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CANTO COLETIVO

EM EXTENSÃO
Novos olhares para o Trabalho Vocal
em diferentes contextos
Vivianne Aparecida Lopes (Org.)
Vivianne Aparecida Lopes
(Organizadora)

CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:


novos olhares para o Trabalho
Vocal em diferentes contextos

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem da capa: Freepik | Freepik (modificado)
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

C232

Canto Coletivo em Extensão: novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos /
Vivianne Aparecida Lopes (organizadora). – Curitiba : CRV, 2022.
154 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-3458-1
ISBN Físico 978-65-251-3463-5
DOI 10.24824/978652513463.5

1. Música 2. Canto – Coletivo 3. Pedagogia 4. Trabalho vocal 5. Corpo – Práticas I. Lopes,


Vivianne Aparecida, org. II. Título III. Série.

2022-27635 CDD 780


CDU 78
Índice para catálogo sistemático
1. Música - 780

2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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de La Havana – Cuba) Simone Tiemi Hashiguti (UFU)
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Luciano Rodrigues Costa (UFV)
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
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Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������� 9
Vivianne Aparecida Lopes

PREFÁCIO����������������������������������������������������������������������������������������������������� 13
Cíntia Thais Morato

A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO CORPORAL


NA PRÁTICA VOCAL COLETIVA: reflexões sobre a Técnica Alexander����� 15
Izabel Padovani

EM BUSCA DO SOM PRIMAL: o papel do corpo no canto coletivo������������� 31


Moacyr Costa Filho

PRÁTICAS MUSICORPORAIS NO PREPARO VOCAL COLETIVO:


reflexões e experiências���������������������������������������������������������������������������������� 49
Thays Lana Peneda Simões
Éric Vinícius de Aguiar Lana

DANDO CORPO À VOZ: educação somática nas práticas vocais coletivas����� 67


Simone Sousa

O PAPEL DA MELODIA E DAS PALAVRAS NA PRÁTICA


VOCAL COLETIVA���������������������������������������������������������������������������������������� 81
Ana Isabel Pereira

ARRANJOS CRIATIVOS PARA O TRABALHO VOCAL COLETIVO:


um relato de experiência��������������������������������������������������������������������������������� 97
Thiago Rodrigues

CANTANDO COLETIVAMENTE: a importância do regente����������������������� 107


Edésio de Lara Melo

INCLUSÃO SOCIOCULTURAL ATRAVÉS DA PRÁTICA VOCAL


COLETIVA NO CORAL INFANTIL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO���������������������������������������������������������������������������������������� 121
Maria José Chevitarese

CANTANDO CRIATIVAMENTE: um olhar para as práticas vocais������������ 135


Marisa Trench de Oliveira Fonterrada

ÍNDICE REMISSIVO����������������������������������������������������������������������������������� 149


APRESENTAÇÃO
Este livro é o culminar dos projetos Canto Coletivo em Extensão I, II e
III, desenvolvidos como ação de extensão do Núcleo de Educação Musical,
sob minha coordenação, entre os anos de 2020 e 2022, na Universidade Fede-
ral de Uberlândia. O Canto Coletivo em Extensão surgiu como uma proposta
de extensão on-line, após a suspensão das atividades presenciais em função
da pandemia da covid-19. O intuito, inicialmente, era promover um espaço de
reflexão sobre os caminhos para aliar corpo e voz no canto coletivo e pensar o
trabalho vocal de uma forma que alimente práticas diferenciadas; ideias que
perpassem pelo fazer criativo e integrem os participantes dos grupos vocais
com suas diferentes realidades.
No que concerne ao canto coletivo, é possível identificar que parte sig-
nificativa das pesquisas realizadas no Brasil são direcionadas para o trabalho
coral. Pretendeu-se, com estes projetos, abrir espaço para discussões e refle-
xões que envolvessem não apenas o canto coletivo na ótica do coro, mas o
trabalho vocal de um modo geral e práticas que envolvessem também o corpo,
entendido neste contexto como parte indissociável da voz.
Contando com a colaboração de autores referência na área como Izabel
Padovani, Moacyr Costa Filho, Thays Simões e Éric Lana, Simone Sousa, Ana
Isabel Pereira, Thiago Rodrigues, Edésio de Lara Melo, Maria José Chevita-
rese e Marisa Fonterrada, que participaram como conferencistas convidados
das rodas de conversa dos referidos projetos, esse livro contém nove capítulos
com diferentes olhares sobre a temática do canto coletivo.
O primeiro capítulo, A importância do trabalho corporal nas práticas
vocais coletivas: reflexões sobre a Técnica de Alexander, de Izabel Padovani,
cantora e professora de Técnica Alexander formada pelo The Alexander Tech-
nique Centre de Viena, traz uma reflexão sobre as contribuições de Frederick
Matthias Alexander para a pedagogia vocal, no sentido de entender o papel
do corpo no trabalho do cantor. O segundo capítulo, Em busca do som pri-
mal: o papel do corpo no canto coletivo, escrito pelo professor e pesquisador
Moacyr Costa Filho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), também
aborda a temática da relação corpo-voz, dando ênfase à importância destas
descobertas para a busca do que designa como som primal. O terceiro capítulo,
Práticas musicorporais no preparo vocal coletivo: reflexões e experiências,
uma parceria da professora e cantora Thays Simões com o maestro Éric Lana,
condutores do projeto Canarinhos de Itabirito (MG), traz considerações sobre
o que designam como musicorporeidade, ou seja, ainda essa relação voz-corpo,
com ênfase na prática vocal coletiva desenvolvida com os integrantes do coral
Canarinhos de Itabirito. No quarto capítulo, Dando corpo à voz: Educação
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Somática nas práticas vocais coletivas, Simone Sousa, professora e pesquisa-


dora da Universidade Federal do Ceará (UFC), apresenta um olhar integrado
desta relação corpo-voz a partir da perspectiva da Educação Somática.
O quinto capítulo, O papel da melodia e das palavras nas práticas vocais
coletivas, escrito pela pesquisadora portuguesa Ana Isabel Pereira (Universi-
dade Nova de Lisboa), traz um outro ponto de reflexão em relação ao canto
coletivo. A autora aborda a importância da utilização do que designa como
sílaba neutra em complemento à utilização de canções com texto na prática
vocal, para fomentar o desenvolvimento vocal e musical das crianças em
contexto coletivo. No sexto capítulo, Arranjos criativos para o trabalho vocal
coletivo, Thiago Rodrigues, arranjador e regente do Coral dos Correios (Bau-
ru-SP), procura refletir sobre a escolha de repertório para o canto coletivo
infantil, com ênfase na atuação múltipla do regente como preparador vocal e
arranjador. Ainda em relação ao seu trabalho com a elaboração de arranjos,
o autor destaca a relevância da ludicidade, da criatividade, do olhar cuidado
do arranjador em relação ao tipo de repertório, bem como do respeito pelas
características vocais das crianças. No sétimo capítulo, Cantando coletiva-
mente: a importância do regente, Edésio de Lara Melo, regente e professor
da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), aborda, sob o viés teórico e
histórico, o papel do regente ao longo do tempo. Traz também reflexões sobre a
sua importância especialmente na prática coral atual. O oitavo capítulo, desen-
volvido pela regente e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Maria José Chevitarese, aborda a temática da Inclusão sociocultural
através da prática vocal coletiva no coral infantil da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. A autora faz uma análise do trabalho que tem desenvolvido
nas últimas décadas com os projetos corais infantis da UFRJ e aponta os
benefícios da prática vocal coletiva para as crianças. Por fim, no último capí-
tulo, Cantando criativamente: um olhar para as práticas vocais, a professora e
pesquisadora Marisa Fonterrada, da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
apresenta possibilidades para se desenvolver o canto coletivo com o público
infantil e reforça a sua importância especialmente no contexto escolar. A autora
destaca ainda a relevância dos regentes e professores de música, de um modo
geral, entenderem a maneira pela qual a criança se relaciona com a própria
voz cantada, abrindo espaço para a criança jogar e brincar.
Espera-se assim, que a leitura desta obra possa contribuir para os profis-
sionais que atuam na área. Entende-se que esta experiência de experimentar
caminhos para aliar corpo e voz e pensar o trabalho vocal de uma forma
criativa e que alimente práticas diferenciadas seja importante para os profis-
sionais que já atuam na área e os alunos das licenciaturas, docentes ainda em
formação. Como professores e condutores de grupos vocais, é fundamental
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 11

que pensemos formatos alternativos para o trabalho vocal coletivo. Práticas


que perpassem pelo fazer criativo e integrem os alunos com suas diferentes
realidades. A proposta aqui é partilhar um pouco da experiência e do know-
-how de especialistas que colaboraram voluntariamente com o projeto Canto
Coletivo em Extensão e que têm se dedicado ao fortalecimento da Educação
Musical e da Pedagogia Vocal no Brasil.
Que a leitura seja fluída, seja leve, e seja transformadora, pois é reflexo
de um trabalho feito com muito amor e carinho, para vocês!

Vivianne Aparecida Lopes


Professora Adjunta do Núcleo de Educação Musical (NEMUS)
– Curso de Música – Universidade Federal de Uberlândia
Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Música, Práticas Curriculares
e Pedagogia do Canto (Infantil e Adolescente) – MUSIPEC
PREFÁCIO
Este livro resulta de três projetos de extensão coordenados pela profes-
sora doutora Vivianne Lopes – organizadora deste volume – na Universidade
Federal de Uberlândia, MG, realizados em meio remoto nos anos de 2020 e
2021. Os projetos intitulavam-se Projeto Coletivo em Extensão: estratégias
e possibilidades (2020), Projeto Coletivo em Extensão: novos olhares para
o trabalho vocal em diferentes contextos (2021) e Projeto Canto Coletivo em
Extensão III: Práticas vocais; que proporcionaram rodas de conversa e ofici-
nas com pesquisadores convidados que discutiram temáticas variadas sobre a
voz e o canto em conjunto, passando ou não pelo coro. Esses pesquisadores
são, pois, os autores dos nove capítulos que compõem o livro Canto Coletivo
em Extensão: novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos.
Nesses nove capítulos, os leitores terão a oportunidade de se depararem
com discussões teóricas, pois os autores são pesquisadores acadêmicos, pro-
fissionais da área da voz que discutem processos corporais, pedagógico-mu-
sicais e de direção da prática de cantar em conjunto. Educadores musicais,
preparadores vocais, professores de canto e regentes de grupos vocais nos
presenteiam também com narrativas experienciais sobre suas aprendizagens
no dia a dia à frente de grupos vocais com crianças, adolescentes ou adultos.
Essas experiências desembocam em pesquisas de si mesmos, sobre seus corpos
– e também de seus alunos – em relação ao uso da voz cantada. São autores
reflexivos que, ao se depararem com desafios de ter que resolver problemas
técnicos num universo pedagógico-musical não visível como o processo de
cantar, procuram, por exemplo, ajudar uma pessoa a perceber e sentir que sua
boca não está o suficientemente aberta para a necessária emissão vocal. São
ainda autores incansáveis na busca de pesquisas científicas que fundamentam
o levantamento de hipóteses para seus questionamentos investigativos. Quem
ganha é o leitor que encontrará uma lista vasta de referências bibliográficas
que vão ampliar seus conhecimentos sobre a voz, sobre o ensino de canto,
sobre a regência, a prática e o repertório para o canto em conjunto.
Bem cuidada pela organizadora do volume, a estrutura tripartida dos nove
capítulos – sempre fazendo uma contextualização inicial, em seguida desen-
volvendo o tema proposto por meio da descrição de práticas, apresentação de
referenciais teóricos e/ou resultados de pesquisa ou de experiências de ensino,
e finalizando com uma síntese conclusiva – proporciona coesão ao livro.
Pode-se dizer que na contemporaneidade o canto em conjunto – “uma
maneira simples e eficiente de aproximar a música das pessoas”, segundo
Marisa Fonterrada – constitui-se uma das possibilidades de trabalho para o
professor de música em variados espaços (escolares e não escolares) no Brasil,
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já que é comum nos depararmos com uma realidade de escassez de instru-


mentos musicais para trabalhar com música. Nesse contexto, a voz se torna
uma importante fonte sonora para fazermos música. Por isso, a construção de
conhecimentos sobre funcionamento vocal, as capacidades e as habilidades
vocais das pessoas, seja na infância, juventude, idade adulta ou terceira idade,
se torna tão importante.
Esses conhecimentos todos são tratados na presente obra, que possibi-
lita um diálogo muito próximo com exercícios vocais e corporais autorais,
muitos dos quais compondo o conteúdo de trabalhos acadêmicos como teses
e dissertações, portanto, capazes de proporcionar respaldo teórico e prático
para o professor de música em qualquer espaço de ensino de música.
Com os capítulos escritos por Izabel Padovani, Moacyr Costa Filho,
Thays Simões e Éric Lana, o leitor poderá conhecer ou aprofundar seus saberes
sobre educação somática, propriocepção e unidade psicofísica, entendendo
que tudo que envolve o seu corpo tem relação direta com a sua voz, “inclusive
aspectos que costumam ser vistos como distantes”, como o modo como se
apoia os pés no chão, por exemplo, nos lembra Simone Sousa. Poderá refletir
junto com Ana Isabel Pereira sobre os mecanismos que podem estar na origem
da desafinação. Com Thiago Rodrigues, encontrará dicas de elaboração de
arranjos para o trabalho vocal coletivo a partir do contraponto, uma possibi-
lidade de ressignificação de um componente curricular geralmente estudado
nos cursos de graduação em música. Terá a oportunidade de (re)ler sobre a
história da regência enquanto direção musical desde a antiguidade com Edésio
de Lara Melo, além de ter a oportunidade de pensar nas competências que
são esperadas dos regentes de grupos vocais. Conhecerá os argumentos de
Maria José Chevitarese sobre como o canto em conjunto faculta a transfor-
mação social e cultural. Por fim, com Marisa Fonterrada, compreenderá as
dimensões da importância do canto não apenas para a educação musical, mas
principalmente para o desenvolvimento humano.
Esta obra, portanto, além de ser repositório de vasto conhecimento sobre
voz e corpo, arranjo, e várias temáticas sobre o canto, se configura como rica
fonte de sugestões para práticas pedagógico-musicais do canto em conjunto
em variados contextos.
Boa leitura!

Cíntia Thais Morato


Professora do Curso de Graduação em Música do Instituto
de Artes da Universidade Federal de Uberlândia
A IMPORTÂNCIA DO
TRABALHO CORPORAL
NA PRÁTICA VOCAL COLETIVA:
reflexões sobre a Técnica Alexander
Izabel Padovani 1

Contextualização

Como professora da Técnica Alexander, formada em 2005 pelo The Ale-


xander Teachers Center, em Viena, venho testemunhando através dos anos, um
profundo desenvolvimento individual. O curso de formação, com duração de
três anos, teve forte impacto sobre minha vida. Ainda na adolescência, des-
cobri que sofria de uma escoliose severa. Anos mais tarde, depois de muitos
tratamentos sem resultados efetivos, conheci a Técnica Alexander. Através
dela me tornei uma pessoa mais consciente dos meus hábitos, o que abriu
novos caminhos de desenvolvimento ligados a processos de autorregulação.
A partir desse trabalho de autoconhecimento, pude reconhecer também
hábitos relacionados à minha trajetória como cantora, tanto em questões cênicas
quanto associadas à técnica vocal ou ainda a aspectos psíquicos. Foi ficando
claro, a cada mudança física, que conteúdos emocionais também se transforma-
vam e deixavam de interferir negativamente no meu processo de desenvolvi-
mento. Comecei a me sentir mais segura no palco, minha memória em relação
às letras das canções, que sempre tive dificuldade em decorar, melhorou, e com
o tempo minha figura sobre o palco ganhou outra proporção. Hoje entendo que
a expansão proporcionada pela Técnica Alexander ao meu corpo favoreceu
o desenvolvimento da minha presença cênica e da minha musicalidade, pois
uma liberdade mental e física aflorou. Sem dúvida a experiência profunda com
a Técnica Alexander foi transformadora em muitos sentidos, principalmente
nos aspectos ligados à saúde e nas implicações sobre os processos de ensino-
-aprendizagem, com reflexos evidentes na minha atuação artística.

1 Izabel Padovani é cantora e prof.ª de Técnica Alexander formada pelo The Alexander Technique Centre em
Viena. É formada em Licenciatura pela UFSCar e pós-graduada pela Unicamp. Sua discografia inclui setes
CDs, o mais recente, um álbum gravado ao vivo no Teatro Santa Maria em Curitiba, com a Orquestra à Base
de Sopros de Curitiba, com a obra de Guinga. Tem sido convidada para ministrar workshops e oficinas sobre
o tema Técnica Alexander para Cantores em eventos como a Oficina de Música de Curitiba e os Festivais
de Música de Itajaí, Tatuí, Ouro Preto, Festival de Teatro da UFU, SIMB – Florianópolis, Universidade de
Música de Mendoza, UFRGS, Unicamp, Casa do Brasil na Alemanha, Escola Canto do Brasil, entre outros.
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Em mais de uma década desde a minha formação, meu corpo continua


se transformando e, com ele, a maneira de me relacionar com o mundo. Tive
nesse processo importantes momentos de progressos, mas também houve
retrocessos, em que velhos e maus hábitos insistiram em se tornar presentes.
Em um mundo cada vez mais veloz, tecnológico e visual, nossa percepção e
nossa maneira de nos relacionarmos com o corpo é diretamente afetada. Nos
movemos cada vez menos, e, o automatismo é uma constante.
Entender a importância do desejo voluntário nas mudanças da vida coti-
diana, aprender a distinguir estados de equilíbrio e desequilíbrio e reconhecer
o potencial do corpo são alguns pontos que nos levam a entender melhor a
qualidade dos nossos movimentos no dia a dia que, em última instância, se
refletem nas nossas atividades em qualquer idade e em qualquer ocupação.
A partir da formatura em 2008, minha trajetória como professora de
canto tomou outra direção e, minha atenção se estendeu para além da voz
do aluno. Seguindo as ideias das técnicas de educação somática, na qual a
Técnica Alexander se enquadra, passei a ver o aluno como um todo, em seus
aspectos psicofísicos segundo pressupostos da Teoria. Desde então venho
me dedicando a trazer os conceitos da Técnica Alexander para o contexto
do ensino do canto, tanto em aulas individuais como em oficinas em grupo.
No mundo contemporâneo, a educação integral do indivíduo, levando
aspectos psicofísicos em consideração, é um novo paradigma. O corpo vem
sendo cada vez mais valorizado em uma nova práxis sobre como ensinar e
aprender. A Técnica Alexander pode ser vista como uma pedagogia do corpo, e
está presente nas grades curriculares de universidades como Julliard, em Nova
Iorque, Royal Academy of Music e Guildhall School of Music and Drama, em
Londres, Concervatoire de Paris, entre outras. No Brasil as poucas iniciativas
para a introdução da matéria na grade curricular ocorreram no Rio de Janeiro,
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e na Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), por um curto período de tempo.
Para que seja possível entender melhor a Técnica Alexander, ainda pouco
difundida no Brasil, exponho brevemente neste capítulo a história, os termos,
conceitos e princípios a seguir.

O autor e o surgimento da Técnica Alexander

Frederick Mathias Alexander nasceu em 20 de janeiro de 1869, em Ale-


xandria, na costa noroeste da Tasmânia, na Austrália, quando o país ainda fazia
parte do império britânico. Alexander, como vou denominar aqui o criador da
Técnica Alexander, foi um dos precursores do que hoje chamamos Técnicas de
Educação Somática, da qual falaremos mais detalhadamente adiante. Há pouca
literatura sobre a vida de Alexander; sua história, no entanto, permite entender os
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 17

caminhos que fizeram surgir a Técnica que leva seu nome. A lenda sobre a ascen-
dência escocesa de Alexander talvez venha da sua relação com Robert Robertson,
a quem reverenciava como a um pai. Robertson, escocês, foi seu professor na
adolescência e praticamente o adotou, dando-lhe aulas particulares aos finais
de semana. O mestre adorava Shakespeare e o apresentou ao jovem Alexander,
que também se tornou um admirador do autor e, mais tarde, um especialista em
declamar suas obras (CARRINGTON; CAREY, 1992; PADOVANI, 2017).
Em 1889, Alexander, então com vinte anos, se muda para Melbourne,
nessa época a maior cidade da Tasmânia, uma metrópole com intensa vida
cultural. Ali o jovem procura desenvolvimento e busca seu espaço como
ator, tendo aulas com figuras importantes do meio artístico. Chega a obter
sucesso na profissão de ator, recebendo críticas favoráveis em várias de suas
performances. No auge da sua produtividade artística, começa a sentir os
primeiros problemas com a voz, uma rouquidão que aparecia principalmente
enquanto recitava. O diagnóstico era irritação da mucosa da garganta e do
nariz e inflamação das pregas vocais, que, segundo os médicos, estavam
muito relaxadas. Também sua úvula era muito grande, provocando acessos
de tosse. O tratamento indicado nesse caso era cirúrgico, orientação que ele
nunca seguiu. Seu médico prescrevia um tratamento que ajudava a recuperar
sua voz entre as apresentações; manter silêncio era uma das prescrições.
Apesar do tratamento, a rouquidão reaparecia, progressivamente pior, com
a volta aos palcos. Abalado com sua condição, Alexander se vê propenso a
deixar os palcos e dedica-se a entender, num cuidadoso trabalho de obser-
vação com a ajuda de espelhos, os motivos da sua rouquidão. Sua pesquisa
baseava-se em um pressuposto: se ao começar uma performance sua voz
tinha um bom funcionamento, mas ao final ela se mostrava com problemas,
seria razoável concluir que a causa se encontrava no que ele estava fazendo
enquanto atuava. Suas observações perduraram cerca de uma década e o
levaram a descobertas que, mais tarde, foram relatadas em quatro livros de
sua autoria (CARRINGTON; CAREY, 1992).
Em 1904, parte então para Londres, levando na bagagem sua experiência
pessoal e sua prática como professor daquilo que hoje chamamos Técnica
Alexander. Nessa época ele ainda não havia esquematizado em palavras essas
descobertas. Dos livros que escreveu em Londres, o terceiro, intitulado O
Uso de Si Mesmo, editado em 1932, talvez seja o que melhor expõe suas
ideias. Foi escrito para ajudar na formação da primeira turma de professores
da Técnica Alexander que aconteceu de 1931 a 1934. Alexander faleceu em
1955 em Londres, e a Técnica Alexander hoje, além dos cursos de formação
que existem pelos quatro continentes, está presente nas grades curriculares
de importantes universidades pelo mundo (PADOVANI, 2017).
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Os princípios da técnica

Nas primeiras décadas do séc. XX, as práticas que viam o corpo em uma
perspectiva não mecanicista começaram a ganhar voz. Alexander foi um dos
primeiros a trabalhar sob essa perspectiva. As técnicas somáticas, da qual a
Técnica Alexander faz parte, entendem o corpo como um organismo vivo
indivisível e indissociável da consciência. O corpo não é uma matéria inerte
habitada por uma consciência, mas é ele mesmo um elemento da consciência
humana. Estão impressos no corpo valores socioculturais, políticos, espirituais,
influências do meio ambiente, emoções e pensamentos.
O termo “somático” se origina da palavra grega soma, que significa
“corpo vivo”. No Dicionário Larousse de Dança (2007, p. 210), o verbete
“educação somática” tem o seguinte significado: “Campo disciplinar que
emerge de um conjunto de métodos que tem por objeto o aprendizado da
consciência do corpo em movimento no espaço”. Thomas Hanna, filósofo
e criador da técnica Hanna Somatic Education, redefine o termo somático.
Para ele, somático é o estudo dos fenômenos de integração corpo-mente sob a
perspectiva da experiência pessoal, em um processo de autopercepção psico-
física que leva à transformação da qualidade da consciência (HANNA, 1972).
Alexander (2010, p. 11-14) também entende o homem como uma unidade
psicofísica. Para ele, qualquer forma de ensino, escolar ou não, deveria levar
em consideração a “unidade indivisível do organismo humano”, pois processos
mentais e físicos acontecem simultaneamente em toda e qualquer atividade
humana. Alexander suscita seus leitores a pensar se atos como andar, falar, dor-
mir ou mesmo tomar uma decisão são “puramente mental ou puramente físico”.
George Lakoff (apud TRINDADE, 2016, p. 24-25), um dos fundadores
da teoria da linguística cognitiva, defende a ideia de que processos mentais,
o que inclui o pensamento, são elaborados a partir de experiências corporais.
Lakoff não só acredita que mente e corpo são interdependentes, mas coloca
ainda a reflexão sobre como a forma do corpo e a maneira de se movimentar
determina e condiciona nossa forma de pensar.
O início das descobertas de Alexander é relatado no livro O uso
de si mesmo:

Em pé diante do espelho, observei-me atentamente durante o ato de falar


normalmente. Repeti esse ato muitas vezes, mas nada vi na minha maneira
no espelho de fazê-lo que parecesse errado ou antinatural. Passei então a
observar-me com atenção no espelho enquanto declamava e imediatamente
notei várias coisas que não havia notado quando simplesmente falava.
Vi que, tão logo começava a declamar, eu tendia a inclinar a cabeça para
trás, comprimir a laringe e sorver o ar através da boca de tal modo que
produzia um som ofegante (ALEXANDER, 2010, p. 17).
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novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 19

O conceito uso de si mesmo surgiu dessas primeiras observações. Alexander


percebeu que o modo como usamos nosso corpo nas atividades diárias determina
o seu funcionamento. O que ele fazia com o corpo ao declamar influenciava
diretamente a sua voz. Ele percebeu que enquanto falava “normalmente” fora
dos palcos, também havia um grau, ainda que menor, dos mesmos hábitos que
tinha enquanto declamava. Percebeu com isso que o uso do corpo está ligado
aos hábitos cotidianos e rotineiros, na maior parte das vezes inconscientes.
Para Gelb (2000, p. 31-32), o uso que fazemos de nós mesmos é tão
importante quanto os conceitos de hereditariedade e influência do meio
ambiente. Se a hereditariedade é “considerada o fator que determina nosso
potencial” e o meio ambiente o “fator que determina o grau de realização”
desse potencial, o uso é um elemento que completa esse quadro. O potencial
e a realização do potencial podem ser otimizados ou mesmo desestimulados
pela maneira como nosso corpo se comporta, pois, “estamos o tempo todo
usando a nós mesmos, bem ou mal, consciente ou inconscientemente”.
Foi muito difícil para Alexander aplicar conscientemente suas desco-
bertas. Seus hábitos eram tão fortes que ficava quase impossível um outro
uso do corpo. Nesse processo de reeducação, entendeu que a maneira como
usava seu mecanismo corporal para falar era mais importante que a própria
fala. Passou a pensar, então, em como ele chegaria ao momento da emissão
de um som. A expressão “meios pelos quais” é recorrente no vocabulário da
Técnica Alexander, quer dizer que mais importante que o objetivo, é o caminho
percorrido para alcançá-lo. Nesse sentido, procura-se inibir o uso habitual
do corpo e, conscientemente, dar novas orientações de uso que sejam mais
satisfatórias (ALEXANDER, 2010, p. 33).
John Dewey, um importante filósofo americano que influenciou educa-
dores no mundo todo, acreditava que a criança devia ser vista como um todo
e o objetivo da educação seria o seu crescimento físico, emocional e intelec-
tual. Sua tese filosófica argumenta sobre a necessidade da união entre teoria
e prática. Ele foi um entusiasta das ideias de Alexander e denominou o termo
“meios pelos quais”, descrito no parágrafo acima, como pensar em atividade
(ALEXANDER, 2010, p. 34). Para Alexander (2010), é importante pensar
enquanto estamos na prática de nossas atividades, pois, dessa maneira, à luz
da razão, e não apenas das sensações, podemos sair do condicionamento do
que nos é habitual. Ele achava que não era possível confiar em sensações, pois
por estarem ligadas a velhos hábitos, poderiam ser enganosas. Em suas aulas
não permitia que os alunos fechassem os olhos, por mais que esses achassem
que se concentravam melhor, pois achava que era preciso exercitar a “mente
consciente”, a vontade direcionada (ALEXANDER, 2014). Seguindo com
suas observações, Alexander chegou à conclusão de que podemos nos iludir
quando confiamos nas nossas percepções cinestésicas:
20

Na realidade eu estava sendo vítima de uma ilusão praticamente universal,


a ilusão de que, uma vez que somos capazes de fazer o que “queremos
fazer” em atos habituais e que implicam vivências sensoriais conhecidas,
seremos igualmente bem sucedidos ao fazermos o que “queremos fazer”
em atos contrários aos nossos hábitos e que, portanto, implicam experiên-
cias sensoriais desconhecidas (ALEXANDER, 2010, p. 22).

O termo cinestesia, ou propriocepção, foi criado pelo neurofisiologista e


patologista Charles Sherrington por volta de 1906. Quer dizer que os meca-
norreceptores, encontrados em músculos, tendões, ligamentos, articulações ou
pele, fornecem ao Sistema Nervoso Central informações sobre a posição do
corpo ou de um membro. Propriocepção é a consciência da posição corporal
no espaço, ou seja, da direção do movimento, da percepção do peso e do nível
da tensão muscular, fatores que influenciam o equilíbrio corporal.
Para Alexander (2010, p. 46-49) é uma ilusão achar que podemos mover
o nosso corpo exatamente como queremos. Os movimentos e atos habituais
são como “vivências sensoriais conhecidas”, enquanto movimentos e atos
não habituais são “experiências sensoriais desconhecidas”, o que pode tornar
enganosa a percepção do corpo no espaço:

Cada ato humano é uma reação a estímulos recebidos pelos campos


sensoriais, e, para a maioria das pessoas, essa reação é instintiva, reali-
zada sob a força do hábito, sem nenhuma direção racional. Há inúmeras
situações em que a consciência do corpo ligada a sensações enganosas e
instintivas está fora do nosso controle por mais que achemos o contrário
(ALEXANDER, 2010, p. 47).

É comum, por exemplo, nas aulas de Técnica Alexander, os alunos se


sentirem com os ombros paralelos, mesmo havendo desnível. Em aulas de
canto, durante a fonação, é comum que tensões excessivas pelo corpo não
sejam percebidas pelo aluno. É importante salientar que os desequilíbrios no
tônus muscular, devem ser vistos em conjunto, nunca focalizados, pois uma
tensão gera sempre ajustes compensatórios.
Outra observação decisiva no processo de construção dos princípios
da Técnica foi a percepção de que a cabeça, quando direcionada para cima
e para frente, permitia um alongamento do pescoço otimizando o equilíbrio
da cabeça sobre a coluna. Alexander (2010) notou que esses fatores, em
correlação com o alargamento dorsal e o alongamento do tronco, permitiam
o relaxamento da laringe. Logo entendeu que todo seu corpo, inclusive seus
dedos dos pés, que ficavam contraídos e curvados para baixo na tentativa de
segurar o chão, tinham influência no excesso de tensão da laringe e, indire-
tamente, sobre seu problema vocal.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 21

Esse foi o início das descobertas que o levaram ao termo controle primor-
dial. Segundo suas observações, a cabeça, o pescoço e o tronco precisam estar
em correlação, pois a cabeça direcionada para frente e para cima, deixando
o pescoço livre, favorece o alongamento de toda a coluna, que, junto com
o alargamento dorsal, promove um equilíbrio que determina a organização
do restante do corpo. Dessa forma, as articulações se descomprimem e os
membros inferiores e superiores ficam livres para o movimento. Isso tudo
influencia a respiração, pois um corpo livre de tensões favorece o fluxo aéreo.
David Garlick (1990), médico fisiologista e professor da Universidade
New South Wales na Austrália, publicou uma pesquisa apontando que, quando
usamos nossos músculos extensores, o volume de ar que respiramos aumenta,
enquanto, quando usamos os flexores, o volume de ar diminui. Uma atividade
maior dos músculos extensores é, segundo Garlick, uma das respostas em um
corpo que pratica a Técnica Alexander.
A mesma ideia é encontrada em um artigo de Cacciatore e Johnson
(2016), que além de serem, respectivamente, neurocientista e físico, são pro-
fessores da Técnica Alexander. Eles afirmam que a execução do movimento
de sentar e levantar da cadeira, quando orientado pelos professores de Técnica
Alexander, aponta para um uso dos músculos extensores do tronco, quadril
e pernas. Essa musculatura é responsável pela resposta antigravitacional e é
utilizada em todas as fases do ato de levantar e sentar na cadeira.
Segundo artigo científico do médico cirurgião Hansraj (2014), uma pessoa,
ao olhar o celular inclinando sua cabeça para frente, acrescenta um peso extra
para a coluna cervical e região dorsal de 12kg a uma inclinação de 15 graus, 18
kg a 30 graus, 22 kg a 45 graus e 27 kg a 60 graus, cerca de cinco vezes mais
do que o peso da cabeça, que tem cerca de 4,5 a 6 kg em posição neutra. Esse
é um exemplo de como a consciência do uso do nosso corpo nas atividades
diárias é fundamental, pois processos de compensação, ocorrem o tempo todo.
Quando Alexander comenta sobre a questão do alargamento dorsal como
um complemento ao primeiro controle, ele se refere às observações que o
levaram à criação do termo direção. Para ele, junto ao equilíbrio entre cabeça,
pescoço e tronco, é preciso que as costas se alonguem e se alarguem, favo-
recendo a expansão do tronco. Sobre esse tema cito a palestra publicada na
Revista Direction de Walter Carrington, aluno que se tornou o braço direito
de Alexander e que seguiu dirigindo a primeira escola de formação de pro-
fessores da técnica criada pelo mestre:

Quando puxamos a cabeça para baixo, diminuindo assim nossa estatura,


colocamos muitas partes do corpo de maneira incorreta. Quando a expandi-
mos para cima, a estatura aumenta e tira todo o peso e a pressão das partes do
corpo, que assim trabalha melhor. Então expandir, ir para cima, é necessário
22

e, para que isso aconteça, o pescoço deve estar livre, a cabeça ir para cima
e para frente (expandir) e as costas alongarem-se e alargarem-se. Mas é
preciso encontrar a maneira de fazer isso acontecer sem esforço muscular.
Não adianta expandir, tentando empurrar, puxar ou esticar. É preciso dar
instruções ao seu corpo e persuadi-lo (CARRINGTON, 1985, n. p.).

É parte fundamental das descobertas de Alexander que qualquer iniciativa


de manipulação do corpo acaba por não gerar a quebra de hábitos, pois é um
processo de fora para dentro. Sem a participação do indivíduo, sua consciência
sobre o movimento não é despertada. Por isso, Carrington comenta que puxar,
esticar ou empurrar não é o objetivo da Técnica Alexander, mas sim, através do
toque das mãos do professor, sugerir direções, e permitir que no tempo indi-
vidual a consciência leve a mudanças. Deve-se notar que quando Carrington
fala movimento “sem esforço muscular”, isso significa sem esforço excessivo,
uma vez que é impossível nos movermos sem nenhum trabalho muscular.
Mary Holland, professora e importante figura na continuação das ideias
de Alexander, reafirma que o trabalho do professor em uma aula da Técnica
não é de manipulação, mas de orientação:

O professor trabalha com suas mãos no aluno – mas não para manipulá-lo,
ou nem mesmo para massageá-lo, e sim para sugerir à sua musculatura uma
orientação gentil, guiando-o para um estado novo, leve e em equilíbrio. Se o
aluno conseguir “não fazer”, ou em outras palavras, deixar que o professor
o guie nesse estado mais apropriado, ele perceberá uma mudança aconte-
cer. O grau de consciência sensorial dessas mudanças varia enormemente
de pessoa para pessoa; portanto, algumas pessoas as perceberão mais que
outras. Mas, normalmente, as mudanças são percebidas como uma sensação
de leveza, facilidade e liberdade de movimento (HOLLAND, 1978, n. p.).

Holland traz o termo “não fazer”, também bastante utilizado no vocabulário


da Técnica. É comum entrarmos em um estado de ação automatizado, em que
nos movemos e praticamos ações sem nenhuma consciência. É justamente aí que
podemos usar nosso corpo de maneira não otimizada; pode haver uso desequi-
librado da musculatura. Ao emitir uma nota, por exemplo, podemos achar que
precisamos fazer uma força maior do que a necessária. Parar, não fazer, permite
que um novo padrão se estabeleça. O conceito inibição explica melhor o que
Alexander quis dizer com o termo não fazer. Para a Técnica Alexander inibição
designa a capacidade de não reagir em resposta a um estímulo, significa parar,
abortar a reação imediata e pensar antes da ação; assim é possível agir de forma
não habitual. Inibir uma reação imediata e inconsciente é fundamental para o
caminho que leva a ações conscientes. Em suas investigações, ele buscava inibir
o ímpeto de falar, carregado de hábitos embutidos, para permitir que um novo
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 23

padrão, com as influências que já havia descoberto sobre controle primordial e


direção, se instalasse (ALEXANDER, 2010).
Alexander comenta (2014, p. 151) que, sendo a relação mente-corpo tão
estreita, muitas vezes a mente “efetua atos musculares no indivíduo”. São fatos que
acontecem quando, por exemplo, em semissupina, o aluno mantém seus músculos
ativos, mesmo quando gostaria de se deixar mover passivamente. Nesse caso, o
aluno deve simplesmente inibir os movimentos musculares, acionar o não fazer.
Em atividades com a voz, é bastante comum que o aluno, ao executar um
vocalize que lhe seja conhecido, tenha dificuldade em parar, em não fazer, em
ouvir o professor, em sair do lugar habitual, em pensar antes de executar cada
nota. Semissupina é uma posição anatômica onde o corpo está deitado com a
face voltada para cima e com os joelhos dobrados. Quando conseguimos não
fazer, inibindo a reação instintiva a um estímulo, criamos um espaço para que o
corpo se reorganize. Para Holland (1978), o contato com a Técnica deve tornar a
pessoa mais consciente do uso que ela faz de si mesma em situações cotidianas,
como virar as páginas de uma revista, ou em situações mais complexas, como
tocar um instrumento. Em artigo, ela afirma que o corpo do instrumentista
é tão importante quanto o próprio instrumento no processo de aprendizado:

Uma pessoa desenvolvendo a habilidade de tocar o violino está, na verdade,


aprendendo a usar não somente um, mas dois instrumentos. É claro que ela
tem que aprender a estrutura do violino, como ele funciona, quão pesado
ele é, como segurá-lo, como tirar sons dele, mas é sua mão que o segurará,
seu corpo que terá que apoiar o peso do instrumento, seu braço que terá
que se mover para deslizar o arco sobre as cordas. E a maneira com a qual
a pessoa usa a si própria determinará, até que consideravelmente, a maneira
com a qual ela toca o instrumento (HOLLAND, 1978, n. p.).

