAPÍTULO XXII – O POETA

P erséfone agora passava a


maioria das manhãs com a
mãe, no jardim, assim como
elas tiveram feito até ela completar dezoito anos e descobrir que estava
condenada a viver ali durante todos os invernos de sua vida.
As duas conversavam sobre as aventuras de Deméter no mundo
mortal, sobre os lugares que ela tinha ido e visto. A deusa da colheita havia
passado alguns invernos em fazendas longe das grandes cidades, assistindo
trigo e milho serem plantados na expectativa da primavera.
Naquelas primeiras noites, a deusa não conseguira dormir. Ela se
pegava olhando o teto, com uma sensação apertada no peito, a mente vazia.
Ela se recusava chorar.
Quando conseguia dormir, o que era raro, Hades aparecia em seus
sonhos. Nos campos, ele vinha até ela e dizia que aquele não era um lugar
para os vivos e que havia roubado seu primeiro beijo. O sonho se repetia
todas as noites, sem parar.
Depois de algumas semanas, ela havia parado de usar o medalhão de
âmbar, pois a fazia se lembrar de mais uma das mentiras dele.
Deméter a ajudava a limpar os jardins das kores e manter o pomar
vivo, que pela primeira vez, tinha sucumbido a alguma praga. As duas não
conseguiam saber o que era. Parecia ser uma doença específica ao
submundo, pois as romãs que antes eram cheias de suco e sabor, agora
cresciam secas.
Ariadne e Eurídice mantinham-na ocupada a maioria do tempo,
quando Deméter não estava ali. Elas cozinhavam juntas e lavavam roupas
sobre o poço quando o dia estava ensolarado. Os barcos guiados por
Caronte começaram a voltar ao normal, aportando em Asfódelos apenas
uma vez na semana. As três caminhavam até lá todas as manhãs depois de
Perséfone limpar o jardim, procuravam por Orfeu por entre a multidão,
ouviam histórias das almas e voltavam para o chalé para o jantar.
Certa noite, as duas amigas já tinham ido dormir quando Perséfone,
sem sono, se encontrou sentada no chão da cozinha, com um cobertor aos
ombros, olhando para as chamas da lareira.
Deméter colocou uma caneca grande de chá de trigo e mel entre as
pernas dela e então se sentou em uma das poltronas surradas.
“Vai passar...” ela sussurrou para Perséfone depois de alguns
minutos em silêncio.
A deusa continuou assistindo o fogo, sabendo bem do que ela queria
dizer.
“Por que você quis matar ele... realmente?”
“O que quer dizer?” Deméter franziu o cenho. A razão era
subentendida.
Perséfone se virou em direção à mãe. O calor da caneca ao redor de
suas palmas. O chá fumegante.
“Passei parte de minha vida às suas sombras e outra parte sob as
sombras das mentiras dele... Eu me sinto como um peão em um jogo do
destino e dessa profecia. Se você nunca tivesse tentado tirar a vida de
Hades, eu não estaria aqui... Eu não o teria conhecido. Minha vida seria no
mundo dos vivos, teria possibilidades...”
“Você ainda tem seis meses lá fora, Perséfone. Você pode ser e fazer
o que quiser. Contanto que fique longe do deus dos mortos.”
“Apenas por seis meses.” Perséfone sussurrou. “E agora é tarde
demais. A vida em meus palácios é vazia. É aqui, no submundo, onde me
sinto viva e preenchida.”
“Não fale isso” Deméter sibilou. “Você é deusa da primavera... Não
deusa do submundo e almas”
“Seria tão ruim assim se eu fosse?”
Deméter foi pega de surpresa com aquela pergunta.
Ela viu que Perséfone havia aprendido a amar Asfódelos e o que
tinha ali. A comunidade, a amizade, a simplicidade das coisas.
“O que você quer realmente ser, minha filha?”
A deusa da primavera engoliu em seco, respirando fundo.
“Livre... para fazer minhas próprias escolhas. Errar, descobrir...
amar”
“Vai passar” Deméter repetiu, dessa vez mais gentilmente. “Ele não
é para você. Hades não pode te oferecer nada além de uma profecia infeliz e
uma vida no mundo dos mortos. E você não vai querer isso, confie em
mim.”
“E se não passar? O que eu faço?”
“Aquilo que todas nós fazemos... aquilo que suas amigas estão
fazendo, você vive.”
O calor do fogo abraçou as duas.
“Elas estão mortas, mãe. Morreram por amor.”
“Então, escolha vingança.”
Perséfone pensou nas amigas, em Hécate e em algumas outras
deusas e mortais que conhecia e até mesmo sua mãe, que havia se
sacrificado por amor a própria filha.
“Será esse o destino que temos? Amor ou vingança?”
Deméter pensou naquilo.
“Vingança para mim parece a escolha mais divertida” A mãe dela
disse, com um sorriso no rosto.
A expressão dela fez Perséfone gargalhar, fazendo a tensão entre
elas dissipar.
Aquela foi a primeira vez em semanas que ela se pegou rindo.

Chovia lá fora quando Hermes trespassou a porta, de repente,


assustando as três.
Ele abriu um sorriso grande e balançou a cabeça, fazendo seu cabelo
loiro espirrar água por cima delas.
“Ei!” Ariadne gritou, jogando uma almofada nele.
“Sentiram minha falta?”
Ele foi até Perséfone e beijou sua bochecha, jogando a almofada de
volta para Ariadne, que deixou cair no chão, completamente encharcada.
“O que está fazendo aqui?”
“O grande deus do submundo liberou minha entrada... depois de
muita insistência.” Ele se sentou entre Eurídice e Ariadne. Os livros que
elas tinham acesso por ali eram poucos e raros, então, Perséfone estava,
pela quinta vez, lendo um livro antigo e chato sobre a construção do
Olimpo. Ariadne e Eurídice jogavam um jogo de cartas que estava sobre a
mesa. Sobre esta também havia biscoitos de rum e manteiga e folheados
salgados.
O mensageiro abriu o casaco ensopado e tirou de lá uma garrafa,
erguendo as sobrancelhas.
“Reserva especial”
Ariadne soltou um gritinho e correu até a cozinha para trazer
cálices. Ele colocou a garrafa sobre a mesa. Eurídice voltou-se para ele e
suspirou.
“Você tem notícias... de Orfeu?”
“Não.” Hermes respondeu, sinceramente. Ele não podia falar sobre
o que acontecia no mundo dos vivos e Perséfone sabia que ele estava sendo
impróprio ao responder qualquer coisa a ela. “Sinto mundo, Dice.”
Ariadne chegou com quatro cálices de madeira e Eurídice foi a
primeira a se servir generosamente do vinho dourado.
“Fiquei sabendo que sua mãe esteve aqui.” Hermes disse a Perse,
após ter concordado em fazer parte do jogo de cartas. Ele jogou uma carta
no centro da mesa, fazendo Ariadne resmungar.
“Muito aconteceu nos últimos meses” Perséfone respondeu, levando
o vinho aos lábios. “Como soube?”
“Ele me disse”
As três se voltaram para o deus, chocadas.
“Não achei que o rei do mundo dos mortos fosse tão tagarela”
Eurídice comentou, irônica.
Perséfone queria dizer que ele não era, mas ficou em silêncio.
Apenas pensar em Hades a trazia para aquele estado que estivera nos
últimos meses, vazia, oca.
Hermes assistiu a face dela e esperou sua vez para fazer sua jogada.
A deusa apenas assistia. Ela sabia bem que ele estava trapaceando, apesar
de não saber como.
“Você ficou sabendo do conflito dos monstros que estavam atacando
os mortais?” Perséfone perguntou.
“Sabendo? Eu estava lá.” Ele resmungou, pegando uma das cartas
de Eurídice. Ela balançou a cabeça, derrotada, e jogou o restante das cartas
na mesa, desistindo do jogo.
“O que aconteceu? Asfódelos estava recebendo almas todos os dias
sem parar”
Ele fez muxoxo e encarou Ariadne. Se ela desistisse do jogo, ele
ganharia.
“Os invernos estão piorando... E até monstros precisam comer.” Ele
suspirou. “Não foi bonito. Até Zeus teve que descer do Olimpo... o que
pareceu fazer a situação pior. Ele e Hades tiveram uma briga feia no último
dia. Os dois acabaram feridos.”
Ah, então não havia sido um monstro que atacara Hades naquele
dia, o que fazia sentido. Um monstro não seria páreo a Hades. Zeus o havia
ferido, afinal, ele era o deus mais poderoso.
Ariadne, por fim, colocou sua última carta sobre a mesa e revirou os
olhos quando viu o deus mostrar a ela o que tinha nas mãos.
“Trapaceiro” ela fez muxoxo.
Hermes riu e serviu a taça dela com mais vinho.
A chuva ainda assolava o vale das almas lá fora, e a noite estava
estranhamente sombria. Os dias de inverno no submundo estavam passando
lentamente demais para Perséfone.
“Também ouvi sobre o que você descobriu.”
A voz de Hermes passou por ela como veludo. Perséfone estava
levemente alta devido ao vinho. Ariadne ainda estava acordada, mas se
deitava sobre o tapete no chão e lia o livro que a deusa estivera lendo alguns
minutos atrás, parecendo entretida.
Eurídice, no entanto, tinha exagerado no vinho e agora dormia
pesadamente sobre o colo de Perséfone.
“Não quero falar sobre o deus dos mortos”
“Consigo ver ele em sua face... ele está por todo você”
“E estou tentando tirá-lo de mim”
Hermes concordou levemente. Os dois ainda tinham bastante vinho
em seus cálices.
“Eu vim aqui por outra razão... além da companhia, é claro.”
“E qual seria essa?”
Ele respirou fundo.
“Estou cansado. Tenho sido o deus mensageiro por tempo demais,
indo e voltando para o Olimpo, dia e noite. Eu decidi viver entre os mortais
por alguns anos. Vou navegar pelo mundo, de cidade em cidade, conhecer
cada uma delas até nada mais reste para eu ver.”
“Navegar?”
“Uhum. Eu tenho um navio a minha espera.”
“Quando você parte?”
“No fim do primeiro mês da primavera... e eu vim aqui para pedir
que você venha comigo.”
A deusa abaixou o cálice e franziu o cenho, verdadeiramente
surpresa.
“Por quê?”
“Por que não?”
Eles riram, ela deu de ombros. Depois das histórias que sua mãe lhe
contara sobre o mundo dos mortais, Perséfone ficara um tanto curiosa. Ela
nunca havia pensado na possibilidade antes, mas parecia uma boa
oportunidade. Só o pensamento de ficar sozinha em seus palácios pelos
próximos seis meses a deixava ansiosa.
“Eu aceito sua oferta... com uma condição.”
“Qual?”
“Não podemos ser amantes.”
“Por que não?” ele repetiu, abrindo um sorriso. “Você não deve nada
a Hades”
“Ele contou isso a você também?” ela franziu o cenho.
“Metade do meu trabalho é coletar segredos, Perséfone. E apesar de
você ter sido o segredo mais bem mantido do deus dos mortos, ele não teria
como evitar que eu descobrisse. Assim como posso vê-lo em você, é
possível ver você nele...” Ele fez uma pausa e então admitiu: “Nós teremos
tempo... muito tempo. Não coloque condições em algo que pode mudar.”
“Minhas circunstâncias e meu destino não mudarão”
“Mas o que você sente, sim.”
A deusa o encarou.
Hermes então se levantou da cadeira e foi até ela, sentando-se ao seu
lado, encarando seus olhos cor de âmbar. A pouca luz do ambiente tocou a
face bela dele.
Comparado a Hades, Hermes era o oposto. Seus olhos eram azuis
como safiras. Os cabelos dourados estavam secos agora, rebeldes ao redor
do rosto firme.
“Você tem pensado em mim como um amante por anos...” Ele levou
o rosto até o dela. “E eu tenho esperado pelo momento certo para dizer que
também penso em você assim”
Delicadamente, ele pegou a mão dela e levou os lábios até lá,
repousando um beijo doce.
“Pense nisso. Quando a primavera chegar, teremos seis meses longe
daqui... longe dele.”
O deus tocou a face dela e Perséfone, de repente, não soube o que
dizer. O toque de Hermes era delicado, morno e atraente. No entanto, era
longe daquilo que ansiava.
“Prometa que vai pensar”
“Eu prometo.” Ela se viu sussurrando.
Hermes abriu um sorriso para ela, satisfeito.
“Aproveite o restante do vinho. Eu voltarei em breve.” Ele se
afastou e foi até a porta de saída, piscando para ela antes de desaparecer no
ar.
Perséfone encarou a chuva e pensou em mentir para si mesma.
Pensou em como o mensageiro seria um amante afetuoso e como
aquilo preencheria seus dias no mundo dos vivos. Ao mesmo tempo, sabia
que nenhum toque seria capaz de substituir aquele de Hades e os poucos
momentos que viveu com ele. Ele a havia marcado como sua no dia em que
se beijaram no Castelo das Tempestades, e, como resultado, agora ela se
sentia destruída.
Incapaz de ser tocada por outro e não pensar no fato de que nunca
mais sentiria ele em seu corpo. Ao redor de seu corpo.
Nunca mais sentiria o quão quente e firme os braços do deus dos
mortos era.
E foi por isso que, naquele mesmo instante, ela decidiu que aceitaria
a proposta de Hermes. Ela precisava de uma chance, qualquer uma, que
fosse capaz não de substituir, mas lentamente apagar Hades de sua mente.
Perséfone não estava escolhendo amor ou vingança.
Ela estava escolhendo a si mesma.
A primavera se aproximou coberta por kores e Hermes. Todas as
semanas, ele visitava Perséfone. Todas as semanas, trazia algo da cozinha
de Hades com a intenção de fazer Ariadne gritar ainda mais alto de alegria
e, toda vez, ele conseguia.
Quando as duas iam dormir, Hermes e Perséfone conversavam sobre
o que podiam, se limitando ao submundo e evitando qualquer menção de
Hades. A noite chuvosa fora a última vez que ela ouvira o nome dele.
A deusa ainda não conseguia dormir e quando o mensageiro estava
ali, ela podia passar a noite acordada ao seu lado. Eles faziam planos para a
viagem e trocavam ideias sobre o que queriam conhecer.
Perséfone não conhecia muito do mundo mortal, e o que sabia tinha
sido através das histórias de suas ninfas ou sua mãe. Poucos deuses, na
verdade, haviam caminhado por entre mortais. A maioria deles se isolava
em seus palácios ou no Olimpo.
Os últimos dias do inverno chegaram, e, com eles, mais barcos
conduzidos por Caronte surgiam no horizonte do vale das almas. Todos os
dias, elas caminhavam até lá e Eurídice voltava para o chalé aliviada por
não encontrar Orfeu a meio da multidão assustada.
Então, isso mudou.
Hermes já estava no porto quando as três chegaram, em uma manhã
nublada. E sem nem mesmo ver seu amante, Eurídice soube que ele estaria
no barco que aportava à costa.
Aquele havia sido o último dia do inverno no mundo dos vivos. Os
seis meses de Perséfone ali estavam no fim.
A deusa e a princesa assistiram Eurídice se aproximar do porto e
observar, com uma expressão vazia, as almas descerem do barco uma por
uma. Hermes colocou a mão sobre o ombro dela quando Orfeu surgiu por
entre a aglomeração.
A expressão do poeta não tinha mudado desde a última vez que
Perséfone o vira, ainda em vida. Era a expressão de alguém que havia
decidido morrer por amor. Afinal, não eram apenas elas que se
sacrificavam, a deusa percebeu.
Eurídice caminhou até ele, por entre a multidão de almas confusas, e
correu para seus braços. Orfeu a recebeu e com lágrimas nos olhos tomou-a
em um abraço apertado.
Um abraço em morte.
Tempo com ele era tudo o que Eurídice uma vez sonhou em ter.
Agora, eles o teriam. Eles teriam, juntos, a eternidade.

