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Helena Lopes - A Rainha Prometida
Helena Lopes - A Rainha Prometida
SUMÁRIO
NOTA DA AUTORA
CAPÍTULO I – A PUNIÇÃO
CAPÍTULO II – O ACORDO
CAPÍTULO III – O LABIRINTO
CAPÍTULO IV – A DAMA
CAPÍTULO V – O ELÍSIO
CAPÍTULO VI – A PRIMAVERA
CAPÍTULO VII – OS TITÃS
CAPÍTULO VIII – A COLHEITA
CAPÍTULO IX – A MARÉ
CAPÍTULO X – A FÚRIA DO DEUS
CAPÍTULO XI – O TESTE
CAPÍTULO XII – A NOITE
CAPÍTULO XIII – A FEITICEIRA
CAPÍTULO XIX – O MONTE ETNA
CAPÍTULO XX – SANGUE DIVINO
CAPÍTULO XXI – A PROFECIA
CAPÍTULO XXII – O POETA
CAPÍTULO XXIII – A AURORA
CAPÍTULO XXIV – O PASSADO
CAPÍTULO XXIV – O TRAIDOR
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
ÁRVORE GENEÁLOGICA DOS DEUSES GREGOS
A Rainha Prometida:
Hades & Perséfone.
Todos os direitos reservados. Este livro ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por
escrito, do autor ou editor. Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes,
títulos, lugares e situações ou são frutos da imaginação da autora e usados
de forma ficcional. Qualquer similaridade com pessoas, situações, nomes
ou fatos são mera coincidência.
PLÁGIO É CRIME.
NOTA DA AUTORA
Eu sempre quis escrever uma releitura do mito do Hades e da
Perséfone, já que é meu mito grego favorito. Seis meses atrás eu tinha o
esqueleto de uma história, mas esta não fluiu.
Então, absolutamente inspirada pelo romance A Touch of Darkness e
a história do musical Hadestown, a história deste livro veio a mim como
uma epifania. Escrito em 17 dias. 80 mil palavras, Hades e Perséfone me
encontraram.
Nesse livro você vai encontrar paixão, redenção e muito amor.
Amor meu, amor de Perséfone e amor de Hades.
Vocês vão perceber que os personagens desse livro se encontram
perdidos o tempo todo. Não é ao acaso.
Eu sou eternamente grata por ainda estar aqui, viva, para poder
contar histórias como essas. Escrever salvou minha vida incontáveis vezes.
Escrever me deu e dá a oportunidade de encontrar meu ar sempre que me
vejo perdida.
E é por isso que escrevi esse livro. Para me encontrar.
Espero que você também se encontre.
Aproveite a leitura e bem-vindos ao mundo dos deuses deliciosos ;)
Esta obra contém temas que podem ser gatilhos e sensíveis para algumas
pessoas, como: depressão, violência física, violência doméstica e sexual;
assédio sexual; descrições de morte; suicídio. Contém cenas eróticas
descritivas. Idade de leitura recomendada: 18 anos.
PLAYLIST SPOTIFY DE
A RAINHA PROMETIDA:
Para aqueles que abandonaram a esperança e entraram no inferno.
Bem-vindos ao mundo dos deuses.
“If i cannot move heaven, I will raise hell”
Virgil
O nome dele era Orfeu. Ele era um poeta e cantava em bares pela
noite. Foi assim que ela o conheceu. Eurídice era uma viajante, sempre
passando de lugar a lugar sem criar raízes.
Na noite mais fria de inverno, onde ninguém é feito amante, Orfeu
cantou uma canção que aqueceu não só o corpo de Eurídice, mas seu
coração.
Ela tinha dezessete anos. Orfeu, dezoito.
Ela era a filha das estradas e de deuses abandonados.
Ele, o filho de uma musa e o deus dos sonhos.
Os dois, juntos, viajaram pelos mundos dos deuses e dos mortais,
até o dia em que Eurídice adoeceu.
Conhecendo os deuses, Orfeu decidiu pedir ajuda de seus pais, os
quais disseram que não poderiam fazer nada contra a morte caso viesse
buscar sua amada, pois o único que poderia fazer isso era Hades ou as
moiras.
Sabendo que não conseguiria uma audiência com o rei dos mortos
no mundo dos vivos, ou as moiras, pois elas eram impossíveis de serem
encontradas, Orfeu foi atrás de Hermes, pois além de ser mensageiro dos
deuses, ele também era seu padrinho, e famoso por ser o deus da trapaça.
Orfeu tinha a esperança de que ele pudesse trapacear a morte.
Hermes não podia.
Orfeu então voltou de sua busca para encontrar Eurídice a beira da
morte.
Eles se casaram pela noite e quando a manhã chegou, ela tinha
sucumbido a doença.
A s almas chamavam-na de
dama. E ela estava morrendo.
Dama era uma árvore antiga,
de centenas de metros, que ficava no coração dos jardins do palácio de
Hades. Ela havia sido plantada, segundo as almas, quando Hades fora
coroado rei do mundo inferior, milênios antes, em uma era onde titãs ainda
caminhavam entre eles.
Hades não estava no palácio. Antes de desaparecer na noite anterior,
ele dissera a ela para ir ao palácio ao meio-dia e as almas a mostrariam
aquilo qual ele precisava de ajuda.
Dessa vez, agora sobre a luz do dia, o palácio do deus estava
agitado, com almas indo de um lado para outro. Umas trabalhavam nos
jardins e na horta, outras limpavam as longas janelas de vidro e algumas
simplesmente passeavam, conversando umas com as outras.
As almas dali vestiam roupas estranhas, mais antigas, outras usavam
coroas e espadas.
“Eles nos chamam de almas perdidas” O mesmo rapaz que havia
servido hidromel naquela primeira noite disse a Perséfone. “Meu nome é
Hipno, milady.”
Hipno então deixou-a só.
Perséfone olhou ou redor e notou que algumas almas a assistiam,
como se ela estar ali fosse algo curioso.
Ela encarou a árvore a sua frente. Por ser deusa da primavera, ela
tinha uma relação com plantas e árvores que era diferente de qualquer outro
deus da natureza. Ela era capaz de senti-las e, às vezes, até ouvi-las.
Era óbvio que a árvore estava morrendo. As folhas estavam secas e
caiam sobre o chão. O tronco estava descascado e fraco. Caminhando até lá,
colocou suas mãos na superfície e fechou os olhos.
Nada.
Seus poderes não funcionavam ali. Ela se perguntava por que Hades
havia pedido sua ajuda se ela não podia usar poderes para curar a árvore.
No entanto, ela conseguia sentir uma aura vindo dela. Assim como
sentia quando algum deus estava por perto. Era leve, mas estava lá,
irradiante.
Se afastando do tronco, Perséfone bufou. Já que seus poderes não
estavam funcionando, ela teria que fazer aquilo de outro jeito. Do jeito
manual.
Ela olhou para cima, para os enormes galhos e a aglomeração de
folhagem morta. Ela iria precisar de ferramentas e um ajudante.
“Posso ajudar, milady?” Hipno disse, surgindo lado dela, mais uma
vez, de repente.
Perséfone levou uma mão no peito, levemente assustada. Abriu um
sorriso e disse a ele:
“Sim”.
“Bem-vinda ao Elísio”
Elísio. A cidade de deuses bondosos e heróis. A sua frente, a cidade
se erguia como um diamante. Elísio era longe daquilo que ela sabia ser o
submundo, ou, no caso, Asfódelos.
Meus deuses, ela suspirou entre os lábios, impressionada.
Elísio era uma cidade densa, alta, com prédios, catedrais e palácios
que brilhavam sobre a luz do luar. A chuva não havia seguido até ali e o ar
era fresco. A lua cheia fulgia em esplendor. Ela nunca tinha visto uma lua
tão cheia quanto aquela.
O céu, claro, seco, estava coberto em um tapete infinito de estrelas
que só existiam ali.
Entre os grandes palácios brilhantes e catedrais, um rio lânguido e
cristalino dividia a cidade.
“Hades...” ela encontrou o olhar dele, maravilhada com o que via.
Hades exibia um sorriso satisfeito.
“É, eu sei.”
Com um movimento das mãos, um tecido negro surgiu entre os
dedos dele, como se Hades tivesse acabado de fazer um truque de mágica.
Ele foi até ela e colocou a capa leve sobre seus ombros. O deus veio até
Perséfone e olhando em seu rosto, deu um nó no laço sobre o colo.
“Para que é isso?”
“Eu ainda sou Hades, o rei dessas terras. E raramente caminho pelo
meu reino com a intenção de ser notado” ele disse, puxando o capuz da
capa sobre os cabelos dela. “Essa é uma capa de invisibilidade”
Ela arregalou os olhos. Ele riu.
“Pronto.” Hades se afastou e olhou-a de pé a cabeça. “Eu serei o
único que poderá vê-la, deusa. Não se preocupe, eu manterei você segura”
“Cadê a sua capa?”
Hades fez uma expressão curiosa e ergueu uma das sobrancelhas.
