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Por uma educação estética a favor da sensibilidade no mundo pós-moderno

“...sustento que a vida mesma, em suas fontes mais secretas e


essenciais, é estética.” Herbert Read (apud Duarte Jr. 1998 p.35)

Introdução
A proposta desta pesquisa é a defesa de uma educação para a vida, que valorize o
desenvolvimento da sensibilidade de tal maneira quanto às ciências exatas (as ditas
“racionais”), uma educação emancipadora, segundo Theodor Adorno. Abordar aspectos da
sensibilidade, a autonomia estética, perceptiva e simbólica como propiciadores de uma
formação autônoma, plena, aparenta praticamente uma utopia numa época em que os saberes
intelectivos, pragmáticos, mensuráveis, dirigidos à competividade e ao consumo são os
privilegiados pelo mercado e, portanto, almejados pela sociedade.
Reflexões desta natureza foram abordadas por diferentes autores, dentre eles Adorno e
Horkeimer, Schiller, Kant, Bauman, Marcuse, dentre outros. Uma razão emancipatória
mescla-se por aspectos da sensibilidade, em seus estudos acerca de Adorno, Romeiro (2015)
afirma que a racionalidade é inerente à vida e a história do ser humano, desdobrando-se e
permeando a ética, política e estética. Sendo assim, apenas uma razão capaz de aproximar
ciência, ética e estética propiciará uma educação esclarecedora e formadora. Neste mesmo
sentido, a “cultura estética”, para Schiller (em Suzuki, 2002) “é aquilo que deve conduzir a
natureza humana à plenitude de seu desenvolvimento, à conjunção de suas forças sensíveis e
racionais, enfim, à união de dignidade moral e felicidade”.
Perpassando por pensamentos similares e acumulativos, a finalidade principal deste estudo é
o entendimento da sensibilidade como um dos pilares da inteligência humana, essencial tanto
quanto a inteligência cognitiva, e assim, discutir a importância de ser amplamente
desenvolvida nos meios educativos, contribuindo para uma sociedade mais humana.
Faz-se indispensável entender como a sensibilidade, ou melhor, sua ausência, tem se tornado
o alicerce das sociedades contemporâneas, a nível global. Almejando uma visão sistêmica da
questão, abarcaremos assuntos amplamente discutidos por Zygmunt Bauman e Theodor
Adorno, dentre os quais: o perfil da subjetividade atual tendo o consumismo capitalista como
ideologia, a cultura como desenvolvimento econômico e as tecnologias de comunicação a
transformar o modo de sentir, pensar e agir no mundo, o papel da educação hoje e o saber
estético como desenvolvimento da moral, do senso crítico e da autonomia. Esperamos
alcançar, através dos contributos de autores, investigadores, educadores e profissionais da
cultura, o alargamento da concepção que entendemos que a cultura e a arte compreendam,
para assim, demonstrar sua envergadura frente ao desenvolvimento da sensibilidade e de uma
educação para uma formação humana plena. Propomos a propagação da expressão, da crítica,
do equilíbrio emocional, a construção de sentidos, a evolução do sensível e a emancipação do
indivíduo.
Tanto os estudos científicos e empíricos indicam que o sujeito contemporâneo se encontra
cada vez mais individualista, todavia, sua individualidade também é diluída por sistema
líquido, denominado “Modernidade Líquida” por Zygmunt Bauman. Tal sistema
mercadológico e ideológico, intenciona nivelar a todos, ao ditar comportamentos, aparências,
padrões de moda e de modos de vida (Amorim, 2008). O consumismo não se restringe à
aquisição de bens materiais, indo muito além, incorporando costumes, padrões culturais,
modos de comportamento e de estilo de vida, designado “Indústria Cultural”, já no século
passado, por Theodor Adorno.
O amplo desenvolvimento dos meios de comunicação, com o advento da Internet e das mídias
digitais acabaram por favorecer ainda mais o cenário consumista, além disso, modificaram
por total o modo de vida das pessoas, tanto a nível pessoal, social, educacional e profissional.
Estas novas tecnologias deram uma total impressão de encolhimento do mundo, ao conectar
os indivíduos entre si e as infindáveis quantias de textos e imagens, pela possibilidade de
compartilhar e interagir com as mais diferentes realidades, informações, conhecimentos e
experiências. A internet abrange a maior enciclopédia de todo o planeta, com isso, mudanças
rápidas e imensuráveis no campo da educação são reais e inevitáveis, entretanto, é
imprescindível o questionamento do como estas ferramentas são introduzidas educativamente,
visto que a quantidade de informações disponível no mundo digital não é nem nunca será
sinônimo de qualidade. Faz-se necessário um exame sobretudo do estilo de vida que impomos
a nós próprios e à sociedade como um todo, com o apogeu do universo on line; furtando-nos
tempo e sensibilidade, a nova realidade rouba-nos também possibilidades de transcendência
humana. As novas relações atuais de tempo e o espaço, modificadas pela economia capitalista
e suas tecnologias, transformam consequentemente e de modo drástico o contato do ser
humano consigo mesmo, com seu semelhante e com o universo que o rodeia.
Embora o cenário pareça totalmente antagônico à formação sensível e verdadeiramente
humana, observamos algumas iniciativas, que ao menos em teoria, apontam a busca de uma
educação formadora, que tem na cultura e na arte, fortes aliadas. Ainda em fase de
implementação, no Brasil, a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e em Portugal o PNA
(Programa Nacional de Arte) podem representar, ao menos ideologicamente, um suspiro em
meio ao aparente caos. Analisamos alguns dos pontos principais que norteiam estes
programas educativos e por meio de entrevistas inquirimos profissionais envolvidos nos
processos de formatação e implementação dos projetos mencionados, visando entender a
importância da sensibilidade, da estética, da arte e da cultura na educação atual e futura,
segundo os dois programas de educação. E, de modo a corroborar com as hipóteses levantadas
neste projeto de pesquisa, realizamos uma investigação junto a uma instituição de ensino no
Brasil, o colégio Libere Vivere* acerca de sua prática e experiências com arte e cultura
voltadas à formação humana.
*O colégio Libere Vivere é uma instituição privada de educação básica na cidade de Serra Negra, interior de São
Paulo – Brasil. Esta instituição desenvolve permeando o currículo comum, um trabalho de cidadania, educação
emocional e estética que tem tido um resultado muito interessante, abordaremos alguns pontos principais como
um exemplo positivo da possibilidade da arte na escola para a formação humana.

Metodologia
Este estudo se desenvolverá em dois pilares, um de natureza teórica, pela realização de uma
investigação bibliográfica alicerçada fundamentalmente em estudos acerca de pensamentos de
Bauman e Adorno, também de seus adeptos e partidários, conduzindo à justificativa para
nossa tese, e um segundo, de natureza prática – compreendendo uma pesquisa qualitativa por
meio de entrevistas a profissionais envolvidos nos processos de formatação e implementação
do PNA, em Portugal e da BNCC, no Brasil, visando entender como estes projetos enxergam
a sensibilidade, a estética, a arte e a cultura na educação, ainda, para rematar a tese em
questão, realizamos uma pesquisa junto ao Colégio Libere Vivere acerca de suas
metodologias e experiências com a arte para a formação integral dos alunos, o qual vem
apresentando resultados palpáveis acerca do reflexo da educação estética na vida de alunos e
ex-alunos do colégio.
Aporte Teórico
Teoria Crítica, Teoria Estética, Marxismo.
Faz-se importante ressaltar que o intuito deste estudo é o confronto de elementos, propostas e
considerações, contribuindo com novas reflexões e, sobretudo, para propor novos
questionamentos sobre a educação da sensibilidade para a formação humana.