Orfeu havia se entregado as Fúrias, monstros que tinham enormes


garras e eram vorazes. Era uma forma horrenda de morrer, mas eficiente.
Consigo, ele havia mantido, de alguma forma, seu violão.
O grupo o levou para o chalé e o deu de comer pães com semente,
uma torta de feijão assado e uma cerveja duvidosa que o grupo de mulheres
havia feito algumas semanas atrás. O poeta comeu avidamente.
“A espera é longa” ele disse, por fim. Seu prato estava vazio. Sua
mão sobre a de Eurídice. “As filas para o julgamento são enormes... e eu
não sabia se viria para Asfódelos. Os outros dois juízes queriam me enviar
para o Elísio, pois sou filho de um deus e uma musa. Minos...” Orfeu olhou
para Ariadne. “Seu pai, disse que não... Ele disse que eu tinha que vir para
cá, pois minha vida, apesar de ser filho de divindades, não foi tão
extraordinária assim.” A princesa deu um sorriso triste em resposta. “Minos
me pediu para dizer que virá te ver em breve.”
Ariadne respirou fundo, parecendo que aquele comentário a deixava
contente. Havia conflito em seu olhar também, mas ela não disse nada.
“No entanto... sem que Hades interferisse, eu não viria até aqui,
afinal, eram dois votos contra um”
“Hades não influencia a decisão dos três juízes” Hermes franziu o
cenho, fazendo uma careta quando bebeu da cerveja duvidosa. “Ele é
resoluto em se manter parcial, exceto quando o caso é extremo.”
O grupo estava do lado de fora do chalé, à frente de uma fogueira
que queimava alto, com chamas que iam do azul ao laranja. Eles tinham
cobertores surrados e remendados sobre os ombros. Eurídice encostou a
cabeça no ombro de Orfeu e disse:
“O teste que Lorde Hades nos deu era impossível, ele sabia bem que
nunca conseguiríamos sair do submundo juntos. Ele tinha uma dívida
conosco.”
“Preciso ser justo com o deus dos mortos... Ele nunca dá a
oportunidade de almas voltarem ao mundo dos vivos. Se vocês tivessem
conseguido completar o teste, iria significar dar esperança para outras almas
e outros mortais. Por isso, o teste foi desafiador.”
Ver Hermes defender Hades surpreendeu Perséfone.
“O que ele disse para você?” A deusa quis saber, voltando-se para
Orfeu.
“Que o Elísio era o melhor lugar para mim, mas não seria meu
paraíso. Meu paraíso seria onde minha amada estava. E assim, a decisão foi
feita.”
“Uh” Ariadne fez uma careta. “Vocês podem até não gostar dele,
mas Lorde Hades sabe ser dramático”
O grupo riu.
A fogueira, ao centro da roda, estalava, quente. Os céus acima
pareciam um tapete de estrelas desconhecidas, fulgindo por entre a
escuridão da noite.
Orfeu apertou a mão de Eurídice e eles se entreolharam, trocando
um beijo leve. A conexão deles era íntima, e o amor que sentiam um pelo
outro transbordava. Eles ficarem juntos parecia certo, destinado.
Perséfone se pegou desviando o olhar, dando a eles privacidade e
permitindo a si mesma a não trazer as memórias de volta.
“Esse é meu último dia do ano aqui” Disse, por fim, quando a
conversa ficou mais animada ao redor. “Eu quero fazer um brinde a Orfeu,
ao amor e a primavera... que ela termine rápido para que eu possa voltar e
estar entre vocês”
Todos deram viva, menos Hermes, que apenas sorriu para ela. Assim
como sua mãe, ele parecia desaprovar como ela se sentia sobre o
submundo.
O fogo permaneceu aceso e brilhante a noite inteira. Quando a
manhã chegou, a deusa soube que estava na hora de voltar ao mundo dos
vivos. Ela se despediu de todos e sentiu o peso de dois objetos nos bolsos
antes de partir.
O medalhão de âmbar de Hades e a adaga de Ares, a qual manteve
escondida entre seus lençóis durante todos aqueles dias.
Quando a gravidade sucumbiu sobre seu corpo e ela foi levada de
volta aos Palácios das Cerejeiras, não foi recebida por suas ninfas como era
costume. Seus corredores estavam estranhamente vazios. O sol era quente
lá fora, era finalmente o equinócio.
Perséfone então olhou para os pés. Eles haviam batido no chão e
imediatamente tocaram sangue rubro, o qual cobria toda a extensão dos
corredores e algumas paredes.
Tremendo, ela se viu caminhando em direção à porta aberta de seu
salão de baile. O mesmo que abrigaria a festa da primavera quando o pôr-
do-sol chegasse.
Ali, horrorizada, ela viu duas de suas ninfas jogadas no chão,
ensanguentadas, sem vida. Pânico cobriu sua face. Um grito ecoou pelo
palácio.
Ela soube imediatamente quem era. A lembrança de ter permitido
que a mortal ficasse ali durante o inverno a atingiu com a força de um soco.
O grito se intensificou.
Era Trite.
CAPÍTULO XXIII – A AURORA