“Eu não preciso de uma”
Ele tinha o poder de invisibilidade? Perséfone tomou um segundo
para aceitar essa informação. Ela duvidava que havia muitos outros deuses
que sabiam disso. Ela, de fato, nunca ouvira falar de um deus com esse tipo
de habilidade.
Esse era um poder que causaria intrigas e mortes. Talvez fosse por
isso que ele o mantinha em segredo.
Hades começou a caminhar, com as mãos cruzadas atrás das costas,
como se conhecesse aquele caminho como conhecia a palma da própria
mão. Perséfone manteve o passo dele, o que significava ter que dar um
passo e meio para cada longa passada que ele dava.
A colina onde eles estavam dava para a margem do rio que cortava a
cidade. Rapidamente, eles se aproximaram de um pequeno embarcadouro
próximo às águas.
“Esse é o rio Estige.” Perséfone percebeu. Aquele era o quinto rio
do submundo. Era a primeira vez que o via. Era similar ao rio Lete,
cristalino com leves correntes, mas diferentemente do Lete não tirava suas
memórias. A verdade era que ela não sabia o que o Estige era capaz de
fazer.
Hades alcançou a corda de um pequeno barco sobre a água. O barco
era da cor de ametista e brilhava como tal. No centro dele havia uma
lamparina que continha uma vela acessa.
O deus do submundo então ergueu a mão para Perséfone,
convidando-a para subir no barco.
Dando um passo lento até ele, Perséfone deslizou seus dedos por
entre os dele.
Quente como se estivesse tocando fogo. Os dois se olharam por um
segundo que pareceu durar horas. Havia desejo no olhar dele,
vulnerabilidade no olhar dela.
O coração de Perséfone bateu rápido, deixando-a tonta.
Ela se sentou de costas para a frente do barco e abaixou as palmas
das mãos sobre os joelhos, ainda capaz de sentir a pele dele na sua.
O barco começou a mover-se sozinho por entre as águas cristalinas.
A luz da cidade vibrava ao redor.
“Eu não entendo... As almas de Asfódelos, por que elas não podem
vir para cá também?”
“Há uma ordem para as coisas, Perséfone. As almas de Asfódelos
estão onde devem estar. Elas não são infelizes.”
“Não.” ela olhou ao redor. “Mas tudo isso...”
“Só porque algo reluz não significa que tem mais valor” Hades
disse, tenro.
Perséfone olhou para ele, respirando fundo.
“Todas as almas do meu reino são julgadas justamente. E a verdade
é que a maioria daqueles que estão em Asfódelos estão confusos,
insatisfeitos com a morte. Asfódelos os dá uma chance de viver entre outros
e ter uma existência... normal.”
A deusa da primavera pensou no que ele disse. Eles passaram por
uma ponte coberta por lamparinas suspensas no ar. A luz alaranjada tocou a
face dela.
“Por que você não vai aos bailes dados por deuses?”
“Hm” Hades abriu um sorriso canto de lábio, seus olhos estavam
perdidos na cidade brilhante ao redor dos dois. “Eu não danço”
Ela soltou uma risada. O olhar dele voltou a ela para assisti-la.
“Os convites são raramente sinceros.” Ele falou a verdade.
Balançando a cabeça, a deusa murmurou:
“Eu não acredito nisso. Você é...” Fez uma pausa, não sabendo
exatamente com o que completar. Absurdamente lindo? Normal? Longe de
ser um monstro ou um velho com rugas e olhos como a morte?
Perséfone não teve tempo de completar a frase. Eles pararam de
repente sobre o banco do rio. Hades pulou do barco e amarrou a corda em
um tronco. Dessa vez, ele não ofereceu a mão para ela e os dois seguiram
lado a lado adiante em direção às luzes.
O caminho era feito de pedras negras e levava a uma ruela pequena,
iluminada por archotes. As ruas estavam cheias. Almas iam e vinham,
algumas dançavam, outras carregavam cestas de frutas nas cabeças. Eles
estavam adentrando a praça principal, onde, ao luar, havia uma feira.
Eles pararam e ela admirou o ambiente. As casas eram coloridas e
cobertas por vinhedos. A praça estava começando a ficar ainda mais
agitada, com almas se aglomerando próximo a centro, onde, para a surpresa
dela, havia uma estátua de Hades.
O Hades da estátua era austero, com uma longa espada entre os
dedos e uma coroa feita de ossos sobre o cenho. Ela se virou para olhar para
o Hades verdadeiro, a seu lado. Foi quando ele deu um passo para mais
perto dela e abaixou a face para dizer sobre seu ouvido:
“Olhe.”
Um raio de eletricidade correu pela espinha dela.
Perséfone então se tornou para a praça e, de repente, a meio dela,
lanternas de ar quente começaram a subir os céus. Uma a uma, o céu
estrelado agora estava coberto por elas.
A deusa duvidava jamais ter visto algo tão belo.
“Isso faz você odiar meu reino um pouco menos?” Hades perguntou,
a voz dele sobre a pele sensível dela.
Encontrar a face do deus dos mortos perto dela a fez se sentir mais
viva do que nunca, e ela não deixou de notar a ironia disso.
Com as lamparinas a sua cabeça e Hades ao lado, Perséfone teve
três certezas naquele momento:
Uma. Hades não era quem o mundo acreditava ser.
Duas. Ela queria beijá-lo enlouquecidamente.
Três. Ela acreditava que ele compartilhava do mesmo sentimento.
Os dois ficaram ali, juntos, mas distantes, assistindo às lamparinas
desaparecerem nos céus até que nenhuma mais podia ser vista. Em silêncio,
voltaram ao barco e quando retornaram à colina, Hades os transportou para
Asfódelos.
Chuva ainda caia ali, forte. Raios cobriam o horizonte do vale das
almas. Eles aterrissaram sobre o pomar de romãs. Hades não se despediu
dela, apenas virou as costas e começou a caminhar pelo campo acima em
direção ao palácio.
“Não acho que posso salvar sua árvore!” ela gritou por fim, sob a
chuva pesada.
“Tudo pode ser salvo, deusa”
Ela suspirou.
“Até mesmo aquilo que está entre os mortos?”
Ele virou-se para ela, distante, sem parar de caminhar e disse for
fim:
“Especialmente aquilo que está entre os mortos.”
“Afrodite” A palavra saiu da boca de Ariadne no instante em que
colocou o vestido sobre a mesa de madeira velha do chalé.
Perséfone riu.
“Pensei o mesmo”
“Como você conseguiu isso, milady?” A princesa pegou o tecido nas
mãos, admirando a seda. Ela, assim como a deusa, conhecia a melhor seda e
os melhores bordados. Perséfone sabia que ela seria a melhor pessoa em
Asfódelos com quem falar a respeito do vestido.
“Hades”
Ariadne arregalou os olhos.
“O deus do submundo lhe deu esse vestido?” A garota estava prestes
a engasgar.
“Foi mais como um empréstimo...”
O que Perséfone realmente queria era a capa de invisibilidade, a
qual desapareceu de seus ombros quando ele foi embora na noite anterior.
“Você acha que Hades e Afrodite são amantes...?”
Perséfone deu de ombros em resposta a pergunta.
“Não vejo por que não. Explicaria isso...” ela apontou para o
vestido.
Ariadne soube imediatamente que havia algo estranho naquele
interesse dela.
“Onde ele levou você ontem, milady?”
“Para o Elísio”
Ariadne respirou fundo.
“Deuses...” Ela esmaeceu. “Vocês não são muito melhores que
mortais... talvez até piores”
Perséfone a encarou sem entender.
“Você parou para pensar que talvez isso tenha sido um presente...?”
Um presente? Perséfone balançou a cabeça, negando. Por que Hades
a daria presentes?
As duas abandonaram o vestido e passaram o dia trabalhando em
Asfódelos, pois novas almas tinham chegado.
E naquele dia foi a primeira vez em que ela ouviu uma das almas
descrevendo Caronte, o barqueiro do mundo inferior, como um soldado de
cabelos negros.
Quando a noite chegou, Perséfone estava cansada demais para
atravessar o campo e ir ao palácio checar a macieira, afinal, não tinha
dormido na noite anterior. Ariadne e ela caíram no sono logo após
retornarem ao chalé.
A deusa ainda se pegava acordando no meio da noite, tanto pelos
sussurros quanto a sensação de que alguém a observava.
Quando a manhã chegou, Ariadne já estava de pé e lhe ofereceu chá
quente e pão fresco.
Perséfone vestia seu vestido favorito, verde com mangas longas. O
tecido era surrado, mas vestia bem sobre o corpo e suas curvas.
Ela havia deixado os cabelos longos caírem sobre as costas. Ariadne
o penteou e fez um delicado coque com tranças e flores enquanto ela
tomava o chá. Pela janela, a deusa assistia as águas calmas do vale adiante
enquanto os dedos delicados da princesa trabalhavam em suas mechas.
Elas caminharam juntas até o chalé onde as almas contavam suas
histórias. Quando a tarde chegou, Perséfone foi então a caminho do palácio
de almas perdidas. A brisa estava fria, mas o sol deixava a sensação térmica
agradável.