Quanto aos fundamentos da Técnica Alexander, até aqui falamos sobre


o caráter psicofísico da condição humana, e sobre conceitos e expressões
como o uso de si mesmo, meios pelos quais, não fazer, pensar em atividade,
percepção cinestésica, percepção enganosa e instintiva. É usado ainda o termo
ir para cima (“up”), relacionado com os processos que envolvem a direção da
cabeça, o pescoço livre e o tórax em expansão. A Técnica Alexander, enfim,
tem como seus principais conceitos os termos controle primordial, direção
e inibição. Trabalhados concomitantemente através do toque do professor,
orienta o aluno de maneira prática e através de instruções verbais.

A Técnica Alexander e a voz cantada

A Técnica Alexander é uma ferramenta na construção da sensibilidade no


uso do corpo em toda e qualquer atividade. Voz e corpo mantêm uma relação
24

simbiótica e, para Alexander, são indissociáveis. Alexander percebeu em si


atitudes corporais que afetavam sua voz; hoje é notório, entre professores de
canto e fonoaudiólogos, que tensões excessivas no pescoço, por exemplo,
dificultam a fonação.
A Fonoaudiologia cita a tensão no pescoço e a tensão musculoesquelética
como causa de disfunções vocais. Uma boa análise fonoaudiológica leva em
conta inclusive a posição da cabeça sobre a coluna. Para a fonoaudióloga Mara
Behlau, autora de trabalhos que são referência no estudo da voz, a avaliação
corporal é um dado importante para a análise de pacientes com disfonia:

A avaliação corporal do paciente disfônico é muito importante, pois além


de fornecer dados sobre a comunicação não-verbal, possibilita a análise
da integração corpo-voz. A experiência clínica tem comprovado que os
pacientes portadores de disfonia apresentam pouca ou nenhuma consciência
das regiões corporais envolvidas nesse distúrbio (BEHLAU, 2013, p. 117).

Segundo Behlau (2013, p. 117), problemas na voz, em geral, vêm acom-


panhados de “um a dois comportamentos corporais típicos”: ou o indivíduo
gesticula pouco, há pouca expressão facial e corporal, ou há excesso de ges-
tos e mímicas faciais. É preciso um olhar atento, verificando “se o apoio do
corpo faz-se sobre os dois pés, se o peso está distribuído com harmonia, se
os gestos acompanham a intenção do discurso”. A autora acrescenta que o
contato visual do emissor com o receptor também importa para a avaliação.
Para os profissionais da voz (cantores, atores, locutores, professores etc.),
Behlau ressalta que deve haver uma avaliação da postura corporal enquanto
a voz está sendo utilizada em situação de trabalho. Há inúmeros sinais e sin-
tomas que estão relacionadas com disfonias hipercinéticas, ou seja, aquelas
causadas por tensão muscular: tensão na cintura escapular; pescoço ante-
riorizado, posteriorizado ou inclinado lateralmente; ombros anteriorizados,
erguidos ou caídos; testa enrugada; olhos comprimidos ou saltados; boca e
mandíbula com travamento na abertura; desvios de coluna; aumento de massa
muscular nas costas, na nuca ou na lateral do pescoço. As posições do pes-
coço e do ombro podem estar alteradas, desequilibrando a estrutura corporal
e fazendo com que haja compensações funcionais nas estruturas do aparelho
fonador. O peito pode estar expandido e tenso, o que dificulta a troca de ar
com o ambiente; ou contraído, achatando a caixa torácica (BEHLAU, 2013).
Para a Fonoaudiologia também é clara a relação intrínseca entre o uso
do corpo e seus reflexos na expressão vocal. Behlau e Pontes explanam sobre
a postura corporal e sua inter-relação com a comunicação:

A postura corporal global de cada indivíduo é o resultado das caracte-


rísticas anatômicas e fisiológicas adquiridas por herança genética e por
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 25

pressões externas do meio ambiente, que alteram progressivamente a forma


física através de contrações musculares e desvios do esqueleto ósseo. A
postura pode afetar a comunicação humana. Comunicamo-nos utilizando
não somente a voz, mas todo o corpo. Um indivíduo que fala sem movi-
mentação corporal geralmente causa desconforto no ouvinte. Para uma
comunicação efetiva, corpo e voz devem expressar a mesma intenção
(BEHLAU; PONTES, 2009, p. 28).

Os autores se referem à voz falada, mas podemos usar as mesmas pala-


vras para o universo da voz cantada. Para o canto, seja individual ou coletivo,
o corpo é o próprio instrumento; quanto mais consciência, mais facilidades
técnicas, maior força expressiva e proficiência na comunicação encontrare-
mos no ato de cantar.

O método

Como citei anteriormente, minhas práticas como professora de canto


hoje incluem os conceitos da Técnica Alexander, na busca por um desen-
volvimento integral, em que aspectos psicofísicos favoreçam o aprendizado
do aluno. Os princípios de Direção, Inibição e Controle Primordial que a
Técnica Alexander propõe, são uma referência para as atividades em relação
à voz. Como coloca Vieira (2009, p. 70), as aulas de Técnica Alexander se
iniciam “com movimentos básicos”, cotidianos, como levantar e sentar de
uma cadeira, andar. Pouco a pouco são introduzidos outros movimentos,
como o macaco, que é uma posição intermediária entre sentar e ficar de
pé. O nome se dá em função da posição se assemelhar àquela adotada pelo
animal. Vieira (2009, p. 71) traduz o macaco como uma “ligeira inclinação
do tronco e flexão das pernas” que pode chegar a “uma inclinação e flexão
pronunciadas” revelando uma gradação na execução do movimento que pode
oferecer mais ou menos facilidade para o aluno.
No ato de sentar e levantar contamos com o apoio dos pés e dos ísquios,
em um movimento que transporta o peso dos ísquios para os pés, se atendo,
inibindo, para que não haja um esforço desnecessário nos ombros, nas coxas,
ou em outras partes do corpo, e para que a cabeça acompanhe o movimento,
dando direção e favorecendo o alargamento do tronco. Sentar e levantar, andar,
ou mesmo ficar em pé, requer também pensar sobre o apoio dos pés no chão.
Vieira (2009, p. 77), cita a importância da articulação do tornozelo na trans-
ferência de peso de um ponto a outro do pé. Uma articulação livre é um dos
fatores que permite o “equilíbrio da estrutura e a fluência dos movimentos”.
Nesses movimentos, é possível uma coordenação entre membros supe-
riores e inferiores com ajustes posturais que redistribuem forças e criam,
26

segundo Vieira (2009, p. 71), “situações oportunas para desmanchar tensões


e aperfeiçoar o equilíbrio”, criando condições favoráveis inclusive para uma
respiração livre de impedimentos.
O professor espera dar ao aluno, através da experiência prática, a possi-
bilidade de aumentar a percepção do seu corpo. Para Alexander (2010, p. 7-8),
“o conhecimento não pode ser transmitido por palavra escrita ou falada de
forma que signifique para o receptor o que significa para a pessoa que está
tentando transmiti-lo”. Na posição de semissupina (ver imagem), deitado de
costas, com o ventre para cima e com os joelhos dobrados, e com um apoio
sob a cabeça, o aluno tem a oportunidade de trabalhar sua percepção sob os
princípios da direção, inibição e controle primordial, agora com o apoio dos
pés, da bacia, das costas, dos braços e da cabeça sobre uma superfície plana.
É uma posição que favorece o alongamento da musculatura da coluna e é uma
excelente oportunidade para o aluno perceber o não fazer. Mesmo estando dei-
tado, não é simples fazer com o corpo o que queremos, é bastante comum que a
musculatura continue atuando, mesmo quando queremos permanecer passivos.
No trabalho com a técnica não há muita variação de movimento, mas,
uma vez que as direções estejam dadas pelas mãos do professor, cada vez que
o corpo se move, ainda que fazendo o mesmo movimento, uma reorganização
da estrutura corporal ocorre. Isso quer dizer que tensões excessivas ou relaxa-
mento excessivo da musculatura podem se reorganizar através do movimento
e assim, com o tempo, mudanças na postura acabam por se estabelecer. A
Técnica Alexander deve ser vista como uma prática cujos princípios podem
ser utilizados em qualquer atividade. Para isso é preciso que se dê atenção ao
termo “meios pelos quais”, criado por Alexander, ou seja, precisamos pensar
e entender como realizamos nossas atividades em um processo psicofísico,
no qual, tanto a razão quanto as sensações, estão envolvidas.
É sempre bom lembrar que a Técnica Alexander não se estabelece no
campo dos exercícios; ela não é um treinamento físico, e sim, um trabalho
que envolve o reconhecimento dos hábitos, a capacidade proprioceptiva e a
vontade de mudar padrões. É um processo de aprendizado em que o aluno
pode, se quiser, levar para a vida prática as orientações recebidas e continuar
seu caminho de percepção e desenvolvimento ad infinitum. Como diz Vieira
(2009, p. 71), a princípio é melhor que a prática da Técnica se restrinja ao
trabalho em aula até que os princípios estejam assimilados. Para os alunos
com maior tempo de prática, é possível levar para outras situações de movi-
mento os aprendizados, “para que se possa colocar em prática o não-fazer e
favorecer a reorganização do conjunto”.
Para as oficinas e aulas de canto, individuais ou coletivas, proponho
práticas rotineiras com a voz: pensar a respiração, vocalizes e prática de
canções enquanto se trabalha os princípios da Técnica, como citado acima:
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 27

andando, levantando e sentando, no macaco e em semissupina. Para a Téc-


nica Alexander, com a liberação de tensões desnecessárias, com a expansão
e o alargamento do tronco, e com um bom equilíbrio entre cabeça, pescoço e
tronco, as articulações ficam mais livres. Isso permite maior mobilidade do
corpo e a capacidade respiratória tende a acontecer com mais naturalidade.
Na visão da Técnica, a respiração é um processo que deve ser pen-
sado como resultado de um todo, do funcionamento integral do organismo.
É comum que cantores com uma visão equivocada do ato respiratório façam
mais força que a necessária para “apoiar” uma nota. Podem também levar
os membros superiores a fazer mais força do que seria o ideal, em função
da falta de conexão com os membros inferiores, levando a uma espécie de
divisão no corpo.
Sob o ponto de vista da Técnica, não precisamos perder nossa Direção em
nenhuma situação, nem na inspiração, nem na expiração e nem na emissão de
um som. A expansão do corpo deve permanecer em qualquer atividade. Com
a Inibição, negamos o padrão habitual em uma ação e com isso eliminamos o
que pode estar sendo feito em excesso; com o Controle Primordial, deixamos
o pescoço livre e a cabeça para cima e para frente, e, com as Direções, temos
o tronco alongado e alargado. Esse entendimento favorecerá a liberdade cor-
poral, com reflexos sobre a respiração e a emissão vocal.
28

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VIEIRA, Regina. Postura, Equilíbrio e Movimento. São Paulo: Ed. Terceiro


Nome, 2009.
EM BUSCA DO SOM PRIMAL:
o papel do corpo no canto coletivo
Moacyr Costa Filho1

Contextualização

A questão fulcral, subtítulo do presente capítulo, instiga cantores, pro-


fessores de música, regentes corais e preparadores vocais à investigação per-
manente sobre os fenômenos psicofísicos que os surpreendem no cotidiano
da prática musical do canto coletivo. Tais fenômenos, por vezes, se revelam
enigmáticos para os profissionais do ensino e da execução musical, na medida
em que o corpo-voz se distingue entre os instrumentos musicais, nomeada-
mente por ser ele vivo, dinâmico e sujeito a transformações de natureza física,
psíquica e comportamental. O instrumento físico do cantor é o corpo – o
produtor do som vocal. Portanto, o ato de cantar implica o conhecimento da
sua funcionalidade na produção do canto, na interpretação musical e textual,
e na performance cênica. De fato, “tocar” esse instrumento sutil é desafiador,
na medida em que o próprio indivíduo alberga a mente, o corpo e a voz, e
está sujeito à variável musical, fisiológica e acústica, bem como à psiquê
humana, nomeadamente à emoção e ao comportamento, exercendo influência
substantiva sobre o soma, isto é, o corpo.
Os problemas de natureza psicofísica devem ser considerados no trabalho
de edificação do instrumento do cantor e necessitam do suporte de profissionais
das ciências da saúde mental e física, assim como de práticas corporais, filo-
sóficas ou religiosas capazes de favorecer o seu bem-estar. A somatização, por
exemplo, pode desencadear distúrbios psíquicos que se materializam em diver-
sos tipos de doenças psicossomáticas. Além disto, o modo de vida do indivíduo,
sua educação doméstica e escolar, e sua educação física e alimentar têm impacto
sobre o desempenho do corpo-voz no canto. Nesse sentido, reconhece-se o papel

1 Moacyr Costa Filho, tenor recitalista e concertista, natural de Salvador, BA, Professor do Curso de Graduação
em Canto e Coordenador da Oficina e do Curso Básico de Canto da Escola de Música da Universidade
Federal da Bahia; Mestre em Música, por esta instituição, tendo sido orientado por Professora Doutora
Alda Oliveira; e Doutor em Música sob a orientação do Professor Doutor António Salgado e a coorientação
do Professor Doutor Luis Jesus, na Universidade de Aveiro, Portugal. Foi regente e preparador vocal do
Madrigal da UCSAL, do Coro de Câmara da Bahia, do Coral Santo Antônio, do Coro Dante Alighieri e do
Cantus Primus: Grupo Vocal de Câmara e Ópera; e preparador vocal do Coro do Teatro Castro Alves. Fundou
e presidiu a Companhia de Canto da Bahia, onde também foi solista e preparador vocal. Recentemente,
tem atuado como pesquisador nas áreas da pedagogia e da performance do canto, da ciência da voz e do
movimento físico, e da preparação vocal de coros.
32

precípuo da família na educação basilar e na estrutura emocional do indivíduo,


pressupostos que impactam no convívio social e na aquisição de saberes em
diversas esferas do conhecimento. Isto posto, não compete aos profissionais do
ensino e da execução musical substituir a família, os especialistas da área de
saúde ou os filósofos e religiosos no contato com o indivíduo. Em que pese a
possibilidade de colaboração nesses contextos – em razão da ética profissional
e do bom-senso –, suas atuações devem cingir-se à formação do cantor – missão
educacional de per se complexa que requer competência, tempo, cumplicidade,
dedicação e desapego. À vista disso, a melhor forma contribuição, para além
dos aspectos formativos da arte de cantar, será a orientação segura no uso de
estratégias de aperfeiçoamento fundamentadas e eficazes, e a indicação de pro-
fissionais aptos a contribuir com a saúde geral do cantor.
Agentes emocionais concorrem para o sucesso ou o fracasso no ensino,
na aprendizagem e na performance do canto e, nesse aspecto, professores,
maestros, ensaiadores e preparadores vocais, assim como estudantes de canto,
solistas, coralistas e cantores de grupos vocais, necessitam de equilíbrio emo-
cional e de empatia nas relações interpessoais. É preciso resiliência no con-
vívio entre mentes e corpos que se encontram na partilha de informações e
vivências. De um lado o profitente necessita de tolerância e de habilidade
para retroagir ao estágio de desenvolvimento musical e físico-vocal do indi-
víduo, de modo a iniciá-lo e a orientá-lo nas formas de uso de si mesmo; e
do educando espera-se receptividade, confiança e persistência na obtenção de
competências. Nem sempre a sintonia é perfeita e da perseverança de ambos
dependerá a união ou a separação.
Emoções positivas ou negativas têm impacto sobre o corpo-voz, influindo
na qualidade dos movimentos físicos desencadeadores do som vocal. Não é
possível dissociar a história emocional de um indivíduo de suas ações corporais
habituais, reveladoras de experiências ordinárias que determinam o compor-
tamento do instrumento do cantor. No decurso da aprendizagem do canto, as
atitudes físicas e mentais do estudante são modificadas, à medida que procedi-
mentos pedagógicos propiciam a aquisição de competência cognitiva e motora
na performance artística. Portanto, considera-se que, para além dos fatores
psicológicos, há outros aspectos que interferem no funcionamento adequado
do corpo-voz, tendo estes múltiplas causas e algumas delas merecem destaque:
• O cantor não se ouve da mesma maneira em que ouve outros can-
tores e tal limitação dificulta a identificação de suas próprias falhas
de desempenho por meio da audição. A intensidade do som que
nós ouvimos, quando estamos cantando, tende a ser menor do que
a ouvida no ambiente, mesmo em ambientes acusticamente prepa-
rados. Nem sempre o que se ouve ou vê corresponde ao funciona-
mento adequado do corpo-voz, e, por isso, devem ser consideradas
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 33

a dificuldade do cantor de ouvir e de entender a própria voz, e as


controvérsias, entre cantores, professores de canto, preparadores
vocais e regentes corais, quanto à sonoridade ideal e à melhor forma
de aperfeiçoamento técnico vocal e interpretativo, já que nesses que-
sitos, a unanimidade pode ser difícil. A memória auditiva é vital para
o cantor, visto que o aparato respiratório, fonatório e articulatório
depende da audição para reproduzir o som musical com exatidão.
Hierarquicamente, o aparelho fonador deve obediência ao aparelho
auditivo e este sistema físico é de tal forma relevante no canto, que
é possível monitorar o desempenho da respiração, da fonação e da
articulação com o auxílio das sensações vibratórias, associadas às
sensações musculares e de equilíbrio postural;
• O cantor não vê, não sente e nem é capaz de controlar, diretamente,
os músculos laríngeos, porque eles são involuntários e impercep-
tíveis, não sendo possível, conscientemente, posicionar as pregas
vocais para estabilizar as zonas de transição da voz ou controlar,
diretamente, os ajustes musculares na produção de sons graves e
agudos, tampouco a afinação. Trata-se de variáveis dependentes
da ação conjunta de outras variáveis relacionadas à audição, à res-
piração, à fonação, à articulação e à ressonância, na atividade dos
mecanismos. Logo o excesso ou a falta de tensão muscular ocasio-
nará desequilíbrio entre esses músculos, influindo no desempenho
técnico e na qualidade vocal do indivíduo. É frequente os cantores
demonstrarem apreciação enganosa sobre as sensações físicas do
próprio canto, ao acreditarem que grande parte delas são indicativos
de eficácia vocal quando, contrariamente, denotam esforço físico
excessivo ou debilidade muscular, causados por falta de técnica
ou técnica vocal deficiente;
• É inexequível detectar, com precisão, o grau de atividade dos mús-
culos envolvidos no processo respiratório do canto, porquanto sua
fisiologia obedece a um imbricado sistema de cadeias musculares
que atuam com interdependência e cujo comportamento funcional
é idiossincrático e variável-dependente da postura corporal. Daí o
papel significativo da postura na qualidade dos movimentos físicos e
na produção da voz. Na verdade, uma postura incorreta e movimen-
tos físicos inadequados ou supérfluos são indicadores de ineficácia
no canto. Com efeito, as manobras musculares do canto tendem a
ocasionar tensões para além do suficiente à realização do gesto vocal
e tal susceptibilidade pode ser decorrente da aprendizagem de novos
movimentos, que são inusitados para o indivíduo e, por essa razão,
34

ele necessita de tempo para a adaptação, e do uso de procedimentos


técnicos que estimulam a hiperatividade de músculos e articulações.
• A coordenação pneumofonoarticulatória no canto é uma habilidade
que requer proprioceptividade e treino. Logo, se o cantor é pouco
proprioceptivo ou tem pouco treino, comprometerá os ajustes entre
a postura corporal, a audição, a respiração, a fonação, a articulação
e a ressonância.
É notório que a problemática elencada exerce impacto sobre a voz can-
tada e se constata no comportamento físico e vocal de cantores aprendizes
e veteranos, tendo em vista que o aprendizado do canto demanda grande
empenho intelectual e físico, sobretudo quando se apresenta ao indivíduo
modelos de posturas pneumofonoarticulatórias que lhe são pouco conhecidas
ou difíceis de realizar. Por mais que se motive o estudante a aprender novas
posições, gestos ou atitudes relacionadas ao canto, é inevitável o confronto
com os hábitos corporais inveterados – que tendem a resistir à mudança, prin-
cipalmente se já estiverem cristalizados –, ou se os novos hábitos propostos
adulterarem a lógica funcional do corpo e a naturalidade dos seus movimentos.
Em se tratando do canto coletivo, os problemas de natureza biopsico-
lógica podem atingir proporções exponenciais, quando comparado ao canto
individual, por se tratar de grupo de cantores com perfil físico e vocal distintos,
requerendo, muitas vezes, a intervenção de uma equipe multidisciplinar. A
despeito de na pedagogia vocal do século XXI, os conhecimentos relativos à
música, à técnica vocal, à interpretação, às abordagens corporais, à ciência da
voz e à ciência do movimento físico serem imanentes, a tão aclamada inter-
disciplinaridade persiste como desafio face às especificidades dos problemas
que dizem respeito aos diferentes contextos de aprendizagem e da prática do
canto individual e coletivo. Indagações múltiplas são compartilhadas, entre
si, por cantores atuantes nesses segmentos e alguns dos profissionais que os
conduzem, em modalidades distintas de trabalho musical, frequentemente as
têm em mente, mas sem a intenção de respondê-las, objetivamente, por meio
de pesquisas sistemáticas ou de ações interdisciplinares eficazes. Por exemplo:
1. Eu sinto o meu corpo durante o canto?
2. O que acontece com o meu corpo quando eu canto?
3. Como eu escuto a minha voz?
4. Como eu percebo o meu som grave, médio e agudo?
5. Eu consigo cantar, com facilidade, em diferentes registros vocais?
6. Eu tenho dificuldade de perceber as notas e os ritmos, por qual razão?
7. Eu ouço bem as notas e os ritmos, mas não consigo reproduzi-
-los, por quê?
8. Eu não tenho resistência física para sustentar notas ou frases musi-
cais longas, por quê?
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 35

9. Eu tenho dificuldade de pronúncia, por qual razão?


10. É difícil, para mim, cantar em conjunto, por quê?
Inobstante as possibilidades de construção de sonoridades no canto cole-
tivo, em razão da similaridade na classificação vocal ou da afinidade timbrística,
convém refletir sobre a preponderância do canto individual no equilíbrio sonoro
do canto coletivo, sob o ponto de vista técnico musical, vocal e interpretativo,
seja ele grupo vocal, coral infantil, infantojuvenil ou adulto. É importante que
o som do conjunto seja cultivado, sem que se perca de vista o som peculiar do
indivíduo e isso envolve a preservação da integridade do corpo-voz de cada
cantor coralista ou de grupos vocais nas atividades conjuntas. No canto popular
e no teatro musical, o mesmo raciocínio se aplica aos cantores que atuam em
diversas formações vocais com bandas, instrumentos específicos ou orquestras.
Sendo assim, para responder às questões supracitadas e à outras de natu-
reza pedagógica ou performática, o diálogo multidisciplinar se faz necessário
entre cantores; professores de teoria, percepção musical e história da música;
professores de educação musical; professores de canto; pianistas coaches;
professores de dicção; professores de teatro; professores de dança; prepara-
dores vocais; e regentes corais. Independentemente da capacitação especia-
lizada desses profissionais, constata-se lacunas de formação, principalmente
no regente coral e no professor de educação musical, que assumem funções
que extrapolam as suas áreas de competência, à frente de grupos, ocorrendo o
mesmo com instrumentistas e compositores que atuam como regentes de coros.
Por exemplo, no quesito voz cantada, os currículos formativos dos cursos
superiores de música contemplam pouco o oferecimento de disciplinas espe-
cíficas orientadas para a preparação vocal individual e coletiva de cantores
de coro ou de grupo vocal.
Do mesmo modo, professores de educação musical, professores de canto,
instrumentistas e compositores carecem de formação técnica em regência
coral que os habilite a reger, com solidez, pequenas ou grandes formações
vocais, e no que diz respeito aos regentes corais, falta-lhes formação técnica
em canto que os qualifique ao trabalho de desenvolvimento vocal do cantor
coralista. Em ambos os casos, se faz necessário o conhecimento de técnica
vocal para coro infantil, infantojuvenil e adulto, e tal pré-requisito se aplica,
igualmente, ao bacharel ou licenciado em canto, cuja formação, do ponto vista
curricular, pouco o beneficia com disciplinas direcionadas à preparação vocal
de coro ou de grupo vocal. Com efeito, os currículos que visam à formação dos
diferentes perfis profissionais mencionados deveriam levar em consideração
que o ensino e a performance do canto coletivo concernem aos graduados em
música que se destinam ao trabalho com cantores. Por essa razão, é impor-
tante que componentes curriculares específicos, atinentes a essa modalidade
de prática, sejam criados e façam parte dos currículos formativos dos cursos
de graduação ou de pós-graduação em música.
36

O canto em conjunto, principalmente o coral, é para o estudante de canto


e de música, em geral, assim como para o leigo, uma atividade relevante
na formação humana e musical que contempla o cantor lírico, o cantor de
coro, o cantor popular e o cantor de musical. Por sua vez, o canto lírico e o
canto coral são abordagens educativas essenciais na formação do cantor que
pretende atuar profissionalmente em coros, recitais, concertos sinfônicos,
concertos coral-sinfônicos e óperas. Portanto, se o canto coral abrange parte
expressiva do conhecimento técnico musical, vocal e interpretativo, sua prá-
tica é indispensável na escolarização do cantor solista e coralista. A despeito
disto, parece utopia a perspectiva de uma técnica vocal individualizada com
cantores, ao observar-se as formas convencionais de trabalhos com grupos,
realizadas pelos condutores no canto coletivo.
Em geral, inicia-se o ensaio com alguns exercícios triviais de aquecimento
vocal e logo segue-se a abordagem do repertório. Ou seja, parece que a prepa-
ração vocal para cantores de grupos não é cogitada, e há que se considerar que
nem sempre a administração de coros ou de grupos tem disponibilidade finan-
ceira para contratar um preparador vocal, ficando o regente coral ou ensaiador
incumbido desta função. Nos casos em que nessas formações vocais há estu-
dantes de canto ou cantores profissionais, o trabalho conjunto do regente e do
preparador vocal é essencial no equilíbrio da sonoridade do conjunto, e se for
o regente quem faz a preparação das vozes, o êxito será atingido quanto a esse
objetivo, ocorrendo o mesmo nas formações com cantores leigos. Contudo,
reitera-se a necessidade de capacitação do regente coral para atuar como pre-
parador vocal, atributo que se assemelha ao de um professor de canto.
O trabalho técnico destinado ao corpo-voz no canto coletivo deve ocorrer
também no canto individual e exercícios de aquecimento não preparam o can-
tor para a abordagem de repertório com diferentes níveis de dificuldade musi-
cal e vocal. Trata-se de unidades sonoras singulares, representadas por cada
indivíduo cantor – em que idiossincrasias concernentes ao perfil psicológico,
à classificação vocal, à particularidade do timbre e à facilidade de audição,
emissão vocal e pronúncia, influirão, certamente, no desempenho do conjunto.
Na educação vocal, o vocalize não é considerado exercício eventual utilizado,
em curto espaço de tempo, para “aquecer a voz” antes da execução de obras
musicais. Diversamente, a sua função estruturante envolve o aquecimento e
vai além deste, sendo elemento formativo imprescindível à funcionalidade e
ao condicionamento do corpo-voz, e determinante na habilidade do cantor.
A execução do vocalize – o mapa diagnóstico da voz –, permite a avalia-
ção precisa acerca do desempenho fisiológico e acústico do cantor, ao longo
do tempo, assim como a realização de prospecções e prognósticos sobre a
prática de repertórios adequados ao seu estágio de desenvolvimento técnico
musical, vocal e interpretativo. Assim sendo, prioriza-se o canto individual,
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 37

com aulas em pequenos grupos, para que o indivíduo compreenda o modo


de funcionamento do seu corpo-voz, por meio da propriocepção da postura
corporal, do movimento físico e da vibração da voz, podendo haver alternância
entre o trabalho individual e o coletivo, sobretudo quando se tem em vista o
equilíbrio da sonoridade individual, do naipe e dos naipes. Logo, na ausência
de um preparador vocal, caberá ao regente coral o desempenho dessa função,
o que implica em sua expertise na técnica da voz cantada e em áreas afins.
O termo “propriocepção” foi introduzido por Sherrington, 1906, embora
essa sensibilidade básica sempre esteve presente no ser humano. Dito assim,
Liutsko (2013) refere que propriocepção ou a percepção da consciência cor-
poral, é uma sensação que o indivíduo frequentemente não tem consciência,
mas acredita na sua existência. Sendo mais facilmente demonstrada do que
explicada, a propriocepção é a “consciência inconsciente” de onde as diversas
regiões do corpo estão localizadas a qualquer instante. Por exemplo, com
os olhos fechados podemos dizer onde nossas mãos ou pernas se situam no
momento. Entretanto, sem propriocepção não seria possível trazer uma colher
de sopa na boca, nem andar de bicicleta ou mudar a marcha de um carro sem
olhar para as mãos ou os pés.
As pesquisas contemporâneas têm demonstrado que o indivíduo fica
ciente de suas ações ou de que o processamento controlado destas se torna
consciente com um intervalo de tempo de 300-500 ms após o início da ação,
o que significa que eventos cerebrais ocorrem antes da ação atingir a mente
consciente. O aprendizado de uma nova habilidade requer tempo e prática
repetida até que seja executada no nível proprioceptivo, isto é, como se esti-
vesse no piloto automático. Sem propriocepção não haveria cantores, instru-
mentistas, pintores, bailarinos, acrobatas ou desportistas. Por conseguinte, o
sentido proprioceptivo é crucial na educação e na formação, e é a base das
diferenças individuais e da construção da personalidade.

Interlocuções teóricas

Tendo apresentado problemáticas e argumentações relativas ao canto


coletivo, à guisa de contextualização, o tema central do presente capítulo se
desenvolverá, outrossim, em perspectiva de análise e de reflexão acerca do
cantor, elemento fenomênico potencialmente capaz de produção sonora efi-
caz – por meio do seu instrumento corporal holístico –, e de sua contribuição
significativa como aprendiz, solista ou coralista, no contexto do ensino-apren-
dizagem e da performance do canto individual e coletivo.
Em perspectiva filosófica, a fenomenologia (inglês: phenomenology;
francês: phénoménologie; alemão: phänomenologie; italiano: fenomenologia)
descreve, no espaço-tempo, tudo o que se revela em seu aspecto psíquico
38

preliminar, indo até à explicação dos fatos psíquicos, que vêm a ser os acon-
tecimentos reais ou fenômenos relacionados aos sujeitos a que pertencem
(ABBAGNANO, 1999). Por outro lado, o panorama holístico é essencial ao
entendimento da funcionalidade do corpo humano, enquanto sistema orgânico
interconectado e parte integrante do universo macro e micro. O termo holismo
(do grego holos: totalidade), criado por Jan Smuts (1870-1950), baseia-se no
princípio de que há no universo uma tendência integradora. Ao referenciar
Smuts, Crema (1989) descreve o pensamento do filósofo e estadista sul-afri-
cano que considera a visão do todo como princípio fundamental do movimento
holístico. Na concepção de Smuts, o termo holismo atinge sentido universal:

A última atividade do universo, sintética, ordenadora, organizadora e regu-


ladora que explica todos os agrupamentos e sínteses estruturais, partindo
do átomo e das estruturas físico-químicas, até a Personalidade humana,
passando pela célula, pelos organismos e pela mente nos animais. O caráter
de unidade ou totalidade sintética que tudo permeia e que está em cons-
tante crescimento nestas estruturas nos leva a um conceito de Holismo
como sendo a atividade fundamental subjacente e coordenando as outras,
assim como a uma visão do universo como sendo um Universo Holístico
(SMUTS apud CREMA, 1989, p. 61-62).

Ao conceber-se o corpo humano como instrumento que canta, atribuís-


se-lhe integridade física e mental, assim como movimento e conectividade.
A abordagem fenomenológica e holística no entendimento da funcionalidade
global desse instrumento musical vivo parece ter sido contemplada, ainda
que de forma incipiente, por alguns eminentes pedagogos do passado e, no
presente, vem sendo meta pedagógica entre professores de canto, preparadores
vocais e regentes corais, não somente em relação aos aspectos estéticos da
voz, mas no que respeita ao indivíduo em sua totalidade e à maneira como
canta. Ademais, a internalização dos conceitos implicados na diversidade dos
movimentos corporais existentes durante o canto parece desafiar os preceitos
técnicos na busca da otimização do desempenho vocal do cantor. Ainda que
as recomendações pedagógicas sejam crucias na observância de aspectos
gerais da postura corporal e da fonação no canto, por exemplo, a ênfase sobre
a inter-relação existente entre os diversos segmentos do corpo, assim como
na sua capacidade de coordenação, é essencial na pedagogia do canto. Neste
sentido, Vennard (1967) assegura que:

O conhecimento dos múltiplos processos envolvidos no canto é como um


esqueleto desarticulado, até que a sua inter-relação seja entendida. Um
organismo é maior do que a soma de todas as suas partes e nenhum estudo
analítico descobre toda a verdade até que se chegue a uma síntese. De
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 39

que serve a válvula [laringe] sem a pressão do ar? É possível entender as


vogais sem o conhecimento do vibrador [pregas vocais], dos ressoadores,
e da sua coordenação? Qual o sentido de tudo isso sem a articulação?
(VENNARD, 1967, p. 191).

Sob esta ótica e predispondo ao corpo humano um conhecimento que


lhe é subjacente, Reid (1992) expressa o seu ponto de vista:

Ainda que não possa ser dito que os sistemas orgânicos possuem uma
inteligência capaz de realizar, eles contêm um tipo especial de conhe-
cimento. Por exemplo, no momento da concepção, as células começam
a proliferar e, por um período, os órgãos se alojam na estrutura externa
do corpo. Como conseguem realizá-lo é um mistério, mas eles o fazem,
e eles “sabem”. [...] O sistema muscular, também, possui o que poderia
ser denominado de uma lógica inata. Se um músculo funciona sozinho,
em um grupo, ou em conjunção com outros, pode: 1) relaxar enquanto o
seu opositor natural tensiona; 2) contrair ativamente quando o ponto A
é atraído para o ponto B [a porção de um músculo é atraída por outra];
ou 3) servir de suporte em movimento contrário à contração ativa de um
sistema oponente, quando cada sistema está sendo mantido em um estado
de tensão equilibrada. Consequentemente, esses sistemas irão responder
favoravelmente a qualquer estímulo que consiga requerer aquelas ativi-
dades que fazem parte do seu potencial lógico de movimento.
Por outro lado, os sistemas orgânicos responderão com relutância, quando
forçados a se adaptar a um ambiente adverso. Eles ‘sabem’ o que podem
e o que não podem fazer (REID, 1992, p. 4-5).

Em concepção paradigmática coadunável com Reid, no que concerne


à peculiaridade de cada cantor, isto é, à forma própria e espontânea de fun-
cionamento do seu aparato físico vocal, no canto, Shutte (2019) crê que o
uso do ar na laringe é um fenômeno extremamente individual e depende do
formato do órgão, ou seja, cada laringe tem o seu próprio padrão de uso do
ar, de acordo com a configuração anatômica (a estrutura do tecido das pregas
vocais e a atividade das cartilagens laríngeas). Portanto, o comportamento
aerodinâmico é individualmente determinado pelo formato da laringe. Ainda
que o ar dirigido à laringe seja a fonte de energia para a fonação na fala e no
canto, e que a frase e o texto definem o seu uso, em quantidade, é a configu-
ração individual da laringe que determina a porção de fluxo e de pressão de
ar necessária a um desempenho adequado. Ocorre que o ar exalado perde sua
importância no instante em que atinge a glote2 e é sonorizado. A partir daí, o
que importa são as ondas sonoras, isto é, a energia vibratória da voz.

2 Glote: espaço existente entre as pregas vocais na sua fase de abertura (abdução).
40

No ponto de vista de Appelman (1967), o gesto do canto implica em


coordenação e interatividade:

Do ponto de vista psicofísico, o canto artístico é o ato dinâmico (sempre


sujeito a mudanças) de coordenar instantaneamente as sensações físicas
de respiração (o desejo de respirar), fonação (o desejo de emitir um som),
ressonância (o desejo de realizar uma determinada posição de vogal) e
articulação (o desejo de comunicar através da pronúncia das vogais e con-
soantes) em uma expressão vocal disciplinada. [...] Um dos objetivos do
cantor é desenvolver uma técnica exequível, que depende da experiência
sensorial aprendida em um processo vocal ativo e que envolve os atos
psicofísicos de respiração, ressonância e articulação. [...] Ao considerar
o instrumento para o qual tais disciplinas são aplicadas, deve-se ter cons-
ciência de que todo o corpo está envolvido no processo do canto e que as
forças corporais são interdependentes na complexa atitude de apoio ao
som laríngeo (APPELMAN, 1967, p. 9).