M onstros haviam invadido


o Palácio das Cerejeiras.
Perséfone correu pelos
corredores, sentindo a brisa da nova estação ser manchada pelo aroma de
ferrugem do sangue de suas ninfas.
Para seu alívio, algumas delas haviam se escondido e gritavam de
alegria quando viram-na chegar no palácio. Mas não por muito tempo.
“Corram!” a deusa rosnou para elas. “Vão para as florestas!”
As garotas obedeceram, sabendo que agora que Perséfone estava ali
elas estariam protegidas. Ou isso era o que pensavam até o momento que o
viram.
Ele era maior do que o Minotauro.
“Deuses!” Perséfone exclamou.
Em um dos corredores que levava a seus aposentos pessoais, havia
um Tifão. Esse monstro era uma mistura de criaturas do mar e criaturas do
tártaro. Uma mistura dos reinos de Poseidon e Hades. O que estava fazendo
ali, a deusa não sabia.
A ninfas gritaram e correram. Perséfone soube que aquela não era a
hora de usar a adaga de Ares, e a verdade era que quando tateou os bolsos,
percebeu que não estava mais lá.
Fechando os olhos, ela se lembrou das aulas de esgrima que tivera
quando mais nova. Espadas não podiam ser conjuradas, esse era um dos
limites dos deuses. Armas em batalha precisavam pertencer aos deuses.
Caso contrário, toda guerra seria desleal.
Perséfone sabia onde havia uma espada, no entanto. Assim como
Hades e qualquer outro deus, ela tinha uma sala de armas... qual nunca ia ou
usava. Ali, havia aquela que era sua espada caso um dia fosse convocada
para uma batalha divina. A arma era chamada de Blossom.
Quando a deusa estava prestes a se transportar para a sala, assistiu
ao monstro encontrá-la com o olhar em escárnio e soube que ele estava
prestes a atacá-la.
Se se transportasse até a sala, o monstro viria com ela,
compartilhando de seu poder, o que era mais perigoso. Ela precisava correr,
e foi isso que fez.
As pernas dela queimavam pelo esforço quando finalmente adentrou
a sala de armas com um sobressalto, cruzando o espaço por entre os
estantes na expectativa de encontrar a espada.
E então, sentiu as mãos do monstro em seus cabelos.
Ela deu um grito e foi jogada por cima das mesas de vidro que
continham vários objetos afiados.
O monstro rugiu, assistindo Perséfone tentar se erguer, sentindo
sangue escorrer por suas mãos feridas. Ela tinha usado as palmas para evitar
cair de cara no vidro estilhaçado.
A deusa se ergueu segurando aquilo que conseguiu achar por perto,
uma lança pesada. Ela nunca fora boa com lanças, mas não fazia diferença.
Apertando os olhos para o mostro, no entanto, soube que não tinha a menor
chance contra ele. O monstro tinha uns quatro metros de altura enquanto ela
mal passava de um metro e setenta, e sua habilidade de luta era
consideravelmente limitada. Perse fez uma nota mental para voltar a tomar
aulas de esgrima e combate caso saísse viva daquela situação.
O Tifão rugiu mais uma vez e avançou. No mesmo instante,
Perséfone assistiu um corte metálico no ar. E então um grito de dor. O Tifão
caiu no chão, morto. Sua espada, Blossom, agora estava dentro do monstro.
A deusa olhou ao redor e viu Trite. Dor cobria a face da mortal e ela
segurava o ventre inchado. Entre suas pernas havia sangue. Ela estava
prestes a dar à luz.
“Ele está vindo cedo demais” Trite caiu de joelhos no chão, largando
a espada de Perséfone. Blossom era uma espada leve, feita de ouro e cobre
na base, que era coberta por detalhes florais.
Perséfone foi até ela e a pegou pelos braços, carregando a espada na
outra mão.
“O que aconteceu?”
“Eu não sei. Eles simplesmente... apareceram, como se soubessem
que eu estava aqui”
As duas alcançaram o fim do corredor, chegando aos aposentos de
Perséfone. Ela trancou a porta atrás de si e fechou as janelas que davam
para seus jardins privados.
A deusa queria perguntar a Trite o que os monstros queriam, mas o
gemido de dor da mortal a trouxe ao fato de que ela carregava o primeiro
filho de Poseidon, um semideus, que estava prestes a nascer.
Trite se deitou na cama e fechou os olhos.
“Eu tenho chamado Poseidon desde que eles invadiram o palácio...
Há algo acontecendo, ele não está conseguindo chegar até aqui”
Ela tocou o colar que tinha sobre o colo e repetiu o nome do deus
dos oceanos mais uma vez. A joia dela era quase como aquela que
Perséfone usara no dia da maré. Uma concha. No entanto, a concha de Trite
era colorida e maior, mais poderosa.
“Eu estou aqui” Perséfone disse, indo até ela e colocando uma
almofada sobre sua cabeça.
“É como se eles soubessem que nós duas estaríamos aqui ao mesmo
tempo, Perséfone... sem ninguém para nos proteger” Lágrimas escorreram
pela face coberta de dor da mortal.
A deusa soube imediatamente o que ela queria dizer. Era uma
armadilha.
“Eu protegerei você”
Trite pegou o braço da deusa e disse entre dentes, sentindo mais
uma onda de dor atravessar seu ventre.
“Ah! Se tiver que escolher, escolha meu filho. Por favor...”
“Não haverá escolhas.” A deusa disse, decidida.
E então, um rugido alto explodiu pelo ambiente. Outro monstro
estava perto.
Perséfone pegou a espada e a ergueu sobre o corpo, pronta para o
ataque. Outro Tifão surgiu pelas portas do jardim de Perséfone, estilhaçando
o vidro com facilidade.
Trite gritou, apavorada.
A deusa não esperou que ele viesse até elas. Ela foi até ele e enfiou
sua espada dentro do monstro, deixando-o cair no chão. E então, mais um
se aproximou e mais outro. No minuto seguinte, ela estava arrodeada por
eles.
Perséfone não teve tempo para pensar em estratégias. Ela
simplesmente usou daquilo que havia aprendido anos antes, atacando os
Tifões com golpes mortais, vendo os monstros cair um por um, sangue
cobrindo seu vestido e sua face. Um dos monstros a atingiu, as garras
passando como ferro quente sobre seu ombro, rasgando sua pele.
Ela deu um grito e caiu de joelhos. A deusa viu a sombra do Tifão
que havia lhe ferido pairar acima de si e soube que estaria morta no
segundo seguinte.
Para sua surpresa, o ser caiu a sua frente, de repente, com um baque
alto. Ela assistiu o monstro morto no chão e então olhou para cima, com
olhos arregalados.
Hades.
Ele trajava sua armadura de soldado, sangue de Tifão agora cobria
seu peito. Seus olhos eram como ela lembrava. Negros, profundos,
violentos.
“Vá para Trite!” ele rosnou.
Perséfone buscou sua espada e fez o que ele ordenara. Ela correu até
a mortal e viu que o bebê estava chegando. Trite apertava os lençóis com
força, soltando um grito gutural que reverberou pelo palácio.
A deusa colocou a espada sobre a cama e foi até ela. Perse nunca
havia visto ou ajudado em um parto, mas sabia que aquele seria o dia.
Alguns minutos depois, Trite soltou um último suspiro de dor e
Perséfone pegou o bebê nos braços. Pequeno e frágil.
Era um menino.
Lágrimas cobriam a face da rainha dos sete mares quando a deusa
colocou o bebê em seu colo, agora sendo o quarto ser naquele ambiente
coberto de sangue.
O coração de Perséfone batia forte e ela estava ofegante. A deusa
passou as costas da mão sobre a testa, limpando o suor, o sangue, olhando
para trás. Sobre a grama verde de seu jardim agora havia incontáveis Tifões
mortos.
Hades surgiu pelas portas, altivo, selvagem, sua armadura
ensanguentada. O olhar dele estava preenchido por fúria. Suas mãos
apertavam a espada com força.
Ele ficou ali, parado, assistindo as duas. Distante.
E então, Poseidon apareceu ao lado dele. Também vestindo sua
armadura, que ao contrário da de Hades, negra, era azul.
O deus correu até a esposa e se ajoelhou ao lado dela, deixando sua
espada cair no chão.
Perséfone balançou a cabeça, tentando respirar em alívio, mas não
conseguia. Ela deu um passo para trás e se encostou na parede. A adrenalina
começou a se dissipar e ela sentiu a dor do ferimento sobre seu ombro a
atingir forte.
Escorregando para o chão, ela fechou os olhos de tanta dor. Quando
os abriu, assistiu Hades no batente das janelas altas lhe encarando. Ele
apertava as mãos em punho.
Ela soube que ele queria ir até ela, curá-la. No entanto, quando ela
achou que ele iria dar um passo para frente, ele recuou, em silêncio. E
desapareceu no ar, levando os corpos dos monstros consigo.
Poseidon então se ergueu do chão, recolheu sua espada e veio até
Perséfone.
“Obrigada, deusa. Eu devo a você.”
Ele levou a mão até os ferimentos dela e um formigamento correu
por sua pele. Ela sentiu a dor, levemente, desaparecer.
O deus dos mares se afastou e voltou até Trite, pegando o filho nos
braços. Ele tocou a face da esposa, qual olhou para Perséfone, cansada e
murmurou:
“Obrigada”
Os dois, assim como Hades, já não estavam ali no segundo seguinte.
Perséfone ficou no chão, apertando o punho sobre as costelas, na
tentativa de afastar aquele nó desobediente do peito.
Ela, agora, não só sabia que estava no meio de uma disputa divina,
mas que essa disputa era mortal e assassina. Imediatamente, soube quem
havia enviado aqueles monstros.
As ninfas, sabendo que monstros estavam mortos, voltaram ao
palácio e inundaram seus aposentos em seguida.
A deusa assistiu às servas limparem o sangue do chão e até mesmo
de si mesmas.
Perséfone, ao ver aquilo, teve um pressentimento doloroso.
Um pressentimento de que aquela não seria a última vez que lutava
por sua vida.
A deusa pensou em adiar o baile, ou até mesmo cancelá-lo, mas
tinha a impressão de que isso mandaria uma mensagem de derrota a quem
havia orquestrado o ataque.
E então, as suas ninfas limparam os chãos com sabão e água
fervente, esfregando o sangue e deixando os pisos de mármore do salão
impecáveis. Quando terminaram, levaram suas irmãs, que haviam perecido,
até a passarela de cerejeiras, deitando-as sobre o tapete rosa de pétalas.
Perséfone assistiu ao ritual fúnebre das ninfas, como sua deusa
protetora, e sentiu lágrimas escorrerem enquanto ouvia o canto de
despedida delas.
Era belo e absurdamente doloroso.
A deusa não podia ter feito mais do que havia e ainda assim, se
sentia culpada.
As ninfas mortas, ao chão, então se dissolveram por entre as pétalas
e árvores enormes cresceram onde elas haviam estado.
Uma brisa primaveril passou por Perséfone e as ninfas. Agora, o
tapete de cerejeira possuía diversas cores, pois cada árvore nova tinha uma
cor diferente de flor.
De volta em seus aposentos, um banho quente lhe foi preparado e
Perséfone esfregou o sangue seco de sobre si com força, deixando a pele
sensível.
O pôr-do-sol cobriria o Palácio das Cerejeiras em breve.
Seu vestido já estava sobre a cama. A mesma que horas atrás tivera
o sangue da rainha dos sete mares, mas que agora tinha lençóis de seda
limpos, completamente alinhados e perfeitos.
Enquanto as ninfas penteavam seus cabelos, a deusa encarou o
jardim. Ali, também, nada havia mudado. No entanto, ela sentia a presença
dele. A aura de Hades e da morte.
A deusa encarou o jogo da Rainha Prometida e se virou para encarar
o espelho.
Seus olhos cor de âmbar tinham mudado. Estavam mais duros, mas
escuros. Sua pele tinha sido limpa do sangue, mas ela ainda o sentia sobre
si, como uma mancha permanente.
As ninfas haviam feito um coque belo, deixando pequenos fios do
cabelo longo cor de mel sobre seu rosto. Sobre a cabeça, ela tinha uma linda
coroa de flores delicadas.
Seu vestido, dessa vez, era mais simples. Ela usava um corpete
verde, sem mangas, banhado por detalhes feitos com ouro. Suas saias caiam
até os tornozelos, da mesma cor, com as barras douradas.
“Eles estão chegando, milady” Flora veio até ela.
A deusa respirou fundo e agradeceu, sentindo o toque do entardecer
alcançar seu rosto quando se olhou no espelho uma última vez antes de sair
dos aposentos.