Capítulo 1 – Panorama social pós-moderno: a ausência da subjetividade


1.1- A insensibilidade no império tecnológico: tempo escasso e espaço volátil
Zygmunt Bauman (1927-2017), sociólogo e crítico polonês de grande expressão no cenário
atual, em praticamente todas as suas obras aponta a complexidade do mundo presente,
geradora de incertezas, escolhas intermináveis, excessos de ofertas e escassez da
sensibilidade. Modernidade liquida, para Bauman, ou pós-modernismo para outros estudiosos,
são designações para caracterizar a “enorme diversidade de conhecimentos, da epistemologia
à política, à cultura e à arte e, portanto, confunde mais do que esclarece e não representa uma
teoria coerente e unificada, mas um conjunto variado de perspectivas” (Santos, 2007; Silva,
2011 apud Furlan, 2016). A metáfora liquidez foi escolhida por Bauman, (1998 apud
Colombo, 2012) a fim de assinalar a sociedade atual como: assaz fluida, diluída, nas palavras
de Colombo (2012) “desapegada de promessas ideológicas, compromissos sociais e políticos
e com um consumismo exacerbado”. Neste contexto social, a cultura, como também, a
educação, refletem o aspecto fragmentado, volátil, efêmero, peculiares à pós-modernidade.
Para Leonidas Donskis, parceiro de Bauman em Cegueira Moral – A perda da sensibilidade
na modernidade líquida, vivemos num mundo de ambivalências, em que “os contrastes de
riqueza e poder crescem sem parar, enquanto as diferenças em matéria de segurança
ambiental diminuem cada vez mais”. Todas as situações são permeadas por incertezas e um
certo grau de equívoco, bem e mal não são tão claros e definidos como nos tempos passados
(Donskis, 2013 - p. 13).
O termo insensibilidade tem para nós um sentido metafórico, assegura Bauman (Cegueira
Moral, 2013, p.20), significando fundamentalmente a ausência ou disfunção de algum sentido
humano: visual, tátil, olfativo ou auditivo e, resultando na incapacidade de “perceber
estímulos que em condições “normais” evocariam imagens, sons ou outras impressões”
(ibidem). Este conceito foi transferido dos órgãos dos sentidos corpóreos para o universo das
relações humanas, e assim, conectado à qualidade “moral”, num processo rotulado de
individualização (ibidem, p. 21-22). A mídia tem colaborado para construir indivíduos
insensíveis, “cuja natureza e atenção sociais só são despertadas por estímulos sensacionais e
destrutivos” (Donskis, Cegueira Moral, 2013 – p.49). Adiaforização é, para Bauman o
comportamento de se considerar as coisas irrelevantes, indiferentes, fora do “universo das
obrigações morais”, “moralmente neutras”. Em meio a um número inacabável de informações
sensacionalistas, escândalos políticos e noticiários das naturezas mais ambíguas que
ininterruptamente chegam a nós através de modernos meios de comunicação, nossa
sensibilidade está anestesiada, inóspita. Estamos em perigo de “perder nossa capacidade de
acompanhar o que está acontecendo no mundo e de nos solidarizarmos com as pessoas que
sofrem”, visto que o ritmo de nossas vidas é ditado pelas “guerras de audiência e pelos
retornos de bilheteria” e a velocidade das coisas imprime que soframos sob a “tirania do
momento”, nos forçando a não memorizar e a não aprender com os fatos. Formamos uma
sociedade indiferente, insensível e despreocupada, consumida pelo vírus da adiaforização.
(Bauman, Cegueira Moral, 2013 – p.53-54).
A sensibilidade contemporânea ergue-se numa lógica pautada pela economia mundial e como
resultado a humanidade apresenta-se fragmentada, insensível, com valores frágeis e efêmeros.
Na era do excesso de estímulos, do excedente de produtos e lazeres, do esplêndido “mundo
globalizado”, chega a ser um contrassenso afirmar que a sociedade se encontra
demasiadamente insensível em suas relações intra e interpessoais, extremamente
individualista, esvaziada de sentidos, enfim, distante da plenitude humana.
... na actualidade surgem novas formas de subjectividade perturbada
que, em certa medida, podem ser compreendidas em função de
características da sociedade pós-moderna (...) Identificam-se três tipos
de problemas (Giovanetti, 2002, 1999):perda da unidade psicológica,
perda do sentido da vida e transformação da intimidade. (Teixeira,
2006)

São grandes e velozes transformações que, conforme Colombo (ibidem) afetam de tal forma o
modo de vida do sujeito moderno e que permeiam “a formação e a construção de identidades,
de relações sociais e vínculos afetivos”.
Numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto
pronto para uso imediato, o prazer passageiro e a satisfação
instantânea, quer se acreditar nas relações humanas e no amor à
semelhança de outras mercadorias. (...) “Uma inédita fluidez,
fragilidade e transitoriedade em construção (a famosa “flexibilidade”)
marcam todas as espécies de vínculos sociais...”, afirma Bauman
(2004: 112-113 em Mantello, 2014)

Entregues à compulsão globalizante que se instaura e “cegos para olhar a nós mesmos e ao
outro, substituindo relações por vícios, trabalho desenfreado e cacarecos pós-modernos,
aumentando a sensação de impaciência em relação ao outro.” (Campos, 2010, p.4 apud
Mantello, 2014). Durabilidade não é uma qualidade que se espera das coisas e das relações,
ambas são úteis por um "tempo fixo" e esquecidas ou eliminadas quando se tornam inúteis
(Bauman, entrevista Educação 2009). Os relacionamentos amorosos, afetivos, entre amigos,
familiares, conhecidos, tornam-se cada vez mais superficiais. Padrões de comportamentos
cada vez mais voláteis - expressão do próprio Bauman – ilustrada pelas relações passageiras
entre as pessoas, gerando “novas angústias aos cidadãos de nossa sociedade de consumo.”
(Mantello, 2014). A mutabilidade sem tréguas é geradora de inquietudes, incertezas,
ansiedades, medos, revoltas e intolerâncias; para Colombo (2012) estamos na “era das
transformações”, da desconstrução de valores consolidados, da transformação da cultura e do
fracasso de certas ideologias clássicas da sociedade, a era em que certezas supostamente
inabaláveis estão sendo derrubadas.” Impulsionado pelos discursos de Bauman e a
modernidade liquida, Amorim assegura que
A (pós-)modernidade é marcada por este discurso amorfo, em que as
ideias fluidamente mudam de posição, amoldando-se a interesses
políticos, cujo pano de fundo são ideias bastante solidificadas.
(AMORIM, 2008)

Sendo assim, interesses políticos e das instituições dominantes competem neste jogo de poder
e dominação, materializadas por meio da massificação de ideias e comportamentos. A política
é só mais uma das áreas humanas afetadas pela insensibilidade moral, alega Bauman (?).
Fianco (2010) aponta que a hegemonia da estrutura social mesmo não exercendo um domínio
pela violência física, como ameaça de um estado totalitário contra o indivíduo; exerce
pressão, força, dominação psicológica e provoca um
“esvaziamento da subjetividade e elimina com ela qualquer
possibilidade de atitude crítica que possa barrar ou amenizar este
processo de coisificação do mundo e das relações humanas e avaliação
de todo o existente a partir do ponto de vista da quantificação
monetária e da possibilidade de lucro ou de expansão de mercado
consumidor” (Fianco, 2010).