Quando chegou no jardim, viu que as almas perdidas não se
assustaram com sua presença. Era como se ela fosse esperada.
A macieira ainda estava lá, meio sem vida, mas a retirada dos galhos
secos havia trazido um pouco de cor às folhas restantes.
Hipno encontrou a deusa e com outros ajudantes eles limparam ao
redor do tronco e então colocaram as folhas secas em um monte cobrindo a
superfície das raízes. A ideia era que as folhas servissem como adubo.
Quando ela terminou de fazer o que pôde, Hipno lhe trouxe uma
taça de vinho dourado. Era uma bebida levemente mais seca do que o
hidromel. Era quente e tinha aromas de cravos e canela.
Ela sentou-se em um dos bancos próximos e assistiu ao átrio repleto
de almas trabalharem na horta e nos jardins.
“O senhor do submundo não está aqui, milady” Hipno disse, de
repente, aparecendo ao seu lado. “Olimpo solicitou sua presença. Ele nos
deu a instrução de dizer que não voltará por vários dias”
“Oh” Perséfone mordeu o lábio inferior, olhando para o líquido
vermelho brilhante no cálice. A primavera estava se aproximando e os dias
dela no submundo estavam quase ao fim. Depois que voltasse ao mundo
dos vivos, teria que esperar por mais seis meses para vê-lo.
Ela buscou o vestido da sacola de couro que trazia consigo e
entregou-o para o rapaz.
“Diga a ele... obrigada”
Hipno fez uma mesura e fez menção de sair de perto dela.
“Hipno... você me disse que eles chamam as almas do palácio de
almas perdidas. Por quê?”
“Nós não sabemos quem somos, milady.” Ele disse, voltando-se
para ela. “Um nome, uma memória... isso é tudo o que temos, se tivermos
sorte, quando chegamos aqui. Mestre Hades nos acolhe. E juntos, somos
um.”
A deusa sentiu tristeza tomar o peito.
“Ele não pode trazer essas memórias de volta? Ajudar vocês a
entender quem são?”
“Hades é o deus dos mortos, milady. Devolver memórias ou
desfazer aquilo que nos trouxe aqui não é seu trabalho...”
“Sinto muito.”
Hipno abriu um sorriso calmo. Ele evitava olhar diretamente no
olhar dela.
“Às vezes, não lembrar o que nos assombra é o melhor presente que
podemos ter.”
A s cerejeiras tinham
desabrochado e as pétalas
rosa cobriam o chão de
grama verde dos palácios de Perséfone como um tapete.
E era por isso que seu palácio era chamado de Palácio das Cerejeiras.
Ela respirou fundo. O ar era fresco, único. Era primavera.
Finalmente.
De volta em seus palácios, suas ninfas já haviam preparado sua sala
de banho e a sauna. O sol entrava por entre as vidraças coloridas, trazendo o
calor da nova estação.
Era bom estar de volta em casa, ela pensou.
Os palácios dela eram um conjunto de prédios largos e altos, com
torres que se erguiam dez metros do chão. A maioria das janelas era feita
por vidraças especiais, de cores verdes e vermelhas e quando o sol
trespassava o vidro, o mármore ao chão se cobria de cor.
Perséfone tinha se despedido de Ariadne antes de desaparecer do
submundo quando o equinócio chegou. Ariadne tinha prometido cuidar do
chalé em sua ausência e deixá-lo pronto para quando ela voltasse, em seis
meses.
Ainda assistindo a brisa lá fora, Perséfone se despiu, com ajuda das
ninfas que lhe serviam, do vestido velho de algodão e seguiu em direção a
um enorme tanque de água quente que estava a sua espera.
A água estava perfumada com óleos de lavanda e o vapor da sauna
trazia um leve aroma de hortelã.
A deusa da primavera deixou a água quente tocar sua pele nua e
enquanto lavavam seus longos cabelos cor de mel, ela tentava pensar em
qualquer coisa que não fosse Hades.
Ainda assim, o rosto dele estava impregnado a mente dela como
uma tatuagem. Sempre que fechava os olhos, se lembrava das sombras de
seu olhar, do queixo austero, o torso quente e musculoso. E o pior... de seu
toque.
Ela ergueu a mão das águas quentes da grande banheira em que
estava e encarou seus dedos por um longo tempo. Os quais ele tocara dias
antes.
Por que ela estava se sentindo assim?
Perséfone tinha pensado em ter amantes antes. Como Hermes, por
exemplo. E mesmo assim, nunca se sentiu daquela forma. Perdida.
Completamente perdida.
E devastada.
Pois ele era o deus errado para se envolver... não, ele era mais do
que errado. Hades era proibido.
Ao contrário de outros deuses, que gostavam de exibir seus amantes
e casos amorosos, Perséfone nunca havia ouvido falar sobre o deus do
submundo e suas aventuras amorosas... ou carnais.
Talvez ele amasse uma mortal, ou uma deusa prometida a outro.
“Você está bem, milady?” Uma de suas ninfas a perguntou, Flora.
Perséfone olhou ao redor.
As ninfas que lhe serviam eram ninfas das flores e da natureza. Ali,
nos palácios de Perséfone, elas podiam viver eternamente em flor. Elas
tinham cabelos coloridos, assim como flores em um jardim. As peles delas
eram brilhantes, quase douradas, e trajavam longas túnicas brancas cobertas
por fios de ouro.
Perséfone sorriu em resposta a pergunta dela.
Quando a água esfriou, elas começaram a prepará-la para seu baile
anual que aconteceria ao entardecer. Muitos deuses menores compareciam.
Principalmente aqueles da natureza. Seus amigos e amigos de sua mãe.
As ninfas pentearam seus cabelos deixando-os soltos, com lindas
ondas caindo sobre os ombros e ao redor do rosto. Elas tinham prendido
pequenos ornamentos florais sobre sua cabeça e Perséfone se pegou
contente com sua aparência pela primeira vez em seis meses.
O vestido que caia sobre seu corpo era longo, de seda. Tinha uma
base preta, mas era coberto por rosas vermelhas. As mangas do vestido
eram correntes delicadas de ouro.
“Eles começaram a chegar, milady” Flora disse, lhe trazendo sua
primeira taça de vinho dourado.
Seus aposentos tinham paredes brancas com elementos florais aqui e
ali. Uma porta francesa estava aberta para seu jardim particular e do lado de
fora o pôr-do-sol escorria pelos céus.
A deusa encarou seu reflexo e respirou fundo. Parte dela era
orgulhosa demais para admitir que queria que Hades a visse assim. Mais do
que bela, mas em seu próprio elemento.
Ela não era uma rainha, não possuía um reino, como ele. Mas ela era
uma deusa, ao contrário do que poderia parecer quando estava no
submundo... Sozinha, sem poderes, deixada a mercê do tempo instável e da
sorte.
Ela deu um gole grande no vinho e decidiu afastar ele de sua mente.
E foi nesse instante em que a porta de seus aposentos se abriu para
revelar um deus sorridente.
“Hermes!”
Ela correu até ele e o deus mensageiro a pegou nos braços, com
força. Ele mergulhou o nariz nos cabelos dela.
“Você está inacreditável!” Ele suspirou entre os lábios quando a
puxou do abraço e a fez rodopiar.
Ela viu desejo no olhar dele. E não era a primeira vez que via isso.
Ele vestia trajes elegantes, feito de couro marrom e detalhes de lã branca.
Algumas medalhas descansavam sobre o peito dele, afinal, Hermes também
tinha sido um soldado na batalha dos titãs. Os cabelos loiros dele estavam
jogados para trás e o rosto belo evidente.
“Você está pronta?”
“Sim” ela abriu um sorriso e levou o cálice de vinho aos lábios,
entornando-o de uma vez. “Primeiro de muitos”
Hermes deu uma risada.
“Pronta para a primeira dança?”
Perséfone entregou o cálice para uma das ninfas a espera e então
deslizou sua mão na dele, que a esperava.
Lustres com velas feitas de rum cobriram o teto do enorme salão de
dança. O pôr-do-sol navegava as grandes vidraças altas do palácio. A
música era alta e alegre. Hidromel e vinho dourado eram servidos por
ninfas que circulavam por entre deuses e reis.
Mais uma vez, a maioria dos convidados era deuses pequenos e
havia também alguns mortais. Divãs e grandes sofás cercavam a pista de
dança, mas a maioria dos convidados estava em pé, animados.
Quando Perséfone entrou no salão, aos braços de Hermes, todos
aplaudiram e a música se intensificou. O salão estava cheio. Todos tinham
ansiado pela primavera e agora ela estava ali, sorrindo para eles.
Depois da primeira dança com Hermes, Perséfone teve que dividir
seu tempo entre conversar com uns e dançar com os mais ávidos por uma
dança. Muitos dos reis mortais presentes ali estavam completamente
apaixonados por ela e tinham lhe pedido em casamento. No entanto, esses
pedidos haviam se dissipado no ar quando eles descobriram sobre a
punição, sobre que ela passaria metade de sua existência no submundo.