A música reverberava ao redor e alguns deuses da natureza haviam


tomado a pista de dança. O hidromel passava pelo ambiente sem parar.
Perséfone já estava em sua décima taça, se estivesse realmente contando
certo.
A festa parecia errada e ela queria que acabasse o mais rápido
possível. Para piorar a situação, Hermes não tinha aparecido naquele ano,
ou Afrodite, como mencionara que talvez viria, então a deusa teve que se
contentar com a conversa solta de seu vizinho, o deus das florestas, e os
olhares indecentes e curiosos de reis de terras distantes.
Ela havia recebido alguns convites para dança, mas recusara todos.
Mais uma bandeja passou a frente dela e ela agarrou outra taça de hidromel,
e foi nesse mesmo instante que as grandes portas de entrada do salão se
abriram com um estrondo.
E então, a comoção começou. Vários gritinhos foram ouvidos ao
redor do salão e a música ficou ainda mais animada.
“Deuses” ela arquejou, passando por algumas pessoas para ir até o
centro do salão e assisti-los.
A família real e divina tinha aceitado o convite do baile para a
surpresa de todos e absoluto espanto dela.
A comitiva era em cinco. Uma voz os anunciou.
Primeiro, vinha os dois irmãos. Apolo e Ártemis. Eles eram gêmeos
e tinham a mesma face. Apolo, no entanto, tinha a pele negra com cabelos
loiros e sua irmã, Ártemis, tinha a pele branca como leite com cabelos
profundamente escuros, como a noite. Ele era o deus do sol, ela, da noite.
Ambos tinham os mesmos olhos. Firmes, violentos, azuis. E assim como os
outros irmãos, eles também tinham cicatrizes sobre o rosto. As deles, no
entanto, pareciam ter sido feitas por unhas, e cobriram toda a parte inferior
de suas faces.
Atrás dos gêmeos vinha uma face conhecida.
Ares.
O deus da guerra vestia a mesma armadura daquela noite no
submundo e seus cabelos brancos caíam sobre os ombros. Ele encarou
Perséfone, mas não demonstrou nenhuma expressão que indicava que a
conhecia.
Então, Ares se afastou e o coração de Perséfone pareceu perder os
batimentos quando enfim viu quem o seguia.
Zeus.
Como havia sido descrito, o rei do Olimpo tinha a aparência de um
mortal de cinquenta anos. Seus cabelos eram loiros quase grisalhos e os
olhos eram como os de seus filhos. Ele parecia levemente fora de forma, ao
contrário de seus dois irmãos, mas usava um uniforme formal. Branco,
completamente imaculado, coberto por medalhas.
Perséfone podia ver que um dia ele tinha sido belo, mas sua beleza
não estava mais ali.
Ao lado dele vinha Hera, sua esposa. A deusa tinha a aparência de
uma mortal de vinte e cinco anos. Era absolutamente bela, com longos
cabelos vermelhos cacheados ao redor do rosto. Sua face era coberta por
sardas e sua íris era vermelha. Perséfone nunca tinha visto nada igual.
Ao contrário dos outros deuses, que trajavam uniformes, ela usava
um longo vestido, também vermelho. Hera era conhecida por sua crueldade,
não por seus esforços em batalhas divinas. Com Hefesto, por exemplo, o
qual era seu próprio filho, e até mesmo com os filhos bastardos e com as
amantes de Zeus. Ela olhou ao redor e fez uma expressão de nojo, vendo os
deuses menores.
De certa forma, Perse entendeu completamente por que eles tinham
se casado. Por conveniência ou não, Zeus e Hera pareciam perfeitos um
para o outro.
Perséfone então respirou fundo e fez uma longa mesura, afinal, ele
era o rei do Olimpo, o deus absoluto.
“Milorde, milady...”
“Deusa da primavera... Finalmente!” Zeus abriu os braços,
cerimonial. Ele olhou ao redor, como se tentasse encontrar algum registro
dos monstros que havia enviado para matar ela e Trite mais cedo. Ele não
encontrou. “Ouvi tanto sobre você!”
“E eu, você, milorde”
“Ah, não precisa ser tão formal.” O deus foi até ela e a pegou pelo
rosto. “Sou Zeus para você.” Disse, alto. “Ah, sim. Agora entendo a
fascinação que meu irmão tem por você. Olhe para esse rosto e...” O deus
se interrompeu, se afastando para lançar um olhar através do corpo dela.
Perséfone se sentiu nauseada. O olhar dele era diferente de qualquer
homem ali. Não era desejo ou curiosidade. Era algo predador, algo
repugnante.
Quando o deus voltou o olhar para a face dela, Perséfone soube que
estava em perigo. Inconscientemente, levou a mão até o colo, a procura do
colar de âmbar, mas o medalhão não estava ali.
Zeus abriu um sorriso para ela.
Atrás dele, Hera encarava os dois com um olhar entediado. A deusa
pegou uma taça de hidromel e se distanciou, seguindo Ares. Apolo e
Ártemis já estavam na pista de dança. Eles dançavam sozinhos, rodopiando
pela pista de uma forma estranha e bizarra. Eles pareciam o tipo de deuses
que não precisavam de outros para se divertirem. A presença de um e do
outro era o bastante.
“Que tal uma dança?” Zeus proclamou, erguendo a mão para ela.
Perséfone sabia que não podia recusar. Ela engoliu em seco e deu a
mão a ele.
Zeus a puxou contra seu corpo volumoso e os convidados ao redor
bateram palma, excitados pelo que viam.
“Aplausos para você, uma deusa menor” Zeus sussurrou para ela.
“Você é tão sortuda.”
“Não me sinto sortuda”
O deus gargalhou.
“Você deveria ter visto a cara de Hades quando eu disse que viria ao
seu baile”
“Na batalha contra os monstros?” Ela adivinhou.
“Eu posso ver que você conhece Hermes” O deus riu. “Ele é um
deus irritante, não é? Útil, mas irritante.”
“Ele é meu amigo”
Zeus desceu a mão que estava sobre a cintura dela para mais para
baixo. Um calafrio gelado correu por sua espinha.
“Ninguém é amigo de ninguém no mundo dos deuses... Você
deveria saber bem disso por agora.”
“Eu discordo, milorde.”
“É assim que você o chama, então? Amigo?” Ela sabia bem que ele
estava se referindo a Hades.
Perséfone ficou em silêncio, sentindo o aperto dele sobre sua mão se
intensificar.
“Não precisa fingir, milady. Eu tenho assistido vocês dois à
distância...” A voz dele era leve, calma, tocada por poder silencioso.
Ele a fez rodopiar e Perséfone teve que se lembrar de mover os pés.
Ela sentia vontade de fechar os olhos e desaparecer dali.
“É uma pena que tenha descoberto quem ele é tarde demais. Aquelas
noites no monte Etna foram em vão...”
Perséfone interrompeu a dança no mesmo instante. Seu coração
batia forte sob as costelas. Seus pulmões prestes a parar de funcionar. O nó
na garganta tinha voltado.
Era por isso que ele tinha vindo até ali, Perséfone percebeu. Para
atingi-la com o que sabia.
Encarando os olhos frios dele, ela conseguiu sussurrar:
“O que quer comigo, milorde? Eu não sou nada para Hades e ele
não é nada para mim. Acabou... o que quer que tínhamos, acabou”
Zeus abriu um sorriso maléfico e tocou o rosto dela, seus dedos
deixaram um rastro ainda mais pegajoso do que o sangue seco que ela teve
que esfregar da pele mais cedo.
“Você está errada, deusa. Completamente errada. Eu tenho esperado
milênios para ter a chance de destruí-lo... e aqui está você. Essa chance. Em
carne e osso.”
Ela apertou o olhar para ele, agora determinada. A deusa estava
prestes a abrir a boca e rebatê-lo quando a música parou de repente e o
salão ficou em completo silêncio.
Nenhum burburinho, nenhuma excitação.
A porta do salão, mais uma vez, se abriu. O som da abertura
dançando pelo ambiente vazio de vozes.
Perséfone se afastou de Zeus, assistindo quem chegava pelo grande
portal.
O nome dele e seus títulos não foram anunciados. Não era preciso.
Em um uniforme completamente negro, da cabeça aos pés, Hades
caminhava com passos largos em direção a ela.
Os cabelos negros do deus estavam jogados para trás e suas
medalhas, resultado de milhares de anos de batalhas, cobriam seu uniforme
sobre o peito. Ele havia mais delas do que Zeus.
A luz do anoitecer tocava a pele dourada dele e Hades tinha as mãos
nos bolsos da calça preta. Seus olhos ônix pairavam em Perséfone e
somente em Perséfone.
Ele ignorava todo o arredor. Nada mais existia para ele. Nada mais
importava.
Um calafrio passou pelo corpo dela, quando ela o encontrou, dessa
vez como o inferno que ele reinava. Ali, ela percebeu que era como se seu
porto seguro tivesse retornado, como se estivesse prestes a ser salva daquilo
que não entendia.
O deus deslizou pelo salão silencioso e tirou a mão esquerda do
bolso para oferecer a ela, ignorando o irmão.
“Você me prometeu uma dança, milady”
Perséfone ofegou.
Sem esperar, deslizou a mão na dele, quente, certa.
Hades a recebeu e, de mãos dadas, os dois foram até o centro da
pista de dança. Depois de alguns segundos, ainda surpresos, os músicos
perceberam que precisavam tocar alguma coisa.
Hades a puxou pela mão para mais perto de seu corpo quando a
música começou a preencher o ambiente lentamente. Suave, sua mão direita
a envolveu pela cintura e foi então que o perfume dele a invadiu. Ele tinha o
aroma de pinheiro quando era queimado no verão, de noites em claro em
fortalezas tempestuosas, de noites de amor.
Ela fechou os olhos e apertando o uniforme dele com os dedos, o
trouxe para mais perto.
“Eu sei” Ele sussurrou rouco para ela, colocando o queixo no topo
de sua cabeça. “Estou aqui”
Ela queria perguntar para ele por quanto tempo.
Perséfone não o via há meses. Depois daquele dia, achou que o
tempo seria capaz de fazê-lo desaparecer de sua mente, de seu coração... de
seu corpo. Mas estava errada.
Agora, a deusa queria conversar com ele, escutar sua verdade. Havia
tantas perguntas para fazer, e ainda assim, sentia que nada que ele dissesse
iria ser capaz de apagar o que ele tinha feito... ou suas mentiras.
Então, ela o apertou ainda mais para si, sabendo que ele iria embora
em breve.
“Como está Trite? Como eles souberam que ela estava aqui?”
Hades se afastou ligeiramente para olhar nos olhos dela. A resposta
estava lá... e ali, a metros deles. O deus dos mortos não disse nada em
resposta. Não precisava.
“O que você fez hoje foi incrível.” Ele fez uma pausa e então disse:
“Eles vão chamar o garoto Perseu... em honra a deusa que salvou a vida
dele”
“Oh, Hades”
Ele abriu um sorriso em reação e tocou a face dela.
“Todos os dias que tenho a honra de te ver, sua beleza me enfeitiça
ainda mais.”
Ela tocou a mão dele, afastando-o.
“Por que você veio?”
Ela podia ver pelos olhos dele. A redenção, a paixão.
Hades queria dizer alguma coisa, mas ele não conhecia as palavras.
O deus não estava acostumado com aqueles sentimentos, eles eram ardentes
e novos demais.
Ele nunca tinha amado antes.
A compreensão do que o silêncio dele significava atingiu Perséfone.
Ela arregalou os olhos, tentando se afastar.
Hades a prendeu em seus braços e os dois continuaram a dançar a
música lenta que vibrava ao redor.
“Não faça isso” ela implorou baixinho. “Por favor”
E então, ele disse, por fim:
“Desde o dia que encontrei você em meus campos, eu soube que
algo terrível aconteceria. Você estava perdida, mas em vez de te ajudar a se
encontrar, eu decidi que queria me perder em você.”
“É tarde demais” Ela murmurou, sentindo o peito apertar.
“Eu sei”
E talvez fosse por isso que ele não conseguia encontrar as palavras
certas para dizer a ela o que sentia.
Os olhos deles se encontraram. Havia algo estilhaçado ali, algo
perdido. Perséfone encostou a face no peito dele e eles dançaram em
silêncio por mais alguns minutos. O coração dele batia forte no peito.
“Em outro mundo, isso não seria tão difícil. Mas você mentiu para
mim, Hades. Não só uma vez. Você escondeu verdades sombrias de mim. E
o pior disso é que estar presa no submundo e o que aconteceu entre nós...
definiu meu futuro. Eu nunca tive escolha.”
Os lábios dele tocaram a orelha dela, e ele sussurrou dolorosamente:
“Eu daria minha própria alma para te dar liberdade, Perséfone.”
A música terminou e outra começou em seguida. Hades aproveitou a
deixa, se afastando dela. Perséfone fez uma longa mesura para ele.
“Eu tenho um presente para você, milady”
Ao redor, um dos convidados gritou:
“Olhem para os céus!”
E então, todos correram para as grandes vidraças e janelas e
assistiram quando o céu escuro, coberto por estrelas, foi tomado pelas luzes
do norte, pela aurora boreal.
As janelas do salão iam do chão ao teto em formato ogival e dali
Perséfone assistiu ao céu estrelado ser tomado pelas luzes verdes e roxas.
Era belo, sombrio e único.
Era uma declaração. Uma promessa.
Ela encontrou Hades.
“Em outro mundo” Ele repetiu as palavras dela. “Eu teria te feito
minha rainha no instante em que te conheci.”
A mão dele de repente deslizou para longe e Hades a pegou pelo
rosto, abaixando os lábios para tomar os dela. Primeiro, gentilmente, e
então, voraz. Assim como aquela noite no Castelo das Tempestades, assim
como na primeira vez que fizeram amor.
Por causa da comoção, todos os convidados estavam distraídos
demais para assistir aquele beijo.
Quando o deus se afastou dela, Perséfone o puxou pelo seu
uniforme.
“O que você fez?” Algo estava errado, ela conseguia sentir.
Delicadamente, Hades tirou as mãos dela de sobre si, abaixando-as
ao corpo e dando um passo para trás.
“Eu livrei você da punição, Perséfone. Seus dias no mundo dos
vivos agora não são limitados. Você pode viver sua vida sem nunca mais ir
ao submundo. Você não está mais presa ao meu reino... presa a mim.”
“Espere... O quê?”
O deus apertou as mãos em punho e ergueu a cabeça, olhando ao
redor. Zeus e sua guarda, pois agora era óbvio que ele tinha trazido seus
filhos como acompanhantes caso Hades o atacasse, já não estavam mais ali.
“O que você fez?!” ela repetiu.
“O que eu deveria ter feito muito tempo atrás.”
Perséfone deu um passo adiante para tocá-lo, mas ele então disse:
“Viva entre os vivos, Perséfone. Viver entre os mortos deveria ser
uma escolha e apenas uma escolha se você não for uma alma.”
Ela sentiu uma lágrima escorrer pelo rosto. Hades se foi no segundo
seguinte.
As luzes da aurora permaneceram, no entanto. Mais do que um
presente, aquilo era a forma dele de dizer o que verdadeiramente sentia.
Era a forma de Hades dizer que a amava.
CAPÍTULO XXIV – O PASSADO