Na opinião de Miller (1996), o corpo humano é o instrumento do cantor


e a sua capacidade de autorregulação deve ser desenvolvida:

O instrumento canto – o corpo – deve ser capaz de responder à informa-


ção técnica que recebe. Existe um termo expressivo perfeito do antigo
teatro lírico Alemão que descreve a capacidade de um cantor transformar
informações técnicas em função física: Sängerischesgefühl, a sensação
do cantor para o ato do canto. Como qualquer atleta, o cantor deve
ser capaz de traduzir as informações técnicas em coordenação física
específica. O próprio corpo já possui a sabedoria para alcançar esse
fim e irá fazê-lo, se não for prejudicado por instruções desnecessárias
(MILLER, 1996, p. 205).

De acordo com Ware (1998), o cantor pode ser comparado a um atleta,


mas isto não significa que o seu estereótipo deve seguir o padrão dos perfor-
mers musculosos ou fisicamente condicionados para o trabalho como ginastas
ou dançarinos. Além disto, o autor concorda com Miller de que o corpo do
cantor é o seu próprio instrumento vocal:

Embora seja irreal a expectativa de que os cantores sejam semelhantes


às imagens estereotipadas de atletas e animadores, na possibilidade de
serem cantores-atores e atrizes, é possível que devam representar certos
papéis de personagens. [...] Como o instrumento vocal é todo o corpo
humano, os cantores conscientes deverão ter como prioridade o condi-
cionamento do seu instrumento para torná-lo vigoroso em longo prazo
(WARE, 1998, p. 32).
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 41

A maneira como se transformam “informações técnicas em função física”,


mencionada por Miller, e a forma como se condiciona o “instrumento vocal
para torná-lo vigoroso”, enfatizada por Ware, são efetivamente o cerne da
técnica vocal. Reid (1995, p. 370) a define como sendo:

O modo pelo qual uma atividade física (por exemplo, fonação) é executada
e utilizada para realizar um objetivo pretendido (por exemplo, a expressão
artística); uma forma particular de fazer as coisas. [...] A técnica vocal é
a maneira pela qual o mecanismo vocal reage, é a ligação física entre a
intenção e a expressão artísticas.
Uma técnica ou função que está em conformidade com as leis da natureza
é eficiente; aquela que as infringe é ineficaz. O objetivo final do treino
vocal é, portanto, estabelecer uma técnica que satisfaça e esteja de acordo
com o potencial de movimento do sistema muscular e orgânico envolvidos
no processo de fonação (REID, 1995, p. 370).

Nessa lógica, Nix (2019) infere que:

A aquisição da técnica e o desenvolvimento da arte são processos metó-


dicos. Os professores de canto devem respeitar a hierarquia no desen-
volvimento da voz do cantor, à medida que cada aspecto da técnica se
desenvolve e interage entre si. Nessa hierarquia, o alinhamento corporal
é essencial. O uso adequado do corpo permite a eficiência respiratória,
fonatória, ressonantal, articulatória, e a expressividade de gestos e movi-
mentos. A respiração e o alinhamento físico são contíguos; sem uma função
respiratória coordenada e otimizada, a liberdade de fonação, ressonância,
articulação e de fraseado artístico é comprometida (NIX, 2019, p. 601).

E Miller (2019) observa que:

Uma técnica completa de canto deve considerar a regulação e o geren-


ciamento da respiração [...] o que definimos como a fonte de energia, a
realização da independência na fonte vibratória (isto é, no nível da laringe),
o complicado processo de acoplamento dos ressoadores (as relações espa-
ciais da faringe, da nasofaringe, das passagens nasais e da boca), e a
coordenação de articulação fonética em resposta à linguagem e ao sentido
(o processo de unir a fonte motora, a fonte vibratória e os ressoadores)
(MILLER, 2019, p. 310).

A pedagogia, na concepção de Ware (1998), é a ciência, a arte e a profis-


são de ensino baseada em princípios e métodos que resultam da aprendizagem
sistematizada; e um pedagogo é aquele que ensina. Destarte, o ensino pode ser
pensado como o ato de proporcionar aos educandos um corpo de conhecimento
42

e de habilidades de maneira sistemática, metódica, criativa e flexível. Neste


entendimento, Sundberg define a educação vocal como sendo “a aplicação
de um amplo conjunto de conhecimentos e técnicas que asseguram a funcio-
nalidade, a estética e a saúde vocais [...]” (SUNDBERG, 2015, p. 301). No
ponto de vista de Fields (1947), a pedagogia do canto é “o conjunto de prin-
cípios, normas e procedimentos relativos ao desenvolvimento, ao exercício
e à prática da arte de cantar, e é o processo de treinamento predeterminado
em um curso ou disciplina técnica [...]” (FIELDS, 1947 apud WARE, 1998,
p. 255). Para Ware, o principal objetivo do professor de canto é ajudar o
aluno a desenvolver uma técnica eficiente e uma performance expressiva e
isto requer “considerável experiência no assunto, competências para o ensino
e habilidades sociais. Tal versatilidade depende da flexibilidade do professor
em integrar os opostos: processo e produto, ciência e arte, e teoria e prática
[...]” (WARE, 1998, p. 255).
Há que se ter em vista, entretanto, que a percepção da mobilidade das
estruturas corporais durante o canto, todavia, é complexa, não sendo facil-
mente detectável pelos sentidos do aluno neófito, tampouco de veteranos,
já que se trata de imbricações existentes entre o cérebro, o sistema nervoso,
o sistema musculoesquelético e o aparato pneumofonoarticulatório. Neste
aspecto, as sensações físicas podem informar o cantor sobre eventos muscu-
lares ou acústicos importantes que ele não costuma perceber quando divide
sua atenção entre o aprendizado musical e o vocal, por exemplo, na realização
de vocalizes ou de repertório. Conforme alega Costa Filho (2000):

Parece ser difícil para este profissional administrar tantas informações em


vários domínios (cognitivo, afetivo e psicomotor), que seriam na prática:
fazer uma leitura rítmica, solfejar, declamar o texto, cantar a música com
o texto, falar várias línguas etc.; tudo isso obedecendo a uma perfeita sin-
cronia entre os mecanismos da voz e o seu estado psicofísico-emocional
durante a performance (COSTA FILHO, 2000, p. 30).

Rubim (2019) argumenta que:

O estudante de canto administra, em cada aula, todos os sentidos de uma


só vez: ele ouve o professor solicitando atitudes ou procedimentos vocais;
ele emite sons vocálicos ou articulados, em português ou em outro idioma;
ele lê uma partitura musical, ou seja, ele é bombardeado de estímulos todo
o tempo. Aqui está a dificuldade no estabelecimento de uma linguagem
acessível ao aluno de canto.
Ao se ter conhecimento da complexidade da administração de todos estes
sentidos, o professor de canto pode desenvolver uma pedagogia mais flexí-
vel e mais bem adaptada ao aluno. Com relação ao canto como linguagem
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 43

complexa, podemos decompor (mapear) as diversas sublinguagens nela


embutidas – os aspectos musicais, da ressonância, dos idiomas, da expres-
são – e reconstruir o processo de modo mais gradual, respeitando a natureza
de cada aluno, organizando as diversas linguagens a partir do conhecimento
das diferentes percepções sensoriais dos alunos (RUBIM, 2019, p. 155).

Considerados esses aspectos e entendendo a complexidade do processo


de aprendizagem do canto foi criado por esse autor, a partir de sua experiência
como professor de canto e pesquisador, o Método de Desenvolvimento Vocal
Proprioceptivo (Método DVP). O intuito do método é auxiliar os alunos de
canto neste processo de percepção do corpo-voz, de forma holística, como
apresentado a seguir, no fechamento deste capítulo.

Método DVP: breves considerações

O vocábulo “tocar” tem sentido amplo, abrangendo o contato, a execu-


ção, a comoção, a alusão e a percepção, para além de outras semânticas igual-
mente representativas deste vocábulo extensivo. Do ponto de vista do canto,
as acepções em destaque têm pertinência semelhante – mormente quando
associadas ao movimento físico –, tanto na aprendizagem da performance do
cantor leigo ou estudante, e do cantor profissional, quanto no desempenho do
professor de canto, do professor de educação musical, do instrumentista, do
compositor, do preparador vocal, do regente coral ou do ensaiador de grupos
vocais. Destarte, cabe ao cantor aprender a “tocar” o seu próprio instrumento
físico-vocal, do mesmo modo em que do regente coral e do ensaiador de grupos vocais
espera-se igual habilidade ao “tocar” ou fazer soar um coro ou grupo vocal.
Decerto esses profissionais são, por analogia, instrumentistas condutores de
instrumentos musicais vivos que atuam individualmente ou em conjunto.
De fato, a voz cantada é produzida a partir da ação integrada entre os
músculos da respiração, da fonação e da articulação; sua ressonância se pro-
paga pela condução óssea e aérea, e o seu controle só é possível por meio da
propriocepção. A consciência sobre a forma como se realiza o movimento
corporal durante o canto implica a sua perceptibilidade, aprendizagem e
memorização, assim como o uso eficaz do corpo, em consonância com sua
natureza funcional. É desse modo que o indivíduo aprende a percebê-lo e,
por meio de gestos simples e sutis, torna-se apto a “tocar” esse instrumento
fenomênico, de forma ergonômica3 – de fora para dentro e de dentro para fora
–, com sucesso. Por essa razão, cada ínfimo detalhe sensorial subjetivo é rele-
vante na construção de um vocabulário de sensações, baseado na experiência
3 Ergonomia: ciência que estuda as atividades humanas e as condições de trabalho, e estabelece normas
para o equilíbrio no desempenho cotidiano, com vistas à saúde física e mental do indivíduo.
44

proprioceptiva do cantor, seja ela emocional, muscular, articular ou vibratória.


A proprioceptividade dos movimentos intrínsecos e extrínsecos do corpo
humano requer o treinamento simultâneo dos sistemas perceptivos (audição,
visão e propriocepção) que gerenciam o input de estímulos provenientes do
próprio indivíduo ou do meio-ambiente. Afinal é ele o dono do instrumento
físico que se destina à aprendizagem da performance.
Visto assim, o Desenvolvimento Vocal Proprioceptivo – Método DVP,
sistema de ensino de canto criado por este autor, considera, em alguns dos
seus fundamentos, que:
• Somos humanos e susceptíveis aos hábitos e às emoções, e como
o instrumento físico do indivíduo os manifesta por meio do movi-
mento, a observação do corpo em ação, durante o canto, considera
os efeitos dos hábitos e das emoções sobre o desempenho do cantor.
• Tão logo aprendemos com o corpo a identificar as tensões deletérias
advindas da força do hábito e da emoção, aprendemos, igualmente,
a ser lenientes conosco e com indivíduos que apresentam os mes-
mos sintomas, de forma involuntária. Por essa razão, intenta-se
à percepção global da abrangência dos movimentos físicos e dos
seus impactos diretos e indiretos sobre estruturas corporais que
apresentam tensão excessiva, desencadeada por comportamentos
que geram estresse muscular no canto.
• O aprendizado inicial com os movimentos reflexos do corpo, possi-
bilita, por meio da propriocepção e da memória proprioceptiva, o seu
aperfeiçoamento na técnica vocal, sem que haja a intenção de controle
direto sobre os mecanismos da voz. As posturas e movimentos físi-
cos voluntários que concitam a reflexividade do corpo, aumentam a
proprioceptividade, favorecem o controle indireto de músculos invo-
luntários e o controle direto de músculos voluntários, o que facilita
a replicabilidade dos movimentos corporais vivenciados pelo cantor.
• Quanto maior a propriocepção postural e pneumofonoarticulatória
do corpo-voz em movimento, maior será a percepção do fluxo vocal
contínuo, livre de bloqueios posturais e musculares adversos. Logo,
a fluência fonatória é variável dependente da fluidez dos movimen-
tos intrínsecos e extrínsecos do instrumento físico do cantor. Além
disto, tem-se em consideração a expansão da consciência corporal
do indivíduo acerca de suas potencialidades e limites, com vistas à
otimização do desempenho técnico e artístico, de modo a propor-
cionar ao corpo-voz a possibilidade de atuar de forma holística,
produzindo um som vocal saudável, fluente e vibrante.
• As intenções de flexibilidade, tônus, resistência e projeção vocal tor-
nar-se-ão exequíveis, mediante a consecução da plasticidade corporal.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 45

Tal predicado implica uma estrutura física alongada, flexível e toni-


ficada, com tensão muscular suficiente para a realização das tarefas
vocais ou da performance. Daí a relevância do equilíbrio na atividade
sinergética de órgãos, músculos e articulações no gesto vocal do canto.
• Por se tratar de sistema de educação física e vocal, o conheci-
mento musical não é prescindível neste método, sendo, portanto,
basilar para sua eficácia. A educação musical formal ou infor-
mal do cantor pode ocorrer antes ou durante o seu processo de
aprendizagem, dado o fato de que a técnica musical e a técnica
vocal são interdependentes no canto, além de cruciais no desem-
penho artístico.
• O treinamento realizado com a bola de borracha, a faixa elástica e
a cama elástica, além de lúdico, é relevante no aumento da proprio-
cepção e na otimização do funcionamento do corpo-voz, em curto
e médio prazo. É um recurso auspicioso na conscientização dos
problemas técnicos, tendo igual efetividade na dissolução destes,
além de ampliar a perceptibilidade do indivíduo, tornando-o ciente
do seu comportamento físico-vocal.
Materiais maleáveis e resistentes oferecem fácil interação e propi-
ciam o aumento das sensações cinestésicas e vibratórias, bem como o
relaxamento de tensões resultantes do excesso de esforço físico. Outros-
sim, eles induzem à inibição de tentativas voluntárias de controle direto
sobre a voz, de forma a favorecer o desenvolvimento vocal espontâneo
do cantor. Assim, permite-se que o indivíduo descubra, por meio da pro-
priocepção do movimento físico, o modo de funcionamento automático do
corpo-voz; o seu ritmo natural de aprendizagem, a partir de exercícios físicos
e vocais programados; aprenda a cantar consoante os feedbacks do próprio
instrumento físico; e otimize o desempenho vocal, mediante a autorregula-
ção do corpo-voz, sob a orientação e supervisão de um professor de canto,
preferencialmente treinado no Método DVP.
Estudos sobre a eficácia de alguns desses materiais como estratégia de
ensino – em especial a Bola Suíça (BS) e a Faixa Elástica (FE) –, foram rea-
lizados por Costa Filho (2015), em sua tese de doutoramento, e por Almeida
(2019), que utilizou a BS em sua pesquisa de mestrado. Nesses estudos con-
trolados, avaliou-se os efeitos da mobilidade corporal, com o uso desses
materiais elásticos, sobre a propriocepção das variáveis respiração, fona-
ção e articulação (trato vocal/ressonância) e concluiu-se que, em contexto
pedagógico, os movimentos corporais com o uso desses materiais elásticos
potencializam a realização dos tradicionais exercícios de aquecimento e de
condicionamento vocal, assim como a execução de repertório, favorecendo
a dinâmica funcional do corpo-voz durante o canto.
46

REFERÊNCIAS
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WARE, Clifton. Basics of vocal pedagogy: the foundations and process of


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PRÁTICAS MUSICORPORAIS NO
PREPARO VOCAL COLETIVO:
reflexões e experiências
Thays Lana Peneda Simões1
Éric Vinícius de Aguiar Lana2

Contextualização
O capítulo que se segue apresenta uma série de reflexões e possibilidades
pedagógicas para que os preparadores vocais, regentes e coralistas despertem
e desenvolvam a consciência corporal ativa aplicada ao ato do canto.
Em nossa prática docente, observamos e desenvolvemos atividades de
ensino que compreendem o cantor como um ser psicofísico, ou seja, entende-
mos que corpo e mente são uma única unidade, indissociável, e fundamentados
no pensamento de Alexander Lowen (1985, p. 11), acreditamos que tudo o
que acontece na mente, reflete-se no corpo, além de gerar uma interferência
negativa ou positiva no resultado sonoro do cantor (SIMÕES, 2012; 2019).
Para o cantor, o corpo é o instrumento e o agente primordial da produção
musical. Porém, ao longo de nossa vida, acumulamos tensões e desenvolve-
mos padrões físicos corporais e mentais que se intensificam quando estamos
em situações de exposição – como em performances, situações de risco ou
perigo, e de fragilidades emocionais (SIMÕES, 2019).
Os bloqueios emocionais e as tensões corporais geram hábitos inadequa-
dos de uso do corpo e como consequência, para tentar manter um equilíbrio,
inconscientemente acontece uma compensação corporal por mau uso do corpo
e são adicionados vícios e padrões deletérios que comprometem a produção
vocal, o bem-estar e a saúde corporal do cantor, necessitando, portanto, de
maior atenção por parte dos preparadores vocais e regentes.
Simões (2019, p. 141-143) analisou em conjunto com um fisioterapeuta3,
o corpo de sessenta e um coralistas entre crianças e adolescentes de um coro

1 Doutora em Educação Musical pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Canto pela Universidade
de Aveiro – Portugal. Licenciada em Música pela Universidade Federal de Ouro Preto. Preparadora vocal de
coros infantojuvenil há mais de 15 anos.
2 Doutorando em Regência coral pela Universidade de Aveiro – Portugal. Mestre em Educação pela
Universidade Vale do Rio Verde e Licenciado em Música pela Universidade Federal de Ouro Preto. É
maestro de coros infantojuvenis há mais de 20 anos.
3 Elgem Moura é fisioterapeuta e atuou como pesquisador coletivo na pesquisa intitulada “práticas musicorporais
para a preparação vocal de jovens coralistas” (SIMÕES, 2019) desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Educação Musical da Universidade Federal de Minas Gerais.
50

amador e traçou o seguinte quadro apontando os padrões físicos mais recor-


rentes que são esperados e inadequados aos cantores:

Quadro 1 – Padrões físicos corporais recorrentes nos


coralistas do coral Canarinhos de Itabirito
Problemas físicos Definição Figura Ilustrativa

Adequação de ali- O centro da gravidade do corpo está alinhado com o restante dos
nhamento corporal membros como pés, joelhos, quadril, ombros, costa e pescoço.

Hiperlordose lombar Curvatura excessiva na região lombar.

Curvatura torácica excessiva levando as costas a ficarem em posição


Hipercifose torácica
“corcunda”.

Deformidade na curvatura lateral da coluna, colapso do tronco e


Escoliose
deslocamento para um dos lados.

Retificação da
Curvatura lombar menor que 45º, havendo compressão na região
lombar

A articulação glenoumeral (encontro do úmero com a escápula) auxilia


a manter o alinhamento corporal. Em uma postura ideal, a cabeça do
Anteriorização da úmero deve estar posicionada na mesma linha da vértebra C7 (última
cabeça do úmero vértebra cervical). Quando a cabeça do úmero se posiciona à frente
dessa linha lateral do corpo, consideramos o ombro anteriorizado,
tomando como referência a cabeça do úmero.

Projeção do quadril
Projeção da região pélvica (quadril) para frente.
em antepulsão

Colapso do tronco Desvio lateral tronco (flexibilização do tronco para um dos lados).

Projeção do pescoço Pescoço para frente, também chamado de anteriorização ou protusão.

Retração do pescoço Inclinação da cabeça para trás.

continua...
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 51
continuação

Problemas físicos Definição Figura Ilustrativa

Assimetria de ombros Desnivelamento – um lado mais alto que o outro.

Depressão de
Ombros puxados para baixo.
ombros

Protusão de
Ombros / ombros Ombros projetados para a frente.
anteriorizados

Elevação de ombros Ombros suspensos em direção às orelhas.

Ombros neutros Ombros alinhados.

Depressão abdo-
minal/ colapso do Compressão da musculatura abdominal para baixo.
abdômen

Depressão da
Compressão da escápula, posicionamento para baixo.
escapula

Hiperextensão dos Alongamento máximo com projeção e retificação dos joelhos para
joelhos trás.

Joelhos geno valgo Joelhos juntos voltados para dentro, pés afastados.

Joelhos geno varo Joelhos afastados, pés próximos.

Dedos travados e enrijecidos com mão fechada, ou com mãos que


Mãos tensas
agarram partes da roupa ou a própria mão.

Maxilar tenso Articulação travada, fechamento excessivo da boca.

continua...
52

continuação

Problemas físicos Definição Figura Ilustrativa

Modificação do formato da língua: a) em concha; b) riacho; c) ponta


Língua tensa da língua dura em formato estreito ou posicionada no palato duro
(céu da boca), ou recuada.

Laringe tensa Posicionamento alto da laringe ou com excessiva movimentação.

Dedos retraídos em garra ou pouco contato de partes dos pés com


Pés tensos
o chão.

Fonte: SIMÕES, 2019, p. 141-143.

Embasados nos dados científicos apresentados por Simões (2019), enten-


demos que todos esses padrões físicos, bem como os padrões mentais – nossos
pensamentos e emoções – interferem na forma como nosso corpo se organiza
e se coordena para a produção vocal. Deste modo, um corpo-mente, desali-
nhados tendem a gerar cada vez mais tensão por compensação muscular e
postural exigindo do cantor maior esforço e alterando negativamente a sua
produção e qualidade sonora.
Se por um lado, cantores, preparadores vocais e maestros de coros repe-
tem verbalmente que o instrumento do cantor é seu corpo, tanto a literatura
referente à pedagogia vocal coral, quanto a prática pedagógica que permeia o
canto coletivo é por vezes, contraditória, pois observa-se que a integração do
corpo, sobretudo no processo de preparação vocal nem sempre é contemplada.
Na prática coral, observamos uma valorização de padrões que incitam
uma rigidez do corpo e valorizam atitudes estáticas, seja para o ensaio do coro,
para as aulas ou durante as performances. Por vezes, as práticas didáticas dos
preparadores vocais e regentes negligenciam as atitudes corporais, os elemen-
tos da corporeidade e da expressividade ou ainda, não dão importância aos
padrões físicos deletérios do uso do corpo durante o ato do canto por desco-
nhecimento ou simplesmente por não acreditarem que seja de fato relevante.
No entanto, pesquisas como as de Sousa (2021), Penido (2020), Simões
(2019), Padovani (2017), Costa Filho (2015) dentre outras, trazem essa preo-
cupação e possibilidades para a pedagogia vocal com uma visão integradora
de corpo-mente-voz.
Ressaltamos que autores da pedagogia vocal coral, como Roe (1983), Coe-
lho (1994), Carnassale (1995), Mendonça (2011), Sousa (2011), Silva (2012),
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 53

Moreira e Ramos (2014), Moreira (2015), Rheinboldt (2018), demonstram uma


preocupação central com a postura da coluna vertebral, propõem exercícios cor-
porais para alongar e liberar o corpo das tensões, porém as indicações são para
que os exercícios sejam realizados anterior à fonação. Enquanto autores como
Chemg (1999), Chan e Cruz (2001), Jordan (2005), Leck (2009), Simões (2012),
Rheinboldt (2018), utilizam de gestos corporais associados aos exercícios vocais
com objetivos distintos que exploram desde aspectos técnicos vocais como:
colocação vocal/ressonância, leveza, condução frasal, gestos corporais que vão
de encontro ao desenvolvimento cognitivo e estabelecem relação interpessoal
privilegiando a interação social, a lateralidade, o desenvolvimento rítmico,
a coordenação motora, a comunicação e a expressividade; movimentos que
favorecem a memorização do texto, a percussão corporal.
A partir do trabalho de Simões (2019) foi proposto para a pedagogia
vocal coral do Canarinhos de Itabirito que os coralistas realizassem práticas
musicorporais, ou seja, utilizassem de gestos corporais, movimentos, postu-
ras e posições baseadas em abordagens corporais holísticas, realizadas em
conjunto aos exercícios vocais, com o intuito de minimizar os problemas de
ordem psicofísica4 dos cantores coralistas e solistas e consequentemente, favo-
recer a propriocepção para o processo do ensino e aprendizagem de aspectos
relevantes para o canto, como a técnica vocal.
Neste capítulo, o que propomos é apresentar um caminho por meio das
práticas musicorporais para a ampliação do repertório didático de prepara-
dores vocais, maestros e cantores. A maioria das práticas musicorporais que
serão descritas neste capítulo foram desenvolvidas durante o doutorado em
Educação Musical da primeira autora, realizado na Universidade Federal de
Minas Geais, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). As práticas foram fundamentadas teoricamente
nas seguintes abordagens corporais holísticas: a Técnica Alexander, a Bioe-
nergética e o Tai Chi Chuan, que também serão descritas neste capítulo.

Práticas musicorporais

As práticas musicorporais foram estratégias pedagógicas desenvolvidas


por Simões (2019) que unem movimentos, posturas e posições corporais,
embasadas em abordagens corporais holísticas aos exercícios vocais e voca-
lises com o objetivo de minimizar os problemas psicofísicos dos cantores.
O termo musicorporal foi referenciado pela primeira vez por Santiago
(2008) advindo da palavra musicorporeidade, em que música e corporeidade
autodefinem o termo (SIMÕES; PENIDO, 2017, p. 340). Para Santiago
(2015, p. 98), a musicorporeidade representa:

4 O termo psicofísico refere-se às atitudes mentais, emocionais e corporais.


54

[...] uma vivência holística, que integra o fazer musical e o corpo, consi-
derando, desta forma, que ambos formam uma única entidade, agente das
ações que se apresentam à realização. Vivências musicorporais favorecem
a construção das experiências musicais envolvendo todos os aspectos da
corporeidade do indivíduo (sensoriais, emocionais, mentais, dentre outros)
em conexão com o contexto ao redor (SANTIAGO, 2015, p. 98).

A terminologia musicorporal, adotada neste capítulo, compartilha dos


mesmos princípios ressaltados por Santiago, que em suas pedagogias integra o
corpo psicofísico à prática musical (SIMÕES, 2019; SANTIAGO, 2006; 2008;
2017; PALMEIRA; SANTIAGO, 2016). Desse modo, a ação musicorporal
contempla o uso do ser psicofísico, ou seja, a maneira pela qual um indivíduo
“usa conscientemente” a si mesmo em diferentes atividades.
O que distingue as práticas musicorporais de gestos corporais realizados
em consonância ao exercício vocal ou vocalise é, de fato, a funcionalidade e
finalidade de cada movimento, postura ou posição escolhidos. Para a criação
das práticas musicorporais que serão descritas neste capítulo foram utilizadas
as bases teóricas e adaptações de movimentos, posturas e posições da Técnica
Alexander, Bioenergética, do Tai Chi Chuan e houve uma associação entre o
exercício vocal ou vocalise proposto e o movimento que poderia ser realizado
para otimizar os aspectos técnicos vocais e atuar em determinados proble-
mas psicofísicos. Nesse sentido, a partir de ações práticas musicorporais, o
cantor tem a possibilidade de despertar a sua consciência para as sensações
dos movimentos que ocorrem internamente e externamente em seu corpo,
ativando a propriocepção durante a produção sonora e trabalhando de forma
mais coordenada.

Bases teóricas: a Técnica Alexander, a Bioenergética e o Tai


Chi Chuan

Técnica Alexander

A Técnica Alexander foi desenvolvida no início do século XX por Frede-


rick Mathias Alexander (1869-1955), ator australiano que passava por constan-
tes problemas vocais como rouquidão e problemas respiratórios, como tensão
inspiratória, associada à inspiração sonora ruidosa e à respiração ofegante.
Após um recital, Alexander sofreu perda vocal e ao procurar ajuda médica
foi constatado que não havia nada errado com seu instrumento vocal. Como
tratamento, era indicado o repouso vocal, fato que o impedia de exercer sua
profissão. Ainda que paliativo, o repouso vocal era o único recurso que resul-
tava positivamente para a restauração de sua voz (SANTIAGO, 2017, p. 136).
No entanto, ao invés de abandonar a carreira de declamador, Alexander
insistiu em buscar outros caminhos, posições e atitudes corporais que auxiliassem
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 55

no processo de sua cura. Após, sistematicamente, observar seu próprio corpo


durante a performance, com o auxílio de vários espelhos à sua volta, Alexander
identificou padrões inadequados em seu comportamento corporal, sobretudo
na região da cabeça e do pescoço, uma vez que projetava a cabeça para trás e
para baixo, comprimindo as pregas vocais e resultando em uma débil produção
sonora. Essa auto-observação contribuiu para uma revisão consciente do uso
de seu organismo psicofísico – que pode ser compreendido como a unidade
corpo-mente, e o levou à conclusão de que eram esses padrões que influencia-
vam negativamente a produção sonora, deixando-o constantemente afônico e
com dores no corpo (SANTIAGO, 2017, p. 136-137; BORGES, 2010, p. 2).
A auto-observação, assim como ações conscientes de atitude mental ativa,
levaram a uma mudança em seu uso corporal e possibilitaram a Alexander
alcançar melhor coordenação de seu organismo como um todo, permitindo que
os membros se posicionassem “naturalmente para uma sensação de liberdade e
conforto dos movimentos” (ALKIMIM, 2017, p. 5), prevenindo o desequilíbrio
muscular, reduzindo as compensações corporais e, consequentemente, otimi-
zando a produção vocal, o que o fez desenvolver a partir de então, seu método.
Em sua tese, Simões (2019, p. 56) traz um quadro de síntese com os prin-
cipais fundamentos da Técnica Alexander que foram utilizadas para a criação
das práticas musicorporais que serão descritas nesse capítulo, conforme segue:

Quadro 2 – Síntese dos fundamentos da Técnica


Alexander que nortearam a criação das práticas
FUNDAMENTOS DA TÉCNICA
PREMISSAS
ALEXANDER

Relacionar conscientemente a postura, equilíbrio e redução da tensão muscular com


Controle primário. foco na relação cabeça, pescoço e tronco, na busca constante pela leveza e liberdade
dos movimentos do corpo, utilizando o menor gasto de energia possível

Perceber sensorialmente o seu organismo como um todo.


Perceber os hábitos nocivos de uso do organismo.
Uso de si mesmo – hábitos e
Desenvolver a consciência sobre o funcionamento do organismo em ação, ativando
desábitos.
a percepção de si e abrindo caminhos para a mudança de hábitos, minimizando os
hábitos nocivos ao funcionamento do ser.

Compreender que a percepção sobre si mesmo tende a ser enganosa, uma vez que
Percepção sensorial enganosa.
está associada aos hábitos de uso.

Dar mais importância ao modo pelo qual realizamos a ação e não ao resultado final.
Melos pelos quais.
É pensar em atividade.

Inibir reflexos habituais e Recusar ação imediata em resposta a um estímulo.


estereotipados. Interromper maus hábitos corporais.

Direção de uso consciente. Direcionar o pensamento que antecede e acompanha toda ação muscular.

Fonte: SIMÕES, 2019, p. 56.


56

Bioenergética

A terapia Bioenergética ou Análise Bioenergética, é uma técnica corpo-


ral sistematizada na década de 1950 pelo psicanalista americano Alexander
Lowen (1910-2008) e pelo psiquiatra greco-estadunidense John Pierrakos
(1921-2001), baseada nos princípios da terapia psicanalista do austríaco Wil-
liam Reich (1897-1957).
Os criadores da Bioenergética não se limitaram a querer compreender
somente o lado psicológigo e individual dos pacientes, eles queriam se descobrir,
encontrar a sua própria personalidade e auxiliar seus pacientes a se desvenda-
rem para compreender as relações que o ser humano realiza com o mundo, a
sociedade e a natureza. Deste modo, a partir da observação e exploração de seus
próprios corpos, descobriram que é possível liberar as tensões corporais a partir
do trabalho respiratório e de posturas e movimentos que realizam o desbloqueio
energético corporal e promovem maior vibração para a circulação de energia por
todo o corpo. Os exercícios corporais que embasam as práticas musicorporais
descritas adiante neste capítulo têm origem no trabalho de Alexander Lowen e
sua esposa Leslie Lowen (LOWEN; LOWEN, 1985). Abaixo, apresentamos um
quadro de síntese sobre os princípios da Bionergética que embasam as práticas
musicorporais apresentadas nesse capítulo:

Quadro 3 – Quadro de síntese com os princípios da Bioenergética


FUNDAMENTOS DA BIOENERGÉTICA PREMISSAS
Considerar que o corpo e a mente são uma unidade, não existe
Corpo e Mente funcionalmente idênticos.
separação. O que ocorre no corpo reflete na mente e vice-versa.
Efetuar a carga, a distribuição para todo o corpo e a descarga
energética, para uma fluidez energética e uma vida saudável é
Equilíbrio energético. necessário, Um dos grandes responsáveis pela carga energética é
a respiração enquanto a descarga é realizada por ações cotidianas,
como andar, falar, pensar e se movimentar.
Respirar: a respiração é a base para qualquer processo
da Bioenergética seja para os exercícios corporais, para o
Técnicas Corporais: Respiração.
autoconhecimento, para a auto expressão ou ainda para a recarga
energética. A respiração deve acontecer lenta e profundamente.
Estabelecer um contato dinâmico com o chão. Sentir-se sólido, preso
Técnicas Corporais: Grounding (enraizamento). ao chão e conduz ao contato com a realidade e dá maior segurança
e estabilidade emocional.
Realizar a troca energética através do toque de outra pessoa. A
massagem pode ser realizada também de maneira individual onde
Técnicas Corporais: Massagens ou Toques.
são aplicados uma leve pressão, com o objetivo de desbloquear as
tensões corporais.

Fonte: SIMÕES, 2019, p. 93.


CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 57

Tai Chi Chuan

O Tai Chi Chuan é uma técnica oriental milenar, originada na China,


que visa equilibrar o organismo e dar fluência à energia vital. Na composição
etimológica da palavra temos Tai – supremo, o mais alto, absoluto; Chi – a
parte mais alta do telhado (cumeeira); Chuan – punhos, indicando um estado
supremo de conotação filosófica que remete a uma elevação ou superioridade
do estado do ser, tanto físico, quanto emocional e mental.
O Tai Chi Chuan é praticado em quatro estilos: Chen, Yang, Wu e Sun. Os
estilos levam o nome das famílias que adaptaram as técnicas. Nesta pesquisa,
como adaptamos as movimentações para serem utilizadas com o canto, não
adotamos nenhuma sequência de exercícios que preconizasse um único estilo
de Tai Chi Chuan. No entanto, houve uma preferência por movimentos do estilo
Yang por serem mais lentos, suaves, grandes e, portanto, com maior potencial
para serem realizados em conjunto com o canto. Também foram selecionados
movimentos do Chi Kung, um dos desdobramentos do Tai Chi Chuan e que
tem como objetivo trabalhar a respiração, o alongamento, a flexibilidade, o
fortalecimento de todo o corpo, a coordenação e a consciência corporal.
Abaixo, apresentamos o quadro de síntese dos fundamentos do Tai Chi
Chuan que norteiam algumas práticas apresentadas neste capítulo:

Quadro 4 – Síntese dos fundamentos do Tai Chi Chuan


FUNDAMENTOS DO TAI CHI CHUAN PREMISSAS

Relacionar conscientemente os segmentos corporais a fim de alcançar um


alinhamento corporal para uma postura ereta e sem compressões, com uma
base sólida composta por pés enraizados e joelhos flexionados; com o quadril
flexível para movimentações; com o tronco e costas alongados e alinhados;
Postura Corporal.
com a cabeça e pescoço alinhados e sustentados para cima.
Trabalhar a postura para o equilíbrio nas transferências de peso de uma
perna à outra, para a redução da tensão muscular com foco no relaxamento,
na respiração e na circulação de energia.

Compreender as polaridades opostas que regem o nosso organismo e a


natureza na busca pelo equilíbrio.
Yin-Yang.
Realizar a conexão entre céu e a terra auxiliando no entendimento e no
equilíbrio do corpo.

Considerar que a mente comanda o organismo.


Considerar que o foco do pensamento está na respiração, no relaxamento
corporal, no Tan Tien e em manter uma mente tranquila auxilia na produção
Mente/Consciência.
e circulação da nossa energia vital - Chi.
Realizar as práticas com a consciência e não com a força bruta.
Lembrar que a mente auxilia no desbloqueio das tensões.

Proceder com inspiração lenta e profunda utilizando toda a capacidade respiratória.


Respiração.
Focar na inspiração no baixo ventre e a região abdominal.

Fonte: SIMÕES, 2019, p. 71-72.


58

Em Simões (2019) foram descritas oito práticas musicorporais conside-


radas muito satisfatórias dentro da escala de: insatisfatória, pouco satisfatória,
satisfatória e muito satisfatória. Das oito práticas musicorporais, optamos por
trazer três para este capítulo, com o intuito de ampliar o repertório didático e as
possibilidades pedagógicas para os preparadores vocais, regentes e coralistas.
A proposta é despertar a consciência corporal ativa aplicada ao ato do canto,
minimizando assim os problemas psicofísicos dos cantores.

Prática musicorporal “Leveza do Ser”

A prática musicorporal “Leveza do ser” consiste em enviar um comando


para o cérebro e permitir que o pescoço esteja livre, leve e solto enquanto a cabeça
se movimenta lentamente até o limite confortável de um lado para o outro, como
se fizéssemos um pequeno movimento de negação com a cabeça (Figura 1).
Comece alinhando o corpo e deixando os pés ligeiramente afastados,
joelhos semiflexionados. Com a cabeça fazendo o movimento descrito acima
repetindo a frase em voz alta: “eu permito que o meu pescoço se solte”, “eu
permito que meu pescoço esteja livre”, “eu permito que o meu corpo se ali-
nhe”. Após algumas repetições conscientes efetuar a troca das frases por uma
melodia simples, como por exemplo, a melodia da Figura 2; com vibração
sonorizada, que pode ser executada em quatro modos, alternados a cada modu-
lação de tonalidade: 1) vibração de lábios; 2) vibração de língua com lábio
em U; 3) vibração de língua com a bochecha inflada de ar; 4) vibração em
Raspberry com a língua para fora, por cima dos dentes e lábios. Caso o aluno
apresente dificuldades em realizar algum dos modos de vibração, é possível,
inicialmente, realizar toda a prática com apenas um modo de vibração – a que
o cantor consiga realizar sem esforço.

Figura 1 – Movimento com a cabeça enquanto se verbaliza,


ou mentaliza a frase para soltura do pescoço

Fonte: O autor, 2022.


CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 59

Figura 2 – Possibilidade de melodia para a execução


dos modos vibratórios sonorizados

Fonte: O autor, 2022.

A proposta de falar as frases em voz alta, dando permissão para o pes-


coço se soltar, foi embasada na Técnica Alexander, no princípio do controle
primordial e do direcionamento, e também na Bioenergética, onde verbalizar
em voz alta é parte do processo para a soltura das tensões musculares que
vamos acumulando ao longo da vida. Sobre o ponto de vista técnico vocal,
os exercícios de vibração promovem: uma maior mobilidade das mucosas
da prega vocal, massagem e vibração de todo o esqueleto laríngeo, propi-
ciando relaxamento e reduzindo o esforço fonatório, a ampliação do controle
e da firmeza glótica e a amplitude da cavidade orofaríngea. Corporalmente, o
movimento auxilia na soltura das musculaturas do pescoço e no alinhamento
consciente entre pescoço, tronco e cabeça. Movendo a cabeça de um lado
para o outro existe uma tendência de alinhar o padrão vibratório das pregas
vocais, caso o cantor apresente padrão de vibração interno maior de um lado
do que do outro5. Em consonância ao movimento corporal, o exercício vocal
permite que você identifique questões relacionadas ao fluxo do ar e vá criando
relações entre a fonação e o alinhamento postural a partir das sensações de
facilidade e dificuldade de emissão sonora.
Os coralistas participantes desse estudo relataram após a prática perceber
melhor os padrões físicos inadequados como a projeção do pescoço, tensão
nos ombros e relataram sentir maior leveza e soltura na região do pescoço e
dos ombros.

Prática musicorporal “Cantar da terra ao céu”

A prática musicorporal “Cantar da terra ao céu” consiste em inspirar


lentamente e profundo com movimento de mãos postas da pélvis até o topo
da cabeça, soltar todo o ar com “TS” e em seguida formar com as mãos uma
bola imaginária de energia à frente do umbigo e entoar o exercício vocal

5 Essa alteração é comum e pode ser vista em exames de videolaringoscopia. Uma das causas é ser um
movimento compensatório em quem apresenta problemas de desvios posturais ou outros padrões que
envolvam o desalinhamento da cabeça, pescoço e ombros.
60

da figura 3 enquanto as mãos se afastam uma para cima, outra para baixo,
conforme a figura 4.

Figura 3 – Melodia para execução da prática Cantar da Terra ao Céu

Fonte: O autor, 2022.

Figura 4 – Sequência do movimento Cantar da terra ao céu: Inspire


elevando os braços, solte o ar abrindo e descendo os braços, cante
a melodia afastando os braços para cima e para baixo

Fonte: O autor, 2022.

Inspirar lentamente traz maior consciência e conexão com o nosso inte-


rior, como proposto nas práticas do Tai Chi Chuan e da Bioenergética. Para
realizar o movimento de descer os braços, propusemos uma expiração com
“Tssssss”, também lenta e sincronizada com o movimento de abaixar os bra-
ços, controlando a pressão do ar para que a sua saída seja homogênea e logo
em seguida, ao cantar o texto do exercício vocal, o ataque sonoro fosse sua-
vizado, com uma maior coaptação glótica, porém de forma suave.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 61

O movimento corporal foi embasado nas posições “prazer em estar vivo”


da Bioenergética e no movimento “empurrar terra e céu” proveniente do Tai
Chi Chuan. Corporalmente, o movimento criado para esta prática musicorpo-
ral contribui para o alongamento da coluna vertebral e a descompressão do
colapso abdominal. A movimentação auxilia na propriocepção da musculatura
da parede abdominal e dos intercostais e da cintura pélvica responsáveis pela
respiração e apoio vocal, além de distribuir a energia vital por todo o corpo.
No que tange à técnica vocal, o movimento auxilia na condução da
colocação sonora (ressonância alta), auxilia no fluxo aéreo transglótico, na
condução frasal em legato, na suavização do ataque vocal. Há ainda a possi-
bilidade de o exercício ser realizado em cânone, trazendo benefícios também
para o desenvolvimento do ouvido harmônico e oferecendo segurança para o
coralista cantar fora do “naipe” ou mesmo sozinho.

Prática musicorporal “Enraizar e encher”


A prática musicorporal “Enraizar e encher” é composta por várias etapas.
Para este capítulo optamos por trazer somente uma das etapas, que consiste
em se manter conectado ao chão com o maior contato possível dos pés e
dedos no chão, joelhos flexíveis, mãos segurando as costelas e fazer uma
rotação do pescoço em cinco etapas: 1) deixar a cabeça cair, sem colapsar o
abdômen, olhar internamente para os seus sentimentos e sensações buscando
se conectar com o emocional do momento; 2) inspirar enquanto rotaciona
a cabeça até o ombro direito; 3) soltar o som do sentimento rotacionando a
cabeça para trás; 4) inspirar novamente rotacionando a cabeça até o ombro
esquerdo 5) novamente soltar o som do sentimento retornando a cabeça para
a postura inicial de queixo no peito (Figura 5).

Figura 5 – Sequência do movimento para ser realizado em


consonância com a respiração e a sonorização do sentimento

Fonte: O autor, 2022.

Fazer contato com seus sentimentos e emoções, entender o que está aconte-
cendo com sua mente, aceitar e libertar em formato de som o que está sentindo,
62

seja positivo ou negativo, traz maior liberdade e sensação de soltura/alívio. Caso


o aluno tenha dificuldade em acessar seus próprios sentimentos, o professor
pode guiá-lo por meio da fala verbal de sentimentos, trocar os sentimentos por
bocejo nas vocais ou mesmo sons que lembrem a sensação de alívio. Esta etapa
foi fundamentada na prática da Bioenergética. A rotação do pescoço, embora
seja uma prática recorrente, pode ser desconfortável para certos cantores. O
exercício é extremamente importante, uma vez que a sustentação da laringe se
dá pelos músculos extrínsecos da laringe e do osso hioide, e caso haja excesso
de tensão nesta região do pescoço, a flexibilidade laríngea para a movimenta-
ção das pregas vocais será comprometida. Por isso, acrescentei a postura de
segurar as costelas para dar maior estabilidade ao movimento e trazer um maior
conforto aos cantores. Essa postura foi embasada na minha autopercepção a
partir de uma prática da Técnica Alexander. O movimento traz uma soltura e
relaxamento para pescoço, músculos da face, maxilar, laringe, língua. Outra
variação possível é realizar o exercício com a rotação de ombros, o que pode
trazer soltura e relaxamento para a região dos braços e ombros.
Considerando o ponto de vista técnico vocal, esse exercício trabalha a
conexão corpo-mente-som, e conduz a um processo de inspiração e expiração
consciente e coordenado. Auxilia também na diminuição das pressões sub-
glóticas e supraglóticas. Quando realizado com sons de alívio, como os do
bocejo, por exemplo, traz ainda uma expansão da cavidade oral – orofaringe,
mobilidade do palato e auxilia na projeção vocal.

Considerações finais

O cuidado com o instrumento do cantor é essencial, assim como com-


preender que a voz é somente uma resultante de todos os processos físicos
corporais, mentais e emocionais que habitam em nós. Entender o cantor
coralista ou solista como um ser psicofísico trará novas possibilidades e
ferramentas pedagógicas para que os preparadores vocais e regentes atuem.
As práticas musicorporais apresentadas são um caminho eficaz para a minimi-
zação de problemas psicofísicos que os cantores apresentam, mas, sobretudo,
são alerta para que os preparadores vocais, regentes e cantores se atentem para
os fatores emocionais, padrões mentais e padrões deletérios ao uso do corpo
que trazem malefícios para a saúde, comprometem o bem-estar e a qualidade
de produção e emissão sonora. Através da consciência e do desenvolvimento
da propriocepção que as práticas musicorporais proporcionam aos cantores,
foram relatadas após as práticas dos coralistas do Canarinhos de Itabirito,
uma maior sensação de liberdade, autonomia e confiança para cantar, uma
vez que os cantores tiveram a oportunidade de aprender a utilizar de forma
eficaz o seu instrumento.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 63

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CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
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Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, 2011.
DANDO CORPO À VOZ:
educação somática nas práticas vocais coletivas
Simone Sousa1

Contextualização

Inicio esse texto contando de onde parte a história que ele conta. A
história de um longo caminho, percurso de descobertas, encontros e per-
das. Ela começa com meu primeiro encontro com um coro, o Coral Infantil
do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno em Fortaleza, no Ceará.
Depois dessa primeira experiência, o canto coral guiou meu caminho como
profissional de música – cantei em coro ao longo de toda a minha graduação
e comecei a reger antes ainda de concluí-la.
Subi em um palco pela primeira vez sem estar em um coral ainda na gra-
duação, com o Cinco em Ponto, um grupo vocal formado por cinco cantoras.
A exposição inédita que experimentei naquele momento tornou evidente um
corpo que até então eu não tinha notado que estava à mostra para a plateia.
Nessa experiência descobri que a imagem que eu tinha de mim mesma no
palco era muito diferente daquela presenciada por quem estava na plateia. Por
exemplo: por mais que eu tentasse me movimentar no palco, sempre ouvia
das pessoas que assistiam as apresentações do grupo que eu precisava me
“mexer” mais. Ouvia também que meus ombros “subiam” quando eu cantava.
Além disso, quando os shows começaram a ser mais frequentes, percebi que
sempre saía do palco com muita dor nas costas.
Na tentativa de compreender esse “recém-descoberto” corpo, ingres-
sei, em uma segunda graduação em Artes Cênicas (a primeira tinha sido em
Música). Embora este tenha sido um período de muito aprendizado e descober-
tas com relação ao meu corpo, eu já era, naquele momento, além de cantora,
professora de canto e regente de corais, o que acrescentou às questões que me
levaram às Artes Cênicas outras relacionadas ao corpo dos meus alunos ou
cantores coralistas. Ainda nesse caminho de investigação, ingressei no Mes-
trado em Educação, interessada em pesquisar, dentro de um grupo coral que
tivesse um trabalho cênico além do musical, como este grupo desenvolvia este
trabalho que precisava olhar para o corpo na preparação vocal; quais seriam

1 Regente, cantora e pesquisadora, doutora em Música pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Professora de Canto Coral e Técnica Vocal no curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal
do Ceará. Educadora somática com formação em Antiginástica, Método Bertazzo e Método GDS de Cadeias
Musculares e Articulares.
68

as dificuldades enfrentadas neste processo; e quais seriam as percepções das


pessoas envolvidas com relação ao trabalho (SOUSA, 2011).
Entre as descobertas da pesquisa, destaco alguns pontos relevantes para
este caminho. O primeiro foi a fala de um dos preparadores vocais do coral,
que observou que quando o aquecimento vocal acontecia depois do aque-
cimento corporal, o grupo parecia estar mais disponível sonoramente, e o
resultado sonoro que ele buscava era alcançado mais rapidamente e mais facil-
mente do que se a ordem dos aquecimentos fosse diferente. Outro ponto foi a
declaração de um dos regentes, de acordo com o qual a sonoridade conquistada
pelo grupo nos ensaios de repertório musical era perdida quando se colocavam
os corpos em cena, numa perda de organicidade2 que era recuperada ao se
iniciarem os ensaios nos quais canto e movimento não estavam separados. No
grupo pesquisado, havia momentos separados para o trabalho de voz e para
o trabalho de corpo. Apenas quando se aproximava a estreia do espetáculo,
iniciavam os ensaios nos quais as canções eram enfim colocadas em cena.
Com todas essas questões em mente, encerrei a pesquisa desenvolvida
no mestrado com mais interrogações do que afirmações. Então voltei ao que
compreendo ter sido a maior descoberta que fiz na graduação em Artes Cêni-
cas: a Educação Somática. Iniciei meu caminho pela somática com um livro
de Thérèse Bertherat, criadora da Antiginástica, escrito em parceria com a
jornalista Carol Bernstein, e no qual se descreve como Bertherat desenvolveu
sua prática de trabalho corporal (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1977). Na
introdução, as autoras afirmam que o corpo é uma casa na qual não moramos.
Somos os únicos proprietários, mas perdemos as chaves há muito tempo.
Ficamos de fora, olhando a fachada, mas sem nela morarmos (BERTHERAT;
BERNSTEIN, 1977). As histórias contadas no livro, os lugares alcançados
por Thérèse Bertherat e seus alunos, e os movimentos sugeridos no livro, me
deram uma pista de que aquele poderia ser um caminho a seguir em minha
investigação de corpo e voz cantada, e assim iniciei um longo processo de
formação profissional de três anos para a prática.
No entanto, antes ainda de receber o certificado que me autorizava a ser
profissional de Antiginástica, eu já incluía movimentos da prática nas aulas
de técnica vocal e nos ensaios dos corais que eu regia. Eu já tinha observado
em mim mais consciência de como o meu corpo cantava, o que se movimen-
tava ou o que era ativado nele quando eu estava cantando, e como isso tudo
influenciava a cor e a projeção da minha voz e minha atuação vocal. Comecei
a observar também que os movimentos, quando experienciados na preparação
vocal, ajudavam meus alunos a entender e realizar ajustes relativos à técnica

2 Termo que aqui deve ser entendido como a qualidade de um corpo fluido em cena, no qual corpo e voz
estejam realmente integrados, nenhum desses dificultando ou inibindo o trabalho do outro.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 69

vocal de maneira mais fácil e rápida. Percebi que os trabalhos de corpo com os
corais eram mais tranquilos e fáceis, e que as reclamações de cansaço ou dor
nesses trabalhos diminuíam bastante. Comecei a pensar como poderia usar os
movimentos, materiais, princípios e procedimentos de uma sessão de Antigi-
nástica para conduzir minhas aulas. As experiências realizadas me levaram à
ideia de como seria estruturar uma aula prática sobre aspectos específicos de
técnica vocal que envolvesse o corpo por inteiro, não apenas a musculatura
vocal e respiratória (que se costuma resumir ao diafragma e intercostais);
que utilizasse movimentos como suporte para o canto; que possibilitasse à
cantora e ao cantor entender que tudo o que envolve seu corpo tem influência
direta e real sobre sua voz, inclusive aspectos que costumam ser vistos como
distantes, como o modo como o pé se apoia no chão ou a posição do joelho.

Educação somática e canto coral

Tendo entrado em contato com a somática pelo trabalho de Thérèse Ber-


therat, tive a oportunidade de conhecer, experienciar e estudar outras práticas
somáticas. Essas práticas proporcionaram outras ideias, abriram caminhos dife-
rentes e trouxeram novas contribuições para minha busca no sentido de possi-
bilitar a cantoras e cantores coralistas aprendizes reconhecer o próprio corpo
como seu instrumento; reconhecer sua voz como corpo, um corpo que opera
como unidade; e, a partir daí, ser capaz de se expressar por meio de sua voz.
O termo Somática foi proposto por Thomas Hanna em 1976 como uma
reinterpretação da palavra grega soma. O autor estabelece uma diferença entre
corpo e soma a partir do modo de percepção da estrutura.

Somática é o campo que estuda o soma: a saber, o corpo como percebido


de dentro pela percepção de primeira pessoa. Quando um ser humano é
observado de fora – isto é, do ponto de vista de uma terceira pessoa – o
fenômeno de um corpo humano é percebido. Mas, quando esse mesmo
ser humano é observado do ponto de vista da própria pessoa, a partir de
seus sentidos proprioceptivos, um fenômeno categoricamente diferente é
percebido: o soma humano3 (HANNA, 1986, n. p.).

Adoto aqui a expressão Educação Somática, mais usualmente dirigida


à prática, na acepção proposta por Sylvie Fortin (1999, p. 40) em artigo tra-
duzido para o português, primeira publicação da área no Brasil: conjunto de
práticas corporais alternativas que propõem uma visão do corpo na qual as
estruturas orgânicas nunca estão separadas de suas histórias pulsional, imagi-
nária e simbólica. Embora não se apoiem nos mesmos princípios, as práticas
3 Todas as traduções aqui apresentadas foram realizadas por mim. O grifo é do autor.
70

consideradas somáticas têm em comum a ideia de um corpo único e indivisí-


vel, sem as tradicionais fragmentações a ele impostas; teorias do movimento
embasadas em conhecimentos de caráter científico; e prática alicerçada na
ideia de que a mudança das estruturas corporais e psicomotoras aconteceria
pela consciência de si.
Tendo em vista o que já foi apresentado, e refletindo sobre o trabalho
de preparação vocal de coralistas, compreendo que esse trabalho não deveria
ser exclusivamente, como é de hábito, o treinamento físico que lida especifi-
camente com a emissão vocal e os órgãos do corpo diretamente relacionados
a ela. Ao contrário, deveria observar que canto é corpo em movimento e que
a voz parte de um corpo que precisa ser vivenciado integralmente. Assim,
essa preparação deveria ser pensada como um trabalho a partir e por meio do
corpo de quem canta, considerado como unidade psicofísica que inclui a voz
que o expressa, conectada com suas sensações e emoções.
Nesse contexto, sugiro a Educação Somática como base para a construção
de uma proposta de preparação vocal que considere cantoras e cantores coralistas
como pessoas que têm uma voz, dentro de um corpo onde tudo está integrado,
e que podem, a partir daí, com sua voz e seu corpo próprios, serem capazes de
se expressar. Apoiada nesse pensamento, desenvolvi uma proposta que aqui
apresento, que entende o corpo dos coralistas como unidade psicofísica4, e se
estrutura a partir de quatro práticas somáticas: a Antiginástica de Thérèse Berthe-
rat, o Método GDS de Cadeias Musculares e Articulares, o Método Bertazzo e a
Técnica de Alexander (SOUSA, 2021, p. 54). Apresento agora mais detalhada-
mente os princípios que guiam esta proposta, bem como a estrutura do trabalho.

Elementos estruturantes da proposta

Para organizar o trabalho de preparação vocal, proponho alguns termos:


movimentos (em lugar de exercícios, para evitar remeter a algo repetido sem
consciência); ao conjunto de movimentos orientados ao redor de uma região
do corpo, chamo componentes; e ao conjunto de componentes sugeridos em
cada encontro para um objetivo, sequências.
Sugiro dois momentos de atenção direcionada ao próprio corpo em relação
ao ato de cantar. O primeiro, no início do trabalho, logo após um pequeno trecho
do repertório, ou uma pequena canção aprendida para este momento, no encontro
anterior. O segundo logo após a preparação vocal e antes que inicie o aprendizado
de uma nova canção ou trecho. Nesse momento eu peço aos participantes que

4 Com essa expressão refiro-me à ideia de que o corpo coordena suas funções fisiológicas elementares em
estreita relação com suas funções mais complexas (como imaginação, percepção, emoção e ação). Ou seja,
as dimensões corporal, emocional e psicológica estão inter-relacionadas e interligadas no funcionamento
e comportamento de uma pessoa.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 71

tentem lembrar de suas impressões da primeira vez que cantaram, e observem se


lhes pareceu igual ou diferente (sempre utilizando as duas palavras, na tentativa
de evitar sugestões de direcionamento nas respostas). Acredito ser importante
enfatizar que não é necessário haver diferença entre os dois momentos.
Quanto à estrutura da proposta, penso a preparação vocal como um cami-
nho no qual os coralistas possam vivenciar várias possibilidades de expressão
e sonoridade vocal. Para isso, o trabalho é constituído por três ciclos que se
organizam em torno de quatro objetivos principais: POSTURA (organização
do corpo em equilíbrio estático); RESPIRAÇÃO (possibilidades de conscien-
tização da respiração em movimento); VOCALIZAÇÃO (transformação do
sopro em som) e REPERTÓRIO (experienciação do que foi vivenciado em
canção). Portanto, dentro de cada ciclo, os primeiros encontros são voltados
para o trabalho de reconhecimento e organização do corpo; os seguintes,
para a conscientização e liberação da respiração; em seguida para questões
relacionadas a aspectos de técnica vocal que naquele momento se mostrem
mais importantes dentro das dificuldades apresentadas pelo grupo; e logo
após estes, o trabalho com o repertório tem mais destaque. Cada objetivo
está presente em todos os encontros, mas a organização dos componentes de
cada encontro em particular tem um desses temas como objetivo principal.

Figura 1 – Modelo de organização de cada ciclo

POSTURA RESPIRAÇÃO

REPERTÓRIO VOCALIZAÇÃO

Fonte: Elaborado pela autora.

Além disso, cada um dos três ciclos se organiza em torno de uma


ideia de posicionamento individual e relação com o grupo: no primeiro,
a condução do trabalho é mais voltada para movimentos principalmente
72

realizados no solo, com os participantes deitados no chão e com mais ênfase


nas descobertas pessoais e individuais; no segundo, começa-se a experien-
ciar a posição sentada, no chão ou em cadeiras, com movimentos pensados
para favorecer interações entre os participantes em duplas ou em pequenos
grupos; no terceiro e último ciclo, a maioria dos movimentos é realizada na
posição em pé, com mais interações do grupo como um todo. A exemplo
da organização dos ciclos em objetivos, cada uma das posições (deitados,
sentados e de pé) e interações (individual, em duplas ou no grupo inteiro)
deve estar presente em todos os encontros; no entanto, cada pequeno ciclo
tem um interesse e ênfase maior em cada uma dessas possibilidades, como
ilustra o modelo da Figura 2.

Figura 2 – Modelo do processo de evolução da posição


de trabalho ao longo dos encontros

DEITADOS

SENTADOS

EM PÉ

Fonte: Elaborado pela autora.

Assim, todos os objetivos (postura, respiração, vocalização e repertório) e


possibilidades de posições e interações (deitados, sentados, em pé; individual,
em duplas, em grupo) estão organizados em uma direção: um caminho de
construção da verticalidade e descoberta do coletivo (no caso da organização de
posicionamento e interação com o grupo), com base nas práticas somáticas que
fundamentaram a construção dos roteiros, notadamente o Método Bertazzo, a
Antiginástica e o Método GDS; e à estrutura comum em aulas de técnica vocal,
aquecimentos vocais ou preparação vocal de corais (no caso dos três ciclos).
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 73

Por fim, sugiro como vocalises, explorações sonoras guiadas, criação


sonora e improviso, para provocar a percepção da relação da sonoridade
criada com posições ou movimentos de corpo; e exercícios construídos como
pequenas canções, como forma de entender melodicamente o que foi traba-
lhado sonoramente. Esses últimos têm o objetivo de introduzir um aspecto
vocal específico e relevante ao trabalho com corais: a unidade. Enquanto
as explorações sonoras trazem um elemento fundamentalmente individual,
de descoberta do próprio som vocal, os vocalises têm consigo o aspecto da
integração com as vozes dos outros.

Princípios

Detalho aqui os princípios que me guiam nesta proposta de preparação


vocal fundamentada na Educação Somática. Estes princípios podem ser con-
siderados requisitos fundamentais para a prática que aqui proponho.

Aprendizado pela vivência

A Somática propõe ao praticante a vivência de uma organização cor-


pórea mais global e equilibrada, e por isso mesmo mais funcional do que o
habitualmente experienciado. Para isso, o aprendizado é sempre vivenciado
em contexto de experienciação – a experiência subjetiva do praticante é a
própria fonte de conhecimento. É necessário passar pela experiência da prá-
tica para que se possa compreendê-la e tomar contato com as sensações do
próprio corpo, e com o aprendizado que estes proporcionam. Por este motivo,
algumas práticas somáticas exigem que o candidato a profissional as tenha
vivenciado como praticante.
No livro Singing With Your Whole Self, em que aliam técnica vocal e o
Método Feldenkrais, Nelson e Blades-Zeller descrevem o caminho de uma
observação até se transformar em “afirmação irrefutável”.

Um professor de voz perspicaz (como Garcia II, Marchesi, Vennard)


observa de perto o cantor natural em ação.
O professor observa a produção vocal e a relata por meio de descrição escrita –
por exemplo: “Quando A canta, a parede posterior da faringe fica ampla e larga,
com o véu palatino (palato mole) alto, resultando em um som rico e cheio”.
Um leitor do relato pensa: “Ah! Para ter um som rico e cheio, tenho que
ter certeza de que meu palato mole está elevado”.
O mesmo leitor instrui um aluno: “Eleve o palato mole!” O aluno tenta
obedientemente elevar a parede posterior da faringe através de um esforço
muscular consciente, o que, inadvertidamente, resulta em tensão.
74

A descrição torna-se um preceito, inquestionável, imposto, mas não sen-


tido. Transmitido por gerações, o mal-entendido é perpetuado (NELSON;
BLADES-ZELLER, 2002, p. 11)5.

Os autores sugerem nessa narrativa a possível trajetória de uma obser-


vação individual até se tornar um modelo desconectado da situação original
da experiência do primeiro cantor. Mostra um caminho bastante comum: o de
transformar uma experiência vivida por outrem em regra, em receita de “como
fazer”. No entanto, não é possível transferir a experiência de uma pessoa
para outra – é possível, sim, revivenciá-la, ressignificá-la a partir da própria
história, do próprio caminho, do próprio contexto biológico, social e cultural,
do próprio modo de fazer e ser corpo. A experiência transformada em regra
gera tensão adicional e desnecessária – a experiência vivenciada no corpo e
a partir do próprio corpo pode fazer emergir a expressividade. Na proposta
de preparação vocal que aqui desenvolvo, o aprendizado pela experiência é
proporcionado pelo movimento e pela atenção às próprias sensações. Uma vez
que advogo que o corpo da cantora e do cantor coralista deve ser considerado
em sua integridade psicofísica, sustento que seu canto deve estar conectado
com suas sensações e emoções, a fim de evitar movimentos automatizados e
modelos estereotipados. O foco deve necessariamente estar no aspecto sub-
jetivo da experiência da cantora e do cantor, que conduzem sua voz. É desse
aspecto que surgem descobertas realizadas durante as vivências dos encontros
pelos próprios participantes a respeito de seus corpos (e com eles, suas vozes),
a partir dos movimentos propostos e das sensações a eles relacionadas.

Consciência

No artigo What is Somatics? Thomas Hanna (1986) estabelece uma dis-


tinção entre “consciência” e “atenção”6. Para o autor, tanto uma quanto a outra
são funções primárias do soma humano. Entretanto, enquanto consciência
(consciousness) designa uma gama de funções sensório-motoras voluntárias
adquiridas através da aprendizagem, a atenção (awareness) é uma atividade
somática que exclui qualquer reconhecimento sensorial que não seja aquele
em que está focada, externa (no ambiente) ou internamente (dentro do soma).
Embora eu utilize a ideia de consciência com um sentido diferente do
de Hanna, há um aspecto do que o autor chama de “atenção” que entendo
ser importante para a definição que emprego: para o autor, o aprendizado

5 O grifo é dos autores.


6 No original em inglês, consciousness e awareness. Embora ambas as palavras costumem ser traduzidas
como consciência, optei por utilizar palavras diferentes para destacar a distinção entre os conceitos que
Hanna propõe.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 75

somático se inicia pelo foco ativo da atenção no desconhecido, que nele


identifica referências e características possíveis de serem associadas a outras
já conhecidas em nosso repertório consciente. Através da função excludente
da atenção, o involuntário se torna voluntário, o desconhecido se torna conhe-
cido e o não realizado se torna factível. “Em uma palavra, o não aprendido
torna-se aprendido (HANNA, 1986).
Direcionar a atenção com o objetivo de estabelecer uma conexão com
o próprio corpo e alcançar, por meio deste processo, um estado de presença
na atividade que se está realizando naquele momento é o que chamo, neste
trabalho, de consciência. Minha proposta é orientar cantores coralistas para
que dirijam sua atenção para o movimento (em geral realizado de forma
inconsciente ou automática) com o objetivo de reconhecê-lo e reorganizá-lo
intencionalmente: conscientizar o inconsciente para integrá-lo ao movimento.
Estar consciente do próprio corpo possibilita também a descoberta de
padrões inconscientes e habituais de tensão muscular. Realizar atividades de
modo inconsciente e automático favorece o surgimento de tensões desneces-
sárias – como o apertar excessivo do lápis quando se escreve por muito tempo.
Padrões inconscientes e habituais de tensão costumam ser notados a partir da
dor que provocam. Embora possam existir outros parâmetros possíveis para
se constatar a tensão desnecessária (como desequilíbrio, fadiga, limitação de
movimentos, fraqueza, rigidez ou encurtamento muscular), o sinal de alerta
mais patente é o desconforto causado pela dor.
Poder alcançar a mudança a partir da percepção seja de uma resistência,
uma dor ou um padrão habitual de tensão, envolve não apenas consciência,
mas também escolha. Para que a experiência seja transformadora, é necessário
que se esteja aberto à própria transformação. Nesta direção, busco, através
da experiência corporal vivenciada, oferecer um espaço que permita à pessoa
tomar consciência de como ela se organiza, se move, se posiciona e canta para,
a partir dessa consciência, perceber em si mesma a possibilidade da mudança
e, assim, tomar uma decisão consciente de mudar ou não.

Escolha

Como dito, é possível que dores, desconfortos ou incômodos sejam aler-


tas que estariam presentes para chamar à consciência uma situação corporal
não fisiológica ou não adequada para a atividade que se estava realizando. Para
que essa situação mude, no entanto, é necessário que a pessoa com aquela dor
não apenas esteja consciente dessa situação, mas que, além disso, escolha sair
dela. A escolha, nesse caso, é uma chave fundamental e imprescindível para
a mudança e transformação em todo tipo de condição corporal.
76

Sobre este ponto, trago um exemplo que costumo levantar quando falo
a respeito desta proposta. Numa situação de aula de canto, é comum nos
depararmos com cantores que não conseguem abrir a boca de maneira a tornar
possíveis determinados resultados sonoros (cantar um agudo ou articular uma
vogal, por exemplo). “Abrir a boca”, embora possa se referir a movimentar
estruturas musculares internas que possibilitem ampliar a cavidade orofa-
ríngea, elevando o véu palatal e descendo a língua, deve aqui ser entendido
também como movimentar a articulação temporomandibular para separar a
mandíbula do maxilar, afastando as arcadas dentárias. Em geral eu dava à
pessoa uma instrução simples: “abra a boca”. Esse pedido, no entanto, nem
sempre funciona; por vezes a pessoa realmente acredita que abriu a boca, mas
não há qualquer indicação externa (descida da mandíbula) que mostre alguma
diferença na abertura de sua boca. Eu posso repetir a sugestão, reforçando-a:
“abra a boca o máximo que você conseguir”. A pessoa, no entanto, depois de
um grande e visível esforço, não modifica em quase nada a abertura de sua
boca. Posso então tentar outra abordagem, pedindo que ela se olhe em um
espelho. Aqui há algumas reações costumeiras: na primeira, a pessoa nota,
às vezes com algum espanto, que sua boca realmente não está aberta, e com
algum esforço consegue realizar o movimento de abertura. Essa abertura, no
entanto, não se mantém quando iniciamos as vocalizações. Também é possí-
vel que a pessoa, mesmo tendo observado que sua boca não está aberta, não
consiga, ainda que com esforço, abri-la. Ou pode ser ainda que a pessoa não
consiga sequer ver que sua boca quase não abre. Neste caso7, várias pergun-
tas podem surgir. Por que a pessoa não consegue abrir sua boca? Por que ela
não consegue sentir que sua boca não está suficientemente aberta? O que eu
poderia fazer, nesse caso, para ajudá-la a abrir sua boca?
Não há uma única resposta simples para nenhuma dessas perguntas.
O que a Somática me ajudou a descobrir foi que cada pessoa traz consigo
sua história de vida inscrita em seu corpo, e que assim há inúmeros motivos
possíveis para que alguém não consiga abrir a boca. Por exemplo, é possível
que esta pessoa tenha ouvido (e há várias maneiras diferentes de “ouvir”) que
deveria “fechar a boca”. E essa indicação pode ter sido agressiva ou hostil
o suficiente para que ela entendesse que era importante, para se proteger,
não mais abrir sua boca. Neste caso, minha simples instrução “abra a boca”
não é suficiente para romper aquela anterior; o simples observar de sua boca
fechada também não diz a essa pessoa que agora é seguro abrir a boca. É
melhor manter-se sob a proteção de sua boca fechada.

7 É importante salientar que aqui não me refiro a problemas que possam ter sido causados por processos
infecciosos do músculo envolvido na abertura da boca, complicações decorrentes de cirurgia ou
anomalias congênitas.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 77

Com base nessas considerações, posso escolher outra possibilidade de


ação. Posso convidar ou sugerir (palavras que recomendo usar na condução da
proposta que aqui apresento) a essa pessoa que faça alguns movimentos simples
para relaxar o masseter, músculo mais importante na movimentação da articu-
lação da mandíbula. Depois que o músculo estiver mais relaxado, posso pedir
que a pessoa observe se há alguma diferença em sua sensação de abertura, ou
na movimentação de sua boca. É possível que a pessoa perceba que realmente
é mais fácil sentir sua boca aberta e sua articulação temporomandibular des-
cansada. É possível que ela observe que é mais fácil cantar com a boca mais
aberta e relaxada. É possível então que ela se sinta mais segura para abrir a boca
e escolha conscientemente abrir um pouco mais sua boca para cantar.
Essas são, realmente, possibilidades. Pode ser que a pessoa tome cons-
ciência dessas possibilidades e, a partir daí, escolha abrir a boca – ou não. A
Educação Somática (e a proposta sobre a qual discorro) trabalha a partir da
experiência, entendida como acontecimento subjetivo ou evento de primeira
pessoa, disponível à consciência.
“O papel do educador é o de apresentar alternativas. O papel do aluno é
exercer a escolha” (BOLSANELLO, 2016, p. 32). Nesta proposta, a experiência
pessoal de cada um com seu corpo, sua voz e seu movimento, é conduzida através
da tomada de consciência e da possibilidade de escolha. Permitir-se sentir e perce-
ber seu corpo, bem como a voz gerada por ele, é escolha do praticante, que deve
assim apropriar-se de seu percurso, entender seus limites e tomar consciência de
suas possibilidades, num caminho em direção à liberdade, descoberta e autonomia.

Verticalidade

Ficar de pé equilibradamente consiste, para a Somática, em uma auto-


-organização permanente, que favorece a manutenção de um estado de tônus
constante nos músculos. O que poderíamos entender como “equilíbrio está-
tico” não existe: a posição vertical é instável e depende das compensações
musculares para pequenos desequilíbrios constantes gerados pelo afastamento
do centro de gravidade do corpo de uma linha imaginária e perpendicular ao
chão. Por conseguinte, a busca por uma verticalidade equilibrada por meio do
trabalho conjunto de ossos e músculos também tem influência direta na ativi-
dade de cantar. Explico: é precisamente este “ficar de pé”, em um equilíbrio
certamente instável e sustentado por um tônus muscular constante, que com-
preendo ser necessário para o ato de cantar – um sustentar-se de pé que gera o
movimento próprio e necessário para quem canta, mesmo que aparentemente
estático. E a musculatura que garante esse equilíbrio, é a mesma que equilibra
o sopro, e com isso, o som produzido pelo canto: o sistema reto-abdominal
organizado, musculatura responsável por manter o apoio respiratório.
78

Desse modo, para esta proposta, a conquista da verticalidade é entendida


como um processo que exige construção contínua, mas também como um
estado de estabilidade ativa que exige consciência para sua contínua manuten-
ção. Considerando a verticalidade como um processo, entendo a necessidade
da manutenção de uma tonicidade muscular que a construa; pensando-a como
estado, entendo ser necessário estabelecer uma base que mantenha sua estabi-
lidade. Ambas, tonicidade muscular e base estável serão estruturas geradoras
de suporte e sustentação do posicionamento do corpo, da movimentação desse
corpo e da respiração geradora da voz que esse corpo pode produzir.
Mais do que suporte para o canto, no pensamento somático a respi-
ração é suporte para a manutenção da posição vertical e do movimento do
corpo. A pressão do ar dá volume a células e tecidos. A respiração é o motor
do movimento: o ar dirige o movimento de dentro para fora. Para Philippe
Campignion, diretor dos centros de formação no Método GDS, a respiração
está intimamente ligada à mecânica global do corpo: respirar é preencher
espaços. O autor afirma que “respiração e estática são inegavelmente ligadas.
O diafragma, ator principal da respiração, depende da estática. Ele age tam-
bém no empilhamento vertebral correto” (CAMPIGNION, 1998, p. 29). Os
músculos respiratórios mais importantes, diafragma e transverso do abdome,
apresentam papel fundamental tanto na função respiratória como no controle
do equilíbrio postural – independentemente do tempo respiratório, tanto o
músculo diafragma quanto o transverso do abdome realizam uma contração
reflexa de ajuste postural. Assim, respirar – e cantar – é pôr-se de pé.
Ficar em pé significa algo para além de diminuir a superfície de apoio.
Sim, levantar é diminuir o contato com a terra e, com isso, experienciar o
equilíbrio instável e o medo da queda; mas para além disso, significa também
estar alerta e consciente, expandir abdômen e peito, respirar amplamente,
experienciar a prontidão para avançar, enfrentar o mundo, as incertezas e
o desconhecido. É oferecer ao corpo sua voz e, com ela, a possibilidade de
expressão plena.