Mesmo assim, eles vinham aos bailes todos os anos para vê-la, para ver a
beleza imortal dela.
Muitos, na verdade, faziam questão de tentar levá-la para a cama já
que não podiam se casar com ela.
Depois de pelo menos umas trinta danças, Perséfone aceitou um
cálice de hidromel com gelo e parou para conversar com deuses da floresta.
Alguns deles tinham várias encarnações e suas aparências mudavam a cada
nova estação. Um falou o quão feliz estava de o inverno ter tido seu fim, já
que aquele tinha sido particularmente frio e intenso.
Quando ela terminou sua bebida, se viu nos braços de outro deus,
voltando para a pista de dança. Quando essa música acabou, ela encontrou
Hermes a meio da multidão.
“Você é uma deusa popular” ele disse, rindo. O deus mensageiro
ergueu a mão para afastar uma mecha do cabelo dela que estava sobre seu
rosto agora corado pelo esforço da dança. “Você acha que eles acreditariam
se eu lhes contasse onde você mora durante seis meses ao ano... um
pequeno chalé que possui uma só cama?”
Perséfone soltou uma gargalhada, aceitando mais uma taça de
hidromel, já levemente alta.
Ela olhou ao redor, para o enorme salão de dança e as centenas de
seres ali, dançando, bebendo, se beijando agora sobre a luz de uma noite
clara.
“Eu acho que eles chorariam por mim” ela respondeu, divertida.
“Você ainda tem tempo, Perséfone” Hermes disse e ela se lembrou
de quando Hades lhe disse o mesmo. A imagem dele e de sua face a
inundou mais uma vez.
“Para o quê?” a voz dela quebrou ao lembrar-se do deus dos mortos
tão vividamente. Ela limpou a garganta com mais um gole de vinho.
“Para ter uma vida aqui” Hermes pegou a mão dela e tirou o cálice
de seus dedos, como se dissesse que era o bastante. “Você terá metade de
sua vida aqui, no mundo dos vivos. Não a jogue fora por ele.”
Ela apertou os olhos.
“Hades?”
Hermes respirou fundo e se aproximou dela.
“Você acha que os deuses e reis do mundo dos vivos não querem
você, mas olhe ao redor... Eles dariam toda a riqueza que possuem para ter
você por seis meses ao ano”
A deusa olhou por sobre o ombro. Os olhares desejosos deles
estavam ali, dos reis, dos deuses.
“Eles só querem uma noite”
“Você se surpreenderia se os desse uma chance... ou talvez a mim.
Eu sei que você já pensou sobre isso”
“Hermes” ela o fuzilou com o olhar.
Ele riu e tocou de leve no queixo dela, então sua mão caiu para
baixo e ele deu um passo brusco para trás. Os olhos grandes dele encararam
as portas douradas do salão.
Todos ao redor sentiram o mesmo que ele e a música parou, de
repente. A noite caia sobre todos dentro do salão. As portas douradas se
abriram com um estrondo.
Uma voz grave surgiu sobre todos ali.
“Rei dos mares, deus dos oceanos. Um de três. Diga viva a
Poseidon”
Os convidados entraram em um frenesi. Burburinho explodiu pelo
ambiente. Poseidon estava ali. Ele raramente vinha a bailes de deuses
menores.
E então, a comitiva do deus dos mares adentrou o salão.
Poseidon era alto e um homem incrivelmente bonito. Ele tinha uma
face madura e cabelos cor de castanha que caiam sobre os ombros. Seus
olhos eram verdes como mar em verão. Dali, ela conseguia sentir o aroma
de água salgada e alga fresca.
Com ele, o deus trouxe ninfas marinhas, nereidas, e em seus braços
havia uma mulher. E ao contrário do que todos acreditavam, a esposa de
Poseidon não era uma deusa. Era uma jovem mortal. Ele havia se
apaixonado por ela ao encontrá-la quase sem vida após um náufrago onde
ela perdera toda sua família.
O deus dos mares vestia trajes formais, um uniforme militar cor
azul-marinho. Sobre o peito, assim como Hermes, ele tinha medalhas, mas
possuía muitas mais. Poseidon tinha um aspecto forte e musculoso.
A aparência dele era completamente diferente de Hades, que tinha
olhos negros e cabelos escuros cortados como um soldado. Poseidon era um
deus visual, não um deus funcional como o deus dos mortos. Pois, Hades,
ao contrário de Poseidon, parecia sempre pronto para uma guerra, sempre
pronto para luta.
A comitiva do deus veio até Perséfone. Os deuses menores e reis
dando espaço para ele.
“Perséfone, deusa da primavera” O deus dos oceanos veio até ela e
pegou sua mão, beijando o nó de seus dedos. “Sua beleza não é nada como
foi me descrita.” Ele suspirou, com um sorriso delicado. Ao contrário de
todos os homens ao redor do salão, o olhar dele e seu comentário não lhe
trouxe calafrios. Pelo contrário, sua voz era inesperadamente respeitosa.
Perséfone fez uma mesura longa. Hermes, ao seu lado, fez o mesmo.
“Milorde, obrigada por vim”
“É meu prazer. Por favor, conheça minha esposa, Anfitrite.”
Afritrite veio até Perséfone e a surpreendeu com um abraço.
“Me chame de Trite. É um prazer conhecer você, milady”
Perséfone riu e apertou-a em um abraço. A mulher de Poseidon era
tão bela quanto Helena de Troia. Sua beleza era sensual e incrivelmente
destrutiva. Ela tinha cabelos cacheados sobre o rosto cor de terra molhada.
Ela vestia um delicado vestido de seda verde como algas, colado em suas
curvas voluptuosas.
“Me dê sua próxima dança” Ela exigiu, pegando a mão de
Perséfone. Poseidon soltou uma risada e se juntou a Hermes, dando
batidinhas no ombro do deus mensageiro como se fosse bom vê-lo por ali, e
as duas se afastaram para a pista.
A música então explodiu ao redor deles e o burburinho se tornou
exalação de alegria. Um dos deuses mais poderosos, um dos três, estava ali,
no baile dela. A fofoca e os sussurros se espalhariam por entre palácios de
outros deuses muito rapidamente.
Trite e Perséfone dançaram até seus pés doerem. Elas também
beberam tanto que Perséfone não conseguia parar de rir.
“Você precisa acreditar em mim, sem ofensa a você, mas esses
deuses são malucos...” Trite disse, rindo. Ela deu uma mordida generosa em
um manjar salgado, que ao contrário do manjar normal era feito por uma
leve camada de massa folheada recheado por bife. “Poseidon me deixou
louca por meses. E quando finalmente decidi que não tinha razão para lutar
por ele, ele me pediu em casamento.” A mortal deu de ombros e olhou
através do salão. O olhar do deus dos mares estava sobre ela. “Eu consigo
sentir o que ele sente por mim a distância” ela murmurou para a deusa. O
álcool havia levado as duas a se tornarem íntimas em questão de meia hora.
Perséfone ficou em silêncio, assistindo-a e sorriu.
“Ah, me perdoe, milady. Quando eu bebo demais, falo o que não
deveria. Que tal uma próxima dança?”
A deusa riu da expressão dela.
“Por que você não dá sua próxima dança a Poseidon? Eu preciso
descansar meus pés por alguns minutos.”
Trite abriu um sorriso.
“Tem certeza, milady?”
Perséfone acenou para ela, divertida. A mortal então encarou a deusa
por um segundo.
“Você é realmente bela, milady. Meu marido não estava exagerando
com o elogio. Nada do que ouvimos é verdade. Você não é a deusa da
primavera, é a personificação dela, de tudo que é majestoso e bom.”
Trite foi ao encontro do deus dos mares após dizer isso e abrir um
sorriso para ela. Os dois se encontraram e compartilharam um beijo quente.
Perséfone assistiu quando o deus levou a esposa para o centro do
salão, com outros dando espaço para eles. Poseidon colocou a mão sobre a
cintura de Trite e com os corpos colados eles dançaram sob a luz das velas
de rum e da noite.
Um calor surgiu por entre as entranhas de Perséfone. Um aperto no
peito a atingiu.
Parte dela acreditava que nunca seria amada assim. No olhar de
Poseidon havia não só amor, mas devoção. E ser devotada por um deus era
a maior forma de amor que existia.
Sentindo o peito apertado, Perséfone revirou o resto de sua bebida,
que agora nem sabia o que era, e decidiu escapar dali.
A dança entre Poseidon e Trite havia tirado a atenção de sobre ela e
Perséfone conseguiu escorregar pela porta lateral que dava para um enorme
jardim, feito por grandes cerca vivas e altas plantas.
Quando saiu porta afora, respirou profundamente na tentativa de
desfazer o nó que tinha no peito. Ela sentiu a brisa fria sobre a pele quente e
levemente suada.
Ela ainda ouvia a música dali, como um zunido atrás de si.
“Meu irmão tem o hábito de monopolizar tudo e todos” A voz dele a
atingiu como um soco. Era firme, baixa e rouca.