O Palácio dos Corais parecia


diferente naquele dia. O sol
quente de primavera cobria a
praia e as grandes fenestras do prédio, e, ao vento, bandeiras de linho
dançavam no ar.
Aquele era o dia que o filho de Poseidon seria abençoado pelo mar.
Ele, agora, também era o afilhado de Perséfone. Alguns dias atrás,
uma carta de Trite havia chegado, pedindo para que ela fosse madrinha.
Com os sapatos nas mãos, ela deixou as ondas tocarem seus pés
descalços. Ela vestia um longo vestido branco com tiras cor de rosa, que se
movimentavam a cada toque da brisa. Sobre o colo, o decote era delicado e
sensual. O vestido não tinha mangas.
Perséfone tocou o colar de âmbar entre os seios. Era a primeira vez
que o usava desde o dia que descobriu o passado de Hades.
A verdade era que ela não sabia se ele estaria ali, mas, no mais
profundo, esperava que estivesse.
Trite acenou para ela, vendo-a à distância. A deusa correu até lá e
abraçou a mortal. O corpo perfeito, agora sem o ventre inchado, parecia
ainda mais torneado do que antes. Ela vestia mais um dos vestidos de corda
trançada, mas esse, no entanto, tinha cor de alga. Seus cabelos cacheados
saltavam sobre o rosto, sua pele mais dourada do que nunca.
Aquela era a primeira vez que a via desde o dia do ataque. Era
certamente um alívio não ver nenhum sangue sobre ela. Trite abriu um
sorriso e a puxou para dentro do palácio.
“Você está absolutamente deslumbrante como sempre.”
Perséfone agradeceu com um pequeno menear da cabeça. Ela tinha
deixado seus longos cabelos cor de mel escorrerem sobre os ombros
desnudos em delicadas ondas, caindo até abaixo dos quadris.
“Perseu está dormindo, então podemos beber” Trite riu, levando-a
até a varanda onde garrafas e mais garrafas de Lágrimas estavam à espera.
“Onde está Poseidon?”
Trite fez uma careta e as duas caminharam em direção a um gazebo
sobre a areia da praia, onde havia almofadas ao chão e o teto feito de redes
de pesca. Elas colocaram gelo na bebida e se sentaram. A brisa vinda da
praia carregava o aroma da água salgada. Gaivotas dançavam aos céus. O
dia estava perfeito.
“Tentando convencer o padrinho a comparecer”
“Padrinho? Quem é... ah”
Trite deu um sorrisinho divertido.
“Desculpe-me”
Perséfone deu de ombro, sentindo um calor dentro do estômago.
“Eu ouvi alguns sussurros... Sobre Hades e sua mãe.” A rainha
suspirou, sem rodeios. “Eu sei que fofoca no mundo dos deuses é como
veneno e você não precisa me escutar, mas quando conheci Poseidon, ele
tinha dificuldade para me contar sobre seu passado, sobre o que passou
quando era mais jovem. Esses deuses, eles já viveram por milênios e...
ainda assim, o passado deles os perseguem. Até que um dia, eu disse a ele
que o passado não nos define. Foi nesse dia que ele se abriu para mim.”
“Você não entende, Trite... Hades mentiu sobre a profecia, sobre o
que fez com...”
A mortal concordou.
“Eu não entendo, é verdade. Eu sei que sua mãe estava lá... quando
tudo aconteceu, quando Rea morreu, mas Poseidon também estava. Talvez
você deva conversar com ele.”
“Talvez” Perséfone deu um gole grande na bebida, respirando
fundo. Ela tinha pensado nisso, mas não saberia como abordar o assunto
com ele.
“Então, como está o submundo?”
A deusa riu.
“Sombrio, como sempre”
“Você gosta de lá” Não era uma pergunta.
“Mais do que o mundo dos vivos, devo admitir”
“Por quê?”
“Há uma mágica naquele lugar... as almas, a existência. É triste, às
vezes, mas também é reconfortante. Muitos encontram aquilo que sempre
procuravam no mundo dos vivos, em morte.” Ela pensou em Eurídice e
Orfeu. “E eu acho que o que faço em Asfódelos dá um pouco de paz as
almas, as ajudam de alguma forma...”
“Você deveria expandir... ir para o Elísio. Ouvi dizer que não é tão
interessante assim”
Perséfone gargalhou. A cidade de espelhos, de palácios brilhantes e
catedrais não era tão interessante para ela...
De repente, sobre a praia, as duas viram dois corpos aterrizarem
com um baque seco. Poseidon tinha Hades preso pela lapela da jaqueta de
couro enquanto o deus dos mortos segurava Poseidon para longe de si.
Assim que eles perceberam que não estavam mais onde estiveram antes, se
ergueram com um pulo, ficando em pé e eretos. Hades afastou as mãos do
irmão com um puxão, a face contorcida de raiva.
Os dois então encontraram as duas assistindo à cena e Poseidon
segurou uma risada, tossindo seco, limpando a areia do casaco que usava.
Trite revirou os olhos, como se aquela não fosse a primeira vez que
tinha visto os dois assim.
“Vamos lá” Poseidon empurrou o ombro do irmão, brincalhão.
Agora que Perséfone conhecia os três irmãos, ela havia decidido que
Poseidon era seu favorito.
Hades bufou, absolutamente consternado. Era óbvio que tinha sido
arrastado até ali contra vontade. O deus dos mares se jogou sobre as
almofadas ao lado de Trite e beijou seu rosto, tomando um gole de Lágrima
do cálice dela.
“Ei” ela resmungou, com um sorriso no rosto.
Hades se aproximou, mas ficou ali, distante. A última vez que a
deusa o tinha visto naquelas mesmas praias, ele estava sem camisa e
descalço. Agora, no entanto, ele estava completamente vestido de preto,
com a jaqueta de couro sobre a camisa que deixava o topo do peito a mostra
e botas longas que iam até os joelhos. Em seu olhar, ela via cansaço.
Os olhos ônix tinham um aspecto sombrio e singular. A deusa se
perguntou o que ele estivera fazendo.
“Ela não vai morder” Poseidon sussurrou para o deus dos mortos,
fazendo menção para que ele se aproximasse.
“Não posso fazer promessas” Perséfone disse, baixinho, se
arrependendo no segundo em que as palavras saíram de sua boca.
Hades virou os olhos para ela imediatamente.
Trite e Poseidon explodiram em risadas. O deus dos mortos, no
entanto, não parecia compartilhar do divertimento. Ele tirou a jaqueta de
couro e caminhou para dentro do palácio sem dizer nada.
“Quem mais está vindo?” Perséfone quis saber.
“Atena, Hefesto, Afrodite e alguns outros amigos.”
A deusa concordou e olhou adiante, para o mar. O calor estava quase
insuportável, mas o gazebo e a bebida gelada ajudava. Os três ficaram ali
por um tempo, conversando sobre a vida de pais novos. Perséfone
mencionou a viagem que faria com Hermes em breve. Ele não a tinha
visitado desde que conversaram naquele dia, mas ela acreditava que os
planos ainda estavam de pé.
Poseidon ficou sério ao ouvir isso. Ele ergueu uma sobrancelha e
disse:
“Não diga a Hades”
Trite deu uma tapinha no ombro dele, como se ele não pudesse falar
aquilo.
“Por que eu diria a ele?” Perse franziu o cenho.
“Ignore-o” Trite franziu o cenho.
“Hermes é um deus traiçoeiro...”
“Eu achei que ele e Hades tinham uma...” Perséfone queria dizer
amizade, mas sabia que não era bem isso. “Parceria.”
“Eu duvido muito.” A voz de Poseidon era resoluta.
“Hermes me disse que eles conversaram algumas semanas atrás...”
“O que quer que ele tenha dito a você, é uma mentira” O deus dos
mares fez questão de pontuar a última palavra.
“Assim como seu irmão...” ela sussurrou.
Trite percebeu que precisava dar espaço aos dois e se ergueu, dando
a desculpa de que iria buscar mais garrafas da bebida salgada.
Poseidon olhou ao redor e respirou fundo.
“Ele era nada mais do que uma criança, Perséfone. Todos nós três
éramos.” Aparentemente os sussurros do que tinha acontecido no submundo
haviam se espalhado rapidamente, como praga.
“Você está falando sobre...”
“Sim, o dia que Cronos nos encontrou. O dia que matou Rea. Hades
era o favorito dele. O nosso pai via algo obscuro dentro de meu irmão e ele
estava certo, isso era o que o levaria a ser tão bom naquilo que faz. Torturar
almas, se manter distante, ser um rei... No entanto, ele era inocente. E
Cronos se aproveitou disso.” Ele fez uma pausa, como se apenas lembrar
daquilo o corroesse. “Hades costumava sonhar com nosso pai. Esse era um
dos poderes de Cronos, os sonhos e manipulação do que mais queríamos
para o futuro. Hades não disse a ele onde estávamos, ele nunca faria isso.
Cronos, no entanto, viu dentro da mente dele o que ele mais queria. Que
nossa família nos reunisse. E então, foi uma questão de tempo até ele nos
encontrar. Zeus nunca permitiu que Hades se esquecesse disso. Dessa
fraqueza. E é por isso que meu irmão tem se isolado por todos esses anos.
Para que nunca tivesse razão para ser fraco novamente.”
Perséfone ficou em silêncio. Seu coração batia forte no peito.
“Hades cometeu um erro, e ele sabe disso. Ele não matou Cronos
imediatamente, quando ele fugiu de sua prisão. Hades não o livrou da
prisão, mas não fez nada para impedi-lo... Na época, ele estava cansado de
Zeus e tudo o que fazia, e pensou que talvez fosse a melhor opção. Que
Zeus fosse retirado do trono. E vou ser bem sincero a você, Perséfone, eu
ainda acho que é. Depois do ataque em seus palácios, faltou pouco para que
eu não o matasse eu mesmo. Hades foi aquele que me convenceu que não
valia a pena. Principalmente agora que eu tenho duas razões para viver.” O
olhar dele procurou Trite adiante. Ela vinha de dentro do palácio com o
bebê nos braços. A brisa tocou os dois, bagunçando os cabelos dela.
“Quando a batalha começou, você não poderia encontrar um
soldado mais ameaçador e mortal como Hades. Ele se sentia culpado e
responsável por Cronos. E é por isso que fez aquela tatuagem estúpida.
Cronos deu a ele tanta dor que meu irmão decidiu que os dois morreriam
juntos. O dia que Hades morrer, Cronos morrerá com ele.”
A deusa apertou os olhos.
“O que faço com isso? Com tudo o que você está me dizendo? Ele
ainda mentiu para mim. Escondeu...”
“Ele é Hades. Tudo o que ele faz é se esconder, e você sabe bem
disso, deusa.” O deus sorveu um gole da bebida, umedecendo a garganta.
“Eu entendo sua mãe a cada dia que passa e meu filho cresce. Eu não iria
querer que minha filha se envolvesse com um deus que passa metade do dia
torturando almas e a outra metade se escondendo em palácios e castelos no
limiar do submundo. Que vida ela teria a não ser o amasse?”
A brisa marinha passou pelo rosto dela.
Perséfone voltou a encontrar Trite, que agora amamentava o filho a
distância, com um sorriso no rosto. Do outro lado da praia, no entanto, ela
viu Hades. Ele tinha tirado a camisa e as botas e seguia em direção ao mar.
Ela assistiu quando ele se jogou na água, mergulhando e desaparecendo
entre as ondas.
“Poseidon!” A voz de Afrodite surgiu entre eles. Ela estava na
varanda do palácio, acenando para ele. Hefesto estava com ela. O deus do
mar se ergueu e apertou o ombro de Perséfone, seguindo em direção aos
convidados.
A deusa suspirou e se levantou, indo em direção à praia. Ela ficou
distante do mar, observando as ondas com seu cálice na mão.
Hades não demorou para surgir na superfície. Ele subiu sobre a
água, altivo, com aquele corpo musculoso e selvagem, fazendo um arrepio
correr pela pele dela. Perséfone umedeceu os lábios e tentou afastar
qualquer imagem que tinha dele, nu sobre seu corpo, dentro de si ou com a
boca entre suas pernas.
Ele vestia shorts curtos e quando a viu ali, a sua espera, apertou os
olhos. Ele passou a mão pelo cabelo molhado, caminhando até lá, deixando
a água do mar correr por seu torso firme e forte.
“Padrinho” ela comentou baixo quando ele chegou perto.
“Madrinha” Hades resmungou. “Agora você estará para sempre
conectada a nós”
“Não tenho certeza se você acha isso bom ou ruim”
“Você sabe bem o que eu penso.”
Perséfone respirou fundo, vendo a expressão séria dele.
“Por que está agindo como se não tivesse dito o que me disse
semana passada?”
Hades bufou e passou por ela.
“Eu também te disse para não viver entre os mortos”
Ela ergueu os braços e olhou ao redor, irritada.
“Aqui não é o submundo”
“Não, mas se insistir em ficar perto de mim, não terá escolha... E eu
te dei essa escolha, então escolha certo.”
“Espere. Então, por que veio até mim e... me deu aquele presente?
Por que você não mandou Hermes ou...”
“Hm” Ele grunhiu em resposta ao nome do mensageiro, balançando
a cabeça.
Hades deu uma volta, caminhando em direção a um aposento que
tinha as portas viradas para o mar. Na varanda desse quatro tinham algumas
toalhas a sua espera. Ele alcançou uma.
Ela colocou a mão sobre a cintura e assistiu ele se secar levemente,
jogando a tolha adiante e seguindo para dentro dos aposentos.