Considerações finais

Apoiada pelos princípios aqui expostos, a proposta aqui apresentada con-


sidera que a aprendizagem do canto passa necessariamente pela experiência
do corpo, entendido como unidade psicofísica que “sabe” o que é necessário
fazer para alcançar determinado objetivo em qualquer atividade, seja no ato
de cantar ou em tarefas cotidianas. O importante para esta proposta é então
permitir que o corpo faça o que ele sabe fazer, pela consciência do movi-
mento, o reconhecimento da verticalidade e a abertura à escolha da pessoa.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 79

Defendo que liberar o corpo de tensões excessivas e habituais através


da consciência de si e do conhecimento do próprio corpo auxilia na cons-
trução de uma autoimagem corporal mais fidedigna; e essa liberação deixa
o corpo livre para se movimentar da forma mais adequada à atividade que
está realizando, econômica (em termos de energia utilizada) e expressiva,
com menor desgaste físico. Assim, em alternativa ao treinamento com vistas
ao controle do corpo no canto, sugiro a experiência da consciência plena do
movimento desse corpo, no momento da ação de cantar, como fundamental
e indispensável na preparação vocal da cantora e do cantor coralista.
De maneira concisa, esta proposta de preparação vocal deve ser cons-
truída como um caminho fluido em direção à verticalidade do corpo e ao
encontro com o outro e com o grupo, num caminho que passa repetida-
mente, numa organização cíclica, por quatro temas dedicados a aspectos
técnico-vocais (postura, respiração, vocalização e repertório) e segue numa
experiência contínua de posições e interações (deitados, sentados, em pé;
individual, duplas, em grupo). Este caminho deve envolver escolhas e des-
cobertas, não controle.
80

REFERÊNCIAS
BERTHERAT, Thérèse; BERNSTEIN, Carol. O corpo tem suas razões:
antiginástica e consciência de si. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

BOLSANELLO, Débora Pereira. Educação Somática: ecologia do movi-


mento humano. Curitiba: Editora Juruá, 2016.

CAMPIGNION, Philippe. Respir-Ações: a respiração para uma vida saudável.


São Paulo: Summus, 1998.

FORTIN, Sylvie. Educação Somática: novo ingrediente da formação prática


em dança. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador: Universidade Federal da Bahia,
n. 2, v. 2, p. 40-55, 22 out. 1999.

HANNA, Thomas. What is Somatics? Somatics: Magazine-Journal of the


Bodily Arts and Sciences, v. 5, n. 4, Spring-Summer 1986. Disponível em:
https://somatics.org/library/htl-wis1. Acesso em: 25 jun. 2019.

NELSON, Samuel H.; BLADES-ZELLER, Elizabeth. Singing with your


whole self: the Feldenkrais Method and voice. London: The Scarecrow
Press, 2002.

SOUSA, Simone Santos. Corpo-voz em contexto coletivo: ações vocais for-


mativas no canto coral. Orientador: Prof. Dr. Elvis de Azevedo Matos. 2011.
102 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.

SOUSA, Simone Santos. Dando corpo à voz: Educação Somática na cons-


trução de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no
âmbito do canto coral. Orientadora: Dra. Margarete Arroyo. 2021. 265 f. Tese
(Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista
(UNESP), São Paulo, 2021.
O PAPEL DA MELODIA E DAS
PALAVRAS NA PRÁTICA
VOCAL COLETIVA
Ana Isabel Pereira1

Contextualização

Ao longo das últimas décadas tem-se verificado um avolumar de estu-


dos sobre as competências vocais das crianças, com ênfase na capacidade de
afinação. Em termos de influência na performance vocal de canções, têm sido
investigados vários fatores, destacando-se os seguintes: idade, sexo, tessitura,
utilização de registos vocais, discriminação de sons, coordenação motora,
ambiente familiar, tipo de modelo vocal, tipo de acompanhamento, tipo de
material musical/repertório (extensão, tipo de intervalos, familiaridade com o
material, tonalidade e métrica do material), procedimento de ensino, cantar a
solo ou em grupo, uso de texto (palavras) versus uso de sílaba neutra (isto é,
uma melodia é apresentada com as sílabas lá, bá, ná, lai, ou outra combinação
nonsense sem significado semântico) (GOETZE; COOPER; BROWN, 1990;
NICHOLS, 2015; PHILLIPS, 2014; SVEC, 2015). Provavelmente, a variável
que menos tem sido investigada é esta última (Nota: ao longo do capítulo
serão usadas de forma equivalente as palavras “sílaba neutra – melodia” e
“texto – palavras”). Não obstante, é pertinente debruçarmo-nos sobre a forma
como a melodia e as palavras de uma canção são apropriados pelas crianças
e como interagem em termos de perceção auditiva e cognição musical. As
opções pedagógicas tomadas em sala de aula devem ter em conta a existência
desta interação e ser objeto de reflexão.
O presente capítulo pretende dar um contributo para essa reflexão. Sendo
a afinação um aspeto importante na prática vocal, parece relevante come-
çar por apresentar as explicações avançadas por alguns autores quanto às

1 Nascida em Lisboa, Ana Isabel Pereira é doutora em Ciências Musicais, na especialidade de Ensino e
Psicologia da Música, pela Universidade NOVA de Lisboa. É investigadora integrada do Centro de Estudos de
Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da mesma universidade
(NOVA FCSH). Concluiu o Mestrado em Ensino de Música no Ensino Básico na NOVA FCSH. É Professora
Adjunta Convidada na Escola Superior de Educação de Lisboa (Instituto Politécnico de Lisboa) desde 2015,
e na NOVA FCSH desde 2020. Na sua tese de doutoramento investigou a influência de se cantar com sílaba
neutra ou texto na performance vocal de canções, no uso da voz cantada e no reconhecimento auditivo de
crianças entre os 4 e 9 anos de idade. Os seus principais interesses de investigação incluem o estudo da
aprendizagem e desenvolvimento musical e a avaliação do desempenho vocal em crianças.
82

possíveis fontes da “desafinação”. Também no âmbito da prática vocal, é


importante conhecer os dois modelos de desenvolvimento vocal mais citados
na literatura e que ilustram diferentes fases/categorias desse mesmo desen-
volvimento. Ambos os modelos utilizam diferentes tarefas vocais na sua
administração, o que será interessante abordar. De facto, a literatura mostra
que a performance vocal das crianças pode ser influenciada em função das
tarefas solicitadas, como sejam: o eco de um som, de um intervalo de sons
ou de um padrão (3 ou mais sons), cantar frases de canções de memória ou
cantar uma canção inteira de memória (NICHOLS, 2015). Estas duas últimas
tarefas são, possivelmente, as tarefas mais comuns na prática vocal coletiva.
Por fim, serão apresentados e discutidos os estudos que se debruçam sobre
a temática em foco neste capítulo: a influência da melodia e das palavras na
performance vocal.

Que mecanismos podem estar na origem da desafinação?

Ao longo de mais de um século de investigação na área do desenvol-


vimento vocal, o facto de existirem pessoas desafinadas tem sido objeto de
grande curiosidade. Alguns autores sugerem que diferentes fontes podem
estar na origem de dificuldades na afinação, nomeadamente: (i) percetual,
ou seja, a capacidade de percecionar e discriminar sons afeta a capacidade
de afinação (porém, os resultados de vários estudos têm sido inconclusi-
vos neste aspeto e existe falta de consenso quanto a esta explicação, que
eventualmente será mais adequada para indivíduos que sofrem de amusia
congénita); (ii) motora, ou seja, um défice nas capacidades de produção
relacionado com a incapacidade de controlar o aparelho vocal, bem como
os movimentos musculares envolvidos na respiração, fonação e articulação;
(iii) memória, ou seja, uma insuficiência de detalhe na representação da
estrutura musical da canção na memória; (iv) sensoriomotora, isto é, o ato
de cantar desafinado resulta de um desajuste na transferência dos sons para
a ação (produção), em vez de problemas específicos nos sistemas percetuais,
motores, ou de memória; (v) motivação, implicando que os cantores não
usem o máximo das suas competências vocais ou que não tenham vontade
de praticar para melhorar a sua performance (HUTCHINS; PERETZ, 2012;
PFORDRESHER; BROWN, 2007). À exceção da motivação, as hipóteses
resumidas acima incidem sobre os mecanismos estruturais e funcionais no ato
de cantar. Os professores e educadores devem estar conscientes da existência
destes mecanismos, embora do ponto de vista da educação musical interesse,
sobretudo, a natureza do desenvolvimento vocal enquanto moldada por um
envolvimento regular na prática vocal.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 83

Modelos de desenvolvimento vocal

A investigação na área do desenvolvimento vocal infantil tem chamado


a atenção para a possibilidade de ocorrer um desajuste entre as competências
vocais das crianças e o que é solicitado que reproduzam (WELCH, 2006). Por-
tanto, deve-se ter em conta que muitas vezes as crianças não cantam afinadas
porque fisiologicamente o mecanismo vocal não está pronto ou porque não
usam a sua voz adequadamente (RUTKOWSKI; TROLLINGER, 2005). Por
exemplo, tem-se verificado uma correlação positiva entre a extensão vocal e a
afinação, ou seja, quanto maior a extensão maior será a afinação, embora esta
relação possa não ser linear (PFORDRESHER et al., 2015). Neste sentido,
Gordon (2012) refere que a distinção entre a voz falada e voz cantada não é
apenas uma questão de extensão vocal (neste texto define-se extensão como
sendo a distância entre o som mais grave e mais agudo que um indivíduo con-
segue emitir). Ou seja, quando as crianças aprendem a cantar também cantam
na região da voz falada. A questão é que as crianças com mais dificuldades
aplicam a qualidade vocal da voz falada nos vários registos, resultando em
desafinação e numa voz “guinchada” no registo agudo (adotando a nomencla-
tura de RUTKOWSKI, 1990; 1996, e RUTKOWSKI; MILLER, 2003, neste
texto consideram-se três registos vocais – grave, médio e agudo, delimitados
com base na tessitura e na qualidade vocal). Poucos estudos investigaram a
relação entre a capacidade de utilização destes registos vocais e a performance
vocal. No entanto, os resultados obtidos nesses estudos são importantes de
considerar já que revelam que as crianças cantam mais sons afinados quando
estes pertencem aos registos vocais que conseguem usar (PEREIRA; RODRI-
GUES, 2019; RUTKOWSKI, 2015). Assim, parece óbvio que se uma criança
tem acesso limitado aos registos terá dificuldade ou ficará impossibilitada
de cantar afinadamente. A questão torna-se premente sempre que o material
musical utilizado apresente uma tessitura que englobe dois ou mais registos
vocais. Em suma, utilizar a voz cantada em todos os registos vocais é uma
condição prévia e necessária para que um cantor seja afinado.
Neste contexto, refira-se a Singing Voice Development Measure (SVDM)
de Rutkowski (2015), uma escala que procura descrever diferentes categorias
de desenvolvimento vocal com ênfase no uso de registos e não na afinação. É
um instrumento de avaliação já validado com crianças de diferentes países,
tais como Portugal (PEREIRA; RODRIGUES, 2019), China (RUTKOWSKI;
CHEN-HAFTECK, 2001) e Inglaterra (WELCH et al., 2011). A versão mais
recente da SVDM implica que a criança cante individualmente e em eco ao
professor um conjunto de oito padrões tonais com 3 sons cada. Estes padrões
pertencem a uma canção escrita na tonalidade menor harmónica de ré e são
apresentados em sílaba neutra (por exemplo, “bá”) e depois com texto, ou
84

vice-versa (a tradução do texto original em inglês para português foi autori-


zada pela autora da SVDM: “O balão do João é azul, cor do mar. Vai na mão
a girar, sem fugir pelo ar”. Adaptação e partitura da canção disponível em
PEREIRA; RODRIGUES, 2019). A SVDM apresenta 9 pontuações possíveis:

1 – “Pre-singer” não canta mas diz/entoa o texto da canção (texto ou sílaba


neutra); 1.5 – “Inconsistent Speaking Range Singer” por vezes diz/entoa,
outras vezes mantém e evidencia alguma consciência da altura dos sons,
mas permanece no registo da voz falada, registo grave (normalmente entre
lá2 e dó3, sendo este o dó central); 2 – “Speaking Range Singer” mantém e
evidencia alguma consciência da altura dos sons, mas permanece no registo
da voz falada, registo grave (normalmente entre lá2 e dó3); 2.5 – “Inconsis-
tent Limited Range Singer” oscila entre o registo grave e médio e usa uma
extensão limitada quando canta no registo médio (normalmente até fá3); 3
– “Limited Range Singer” exibe de forma consistente o uso de uma extensão
limitada, registo médio (normalmente ré3 a fá3); 3.5 – “Inconsistent Initial
Range Singer” por vezes utiliza uma extensão limitada da voz (normalmente
ré3 a fá3), mas outras vezes utiliza uma extensão maior (normalmente ré3 a
lá3); 4 – “Initial Range Singer” utiliza de forma consistente uma extensão
maior, registo médio (normalmente ré3 a lá3); 4.5 – “Inconsistent Singer”
por vezes utiliza de forma consistente uma extensão maior, mas outras vezes
utiliza uma extensão alargada da voz, incluindo o registo agudo (canta para
além de sib3); 5 – “Singer” utiliza de forma consistente uma extensão alar-
gada da voz, incluindo o registo agudo (canta para além de sib3) (PEREIRA;
RODRIGUES, 2020, p. 42, tradução livre das autoras).

Durante a administração da SVDM, a tarefa vocal a realizar pelas crian-


ças é o eco de padrões e não de canções. Por que a autora da escala tomou esta
opção? A literatura tem revelado que o desenvolvimento da competência “can-
tar” pode ser considerado tendo em conta uma hierarquia de tarefas, a saber,
da mais simples para a mais complexa: eco de um som, intervalos, glissandos,
padrões, cantar canções familiares de memória (DEMOREST et al., 2018;
WELCH et al., 1995/1996). Por exemplo, em estudos com algumas destas
tarefas verificou-se que as crianças eram mais afinadas a cantar padrões em
eco do que a cantar canções de memória (GUERRINI, 2006; WELCH et al.,
1997). Num estudo mais datado, Rutkowski (1990) sublinha que:

A performance de uma canção envolve outros aspetos além da utilização


de voz cantada. Estes incluem a memorização de texto, padrões rítmi-
cos e padrões tonais. Uma criança pode não estar a utilizar a sua voz
cantada simplesmente porque não se consegue lembrar de alguns destes
componentes. Portanto, medir o uso da voz cantada através da execução
de uma canção pode não corresponder a uma avaliação correta. Uma
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 85

vez que cantar padrões envolve eco, em vez de memorização, o papel


destes outros componentes estará minimizado (RUTKOWSKI, 1990,
p. 91-92, tradução livre).

Por outro lado, a opção de solicitar o eco dos padrões com texto (pala-
vras) e com sílaba neutra foi também tomada com base na literatura. Conforme
será discutido mais à frente, os estudos dedicados a investigar se as crianças
cantam melhor com sílaba neutra (isto é, se cantam melhor uma melodia
apresentada com uma sílaba neutra) ou com texto (com palavras) revelaram
resultados inconsistentes: melhor com sílaba neutra (GOETZE, 1985); ligei-
ramente melhores com sílaba neutra (LEVINOWITZ, 1989); sem diferenças
significativas, mas melhor com sílaba neutra (SMALE, 1987); sem diferenças
significativas, mas pontuações ligeiramente mais altas com texto (RUTKO-
WSKI, 1993); pontuações significativamente mais altas com texto para os 4
anos por comparação com 5 anos de idade (JACOBI-KARNA, 1996); e sem
diferenças significativas (LANGE, 1999). Contudo, a comparação entre estes
estudos é limitada, uma vez que foram utilizados procedimentos diferentes.
Tendo em conta estes resultados antecedentes e o fato da maioria dos
estudos utilizar canções e não padrões, durante um dos processos de revisão
da SVDM, Rutkowski (1999) procurou ter em consideração a influência do
texto e sílaba neutra na performance vocal de padrões. A investigadora não
encontrou diferenças significativas entre os modos de resposta (texto/sílaba
neutra) para crianças com 5 e 6 anos de idade. Não obstante, observou dife-
renças individuais em favor do uso da sílaba neutra, sugerindo que “algumas
crianças cantam melhor quando não lhes é pedido que cantem palavras, talvez
porque as palavras cantadas estão demasiado relacionadas com os seus padrões
de fala, enquanto outras não consideram as palavras cantadas um problema”
(RUTKOWSKI, 1999, p. 208, tradução livre). Assim, a versão atual da SVDM
inclui ambos os modos (texto/sílaba neutra) na forma de administrar o ins-
trumento. Este detalhe revelou-se pertinente já que Rutkowski (2015) numa
recente reanálise dos dados de Rutkowski e Miller (2003b) com crianças de
6 anos e de Rutkowski (2014), com crianças de 5 anos, mostrou efeitos prin-
cipais significativos para o modo de resposta a favor da sílaba neutra, tanto
para o uso da voz cantada como para a afinação. No que respeita à afinação,
este resultado foi corroborado em Pereira e Rodrigues (2019) com crianças
portuguesas dos 4 aos 9 anos de idade, embora o mesmo não se tenha veri-
ficado para o uso da voz cantada. Esta diferença entre resultados, e apesar
de terem sido aplicados os mesmos procedimentos, pode ser explicada pela
familiaridade dos participantes portugueses com o canto de canções e padrões
com sílaba neutra e com texto nas suas atividades de sala de aula (PEREIRA;
RODRIGUES, 2019). No entanto, é de sublinhar o resultado comum no que
diz respeito à influência do canto com sílaba neutra na afinação.
86

No caso da SVDM, as 9 categorias enunciadas não são sequenciais, ou


seja, a criança não precisa passar por todas até chegar à pontuação máxima
(RUTKOWSKI, 1990). Pelo contrário, no modelo de desenvolvimento vocal
desenvolvido por Welch (1986, 1998, 2002) as fases são sequenciais. Neste
caso, a tarefa vocal a realizar pelas crianças é cantar canções de memória. A
versão mais recente do Vocal Pitch-Matching Development (VPMD) conforme
descrita em Welch (2006) apresenta 4 fases:

Fase 1 – o texto da canção parece ser o centro de interesse inicial em vez


da melodia; cantar é normalmente descrito como “dizer”, empregando
de forma restrita a extensão vocal e as frases melódicas. Na exploração
vocal dos bebés predominam os padrões descendentes; Fase 2 – existe
uma consciencialização crescente de que a afinação pode ser um pro-
cesso consciente e que as mudanças entre alturas de som são controláveis.
O contorno das melodias cantadas começa a aproximar-se do contorno
melódico da melodia original ou das frases existentes. A tonalidade é
um conceito associado frase a frase. As canções inventadas e canções
“esquemáticas” vão buscar elementos da cultura musical das crianças. A
extensão vocal usada nas canções expande-se; Fase 3 – O contorno meló-
dico e os intervalos são maioritariamente afinados, mas poderão ocorrer
algumas mudanças na tonalidade, possivelmente relacionado com o uso
inadequado dos registos vocais. No entanto, e na sua maioria, o número
de sons diferentes em relação aos originais está bastante reduzido; Fase
4 – Não existem erros melódicos significantes ou de alturas de som no
que diz respeito a canções relativamente simples da cultura musical do
cantor (PEREIRA; RODRIGUES, 2020, p. 41, tradução livre das autoras).

Resumindo, a SVDM e a VPMD são instrumentos complementares para a


avaliação do desenvolvimento vocal, uma vez que medem competências dife-
rentes: o uso da voz cantada (não a afinação) no caso da SVDM e a precisão no
contorno melódico e afinação no caso da VPMD. Para esse fim usam também
tarefas diferentes: o eco de padrões com texto e com sílaba neutra no caso da
SVDM e cantar uma canção de memória com texto (palavras) no caso da VPMD.

Uso de texto e sílaba neutra na prática vocal

No que concerne o ensino de canções, Welch, Sergeant e White (1995-


1996) sugerem o seguinte:

A par das diferenças hierárquicas de competência vocal observadas nas tare-


fas da bateria de testes, e do aparente domínio das palavras na aprendizagem
de canções pelas crianças, a principal implicação educacional a retirar
dos dados para nós é que, para os jovens cantores em desenvolvimento,
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 87

as palavras e a melodia devem ser ensinadas separadamente (WELCH;


SERGEANT; WHITE, 1995-1996, p. 160, tradução livre).

De fato, a questão da separação da melodia e das palavras no ensino de


canções é relevante. Por exemplo, Gordon (2003, 2012) – que usa a expressão
“canção sem palavras” para se referir a uma melodia apresentada com sílaba
neutra – sublinha que o ensino deste tipo de canções parece favorecer as
crianças em dois aspetos: (i) proporciona-lhes um maior enfoque nos aspetos
intrinsecamente musicais da melodia, tais como os sons, intervalos, intensida-
des; e (ii) permite-lhes concentrar na audiação de padrões tonais e rítmicos,
na tonalidade e métrica. Gordon (2007) considera que as canções com pala-
vras (texto), tais como canções populares ou outras canções da literatura, são
importantes e devem aparecer (em maior quantidade) a partir do momento em
que existe uma explosão no desenvolvimento da linguagem, sensivelmente a
partir dos 18 meses de idade. Este é o momento a partir do qual a comunicação
verbal assume um papel importante para as crianças. Como consequência, o
texto das canções passa a ser o foco da sua atenção, já que lhes é mais familiar.
Refira-se que, enquanto pedagogo musical, Edwin Gordon (1927-2015) foi o
único que destacou a importância de se usarem canções com palavras e sem
palavras ao longo do crescimento e desenvolvimento musical das crianças.
Com este enquadramento, e no âmbito de uma prática vocal coletiva e do
ensino de canções, podem ser colocadas várias questões: Será que a performance
vocal de uma canção com texto é beneficiada se a melodia for apresentada em
primeiro lugar com uma sílaba neutra, acrescentando-se o texto mais tarde?
Será que a performance vocal de uma canção com texto é beneficiada se a
melodia e texto forem apresentados em simultâneo, sendo a canção trabalhada
posteriormente com sílaba neutra? Será que a exposição a uma maior quantidade
de canções com sílaba neutra, às quais não é acrescentado o texto, beneficia a
prática vocal de uma forma geral? Os estudos que se debruçaram sobre o ensino
de canções com texto e sílaba neutra são escassos, datados, e têm mostrado
resultados contraditórios, conforme já referido (GOETZE, 1985; JACOBI-
-KARNA, 1996; LANGE, 1999; LEVINOWITZ, 1989; SMALE, 1987). Esta
inconsistência pode ser atribuída a diferenças metodológicas, nomeadamente:
a forma como as canções foram apresentadas e a forma como as crianças foram
solicitadas a realizar as tarefas, bem como o uso de diferentes materiais musicais.
Como consequência, comparar resultados torna-se uma tarefa difícil, compro-
metendo generalizações. Analisemos os estudos mencionados.
Goetze (1985) procurou investigar a influência da utilização de texto e
de sílaba neutra na afinação das crianças quer em grupo quer individualmente.
Participaram 165 crianças do jardim-de-infância, 1º e 3º ano de escolaridade.
A investigadora selecionou duas canções com texto (uma sobre um cavalo
e outra sobre um pónei), pentatónica, na métrica binária, com uma tessitura
88

entre ré4 e lá4 (acima do dó central). Numa sessão ensinou ambas as canções
com texto e de seguida ambas com a sílaba neutra “loo”. A recolha de dados
teve lugar imediatamente após essa sessão. Uma das canções foi utilizada para
avaliação individual e a outra para avaliação em grupo. As respostas foram
medidas utilizando um aparelho Visi-Pitch, que dispõe de um gráfico visual com
os sons medidos em Hertz. Os resultados revelaram que as crianças cantavam
mais afinadas com sílaba neutra, e que as maiores diferenças se verificaram nas
crianças mais novas a favor do texto. Além disso, os alunos do jardim-de-in-
fância e do 1º ano cantaram mais afinados individualmente do que em grupo.
Foram apontadas algumas limitações a este estudo: as canções foram gravadas
no mesmo dia em que foram ensinadas, pelo que pode não ter havido tempo
suficiente para aprender o texto, donde resultou melhor afinação com sílaba
neutra; e a não existência de um centro tonal, uma vez que ambas as canções
eram pentatónicas (LANGE, 1999). De fato, a investigadora poderia ter consi-
derado: (i) ensinar as canções de uma forma contrabalançada (uma das canções
primeiro com texto e a outra com uma sílaba neutra, e depois vice-versa); (ii)
ensinar as canções ao longo de algumas sessões para maior familiarização; e
(iii) escolher as canções em tonalidade maior ou menor em vez de pentatónica,
uma vez que se aproxima mais da cultura musical dos participantes.
Com 106 participantes de 4 e 5 anos de idade, Smale (1987) utilizou
uma canção com as mesmas características que a do estudo de Goetze (1985),
embora apresentando uma tessitura mais reduzida (ré4 – sol4). O objetivo do
estudo era também determinar se as crianças cantavam melhor com texto ou
com sílaba neutra e, para além disso, se cantavam melhor a solo ou em unís-
sono com um modelo vocal. A cada criança foi pedido que executasse quatro
tarefas vocais: (i) cantar a primeira frase da canção com texto como eco ao
investigador; (ii) cantar a primeira frase da canção com texto em uníssono com
o investigador; (iii) cantar a primeira frase da canção com uma sílaba neutra
como eco ao investigador; (iv) cantar a primeira frase da canção com uma
sílaba neutra em uníssono com o investigador. Os resultados não revelaram
diferenças significativas na afinação entre o uso de texto e sílaba neutra, embora
se tenha verificado uma tendência para cantar mais afinado usando uma sílaba
neutra. Os resultados revelaram ainda que as crianças cantavam mais afinadas
a solo do que em simultâneo com um modelo vocal. Neste estudo aplicam-se
as mesmas limitações apontadas ao estudo de Goetze (1985).
O estudo de Levinowitz (1989) também envolveu crianças com 4 e 5
anos de idade, num total de trinta e cinco, e procurou investigar se as crian-
ças cantavam melhor uma canção apresentada com texto e outra com sílaba
neutra, e se existiria uma relação entre o desempenho vocal da canção e o
desenvolvimento da linguagem (medido através do Teste de Vocabulário da
Imagem de Peabody). A investigadora questionava-se se as crianças com
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 89

menor desenvolvimento linguístico poderiam beneficiar-se da aprendizagem


de uma canção com sílaba neutra. Durante 5 meses, em aulas semanais de
30 minutos cada, as crianças tiveram contato com um repertório de canções
com texto e sílaba neutra. As canções selecionadas para o estudo estavam em
métrica ternária e tonalidade maior e foram ensinadas no último mês de ins-
trução. Levinowitz (1989) avaliou as performances das canções na dimensão
tonal e rítmica separadamente (pertencentes a uma escala desenhada por ela),
tendo verificado que o desempenho tonal foi melhor para a canção apresentada
com sílaba neutra, não tendo encontrado diferenças significativas na dimensão
rítmica. No entanto, é possível que o tipo de repertório selecionado tenha tido
influência nos resultados. Verifica-se que a canção com texto apresenta um
salto de oitava descendente (dó4-dó3) e um padrão tônica ascendente (dó3-fá-
3
-lá3-dó4), enquanto a canção com sílaba neutra não apresenta saltos de oitava e
o padrão da tônica existente não cobre uma oitava (apenas dó3-fá3-lá3). Note-se
ainda que ambas as canções apresentavam uma tessitura bastante ampla (dó3
a ré4) relativamente ao que a literatura recomenda para as crianças das idades
participantes neste estudo. Teria sido interessante acrescentar uma segunda
fase de instrução e adicionar o texto à canção ensinada com uma sílaba neutra,
comparando esta performance vocal com a da canção ensinada com o texto
desde o início da instrução. Não obstante, a investigadora sugere que ambos os
tipos de canções devem ser incluídos na prática vocal. Os resultados revelaram
ainda que não existe qualquer relação entre o desenvolvimento da linguagem
das crianças e as pontuações que obtiveram nas dimensões tonal e rítmica.
O estudo de Jacobi-Karna (1996) é possivelmente o único que considera
a influência da ordem de ensino da melodia e do texto de uma canção no
desempenho vocal das crianças. O estudo foi realizado com 89 crianças com
idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos, tendo apresentado duas fases:
(i) durante a fase 1 (duração de oito semanas, duas aulas de 30 minutos por
semana), a mesma canção foi ensinada com texto e sílaba neutra, respetiva-
mente, a dois grupos e de forma contrabalançada; e (ii) durante a fase 2 (dura-
ção de uma semana), o texto da canção foi retirado para um grupo (ou seja,
a melodia foi apresentada com sílaba neutra), e foi acrescentado o texto da
canção no grupo que aprendeu a canção com sílaba neutra. Na semana seguinte
ao término de cada fase, as crianças foram convidadas a cantar a canção por
frases e por inteiro e as performances foram avaliadas com base na afinação.
Os resultados não revelaram diferenças significativas entre as performances
vocais de ambas as canções no final de cada fase. No entanto, uma análise
dos resultados por grupo etário revelou que as crianças de 4 anos obtiveram
pontuações significativamente mais elevadas quando cantaram com texto. A
investigadora sugeriu, então, que o ensino de canções com sílaba neutra pode
ser uma forma eficaz de melhorar a afinação das crianças pequenas, uma vez
90

que “quando se adiciona texto, a melodia já estará adquirida e as crianças terão


apenas de se adaptar à componente de texto da canção” (JACOBI-KARNA,
1996, p. 52, tradução livre). Os resultados revelaram ainda que as crianças
cantam mais afinadas quando a canção é ensinada frase-por-frase. Apesar da
canção ter apenas oito compassos, a investigadora sugere que cantar canção
por inteiro requer maior esforço para armazenar a informação na memória e
depois recuperá-la, podendo representar um maior desafio em termos de tarefa.
Lange (1999) procurou investigar qual a influência do uso de texto e
sílaba neutra na performance vocal de canções, na identificação do tom de
repouso das canções e na aptidão tonal das crianças. Participaram 58 crianças
com idades compreendidas entre os 4 e os 6 anos, divididas em dois grupos:
num dos grupos, as aulas de música incluíam principalmente canções com
texto, e no outro grupo as aulas de música incluíam principalmente canções
com sílaba neutra. O período de instrução foi de 24 semanas, com duas aulas
de 30 minutos por semana, sendo que as duas canções selecionadas para o
estudo foram ensinadas durante seis semanas. Estas canções foram ensinadas
com texto, uma estava escrita na tonalidade maior e a outra na tonalidade
menor. Os resultados não revelaram diferenças significativas entre os grupos.
Os resultados também indicaram que as crianças cujas aulas apresentavam
maior número de canções com sílaba neutra tendiam a mostrar maiores ganhos
na aptidão tonal. Neste contexto, a investigadora sugere que as sessões de
música devem incluir tanto canções com texto como com sílaba neutra.
Analisando o design experimental dos estudos acima descritos, obser-
va-se que fica por determinar qual a estratégia de instrução mais adequada
para melhorar a performance vocal de uma canção com texto: será quando
a melodia é ensinada primeiro e o texto é acrescentado mais tarde, ou será
quando a melodia e o texto são apresentados em simultâneo? No seu estudo
de doutorado envolvendo crianças com idades compreendidas entre os 4 e os
9 anos de idade, Pereira (2019) procurou investigar a questão, adotando essas
duas estratégias de ensino de uma canção. Os resultados demonstraram que
aprender a canção com texto favoreceu as crianças mais novas (4 e 5 anos
de idade) de forma significativa, o que corrobora o estudo de Jacobi-Karna
(1996), por exemplo. É de notar, no entanto, que uma análise às diferenças
individuais revelou que existem crianças em todas as idades cuja performance
vocal é melhor com sílaba neutra do que com texto, sendo o inverso também
observável. Face a estes resultados, uma das sugestões apontadas é a inclusão
de canções de ambos os tipos em atividades de prática vocal, à semelhança
do que já haviam sugerido Levinowitz (1989) e Lange (1999). Deve-se ter
em conta que para algumas crianças o uso de sílaba neutra pode ser menos
exigente em termos de uso de memória, e que para outras crianças o uso do
texto pode funcionar como uma âncora na memorização da melodia.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 91

Em jeito de conclusão

Não é correto etiquetar uma criança como sendo má cantora quando esta
demonstra dificuldade em cantar afinado. Na ausência de uma deficiência
física, todas as crianças nascem com a possibilidade de usar a voz cantada
de forma adequada (GORDON, 2012). Assim sendo, os professores e edu-
cadores devem nutrir as competências vocais das crianças desde tenra idade,
providenciando inúmeras oportunidades para o canto e procurando incessan-
temente estratégias eficazes de as ajudar a superar as fragilidades no uso da
voz cantada. Tal como sublinha Hedden (2012), em última análise, o ônus
da afinação pertence ao professor e cabe-lhe a tarefa de pesar os fatores que
podem afetar a performance vocal e a capacidade de afinação. Um desses
fatores, conforme detalhado ao longo deste texto, é o uso de sílaba neutra e
de texto. Paralelamente, deve-se dar prioridade a técnicas que permitam a
expansão dos registros vocais, e só depois atender às questões de afinação.
Tanto Rutkowski (2015) como Pereira e Rodrigues (2019) demonstraram que
as crianças cantam mais sons afinados quando estes pertencem aos registros
usáveis e que, grosso modo, quando conseguem aceder a mais registros o
número de sons afinados também aumenta. Por outro lado, estes estudos
também revelaram que a afinação é beneficiada quando as crianças cantam
padrões com sílaba neutra. Assim sendo, os professores e educadores devem
sentir-se encorajados a incluir atividades que ofereçam essa oportunidade
na prática vocal. No que respeita a canções, a investigação tem mostrado
que as crianças mais novas se beneficiam da aprendizagem de canções com
texto, embora existam evidências de que aprender canções com sílaba neutra
também pode beneficiar a afinação, especialmente em crianças mais velhas.
Deve também existir oportunidade para avaliar as competências vocais
das crianças de forma consistente e regular. Na prática vocal coletiva pode-
rão ser criadas oportunidades para as crianças cantarem pequenas frases ou
padrões melódicos pertencentes ao repertório que estão a trabalhar, tanto a
solo como em pequenos grupos. Para tal, podem ser empregadas estratégias
lúdicas que envolvam as crianças na tarefa sem sentir que estão sob escrutí-
nio. Em função de cada performance, o professor ou educador poderá intervir
construtivamente e usar técnicas adequadas para correção ou melhoria do
resultado, se necessário. No início do ano, como base de trabalho, poderá ser
usado um instrumento como a SVDM (Singing Voice Development Measure)
de Rutkowski (2015), que possibilitará tirar uma “fotografia” do desenvolvi-
mento vocal de cada criança. Embora seja um processo moroso, poderá ser
muito útil para ir ao encontro das necessidades individuais e, eventualmente,
determinar o uso de algumas estratégias em detrimento de outras para ajudar
as crianças a evoluir vocalmente.
92

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ARRANJOS CRIATIVOS PARA O
TRABALHO VOCAL COLETIVO:
um relato de experiência
Thiago Rodrigues1

Contextualização

Relato neste capítulo a minha experiência com arranjos vocais e o início


desta trajetória profissional. Antes de descrever o processo utilizado para a
criação de arranjos vocais coletivos, falo do meu trabalho como regente de
coro, do início da jornada com o canto coral ao processo de composição dos
arranjos para grupos vocais.
Há 21 anos ingressei no primeiro ano da graduação em música e não tinha
conhecimento ou contato prévio com o universo do canto coral. No entanto,
com a participação como coralista no coro da universidade, a experiência foi
se moldando. Ao longo do curso, veio também o convite para que eu desen-
volvesse um projeto de regência coral para a formação de um coro infantil.
O projeto inicial contou com 60 crianças entre seis e dez anos de idade, mas
sentia uma lacuna em conteúdos teóricos para o desenvolvimento do trabalho.
Esse arcabouço teórico, tão importante para a formação professor de música,
do regente, veio somente ao término da faculdade de música.
Ainda assim, dei sequência ao grupo, contando com a ajuda de profissio-
nais da área. Realizei também uma busca ativa por bibliografia especializada.
Nesse cenário, observei que não havia muito material desenvolvido para o
canto coral infantil e parecia não haver uma comunicação efetiva entre músicos
e regentes. Era início dos anos 2000. A maior parte dos arranjos e repertório
encontrado direcionava-se para coros de igrejas. Optei então, por utilizar outro
tipo de repertório e ensaiar somente a melodia, em uníssono. Os acréscimos
de segunda voz, por exemplo, vieram posteriormente.
O que pude perceber, no entanto, considerando a minha inexperiência, é que
a maioria das músicas tinha uma extensão vocal aguda ou grave para as crianças,
e isso já me preocupava. Não possuía, na época, domínio sobre classificação vocal

1 Bacharel em Regência pela Universidade do Sagrado Coração (2005). Especialista em Educação Musical
pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar (2018) e em Musicalização Infantil pela Faculdade de
Tecnologia de Palmas. Técnico em Regência Coral pelo Conservatório de Tatuí (2015). Atualmente é regente
do coral da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos de Bauru/SP e professor de música do Instituto das
Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus – Colégio São Francisco de Assis, Bauru/SP.
98

e outras características vocais como voz de cabeça ou voz de peito (PEREIRA,


2009). Então, foi preciso tempo, trabalho e contato diário com esse cenário para
que o meu desenvolvimento profissional acontecesse de forma efetiva.
Ressalto que sempre me preocupei com o repertório. O que cantar com
as crianças? Qual o gosto musical delas? Essas sempre foram preocupações
que nortearam o meu trabalho e aos poucos, comecei a tecer reflexões
sobre a importância desses fatores não somente para a composição do coro
infantil, mas para a aproximação entre o grupo vocal e o regente-educador
(FRANCHINI, 2014). Optei, então, por estabelecer conversas e uma inte-
ração mais próxima com as crianças do grupo. A esse respeito, Brandão
(s. d.) aponta:

Por que não perguntar a elas o que sabem sobre o seu próprio modo de vida?
Por que não dialogar com e entre elas sobre o que vivem e o que desejam,
antes de investiga-las ou de realizar ‘experimentos’ sobre elas? Por que se
reúnem para fazer música juntos? O que esperam aprender? O que tocam?
O que querem tocar? O que ensinam? O que aprendem? Como ensinam e
aprendem? (BRANDÃO, s. d. apud DUTRA; JOLY, 2016, p. 63).