Além consumismo exacerbado, apontado como uma das maiores causas da insensibilidade
atual, as noções tanto temporais como espaciais tem tomado outros formatos, gerando novas
sensações, transformações contínuas no que concerne “às formas de experimentar o tempo –
cada vez mais acelerado – e o espaço – cada vez mais flexibilizado (Frezza, 2009)”. Vivemos
uma “intensa fase de compressão do tempo-espaço que tem tido um impacto desorientador e
destrutivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bem
como sobre a vida social e cultural” (Harvey, 2004, p. 257 apud Frezza, 2009). O tempo é
sinônimo de azáfama (pressa) e o espaço, conceito volátil, com as alterações recorrentes do
progresso nos âmbitos tecnológico, cultural e social, intensas disrupturas se instalam e abrem
à sociedade global relações espaço-temporais de complexidade ímpar, uma revolução efetiva,
sem precedentes, fronteiras ou volta.
O desenvolvimento das tecnologias de informação, produção e transportes, dos
gerenciamentos das empresas e das formas de relacionamentos sociais afetam diretamente
nossas sensações espaço-temporais, ao mesmo tempo que estes direcionamentos são também
afetados por estas categorias, afirma (Frezza, ibid).” Oliveira (apud Pires, 2017) elucida com
propriedade este ponto
O tempo social contemporâneo é marcado pela escassez. Ninguém
tem tempo! O que é feito do tempo? Foi comido pela aceleração? Está
a ser comido pela transparência dos ecrãs que nos seduzem o olhar?
Dilui-se na liquidificação das relações e dos processos sociais? A
egotização das relações sugam o tempo? A (ego) narcisação absorve a
atenção engolindo o tempo num processo de suavização da existência?
A overdose informacional, a overdose relacional, a paradoxilização da
existência no processo ambivalente caleidoscópio que não permite a
lucidez da paragem, da quietude, da contemplação...Talvez tudo isso
junto e algo mais. Oliveira (apud Pires, 2017)
Há a frequente sensação de descontinuidade e de supervalorização do momento presente: um
tempo pontilhista descontínuo (Bauman, Cegueira Moral 2014, p. 137) “tal como o
pontilhismo na pintura, transforma a impressão ou o estado momentâneo numa coisa mais real
que os projetos de longo prazo, a história, os cânones clássicos e o passado (ibidem). Acerca
da lógica do ciberespaço, o on line, Bauman (Sobre educação e juventude, 2013) assevera que
não há mais distinções entre próximo ou distante, aqui ou lá, essa “ é a condição a que a
glocalização – o processo de despir a localidade de sua importância ao mesmo tempo que se
aumenta sua significação – visava desde o início”. Fomos empurrados até lá, ou, sob outro
ângulo, trouxeram-na até nós.
A monetização das relações sociais, a perseguição de objetivos econômicos e a lógica de que
“quanto mais rápida a recuperação do capital posto em circulação, tanto maior o lucro obtido”
(Harvey, 2004, p. 209), aceleram os processos de produção, reconstroem o espaço para a
circulação dos produtos e serviços, transformando a vida social, vertiginosamente. (Frezza,
2009).
“O espaço midiático (eletrônico ou virtual), a “televivência” e a “telerrealidade” são os
maiores “ladrões” de tempo, a “sociabilidade está entrelaçada e umbilicalmente associada a
essa conjunção de disposições”, afirma Rubim (2008), a experiência do on-line, causa a
sensação do tempo a passar rápido, não deixa espaços para outras atividades, pensamentos e
discurso, e o pior, não deixa marcas significativas no sujeito, apenas breve recordação, uma
memória difusa, escassa (Oliveira, apud Pires 2017 p.80). O tempo on line, o “tempo entre”
iguala-se ao “estar entre”, completa Oliveira (ibidem), não se está nem aqui, nem lá, a fruição
do espaço é suspendida, sugando a sensorialidade do lugar, o aroma do tempo e do espaço”.
Hoje, a mais escassa mercadoria no mercado é a atenção humana, afirma Donskis (Cegueira
Moral, 2013, p.59), esta tem se reduzido ao tamanho e duração de mensagens escritas,
enviadas e recebidas, e a linguagem, se tornou a vítima elementar da vida apressada e da
tirania do momento, cada vez mais simplificada, reificada, vulgarizada e vazia.
O excesso comportamental contemporâneo tem gerado um vazio existencial, a liberdade de
escolha aumenta mais as incertezas e nada é visto como suficientemente excessivo (Bauman,
2007 apud Colombo, 2012).
Duas manifestações do novo mal: a insensibilidade ao sofrimento
humano e o desejo de colonizar a privacidade apoderando-se do
segredo de uma pessoa, aquela coisa de que nunca se deveria falar,
que jamais poderia se tornar pública. O uso global de biografias,
intimidades, vidas e experiências de outras pessoas é um sintoma de
insensibilidade e falta de sentido. (Donskis, Cegueira Moral, 2013 –
p.14)

Tais comportamentos, aparentemente inofensivos, são representações do mal, porém os


indivíduos não procuram o mal em si, mas fora. O mal não está limitado às guerras ou a
ideologias totalitárias, revelando-se, com muita frequência na insensibilidade ao sofrimento
alheio, à compreensão do outro, ao olhar sensível e ético (ibidem). Assim, comunicamos com
os que estão distantes sem muitas vezes percebermos os que estão próximos e sofrendo.
Apesar dos medos atuais da humanidade serem comuns, eles se refletem na “praga da
solidão”, os medos foram desregulamentados e privatizados
Estamos condenados a confrontar nossos medos individualmente e a
elaborar nossos próprios estratagemas e subterfúgios para contra-
atacá-los, pois os medos comuns a todos não redundam numa
comunhão de interesses e numa causa comum, assim como não se
fundem num estímulo a juntar forças. (Bauman, Cegueira Moral,
2013, p.98)

Além de consumidores de mercadorias nesta sociedade de consumidores, somos nós próprios


mercadorias, temos a obrigação de oferecer uma demanda de nosso produto: nós mesmos
(blogs, facebook, whatshapp e similares). “Em nossa era narcisista, obcecada com consumo,
intensidade, busca de atenção autoexposição e sensacionalismo, é difícil que um indivíduo
intelectual consiga deixar de cair no esquecimento sem se tornar vítima ou celebridade”. Só
somos audíveis pelas mídias e suas tecnologias, se não se envolver com elas, você não existe,
se não estiver on-line, você deixa de participar da realidade, revela (Cegueira Moral, 2013,
p.64).
Já no século passado, Adorno afirmou que os meios de comunicação “educam” aos padrões
culturais vigentes, tratando a televisão como veículo de ideologias e meio de comunicação
deformador, inibidora da emancipação, antagônica à educação. Compreendeu a ‘televisão
como ideologia’ pela constante tentativa de imprimir “uma falsa consciência e um
ocultamento da realidade” (Adorno em Maia, 2000).
“Os programas de televisão são hoje meios de uniformização, as
novelas e os ditos jornais “informativos” acabaram por transformar a
maior parte da população em ouvintes pacientes e sensíveis aos
imperativos da indústria cultural. As ações destes instrumentos
tecnológicos na população geraram seres humanos frios, turbinados
pelos motores das possantes máquinas, impulsionados ao infinito pela
velocidade das informações, navegantes indefesos pelos mares
agitados e sedutores da internet. (Pucci, 1995 em Barba, 2015)

Compreendemos que os meios de comunicação guardam os extremos: tanto a “verdade


quanto a mentira”, a “fé quanto a incredulidade”, a “certeza quanto a dúvida”, a “compaixão
quanto a indiferença”, o “bem quanto o mal”. Mesmo que possa parecer que Adorno, Bauman
e seus partidários eram antagônicos ao progresso e às tecnologias, não é verdadeiro; contudo,
revelaram-se contrários à atitude mal empreendida e exacerbada em relação a estas mídias,
que excepcionalmente, tem se tornado regra.
Não se tem dúvidas de que vivemos uma conjuntura tão conectada que é natural falarmos de
uma sociedade em rede, como fez Manuel Castells (1996-1998), aponta Rubim (2008). Dando
continuidade, Rubim (ibidem) defende que “a sociedade atual, ao ser uma sociabilidade
ambientada pelas redes, aparatos e espaços de comunicação, tem a singularidade de ser
composta por este novo, singular e complexo modo de ser e estar no mundo”. Com esta
afirmativa compreende-se que todos os campos da vida humana, compostos pelas relações
sociais, econômicas, ideológicas e culturais foram afetadas e modificadas pela aparição da
Internet, com suas respectivas repercussões e desdobramentos. Talvez não nos apercebamos a
influência do mundo virtual e digital no nosso cotidiano, estar ou querer estar à margem deste
processo é uma atitude de auto exclusão
O contemporâneo torna-se um mundo de conexões e de redes. Nele
vida e desenvolvimento parecem bloqueados para quem não esteja
conectado. Na atualidade, a conexão passou a ser um valor e uma
distinção altamente considerados. A ausência de conexões, pelo
contrário, é sinal de exclusão social e de inexistência neste mundo.
(Rubim, 2008)