“Viver entre os vivos, você disse...” Ela deu de ombros, decidindo
ignorar o conselho de Poseidon. “Eu viajarei o mundo dos mortais em
algumas semanas.”
“Isso é ótimo, Perséfone. Fico feliz.” Ele buscou uma camisa preta
em um dos armários.
“Com Hermes...”
A porta do armário se fechou em um baque. Ela ouviu a respiração
alta dele.
“O que espera que eu diga?” Hades rosnou.
“Eu não sei. Mas você ir até meu baile e dizer que me ama mudou
algumas coisas.”
Ele ficou de costas para ela.
A declaração pesou sobre os dois.
A costas de Hades subiram e desceram pesarosamente. O escudo
dele ainda estava ali, deixando-a a mercê do silêncio.
“Não mudou o modo como você olhou para mim quando sua mãe te
disse sobre meu passado... e a profecia.”
“Eu não me importo com a profecia... nunca me importei. Você
mesmo disse, profecias são mutáveis. Juntos, poderíamos mudá-la,
poderíamos fazer com que...”
Ele se virou para encará-la. O olhar dos dois se encontraram. Um
calor intenso subiu pelo corpo dela.
“E quando você descobrisse sobre Cronos?”
“Poseidon me disse...”
“Poseidon não sabe o que fiz!” Ele rugiu. “Poseidon não carrega a
culpa que eu carrego. Todos os dias, quando olho essa tatuagem na minha
pele, lembro quão fraco fui... e o quão fraco você me deixa.”
As portas que davam para a praia se fecharam com um baque. Ele
tinha, mais uma vez, escondido a tatuagem, mas essa então começou a
surgir sobre a pele dele lentamente, como tinta em água.
O deus deu um passo para frente, para ela.
“Você não vê?” Hades sussurrou. “Eu quero que você seja feliz...
longe de mim. Por isso que tirei suas memórias, por isso que menti para
você... por isso que estou deixando você ir, livre.”
Perséfone apertou os olhos. Eles se encararam longamente. O peito
dela batia rápido no peito. Os olhos ônix dele estavam perdidos em
sombras, memórias e dor.
“Você mesmo disse...” Ela falou baixinho. “Que queria se perder em
mim. E, se eu quiser fazer o mesmo?”
“Não posso permitir que isso aconteça.” Ele tensionou a mandíbula.
“Por quê não?”
“Eu condenei minha alma por você, Perséfone. Não posso permitir
que você faça o mesmo por mim.”
Ela deu um passo adiante, cobrindo a distância entre eles.
“Você me disse que tudo pode ser salvo”
“Eu estava falando de uma árvore”
“Mas eu quero salvar você, por isso te esperei e esperei... e ainda
espero. Estou esperando o momento em que você vai ser verdadeiramente
meu.”
“Deuses!” Hades jogou a camisa no chão, caminhando até ela e
pegando-a pelo rosto. “Você não vê?” ele disse entredentes. “Você me fez
seu naquele dia em que se ajoelhou para mim”
Perséfone levou os dedos até o rosto dele e sussurrou:
“Então, me deixe fazê-lo novamente. Dessa vez, para toda a
eternidade.”
O torso de Hades foi e voltou em uma respiração pesada. Perséfone
passou a mão sobre os músculos tensos dele, devagar, se ajoelhando sob
ele.
As batidas de seu coração eram infrequentes. O aroma dele era uma
mistura de água do mar e folhas secas no inverno. Ela ergueu os olhos e
encontrou os dele.
Hades soltou um grunhido baixo, seu rosto estava contorcido em
indecisão. Perséfone levou a mão para encontrar o membro dele, mas ele a
pegou pelo pulso, balançando a cabeça negativamente.
“Não”
E então, sua expressão se transformou completamente. Perdido em
desejo, luxúria. Sua face agora tinha algo feroz e determinado.
A deusa sabia bem o que estava fazendo com ele.
Ele levou os dedos até a nuca dela e puxou seu rosto delicado para
cima, para olhar bem em seus olhos.
“Olha o que você faz comigo” ele falou roucamente. “Se você me
tocar, eu não vou conseguir parar. Não hoje, nem amanhã. Você mencionou
a eternidade... Se você me tocar agora, Perséfone, eu terei que encontrar um
jeito de dominar as medidas do tempo, pois nenhuma quantidade de anos,
séculos ou milénios será o bastante para saciar o desejo que sinto por você.”
Ela abriu um sorriso e passou a língua por sobre os lábios.
“Eu não quero que você pare”
Os olhos dele brilharam por entre a claridade que trespassava as
frestas das portas que davam para a praia, e de repente, as cortinas caíram,
fechando os dois ali a meio da penumbra.
“Hm”
Perséfone fechou os olhos, tomando a voz rouca dele com prazer.
O deus, então, soltou os dedos dela e tocou seu queixo.
Ela levou as mãos até os shorts, ávida. Hades já estava
completamente rígido e o membro grande dele caiu sobre suas palmas
quentes.
Ela estava prestes a colocá-lo sobre a língua, sua boca cheia de
saliva, quando ele a puxou para si, pela nuca, fazendo-a se erguer.
“Ah” Ela reclamou e ele abriu um sorriso.
“Hoje eu vou fazer você implorar por mim, deusa.”
“Eu não imploro a ninguém” Perse deu um sorrisinho.
“Vou te provar errada”
Ele abaixou os lábios nos dela, lentamente, mas sem tocá-la.
Sem pressa, ele inspirou o aroma floral da pele da deusa e roçou sua
boca na dela, tentativo, suave como veludo, doce e rubro como uma romã.
A deusa fechou os olhos e o tomou por inteiro, sentindo os músculos
molhados por entre seus dedos. Ela estava entregue. Cada centímetro de seu
corpo exclamava por ele. O vazio dentro de seu âmago pulsava.
O hálito dele sobre sua pele macia, cortante.
“Você quer que eu te beije” Hades declarou. Mesmo assim, ela
respondeu, ofegante, entre os lábios dele.
“Sim”
“O que mais você quer, minha deusa?”
“Você”
“Então, me peça”
“Eu preciso de você... dentro de mim” A voz dela era um mero
sussurro.
“O que você quer dentro de você?”
“Deuses... Hades!” ela exclamou, tentando puxá-lo para aquele beijo
que não vinha.
“Hm. Diga meu nome mais uma vez”
“Hades” Ela ofegou, sentindo os dedos dele abaixarem por sua
coluna, lentamente, descendo por seus quadris. Ela conseguia sentir o
membro rijo dele entre as coxas.
O deus então levou a mão para dentro do vestido dela, não
demorando para encontrar o centro dela úmido, completamente encharcado,
esperando por seu toque.
E foi então que os lábios dele caíram sobre o dela e Hades a beijou
sofregamente.
Ele não tinha espaço para delicadeza naquele momento e
simplesmente esqueceu do mundo ao redor. Havia meses que pensava nela,
sem parar, em seu corpo, seu calor. O deus sonhava em se afundar dentro
dela mais uma vez, dentro seu sexo apertado e ouvi-la gritar seu nome
quando chegasse ao ápice.
Perséfone era como uma bruxa. Ela tinha enfeitiçado não só seu
coração, mas seu corpo. Depois dela, a possibilidade de ter outras mulheres,
ninfas ou o que quer que fosse, completamente desapareceu, pois nada seria
capaz de fazê-lo se sentir como ele se sentia agora, com ela nos braços.
Os dedos do deus prendiam-na pelos cabelos e a puxava mais para
si. Ele enfiou a língua dentro de sua boca, fazendo uma onda de prazer
cobrir o corpo dela.
Hades a empurrou para a parede, pairando sobre ela. Perséfone
soltou um gemido baixo quando a pele dele encontrou a sua. O corpo firme
do deus se encaixou em todas suas curvas macias.
Ele puxou o vestido para cima, enfiando dois dedos dentro dela.
Apertada e escorregadia. Perséfone soltou um gemido alto e buscou o
membro dele entre as mãos.
“Você está tão duro!”
“Espere senti-lo dentro de você...” Hades sussurrou sobre o ouvido
dela, rouco, mandando calafrios por sua espinha.
Ele então puxou o decote sensual dela para baixo, os mamilos
rosados caindo em suas mãos. Hades desceu os lábios até lá e passou a
língua por ela, clamante. Seus lábios viajaram por seu pescoço, deixando
uma trilha de beijos pelo colo, pelo queixo, até encontrar a boca dela mais
uma vez.
O deus pegou o membro nas mãos e levou entre as pernas dela,
brincando à entrada. Perse estava pronta. Pronta demais. O desejo parecia
escorregar por entre suas coxas, tão molhada que estava.
Ela fechou os olhos, esperando, aguardando que ele a invadisse de
uma vez, com força.
Hades sussurrou, rouco:
“Implore”
“Hades...” ela gemeu, mordendo o lábio. Os dedos dele brincavam
com seu mamilo.
“Você gosta assim”
“Sim”
“Então, implore”
“Não...”
Hades então investiu seu membro dentro dela, como ela queria.
Intenso, forte. A deusa soltou um arquejo de dor e prazer, o qual ele
capturou com os lábios. O deus se moveu dentro do centro apertado e
quente de Perséfone, dando um rugido baixo.
Ele levou a mão até o botão entre as pernas dela, fazendo círculos
deliciosos.
Perséfone gemeu alto, sentindo o prazer crescer e crescer dentro de
seu âmago.
As investidas dele ficaram mais rápidas e ele acabou socando a
parede atrás dela, soltando um gemido rouco e profundo de prazer. Ela o
puxou mais para mais perto, arranhando sua pele, e então sentiu o ápice
chegando, apenas ser interrompido.
“Implore” ele rugiu. “Agora!”
“Sim... Ah! Por favor!” ela gritou, cedendo, coberta por uma camada
de suor.
Ele atacou a boca dela e deu a ela o que clamava.
A onda de prazer quebrou-se dentro da deusa com força e ela gemeu
forte, chorando baixinho.
Hades explodiu dentro dela, jogando a cabeça para trás e soltando
um rosnado gutural. A semente dele escorreu por entre as pernas dela.
Perse abaixou o rosto sobre o peito dele e ofegou. O deus fez o
mesmo, colocando o queixo na cabeça dela, tentando controlar a respiração.
Depois de alguns minutos, ele quebrou o silêncio, dizendo baixo e
resoluto:
“Não posso deixar você viajar com Hermes”
Perséfone ergueu o rosto, tentando afastar a visão nublada causada
pelo prazer. Ela o empurrou de si devagar e Hades cedeu.
Se afastando, ela foi até uma penteadeira ao lado da cama que eles
tinham ignorado. Ali, como em todos os palácios de deuses, havia uma jarra
com água morna pronta para uso. Ela derramou a água em uma bacia ao
lado e molhou uma pequena toalha.
Ele tomou a toalha da mão dela.
“Eu faço isso”
Perséfone o encarou e foi até a cama, ainda com o vestido sobre os
quadris e a parte de cima revelando seus seios cheios.
Ela abriu as pernas e assistiu ao deus dos mortos balançar com a
cabeça, como se dissesse que ela estava jogando um jogo sujo. Perséfone
abriu um sorriso e deixou seus joelhos bem abertos.
Hades tinha subido os shorts ainda molhados, mas ela conseguia ver
que a ereção dele ainda era presente, pulsante.
Indo até ela, ele se ajoelhou, levando o pano morno entre suas
pernas e limpando o líquido de seu prazer. Perséfone o admirou, mordendo
o lábio. Ela o queria novamente. Enlouquecidamente. E sabia bem que ele
sentia o mesmo.
Quando Hades terminou, jogou a toalha de volta na bacia com água
e voltou até ela, ajudando-a a ajustar o vestido.
“Você ouviu o que eu disse, não ouviu?”
“Eu quero ir e preciso fazer isso por mim mesma... Minha vida no
mundo dos vivos é inexistente.”
“Então, vá só. Você não precisa dele”
Perséfone suspirou, passando a mão sobre sua vestimenta na
tentativa de esconder os vincos. Ela cruzou os braços.
“Eu achei que você o considerava alguém de confiança...”
“Eu nunca disse isso” Ele escarneceu, indo até o armário e buscando
roupas secas.
Da cama, Perséfone assistiu-o se vestir. Ele colocou calças de
algodão preto que serviam perfeitamente em suas pernas grossas e
musculosas, e mais uma daquelas camisetas de sempre. Ele simplesmente
ignorou o cordão no topo do peito, deixando-o aberto.
Descalço, ele se virou para ela e passou a mão nos cabelos úmidos.
“Hermes me disse que vocês conversaram sobre nossa briga”
Hades franziu o cenho, fazendo uma expressão que dizia ‘Olhe para
mim, pareço o tipo de deus que faria algo assim?’. Realmente, Perse
concordava, ele não fazia. Ela não teve tempo de aprofundar o assunto, no
entanto.
Os dois foram interrompidos por batidas na porta. Hades foi até lá e
a abriu, encontrando Trite. Ela olhou para dentro do espaço com um olhar
suspeito e soltou a respiração que prendia quando viu Perséfone sobre a
cama.
“Não vou matá-la, Trite” ele disse, sério.
“Olhe, as paredes não são tão grossas assim e pelo que ouvi parecia
que vocês estavam atacando um ao outro e... Eu só queria checar.”
Perséfone caiu na gargalhada. Hades revirou os olhos.
“Estamos esperando por vocês.”
Quando Trite saiu, Hades resmungou:
“Quando ela e meu irmão se conheceram, eu não podia passar perto
desse palácio. Até as gaivotas desapareceram daqui por seis meses, tanta era
a gritaria dos dois.”
Perséfone caiu na cama, com lágrimas nos olhos de tanto rir. Hades
não conseguiu se segurar e riu junto.
CAPÍTULO XXIV – O TRAIDOR