Por meio do diálogo e da convivência com as crianças, descobri muito


sobre os seus gostos musicais e, aos poucos, com a ajuda delas, selecionei
o repertório que melhor se ajustava àquele coro. Mesmo com esse trabalho,
observei que faltava um desenvolvimento maior do repertório, abertura de
vozes, construção de arranjos, ainda tão escassos. Essa percepção fez com
que eu iniciasse o processo de composição dos arranjos para trabalhar com
o grupo. Destaco, neste contexto, que a formação recebida na graduação em
teoria da música, harmonia e contraponto, foi fundamental para o início do
trabalho e o aperfeiçoamento da prática, que veio com o tempo.
A partir dessa primeira experiência, escrever arranjos tornou-se parte
fundamental da minha trajetória como regente-educador. Cada arranjo
criado era uma história, uma vivência com o coro, ainda que de forma
experimental inicialmente. Destaco que um dos principais desafios foi
o desconhecimento da extensão vocal das crianças, da tessitura vocal e
a prática de exercícios e vocalizações. Aos poucos, contudo, com muito
estudo e buscas, esses aspectos foram desenvolvidos e implementados no
trabalho prático com o grupo.
Neste sentido, a partir da minha vivência, considero que a pesquisa e
a escolha do repertório é um ponto crucial para o regente, pois ele tem que
atrair seus cantores. É importante que haja um processo de aprendizagem e
percepção da realidade do coro no qual está inserido. Sobre esses aspectos
Bartle (2003), diz que:
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 99

Uma das mais importantes e demoradas tarefas que um regente de um coro


infantil deve fazer é escolher repertório adequado. Com um repertório
digno, o coro tem o potencial de atingir grandes alturas artísticas. Com
repertório pobre ou modesto, esse potencial nunca será alcançado. Crianças
devem ser ensinadas apenas com o material mais valioso musicalmente.
Para os jovens, apenas o melhor é suficientemente bom. Eles devem ser
levados a obras-primas por meio de obras de arte. Uma peça que vale
a pena sempre ajuda a criança a crescer musicalmente e colabora para
desenvolver a beleza da voz da criança. Idealmente também irá beneficiar
outras áreas de crescimento – estéticas, sociais, históricas, educacionais e
políticas (BARTLE, 2003, p. 182).

Considerando essas dimensões, pondero ser importante também, como


complemento do trabalho, que o regente-educador consiga dialogar e ouvir
sobre os gostos e preferências musicais individuais dos componentes do seu
coro, no sentido de os conectar de uma forma mais efetiva com o trabalho
que está sendo desenvolvido. É parte do processo a abertura de espaço para
que as crianças possam dar sugestões de repertório, o que se reflete ainda no
engajamento do grupo com a prática coral. A partir deste olhar inicial para a
realidade dos integrantes do grupo, em conexão com o olhar do regente-edu-
cador, é possível trabalhar na construção de arranjos criativos, que despertem
o interesse das crianças, o que será mais detalhado no próximo tópico.

Construindo os arranjos
Para a elaboração dos arranjos um dos aspectos principais que procuro
pensar é em uma escrita simples, prática e funcional. A proposta é que os
coralistas e o público ouçam o arranjo e se conectem com ele. Em se tratando
de coro infantil, destaco também que antes de iniciar a escrita dos arranjos
é importante que o regente ou arranjador faça uma leitura prévia da letra da
música, a fim de verificar se os textos são apropriados ao público infantil.
Outro aspecto relevante: extensão e tessitura vocal da criança (pensar na nota
mais grave e na nota mais aguda do arranjo). Destaco ainda que a escolha da
música a ser arranjada deve ser voltada para o tipo de grupo que se conduz.
Neste contexto, reforço que a opinião das crianças envolvidas é fundamental no
processo, bem como pensar em um arranjo que, vocalmente, seja possível de
ser executado pelo grupo. Qual é a região vocal mais confortável para as crian-
ças cantarem? O arranjo está ajustado às características vocais das crianças?
As características sociais também são relevantes nesse cenário. Pergun-
ta-se: Qual a realidade social dos componentes do grupo? Como eles vivem?
Que tipo de repertório é mais conhecido e ouvido neste contexto? São aspectos
importantes a se considerar.
100

Após essas indagações iniciais, e o levantamento das informações neces-


sárias para o trabalho, começo a escrever o arranjo com uma melodia de base
simples. Opto por iniciá-lo em uníssono, uma vez que é importante para o grupo
se ouvir na totalidade antes de abrir vozes. Iniciar o trabalho do coro em uníssono
também é relevante para promover o desenvolvimento vocal do grupo e traba-
lhar aspectos como afinação, uma vez que instiga os coralistas a se ouvirem e a
buscarem a homogeneidade do som. Aos poucos, com a consolidação da prática
vocal coletiva, começa-se a aplicar repertórios mais elaborados, com arranjos
contrapontísticos, e diferentes graus de dificuldade, com o intuito de viabilizar
o desenvolvimento vocal polifônico do grupo. Para a elaboração dos arranjos
indico a utilização do contraponto da primeira e segunda espécies, pois são fáceis
e práticos; assim como trabalhar com intervalos de terças, sextas e oitavas.
Oriento também que os arranjos sejam enriquecidos com cifras/acordes
para acompanhamento de piano e violão, especialmente considerando a atua-
ção do regente que não tem apoio de correpetidor nos ensaios.
É importante salientar ainda que a experimentação da escrita é funda-
mental. A partitura de um arranjo pode estar bem delineada, conduzida, mas
na prática, no coro, não soar como o esperado.

Praticando

Portanto, para a elaboração de arranjos criativos e que atendam às espe-


cificidades do seu grupo, é importante que o arranjador experimente de forma
prática os arranjos e tenha uma boa base também de conhecimentos teóricos
sobre história da música, harmonia e contraponto. Por quê? Estudar os temas
mencionados auxilia o regente no entendimento da transformação da música ao
longo do tempo, conhecimento de estilos passados e a evolução dessa linguagem
até os dias atuais. Compreender, por exemplo, aspectos teóricos de harmonia,
pode ser uma ferramenta para o arranjador na criação de pontos de apoio para
memorização do arranjo pelo grupo. Sobre o contraponto, propõe-se a criação de
linhas melódicas conectadas. A esse respeito, Tragtenberg (1994), escreve que:

No contraponto a duas vozes geralmente se adiciona uma segunda linha


melódica mais grave ou mais aguda, ao cantus firmus, uma melodia pré-
-escrita, que é a base melódica no exercício do contraponto vocal. A escrita
a duas vozes é dívida em espécies, que introduzem novos aspectos rítmicos
e melódicos à medida que se desenvolvem (TRAGTENBERG, 1994, p. 21).

Para cada som se adiciona um som consonante na linha a ser escrita.


Para Tragtenberg (1994), as duas linhas se combinam através de intervalos
que são divididos em consonâncias perfeitas, imperfeitas e dissonâncias.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 101

Segundo o autor, as consonâncias perfeitas são: uníssono, quinta e oitava.


As consonâncias imperfeitas são: terça e sexta. As dissonâncias são:
segunda, quarta e sétima. Destaca-se que, ao preparar um arranjo, o arranja-
dor deve evitar o movimento paralelo na escrita, pois enfraquece a distinção
melódica de cada voz (TRAGTENBERG, 1994).
As Figuras 1, 2 e 3 ilustram os tipos de movimento usados por mim
ao elaborar um arranjo.

Figura 1 – Movimento paralelo

Fonte: Adaptado de Tragtenberg (1994).

Figura 2 – Movimento contrário

Fonte: Adaptado de Tragtenberg (1994).

No movimento oblíquo uma voz se movimenta e a outra permanece está-


tica. Para Tragtenberg, este tipo de movimento melódico “requer uma maior
102

variedade rítmica para que a voz estacionária não perca a continuidade meló-
dica e a independência em relação à outra” (TRAGTENBERG, 1994, p. 27).

Figura 3 – Movimento oblíquo

Fonte: Adaptado de Tragtenberg (1994).

Em relação ao contraponto de 2ª espécie, ainda fundamentado em Trag-


tenberg (1994), destaco que, para cada nota da melodia, procuro adicionar
dois sons na segunda voz. Nos tempos fortes são usados sons consonantes;
nos tempos fracos, sons consonantes e dissonantes. Para o autor, a dissonância
deve aparecer entre duas consonâncias numa distância de terças e na mesma
direção melódica, ou seja, como nota de passagem entre dois sons consonantes
(TRAGTENBERG, 1994). As Figuras 4, 5 e 6 exemplificam.

Figura 4 – Movimento de 2ª espécie

Fonte: Adaptado de Tragtenberg (1994).


CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 103

Figura 5 – Exemplo 1 de um arranjo vocal do autor utilizando a 2ª espécie

Fonte: O autor, 2022.

Figura 6 – Exemplo 2 de um arranjo vocal utilizando a 2ª espécie

Fonte: O autor, 2022.

Com os exemplos apresentados, destaco que é importante atenção para


que a segunda linha não se sobressaia à primeira. Neste sentido, sugiro que o
arranjador evite movimentos melódicos exacerbados na segunda voz, enten-
dendo-a como um complemento da primeira.
Ainda sobre 2ª espécie, a figura 7 é um exemplo da utilização do uníssono
e da oitava neste formato.
104

Figura 7 – Utilização de uníssono e oitava no contraponto de 2ª espécie

Fonte: O autor, 2022.

É importante observar que os arranjos são simples, de fácil adaptação


e execução pelo coro infantil. Utilizo com frequência terças e sextas, que
podem ser alternadas sem restrição. O uníssono e a oitava têm produ-
zido resultados significativos também com as crianças, apesar da pouca
massa sonora.
Outra possibilidade é trabalhar o dueto e o estilo do contracanto. O
contracanto pode ser criado apenas com a movimentação do baixo; baseado
na sequência harmônica da música. Dá-se preferência aos intervalos de
sextas e terças e à tônica do acorde, pois apresenta efeito harmônico no
arranjo (TRAGTENBERG, 1994), como se exemplifica na figura 8.

Figura 8 – Estilo de dueto e contracanto

Fonte: O autor, 2022.


CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 105

Com a técnica de contracanto é possível desenvolver arranjos mais elabora-


dos e movimentados, acrescentando, por exemplo, notas de passagem. Indica-se
o uso, preferencialmente, de intervalos de terça e sexta em movimento direto.
Elencados esses aspectos, que partem da minha experiência como regen-
te-educador e do meu processo também como pesquisador, a seguir apresento
um resumo de dicas que considero importantes para os profissionais que atuam
na área da educação musical e têm interesse em iniciar o desenvolvimento
dos próprios arranjos para os seus respectivos grupos vocais.

Considerações finais

Concluo essa reflexão apontando que os arranjos podem ser simples e


funcionais; especialmente se o seu grupo é iniciante no trabalho vocal coletivo.
Portanto, procure olhar para a realidade do seu grupo, para o contexto, para
a faixa etária com a qual trabalha.
• 1º passo: escreva uma melodia simples e de preferência com cifras,
para auxiliar o desenvolvimento do arranjo;
• Trabalhe inicialmente com melodias conhecidas do seu público;
isso facilita muito;
• Inicie contemplando o uníssono para que o seu grupo se escute e
perceba a importância desta escuta para o trabalho conjunto;
• Desenvolva a segunda voz, quando for o momento, utilizando a
estrutura do acorde, notas do acorde. Cante a segunda voz, ouça,
e perceba se ficou agradável de se ouvir. Se puder, melhor ainda,
coloque em prática;
• Convide um amigo para cantar com você os seus arranjos!
• Converse com o seu grupo! Procure conhecer as opiniões e impres-
sões deles!
• Pratique com o seu grupo! Experimente! Faça adaptações no(s)
seu(s) arranjo(s) quando necessário!
• Perca o medo e escreva! Acredite em você!
106

REFERÊNCIAS
BARTLE, Jean Ashworth. Sound Advice: becoming a better children’s choir
conductor. New York: Oxford University Press, 2003.

FRANCHINI, Rogéria Tatiane Soares. O regente como educador musical:


saberes para a prática do canto coral com adolescentes. 2014. 143 f. Dis-
sertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

OLIVEIRA, Pedro Augusto Dutra de. Ensino coletivo de música: aprendendo


por meio da convivência. In: JOLY, Ilza Zenker Leme; SEVERINO, Natália
Búrigo (org.). Processos educativos e práticas sociais em música: um olhar
para educação humanizadora. Curitiba: CRV, 2016. p. 65-78.

PEREIRA, Ana Leonor. A voz cantada infantil: pedagogia e didáctica. Revista


de Educação Musical da APEM, Lisboa, n. 132, p. 33-45, 2009.

TRAGTENBERG, Lívio. Contraponto: uma arte de compor. São Paulo:


Edusp, 1994.
CANTANDO COLETIVAMENTE:
a importância do regente
Edésio de Lara Melo1

Contextualização

Quem se dedica a estudar um pouco sobre a história da regência musical


vai se deparar com algumas situações interessantes. A regência é o ato de
conduzir, através do gestual, grupos de cantores e instrumentistas em ensaios
e apresentações musicais. Ao regente “cabe comunicar aos músicos o anda-
mento, as nuances, a mensagem estética e todas as informações contidas no
código do discurso musical” (MUNIZ NETO, 2003, p. 35). A figura do regente
– maestro ou maestrina – como também os identificamos na atualidade, é bem
diferente daquela de séculos anteriores. Se comparamos maneiras de dirigir e
responsabilidades assumidas por eles percebemos que, ao longo do tempo, a
arte de reger acompanhou o desenvolvimento da música, com todas as com-
plexidades notadas na formação dos corais, bandas de música e orquestras,
além de gêneros, estilos e formas musicais que as partituras nos apresentam.
Não há, é certo, uma data específica em que se possa afirmar, claramente,
quando se deu o início da atuação de um músico na função de regente. Sua
figura, certamente, surgiu espontaneamente. Qualquer grupo musical, por
menor que seja, cria condições para que um dos seus integrantes se incumba
de ajudar a organizar atividades, conduzir ensaios e apresentações em virtude
das demandas que nascem naturalmente quando há trabalho coletivo.
Há quem pergunte: os regentes servem para que? Afinal, qual é a sua
função? O que significa seu gestual diante dos grupos musicais e de costas
para a plateia? O que eles querem comunicar com os seus movimentos
de braços e mãos? Eles são realmente importantes? Pois bem, os que não
compreendem, desconhecem quais são as suas funções, os têm como des-
necessários aos grupos que se reúnem para tocar seus instrumentos musi-
cais e cantar juntos. Afinal, nem todos os conjuntos musicais que realizam

1 Professor associado do Departamento de Música da Universidade Federal de Ouro Preto, atuando como
professor e pesquisador nas seguintes áreas: Performance Musical; Percepção Musical, Canto Coral,
Educação Musical e Musicologia. Possui doutorado em História (2013) pela Universidade Federal de
Minas Gerais; é mestre em Música (2001) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; tem
Especialização em Lazer (1994) e título de Bacharel em Música, com ênfase em Regência, (1985) pela
Universidade Federal de Minas Gerais. É professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Música
da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
108

concertos, participam de cerimônias cívicas, religiosas, têm um regente


diante deles durante suas performances.
Identificá-los quando estão atuando é fácil, até mesmo para leigos. De
pronto, eles se distinguem dos demais pela maneira como se mostram antes do
início de uma apresentação musical. Ao entrar no palco para um espetáculo,
cumprimentam o público, o grupo musical e um dos líderes dos músicos
que geralmente atua como seu auxiliar durante os ensaios. Vestem-se de
acordo com a função visto que, boa visibilidade é tida como primordial para
quem se torna ponto de convergência de todos os envolvidos no espetáculo.
Geralmente trazem consigo objetos de uso comum tais como o diapasão, para
afinação do coro, a batuta e as partituras que usam durante suas performances.
Por vezes, se valem do pódio (podium), pequeno tablado que os coloca em
posição mais alta, tornando seus corpos mais visíveis para instrumentistas
e cantores. O pódio “é o ponto focal, tanto visual quanto acusticamente”
(NIEREMBERG, 2011). Os regentes se comunicam com o público, quando
necessário, para informar o que julgam indispensável acerca do programa
musical a ser apresentado. Esses são detalhes próprios dos que se incumbem
de atuar como regentes e têm responsabilidade pelo desempenho artístico
dos grupos artísticos que dirigem.
Mas como agem maestros e maestrinas fora dos palcos? Por vezes são
cofundadores dos grupos musicais que dirigem, quando não atuam como
professores, administradores e empresários. Redigem projetos, agem como
produtores e promotores de atividades artísticas e culturais. Incumbem-se
de selecionar e preparar os musicistas e atuam ainda como compositores,
arranjadores, instrumentistas ou cantores nesses conjuntos. Editam parti-
turas e desenvolvem estudos e pesquisas sobre temas de interesse musical.
Empenham-se em apoiar ações sociais, participam de festivais estudando
ou ministrando cursos e proferindo palestras sobre assuntos relacionados à
arte da música. Envolvem-se com entidades que visam o desenvolvimento e
aprimoramento artísticos de músicos. Portanto, quando nos deparamos com
a pergunta sobre a importância do trabalho desempenhado pelos regentes,
podemos afirmar, com clareza, que ela é imensa.

A direção musical desde a antiguidade

Ao longo da Idade Média, sob a égide da Igreja Católica, sobressaiu o


canto monódico cantado por sacerdotes e que foi sistematizado pelo papa
Gregório I (3/set./590 – 12/mar./604), o canto gregoriano. Desde aquele tempo,
pode-se dizer que houve a prática da direção de grupos vocais, pois não
consideramos a possibilidade de ela ter acontecido sem a ação de um líder.
Documentos antigos revelam a existência de fundamentos de regência e de
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 109

direção: a marcação por meio de batida de bastões, marcações precisas por


meio de instrumentos musicais ou comandos de voz (MATINEZ, 2000, p. 16).
Com ligeiros movimentos de mãos (quironomia) um dos integrantes do grupo
de cantores se incumbia (e isso ainda se faz) de destacar as acentuações do
texto, valores longos ou curtos e movimentos ascendentes ou descendentes
de sons musicais (MATINEZ, 2000).
Destaca-se, no entanto, que a direção de grupos musicais envolvendo
instrumentos e canto é assunto que se tornou mais evidente entre os séculos
XVI e XVII, quando músicos – muitos deles compositores – de dentro de
conjuntos dos quais participavam, se incumbiam de os conduzir em ensaios
e apresentações. Às vezes se valiam de batidas com o pé no chão, ou de uma
vareta sobre um livro ou mesmo de um bastão no chão (GROVE, 1994). Jean-
-Baptiste Lully (1632-1687) tornou-se um dos mais prestigiados e importantes
músicos da sua época. A notícia do seu falecimento gira em torno do fato de
ter contraído gangrena após ter atingido o pé com um bastão que usava para
marcar o ritmo, tempo da música. Bater o bastão no chão, durante a perfor-
mance, era a maneira empregada para marcar o tempo, o compasso, fazer com
que os músicos tocassem e cantassem juntos2.
Até então, essas eram as maneiras pelas quais os líderes se valiam para
reger grupos musicais. E isso se dava em catedrais, palácios – ambiente de
corte –, lugares em que havia grupos instrumentais profissionais prontos para
atender aos desejos de reis, rainhas e de bispos. Nota-se também naquele
momento o surgimento de associações voltadas para práticas musicais em
teatros fora dos palácios e abertos ao público. Mas, como afirma o maestro
Sérgio Magnani, “nessa época o regente não existe como figura separada
dos instrumentistas e cantores” (MAGNANI, 1996, p. 291). Quem conduz
o conjunto nos teatros ou nas catedrais, indicando os ataques e marcando a
unidade rítmica, é, geralmente, o próprio autor, que toca o cravo ou o órgão.
O início do século XVII é o do surgimento da ópera. Por volta de 1600,
o compositor italiano Jacopo Peri (1561-1663) propôs à camerata Bardi,
grupo de humanistas e letrados liderados pelo conde Bardi em Florença, na
Itália, a realização de uma narrativa da história de Euridice que em vez de ser
cantada como um madrigal polifônico, seria interpretada por cantores solistas
sendo acompanhados por um grupo de instrumentistas. Desejosos de ressus-
citar a tragédia grega, os florentinos, ao apresentar espetáculo ocorrido em
1600, criaram este gênero. Ao longo do século XVII inúmeros compositores
se destacaram como operistas, tais como Claudio Monteverdi (1567-1643)

2 Historiadores da música dão destaque a essa maneira de dirigir o conjunto, situação que, inclusive, tem
sido retratada em filmes. Na internet há exemplos de representação dessa maneira de dirigir de Lully.
Sugerimos, na área de busca da internet, procurar por Marche pour la cérémonie des Turcs, de Lully, e
apreciar vídeos disponíveis.
110

Alessandro Scarlatti (1659-1725), Henry Purcell (1659-1695) e Jean-Bap-


tiste Lully3, ele mesmo, um florentino, que se transferiu para Paris a fim de
trabalhar na corte de Luiz XIV.
A partir do século XVIII esta atividade passou a ser exercida por violi-
nista da orquestra (spalla), que se valia do arco do instrumento para indicar
as entradas das músicas, e, principalmente, pelo cravista que tinha mais liber-
dade para se comunicar com o grupo ao fazer pequenos gestos com a cabeça
e mãos mesmo durante a apresentação musical. Na atualidade, muitos grupos
musicais que se dedicam à pesquisa em música e interpretam repertórios do
período barroco reproduzem essa maneira de dirigir. Destaca-se que o século
XVIII foi aquele em que se acentuaram os movimentos de desenvolvimento
musical, quando a figura do regente começa a tomar forma. No entanto, ele
ainda atua dentro do conjunto.
Na atualidade, há diversas maneiras de atuação dos regentes: sentados
tocando um instrumento, cantando, no fosso do teatro, no coro da igreja ou
mesmo ausente na hora de um concerto. O coro de câmara (com o maestro
cantando) ainda pode ser visto. Em situações que demandam movimentação
dos cantores no palco (coro cênico), nem sempre conseguimos identificá-los.
Seus trabalhos de direção resumem-se aos ensaios preliminares e o geral, mas,
excluindo-os das performances. As cenas não comportam regentes colocados
à frente dos corais a fazer movimentos corporais e gestos com braços e mãos
da forma como ocorrem com os que se apresentam parados, estáticos diante do
público. A sua ausência física, no pódio, não significa que ele esteve distante
de toda a preparação da obra apresentada4.
Muitos maestros se destacam exercendo tarefas importantes que se resu-
mem em auxiliar outros regentes titulares em suas atividades. Assim são
os trabalhos dos maestros internos que atuam em óperas, musicais, quando
instrumentistas e cantores exercem suas funções sem, necessariamente, apa-
recer em cena para o público de acordo com o solicitado pelas partituras.
Muitos, por opção, gostam de trabalhar na preparação e condução de ensaios
preliminares. Veem o convívio, o encontro que se dá no ensaio, como mais

3 Lully adotou esse nome ao se mudar para a França. Seu nome de batismo era Giovanni Battista Lulli.
4 Como exemplo, sugerimos dois espetáculos: a) A Orquestra Juvenil da Bahia (Neojiba) apresenta Tico-Tico
no fubá, composição de Zequinha de Abreu com arranjo do tubista e compositor Jamberê Cerqueira, durante
o concerto de encerramento da Turnê Europa 2018, na Philharmonie de Paria no dia 17/set./2018. Neste
espetáculo a orquestra se apresenta sem o regente no pódio. Ele, a bem da verdade, é o pianista Ricardo
Castro que participa do concerto tocando o seu instrumento, o piano (Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=SFRR3wdmDqE).
b) Os grupos Ponto de Partida (de Barbacena/MG) e os Meninos de Araçuaí (Araçuaí/MG) exibem o musical
Prá Nhá Terra, gravado em 2007 e que esteve em turnê pelo Brasil desde aquele ano. No espetáculo o coro
canta e encena sem a presença do regente à sua frente, a dirigi-lo (Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=pAYmpl-K7dA).
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 111

importante que o concerto. Nem por isso suas atividades deixam de ser
relevantes. Somente em casos especiais, em virtude de uma urgência, de
imprevistos que impedem o trabalho dos regentes titulares nos concertos,
eles os substituem nas apresentações musicais.
No coral, se põem estrategicamente dento do grupo para, discretamente,
atuarem como integrantes de um dos naipes e realizarem movimentos que
orientam os demais durante a performance. Isso repete a prática antiga de
pequenos grupos de câmara, os madrigais como são chamados, sendo bastante
comum. Portanto, as maneiras encontradas de reger grupos são muitas. Não
se resumem, como exposto acima, àquelas em que os regentes se mostram e
são facilmente vistos devido à maneira como se postam no palco para suas
exibições junto a grupos musicais.
Os regentes atuais são o resultado de maneiras de atuar que se defini-
ram durante o século XIX. Foi neste século que se notou o crescimento das
orquestras, bandas de música e corais. Foi neste século também que nasceu de
forma definitiva o regente moderno. De acordo com o maestro e compositor
norte-americano Leomard Bernstein (1918-1990):

Mais ou menos no tempo de Beethoven, as orquestras começaram a tomar


maiores proporções e cedo se verificou ser aconselhável o aparecimento
de alguém que subisse a um estrado e dirigisse os músicos. [...] Verdadei-
ramente, o primeiro maestro neste sentido da palavra, foi Mendelssohn, o
qual estabeleceu os fundamentos desta tradição de regência com base num
conceito de precisão simbolizado no ponteiro de madeira a que chamamos
de batuta (BERNSTEIN, 1954, p. 126-127).

“Embora os compositores tivessem predominado no pódio durante maior


parte do século XIX, muitos deles eram deficientes quando se tratava de
reger” (LBRECHT, 2002, p. 27). Outros, no entanto, se notabilizaram. Os
compositores-regentes alemães Felix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847)
e Wilhelm Richard Wagner (1813-1883) são, na opinião de Leonard Berns-
tein, os precursores da regência moderna. Desde que se posicionaram acerca
das funções dos regentes eles começaram a ser vistos como grandes estre-
las no cenário musical (BERNSTEIN, 1954). Bernstein ainda nos informa
que Mendelssohn se dedicava à realização exata da partitura que dirigia. No
entanto, Richard Wagner defendia que o maestro “que se prezasse deveria
transmitir à partitura que dirigia a sua própria personalidade, bem como as
suas próprias emoções e o seu próprio impulso criador” (BERNSTEIN, 1954,
p. 127). Wagner, segundo Lebrecht, “foi amplamente considerado o regente
supremo de seu tempo e uma influência máxima sobre o estilo da regência”
(LEBRECHT, 2002, p. 29).
112

Carlos Alberto Pinto Fonseca (1933–2006), compositor e regente do Ars-


-Nova – Coral da UFMG, se pronunciando acerca da evolução da arte de reger,
disse que para além da maneira de bater com o bastão no chão para marcar o
tempo “1” do compasso, como fazia Lully, a técnica de regência desenvolvida
no século XIX unia duas tendências: a quironômica (francesa) e a prussiana
(alemã). A quironômica, expressiva, toda em curvas e mais adequada para dirigir
o canto gregoriano; e a prussiana, dura, angulosa, caracterizada pela precisão.
O maestro Kurt Thomas definiu a mistura delas como originárias de uma nova
maneira de reger (PINTO FONSECA, 1999). Resumindo, como afirmou Oscar
Zander, “o regente de hoje abrange em sua técnica as práticas do passado, é ele
a soma do todo que já foi exigido até hoje” (ZANDER, 2003, p. 46).
Outra novidade surgida no século XIX é que os compositores não escre-
viam essencialmente para os conjuntos dos quais participavam e regiam, como
ocorria em séculos anteriores. A função de compositor no início do século
ainda era mais bem compreendida do que a arte de reger. Posteriormente é
que os maestros, independentemente de outras habilidades como a de compor
ou de ser um instrumentista, ganharão destaque, tornando-se estrelas e con-
quistando reconhecimento internacional pelos seus trabalhos como regentes
de grandes orquestras e corais. Mesmo assim, é importante considerar que no
século XX ainda pudemos observar figuras que se sobressaíram como compo-
sitores e regentes, tal como os foram Gustav Mahler (1860-1911) e Leonard
Bernstein. No entanto, “desde que a arte de dirigir adquiriu esse caráter de
alta especialização, poucos foram os grandes compositores verdadeiramente
interessados na arte diretorial” (MAGNANI, 1999, p. 293).
Considerados esses aspectos de contextualização histórica, a seguir o foco
será direcionado para um olhar mais prático sobre o trabalho com diferentes
grupos vocais.

A arte de saber trabalhar com grupos vocais

A complexidade imposta pela estrutura de grandes grupos musicais


e de repertórios forçaram muitos a se prepararem melhor para atuar como
regentes. Ter conhecimento sobre instrumentos musicais e voz humana que
os habilitem a trabalhar com bandas, corais e orquestras tornou-se necessi-
dade. Atualmente, as responsabilidades depositadas nos regentes corais são
múltiplas. Isso pode implicar negativamente no seu desempenho devido aos
problemas derivados do acúmulo de funções que geralmente executam, tanto
os profissionais, quanto os amadores.
Há pré-requisitos que os capacitam a atuar com mais segurança e gosto
com grupos musicais específicos, como é o caso dos corais. É comum obser-
varmos que há regentes que obtêm excelentes resultados trabalhando com
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 113

coros. No entanto, notamos que o mesmo não ocorre quando se põem a dirigir
orquestras ou bandas de música. E a recíproca é verdadeira: nem todos que
se distinguem na regência de grupos instrumentais obtém o mesmo resultado
na condução de coros. E isso independe da organização desses conjuntos, se
são profissionais, semiprofissionais ou amadores.
Muitas competências são esperadas de regentes que pretendem trabalhar
com corais para que possam exercer com segurança seus trabalhos e desenvol-
ver uma liderança eficiente. Eles devem ter conhecimento musical profundo
e cultura geral sólida. Devem aperfeiçoar suas habilidades físicas com vistas
ao bom padrão de gestual e comunicação eficaz destinada à correção de faltas,
motivação, exemplificação e equilíbrio da sonoridade. É preciso lembrar que “a
sonoridade de um coro depende muito do tipo de gestual utilizado pelo regente”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 12). Enquanto intérprete, recriar as intenções do com-
positor, entender de estilos e períodos históricos além do seu estilo próprio
(MATHIAS, 1986). Finalmente, o regente moderno deve adquirir habilidade
suficiente para lidar com as novas tecnologias em benefício da administração,
da comunicação social e da otimização de trabalhos cotidianos dos corais.
Para Hilary Apfelstadt, professora emérita de estudos corais na Uni-
versidade de Toronto, “líderes eficientes são capazes de obter a cooperação
de outras pessoas e aproveitar os recursos resultantes dessa cooperação para
a realização de um objetivo” (APFELSTADT, 2001). Mathias enxerga na
influência social uma das prerrogativas de um líder para trabalhos em grupo.
De acordo com ele, “o maestro, líder, é aquele que faz com que as pessoas
cresçam, aquele que valoriza o esforço de cada elemento através de interre-
lações pessoais, buscando uma unidade dentro do grupo” (MATHIAS, 1986,
p. 18). Mas, o que faz um líder? O maestro Nelson Mathias diz que:

Ele determina objetivos, planeja as atividades necessárias, organiza um


programa, prepara um cronograma, estabelece pontos de controle, escla-
rece responsabilidade, mantém abertos os canais de cooperação, resolve
problemas e elogia a quem merece. Quanto às qualidades de um bom líder
ele destaca sua dedicação altruísta, coragem, determinação, motivação,
humildade e, por fim, competência (MATHIAS, 1986, p. 18-19).

Apfelstadt elenca quatro questões levantadas pelo maestro Ray Robinson


ao refletir sobre o desafio da liderança coral no século XXI:

O líder deve assumir o controle; o líder deve desenvolver uma estrutura psico-
lógica para se estabelecer o ambiente apropriado para um trabalho em comum;
o líder deve ser capaz de promover desenvolvimento de habilidades musicais
adequadas nos participantes; o líder deve ser capaz de gerar satisfação com-
partilhada (ROBINSON, s. d. apud APFELSTADT, 2001, n. p.).
114

Uma das qualificações relacionadas à liderança está diretamente rela-


cionada ao fazer musical, ao estudo da partitura e planejamento de ações que
antecedem o início dos trabalhos. Para o maestro Nierenberg, um bom líder
musical é aquele que se organiza, se prepara com bastante antecedência para
responder prontamente às demandas técnicas e musicais que deverão surgir
durante os ensaios que antecedem as performances. Para ele, um líder deve se
envolver com o que ainda não aconteceu. De outra forma, não estará condu-
zindo de fato (NIERENBERG, 2011, p. 91).
O gestual constitui outra habilidade a ser estuda e aperfeiçoada pelos
regentes. Ter gestual padronizado, principalmente para os regentes que pas-
saram a desenvolver trabalhos com grupos diferentes e em locais também
diferentes, virou necessidade. O gestual da regência por esse motivo, precisou
ser universal. “Portanto, o regente, seja ele profissional ou amador, sua própria
personalidade, seu estilo próprio de dirigir, deve seguir um padrão básico e
universal” (MARTINEZ, 2000, p. 19). Daniel Barenboim, estudando regência
com o maestro Igor Markevitch anotou que ele insistia na precisão rítmica e no
equilíbrio e dava muita importância à claridade da sonoridade, à claridade do
ritmo e à claridade dos gestos. Ensinava que o fundamental da direção consistia
em desfazer-se dos movimentos não necessários, em suprimir gesticulações
que não serviam para nada, mas só para distrair (BARENBOIM, 2003).
Além desses aspectos, quando se reflete especialmente sobre a regência
coral, é importante destacar que para ter bom desempenho com o canto coletivo
é de extrema importância para os regentes o conhecimento sobre a voz cantada;
técnicas de canto e fisiologia da voz. Para Mara Bhelau e Maria Inês Redher:

O regente de coral é um profissional da voz com perfil e habilidades únicas.


Em sua atuação é exigido um misto de criação e desenvolvimento de vozes,
harmonização de timbres e destaque de diferenças particulares, o que vai
muito além de um puro domínio técnico. O regente rege com o corpo e
a mente e principalmente através de duas manifestações expressivas que
garantem a eficácia de sua atuação: os gestos e a voz. A figura do regente
constitui o elemento decisivo de equilíbrio entre a obra, os executantes e
os ouvintes, transformando o som de cada um em uma realidade acústica
analisável e em uma emoção coletiva de altíssima complexidade. Cabe
ao regente conciliar e harmonizar as vozes individuais dentro do grupo
vocal coral, tal como um instrumentista controla seu instrumento musical,
buscando uma identidade sonora única sem discrepâncias, com qualidade
artística equilibrada (BEHLAU; REDHER, 2001, p. 8).

Todos os regentes, por mais bem preparados que sejam musicalmente,


estarão aptos para atuar, dirigir grupos vocais infantis, infantojuvenis ou adul-
tos e de vozes iguais ou mistas? A resposta é não. Tomemos como exemplo
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 115

o trabalho com grupos vocais infantis ou infantojuvenis. Reger grupos que


têm, para além da música, objetivos gerais que visam a formação da criança,
demanda dos maestros saberes que estão além das suas competências musicais.
A prática coral, principalmente quando direcionada à faixa etária infantil ou
infanto-juvenil, segundo Lucy Maurício Schimiti:

Requer um direcionamento do estudo por parte do líder para que esta não seja
apenas mais uma disciplina dentro do curriculum geral básico de formação,
mas que seja algo diferenciador nesse processo de estruturação da persona-
lidade, de formação do caráter, do despertar da sensibilidade e do raciocínio,
de desenvolvimento do senso humanístico (SCHIMITI, 2003, n. p.).

As especificidades inerentes aos trabalhos com crianças, também ocorrem


com grupos de jovens e adultos, solicitando dos que pretendem atuar com
esses grupos os cuidados e preparos adequados aos seus perfis. E há ainda
outros aspectos que solicitam atenção especial e que têm a ver com áreas
de atividades desses grupos. Um coro pode ser de câmara, cênico, sacro, de
estudantes do ensino básico ou universitário, de empresa, de projetos sociais;
e se são de amadores ou profissionais, esses geralmente pertencentes a grandes
teatros e dedicados mais à interpretação de repertório lírico-sinfônico.