Perséfone abriu os olhos e o viu saindo por entre as sombras da
noite.
Hades.
Ele tinha aceitado seu convite.
O deus do submundo deu um passo adiante e então ela pode vê-lo
por inteiro.
Hades usava calças e uma camisa preta simples, que caiam
perfeitamente no corpo musculoso dele, com uma jaqueta de couro por
cima dos ombros largos. Seu rosto tocou o pouco de luz que vinha de dentro
do palácio e Perséfone achou que ia, mais uma vez, perder todo o ar.
A beleza dele era selvagem, sombria e misteriosa. Hades dançou
seus olhos por ela.
“O que está fazendo aqui?” As palavras escaparam da boca dela.
Perséfone percebeu que estava levemente irritada com ele.
Hades ergueu uma sobrancelha.
“Você me convidou, deusa.”
“Então, por que está aqui, em meus jardins? Escondido entre as
sombras?”
“Daqui eu tenho a melhor vista” Ele sussurrou, dando um passo em
direção a ela.
Perséfone balançou a cabeça. Ela queria a verdade, mas sabia que
ele não lhe diria. E a verdade era que Hades não era como o irmão. Todos
ansiavam pela presença de Zeus e Poseidon em seus bailes. Hades, no
entanto, nunca seria bem-vindo como eles.
Perséfone caminhou até ele e fechou as mãos em punho. Ela queria
bater no peito dele por como a fizera se sentir naquele último dia. O silêncio
dele era pior do que qualquer palavra que dissesse.
“Por que está com raiva, deusa?” Hades franziu o cenho, divertido.
“Eu vim. Eu estou aqui”
“Mas você não está lá... Você não está...” ela bufou, balançando a
cabeça. “Deuses... há algo errado comigo”
“O quê?” ele quis saber, a mão enluvada pegando o rosto dela pelo
queixo, examinando-a sério. Seu toque a pegou de surpresa. Era possessivo
e protetor, como se ele estivesse à procura de algo visível que a ferisse.
Perséfone não podia dizer a ele. Não poderia se abrir assim com o
deus do submundo. Não depois daquela última noite. E se ela dissesse o que
estava pensando... sentindo, e ele desaparecesse de sua vida?
“Eu preciso que você venha me ver durante os próximos seis meses”
Hades a encarou, soltando o ar dos pulmões, como se estivesse
aliviado.
“Você precisa?” Ele soltou uma risada leve. “Não posso fazer isso,
deusa. O que seus servos irão achar do deus dos mortos te visitando?”
“Eu não me importo. Você é um amigo.” ela deu de ombros.
Hades puxou o rosto dela mais para cima, para olhar bem em seus
olhos. O olhar dele caiu sobre os lábios dela.
“Eu te disse. Não somos amigos. E eu me importo. Você já tem seis
meses no submundo, por que iria querer eu aqui... no mundo dos vivos?”
Perséfone sentiu o calor do hálito dele sobre a pele. Ela inalou o
aroma, forte, masculino, proibido. Eles estavam muito perto um do outro. O
olhar do deus se encheu de algo que parecia fúria e desejo. Hades batalhava
contra algo dentro de si. Algo forte, algo mais poderoso do que ele.
“Por favor...” ela sussurrou entre os lábios.
Hades ficou em silêncio por um segundo.
“Nada parece ser simples com você, deusa.”
“Prometa para mim”
Hades tomou um longo minuto e então as palavras saíram de seus
lábios, baixas, relutantes.
“Eu prometo”
Promessas entre deuses eram como lei.
Ela respirou fundo, tomando todo ele. Tomando tudo o que ele podia
dá-la naquele momento. Perséfone subiu suas mãos até a jaqueta dele,
repousando as palmas sobre seu peito. Ela achou tê-lo ouvido grunhir
baixinho.
“Vem comigo, junte-se a nós no salão”
Os olhos dele se fecharam e suas mãos seguraram as dela,
afastando-as.
“Com tempo, talvez, você possa me entender. Com tempo... talvez
você possa apreciar o que estou fazendo... tentando ficar longe de você” Ele
roçou os dedos sobre a face dela. Abaixou ainda mais a voz para um timbre
sombrio, e disse: “Você é a mulher e deusa mais bela que já vi em toda
minha existência.”
“Perse!”
Hades deu um passo para trás e ela ouviu-o murmurar:
“Sua última dança chegou”
Hermes passou pelas portas, erguendo os braços.
“Aqui está você!”
O deus estava levemente embriagado.
Depois da chegada de Poseidon eles passaram a beber sem pena.
Perséfone fez uma nota mental de recusar qualquer convite para festas no
Olimpo quando fosse convidada. Ela ouvia as histórias e podia imaginar o
quão decadente eles ficavam no fim da noite.
“Poseidon está prestes a ir embora e eu vou aproveitar a deixa para
ir também..., mas não sem nossa última dança” Ele disse, pegando a mão
dela, puxando-a para dentro.
A deusa olhou ao redor, mas Hades já não podia mais ser visto.
Ela respirou fundo e abriu um sorriso.
“Claro.”
Hermes então parou e olhou firme no rosto dela. Ele soltou ar.
“Deuses, se Afrodite um dia ver você, eu acho que seus seis meses
no mundo dos mortos se tornarão permanentes.”
Ela riu.
“Obrigada?”
Ele riu e então voltou a puxá-la pela mão, adentrando o salão em
seguida, mergulhando entre deuses e reis. A música agora estava alta, viva.
Hermes a puxou para o centro da pista e a fez rodopiar. Ele a pegou
pela cintura e começaram a dançar. Outros se juntaram a eles. Durante a
dança, no entanto, Perséfone notou algo estranho.
Poseidon encarava as vidraças, em direção à escuridão. Quando a
música parou, Hermes se aproximou e a beijou sobre o rosto, próximo
demais de seus lábios. E então beijou os nós de seus dedos e fez uma
mesura.
Em seguida, ninfas passaram servindo um cálice final de hidromel e
Hermes fez questão de erguer a taça e gritar:
“Para a deusa da primavera!”
Todos deram viva.
No entanto, para Perséfone, os gritos não passavam de um zunido
abafado e tudo o que via agora era as sombras da noite. Ele estava lá. Hades
havia assistido ela dançar com o mensageiro.
Antes de todos irem embora, Perséfone encontrou o olhar de
Poseidon à distância uma última vez. Sem se despedir, o deus dos mares só
acenou com a cabeça para ela.
Naquele instante, ela começou a achar que a presença do deus
parecia um tanto planejada e suspeita.
Horas depois, se viu deitada sobre a cama, ainda com seu longo
vestido ao corpo e incapaz de fechar os olhos e dormir.
Ela pensava nele e no que ele tinha dito sobre ficar longe dela.
Perséfone também pensou em sua última dança e como queria que
tivesse sido os braços de Hades sobre seu corpo e não Hermes.
Sem saber quanto tempo ficou encarando o teto de sua cama, o
amanhecer adentrou a porta francesa e as persianas. Mais uma manhã de
primavera.
Perséfone ainda teria outras cento e oitenta até que pudesse voltar a
Asfódelos.
CAPÍTULO VII – OS TITÃS
“Eu posso trazer mel de Hipno essa noite, milady. Irá ajudá-la a
dormir um pouco melhor” A ninfa chamada Flora disse a Perséfone. Ela
passava um pouco de pó sobre o rosto da deusa e suas olheiras.
Perséfone se encarou no espelho. Seus cabelos tinham acabado de
ser penteados.
Ela estava de volta ao mundo dos vivos há um mês e não tinha
conseguido dormir direito desde então. Ela sempre acordava no meio da
noite, com a horrível sensação de ter estado em um pesadelo, mas assim que
abria os olhos não se lembrava de nada.
Aquele mês havia sido solitário. Ela passava os dias caminhando
pelos jardins, usando de seu poder para criar flores com cores vibrantes,
como as do vaso de cristal sobre sua penteadeira.
Suas criações eram, geralmente, cheias de vida e cor. As que
estavam no vaso, no entanto, eram lindos lírios-roxos e pretos. Eram flores
para Hades. A deusa não admitia, mas era. Havia as criado com ele na
mente.
Ela saiu de seus aposentos acompanhada de Flora, vestindo um leve
vestido de seda branco que ia até abaixo de seus joelhos, com mangas
delicadas que pareciam feitas de pétalas coloridas.
“Isso chegou para você, milady” Outra ninfa se aproximou, trazendo
uma carta nas mãos. Perséfone encarou o papel delicado. Sobre a parte de
trás havia apenas uma nota que dizia:
Para a deusa da primavera.
Perse viu o selo. Cera cor azul-marinho.
“Tomarei meu café da manhã nos jardins leste” ela disse, enfiando a
carta dentro da bolsa de couro que carregava, onde estava seu kit de costura.
As duas ninfas fizeram mesura a ela e saíram adiante pelos longos
corredores.