A s águas do mar banharam


Poseidon, Trite e a criança.
Poseidon saiu de entre as
ondas e entregou Perseu nos braços de Hades, o qual prometeu protegê-lo e
guiá-lo. Perséfone fez o mesmo. Esse seria o papel deles de agora em
diante.
Afrodite, Hefesto, Atena, outros deuses menores e até mesmo alguns
mortais assistiram à cerimônia. Da praia, eles viram quando sereias e seres
marinhos se aproximaram, dando viva ao príncipe dos oceanos.
O mar então se explodiu em figuras mirabolantes. Poseidon
segurava seu tritão enquanto Trite, ao seu lado, assistia com um sorriso no
rosto, abraçando o filho nos braços.
Quando a demonstração acabou e os seres marinhos se foram,
aqueles que restaram, se reuniram ao redor de uma mesa grande, onde um
banquete estava à espera.
Era um banquete para deuses. Manjar, hidromel, ambrosia, vinho
dourado e lágrima estavam espalhados pela mesa. Havia porco assado,
vários pães de rum e romãs vermelhas como sangue. O entardecer caiu
sobre eles rapidamente e não demorou muito para que logo só restassem
Hefesto, Atena, Perséfone e Hades à mesa.
Afrodite tinha bebido demais e dormia com seus longos vestidos
espalhados sobre as almofadas do gazebo que Perséfone estivera naquela
tarde. Atena estava um tanto alta, mas ela e o irmão pareciam se dar bem e
riam de alguma coisa que a deusa não tinha ouvido. Hefesto tinha os
cabelos espetados, mas para a ocasião havia vestido uma jaqueta bordada
com metal. Atena tinha seus longos cabelos presos em um rabo de cavalo e,
ao contrário de todas as deusas ali, tinha escolhido vestir calças.
Hades estava do outro lado da mesa, assistindo Perséfone há um
tempo. Ele se ergueu e foi até ela, oferecendo sua mão quente.
“Caminhe comigo”
Ela o aceitou e eles começaram a caminhar pela praia, lado ao lado.
Eles afastaram o toque, já que não estavam sozinhos, mas suas mãos
tocavam ligeiramente com o balançar dos corpos.
“Por que alguns dos filhos de Zeus são contra ele e outros não são?”
Hades riu da pergunta dela.
“Depende de quem você fala. Apolo e Ártemis amam o pai porque
são tão cruéis quanto ele.”
Perséfone franziu o cenho.
“Eles não pareceram tão ruins assim...”
“Você diz o mesmo de mim”
Ela revirou os olhos.
“Como eu disse, a minha relação com Ares é difícil, mas ele pode
ser um deus sensato. E ele ama os irmãos.”
A deusa balançou a cabeça, lembrando-se da visita dele. Ela ainda
guardava a adaga que ele lhe dera.
“Atena sofre pela mãe. Zeus, como faz com qualquer mortal ou
deusa que conhece, a prometeu o mundo e então a abandonou. Hefesto...
bom, ele carrega a rejeição do pai e da mãe em metade do corpo. É bem
óbvia a razão de seu desdém.”
“Zeus culpa você pela morte de Rea.”
Hades concordou com a cabeça, enfiando as mãos nos bolsos da
calça. A areia abaixo dos pés descalços dos dois era morna.
“Entre outras coisas. Acredito que ele gostaria de ter sido o favorito
de Cronos... algo que eu felizmente dispensaria e daria a ele. A verdade é
que nós somos irmãos, mas a conexão que carrego com Poseidon nunca foi
presente na relação que tenho com Zeus.”
“Sinto muito.”
“Isso foi há milênios, minha deusa.”
“Ainda assim, permanece.” Ela respirou fundo e perguntou, por fim:
“Você gostaria de ser rei do Olimpo?”
“Nunca” ele disse rápido, absoluto. “Meu lugar é no submundo,
sempre foi. Eu já te disse isso”
“Mas a profecia...”
“Muito do que faz uma profecia é apenas semântica, Perséfone.
Claro, o tipo de poder e aceitação que Zeus tem é algo invejável... e um dia
já o desejei, mas não mais. O poder dele fez o que ele é. Um deus sujo,
mesquinho, traiçoeiro. Eu sou cruel com as almas que julgo, mas nunca
com almas que não merecem ser torturadas. Meu irmão... não pensa assim”
Perséfone então parou e, por fim, tomou a mão dele na sua. Ela não
se importava se os outros os vissem.
“Me diga o que você deu a ele... para me livrar da punição”
Silêncio caiu entre os dois. Hades fechou os olhos e quando os
abriu, assistiu ao mar, banhado pela noite e as estrelas.
“Não”
“Hades... Eu amo o submundo, ele faz parte de mim. E não por sua
causa, não porque você estava lá. O que construí em Asfódelos precede
você.”
“Hm” Ele se aproximou, tocando o medalhão de âmbar, como se
dissesse que não era verdade. Mas era, para Perséfone. “Você pode escolher
vir até mim, então... vir até seus amigos. Você não precisa pedir. Só precisa
querer. E é por isso que fiz o acordo com Zeus. Eu quero que você queira
estar lá.”
Ele tocou a face dela, gentilmente.
“Eu preciso ir.” A noite havia chegado. Ele ergueu a mão dela e
beijou seus dedos, um por um. “Estarei em seus aposentos pela manhã... se
você me aceitar.”
Ela sorriu para ele.
“Você pode me ajudar na estufa mais uma vez”
“Ou eu posso de foder a manhã inteira”
Ela riu.
“Podemos fazer os dois”
“Fechado” Ele desceu sobre ela e tomou seus lábios gentilmente.
A brisa do mar então passou sobre os dois e Hades desapareceu no
segundo seguinte.
O coração dela permaneceu calmo quando ele se foi, pela primeira
vez em quase um ano.
Perséfone tinha abandonado suas esperanças, pois agora elas eram
certezas.
Quando voltou ao Palácio de Corais, os outros estavam de volta à
mesa. Ela se despediu, sabendo que estava na hora de ir.
Seus pés repousaram na grama de seus jardins pessoais, quando se
transportou para os Palácios das Cerejeiras. Archotes acaloravam o arredor,
iluminando a fonte ao centro e ao jogo da Rainha Prometida. Ela passou
pelos dois, entrando em seus aposentos.
Ali, a meio da entreluz, uma sombra surgiu.
Hermes deu um passo em direção à claridade, encontrando-a.
“Deuses!” Perséfone apertou o peito, levando um susto. Ela jogou
os sapatos no chão e fez uma careta. “O que está fazendo aqui?”
Ele deu de ombros, passando a mão nos cabelos loiros.
“Entregando uma mensagem”
“De quem?”
“Zeus.”
Perséfone parou onde estava e sentiu seu coração bater forte.
“Acho que não quero ouvir essa mensagem”
Hermes se aproximou dela e fez uma expressão entristecida.
“Você não tem escolha, Perse. Sinto muito”
O modo como ele disse aquilo a fez estremecer. A face de Hermes
era a mesma, amigável, íntima. O mesmo que havia dançado com ela e a
ajudado se estabelecer no submundo. Ainda assim, ela percebeu que agora
algo estava diferente.
“Ele quer ver você”
“Por quê?” Ela perguntou entredentes.
“Sinto que isso seja entre você e Zeus, mas eu tenho uma boa ideia...
Já que ele me mandou fazer isso com tantas outras ninfas, mortais e
deusas.”
Perséfone deu um passo para trás, pegando o medalhão de âmbar do
pescoço. Hermes foi mais rápido e puxou o medalhão dela, quebrando a
corrente. Ele não se demorou para jogar o âmbar no chão e pisar nele,
quebrando o objeto, despedaçando a rosa seca de lá dentro.
E destruindo as memórias.
“Não!” ela exclamou.
“Sinto que não poderemos mais viajar juntos, descobrir o mundo e...
um ao outro. Eu estava animado para finalmente ter você só para mim. Mas
demorei demais.”
Ela encarou a face dele.
Não conseguia acreditar no que estava vendo.
Não conseguia acreditar que o que lhe disseram era verdade.
“Não foi Hades que te disse sobre o que aconteceu no submundo...”
A deusa adivinhou, de repente.
“Eu nunca disse que foi. Apenas comentei que ele havia me dito.
Você apenas assumiu que Hades era esse ele.”
“Zeus...”
“Ele tem assistido vocês dois com entusiasmo. E me surpreende que
Hades realmente acreditou que o poder da Ilha Etna teria algum efeito.”
“Não faça isso” Ela murmurou baixo, encarando os olhos claros
dele. “Nós somos amigos.”
Hermes não riu dela.
Deuses não tinham amigos.
O olhar dele recaiu sobre seu rosto, como se soubesse bem o que
estava fazendo, apesar de não querer fazê-lo. Então, disse:
“Eu não sou apenas um mensageiro, eu sou o deus da trapaça.”
A mão dele a agarrou pelo braço e a deusa se debateu. Os dois
colidiram, um poder contra o outro, mas Perséfone não teve chance de fugir,
afinal, Hermes era um dos doze. Quando se deu conta, ela caiu com força
no chão, tendo que se apoiar com as palmas.
“Eu realmente sinto muito, Perséfone. Mas só estou fazendo meu
trabalho”
Ela ergueu a cabeça para ver o mensageiro ir até uma porta estranha
e se virar para ela uma última vez, fechando a porta com um baque atrás de
si.
Perséfone se ergueu rapidamente e tentou ir até lá, puxando a
maçaneta, mas sem sucesso. Ela sentiu um poder intenso ao redor do
ambiente e soube que não poderia se transportar.
Estava presa.
Ela olhou ao redor e soube que estava no topo do Olimpo. As
janelas longas, em fita, tinham uma vista incrível por entre as montanhas
cobertas por neve. Névoa cobria boa parte do horizonte, mas se ela
apertasse os olhos, seria capaz de ver a rua Roma e a grande biblioteca de
Atena lá embaixo.
Estantes e mais estantes se erguiam nas paredes, todas elas com
espadas e objetos estranhos, brilhantes, que emanavam poder obscuro. No
centro do ambiente havia uma mesa de madeira pintada de branco. Aos seus
pés, um tapete feito de pele de urso polar.
De repente, uma das estantes se abriu, mostrando uma porta secreta.
E de lá, saiu ele.
O rei do Olimpo.
Assim que ele a viu, abriu um sorriso.
“Ah, deusa da primavera. Que prazer vê-la novamente.”
“Eu não diria o mesmo já que fui forçada a vir até aqui!” Ela cuspiu.
“Hermes é dramático, você não tem razão para se preocupar.”
O deus trajava calças e uma camisa formal, branca. Ele passou a
mão na barba grisalha e se sentou à mesa. Ela o seguiu com o olhar,
temerosa.
“Eu tenho uma proposta para você” ele disse, colocando as mãos
espalhadas sobre a mesa.
Perséfone engoliu em seco.
“Proposta?”
“Sim” Zeus fez uma longa pausa e se encostou na cadeira, olhando-
a dos pés a cabeça, se demorando sobre os seios dela. Uma onda de nojo
cobriu Perséfone, e ela se sentiu suja. “Você é uma coisinha linda...
Realmente nunca vi alguém como você antes. Entendo perfeitamente por
que sua mãe te escondeu todos esses anos.”
“O que você quer?” ela sibilou.
Zeus pareceu gostar da raiva dela.
“Você deve saber por agora que deuses não dão nada em troca de
graça.”
“Hades te deu algo”
“Não apenas algo...” Zeus zombou. “Ele me deu a própria alma.”
Perséfone ouviu a voz de Hades trovejar em sua mente.
Eu condenei a minha alma por você.
Não era só uma metáfora, era real. Ela deixou um suspiro doloroso
sair dos lábios.
“Sabe o que acontece quando o rei do submundo entrega a alma
para outro?”
Uma pausa surgiu entre eles. Perséfone sentia um punho de ferro
descer sobre sua garganta.
“Quando ele morrer, não poderá ir ao Elísio ou caminhar em seu
próprio reino.” Ela adivinhou, horrorizada, pela face divertida de Zeus.
“E a melhor parte... eu poderei torturá-lo pela eternidade”
“Deuses” ela balançou a cabeça, cobrindo a boca com a mão.
Por que Hades tinha feito aquilo?
“Posso ver sua dor... por isso, proponho um acordo. Eu ignorarei o
acordo que fiz com ele.” Ele fez um movimento com as mãos, como se
tivesse jogado o acordo fora. “E farei um com você. Hades pode ter a alma
de volta e você não precisa mais voltar ao submundo. É bem simples”
“Eu não quero que a punição seja quebrada. Só retorne a alma dele”
A deusa pediu.
“Não funciona assim...”
“Por quê?” Ela sussurrou.
Zeus abriu um sorriso maléfico.
“Porque eu não quero”
“E...” Perséfone ergueu a cabeça e respirou fundo, sentindo as
palavras virem devagar. “O que você quer?”
“Você já sabe a resposta dessa pergunta”
A voz do deus foi sombria, vil.
“Não. Eu... Você não pode me pedir isso.” Ela sentiu uma lágrima
escorrer pelo rosto. “Eu o amo. Eu nunca faria isso com ele, eu nunca faria
isso.”
Zeus se ergueu da mesa e caminhou, lentamente, até ela. O deus
chegou perto o bastante para ela encontrar seus olhos azuis, frios.
“Prefere que eu torture a alma dele por toda a eternidade?”
Perséfone engoliu em seco, assistindo a aura violenta dele emanar
sobre seu corpo.
“Não.” Ela deixou escapar em um sussurro, por fim.
“Então, tire suas roupas.”
Perséfone estremeceu e olhou para o chão, fugindo do olhar
predador dele.
Medo cobria o corpo dela como nunca.
Era mais do que o poder dele, era também uma humilhação que
sentia sem nem mesmo ter feito nada de errado. Outra lágrima escorreu pelo
rosto.
“Eu posso sentir o cheiro dele em você...” A mão do deus tocou o
ombro dela, puxando-a pelo pescoço. Ele então passou o polegar pela
lágrima dela. “Eu vou desfrutar cada segundo disso...”
Perséfone deu um passo para trás, mas Zeus apertou os dedos que já
estavam em seu pescoço e a jogou com força na parede. A deusa bateu as
costas nas estantes, fazendo-as quebrar atrás de si.
Ela arfou de dor, sentindo o deus se aproximar. Ele a pegou pelos
cabelos e a arrastou pela sala. Perséfone soltou um grito e se debateu, mas
aquilo parecia fazer com que ele se divertisse, pois soltou uma gargalhada
alta.
“Você é doente!” Ela cuspiu.
O deus a jogou sobre a mesa e rasgou parte do vestido dela, dando
um sorrisinho quando viu os seios delas pularem para fora.
Perséfone o empurrou com força, sem parar de se debater, tentando
feri-lo com qualquer coisa que conseguisse alcançar.
Prendendo-a pelos cabelos, o deus levou a mão até as calças. E foi
nesse momento em que Perséfone sentiu algo aparecer em sua mão.
Algo gelado, como metal. Poderoso como uma arma única. Firme,
mortal como uma adaga... A adaga.
Olhando para sua mão, viu o presente que Ares a tinha dado meses
atrás.
Perséfone soube que aquele era o momento de usá-la. Ela atacou
Zeus com um golpe, mas o deus parecia experiente demais em tomar
garotas a força e viu o golpe vindo.
Ele pegou a mão dela e Perséfone ouviu os ossos de seus dedos
quebrando.
Suprimindo um grito, ela assistiu Zeus jogar a arma para longe. A
deusa continuou a se debater, aranhando a face dele com as unhas.
Então, o ambiente foi preenchido por um estrondo e Zeus foi
lançado para longe dela, indo parar do outro lado da sala.
“Como você se atreve tocar nela?!” Hades explodiu.
Zeus soltou uma gargalhada, se erguendo. De seu nariz agora
escorria sangue dourado.
“Eu sabia que torturar sua alma por toda a eternidade não seria o
bastante, irmão. Tomar ela, no entanto, seria. Você nunca iria ser capaz de
olhar para ela da mesma forma depois que soubesse que eu estive dentro
dela.”
O rosto de Hades estava contorcido por escória. Ele ofegava,
violento. Seus olhos então caíram sobre Perséfone. Ela tinha a mão
quebrada e estava seminua. Ele foi até lá, tirando a jaqueta que usava para
cobri-la, pegando-a pelo rosto. Com o olhar, Hades quis saber se ela estava
bem. Perséfone queria dizer que sim, mas seria uma mentira.
Mesmo assim, balançou a cabeça.
“Vá para seus palácios. Sua mãe estará a sua espera. Ela vai te
proteger até eu chegar.”
Ela via morte no olhar de Hades, como nunca. A deusa sabia que se
ele ficasse ali, algo terrível aconteceria. Zeus era o deus mais poderoso do
Olimpo e apesar de Hades ser seu páreo, a morte entre deuses era punida
severamente. Era a lei.
“Não. Vem comigo. Por favor, não faça isso.”
Zeus se aproximou e Hades empurrou Perséfone para atrás de suas
costas.
“Talvez eu mate você agora.” Zeus disse, então. “É algo que eu
precisava fazer já algum tempo... E depois que você estiver morto, vou
torturar sua alma tomando-a a sua frente, todos os dias.”
Do peito de Hades saiu um urro gutural, e ele partiu para cima do
deus.
O impacto do corpo deles reverberou por todo o Olimpo. Foi como
se uma explosão tivesse acontecido. A neve lá fora, sobre o monte, tremeu,
causando uma avalanche.
Hades socou Zeus e Zeus fez o mesmo, atingindo-o no estômago.
O poder que os dois usava era algo que Perséfone nunca tinha visto.
Era primitivo, absolutamente divino, entranhado no princípio do tempo e de
tudo que revolvia ao redor.
Ela deu passos para trás, na tentativa de sair de perto. Seus pés
descalços, então, tocaram algo no chão. Olhando para baixo, ela viu a
adaga. E sem pensar duas vezes, Perséfone pegou-a nas mãos trêmulas.
Do outro lado da sala, Zeus tinha cansado da briga mão-a-mão. Ele
pegou a espada de uma das estantes agora quebrada e a empunhou,
encarando o deus dos mortos.
Hades, sem nenhuma arma, apertou as mãos em punho, em desafio.
Zeus deu um sorriso.
“Estoico até o fim. Quem diria que seria sua honra que te mataria...”
E então, fez um movimento mortal.
“Não!” Perséfone gritou, assistindo a espada atravessar o corpo de
Hades.
O deus dos mortos caiu de joelhos no chão, sangue dourado
banhando o tapete abaixo.
“Vá embora, Perséfone!” Ela o ouviu sussurrar.
Lágrimas preencheram o olhar dela e Perséfone apertou a adaga na
mão esquerda, sentindo sua fúria subir até seu peito.
“Agora é sua vez” Zeus puxou a espada de dentro de Hades e a
largou no chão. O deus dos mortos caiu com um baque seco.
Zeus deu passos largos até ela. A deusa, no entanto, não esperou.
Ela correu até ele e com a adaga na mão que não estava quebrada,
enfiou-a no mais profundo que podia em seu peito. Girando-a com força.
“Você realmente achou que isso iria me matar?” Zeus a empurrou
com força, tirando a adaga do peito, sem esforço. E então, fez uma careta,
apertando onde a adaga estivera um segundo atrás.
“Está na hora de você se aposentar, pai” Hefesto disse, de repente,
sobre a soleira da porta agora quebrada. Atrás dele vinha Atena e Ares.
“O quê?” Zeus parecia confuso. Ele apertou a mão sobre o peito.
“A adaga não vai te matar, mas vai fazer você mortal” Ares se
aproximou, ficando ao lado do ferreiro.
“Foi uma mistura de nossos poderes... e a ideia de minha mãe.”
Atena falou com um sorriso no rosto, orgulhosa. Ela então se virou para
Perséfone, encarando a deusa que estava confusa e exausta. “Hades não
sabia de nada” prometeu.
Eles assistiram Zeus olhar para as próprias mãos, ofegante. Tão
confuso quanto Perséfone estava.
“Sua vadia!” Ele correu em direção à filha.
Atena ergueu uma mão e tirou o pai do chão.
“Não vou sentir falta de você me chamando assim” Ela riu.
Hefesto então se aproximou e com outro movimento das mãos, fez
Zeus desaparecer no ar.
Os três ficaram ali e se entreolharam, vitoriosos.
Perséfone não teve tempo de pensar no que eles tinham feito ou o
que tinha acontecido. Quando Zeus se foi, Hades surgiu no seu campo de
visão, no chão. Ele tinha se erguido e tinha um joelho no chão, apertando o
corte que trespassava seu peito. Uma poça de sangue dourado pintava o
tapete branco abaixo dele.
A deusa da primavera correu até lá e se ajoelhou a sua frente,
pegando o rosto dele em suas mãos.
“Estou aqui” Ela sussurrou, assim como ele tinha feito na noite do
baile.
Ela levou seus dedos até o peito do deus, onde o corte estava, e
canalizou todo seu poder para fechar a ferida.
Hades gemeu de dor e pegou a mão dela, puxando-a para mais
perto, recebendo o poder de cura. Ele abriu os olhos, ainda em dor, e olhou
para os sobrinhos.
“Por que envolvê-la?”
“Desculpe-nos sobre isso, Perséfone. Quando ouvimos sua profecia,
alguns anos atrás, nós sabíamos que seria a oportunidade para finalmente
nos livrarmos de nosso pai. A profecia nunca falou nada sobre morte.
Apenas um conflito...” Ares explicou, encarando os dois. “E que, por causa
desse conflito, haveria um novo rei do Olimpo.”
Eles tinham moldado a profecia dela para benefício próprio. Perse
soube imediatamente que aquilo tinha sido uma ideia de Atena.
“E seu sacrifício...” A deusa do conhecimento esclareceu. “Amar é
um sacrifício. Lutar por quem se ama e aceitar suas falhas é um sacrifício.
Ficar, permanecer é um sacrifício... Nenhum sacrifício é o mesmo, mas são
todos válidos.”
“Eu achava que ninguém sabia da profecia...”
Os três riram em uníssono.
“Vá para casa, deusa da primavera.” Hefesto falou por fim. “E leve
meu tio com você, nós nos encontraremos novamente quando o tempo for
certo.”
A sala de Zeus desapareceu de repente e no segundo seguinte
Perséfone e Hades estavam sobre a grama fresca dos jardins pessoais dela,
no Palácio das Cerejeiras.
Sua mão, coberta por sangue dourado, trabalhava no ferimento de
Hades.
“Estou bem” ele murmurou, por fim.
Ela balançou a cabeça e encostou a testa na dele. Estava
determinada em só se afastar dele quando estivesse certa de que o corte
havia cicatrizado.
Alguns minutos se passaram e então ela sentiu os dedos quentes dele
sobre sua face. Ela respirou fundo, inalando o aroma de sangue divino e o
perfume dele.
“Acabou. Os segredos, a razão para se esconder, a profecia...” A
deusa murmurou.
Hades abriu um sorriso e eles olharam ao redor.
Kores nasciam sobre a grama verde. As flores rubras delinearam os
dois, como uma fita, como uma promessa.
Era o símbolo deles, o símbolo do amor proibido, de amor perdido,
agora encontrado.
Hades se ergueu levemente e os dois se entreolharam. Ao lado deles
estava o tabuleiro do jogo da Rainha Prometida. O deus abriu um sorriso
quando disse:
“Eu nunca ganhei um jogo para você”
“Eu sei” Ela riu.
“Sabe por que, minha deusa?”
Perséfone balançou a cabeça levemente, tocando a face dele.
“Porque eu sou boa demais”
Hades riu.
“Qual a regra para ganhar?”
“Capturar a dama e colocar a coroa sobre ela”
Entre os dois, por entre as Kores e a grama, de repente, uma mistura
de raízes e sombras começaram a se erguer, se entrelaçando como um,
formando um objeto redondo e então, delicado. Flores em metal, pedras
preciosas e ossos. A primavera e a morte.
Uma coroa.
“Só havia uma dama qual eu desejava coroar...” Ele murmurou,
rouco. “Você”
A deusa riu, sentindo lágrimas escorrerem pela face.
Hades ofereceu a mão para ela mais uma vez.
Perséfone olhou para ele e soube ali que mesmo se a profecia e
punição não existissem, ela o encontraria mesmo assim. Era destino. Era
escrito nas estrelas e costurado pelas moiras, pois não havia nada naquele
mundo de deuses e mortais como o que Perséfone sentia por Hades. Eles
tinham sido prometidos um para o outro.
Lentamente, ela deslizou a mão sobre a dele.
Quente, sombria.
Sua.
E juntos, os dois partiram para o lugar onde deusa da primavera
sabia verdadeiramente pertencer.
No mundo dos mortos... ao lado dele.
EPÍLOGO