Considerações finais

A atividade coral no Brasil teve início no fim da primeira metade do século


XVI, quando os padres Jesuítas começaram a organizar grupos de cantores para
atuar nas cerimônias religiosas. Posteriormente, desde o início da construção
das primeiras capelas em algumas partes do Brasil, formaram-se grupos de
canto e instrumentos para uso na liturgia e festas no âmbito da Igreja Católica.
Na segunda metade do século XIX houve trabalhos de autores brasileiros que
começaram a escrever para coro com acompanhamento de instrumentos (piano,
principalmente). Destaca-se também neste período os coros das óperas. Não tive-
mos nos primeiros quatro séculos atividade coral para cantar a capella repertório
secular, como agora. Isso só aconteceu, e de forma consistente, no século XX.
A evolução da atividade coral que se notou na Europa entre as décadas de
1950 e 1960 também pôde ser observada no Brasil na mesma época. Houve
no momento um crescimento qualitativo e quantitativo de corais. Em nosso
país, quando ainda predominava em alguns lugares a formação de grupos
vocais sacros ou escolares, devido ao movimento do Canto Orfeônico que
havia sido implantado na década de 1930, começaram a surgir grupos vocais
em clubes, associações, empresas, escolas de ensino básico e médio, e em
faculdades que estavam sendo criadas no período.
116

O século XX é de muitas novidades para a o canto coral. Uma delas é a


entrada definitiva da mulher como regente em uma área até então dominada
por homens. O número de mulheres atuando como maestrinas era tão pequeno,
que pouquíssimos são os trabalhos que as destacam nesse cenário. É recente
a evidência feminina no estudo da regência, seja de coro ou orquestra. No
entanto, é na condução de grupos vocais que as mulheres se sobressaem
atualmente. Essa ênfase passa a ser notada a partir de um movimento con-
sistente em direção ao estudo e interpretação da música folclórica nacional
e seu uso em grupos vocais organizados no âmbito escolar. Pode-se afirmar
que atualmente as mulheres ocupam espaços em postos-chave de administra-
ção de entidades que incentivam trabalhos de pesquisa e ensino da regência,
compõem música coral, fazem arranjos e ainda se envolvem com educação
musical para crianças, jovens e adultos através do canto coletivo.
Outro fator relevante diz respeito ao surgimento no país de grupos corais
interessados na interpretação de música coral do período renascentista, de
peças do folclore brasileiro, de músicas de autores nacionais e, principalmente,
da interpretação da música popular brasileira. Conjuntos corais começaram
a apresentar trabalhos significativos e ser reconhecidos internacionalmente
desde a virada da década de 1950 para 19605. Concomitante a isso, composi-
tores, alguns deles regentes, começaram a se interessar pela composição de
peças exclusivas para coro misto e a fazer arranjos tanto de música folclórica
quanto de música popular nacional ou internacional. E para atender à demanda
crescente de pessoas habilitadas para dirigir corais, surgiram cursos de curta
duração e até de nível superior para formar regentes e professores de técnica
vocal capazes de lidar bem com novas formações corais e repertórios com
recursos estilísticos nos ritmos, nas melodias e harmonias ausentes em obras
de séculos anteriores.
Entre outros aspectos relevantes que agitaram o movimento coral a partir
da segunda metade do século XX estão a fundação de associações e federações
de coros, a realização de festivais, encontros de corais e de concursos tanto de
composição musical e de performance e de novas tecnologias que passaram
a fazer parte do ambiente de trabalho de regentes e coralistas. Carlos Alberto
Pinto Fonseca, no ano de 1985, em artigo publicado no Arruia – Órgão da
Associação Artística Coral Júlia Pardini, alertou sobre esse movimento rele-
vante iniciado no Brasil e o chamou de:

5 Madrigal Renascentista (Belo Horizonte) sob direção de Isaac Karabstcheky e o Coral de Ouro Preto (Ouro
Preto/MG) sob direção de Uburajara Quaranta Cabral fazem parte desta lista. Ambos deram atenção para
a música renascentista. O Madrigal Renascentista tornou-se a partir dos anos setenta um dos principais
intérpretes de música contemporânea. Ao Coral de Ouro Preto coube dar atenção especial a repertório de
música popular brasileira, principalmente a bossa nova, algo inédito e precursor de novas abordagens em
repertório coral na época.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 117

Movimento renovador no Canto Coral: tratava-se de aliar à execução


vocal outros elementos de comunicação sejam ambientais (efeitos de luz,
projeção de slides, efeitos cênicos) sejam de comportamento no palco de
cantores e mesmo regentes (expressões faciais, corporais, mímicas, dança,
sublinhamento de textos com gestos, interjeições faladas, superposição de
declamação teatral ou de poemas falados, ou discursos críticos ou chis-
tosos) ou também uso de maquiagem, trajes de caracterização, cartazes,
faixas e um sem número de acessórios, incluindo carnavalescos6 (PINTO
FONSECA, 1985, n. p.).

Aquela década foi, sem dúvida, uma das mais ricas para o movimento coral
brasileiro. Regentes entenderam ser necessário formar parceria com outros pro-
fissionais (diretores de teatro, coreógrafos, professores de técnica vocal e canto,
cenógrafos e técnicos em iluminação de palco, operadores de vídeo) para dar
conta das demandas surgidas. Perceberam todos não ser aconselhável trabalhar
sozinhos. As parcerias fomentam diálogos, trocas de ideias e de compromissos.
E a importância da regência na prática vocal coletiva se evidencia.

6 Tornaram-se referência nessa época, segundo o maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, os trabalhos
desenvolvidos por Samuel Kerr (Coral Paulistano e Coral da Unesp) e Thelma Chan, em São Paulo, capital,
com o Grupo Cantolivre, além de Marcos Leite no Rio de Janeiro, com o Cobra Coral e posteriormente o
Garganta Profunda.
118

REFERÊNCIAS
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regentes corais. In: CONVENÇÃO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRA-
SILEIRA DE REGENTES DE COROS, 1., 2001, Brasília, DF. Anais... Bra-
sília-DF: Associação Brasileira de Regentes de Coros, 2001.

BARENBOIM, Daniel. Mi vida en la música. Buenos Aires: El Ateneo, 2003.

BEHLAU, Mara; REDDER, Maria Inês. O regente de coral e sua voz. Infor-
mativo Aparc., n. 5, ago. 2001.

BERSTEIN, Leonard. O mundo da música, os seus segredos a sua beleza.


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brasileira. Rio de Janeiro: Oficina de Canto Coral, 2007.

LEBRECHT, Norman. O mito do maestro: grandes regentes em busca do


poder. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.

MAGNANI, Sérgio. Expressão e comunicação na linguagem da música.


2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

MARTINEZ, Emanuel. Regência coral: princípios básicos. Curitiba: Colégio


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MATHIAS, Nelson. Coral: um canto apaixonante. Brasília: Musimed, 1986.

MUNIZ NETO, José Viegas. A comunicação gestual na regência de orques-


tra. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2003.

NIERENBERG, Roger. Maestro: uma história surpreendente sobre como


liderar ouvindo. Tradução: Paulo Polzonoff Jr. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

PINTO FONSECA, Carlos Alberto. Considerações em torno de novas ten-


dências no cato coral no Brasil. O Arruia, Belo Horizonte, n. 519, mar. 2007.
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PINTO FONSECA, Carlos Alberto. Considerações sobre a técnica do gesto


na regência. Anais da Convenção Internacional de Regentes de Coros.
Brasília, 1999.

RAYNOR, Henry. História social da Música: da Idade Média a Beethoven.


Tradução: Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

SCHIMITI, Lucy. Regendo um coro infantil: reflexões, diretrizes e atividades.


Revista Canto Coral, Brasília: Associação Brasileira de Regentes de Coros,
n. 1, 2003.

ZANDER, Oscar. Regência Coral. 5. ed. Porto Alegre: Movimento, 2003.


INCLUSÃO SOCIOCULTURAL ATRAVÉS
DA PRÁTICA VOCAL COLETIVA NO
CORAL INFANTIL DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Maria José Chevitarese1

Contextualização
A atividade coral como agente de transformação sociocultural foi tema
de minha tese de doutorado, defendida em 2007 no Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CHEVITARESE, 2007). Nesse
estudo, tendo como referenciais o sociólogo francês Joffre Dumazedier (1915-
2002), que defende a importância do lazer na formação do indivíduo, e o
educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), que introduz uma nova rela-
ção, baseada no diálogo, na descentralização do poder, na educação para
a liberdade e autonomia, no desenvolvimento do pensamento crítico, e na
conscientização do indivíduo como sujeito histórico, busquei conhecer quais
transformações socioculturais ocorreram no Coral Infantil Meninos de Luz,
sob minha direção de 2001 a 2007, com crianças entre 8 e 16 anos de idade,
na Comunidade Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, situada entre os bairros de
Copacabana e Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro.
Para Joffre Dumazedier:

O tempo de lazer, enquanto um tempo de fruição, torna-se também um


tempo de aprendizagem, aquisição e integração, diverso dos sentimentos,
conhecimentos, modelos e valores da cultura, no conjunto das atividades
nas quais o indivíduo está enquadrado. O lazer poderá vir a ser uma
ruptura, num duplo sentido: a cessação de atividades impostas, o ree-
xame das rotinas, estereótipo e ideias já prontas que concorrem para a
repetição e especialização das obrigações cotidianas (DUMAZEDIER,
2001, p. 265).

1 Graduada em Regência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Música Brasileira pela
Universidade do Rio de Janeiro – UNIRIO e doutora em Psicossociologia de Comunidades pela UFRJ. Criou e dirige
os coros Infantil da UFRJ (1989) e Brasil Ensemble-UFRJ (1999), que vêm desenvolvendo um trabalho artístico
reconhecido no meio musical. Criou o projeto “A escola vai à ópera”, voltado para o público infantil, tendo produzido
dez óperas infantis, assistidas por mais de 20.000 crianças. Na área administrativa atuou como Vice decana e
Decana do Centro de Letras e Artes, Pró-reitora de Extensão, Diretora Artística da Escola de Música, Diretora
de Cultura Esporte e Lazer da Pró-reitoria de Extensão e Diretora da Escola de Música da UFRJ. Atualmente
coordena as ações de canto coral do projeto “Um Novo Olhar”, parceria entre a UFRJ e a FUNARTE.
122

Fez parte da metodologia empregada os “círculos de reflexão”, desenvol-


vidos com base em “palavras-geradoras”, escolhidas a partir do repertório ado-
tado e do universo cultural do grupo. Estas palavras eram o ponto de partida
para as discussões sobre as “situações problema”, que decodificadas e com-
preendidas auxiliavam na construção de soluções pelo grupo (FREIRE, 2004).
Os resultados dessa pesquisa apontaram no sentido de ser possível, atra-
vés da atividade coral, aprimorar o autocontrole, ampliar a autoestima, a des-
coberta das próprias potencialidades, a melhoria das relações interpessoais,
o desenvolvimento cultural, além de incluir as crianças em espaços sociais
que antes não tinham acesso. Além disso, houve também o desenvolvimento
do pensamento crítico e o amadurecimento em relação à forma de encarar os
problemas cotidianos. Para conhecer mais profundamente a pesquisa desenvol-
vida junto ao Coral Meninos de Luz, no período de 2001 a 2007, recomendo
a leitura de minha tese de doutorado intitulada “O canto coral como agente
de transformações sociocultural nas Comunidades do Cantagalo e Pavão-Pa-
vãozinho: Educação para liberdade e autonomia” (CHEVITARESE, 2007).
O Coral Infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro também
desenvolve seu trabalho baseado nos mesmos referenciais teóricos que os
utilizados no Coral Meninos de Luz. Embora os dois grupos tenham caracte-
rísticas distintas, percebo muitas semelhanças em relação às transformações
socioculturais ocorridas a partir da atividade coral. Para que possamos conhe-
cer a sistemática do trabalho desenvolvido com esse grupo, apresentarei as
diretrizes que vêm norteando nossa ação e os resultados alcançados.

O Coral Infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O Coral Infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro é um projeto


de extensão universitária, criado por mim, em 1989. Formado por crianças com
idades entre 7 e 15 anos, o grupo foi pensado para ser um espaço de aprendi-
zagem e desenvolvimento do indivíduo em um contexto grupal, interacional,
no qual a afetividade, a sociabilidade, a consciência e o pensamento crítico
são desenvolvidos concomitantemente com a aprendizagem musical. O coro
se propõe a ser um espaço onde toda ação é educativa, a qualidade artística
é buscada a cada instante, sem que se perca o prazer e a alegria do cantar em
conjunto, além de promover a inclusão sociocultural.
Penso que não há lugar mais propício para se realizar um trabalho dessa
natureza, do que em uma universidade. A universidade se apoia em três pilares:
ensino, pesquisa e extensão, e o coro infantil da UFRJ transita por todos eles.
No ensino, tem sido laboratório de observação e prática para os alunos do curso
de Licenciatura em Música e do Bacharelado em Regência Coral. Na área da
pesquisa, tem servido como campo de estudo para monografias, dissertações,
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 123

teses e artigos científicos. Como atividade de extensão, o coro atende a crianças


da comunidade, desenvolvendo um trabalho que pode modificar significativa-
mente a vida dessas crianças. Além disso, como professora universitária, com
estabilidade, autonomia didática e pedagógica, tenho liberdade para escolher os
projetos de pesquisa e extensão que desejo desenvolver, bem como a duração
desses. A universidade me dá a oportunidade de realizar um trabalho coral com
continuidade, de experimentar novas técnicas e acompanhar o desenvolvimento
de cada criança, o que é fundamental para o aprimoramento de um grupo. Em
meu grupo tenho crianças que entram com 7 anos de idade e ficam conosco
até os 15 anos, sendo trabalhadas tecnicamente, afetivamente, culturalmente
e musicalmente por oito anos ininterruptos. Posso traçar estratégias de curto,
médio e longo prazo para o grupo, pois sei que a manutenção do trabalho
dependerá principalmente de mim, pesquisadora e coordenadora do projeto.

Os cantores

Ter clareza dos objetivos e metas a serem alcançados com o coro é


fundamental para alcançarmos sucesso. Sempre foi meu objetivo formar um
coro de excelência, que atendesse principalmente crianças provenientes das
escolas públicas do Rio de Janeiro. Dentro da nossa realidade, normalmente
as crianças que estudam nas escolas públicas do RJ, são provenientes de
uma classe econômica mais desfavorecida, e é esse o público com que eu
trabalho. 70% dos meus cantores estudam em escola pública. Atualmente
tenho no grupo um menino extremamente musical, deficiente visual; um outro
cantor com deficiência auditiva, uma criança com problemas de locomoção
e algumas crianças com histórico de vida bastante delicado. Procuro incluir
todas as crianças que têm interesse em participar do grupo, integrando-as e
buscando extrair de cada uma delas o seu melhor.
Embora até então eu sempre tenha trabalhado com a faixa etária de 7 a
15 anos em um só grupo, considero que seria interessante dividirmos o coro
em dois grupos; um com crianças com idades entre 7 e 11 anos e outro com
idades entre 12 e 15 anos. No entanto, por falta de disponibilidade de tempo,
junto todas as crianças num único grupo. No ano de 2019, por exemplo,
trabalhei com 60 crianças dentro de sala de aula, muitas vezes sem pianista
acompanhador, e isso está longe do ideal.
Para a entrada das crianças no grupo não é feito nenhum tipo de sele-
ção. Na verdade, sou contra esse tipo de procedimento porque me parece
inapropriado ouvir uma criança e concluir que ela é ou não capaz de afinar.
As crianças são ouvidas apenas para que eu possa conhecer o grau de desen-
volvimento técnico em que se encontram, bem como aspectos ligados à sua
voz, como por exemplo: timbre, extensão e tessitura vocal. Como a regente
124

e educadora canadense Jean Ashworth Bartle (1947), acredito que a voz da


criança pode e deve ser trabalhada e aprimorada.

Todas as crianças podem ser ensinadas a cantar se elas começarem sua


descoberta vocal pessoal desde muito cedo e se forem ensinadas por
alguém que não apenas acredita que toda criança pode cantar, mas tam-
bém possui as competências para ensiná-la a fazê-lo (BARTLE, 2003,
p. 8, tradução nossa).

Conhecendo a voz de cada criança que participa do coro posso traçar


estratégias pedagógicas a serem adotadas em meus ensaios a fim de que todas
as crianças se integrem ao grupo, se sintam acolhidas, incluídas e possam se
desenvolver. Outra questão bastante importante é a promoção da inclusão
sociocultural dos cantores, que em sua quase totalidade, têm poucas oportuni-
dades de acesso aos espaços culturais, vivendo em um mundo bastante restrito.
O canto coral poderá dar a eles a oportunidade de entrar em contato com um
novo mundo, ampliando sua cultura, promovendo integração e ascensão social.

A dinâmica de ensaios

Realizamos dois ensaios por semana, com duração de duas horas cada
um, perfazendo um total de 4 horas de ensaio, de março a dezembro. Os
ensaios jamais são cancelados porque considero importante manter a rotina
de trabalho e para que as crianças saibam que, com toda certeza, estarei lá
esperando por elas. Normalmente chego à minha sala uma hora antes do ensaio
começar, arrumo as cadeiras na forma que desejo trabalhar para que, quando
as crianças entram na sala encontrem um ambiente limpo, organizado e agra-
dável para recebê-las. Isso me ajuda a ter uma rotina e a alcançar qualidade
e equilíbrio no ensaio, porque ao entrarem naquele ambiente, as crianças se
sentem acolhidas e seguras. Bartle (2003) chama a atenção para a importância
de uma sala bem arrumada para termos um ambiente mais propício para o
ensaio. Planejo meus ensaios de forma que nunca precise de ensaios extras e
que todas as obras estejam prontas pelo menos uma semana antes do concerto.
A semana do concerto é reservada para os ajustes finais e para exercitar o
canto de todo o repertório do concerto, de modo que o cantor crie resistência
física e mantenha o interesse durante a execução de todas as obras.
A técnica vocal tem lugar de destaque em meu ensaio, sendo a base do traba-
lho desenvolvido. Ela precisa estar presente durante todo tempo em que cantamos,
desde o aquecimento vocal, passando pelo ensaio do repertório, quando a técnica
é aplicada e fixada, até a realização de nossos concertos (RHEINBOLDT, 2018).
Ninguém poderia imaginar uma orquestra onde os instrumentistas não sabem
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 125

tocar seu instrumento. No coro, o instrumento é a voz e ela precisa ser trabalhada
a cada instante. Além disto, costumo chegar uma hora antes do ensaio também
para trabalhar técnica vocal com as crianças que desejam se aprimorar. Como
são muitas crianças interessadas, divido em dois grupos: às terças-feiras atendo
as crianças de vozes mais agudas e às quintas-feiras as de vozes mais graves.
Não existe um só ensaio em que a técnica vocal não esteja presente.
Sempre inicio com alongamentos, passando por exercícios de respiração e de
controle de saída de ar, exercícios em glissando e vocalises. Gosto também de
criar vocalises que possam preparar o cantor para alguma dificuldade espe-
cífica do repertório. A seguir entramos propriamente no estudo do repertório
coral. Durante todo o estudo, a técnica vocal é aplicada ao repertório, de modo
que o cantor compreenda a importância da técnica para a sonoridade do coro.
Aos poucos a criança começa a perceber a diferença na sua voz quando ela
faz uso da técnica e a partir dessa percepção ela mesmo passa a exigir que
façamos exercícios vocais para que sua voz soe com mais facilidade. É preciso
pensar em uma técnica vocal que seja ao mesmo tempo prazerosa e eficiente
para que tenhamos um bom resultado. A partir do momento em que a criança
percebe que consegue cantar com mais facilidade e que sua voz está soando
mais bonita, ela mesmo passa a se interessar e a exigir que dediquemos mais
tempo às aulas de técnica vocal. A partir daí é a criança que exige que eu tra-
balhe mais e mais a sua voz. Não porque eu estou impondo, mas porque ela
percebeu que o trabalho vocal faz bem à sua voz. E isso faz toda diferença!
Atualmente tenho uma auxiliar, ex-aluna, que auxilia nos ensaios, como
voluntária. Essa ajuda tem sido muito valiosa porque, como lido com um grupo
muito grande e heterogêneo, quando uma ou um grupo de crianças apresentam
alguma dificuldade, posso separar esse grupo de maneira que minha auxiliar
faça um trabalho focado, com o objetivo de resolver esse problema. Nesse
caso ela trabalha durante 20 ou 30 minutos com esses cantores, reforçando o
aprendizado, e depois juntamos todas as crianças novamente.
Assim como Bartle (2003) e Leck (2020), considero importante o uso de
partituras pelas crianças. Todas os cantores recebem a partitura da obra que
será estudada e são orientadas a segui-la enquanto trabalhamos a peça, mesmo
que ela ainda não saiba solfejar. Aos poucos a criança percebe que a linha
melódica representada na partitura segue o mesmo movimento da melodia, e
com isso, aprende mais rapidamente. Sempre adoto os termos técnicos musi-
cais em todas as instruções dadas às crianças. Assim é comum dar instruções
como: vamos começar do compasso 5, ou vamos pegar da casa 2, ou vamos
fazer do terceiro sistema, do segundo compasso, ou agora vamos cantar o
tema dessa obra, ou vamos fazer da capo, ou vamos fazer da modulação, e
assim por diante. Esse procedimento tem feito com que as crianças lidem
com a partitura com desenvoltura e aprendam as músicas mais rapidamente.
126

O repertório coral

O repertório de um coro precisa ser cuidadosamente escolhido para que


possa ajudar no seu crescimento. Procuro escolher obras que contribuam para
uma vivência formadora e transformadora dos cantores, desenvolvendo e colabo-
rando na construção de sua identidade sonora. Quando se trata de coros infantis,
defendo que essa escolha seja feita não somente a partir de um repertório de
alta qualidade, mas que esse seja abrangente de modo a propiciar aos cantores
a possibilidade de entrar em contato com diferentes culturas, línguas e estilos
musicais (LECK, 2020). Conhecer outros países através de sua música é uma
viagem instigante que motiva e proporciona uma rica experiência aos cantores.
O estudo de novas peças, que estejam dentro das possibilidades técnicas do
coro e do regente que vai prepará-la, é sempre uma viagem estimulante para as
crianças. Bartle (2003), traz nos apêndices de seu livro inúmeras sugestões de
repertório que podem ser adotadas nos coros brasileiros.
O repertório coral para coros infantis é extremamente abrangente, pas-
sando por obras escritas originalmente para a coro infantil a cappella ou com
o acompanhamento, de caráter sacro ou profano, arranjos de canções popu-
lares, do folclore nacional e internacional, chegando até a música sinfônica,
os musicais e as óperas, tanto infantis como as com temáticas adultas, com
participação de crianças. As óperas “Tosca”, “La Bohème” e “Tourandot”
de Giacomo Puccini (1958-1924), assim como “Carmen” de Georges Bizet
(1838-1875) e “Mefistofele” de Arrigo Boito (1842-1918), são exemplos de
óperas com temática adulta, com participação de coros infantis. Diante de
um repertório tão vasto, não posso concordar de maneira alguma que coros
infantis restrinjam seu repertório apenas à música popular brasileira. Tenho
consciência de que nossa música popular é bastante rica, mas quando lidamos
com coros infantis, acho importante dar oportunidade às crianças de entrarem
em contato com outros estilos. A criança está em processo de formação. Não
dar a ela oportunidade de entrar em contato com outras linguagens é restringir
seu mundo, é negar a elas este tipo de informação e impedir a ampliação de
seu universo cultural. Como promover a inclusão sociocultural sem dar acesso
a essas informações? (CHEVITARESE, 2021).
É surpreendente como as crianças recebem bem tanto músicas escritas
no século passado como peças contemporâneas. Realizam com a mesma ale-
gria obras com linguagens totalmente diferentes como a singela canção “Que
lindos olhos!”, do folclore brasileiro, arranjada por Villa-Lobos (1887-1959),
que pode ser encontrada no Guia Prático de 1942, como “Três Histórias da
Vovó”, de Tim Rescala (1961), composta em 2020, que pode ser encontrada
no site umnovoolhar.art.br, na seção repertório coral.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 127

No universo da música sinfônica acontece a mesma coisa. As crianças se


deliciam cantando o coro de criança da ópera “Carmen” de Bizet, composta
em 1870, século XIX, assim como cantando a obra “Coração Concreto”, para
coro infantil, narrador, soprano, barítono e orquestra, do compositor Ronaldo
Miranda (1948), composta em 1987, mais de 100 anos depois.
Percebo que para as crianças, o que realmente importa é a qualidade
da obra, o interesse que ela desperta e a abordagem assertiva utilizada pelo
regente ao ensaiar a nova peça para que ela seja bem aceita. Um fato que
sempre me chamou muita atenção foi o seguinte. Eu trabalho com coro infantil
há muitos anos. Comecei como preparadora vocal no Coro Infantil do Thea-
tro Municipal do Rio de Janeiro, que tinha como regente Elza Lakschevitz
(1932-2017). Por ser um coro ligado a uma casa de espetáculos onde a ópera
é uma constante, o coral infantil da instituição sempre participava das mon-
tagens oficiais. Desta forma, logo que comecei a trabalhar com coro infantil,
tive contato com crianças que cantavam em ópera como solista ou dentro do
coro infantil e que sentiam uma grande alegria nisso. Entretanto, pude sentir
muitas vezes, a grande perplexidade das pessoas quando eu comentava que
as crianças cantavam em óperas. Da mesma forma, alguns alunos de Licen-
ciatura em Música, que faziam estágio no meu coro, quando íamos discutir o
ensaio que eles haviam observado, questionavam sobre o repertorio adotado,
questionavam se as obras não eram muito difíceis para as crianças e se elas
realmente gostavam do repertório que estávamos estudando. Sugeri então
que preparassem um questionário com todas as perguntas que gostariam de
saber e as entrevistassem. Que perguntassem a elas sobre o que achavam do
ensaio, do repertório, das apresentações. Assim foi feito.
Para a surpresa dos alunos o resultado da entrevista foi unânime em
relação ao que eles mais gostavam de fazer. A resposta de todas as crianças
entrevistadas foi: “O que eu mais gosto de cantar é ópera!” Essa resposta foi
totalmente contra as expectativas dos alunos de licenciatura, que passaram a
compreender que, para as crianças, participar de uma ópera era algo extrema-
mente prazeroso. Foi a partir daí que tive a ideia de criar o projeto “A escola
vai à ópera”, que tem como objetivo principal promover apresentações de
óperas com temáticas infantis, em língua portuguesa, na Escola de Música da
UFRJ, contribuindo como um espaço onde crianças e jovens têm oportuni-
dade de acesso a este gênero musical, rompendo pré-conceitos, promovendo
a inclusão social e ampliando o seu universo cultural. O projeto, que trabalha
em parceria com as escolas públicas vinculadas à Secretaria Municipal de
Educação do Rio de Janeiro, tem como proposta o aprimoramento da escuta
e da apreciação musical, para que estes jovens venham a se tornar ouvintes
críticos e conscientes.
128

Nos PCNs Artes (BRASIL, 1998, p. 81-82) encontramos alguns objeti-


vos gerais para o ensino da música que são observados e contemplados pelo
projeto “A escola vai à ópera”. Dentre eles podemos destacar:
• Interpretar e apreciar músicas do próprio meio sociocultural e as
nacionais e internacionais, que fazem parte do conhecimento musical
construído pela humanidade no decorrer de sua história e nos diferen-
tes espaços geográficos, estabelecendo inter-relações com as outras
modalidades artísticas e as demais áreas do conhecimento;
• Conhecer, apreciar e adotar atitudes de respeito diante da variedade
de manifestações musicais e analisar as interpenetrações que se dão
contemporaneamente entre elas, refletindo sobre suas respectivas
estéticas e valores;
• Valorizar as diversas culturas musicais, especialmente as brasileiras,
estabelecendo relações entre a música produzida na escola, as veicu-
ladas pelas mídias e as que são produzidas individualmente e/ou por
grupos musicais da localidade e região; bem como procurar a parti-
cipação em eventos musicais de cultura popular, shows, concertos,
festivais, apresentações musicais diversas, buscando enriquecer suas
criações, interpretações musicais e momentos de apreciação musical.
O projeto “A escola vai à ópera” contribui para a formação tanto das
crianças que assistem ao espetáculo como dos alunos da UFRJ que participam
ativamente da produção da ópera. Em relação aos alunos da rede pública,
que são os espectadores para quem a ópera é destinada em primeiro plano, a
participação no projeto contribui para cultivar hábitos de escuta musical das
diferentes manifestações musicais dando a oportunidade de entrar em contato
com outras linguagens da produção musical e com o universo da literatura
infantil, através dos libretos das óperas. Com esta iniciativa ampliamos o
leque de opções de lazer e ainda aguçamos o interesse musical destas crianças
contribuindo para que elas reflitam sobre a temática abordada nas óperas. Pais
e responsáveis também, podem experimentar novas sensações envolvendo a
arte e até mesmo romper possíveis barreiras pré-conceituais que possam vir a
existir com relação ao estilo musical conhecido como “música clássica”. Por
se tratar de uma ópera infantil em vernáculo, o interesse por parte do público
tende a ser grande. Aliado a isto há a questão de ser uma obra com temática
de fácil identificação por parte do público infantojuvenil.
Em outra ponta temos os alunos da universidade que participam da pro-
dução e encenação da ópera e que têm a oportunidade de colocar em prática
os conteúdos aprendidos em seus respectivos cursos. Uma ópera envolve
profissionais das mais diferentes áreas de saber, numa interação bastante forte
entre música, artes plásticas, teatro e comunicação. São envolvidos nas mon-
tagens alunos dos cursos de regência, canto, piano e demais instrumentos de
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 129

orquestra, cenografia, figurino, direção teatral, iluminação, design e produção


cultural. Um espetáculo desta natureza permite que alunos, professores e téc-
nicos administrativos trabalhem lado a lado, numa rica troca de saberes. Além
disto os alunos têm a oportunidade de criar e buscar soluções inovadoras para
cada problema que surge durante a execução do projeto. Aprendem a trabalhar
em equipe, entram em contato com o público, colaborando para o processo
de transformação sociocultural das crianças que participam do projeto. Todo
esse processo contribui de maneira extremamente positiva para a formação
técnica-pessoal, social e humanística de nossos alunos
Já encenamos 10 óperas infantis pelo projeto, atingindo um público de
25.000 pessoas, a grande maioria alunos da rede pública de ensino e isso
também é inclusão e ampliação de universo cultural. Algumas óperas têm
participação do Coral Infantil da UFRJ e outras são montadas apenas com os
alunos dos cursos de graduação e pós-graduação da universidade.
Entre as óperas com participação de coral infantil destacamos “Joca,
Juca e o pé de jaca”, com libreto e música de Rafael Bezerra (1979), aluno de
mestrado em composição à época, e que foi encenada em 2011; “Cavalinho
Azul”, com libreto de Maria Clara Machado (1921-2001) e música de Tim
Rescala, encenada em 2012; “Godó, o bobo alegre”, com libreto de Pedro
Bloch (1914-2004) e música de Francisco Mignone (1897-1986), montada em
2013. Esta ópera estava escrita há 30 anos, mas nunca havia sido apresentada.
Editamos os manuscritos e fizemos a estreia mundial da obra. Encenamos
ainda “O limpador de chaminés”, com libreto de Eric Crozier adaptado para
a língua portuguesa por Francisco Nery e Regiana Antoniniz, e música de
Benjamin Britten (1913-1976), em 2015; “João e Maria”, baseado nos contos
dos irmãos Grimm, com música de Engelbert Humperdinck (1854-1921), em
2016. Em 2018 tivemos a visita do músico sueco Sven Kristersson que ao
conhecer o projeto ficou encantado e se ofereceu para compor uma ópera, com
libreto baseado nos contos do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-
1875), que foi encenada em 2019. Kristersson compôs a ópera “A nova roupa
do Imperador”, fazendo uso de ritmos brasileiros e europeus, unindo Europa
e Brasil num espetáculo cativante, voltado para o público infantil.

A agenda anual de concertos

Procuro organizar a agenda de concertos do coro com pelo menos um


concerto por mês. Incluo nessa agenda encontros de coros, concertos inteiros
com obras a cappella ou acompanhadas ao piano, gravações, concertos sin-
fônicos, participação em óperas, nas principais salas de concerto. Realizo de
10 a 20 concertos por ano. Os concertos são realizados na Escola de Música
da UFRJ ou em outros espaços culturais como Sala Cecília Meireles, Igreja
130

da Candelária, Antiga Igreja da Sé, Centro Cultural da Justiça Federal, Centro


Cultural do Banco do Brasil, Centro Cultural dos Correios, Theatro Municipal
do Rio de Janeiro, enfim, nas mais diversas salas de concerto. Procuro levar o
coro para cantar em alguma cidade fora do Rio de Janeiro, porque a maioria
das minhas crianças não têm oportunidade de sair, de conhecer outros lugares.
Por essa razão procuro proporcionar a elas esse tipo de experiência, levando-as
para outros ambientes. Para o cantor de coro é muito importante se apresentar
em novos espaços, interagir com outros grupos. Como muitos desses canto-
res são provenientes de uma camada social mais desfavorecida, com poucas
oportunidades de acesso a espaços fora da região onde moram, a realização de
concertos em novos espaços proporciona um momento importante de convívio
entre eles, ampliação de visão de mundo e de seu universo cultural.
Além disso, a rotina de concertos nos auxilia a manter o interesse e a
frequência aos ensaios, porque a quantidade de repertório que estudamos
é grande e se a criança começa a faltar ela não conseguirá acompanhar o
ritmo do grupo. Ela se sente prestigiada, incluída por cantar em bonitas salas
de concerto, que muitas vezes nunca tinha tido acesso. Todos estes fatores
contribuem para a motivação e a manutenção do interesse em fazer parte do
grupo e consequentemente contribuem para a assiduidade dos cantores aos
ensaios e concertos e impulsionam o grupo para frente.
Os anos de 2020 e 2021 foram anos atípicos devido ao lockdown decre-
tado, em razão da pandemia da covid-19. Em 2020 iniciamos os ensaios no
mês de fevereiro, porque participaríamos da encenação da ópera Yerma, de
Villa-Lobos, que seria realizada no início de abril, no Theatro Municipal
do Rio de Janeiro. Os ensaios de cena para essa ópera seriam realizados em
março, mas no dia 11 desse mês fomos surpreendidos com o cancelamento
de todos os concertos. Assim, não apenas a ópera, que a essa altura já estava
com a parte vocal totalmente pronta, mas toda nossa agenda de concertos
precisou ser cancelada.
É claro que o primeiro momento foi de perplexidade diante da nova situa-
ção, mas, depois que assentei a cabeça, decidi por aprender a utilizar as novas
tecnologias e manter meu grupo de forma virtual, por entender que não seria
bom para as crianças do coro ficarem dispersas e sem uma atividade musi-
cal. Desta forma iniciei o trabalho com o apoio da plataforma Google Meet
e com a participação de aproximadamente 60 crianças. Montamos nesse ano
4 coros virtuais com as obras: Unity composta por Glorraine Moone e Reve-
rend Freddie Washington; em parceria com o Coral da Universidade Federal
do Mato Grosso do Sul, regido por Ana Lucia Gaborim, o Coral da FAMES
(Faculdade de Música do Espírito Santo), regido por Paulo Paraguassu, e
Coral do Lar Donato Flores, de Tatuí, São Paulo, sob a direção de Luís Gus-
tavo Laureano, montamos a obra “Um Novo Mundo”, de Cézar Elbert. Cada
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 131

um em seu estado preparou a obra e fizemos um coro virtual que ficou muito
interessante e que se encontra no YouTube. Esse coro virtual teve sua estreia
na mostra de coros realizada no I Congresso Internacional de Música Coral
Infantojuvenil. Fizemos ainda duas obras para o Natal interpretadas pelo
Coral Infantil da UFRJ e o coral Brasil Ensemble-UFRJ formado por alunos
de canto da UFRJ e ex-cantores do coral infantil. A primeira foi “Alguém no
Céu”, de Danilo Caymmi, com arranjo de Fábio Adour; e a segunda, “Jingle
Bell Rock”, de Joe Beal & Jim Boothe, com arranjo de Alexandre Brasolim
e adaptação minha, para incluir o coral infantil.
O ensaio de cada grupo foi feito separadamente e os cantores ouvidos
um a um. Em seguida passamos ao processo de gravação, quando os cantores
gravaram sua linha melódica, ouvindo uma guia, para que todos a realizassem
com a mesma precisão rítmica e melódica. Os cantores enviaram, através do
classroom, as gravações feitas, que foram editadas, e o produto final reenviado
aos cantores, a fim de que gravassem os vídeos. Os vídeos foram feitos com
celular e encaminhados para edição e finalização.
Apesar de todas as dificuldades de adaptação à nova sistemática de
ensaios, tivemos resultados muito positivos em relação ao amadurecimento
dos cantores. Optamos por fazer ensaios mais curtos, com dez a quinze crian-
ças no máximo por vez, de maneira que as crianças não ficassem muito tempo
paradas, até chegar sua vez de cantar. Em alguns momentos juntávamos o
grupo todo, para que os vínculos não se perdessem. Em um primeiro momento
algumas crianças sentiram-se menos confiantes para cantar sozinhas, mas
aos poucos isso foi se transformando e ao final do primeiro ano, já podíamos
perceber as crianças com mais autoconfiança, cantando com segurança, com
melhor afinação e participando ativamente das aulas virtuais.
Em setembro de 2021 retornamos aos ensaios presenciais e participamos
da gravação e estreia da ópera “BEM no meio”, com libreto de Karen Acioly
e música do compositor francês Camille Rocailleux, e de dois concertos de
Natal, sendo um com orquestra, na Sala Cecilia Meireles, e outro no Centro
Cultural do Banco do Brasil, RJ.

Transformações apontadas pelos cantores

Para conhecer em que medida o trabalho desenvolvido no Coral Infantil


da UFRJ influenciou o desenvolvimento dessas crianças, promovendo trans-
formações significativas, fiz algumas entrevistas com as crianças, que depois
foram transcritas e analisadas. Várias falas apontam no sentido de ter havido
desenvolvimento sociocultural e inclusão social, assim como ampliação do
autocontrole, da autoestima, do sentimento de pertencimento, aumento da
capacidade da concentração, da capacidade de ouvir e da descoberta de suas
132

próprias potencialidades. Deixo aqui alguns exemplos de falas trazidas pelas


crianças durante as entrevistas.

Pergunta 1:
O que você sente antes, durante e depois do concerto?
Resposta: Olha só... Toda pessoa fica nervosa um pouquinho antes de
entrar, entendeu? Mas, tipo assim, se a gente ficar tão nervosa na hora da
apresentação a gente não vai conseguir cantar direito. Então eu fico nervosa
um pouco, mas depois eu respiro assim, olhando para aquele palco, para
aquelas pessoas maravilhosas que tão olhando, aplaudindo... Aí já vai aca-
bando o nervosismo, já vai começando a ficar melhor...
Aí canto direito, entendeu?

Nessa fala percebe-se o aumento do autocontrole do cantor e o sentimento


do pertencimento, de se sentir incluído socialmente. Ele é aplaudido e isso
gera um benefício para ele, ampliando sua autoestima.

Pergunta 2:
O que você diria a um amigo para convencê-lo a vir cantar no coral?
Resposta 1: Que é uma coisa muito legal porque você trabalha a sua voz
e você descobre que tem o dom de cantar, acaba descobrindo.
Resposta 2: Ah... Eu falo que é muito bom, que tem apresentações em
muitos outros lugares que eles ainda não foram, tipo assim, a maioria dos
meus amigos nunca foram ao Theatro Municipal, a Sala Cecília Meireles...
é muito bom.