As narrativas (sociais, políticas e culturais – adendo nosso) são criadas no espaço virtual
(ibidem) e não fazer parte deste mundo é estar fora do mundo. Pelbart (2000 apud Frezza,
2009) ressalta que as mudanças relacionadas ao espaço e tempo definem a vida cotidiana: o
que era privado (o tempo de lazer, das relações familiares, esfera da fé) perde autonomia e é
amplamente penetrado. Donskis (Cegueira Moral, 2013 – p.12) afirma que se você “não está
disponível nas redes sociais, não está em lugar algum. O mundo não lhe perdoará essa
traição.” Bauman (Cegueira Moral, 2013 – p.36) fala sobre “a morte do anonimato” por
cortesia da internet submetemos “à matança nossos direitos de privacidade por vontade
própria. Ou talvez apenas consintamos em perder a privacidade como preço razoável pelas
maravilhas oferecidas em troca”. O que era privado, hoje é feito em público e fica disponível
para o consumo público, pois a internet não esquece (ibidem).
“Celebridades” é o nome genérico para as pessoas que se amoldam às normas estabelecidas
nos estatutos da mídia e, na expressão de Daniel J. Boorstin, citado por Bauman (Cegueira
Moral, 2013, p. 86) “são muito conhecidas por serem muito conhecidas, e cujos nomes com
frequência valem mais que os serviços que prestam”. Neste cenário de fama e poder, a
tecnologia ultrapassou a política, sendo que esta última deixou de representar o poder de
transformar problemas privados em questões públicas, ou internalizar questões públicas
transformando-as em problemas privados ou existenciais. Hoje a política tem se ocupado com
frequência com problemas privados de figuras públicas (Donskis, ibidem). Discorrendo a
política na indústria do entretenimento, Bauman assinala que
Ou o “noticiário político” se submete docilmente ao domínio do
“infotenimento”, ou não tem a chance de ser oferecido a mais de um
“nicho de audiência” reduzido e em geral marginalizado. (...) reciclar
qualquer tema político em matérias de entretenimento; e a si mesmos
em celebridades, vistas todos os dias em função de sua posição atual
na competição por popularidade, e não pelo peso das coisas que
poderiam ter dito com credibilidade ou qualquer outro valor que não o
entretenimento. (Bauman, Cegueira Moral, 2013, p.86)

Políticos já não vivem sem os imagólogos, diz Donskis citando Kundera (Cegueira Moral,
2013, p.89), sem o mundo do entretenimento, entretanto o humor político atual está muito
mais próximo do ódio disfarçado que de piadas e risos (ibidem). Escritores de literaturas
distópicas, afirma Donskis (Cegueira moral, 2013, p.88), já previram estas profundas
simulações de realidade e fabricações de consciências, características dos meios de
comunicação de massa que moldam as nossas percepções de mundo. Tanto a mídia quanto a
publicidade são conduzidas por profissionais qualificados na arte de seduzir e induzir
comportamentos, conforme Donskis (ibidem) a imagologia é “a arte de construir conjuntos de
ideais, anti-ideais e imagens de valor que as pessoas supostamente seguem sem pensar ou
questionar de maneira crítica”.
Reforçamos a importância de uma educação formadora, emancipatória, autônoma, que possa
desenvolver nos indivíduos o pensamento crítico e a inteligência emocional para que sejam
sujeitos dominantes dentro das suas relações, sejam elas virtuais ou físicas e não dominados
pela situação, levados por modismos ou pela intenção do mercado massificador que se revela
um condutor de ideologias e opressor de pensamentos autônomos. É imperioso que as pessoas
aprendam a utilizar conscientemente e produtivamente a tecnologias e desenvolvam um grau
de sensibilidade que as comprometam com a sustentabilidade do planeta, com as pessoas e
consigo mesmas.
Por mais que a internet, em muitos momentos tenha se mostrado um forte veículo de
liberdade e força de expressão popular em questões sociais e humanitárias, o apontamento a
seguir se faz muito sensato: “a tecnologia em si não vai ‘promover o avanço da democracia e
dos direitos humanos’ por você ( e em seu lugar)” (Bauman, Cegueira Moral, 2013, p.73);
trocando em miúdos, se tais discursos não deixarem o campo virtual para se tornarem prática
cotidiana dos cidadãos, visando o bem estar comum, pouco ou nada adiantam.
A história nos tem mostrado que o mal não está nas coisas em si, entretanto, no que se faz
delas, não seria diferente no campo das tecnologias. Oliveira (apud Pires, 2017) chama nossa
atenção para o quanto preenchemos nosso cotidiano quiçá para não termos tempo disponível
para pensarmos nos sentidos ontológicos da vida, ou para respondermos performaticamente às
pressões da sociedade “cada vez mais e melhor em menos tempo, mas todo o tempo;
incorporando o carrasco, a ponto de uma percentagem de pessoas com depressão ser cada vez
maior(...) de modo a estar “colado ao presente, e às recompensas imediatas do presente”,
Oliveira (ibidem), sem se ligar ao passado, ao futuro e a um presente que transcenda o instinto
de sobrevivência e as satisfações físicas.
É bem provável (salvo alguma revolução cultural ou uma catástrofe a nível global) que, daqui
há algumas décadas as possibilidades provocadoras de reflexões de profundidade ontológica e
que transcendam o senso comum se tornem cada vez mais raras, estes raros momentos serão
salvaguardados sobretudo pela cultura e pela arte.

1.2 – Refletindo acerca da sociedade pós-moderna


1.2.1 – Sociedade capitalista de consumo
O “[...] capitalismo se destaca por criar problemas, e não por solucioná-los” (BAUMAN, 2010, p. 7).

O motor propulsor da sociedade pós-moderna é o mercado de consumo, seja de produtos ou


serviços, vivemos assim uma supervalorização dos saberes intelectivos com fins competitivos
e consumistas, refletindo essencialmente numa educação para o trabalho. Bauman (apud
Colombo, 2012) assinalou o consumismo como a característica peculiar da sociedade
capitalista, definindo-o por um comportamento compulsivo que não permite pensar nas
consequências estimuladas pelo mundo moderno. Colombo (ibidem), conclui que um
processo de alienação é compreendido como consequência da instauração do consumismo
como meio e fim para tudo e para todos, e principalmente, como símbolo de felicidade.
Adquirir produtos, porém mais do que isso, o que está em jogo são as sensações
experienciadas na aquisição dos produtos. Uma busca incessante por sensações (táteis,
olfativas, do paladar) ou das sensações mais profundas e reconfortantes, Bauman (2001: 95-
96 em Mantello, 2014), numa tentativa de “escapar da agonia chamada insegurança”,
característica peculiar da modernidade (Cegueira Moral).
Mantello (2014) afirma que o prazer do homem “é o desejar e o capitalismo e a sociedade de
consumo sabem muito bem proporcionar este prazer(...)”. Ao lançar constantemente novos
produtos e modelos culturais no mercado vertiginosamente, potencializa o desejo, o interesse
e o desinteresse, sucessivamente. É a ciclicidade na busca da satisfação: a ânsia pelo objeto de
desejo quando saciada é substituída por um novo estímulo e um ciclo infindável é instaurado,
gerador de insatisfação e distanciamento da autoconsciência. Transcrevendo as palavras de
Bauman (apud Mantello, 2014) “na corrida dos consumidores a linha de chegada sempre se
move mais veloz que o mais veloz dos corredores...”
A transformação é extremamente rápida e violenta, assevera Colombo (2012) e instiga o
sujeito a buscar constantemente, conduzindo-o ao consumo ilimitado e “caindo nas malhas do
sistema de consumo sem pensar, transformando a adição de coisas em vício, tudo é poder e
prazer.” A formação humana neste contexto, reforça Amorim (2008), acontece pelo
nivelamento da sua psique “ao mínimo possível para que haja o máximo de intervenção
mercadológica sobre si”. Não se negociam apenas produtos, mas sistemas de ideias; como
resultado, o ser humano apresenta uma visível dualidade, está mais individual (centrado em si
mesmo, isolado), ao mesmo tempo em que é global (altamente dirigido pelos estímulos
externos).
Em essência o homem está fragmentado, por suas atividades, pela
maneira dissociada com que a realidade o aprisiona (em gabinetes de
trabalho ou sessões com divisórias, no gigantismo das cidades que o
coloca em seu automóvel, isolante de estímulos externos etc.), e a
falsa integração dá-se por intermédio de meios que mais ainda o
afastam de si mesmo. (Amorim, 2008)