O sol se punha sobre o vale das


almas, no horizonte do
submundo.
Aquele era o primeiro dia de primavera, mais uma vez.
Perséfone, no topo das grandes escadarias do Palácio das Almas Perdidas,
assistiu quando Ariadne, Eurídice e Orfeu acenaram para ela, adentrando a
pista de dança. Eles trajavam elegantes vestimentas, feitas pelas costureiras
do rei do submundo.
À frente, mais convidados chegavam. Ela viu Trite e Poseidon,
como o pequeno Perseu que agora corria para todo o canto. E os sobrinhos
de Hades, um deles qual agora era rei do Olimpo, Hefesto. Ele trazia
Afrodite nos braços, a nova rainha. Ares e Atena ficaram ao lado, contentes
por estar ali. Os dois eram conselheiros reais.
Eles avistaram Perséfone e fizeram uma leve mesura.
Todos que entravam no salão soltavam um assovio. Eles nunca
tinham visto nada igual como aquele palácio ou o baile que a deusa estava
prestes a dar.
Bandeiras se erguiam sobre as enormes janelas, as florestas de
pinheiro deixando a luz do entardecer trespassar por seus galhos verdes,
cobertos por seiva.
A deusa tinha convidado todos os deuses e sabia que receberia cada
um deles, já que aquele era o primeiro baile da primavera no submundo.
Dois deuses, no entanto, ela podia contar com a ausência.
Zeus, que para muitos, tinha se aposentado, agora era um mortal que
vivia em uma das cidades mais antigas do mundo, saindo de bar em bar,
sem conseguir parar de beber. Poseidon e Hades pagavam visitas cada vez
menos frequentes, na tentativa de dar apoio, mas a mortalidade de Zeus o
tinha transformado em um homem sem nada a oferecer, intolerável.
O outro, era Hermes. O mensageiro... e trapaceiro, no fim das
contas, tinha de fato pegado o navio e agora se escondia, pulando de cidade
em cidade, vivendo entre os mortais, como um mortal. Ele sabia bem que se
voltasse ao Olimpo e ao mundo dos deuses, teria seus dias contados. A lei
ainda proibia deuses matarem deuses, mas isso não importaria para Hades.
Não depois do que Hermes tinha feito a Perséfone.
Por entre aquilo que agora parecia uma multidão de convidados,
Perséfone viu Deméter. A deusa da colheita vestia um longo vestido cor de
semente seca, com largas mangas. Seus cabelos estavam presos e seu olhar
era mais atento do que nunca.
Ela não aprovava a escolha de Perséfone e a deusa tinha a impressão
de que sua mãe nunca aprovaria. No entanto, Deméter era grata a Hades por
proteger sua filha e pela profecia ter sido concretizada como foi.
Lá de baixo, ela abriu um sorriso e olhou ao redor, fazendo uma
expressão de surpresa, como se dissesse ‘quem diria que esse lugar existia’.
A música alta então começou a tocar e o hidromel correu pelo
ambiente, como os cinco rios do submundo.
A deusa da primavera sentiu o calor dele, quando ele se aproximou.
Hades passou a mão pela cintura dela e se aproximou por trás,
sussurrando ao seu ouvido:
“Minha deusa. Minha rainha.”
Aquele título ainda a fazia estremecer.
“Meu rei”
Ela abriu um sorriso, sentindo-o puxar para si e abaixar os lábios
para beijar seu ombro.
Perséfone vestia longos vestidos negros como a noite, coberto por
bordados feitos com linha de prata, em forma de flores e rosas.
Sobre seu colo, ela agora tinha outro medalhão. Um que Hades
havia feito ele mesmo, da seiva que vinha da árvore que se chamava Dama.
Era transparente e no centro havia sementes de romã, as mesmas do seu
pomar em Asfódelos.
As memórias daquele primeiro ano, daquele primeiro beijo roubado,
tinham se ido com o âmbar do último medalhão, mas agora, naquele que
carregava, Perséfone resguardava as memórias de Hades. As memórias
dolorosas que o fazia ter pesadelos pela noite.
Ela se virou para encontrá-lo.
O deus vestia aquele uniforme negro, que caia nele como uma luva,
coberto por medalhas, deixando-o irresistível. Os cabelos dele estavam mais
longos e caiam sobre a testa com uma cortina. Levando os dedos até seu
rosto, ela ficou na ponta do pé para beijá-lo.
Ao redor, a música fez uma pausa e o salão ficou em silêncio.
Os dois se voltaram para os convidados lá embaixo, na pista,
banhados pela luz amanteigada do pôr-do-sol que caia sobre o mundo
inferior. Os convidados haviam assistido ao beijo dos dois.
Com um sorriso no rosto, verdadeiramente contente, Poseidon
ergueu seu cálice.
“Ao rei!”
Vivas explodiram ao redor deles. Hades tomou a mão de Perséfone
ao seu lado. Sobre a cabeça dele, sua coroa de ossos apareceu. Alta,
sombria, permanente. Ferro e osso.
“À Perséfone, senhora de Asfódelos, deusa da primavera... e rainha.
Rainha do submundo!”
Sobre seu cenho, ela sentiu a coroa surgir. A mesma que Hades tinha
lhe dado quase um ano atrás. Vivas explodiram ao redor do ambiente e ela
se virou para encontrar Hades e seu olhar ônix.
O deus dos mortos sorria, pois aquela fora a única vez que ganhara o
jogo que jogaram tantas vezes antes.
Pois agora Perséfone era rainha improvável.
A rainha sombria.
A rainha temida.
Naquele dia, no primeiro dia de primavera que o mundo inferior
jamais teve, ela havia se tornado a rainha prometida.
AGRADECIMENTOS
Ao meu porto seguro, Alistair. Ele me apoia mesmo quando não
entende sobre o que é a história.
A todas minhas leitoras. Se você chegou até aqui, agora tem um
dever de casa. Você precisa me perturbar até que eu finalize o romance de
Trite e Poseidon. O esqueleto está pronto e tenho até nome (A Rainha
Cobiçada), agora só me falta a coragem. Então, se você quiser ler mais um
slow burn quente sobre deuses complicados e deliciosos, me manda uma
mensagem.

Vejo vocês em breve. Com amor,


Helena L
Outono 2023
SOBRE A AUTORA

Helena Lopes é uma Roraimense vivendo na Inglaterra. Ela escreve desde os doze anos. Apaixonada
por poesia, desenvolveu sua escrita para romances quando tinha apenas dezenove anos.

Começou a escrita com romances contemporâneos, como Perdida em Você, publicado na Amazon em
2015, Um Toque de Esperança e Uma Noite Para Sempre, os quais tornaram-se best-sellers após a
publicação. Logo, publicou seu primeiro romance medieval, A Profecia do Rei. E sobre a era
vitoriana, Jardim do Viúvo. Seu primeiro livro de fantasia foi lançado em 2023, Corte de Elementos e
Maldição, qual é finalista do Prémio Wattys 2023. Seu último livro, A Rainha Prometida, entrelaça
romance e mitologia, sendo sua primeira obra que relê um mito grego. Este, se tornou best-seller
antes mesmo do lançamento.

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ÁRVORE GENEÁLOGICA DOS DEUSES
GREGOS
(DE ACORDO COM ESSE LIVRO)

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