Sozinha, Perséfone então seguiu descalça até os jardins. Ela
caminhou vários minutos pela grama verde, deixando seus palácios atrás de
si. Os jardins lestes eram os mais reclusos, com um grande caramanchão no
centro e uma mesa redonda onde ela podia fazer pinturas, criar plantas ou,
naquele dia, treinar costura.
Altas árvores frutíferas cercavam o ambiente, protegendo o interior
do lado de fora. Devido as frutas, ela passava o dia escutando o cantar de
pássaros que iam e vinham para procurar o que comer.
Quando chegou no caramanchão, o café da manhã já estava servido.
Chá de menta, pães de rum amanteigados e uma variedade das frutas
que tinham vindo das árvores ao redor.
A deusa retirou seu kit de costura na intenção de trabalhar em um
bordado, mas não conseguiu se concentrar. A carta a chamava. Ela puxou o
papel da bolsa e quebrou o selo.
Dentro havia um convite. Um convite vindo de Trite, esposa de
Poseidon.
Lady Perséfone,
Junte-se a nós, nos Palácios dos Corais, para assistir à subida da
maré.
Acontecerá no dia da primeira lua cheia da primavera, em algumas
semanas.
Seria uma honra ter você aqui.
Esperamos você,
Trite,
Rainha dos Sete Mares.
Atena fora trazida ao mundo dos deuses milênios após Cronos ter
sido derrotado.
Cronos, o deus do tempo, um dia, muito atrás, havia sido rei do
mundo dos mortais e dos deuses. Ele era o pai de Hades, Zeus e Poseidon.
O que Atena sabia sobre a vida dele não era muito, mas o bastante para
dizer a Perséfone que o reino de Cronos era cruel. Então um dia, os três
irmãos decidiram em lutar contra ele.
Hades havia sido encarregado de cuidar da prisão do pai, após sua
derrota, e de mantê-lo preso no submundo, em um lugar secreto no tártaro.
No entanto, Cronos conseguira fugir. Ninguém nunca soube como, e
não importava.
A batalha contra ele e outros titãs então se iniciou.
Muitos lutaram e muitos morreram.
Assim como a mãe de Atena e sua amante, uma mortal que havia
dado a vida pela causa dos deuses. Atena contou que sua mãe, antes de
morrer, havia tido a ideia de transformar Cronos em mortal, pois essa seria
uma punição mais severa do que enviá-lo de volta ao mundo inferior.
Aparentemente, a mãe dela havia até mesmo criado uma arma com o poder
para tal, mas a arma não funcionava como deveria e precisava da ajuda de
poderes que não tinha durante a batalha.
Hades havia tido um papel fundamental no combate, liberando o
exército de almas. O maior exército de todos os deuses.
No fim, Cronos caiu, morto, sob a espada dele. A espada de Hades
garantia que a alma ficasse presa no tártaro para sempre. E foi assim que
eles venceram a batalha.
“Ele também salvou minha vida” Atena falou.
Ela colocou os longos cabelos pretos sobre a orelha, deixando sua
cicatriz ainda mais evidente. Ela não tinha razão para escondê-la. Atena
carregava aquela marca da batalha com orgulho. “Cronos achou que meu
pai viria me salvar se ameaçasse me matar.” Ela deu uma risada irônica. “E
então ele fez isso... para que Zeus lembrasse de sua própria covardia, pois
meu pai simplesmente me ignorou. Cronos estava prestes a me matar
quando Hades atravessou o mar de titãs, matando um por um, por fim
cortando suas mãos antes de enviá-lo para as profundezas do tártaro.”
O olhar da deusa agora era distante, vazio entre lembranças.
“Eu nunca vi nada igual antes ou depois daquilo... Foi ali que eu
soube que Hades realmente nasceu para ser o deus dos mortos, juiz e
castigador das almas”
“Ele não é como os outros” Perséfone se viu dizendo.
“Não” Atena balançou a cabeça. “Eu concordo com você.”
“É por isso que os outros deuses não gostam dele, por que ele é
diferente?”
Atena a encarou longamente.
“Hades não é como nós porque ele não quer ser. Meu tio não sabe o
que é crueldade, Perséfone... Ele é o criador dela. Não é que os outros
deuses desgostam dele, eles o temem... pois ele causa dor e punição todos
os dias. E você deveria fazer o mesmo.”
Perséfone sentiu um calafrio ao ouvir aquilo. Sua mãe havia dito
algo parecido quando contou a ela sobre a punição. Fique longe do deus dos
mortos. Aquele tinha sido o último pedido de Deméter antes de sumir.
Ainda assim, ela se lembrava dos olhos dele. Ônix, sombrios e...
perdidos. Ela sentia a solidão dele, presente como a realidade. A deusa se
perguntava se outros também viam em Hades o que ela via.
“Eu preciso ir.” Disse ela, baixo, se erguendo do sofá.
Atenas a acompanhou e foi até a mesa, deixando lá as duas taças
vazias.
“Você é uma deusa nova. Há muito que ainda vai aprender. Mas há
algo em você, Perséfone, que talvez até você não reconheça ainda... Algo
que eu pressinto ser parte de quem você é, daquilo que faz você divina:
Bondade e coragem.” A deusa do conhecimento veio até Perséfone e
colocou algo em suas mãos. “São raros os deuses quais consigo sentir essas
qualidades como sinto em você. Então, quando descobrir a verdade que
escondem de você, pense nisso. Pense em quem pode, e não quem deveria
ser.”
Ela olhou longamente para Atena e respirou fundo. Atena abriu um
sorriso de despedida e no segundo seguinte, Perséfone desapareceu da
biblioteca, seus pés voltando ao jardim leste, onde o sol agora caía sobre os
céus.
Em suas mãos estava a pintura de Hades ao redor da fogueira.
Aquele era o dia da primeira lua cheia. O dia a subida das marés.
Perséfone leu mais uma vez o convite de Trite e o deixou sobre a
penteadeira, olhando-se no reflexo do espelho.
Ela havia decidido se arrumar sem as ninfas naquele dia, escolhendo
um vestido verde, colado ao corpo que descia um palmo abaixo de seu
joelho. As mangas eram curtas, mas altas sobre os ombros, como se
parecerem o bulbo de uma flor prestes a florescer. Ela tinha prendido uma
parte do cabelo com um pequeno grampo de ouro sobre a têmpora e
passado sob os lábios uma pasta feita de rosas-vermelhas.
Seus olhos cor de âmbar não brilhavam naquele dia.
Perséfone se sentia cansada. A visita de sua mãe alguns dias atrás
tinha tirado dela toda sua energia.
Aos pés, ela calçava um sapato alto, que subia por seus tornozelos
em tiras de couro e detalhes florais de ouro, combinando com o detalhe de
seus cabelos. Dando de ombros, ela decidiu que estava pronta. Não sabia
exatamente como se vestir para a ocasião, não tinha certeza se seria um
jantar ou um baile. E, também, não sabia como chegar dos Palácios de
Corais. Havia apenas ouvido falar deles, mas não onde ficava.
Era apenas um dos lugares onde Poseidon morava. Ele também
havia palácios abaixo do oceano, mas claro, Trite não podia viver neles,
pois era mortal.
Perséfone estava prestes a ler o convite mais uma vez para tentar
saber como chegaria até lá quando notou uma pequena concha surgir por
sobre o papel. A concha tremeluziu, surgindo como se estivesse ali aquele
tempo todo.
A deusa sorriu e pegou o objeto na mão, percebendo que vinha com
um pedaço delicado de couro, como se fosse um colar. Ela levou-o até o
pescoço e no segundo seguinte, já não estava mais em seus palácios.
As ondas do mar quebravam com força, explodindo sobre um
paredão de pedras à beira-mar. As águas eram cristalinas, azuis como o céu.
O dia estava quente e belo, límpido. A praia se estendia por milhas e milhas,
Perséfone não conseguia saber onde terminava. Sobre a areia, os palácios de
Poseidon se erguiam.
Assim como corais, a textura e as cores das paredes eram como um
caleidoscópio. Do vermelho ao azul, cada superfície do palácio era tomada
pela riqueza que havia dentro dos mares e, no fundo do oceano. A água do
mar tocava as paredes, indo e vindo, deixando uma camada de alga por
onde passava.
Perséfone respirou fundo e olhou ao redor. A praia parecia vazia. Ela
tirou os sapatos e enfiou os dedos na areia quente, abrindo um sorriso. No
submundo, o único mar que ela tinha acesso era o vale das almas e em
nenhum momento em seus quatro anos lá ela pensou em caminhar sobre as
praias ou entrar na água. Ela sabia que aquele mar era feito para trazer as
almas até Asfódelos, nada mais.
Caminhando em direção às enormes torres coloridas, ela viu dois
braços se movimentando no ar. Trite gritava seu nome à distância.
“Perséfone!”
A deusa da primavera foi até ela, com a rainha dos sete mares
correndo para encontrá-la a meio caminho, puxando-a para um abraço
apertado.
“Ah, eu achei que você não viria” A mortal disse quando se afastou.