As respostas sociais são dependentes de normas e regras, revela Colombo (2012),


ocasionando num bloqueio da espontaneidade e restringindo consequentemente a capacidade
de percepção e criação. “O indivíduo passa a ser visto como simples peça de uma
engrenagem, sem possibilidades de criar o próprio destino, deixando de ter verdadeira
participação na sociedade” (Colombo, 2012). O ser humano precisa "recuperar a
espontaneidade e a criatividade, que são inatas a ele, e que estão bloqueadas ou perdidas no
seu desenvolvimento por todos os tipos de pressão sofrida na sociedade" (Moreno, 1987 apud
Colombo, 2012)
Em Amorim (ibidem) discutem-se as esferas globais e a influência de uma cultura dominante
sobre as demais. Lipovetsky (2006, p.160 apud Colombo, 2012) enfoca o papel das mídias
convencionais na programação do cotidiano das pessoas, na manipulação da vida individual e
social, a transformar tudo em artifício e ilusão a serviço do lucro capitalista e das classes
dominantes”. Apresentando um senso crítico e autonomia de pensamento precários, grande
parcela da população aceita o modelo de ideal imposto de cima: o desejo e a posse como
satisfação, o prazer momentâneo como sinônimo da plena felicidade!
Os próprios indivíduos, transformados em produtos, são aliciados ou estimulados, por vezes,
forçados a promover uma mercadoria (a si próprios) que seja atraente e desejável para o
mercado. Para alcançar projeção profissional ou social os sujeitos vêm-se impelidos a
remodelar “a si mesmos como mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de obter
atenção e atrair demanda e fregueses.” (Bauman, Vida para Consumo, 2008, p.13).
Este contexto é marcado por reconstruir as relações humanas “a partir do padrão, e à
semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo” (Bauman, Vida
para consumo, 2008, p.19). Os comportamentos individuais e sociais, e, nomeadamente, a
educação e a cultura inserida no sistema capitalista consumista, são influenciadas
profundamente por este, assim como as relações entre as pessoas.
A nossa é uma sociedade de consumidores, em que a cultura, em comum
com o resto do mundo por eles vivenciado, se manifesta como arsenal de
artigos destinados ao consumo, todos competindo pela atenção,
insustentavelmente passageira e distraída, dos potenciais clientes, todos
tentando prender essa atenção por um período maior que a duração de uma
piscadela. Bauman (A cultura no mundo líquido moderno, 2011, p. 18)

Neste império do efêmero, apontado por Colombo (2012), tudo tem caráter transitório e vão.
A mídia, nos “bombardeia constantemente com imagens de sucesso, poder, beleza e fama,
mostrando-nos o Olimpo (...)” (Volpi, 2003). O efeito para o emocional das pessoas pode ser
altamente prejudicial
“Isso tem um efeito altamente nocivo. Sabemos que a publicidade em
si é, muitas vezes, enganosa, uma falácia. Para vender seu produto,
impõem padrões absolutamente irrealísticos e falsos veiculados
massivamente, aos quais a grande maioria reage com desejo,
instigando seus traços narcisistas... (Volpi, 2003)”

O narcisismo é uma marca da personalidade coletiva, onde o indivíduo expõe sua imagem e
seu cotidiano, de modo a superiorizar-se, individualizar-se, porém, sem perceber, realiza
exatamente o inverso, ao fazer isso, iguala-se à massa, perde sua identidade. Observa
Germaine Greer, em Bauman (Vida para consumo, p. 21), que na era da informação, há muito
pouco além da mídia e a invisibilidade equivale à morte (esquecimento, adendo nosso).

1.2.2 A cultura do efêmero na sociedade de consumo


Sendo o homem essencialmente um ser de cultura, a cultura determina o perfil das sociedades,
o que torna impensável refleti-la independentemente do homem e das relações humanas
(Denis Cuche, 2002, p. 23). A cultura é um organismo vivo e dinâmico, que se amolda aos
padrões ideológicos, sociais e políticos de cada tempo e espaço históricos. OSTROWER
(1987, p. 11 e 12) assevera que o homem, mesmo sendo um indivíduo, único, particular, é
determinantemente moldado pela cultura na qual ele está inserido, o ser humano desenvolve
sua individualidade com fortes vínculos com a coletividade. Os comportamentos de cada
indivíduo são moldados “pelos padrões culturais, históricos, do grupo em que ele, indivíduo,
nasce e cresce”; vinculados aos padrões coletivos, ele desenvolverá sua individualidade, seu
modo pessoal, seus desejos, aspirações e realizações. (Ostrower , 1987, ibidem)

A aculturação, conforme Taylor, é regida por leis sociais semelhante à evolução das espécies
para os biólogos evolucionistas, o conceito de cultura de Taylor é o que mais se aproxima do
qual estamos habituados

Cultura ou civilização, no sentido etimológico mais lato do termo, é


esse todo complexo que compreende o conhecimento, as crenças, a
arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou
hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade.
(Taylor, 1871, p.1 apud Cuche, p.40)

Inspirada nos ideais iluministas e regida pelos princípios de iluminação, a teoria evolucionista
buscava o refinamento dos costumes e a aproximação do povo dos que estavam no topo,
atribuindo “à sociedade ‘desenvolvida’ a função de converter os demais habitantes do
planeta” (Bauman, A cultura no mundo..., 2011, p.15). Entretanto, o efeito mobilizador que a
cultura deveria suscitar, revelou-se estabilizante, pela própria padronização a que se propôs
(ibidem) – axioma consonante ao conceito de Industria Cultural de Theodor Adorno, que
trataremos mais adiante.

As tarefas iluministas eram: esclarecer, cultivar o povo, formar um “novo homem”, cidadãos
para uma “nação moderna”. Para tanto, era necessário liberar as pessoas das velhas crenças e
superstições, das regras da tradição, dos obstáculos que corroíam e atrofiavam a sociedade;
moldar a população segundo os preceitos da razão, disseminar a cultura, com um conceito
análogo ao de agricultura, neste caso, o cultivo de pessoas, propagando o universalismo (em
real, o eurocentrismo). Esta concepção científica, “fala por todos e de todos, já que foi
pensada, conduzida e instituída a partir dos interesses e das questões daqueles, cujas vozes
pretenderam (e pretendem) representar toda a humanidade”. Feita por ocidentais, brancos, de
classes dominantes, dotados de uma “capacidade extraordinária”, que, supostamente,
perguntaram e ao mesmo tempo responderam o que seria importante para todas as pessoas.
(LOURO, 2007, p. 143 apud Furlan, 2016, p.291).

Até este período, os modelos culturais das camadas dominantes eram impostos às sociedades,
entretanto, no decorrer das últimas décadas, a cultura foi perdendo seu papel na manutenção
do status quo, da previsibilidade, como também sua função missionária (Bauman, A cultura
no mundo... 2011, p. ...). Vários processos levaram a sociedade a passar de um período
predominantemente sólido (estável, duradouro), para uma fase líquida, imprevisível, efêmera,
aponta Bauman (ibidem), fatores que pouco a pouco atingiram todos os setores da sociedade.
A cultura “agora é capaz de se concentrar em atender às necessidades dos indivíduos, resolver
problemas e conflitos individuais(...)” (ibidem, p. 17 e 18), “. Bourdieu (em Bauman, ibidem)
assinala que, ao não se preocupar com proibições, regulamentação de normas ou busca do
cumprimento de deveres, a cultura na era líquida (como mais um produto mercadológico –
acréscimo nosso) demanda por mudanças constantes, se ocupando em ofertar, estabelecer
tentações, atrair, seduzir, propor novos desejos.

Na fase sólida existia uma elite cultural delimitada e almejada (os membros desta elite a
impunham como ideal). Acerca das hierarquias culturais, (John Goldthorpe apud Bauman
ibidem) revela a impossibilidade de distinguir uma elite cultural hoje em dia através dos
signos de outrora: frequência a concertos, valorização da "grande arte" (arte erudita) e
menosprezo ao popular. Na atualidade, a elite cultural é caracterizada como "onívora",
consumidora do máximo de gêneros simultaneamente; segundo Peterson (in Bauman,
ibidem), não significa a não existência de intelectuais do primeiro grupo, porém, sua
coexistência com os do segundo. Ao empregar o verbo consumir, Bauman (ibidem) aponta
que a cultura foi tragada pelo sistema, ao ponto em que os próprios objetos culturais se
tornaram produtos de consumo.

As manifestações artísticas abandonaram sua “aura”, para se tornarem objetos de função


recreativa, de prazer ou divertimento, aponta Bauman (ibidem, p. 19). Conforme Donskis
(Cegueira Moral, 2013, p.209) a arte tem se tornado uma exposição entediante e sem
significado de técnicas inovadoras ou expressões “tóxicas e autodestrutivas”. “A cultura nada
mais tem a ver com a história e a existência. O único problema vivenciado pela humanidade é
a vida em si – ou, mais precisamente, ganhar a vida, de sobreviver”, Donskis (ibidem). Na
busca da efemeridade do poder de sedução, no excedente de ofertas e no rápido descarte, a
cultura assume o feitio do mercado, dentro de numa economia orientada para o consumo, sua
finalidade passa a ser a satisfação momentânea, embora não plena, para poder criá-la
ininterruptamente, almejando o processo, não seu fim. A efemeridade atribuída ao
capitalismo representa uma das principais características culturais na contemporaneidade,
numa expressão de Bauman (2011), a modernidade líquida “dissolve o que é sólido”, e, ao
invés de colocar formas sólidas no lugar, substitui as formas líquidas por outras suscetíveis ao
derretimento.