Essas respostas mostram o que a criança sente em relação a cantar no


coro. Percebemos que se sentiram incluídas nesses espaços. Espaços que antes
não pertenciam a elas, ao seu mundo. Muitas vezes essas pessoas passam em
frente a essas salas de concerto, mas não se sentem com o direito de entrar
nesses espaços, mesmo quando são oferecidos espetáculos gratuitos. Quando
você coloca a criança no palco, cantando para um público que reconhece seu
valor, que a aplaude, ela se sente fortalecida, fazendo parte daquele mundo e
entende que também tem o direito de ter acesso àquele bem cultural.

Considerações finais
Para finalizar gostaria de trazer um depoimento. Quando as crianças
do coral infantil vão crescendo, algumas delas se interessam em ir para a
faculdade. Muitos desses cantores são as primeiras pessoas de sua família
a entrar para uma universidade. Como elas já fazem parte da universidade
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 133

desde crianças, se sentem integradas e têm vontade de dar continuidade aos


seus estudos. Elas são preparadas para o teste de habilidade específica e ao
ingressar na universidade notamos uma diferença bastante significativa se
comparadas aos outros alunos que não vieram de um trabalho sólido de coro
infantil. Esses cantores apresentam um amadurecimento musical muito supe-
rior aos demais, mostrando a importância do trabalho desenvolvido no coro
infantil. Hoje posso encontrar vários ex-cantores do coro infantil, que vieram
de condições socioeconômicas bastante desfavoráveis, cantando como solistas
ou no coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no Coro Paulistano, de
São Paulo, participando de óperas e musicais no Brasil e no exterior. Perce-
be-se que essas pessoas tiveram uma ascensão social, cultural e econômica
significativa e que a base de tudo isso foi o coral infantil.
Por todas essas razões considero de grande importância que todas as
crianças que têm o desejo de participar de um coro, independente do grau de
desenvolvimento em que elas se encontrem naquele momento, sejam incluídas
no grupo. É preciso que os regentes de coros infantis estejam conscientes de
seu papel na formação desses jovens e ao fazer suas escolhas metodológicas
não abram mão de trabalhar no sentido de contribuir para a formação de nos-
sas crianças, para que sejam cidadãos criativos, responsáveis e competentes.
134

REFERÊNCIAS
BARTLE, Jean Ashworth. Sound Advice: becoming a better children’s choir
conductor. Canadá: Oxford University Press, 2003.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


nacionais: Arte (5ª a 8ª séries). Brasília: MEC/SEF, 1998.

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GABORIM-MOREIRA, Ana Lucia Iara. Regência coral infantojuvenil no


contexto de extensão universitária: a experiência do PSIU.2015. 574 f. Tese
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LECK, Henry; JORDAN, Flossie. Criando arte através da excelência do


canto coral. Tradução: Aderbal Soares. São Paulo, SP: Ed. Procoral, 2020.

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derações e propostas pedagógicas. 2018. 178 f. Tese (Doutorado em Música)
– Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.
CANTANDO CRIATIVAMENTE:
um olhar para as práticas vocais
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada1

Contextualização

O presente artigo decorre de uma apresentação realizada em novembro de


2021, organizada pelo Projeto Canto Coletivo em Extensão, da Universidade
Federal de Uberlândia, a quem agradeço o convite e a oportunidade de trazer
meus pensamentos e pontos de vista acerca da importância da voz cantada no
contexto da educação musical e do canto coral. É preciso, também, ressaltar o
quão significativo é esse projeto, que focaliza as suas ações no canto coletivo,
uma maneira simples e eficiente de aproximar a música das pessoas.
Eu me identifico com esse propósito porque, como os pesquisadores
dedicados ao Canto Coletivo em Extensão, também acredito na importância
do canto, não apenas como parte integrante da educação musical, mas, tam-
bém como contribuição ao desenvolvimento humano. Durante muito tempo
se acreditou que quem deveria estudar música seriam apenas as pessoas espe-
cialmente dotadas, os chamados “talentos musicais”. No entanto, o avanço
do conhecimento em várias áreas tem mostrado que a capacidade para fazer
música está potencialmente presente em todo ser humano.
A voz cantada, segundo alguns cientistas, é inata, mas precisa ser esti-
mulada e desenvolvida, papel de educadores e regentes, além do sempre
bem-vindo estímulo familiar, pois, caso isso não se dê, essa habilidade pode
involuir. No texto, apontam-se algumas das Leis brasileiras responsáveis pela
presença ou ausência da música na escola e enfatiza-se a importância de ela
fazer parte da vida das crianças e jovens, tanto na educação básica quanto
nos coros infantis e infanto-juvenis, para que essa habilidade não se esvaia.
Apresentam-se, também, algumas propostas que podem auxiliar o profissio-
nal responsável pelos agrupamentos de crianças e jovens, para que encontre
maneiras de desenvolver uma prática coral significativa, com estudantes e
cantores. Além disso, reforça-se o papel da música hoje, quando posta a

1 Marisa Trench de Oliveira Fonterrada é Livre Docente em Técnicas de Musicalização, Doutora em


Antropologia, Mestre em Psicologia da Educação, Bacharel em Música. Docente do Programa de Pós-
graduação em Música da Unesp. Seus temas de interesse são: educação musical, ecologia acústica, canto
coral, coro infantil e infanto-juvenil. Foi bolsista de The Full Enrichment Program (1988) e ganhadora de The
General Governor Award (1993), ambos pela Embaixada do Canadá no Brasil, o que lhe permitiu trabalhar
com Murray Schafer por 30 anos. Tradutora de seus livros para o português e autora de vários livros, entre
os quais Conto enquanto Canto (2021).
136

serviço do ser humano, da comunidade e do meio ambiente. E não poderiam


ficar sem exame algumas características da voz infantil e os cuidados que
exige, além de sugestões que envolvem escuta, movimento, uso do espaço e
jogos – a maneira espontânea pela qual o ser humano aprende.
Para concluir, acentua-se a importância do canto individual e coletivo,
bem como da busca por novas maneiras de fazer música, que atendam as
condições e os anseios próprios da atualidade, sem deixar de levar em conta
as situações específicas que a humanidade atravessa.

Quem nasce primeiro, a fala ou o canto?

Diante do exposto, quero iniciar estas reflexões com uma pergunta:


quem nasce primeiro, a fala ou o canto? A resposta que alguns cientistas nos
oferecem é que, tanto uma quanto a outra atividade, se manifestam esponta-
neamente desde tenra idade e que o seu desenvolvimento depende de o meio
em que o bebê está inserido ser mais ou menos estimulante. Os psicólogos
americanos Briant, Modrian e Slevec afirmam que, em geral, a linguagem
verbal é vista como fundamental para a inteligência humana; a música, no
entanto, embora reconhecida como habilidade universal, é tratada como depen-
dente ou derivativa da linguagem verbal. Em contraste com os estudiosos que
defendem essa postura, esses autores argumentam que é mais produtivo, a
partir de uma perspectiva desenvolvimentista, descrever a linguagem verbal
como um tipo especial de música. Por meio de ampla revisão bibliográfica,
os autores afirmam que a escuta e a habilidade musicais são essenciais para
o desenvolvimento da linguagem verbal e argumentam que o aprendizado de
música se assemelha em velocidade e esforço à aquisição da fala. Além disso,
propõem uma definição de música mais abrangente do que outras comumente
conhecidas, aplicável, segundo os próprios autores, à manifestação musical
de qualquer tempo e cultura: “Música é jogo criativo com sons”. Por verem a
música sob esse aspecto, como jogo, eles defendem que ela merece um lugar
central nos esforços de compreensão do desenvolvimento humano (BRIANT;
MODRIAN; SLEVEC, 2012).
E, de fato, se nos detivermos para observar o comportamento de bebês
quando um adulto próximo fala ou canta para ou com ele, veremos que a argu-
mentação dos psicólogos citados é procedente. O bebê, mesmo muito novo,
já se coloca em diálogo com o adulto ou com a criança que se dispõe a falar
com ele, e responde imediatamente à conversa iniciada. Ele tenta imitar o que
ouviu e essa intenção é facilmente percebida pelo observador. E, à medida que
a experiência avança e o bebê fica mais velho, essa imitação vai adquirindo
precisão, em termos de tempo, altura, intensidade e intenção. Muitas vezes,
após ouvir o som trazido pelo adulto, o bebê faz longos silêncios, indício de
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 137

que algo novo está prestes a ocorrer. Então, quando, afinal, emite seus sons,
estes não serão mais, necessariamente, uma resposta ao que tinha ouvido
anteriormente, mas pode ser uma nova propositura, à qual o bebê parece
esperar a reação de quem com ele dialoga.
Essa simples observação tem muito a nos ensinar, pois mostra que as
respostas ou provocações não são casuais ou aleatórias, mas têm um propósito,
semelhante ao jogo, que poderá ser de imitação, ou de proposição de novos
sons. Essa constatação reforça a afirmação de que o jogo é uma capacidade
inata e a maneira mais espontânea de aprendizado.
Durante muito tempo, se acreditou que a música surgisse depois da lingua-
gem. No entanto, hoje se defende que não existe essa divisão entre linguagem
verbal e musical. Veja-se o que dizem os três psicólogos citados anteriormente:

Neste artigo, apresentamos um ponto de vista contrastante (de que a


linguagem verbal surge primeiro e seu aprendizado é mais efetivo do
que o aprendizado de música): a linguagem é introduzida à criança como
performance vocal e a criança atende a sua construção musical, em pri-
meiro lugar. Sem a habilidade de ouvir musicalmente, seria impossível
aprender a falar. Além disso, questionamos a visão segundo a qual a
música é aprendida de modo mais lento do que a linguagem (WILSON,
2012) e demonstramos que linguagem e música são profundamente inter-
ligadas no início da vida e se desenvolvem em trilhas paralelas. Em vez
de descrever a música como uma “linguagem universal”, consideramos
mais produtivo, de uma perspectiva desenvolvimentista, descrever a
linguagem como um tipo especial de música, no qual o discurso refe-
rencial é espontaneamente transformado em estrutura musical (BRIAN;
MODRIAN; SLEVEC, 2012, n. p.).

A partir desse argumento, torna-se óbvia a importância de o canto estar


presente na vida da criança desde seus primeiros momentos de vida e, conse-
quentemente, de essa presença estender-se à educação infantil e juvenil, tanto
na educação básica, quanto nas escolas especializadas de arte/música. Durante
essas aulas, espera-se que o educador musical explore intensamente o uso da
voz e do corpo, o refinamento da escuta, a propriocepção e a tomada de cons-
ciência do espaço. Por esse motivo, é muito importante que nas Licenciaturas
em Arte/Música e em cursos de Extensão e Especialização, se esteja atento a
esses tópicos na formação do educador musical e do regente coral, em especial,
quando voltada para a formação de coros infantis, juvenis e infanto-juvenis.
Embora não seja possível generalizar, é possível afirmar que o valor da
música na educação, no Brasil, foi sendo esquecido no correr dos anos, em espe-
cial depois da Lei 5.692/71, que substituiu a disciplina Música por atividades
de Educação Artística com várias linguagens em polivalência e abriu espaço
138

para a ideia de Arte como entretenimento. Com isso, tornou-se comum enten-
der a música como diversão. Embora ela possa, muitas vezes, ser considerada
passatempo, o objetivo de uma aula de música não é entreter os alunos.
Em 1993, foi aprovada uma nova Lei de Diretrizes e Bases, nº 9.394/96,
ainda vigente, que restituiu à música e às outras artes o papel de disciplina curri-
cular. No entanto, elas continuaram a ser colocadas num horário único na grade
curricular, preservando – embora sem assim o denominar –, o caráter polivalente
que existia desde 1971. Nos últimos anos, várias Leis foram publicadas com
o objetivo de garantir a presença da música na escola, mas isso não significa
que ela tenha, afinal, reconquistado seu espaço. As propostas de ordenação dos
conteúdos disciplinares foram feitas pela BNCC – a Base Nacional Comum
Curricular – aprovada em 2018, com o propósito de ordenar o currículo de todos
os níveis da educação básica. Nesse documento, as linguagens artísticas foram
contempladas, o que representa, sem dúvida, um avanço, mas seus resultados
ainda terão de esperar algum tempo para se confirmarem.
Durante os anos em que a música ficou à margem no currículo esco-
lar da educação básica, sua função foi sendo esquecida. Embora existam
escolas que valorizem essa arte e a tornem presente na sala de aula, ainda
é comum se encontrar outras, que a consideram útil para descansar a mente
e relaxar.
No entanto, essa linguagem precisa ser compreendida como forma de
conhecimento e como arte. No primeiro item, reúne uma série de técnicas
que ajudam o estudante a se aproximar da música, tocando e/ou cantando,
o que demanda rotinas e repetições, tanto quanto inovação e criatividade.
Nenhuma forma de conhecimento pode vingar, se omitir de seu contexto o
conhecimento estrutural. Como arte, o papel da música se amplia e ela se
aproxima de aspectos subjetivos, pois a arte canaliza a emoção.

Em busca de uma prática vocal significativa

Uma das formas mais interessantes para se iniciar a prática de música


com pessoas de qualquer faixa etária, que nunca tenham estudado essa arte,
é o canto coral, que pressupõe o fazer coletivo. O canto coletivo é o espaço
em que se trabalha com uma habilidade inata e, portanto, presente de modo
potencial em todo ser humano, e essa vivência, trabalhosa, mas cativante,
ajudará na formação integral de cada um. Em defesa da aproximação da
música pelo canto, argumenta-se que cada pessoa traz em si mesmo o seu
instrumento – a voz. E, mesmo que algumas delas nunca tenham cantado,
sempre é momento de aprender a fazê-lo.
Mas, para que essa tarefa seja bem-sucedida, várias atitudes precisam
ser incentivadas, em especial as que focalizam:
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 139

• Os cuidados com a voz;


• O desenvolvimento da escuta;
• A compreensão do canto como expressão (pleno de emoções, sen-
tidos, significados);
• O entendimento da música como arte.
As estratégias para o desenvolvimento da voz cantada, com pessoas de dife-
rentes faixas etárias e em diferentes contextos, está atrelada a atitudes lúdicas,
compostas pelos atos de cantar, joga e criar. Esse caráter de jogo não impede,
mas, ao contrário, incentiva o emprego de exercícios práticos, que serão esco-
lhidos, criados e/ou adaptados à situação concreta em que vão ser utilizados.
É preciso dizer que, hoje, há notáveis avanços na compreensão da impor-
tância da presença da música na educação. Muitos cursos superiores de Arte/
Música se encarregam de trazer conhecimentos específicos a seus estudantes,
não apenas relacionados à Música em si, mas, também, à Educação, à Psico-
logia e à Sociologia/Antropologia, que ajudam na compreensão do papel do
ser humano na família, na sociedade, nos grupos voltados ao fazer musical,
e acreditam na importância da arte e da música no desenvolvimento humano
e no seu papel na sociedade atual.

Música hoje – a serviço do ser humano, da comunidade e do


meio ambiente

Em culturas milenares, a prática da música teve bastante espaço e o


mesmo pode ser dito com referência às sociedades orais. Nesses grupos,
o canto era – e ainda é – valorizado e cultivado em diversas situações da
vida cotidiana em sociedade: canta-se para pedir chuva na época do plan-
tio, canta-se para que os deuses garantam uma boa colheita; canta-se para
honrar as divindades, para curar doentes, para dar coragem nas batalhas,
para receber amigos. Na sociedade moderna, há não muito tempo, o canto
tinha papel primordial na educação musical e mostrava-se presente nas
mais diversas organizações sociais: família, escola, igreja e outros espaços
de convivência.
Mas as enormes transformações pelas quais o mundo passou, e ainda
vem passando, fez o canto se enfraquecer, por uma série de circunstâncias:
• Novos hábitos da modernidade;
• Interesses comerciais;
• Falta de compreensão por parte dos responsáveis pela educação, da
importância da música na formação do ser humano.
Muitos daqueles que, hoje, se responsabilizam pelos atos educacionais e
têm poder decisório para deixar a música dentro ou fora do currículo, provavel-
mente, foram, também, prejudicados por sua ausência no período escolar, ou
140

pela má-compreensão de seus valores e de suas possibilidades por familiares


e autoridades de ensino.
Então, o educador musical e/ou o regente coral precisam ser os defenso-
res do papel da música na formação do ser humano; e estar preparados para
recuperar o canto em todos os níveis da educação musical. Para que essa
transformação se dê de modo inconteste, é primordial conhecer a criança,
saber como ela é, como aprende, pelo que se interessa, como sente e como
pode se apropriar da própria voz para cantar, jogar, criar.
A criança tem percepção sincrética, isto é, apreende muitas coisas ao
mesmo tempo. Durante as práticas de educação musical, ela une esponta-
neamente música, movimento e o uso do espaço; além disso, imita, dialoga,
inventa e joga. Então, esses ingredientes precisam estar presentes nas aulas
de música, para que se crie empatia, simpatia e colaboração.
No que se refere à voz, a da criança tem limites e possibilidades que
devem ser conhecidos e respeitados. Esse conjunto de informações é a moldura
que envolverá o ensino e a aprendizagem de música, quer na sala de aula,
quer nos ensaios de canto coral. Que as propostas de ensino e aprendizagem
de música, em todos os espaços e circunstâncias, sejam exemplos de com-
preensão da criança como um ser único, em desenvolvimento. A interlocução
com ela será bastante efetiva, se tiver a forma de diálogo.

Cuidados com a voz


Em aulas de música e ensaios de canto coral, os cuidados com a voz
também precisam ser valorizados e estar sempre presentes. Nos primeiros
contatos com os estudantes, é importante que o professor mais ouça do que seja
ouvido. É interessante ter a oportunidade de ouvir os alunos individualmente,
o que pode ocorrer no início ou no final da aula ou do ensaio.
Para isso, estão aqui algumas sugestões para que se identifique a maneira
pela qual a criança se relaciona com a própria voz cantada e como é capaz de
responder a solicitações referentes a uma série de qualidades do som.
Solicitar que a criança cante um pequeno trecho musical de sua própria
escolha, o que é importante para se detectar se a criança:
• Está ou não habituada a cantar;
• Escolhe ou não uma região confortável para essa ação;
• Consegue cantar a canção que escolheu de modo afinado;
• Tem boa memória rítmica – capaz de reproduzir células a
ela apresentadas;
• É precisa ritmicamente;
• Tem boa memória melódica, isto é, se é capaz de reproduzir frag-
mentos melódicos a ela apresentados;
• É capaz de cantar de modo preciso.
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 141

Nota 1: Se a criança se recusar a cantar, é recomendável não insistir;


outra possibilidade é propor que cante junto com uma amiga ou um amigo.
Estar com alguém na hora do canto pode ser mais confortável e dar coragem.
Nota 2: Lembrar que o educador não sugerirá à criança nenhum tom e
nem cantará com ela. É importante conhecer o que, para ela, é espontâneo
no ato de cantar.
Nota 3: Recomenda-se que o educador musical e/ou regente anote os
resultados obtidos numa ficha individual, para que possa acompanhar o desen-
volvimento do canto na criança e verificar se ele foi ou não fruto do trabalho.
Tessitura – o educador musical ou regente não precisa se apressar para
averiguar a tessitura vocal de cada criança ou jovens, e nem tampouco de
adultos com pouca ou nenhuma experiência em cantar. Isso porque ela só
irá se definir com a familiaridade em lidar com a voz cantada. Quem nunca
cantou pode ter dificuldade para entrar nesse processo e precisa de algum
tempo até se sentir confortável. Só então é que será possível verificar para
onde a sua voz cresceu.
Cada pessoa tem seu próprio ritmo e percurso nesse desenvolvimento
e muita interferência por parte do professor ou regente pode dificultar ou
mesmo impedir esse caminho. Em se tratando de um público de crianças, é
importante que o responsável pelo trabalho não tenha pressa.
Para falar especificamente de tessitura na voz infantil iniciante, lembre-se
que, em geral, ela se localiza na região média, isto é, a criança ainda não sabe
explorar os extremos e fica confortável nessa região. No entanto, algumas não
sabem disso, porque fora da aula de música, muitas vezes tentam acompanhar
gravações de cantores adultos que, com frequência, cantam em regiões inade-
quadas para o alcance da voz infantil. Quando isso ocorre, a criança deturpa a
própria voz, com possibilidade de, pelo esforço, comprometê-la. A ampliação do
alcance vocal virá com o tempo. Em um trabalho inicial, ou com crianças sem
experiência com canto, aconselha-se a manter, inicialmente, o âmbito de ré3 a ré4.
Ressonância – há muita controvérsia entre os profissionais do canto no
que diz respeito à ressonância. É comum que o regente ou cantor encarregado
de trabalhar com o coro, utilize os princípios técnicos que aprendeu durante
a sua formação de cantor e/ou regente coral e os aplique no trabalho do coro
infantil. No entanto, é preciso lembrar que a criança não é um “adulto em
miniatura”, conceito antigo, mas ainda presente na sociedade. O seu aparelho
fonador, ainda em formação, não pode ser tratado do mesmo modo que o
aparelho fonador de um adulto.
Além disso, o timbre mais apropriado para a voz infantil é o que ela já
tem – uma voz com poucos harmônicos, leve e delicada. É um engano, que
pode ter consequências dolorosas, o hábito de incentivar a criança a imitar
142

um cantor ou uma cantora adultos. O que eles fazem com a voz, seja no estilo
lírico ou popular, nem sempre é adequado a crianças.
A melhor maneira de se trabalhar o canto com crianças é utilizar a res-
sonância de cabeça. Ressonância de peito requer domínio técnico, ainda não
acessível a ela. Se cantar sons muito graves, sua voz será deturpada e pode ser
prejudicada. A esse respeito, Doreen Rao, renomada regente do Glenn Ellis
Chicago Choir na década de 1980, defende veementemente o uso da voz de
cabeça com crianças e adolescentes:

Voz de cabeça é um termo figurativo, associado à localização mais alta do


som, e diferente em qualidade e função da “voz de peito”. Esta pode ser
potencialmente perigosa para o cantor jovem, porque, em geral, é produ-
zida com pouco ar e localizada bem atrás, na garganta. Embora possa ser
saudavelmente produzida, não é recomendada para cantores iniciantes,
devido às complexas transições vocais que correm na região do canto.
Inevitavelmente, a voz de peito é associada à música popular, em geral,
mais familiar aos estudantes (RAO, 1987, p. 18).

Ela prossegue, dizendo que, durante o trabalho vocal, a criança percebe


que é natural cantar com voz de cabeça, um modo saudável de expressão, pela
espessura delgada das pregas vocais. Rao (1987) compara a qualidade vocal
da voz de cabeça com a sonoridade de um instrumento de sopro de madeira,
e que ela tem mais potencial do que a voz de peito.
Outra qualidade da voz de cabeça apontada por Rao é que, segundo ela,
esse tipo de colocação vocal fortalece e prepara a voz do rapaz que, na ado-
lescência, muda a região do canto, passando de soprano para a “nova” voz.
Essa questão nem precisaria ser destacada aqui, se fosse um hábito fazer
as crianças cantarem desde que entram na escola e os professores de classe
tivessem preparo suficiente para conduzir o canto da melhor forma possível.
Hoje há muitos equívocos na maneira de lidar com a voz cantada, tanto dentro
do ambiente de formação vocal, como fora. Em se tratando do primeiro caso,
alguns profissionais procuram fazer com que as crianças e jovens cantem
como cantores adultos; o resultado é, com frequência, artificial e perigoso
para o desenvolvimento vocal. O caso oposto é o do educador musical que
não tem o hábito de cantar e pode cometer imprecisões de diversas naturezas,
que retardarão ou, mesmo, impedirão o desenvolvimento vocal dos alunos. As
duas situações podem levar a prejuízos importantes e, mesmo, impedimentos
decisivos, no ato de cantar.
Repertório – a questão do repertório é crucial em um trabalho de coro
infantil ou infanto-juvenil. A oferta do mercado em relação a músicas para
serem ouvidas é imensa, mas nem sempre se pode elogiar sua qualidade.
Além disso, há o culto à personalidade do cantor ou da cantora, o que leva os
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 143

jovens a querer imitá-los, malgrado o conteúdo técnico/artístico. É importante,


na escolha, que duas coisas sejam levadas em consideração: a empatia das
crianças com a proposta e as dificuldades técnicas da música escolhida, em
comparação com a capacidade técnica da criança ou do grupo.
Discutir repertório com as crianças e jovens é sempre interessante, porque
as suas escolhas indicam o grau de interesse do grupo e é sempre bom levar
isso em conta, porque a motivação trazida pela própria música impulsiona o
desenvolvimento do grupo. Mas algumas escolhas são inadequadas e o pro-
fessor precisa estar preparado para explicar o motivo da recusa. Muitas vezes,
são questões técnicas, que precisam ser explicadas ao grupo. Nesse caso, não
será, realmente, uma recusa, mas a postergação do aprendizado, à espera de o
grupo estar mais preparado para enfrentar a peça, o que as crianças e jovens
podem entender facilmente.
Muitas vezes, também, depois de um tempo de trabalho, o gosto do
grupo muda, porque ele vai conhecendo outras possibilidades, além daquelas
que já faziam parte da sua experiência anterior. É importante, também, que
educadores musicais e regentes deem opções no processo de escolha. Afinal,
eles têm acesso a materiais específicos da atividade e podem contribuir com a
decisão acerca do que se pretende cantar. O que se defende é que esse material
não seja imposto, mas trazido para que os cantores/estudantes o conheçam,
experimentem, aprendam alguns trechos das canções apresentadas, antes da
decisão a respeito do repertório a ser trabalhado. Essa escolha está ligada ao
estágio em que o grupo se encontra e na perspectiva de avanço nos meses
seguintes. As dificuldades não existem para desanimar o grupo, mas servem
de estímulo para novas conquistas.
Outro ponto a ser considerado é a ânsia que, muitas vezes, o regente tem
de fazer o grupo cantar a várias vozes. Afinal, esta é a característica do coro
e tal ansiedade é compreensível. No entanto, se o grupo é novo, com pouca
ou nenhuma experiência, é importante que cante bastante em uníssono. A
ânsia em cantar a várias vozes pode prejudicar o desenvolvimento vocal. No
uníssono, é possível trabalhar com minúcia questões como: precisão, afinação,
articulação, desempenho rítmico, fraseado, sem se esquecer da expressividade
e do uso adequado da voz. O uníssono pode garantir que esses tópicos sejam
abordados sem grandes tensões e esse aprendizado, em momentos posteriores,
serão aplicados em canções a mais de uma voz.
Quando o educador musical e/ou o regente julgarem que é tempo de
introduzir o canto a vozes, essa habilidade precisa ser introduzida aos poucos;
por exemplo, fazer com o grupo pequenas melodias, em que as frases têm
forma de pergunta e resposta, em que um grupo pergunta e o outro responde.
Essa atividade pode ser aprendida simultaneamente, isto é, todos aprendem
a cantar as perguntas e as respostas. O passo seguinte é alternar os grupos,
144

variando quem pergunta e quem responde. Um bom exemplo é a primeira parte


de O Anel, do Gua Prático de Villa-Lobos (2009, 1º. Vol., p. 43). É possível,
também, uma melodia em uníssono, em que depois de algum tempo, o canto
se abre em vozes por alguns compassos. Outra possibilidade, ainda, é cantar
ostinatos que possam ser sobrepostos. O grupo pode aprender vários ostinatos
e depois agrupá-los da maneira que quiser. Essas propostas podem ser pro-
curadas no repertório coral, mas também, ser criadas pelo educador ou pelo
regente. São brincadeiras simples que, aos poucos, introduzem os conceitos
de polifonia e harmonia. Nesses processos, é importante que o grupo tenha
consciência da própria voz e da voz dos companheiros, para que o aprendi-
zado, realmente, se dê. Esses exemplos preveem um repertório estruturado,
que se molda às necessidades do grupo.

Jogos vocais – oportunidade de escuta e criação

Os jogos vocais permitem o apuro da escuta e da ação e, por isso, são essen-
ciais em qualquer trabalho de educação musical. Até a segunda metade do século
XX o trabalho de musicalização se amparava no ensino de repertório tradicional,
precisão de escuta e ritmo, movimentos corporais e execução compatível com o
estágio em que o aluno se encontrava. Houve pesquisadores exemplares nesse
campo, como Dalcroze, Willems, Suzuki, Kodály e Orff. É possível ter mais
informações a respeito deles em ampla bibliografia, mas uma síntese dessas
abordagens está em Fonterrada, De tramas e fios (2005, p. 119-178).
A mudança nos modos de encarar o ensino e a aprendizagem de música
se instalou a partir da segunda metade do século XX, quando vários edu-
cadores/compositores começaram a olhar de modo especial para as ativi-
dades de criação e perceberam que a maneira mais bem-sucedida e natural
é trabalhar com jogos. Há muitos tipos de jogos que podem ser desenvol-
vidos nas aulas de música e nos ensaios de coro, como os de escuta, os de
integração entre som e movimento e os jogos vocais criativos, em que a
criança é estimulada a explorar a própria voz e a criar com ela. Há também
outras possibilidades, como os jogos de imitação e a invenção de trechos
musicais pela própria criança. Servem de estímulo as propostas de educa-
dores como John Paynter (1970; 1972; 1992), Murray Schafer (1991; 2010;
2018), George Self (1967), entre outros, que estimulam os estudantes a se
apropriarem do pensamento composicional para criar, individualmente ou
em grupo, as próprias propostas.
Nesta exposição, não destaquei, especialmente, jogos vocais ou corais,
pois penso que todos eles podem ser aplicados à prática coral. São jogos que
desenvolvem, ao mesmo tempo, uma série de habilidades: aperfeiçoamento da
escuta de diversos ambientes, imitação desses sons com materiais disponíveis
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 145

em sala de aula, mas, também, com a própria voz; integração entre som e
movimento, consciência e uso do espaço; práticas criativas.
Quer se trate de atividade desenvolvida em aulas de música ou durante
a prática coral, é interessante que os cantores participem da exploração da
própria voz e consigam fazer proposituras musicais com elas. Esse trabalho
pode ser desenvolvido individualmente e em grupo e é um excelente meio de
apurar a escuta, relacionar-se musicalmente com as outras pessoas do grupo
e criar coletivamente, a partir de improvisações, ou de pequenos trabalhos,
anteriormente planejados. Ao propor atividades como essas para o grupo, as
possibilidades de adquirir fluência no canto, na escuta de si mesmo e do outro
e na capacidade de reação rápida são incentivadas e aperfeiçoadas. Essas
habilidades podem ser mais facilmente obtidas se a proposta da aula – ou do
ensaio – não se limitar a questões técnicas, que podem ser intercaladas com
atividades corporais, jogos diversos e preparo de repertório.

Para concluir

Cantar não é apenas reproduzir; cantar é desenvolver a escuta. Cantar é


jogar, cantar é criar. O jogo é a maneira natural de a criança aprender. Quando
ela se sente bem no ambiente e é acolhida, torna-se confiante e desenvolta, o que
a faz adotar facilmente a prática de inventar, pois criar faz parte da sua natureza.
Que as limitações a nós impostas pelos tempos incertos que atravessamos
não nos impeçam de fazer música; que não cesse o esforço de aprimorar essa
prática de canto coletivo – o canto coral.
E que tomemos como exemplo não apenas os cientistas, os pesquisadores
de música, os regentes, educadores e cantores, mas que, também, aprenda-
mos com a experiência milenar das culturas orais, pois elas, como, aliás, as
crianças, sabem integrar vida e arte.
146

REFERÊNCIAS
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tico: primeiro volume. Rio de Janeiro: Funarte/Ministério da Cultura,
2009. p. 44.
ÍNDICE REMISSIVO
A
Aprendizado pela vivência 73
Arranjo 10, 97, 98, 99, 100, 101, 103, 104, 105, 110, 116, 126, 131
Arranjo vocal 103
Ato de cantar 25, 31, 70, 77, 78, 82, 141, 142

B
Bioenergética 53, 54, 56, 59, 60, 61, 62, 63

C
Canto 3, 4, 9, 10, 11, 15, 16, 20, 24, 25, 26, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37,
38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 52, 53, 57, 58, 63, 64, 65, 67, 68,
69, 70, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 85, 91, 97, 106, 107, 108, 109, 112, 114, 115,
116, 117, 118, 119, 121, 122, 124, 128, 131, 132, 134, 135, 136, 137, 138,
139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146
Canto coletivo 3, 4, 9, 10, 11, 31, 34, 35, 36, 37, 52, 114, 116, 135, 138, 145
Canto coral 29, 36, 64, 65, 67, 69, 80, 97, 106, 107, 116, 117, 118, 119, 121,
122, 124, 134, 135, 138, 140, 145
Cantor 9, 15, 24, 27, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45,
46, 49, 50, 52, 53, 54, 58, 59, 62, 64, 67, 69, 70, 73, 74, 75, 76, 79, 82, 83,
86, 91, 98, 107, 108, 109, 110, 115, 117, 123, 124, 125, 126, 130, 131, 132,
133, 135, 141, 142, 143, 145
Cinestesia 20
Comunidade 121, 123, 136, 139
Concerto 36, 108, 110, 111, 124, 128, 129, 130, 131, 132
Consciência 18, 20, 21, 22, 24, 25, 37, 40, 43, 44, 49, 54, 55, 57, 58, 60, 62,
68, 70, 74, 75, 77, 78, 79, 80, 84, 122, 126, 137, 144, 145
Coral Infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro 10, 121, 122
Coro 9, 31, 35, 36, 43, 49, 52, 63, 67, 97, 98, 99, 100, 104, 108, 110, 113,
115, 116, 119, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 130, 131, 132, 133, 134,
135, 141, 142, 143, 144
Corpo 4, 9, 10, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32,
34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 47, 49, 50, 52, 53, 54, 55, 56, 57,
58, 61, 62, 63, 65, 67, 68, 69, 70, 71, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 114, 137
150

Criação 21, 54, 55, 73, 97, 100, 114, 144


Criança 10, 19, 29, 49, 63, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 97,
98, 99, 104, 115, 116, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131,
132, 133, 135, 136, 137, 140, 141, 142, 143, 144, 145
Cuidados com a voz 139, 140

D
Desafinação 82, 83
Desenvolvimento vocal 10, 35, 43, 44, 45, 82, 83, 86, 91, 93, 100, 142, 143
Dinâmica de ensaios 124
Direção musical 108

E
Educação musical 9, 11, 35, 43, 45, 49, 53, 64, 82, 92, 93, 95, 97, 105, 106,
107, 116, 135, 139, 140, 144
Educação somática 9, 10, 16, 18, 67, 68, 69, 70, 73, 77, 80
Escolha 10, 75, 77, 78, 98, 99, 126, 140, 143

F
Fala 19, 22, 25, 39, 47, 62, 68, 85, 132, 136

G
Grupo vocal 9, 10, 31, 32, 35, 43, 67, 97, 98, 105, 108, 112, 114, 115, 116

J
Jogos vocais 144

M
Meio ambiente 18, 19, 25, 136, 139
Melodia 10, 58, 59, 60, 81, 82, 85, 86, 87, 89, 90, 97, 100, 102, 105, 125, 144
Método DVP 43, 44, 45
Movimento 18, 20, 21, 22, 25, 26, 29, 31, 34, 37, 38, 39, 41, 43, 44, 45, 46,
54, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 68, 70, 71, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 101, 102, 105,
115, 116, 117, 119, 125, 136, 140, 144, 145
Música 4, 10, 11, 15, 29, 31, 34, 35, 36, 42, 46, 49, 53, 63, 64, 65, 67, 80,
81, 90, 92, 93, 97, 98, 99, 100, 104, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 113, 115,
CANTO COLETIVO EM EXTENSÃO:
novos olhares para o Trabalho Vocal em diferentes contextos 151

116, 118, 119, 121, 122, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 134, 135, 136, 137,
138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146

P
Pedagogia vocal 9, 11, 34, 52, 53
Performance vocal 81, 82, 83, 85, 87, 89, 90, 91, 137
Prática musicorporal 9, 49, 53, 54, 55, 56, 58, 59, 61, 62, 65
Práticas vocais 9, 10, 67, 135
Práticas vocais coletivas 9, 10, 67
Prática vocal 9, 10, 15, 81, 82, 86, 87, 89, 90, 91, 100, 117, 121, 138
Prática vocal coletiva 9, 10, 15, 81, 82, 87, 91, 100, 117, 121
Preparação vocal 31, 35, 36, 49, 52, 64, 65, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 79, 80
Preparadores vocais 31, 32, 33, 35, 38, 49, 52, 53, 58, 62, 68
Professores de canto 24, 33, 35, 38, 41

R
Regente 10, 31, 35, 36, 37, 43, 67, 97, 98, 99, 100, 105, 106, 107, 108, 109,
110, 111, 112, 113, 114, 116, 118, 123, 126, 127, 137, 140, 141, 142, 143, 144
Relação corpo-voz 9, 10
Repertório 10, 36, 42, 45, 53, 58, 63, 68, 70, 71, 72, 75, 79, 81, 89, 91, 97,
98, 99, 100, 110, 112, 115, 116, 122, 124, 125, 126, 127, 130, 134, 142, 143,
144, 145

S
Sala de aula 81, 85, 123, 138, 140, 145
Ser humano 37, 56, 69, 135, 136, 138, 139, 140
Sílaba neutra 10, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91

T
Tai Chi Chuan 53, 54, 57, 60, 61
Técnica Alexander 9, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 29, 53,
54, 55, 59, 62, 64
Técnica vocal 15, 33, 34, 35, 36, 41, 44, 45, 46, 53, 61, 63, 67, 68, 69, 71,
72, 73, 116, 117, 124, 125
Texto e sílaba neutra 85, 86, 87, 88, 89, 90
Trabalho corporal 9, 15, 68
152

Trabalho vocal 3, 4, 9, 10, 11, 97, 105, 125, 142

V
Verticalidade 72, 77, 78, 79
Voz cantada 10, 23, 25, 34, 35, 37, 43, 68, 81, 83, 84, 85, 86, 91, 93, 106,
114, 135, 139, 140, 141, 142
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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