Os cabelos cacheados de Trite estavam revoltos ao redor do rosto,
como se ela estivesse em constante contato com a brisa do mar. Sua pele
estava ainda mais morena, bronzeada pelo sol. Ela vestia um longo vestido
feito de pequenas cordas que pareciam redes de pesca que não cobriam
muito de seu corpo, mas o bastante para ser decente.
“Uau...” A rainha admirou Perséfone. “Você precisa me emprestar
suas costureiras...” ela continuou, baixo. “As daqui são horrendas”
Perséfone riu.
“Eu costurei esse vestido, na verdade” Trite estancou e abriu os
lábios, chocada. A deusa riu da expressão dela e disse: “Não tenho
costureiras no submundo, então precisei aprimorar meus dons de costura e
bordado...”
“O quê?!” a boca dela se abriu ainda mais na menção de Perse não
ter costureiras no submundo. “Eu vou ter uma palavrinha com Hades”
Perséfone riu.
“Ele não pode fazer nada”
A rainha franziu o cenho e puxou a deusa pela mão, levando-a para
o interior do palácio.
“Deixe comigo” ela disse. “Mas mesmo assim... uau, você tem um
dom.”
“Obrigada”
Perséfone se sentia satisfeita. Havia trabalhado naquele vestido
desde o momento em que voltou ao mundo dos vivos. Não havia ficado
como tinha imaginado, mas admitia que não estava tão mal.
As duas adentraram o palácio e Perse quase soltou uma exclamação.
Ela acreditava que nada poderia ser melhor do que o lado de fora, mas
assim que entrou na primeira sala, soube que não era verdade.
O interior era coberto por cor. As janelas tinham cores diferentes e
quando a luz batia parecia que estavam em um arco-íris. Portas abertas e
enormes davam para uma parte da praia que ela não tinha visto, pois era
uma área reclusa, só para aqueles que moravam ou estavam no palácio.
Uma enorme porta dava para lá. O mar quebrando-se em ondas a
metros de distância.
Nereidas, ninfas dos mares, vieram até as duas e lhes entregaram
bebidas geladas. Quando Perséfone levou o cálice aos lábios, soube que
estava provando, pela primeira vez, a famosa bebida dos seres das águas.
Era simplesmente chamada de Lágrima. Era levemente salgada com um
toque de rum. Não era uma bebida divina, mas era deliciosa.
Sofás e cadeiras acolchoadas cobriam o espaço. Mezaninos e
escadas davam para a parte mais íntima do palácio. Sobre a varanda, a
frente do mar, havia uma grande mesa com comida, bolos e garrafas de
hidromel, lágrima e vinho dourado.
As duas, descalças, caminharam até lá.
“Estamos esperando por outros convidados?” Perséfone quis saber,
dando mais um gole na bebida.
“Ah, não. A subida da maré é um evento que Poseidon gosta de
manter entre família.”
Família. A rainha levou um manjar para os lábios e sorriu para
Perséfone, como se tivesse feito algo travesso. E então, ela viu alguém se
aproximar sobre o ombro de Perséfone.
“Meu rei!”
Ela apertou o ombro de Perséfone como se dissesse ‘não se
preocupe’ e correu para encontrar o deus.
A deusa se virou para eles e assistiu Trite encontrar Poseidon. O
deus dos oceanos estava com o torso musculoso nu, coberto por suor. Ele
tinha deixado a barba crescer levemente desde o baile da primavera.
Trite pulou sobre ele e o deus a aparou, puxando-a do chão,
acariciando os cabelos dela e a trazendo para um beijo quente.
Atrás de Poseidon vinha outra pessoa. Parte de Perséfone já sabia
quem era.
De repente, ela quis desviar o olhar, mas não conseguiu.
Hades apareceu por sobre a areia. Ele, assim como o irmão, estava
sem camisa. Os dois eram quase do mesmo tamanho, no entanto, os ombros
fortes de Hades demonstrava seu uso constante da espada. O torso dele era
completamente coberto por músculos firmes, definidos, que brilhavam
sobre a luz do sol e o calor. Suor escorria por seu v de adônis.
Ele ainda não a tinha visto, pois estava concentrado em tirar algo da
boca de seu cachorro, Cérbero. E foi o cachorro que a viu primeiro. O
animal, assim que olhou para Perséfone, abandonou o dono e veio
disparado em direção a ela, chegando perto e oferecendo sua cabeça para
que ela fizesse aquilo que não tinha feito quando se conheceram.
O cachorro tinha pelo negro, mas parecia diferente de quando ela o
vira no submundo. Era como se o mundo dos vivos o fizesse mais... normal,
e menos ameaçador.
Perséfone se agachou e o acariciou.
Ela então encontrou o olhar de Hades, à distância. O deus respirou
fundo e balançou a cabeça, em negativa. Ele não parecia feliz.
E a verdade era que Perséfone não se sentia muito diferente dele.
Depois que sua mãe tinha dito que ele prometera ficar longe dela,
Perséfone havia criado um ressentimento silencioso. E tinha ficado grata
que ele não a visitara naqueles últimos dias.
Parte desse ressentimento era alimentado pelo fato de que ela se
sentia indesejada e tola. A deusa tinha se arrependido de todas as vezes que
tinha ido no castelo em busca dele, ou quando pediu para que ele ficasse
com ela... naquela noite.
E agora ela estava decidida em dar a ele o que queria, o que tinha
prometido a sua mãe: distância.
“Lady Perséfone” Poseidon anunciou quando se aproximou. A deusa
se ergueu e fez uma mesura longa.
“Milorde”
“Não precisa ser formal.” Ele fez um movimento com a mão,
assistindo com divertimento o cachorro de Hades lamber os dedos dela.
“Vocês se conhecem... e muito bem, pelo que posso ver. Nunca vi esse
cachorro infernal gostar de alguém tanto assim. Ele estranha até a mim.”
Perséfone riu e coçou a cabeça do animal.
“Apenas uma vez. Quando invadi o Palácio das Almas Perdidas.”
Poseidon e Trite se entreolharam, curiosos.
“Invadir?”
“Ela foi convidada” Hades esclareceu, chegando mais perto.
“Não foi o que pareceu” ela murmurou, evitando olhar para ele.
Mesmo assim, fez outra mesura para ele. “Milorde”
Hades abaixou a cabeça levemente, encarando o corpo dela, naquele
vestido colado.
“Milady”
Perséfone voltou a encarar Cérbero na tentativa de não encontrar o
olhar do deus. Os quatro ficaram em silêncio por alguns segundos até Trite
fazer uma careta e limpar a garganta.
“Refrescos?” A rainha quis saber, indo até a mesa feita de corais e
enchendo cálices com Lágrima e gelo. Ela pegou a taça de Perse e a encheu.
E então, se virou aos dois irmãos e disse: “Quem ganhou?”
Poseidon riu.
“Ninguém. Estamos empatados”
Trite deu de ombro e puxou Perséfone consigo.
“Ótimo. É uma boa chance de mostrar a Primavera aqui o que os
deuses mais poderosos do Olimpo fazem quando estão entediados”
Hades soltou uma gargalhada, como se o que ela houvesse dito fosse
longe da verdade.
“Eu acho que já é o bastante para mim”
A rainha o fuzilou com o olhar.
“Entretenha minha convidada” ela sibilou.
Hades então ergueu as mãos em defesa própria.
Os dois irmãos se entreolharam e Poseidon segurou uma risada. O
desafio de entreter Perséfone tinha sido aceito.
Eles então socaram o ombro um do outro e viraram a bebida de uma
vez, correndo de volta pela praia.
Perséfone e Trite caminharam até a beira-mar onde havia toalhas
sobre a areia. Mais a frente, próximo à água, havia uma longa corda
dourada jogada no chão. Sobre a areia, uma divisão.
Os deuses se posicionaram, cada um pegando uma ponta da corda.
Trite foi até eles e limpou a linha que marcava o centro dessa.
Perséfone se sentou sobre as toalhas, assistindo-a falar algo baixo
para os dois, e então correu em direção onde a deusa estava. Cérbero foi até
elas e se deitou próximo, aos pés de Perse.
“Cabo de guerra?”
Trite deu um sorrisinho.
“Cabo de guerra versão deuses-que-trapaceiam. Eu disse a eles para
se comportarem. Não quero que você saia daqui com uma impressão
errada”
Perséfone riu.
E então, os dois começaram a puxar a corda.
Perséfone não conseguia tirar seu olhar de Hades. Ele enfincou os
pés descalços na areia e então cada músculo de seu corpo se tensionou.
Poseidon fez o mesmo e a corda não parecia se mover nem um centímetro.
“Como eles trapaceiam?” Perséfone quis saber, sem conseguir tirar
seu olhar do corpo do deus dos mortos. Ela, de repente, notou que a
tatuagem dele não estava lá, havia sumido. Como se ele a tivesse removido
ou escondido.
“Bem... depende. Eu já vi Poseidon mandar um tubarão atacar
Hades e Hades abrir um buraco no chão para engolir as pernas de
Poseidon.”
Perséfone riu, dando um gole na bebida salgada.
“Posso perguntar...” A rainha se aproximou da deusa. “O que há
entre vocês dois?”