O espectro da superfluidez: a modernidade líquida “é uma civilização do excesso, da


redundância, do dejeto e do seu descarte” afirma Bauman (Sobre educação e juventude, 2013,
p.14). O consumismo, hoje, não visa mais o acúmulo de coisas, mas à sua máxima utilização e
abandono e, um obstáculo crucial em nossa sociedade de consumidores é a competência
onívora dos mercados de consumo, sua capacidade extraordinária de valer-se de “todo e
qualquer problema, ansiedade, apreensão, dor e sofrimento humanos – sua capacidade de
transformar todo protesto e todo impacto de ‘força contrária’ em proveito e lucro” (Sobre
educação e juventude, 2013 p. ). Dessa forma, "a bagagem de conhecimentos" construída nos
bancos da escola, na universidade, não são uma exceção dessa lei universal. Discorreremos
mais profundamente acerca deste assunto no capítulo 2 deste trabalho.

Estudos consonantes sobre a formação cultural danificada do homem dentro do sistema


capitalista e consumista, já no século passado foram levantadas pelos teóricos Theodor
Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), dois nomes proeminentes da Escola de
Frankfurt. A Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer, desenvolvida junto com Marcuse e
outros, já na altura, examinou o autoritarismo, o totalitarismo, a cultura de massa, a função da
ciência e da técnica, os sentidos subentendidos na modernização dos meios de comunicação, a
educação: teorias, métodos e a formação e deformação da criticidade (Barba, 2015). Podendo
ser considerada uma revisão dos pensamentos de Marx, a Teoria Crítica tem como finalidade
uma prática transformadora, sendo que “a crítica da teoria é a libertação do pensamento pela
razão” (Romeiro, 2015)
A vertente principal da Teoria Crítica é a concepção de um projeto de racionalização da
sociedade, alicerçado na ideia da emancipação. “Mas em que a teoria crítica pode participar
de um tal projeto de racionalização? É enquanto ‘produtora de consciência’ que a teoria
crítica espera participar de ‘uma prática emancipadora-racionalizante’ (Ruz, 1982).
Adorno analisou o processo formativo para demonstrar o conflito da sociedade:
modernizando-se enquanto se exauri da visão crítica, permite a própria alienação e adentra
numa crise não só social (busca pelo ter), mas de formação (deixa de ser) (ibidem). Com isso
cunhou o termo Industria Cultural
“Na passagem da modernidade para o mundo contemporâneo, outro
dispositivo marca a esfera cultural de modo relevante. Comparece
agora a mercantilização da cultura, intimamente associada ao
desenvolvimento do capitalismo e da chamada “indústria cultural”.
Tal processo indica, antes de tudo, o avanço do capitalismo sobre os
bens simbólicos.” (Rubim, 2008)

As indagações de Bauman complementam as ideias da Teoria Crítica desenvolvida por


pesquisadores de Frankfurt (a qual inclui Adorno), como as reflexões de Adorno que
culminaram no termo Indústria Cultural, já que o ponto basilar destes estudos é a crítica ao
sistema capitalista, ao consumismo e à massificação da cultura. O ponto principal de Adorno
sobre o conceito de Indústria Cultural refere-se justamente “na constatação de que o capital
agora avança não somente sobre a circulação, mas também sobre a própria criação da cultura
(Rubim, 2008)”. A realidade não se constrói com bases nos processos internos do indivíduo
em contato com o mundo exterior, de dentro para fora, pelas sensações, experiências,
reflexões e percepções individuais com o meio em que vive; mas, essencialmente pelo
processo inverso, de fora para dentro: é imposta, manipulada, hegemônica e massificadora
(ibidem).
Desta forma, Adorno (apud Barba, 2015) aponta que a sociedade capitalista é um mecanismo
de poder social e cultural sobre o indivíduo, que, ao perder a capacidade de pensar e agir por
conta própria, perde consequentemente, o senso de solidariedade e de respeito ao outro. Sem a
tomada da consciência, a individualidade e autenticidade são abafadas.
“No trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si
mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens mesmo quando os alimenta” (Adorno,
Dialética do Esclarecimento, p. 42). Abandonando o objetivo de “ser” para alcançar o “ter”,
humanos deixam de lado o poder mítico e místico de compreensão do universo
“a tentativa de desencantar o mundo, de dissolver os mitos e substituir
a imaginação pela razão transformou-se, aos poucos, num poder que já
não conhece barreiras, nem limites, que não detém nem ante a
destruição da natureza, da escravização da criatura, ou da manipulação
do próprio ser humano.” Goergen (2005, p. 18 em Barba, 2015)

A razão é imprescindível para o homem, o que não é compreensível é uma sociedade racional
capaz de tantas atrocidades e desumanidade. Conforme Maar (1995), como aceitar um mundo
onde a fome ainda é avassaladora, sendo que, de um ponto de vista científico-técnico já
poderia ter sido extinguida? Ou, um mundo onde o desenvolvimento científico está tão
avançado, ainda ver-se tamanha miséria? Adorno (Dialética Negativa, p.303) assegura que o
auge deste sistema foi Auschwitz, que demonstrou de forma esmagadora o fracasso da
cultura. Contudo, antagonicamente, Auschwitz foi ao mesmo tempo a vitória da indústria da
cultura, conseguindo moldar e controlar as pessoas a uma postura de eficiência, pragmatismo
irrefletido e crueldade insonháveis; deste modo, é a prova integral da formação danificada.
A superioridade do ser humano está no saber, e disso não há dúvidas (Romeiro, 2015), para
Bacon (Dialética do Esclarecimento, p. 17 apud Romeiro, 2015) a pergunta seria: “que razão é
esta e que saber é este, que conduz os homens à barbárie?” Adorno e Horkheimer em
momento algum nos propõem um distanciamento da razão, mas o oposto, procuram sua
retomada; convém questionar qual o tipo de racionalidade tem um caráter emancipatório,
humanizador
“a racionalidade é essencialmente determinante do ser humano e de
sua história, sendo, portanto, inerente à vida humana e, dessa maneira,
desdobra-se e permeia todas as concepções éticas, políticas e estéticas.
(…) “Somente um modelo de racionalidade capaz de aproximar
ciência, ética e estética viabilizará uma educação para emancipação”
(Romeiro, ibidem).

A racionalidade se constitui por nuances da cultura, pelo convívio social, pelas experiências
pessoais, por sentimentos e sensações, extrapolando normas e convenções, é ainda construção
individual, muito além da transmissão de saberes. O impacto da racionalidade do capitalismo
hostil nas relações sociais transforma “as relações imediatas em secundárias, o indivíduo é
aquilo que possui.” (ibidem)
Romeiro (2015) admite que para Adorno a arte, a cultura – quando vivenciadas – são
possibilidades que conduzem o indivíduo a reflexão, imaginação, experimentação, projeção e
sublimação, proporcionando meios para a autoconsciência e emancipação. “A redução da
razão à dimensão instrumental, desvinculada de sua força emancipatória e libertadora, é razão
reificada, coisificada”. É necessário “resgatar a razão enquanto esclarecimento e libertação,
enquanto verdadeira práxis que conduz à emancipação política, ética e estética”. (ibidem)
“Como as obras de arte, sendo objetos da cultura, podem ser constitutivas de autonomia, já
que a própria cultura é apropriada pelo capitalismo e também reproduz a racionalidade do
capital?” (Chaves, 2014). A indústria cultural atribuída por Adorno carrega todos os
elementos peculiares do mundo industrial moderno; os objetos de arte, produzidos e
consumidos segundo os critérios capitalistas se rebaixam ao estatuto de mercadoria, perdendo
assim seu potencial crítico e contestatório.
“quando a Indústria Cultural privilegia um produto pseudo-artístico
padronizado, calculado tecnicamente para surtir efeitos determinados
de modo a serem por todos desejados e repetidos, na forma e na
medida adequados a garantir o poder e o lucro do sistema dominante,
gera uma necessidade compulsiva generalizada que afasta o “não-
idêntico” como exótico, indesejado, incômodo ou doente. Tal
repetição vem camuflada com outros produtos que, não obstante a
variação aparente, repetem os mesmos modelos, esquemas ou
características impostas, tendendo a manter o público sob controle,
cada vez mais massificado, inconsciente e compulsivamente preso à
corrente de produção. (Reis, 1996, p. 44-45 apud Bertoni, 2001)

A cultura torna-se um dos meios da sociedade moderna para fins massificadores, um


paradoxo, pois torna-se um elemento escravizador, sendo seu caráter libertador. Refletindo
Adorno e a indústria cultural, Maia (2000) afirma que cultura, pelo seu próprio significado
etimológico, é reflexo do meio, está “mergulhada na civilização”. Em nossa época significa
que o que é cultura é também “administração técnica, parte do aparato produtivo industrial,
voltada para o controle dos indivíduos” (ibidem). Assim, ter um amplo acesso à ‘cultura’
dominante é anti esclarecimento – acreditando estar amplamente esclarecido – e ainda mais, a
identificação personificada às mercadorias nada mais é que sucumbir à ideologia.
Amparando-se nas reflexões de Adorno, Maia (ibidem) alega que a padronização é a
característica mais importante das mercadorias ‘culturais’, concluindo que ao estandardizar os
produtos padroniza-se também os próprios consumidores. Os objetivos comuns são “a
padronização das reações e formas de pensamento dos indivíduos” e as possíveis diferenças
são apenas estratégias manipuladoras visando consumo, massificação e diversão. Pode-se
afirmar que tudo hoje é “modismo”, a moda é para Bauman (A cultura no mundo... 2011,
p.26) um fenômeno social, uma movimentação de ir e vir de conceitos, que faz dela “um dos
principais motores do progresso”. Todavia o progresso, (ibidem, p.27) passou do “discurso de
melhoria coletiva para o de sobrevivência individual” (ibidem, p.26). Bauman considera o
progresso aqui como transformação constante, um “processo irrefreável, em relação aos
nossos desejos e indiferente aos nossos sentimentos”; que exerce uma força irresistível e
insuperável a nos submeter ao antigo ditado: “Se não pode vencê-los, junte-se a eles”.
Complementamos asseverando que, na esfera do indivíduo, progresso é sinônimo de sucesso
profissional, significando destacar-se dos demais, ser o melhor em um determinado campo do
saber - revelando uma sociedade individualista, de senso coletivo e progresso mútuo nulos,
mas de atomização, separabilidade.
O mercado de consumo submeteu a cultura à lógica da moda, Bauman (ibidem, p.27) revela
que o modelo da busca por uma identidade pessoal passa a ser o do “camaleão” ou do
Prometeu (personagem mítico capaz de se transformar em outras formas e entidades).

A cultura plenamente abrangente de nossos dias exige que se adquira a


aptidão para mudar de identidade (ou pelo menos sua manifestação
pública) com tanta frequência, rapidez e eficiência quanto se muda de
camisa ou de meias. Por um preço módico, ou nem tanto, o mercado
de consumo vai ajudá-lo na aquisição dessas habilidades, em
obediência à recomendação da cultura. Bauman (ibidem, p.28)

Esta constatação exibe o quanto a lógica da economia orientada ao consumo reflete na


educação do indivíduo, na formação de sua identidade, e, consequentemente, na construção da
identidade coletiva – sociedade. Dedicar a existência à procura do próprio ego, cujo objetivo
implícito é a alienação, buscar os modismos apostando ser “diferente”, leva
contraditoriamente, à perda da individualidade e da autonomia. Há, dois desejos
contraditórios no ser humano: o sentido de pertencer a um grupo e o de se distinguir das
massas – senso de individualidade e originalidade. Esta contradição resume-se num conflito,
entre o anseio de segurança e o anseio de liberdade, ou, o medo de ser diferente e de perder a
individualidade, ou ainda, o medo da solidão e da falta de isolamento (Bauman ibidem, p.24).
Mesmo com a hegemonia cultural massacrando as expressões populares, pouco a pouco, uma
luz no fim do túnel tem se deixado ver, há algumas décadas o cenário tem se revelado menos
simétrico, propiciando algumas aberturas às culturas não massificadas. O monopólio das elites
que produziam e disseminavam cultura estão se enfraquecendo, afirma Rubim (2008) que
tecnologizando a comunicação e a cultura possibilitaram-se o apogeu de redes informáticas e
do conjunto de ciberculturas “associadas à dinâmica de glocalização das redes, que moldam o
ambiente contemporâneo”.
A Internet, as mídias independentes e os canais alternativos em muitas situações se
comportado como uma ruptura à cultura dominante massificadora, todavia, as fake news
tornam-se também mais frequentes e devastadoras. Canais de comunicação que não se
prestam a propagar a ideologia dos monopólios da sociedade, libertos dos grandes grupos de
comunicação, empresariais ou políticos, têm conseguido propagar uma programação cultural
diferenciada e um jornalismo imparcial, através de documentários, reportagens e noticiários, a
favor da autonomia de pensamento, da liberdade de expressão, da produção e veiculação de
conteúdos “do público para o público”. Entretanto, estas mídias “contra a hegemonia” não
estão entre as mais propagadas, observando-se com muito mais força a disseminação de
canais alternativos com conteúdo independente produzindo e reproduzindo modelos similares
aos impostos pelas mídias tradicionais e pela indústria cultural, contribuindo assim para o
reforço das culturas de massa e para o pensamento hegemônico. É notório que, grande parcela
das produções midiáticas autônomas seguem o modelo dominante e, assim, a ideologia ecoa:
arquétipos artísticos com nenhuma inovação, repetem-se hits e padrões de sucesso; nas redes
sociais dissemina-se o desejo de sucesso, acúmulo de bens materiais, superexposição do ego,
poder financeiro, culto à beleza física e aos momentos fugais.
Neste sentido, o panorama contemporâneo suporta um conjunto complexo de dinâmicas e de
categorias de sentido que se sobrepõem, ora se mesclam, conflitam-se, negociando e
conformando culturas híbridas, afirma Rubim (ibidem): “Vive-se inscrito, simultaneamente,
em múltiplas dinâmicas, ambientes e redes de sentido, presenciais e midiatizadas. (...) A
cultura contemporânea se vê constituída e perpassada, igualmente, por fluxos e estoques
culturais de tipos diferenciados”. De um lado vê-se um processo de globalização, com
“produtos culturais fabricados de acordo com padrões simbólicos desterritorializados”,
procurando se posicionar em um imenso mercado mundial controlado por
megaconglomerados; de outro lado, brotam manifestações “confeccionadas por fluxos e
estoques culturais locais e regionais”, que buscam nichos de mercado.
Além de tornar o ser humano progressivamente mais individualista, o capitalismo tende a
acentuar cada vez mais as diferenças de classes, deste modo, novamente, uma mudança será
possível se ancorada na cultura e na educação. Concluindo este tópico, citamos Furlan (2016)
com sua pesquisa acerca da modernidade liquida: “Em uma sociedade dividida como a nossa
entre os/as que têm e os/as que não têm, a cultura é o terreno onde se dá a luta pela
manutenção ou superação das divisões sociais”.

1.2.3 Hibridismo cultural, multiculturalismo e nações sem identidade

Retomando Bauman e suas considerações sobre a fase “sólida” da modernidade, a ideologia e


o objetivo do sistema neste período era sua própria manutenção, a sobrevivência dos padrões
e dos elementos duradouros e imutáveis, que definiam a sociedade e suas qualidades.
Homeostasia compreendia a “tendência natural das sociedades identificadas com esses
sistemas ou que a eles aspiravam”, afirma Bauman (2011, p.34). Por meio de adaptações às
novas realidades, estamos deixando as coisas acontecerem, seguirem seu curso, as normas de
regulação e os modelos unificadores vão sendo substituídos pelo excesso de opções e
escolhas. É “A imagem especular de um mundo em que o não engajamento e a distância se
tornaram a principal estratégia do poder” (Bauman ibidem, p.55). Enquanto essas realidades
não são questionadas e forem aceitas como inevitáveis, é possível suportá-las, moeda de troca
pela sua adoção como modelo para nossa própria vida. (ibidem)