Perséfone se assustou com a pergunta, voltando o olhar de Hades
para rosto dela.
“Nada”
A rainha fez muxoxo, mas não se aprofundou no assunto,
percebendo que era melhor deixar quieto.
“Sua festa foi incrível, deusa, mas...” Trite bufou, como se decidisse
se valia a pena ou não contar a ela. “Você precisa saber disso, pois tenho
uma impressão de que eles estão escondendo coisas de mais de você. E eu
lembro bem como é ser a última a saber dos segredos dos deuses. Hades
pediu a Poseidon para ir a sua festa.”
Perséfone engoliu em seco e se viu engasgando com a bebida.
“O quê... Por quê?”
“Eu não sei o porquê, mas geralmente quando os dois concordam
em algo... o que é raro, tem a ver com...” Ela parou e respirou fundo. “O
outro irmão.”
Uma onda de decepção e choque explodiu dentro de seu âmago.
Os segredos, as mentiras. Tudo estava se tornando demais para ela
suportar. No fundo, quando ela assistiu Poseidon olhar para as sombras da
noite do dia do baile, soube que a presença dele lá era suspeita demais. E
agora, sabia que era verdade, mas não a razão. E isso quebrava seu coração.
De repente, Perséfone quis sumir dali.
Sua mãe e agora Hades. Ela não tinha mais ninguém em quem
pudesse confiar.
Perséfone se sentia completamente só.
Ela ouviu Poseidon dar um urro de vitória. Trite o ignorou,
assistindo a face a deusa se transformar, ficando pálida.
“Você está bem?” A mortal sussurrou, tomando a mão de Perséfone.
A tristeza que Perse sentia havia removido de dentro dela qualquer
emoção. Ela se sentia vazia. A deusa precisava de respostas e como sabia
que nem sua mãe e nem Hades a daria, só havia outro deus capaz de ajudá-
la.
“Me desculpe, Trite, eu preciso ir...” falou, com a voz baixa, quase
inaudível.
Perséfone se ergueu das toalhas e Hades e Poseidon assistiram
quando ela deu de costas para o mar, caminhando rápido em direção ao
palácio.
“Perse, espere!” A rainha gritou, se erguendo. Ela encarou os dois
deuses. “Hades, faça alguma coisa!”
Hades largou a corda e deu um passo em direção a ela, vendo
quando ela tocou na concha ao colo e desapareceu sobre a brisa do mar.
CAPÍTULO IX – A MARÉ
“Eu não sei onde estou” A voz dela era como brisa quente.
Ela tentava falar com as plantas. Às vezes, algumas ajudavam, mas
ali no submundo, as plantas eram inertes, sem vida. Ela tinha se perdido
nos campos mais uma vez.
Perséfone estava à procura do palácio de Hades. Ela queria
solicitar uma audiência, pedir para que ele a livrasse daquela punição, mas
não conseguia encontrá-lo.
Ela só tinha dezoito anos. E agora estava presa naquele lugar por
metade de sua existência.
“Para onde quer ir, deusa?” Uma voz rouca a encontrou.
Um homem alto de cabelos pretos e olhos escuros como a noite
agora estava ao seu lado. Ele usava uma jaqueta de couro negro, e era
forte demais para ser apenas uma alma.
“Você é um deus.”
Ele não disse seu nome a ela. Os dois caminharam lado a lado em
silêncio.
“Estou tão confusa” a deusa disse, de repente. “Pode me ajudar?”
“Esse não é um lugar para os vivos. É por isso que está confusa. O
submundo sabe que você não pertence aqui”
Ela apertou os olhos. A mente de Perséfone estava nublada, coberta
por névoa e dor.
Ela agora se lembrava que tinha esquecido algo, e que algo que
precisava esquecer ainda lembrava.
“Quem é você?”
“Um rei” ele disse, sinceramente.
Ela encarou para ele.
Ele era Hades, o deus dos mortos, julgador de almas e rei do
submundo.
“Quebre minha punição”
“Não posso. Mas eu daria minha própria alma para fazê-lo, se
pudesse.”
Perséfone tinha a impressão de que não era a primeira vez que ele
lhe tinha dito aquilo.
“Acho que estou em um sonho”
Hades se aproximou dela, tocando sua face ligeiramente.
“Essa é uma memória. E nessa memória, eu tomei seu primeiro
beijo”
Perséfone não fazia a menor ideia de onde estava. Ainda era dia
naquele lugar, e ela sabia que estava distante de Asfódelos, distante do
Palácio de Almas Perdidas.
Seus pés descalços tocavam grama seca. Ela estava sobre um morro
alto. Dali, podia ver o que havia lá embaixo. Cinco pequenas casas feitas de
diferentes pedras, diferentes modos, formando um círculo. Ao lado de cada
uma delas havia correntes de água e fogo.
Uma, tinha pequenos telhados marrons, com uma varanda pintada e
aberta. Outra era como seu chalé, normal e simples. As outras três eram
estranhas. Uma não tinha teto e parecia que tinha sido completamente
destruída por fogo. Outra só restavam ruínas, como se o tempo tivesse
esquecido dela. A última parecia normal, mas havia uma pessoa sentada à
frente, que chorava.
“Cócito é dramático”
Perséfone se virou para ver uma garota se aproximar. Ela tinha
longos cabelos cacheados. Sua pele era branca como um fantasma. Seus
olhos eram pálidos, sem vida. A garota tinha os dedos e os braços pintados
de preto, a imagem de runas antigas a cobria.
O ser desconhecido encarou Perséfone.
“Você pertence ao submundo” ela falou, como se fosse uma
curiosidade. “Já te falaram isso, milady?”
Perséfone riu.
“Me disseram o contrário”
“Ah, sim. Mortais. Vocês gostam de mentir. Eles estão mentindo a
você. Você pertence ao submundo... e, na verdade, vai escolher ficar aqui
muito em breve”
“Quem é você?” Perséfone franziu o cenho.
“Algos!” A voz de Hades trovejou às costas das duas. “Não se atreva
a se aproximar dela!”
A garota riu, absolutamente divertida.
“Oops, seu protetor chegou.” Ela deu de ombros e desapareceu no
ar.
“Deuses, Perséfone” Hades se aproximou rápido dela, consternado.
“Você precisa me ouvir. O submundo é um lugar perigoso”
“O que a garota poderia possivelmente fazer?”
Hades tensionou a mandíbula.
“A garota... é a deusa da dor, protetora do Aqueronte – rio da dor.
Ela adora torturar damas solitárias.”
A deusa apertou os olhos.
“Eu te disse isso antes... eu não preciso de sua proteção!”
Perséfone virou as costas para ele e começou a caminhar em direção
das casas. Se a protetora do Aqueronte estava ali, a do Lete também estaria.
Ela sentiu Hades às suas costas e ele a não demorou muito para
alcançá-la.
Em silêncio, os dois chegaram até as casas. Algo que a deusa não
tinha visto lá de cima surgiu quando se aproximou ainda mais. As nascentes
dos rios vinham de dentro das casas. Cada rio com uma cor, com um poder.
Na casa de pequenos telhados marrons, ela sentiu a presença do
esquecimento e então começou a caminhar até lá.
“Espere” Hades pediu.
Ela se virou para ele, impaciente.
“A protetora do Lete é... complicada. Deixe-me falar com ela. Fique
aqui.”
“Por que eu faria isso? Se você quisesse me ajudar já teria vindo até
aqui”
“Eurídice não é minha amiga. Não é meu lugar fazer pedidos por
ela.”
“Mas eu achei que você era o meu”
Hades suspirou.
“Eu te disse que não poderíamos ser amigos”
Perséfone virou as costas em resposta e voltou a caminhar em
direção à varanda. No entanto, ela não precisou bater na porta. Uma mulher
bela, com longos cabelos negros, caminhou para fora, olhando o horizonte,
encontrando Hades e depois virando para ver Perséfone ali, sobre sua
varanda.
A mulher abriu um sorriso e então deu uma risada. Ela olhou para
Hades e falou:
“Eu te avisei, milorde. Eu te avisei que esse dia chegaria”
CAPÍTULO XIII – A FEITICEIRA
Helena Lopes é uma Roraimense vivendo na Inglaterra. Ela escreve desde os doze anos. Apaixonada
por poesia, desenvolveu sua escrita para romances quando tinha apenas dezenove anos.
Começou a escrita com romances contemporâneos, como Perdida em Você, publicado na Amazon em
2015, Um Toque de Esperança e Uma Noite Para Sempre, os quais tornaram-se best-sellers após a
publicação. Logo, publicou seu primeiro romance medieval, A Profecia do Rei. E sobre a era
vitoriana, Jardim do Viúvo. Seu primeiro livro de fantasia foi lançado em 2023, Corte de Elementos e
Maldição, qual é finalista do Prémio Wattys 2023. Seu último livro, A Rainha Prometida, entrelaça
romance e mitologia, sendo sua primeira obra que relê um mito grego. Este, se tornou best-seller
antes mesmo do lançamento.