A realidade sustenta-se numa rede tanto individual como global e a esperança em que os
governos possam resolver os problemas dos países e da população são cada vez mais
diminutas. Mesmo sem instrução adequada para uma crítica inteligente, a maioria das pessoas
já não são tão submissas como costumavam ser, ou acreditavam que fossem, é mais difícil
coagi-las a fazerem o que os poderes desejam, contudo, são mais propensas à sedução
(Cegueira Moral, 2013, p.109). Um mundo cada vez mais complexo e global, para endossar a
morte da homeostasia, a globalização e a migração em massa introduziram uma era de
diásporas: “Trata-se de um arquipélago de colônias étnicas, religiosas e linguísticas (Bauman
ibidem, p.37). É “impossível negar que as ‘forças de mercado’ em movimento livre
contribuem muito para a crescente mobilidade dos migrantes ‘econômicos’” (ibidem).
Praticamente nenhum país hoje é exclusivamente um lugar de imigração ou emigração, uma
grande complexidade assola as migrações atuais, as vizinhanças caracterizam-se por
“fronteiras ondulantes, flutuantes e porosas”, é difícil definir quem é de dentro e quem é
estranho. (ibidem, p.38). O aprendizado do convívio e respeito às diferenças se faz urgente e
vital, exigindo habilidades sociais e políticas para que esta realidade seja benéfica, para
migrantes e nativos, nisso, os direitos humanos vêm estabelecendo um alicerce mínimo para
uma tolerância mútua, todavia, está longe de administrar uma solidariedade mútua. Cabe
salientar que, para os governos, as desuniões são positivas, pois assim, não constituem forças
contra o sistema e, ainda mais, Richard Rorty (apud Bauman, ibidem) afirma que concentrar a
população em problemas como: hostilidades étnicas, religiosas, ou de gêneros sexuais,
constitui em uma excelente estratégia para o não afrontamento social, político ou econômico.

Uma aceitação do “pluralismo cultural”, na prática tem se tornado uma nova indiferença à
diferença, através da prática política denominada “multiculturalismo”, aparentemente guiada
pela tolerância liberal e pelo apoio aos direitos às identidades escolhidas ou herdadas pelas
comunidades (Bauman, A cultura no mundo..., p. 46). Tal política, não estabelece a
interculturalidade ou o incentivo e valorização real das culturas em desvantagens; agindo de
forma extremamente conservadora, sob a égide de “diversidade cultural, consiste em
apresentar

a desigualdade das condições de existência como resultado de uma


multiplicidade de escolhas em termos de estilos de vida, direito
incontestável de toda comunidade. O novo culturalismo, tal como o
racismo que o precedeu, busca minar a consciência moral e aceitar a
desigualdade humana encarando-a como um fato que ultrapassa nossa
capacidade de intervenção (no caso do racismo), ou como uma
condição na qual não se deveria intervir, em deferência a seus
veneráveis valores culturais. Bauman (2011, p.47)

Resposta mais frequente das classes influentes sobre quais caminhos seguir nesta era de
incertezas, o multiculturalismo tornou-se uma resposta clichê para amenizar os conflitos
causados pela incerteza e ignorância da classe intelectual frente às perguntas que exigem no
mínimo uma boa dose de empatia e senso de humanidade (ibidem). Gademer, em Bauman
(2011, p. 81) assinala que o caminho da compreensão passa por uma “fusão de horizontes”,
um trabalho demorado, de progresso lento, completa Bauman. A era líquida é inconstante,
dinâmica, permitindo, que as “mutações culturais” busquem caminhos, níveis diferentes dos
atuais, pois tudo é transitório, nada é definitivo ou irrevogável, é uma jornada “rumo ao
desconhecido” (ibidem, p.83).

Fraser apud Nancy Bauman (2011, p.86) protesta contra a fenda cada vez maior entre
políticas culturais de diferença e de igualdade, também contra a injustiça cometida a
indivíduos ou grupos em que são negadas condições de interação social por sua categoria
cultural. Na exclusão cultural, nega-se o direito social e a garantia de oportunidades iguais, até
onde a tolerância é sinal de humanidade, trégua, descaso ou raiva contida em relação ao outro.
Num mundo “multicultural” as culturas coexistem, porém, a política multiculturalista não tem
facilitado a coexistência dialógica, harmoniosa, em relações culturais frutíferas,
reconhecendo-se os direitos de cada um (Bauman, ibidem).

Assimilações, existe culturais não é uma realidade nova desde sempre na história das
civilizações, os meios de comunicação e o fenômeno da globalização com as migrações cada
vez mais acentuadas, tem se encarregado de mudar de forma acentuada o cenário cultural dos
países, favorecendo o encontro de culturas e tornando-as híbridas, compostas. Culturas
verdadeiramente “puras” (se um dia realmente existiram), não são imagináveis num mundo
líquido e global. Referindo ao processo migratório na Europa, Bauman alega que a métissage
(hibridização) cultural que a entrada de recém-chegados acaba por romper é inevitável e
“a mistura de inspirações culturais é fonte de enriquecimento e motor
da criatividade – tanto para a civilização europeia como para qualquer
outra. Da mesma forma, há somente uma linha tênue a separar esse
enriquecimento de uma perda da identidade cultural; para evitar que a
coexistência entre autóctones (habitantes nativos) e alóctones (os que
vieram de outros lugares) venha a solapar o patrimônio cultural”
Bauman (Sobre Educação e Juventude, 2013 p. 06)

Na prática, a comunicação intercultural é repleta de ciladas, a incompreensão lidera o cenário,


já que nenhum idioma é integralmente traduzível para o outro sem que não haja nenhuma
distorção na mensagem, pois “se retiver sua forma prístina, deverá se limitar a ser apenas
parcialmente compreendida”, diz Bauman (ibidem, p. 35-36). Apesar de tudo, conseguimos
de alguma forma nos comunicar transculturalmente e os exaustivos esforços podem ser vistos
como uma fonte prolífica de criatividade cultural” (ibidem).
Transcrevemos uma frase esplêndida de Bauman que revela as miscigenações culturais no
cotidiano das sociedades, que torna, talvez, as convivências mais complexas, contudo,
certamente, mais enriquecedoras.
“Por mais de quarenta anos da minha vida em Leeds, vi pela janela
crianças voltando para casa da escola secundária mais próxima.
Crianças dificilmente andam sozinhas; preferem andar em grupos de
amigos. Seu hábito não mudou. No entanto, o que vejo pela janela tem
mudado com o passar dos anos. Quarenta anos atrás, quase todos os
grupos eram “de uma cor só”; hoje, quase nenhum deles o é.” (Sobre
educação e juventude, 2013 – p.7)

A proliferação de estudos, políticas e práticas culturais que articulam cultura e identidade,


cultura e desenvolvimento, cultura e uma diversidade de outras dimensões sociais, apenas
confirmam o espaço e o valor adquiridos pela cultura nos tempos contemporâneos, Rubim
(2008). Redes de relacionamentos físicos e virtuais das mais diferentes etnias, crenças,
culturas e espaços territoriais. As redes virtuais, comumente, se comportam como extensões
dos organismos que as criam para seus interesses e controle, entretanto também podem ser
“novos e importantes atores ao reunir uma ampla diversidade de entes em uma conjunção
mais igualitária, porque com poderes socializados. Nessa circunstância, as redes não só
empoderam as entidades filiadas, mas, ao representar seus interesses comuns, aparecem como
novos atores políticos e culturais” (ibidem).
“A reterritorialização contemporânea, com a emergência cultural de cidades e regiões, tem
sido uma contrapartida à tentativa de globalização cultural”, completa Rubim (2008). Apesar
deste processo ser bastante desigual, dada a hierarquia e ao domínio da lógica capitalista
“é interessante perceber que vão sendo tecidas curiosas conexões e
negociações, aproximando e, por vezes, tensionando atores e
procedimentos que historicamente estiveram apartados por um longo
tempo. Hoje a ampliação das migrações e da circulação de bens
materiais e simbólicos conforma um novo ambiente para a cultura,
repleto de potencialidades e riscos. Novíssimas fronteiras culturais se
instalam em zonas de intensa interação entre territórios e espaços
geográficos e midiáticos, muitas vezes denominados,
equivocadamente, de virtuais. As fronteiras culturais tornam-se
múltiplas e complexas”. Rubim (ibidem)

A era das pressões assimilatórias parece ter ficado no passado, no entanto a ambivalência
tomou seu lugar no cenário contemporâneo. Nesse sentido, a modernidade líquida “é o
período do desencaixe sem o reencaixe” (Furlan, 2016). O respeito e a coexistência entre
múltiplas culturas, opções sexuais, religiosas e ideológicas, inclusão de todo tipo e
diversidade, são tópicos primordiais para as pastas de todos os níveis governamentais, por se
tratarem de realidades cada vez mais frequente no mundo atual, todavia, de uma
complexidade que não requer apenas soluções políticas vindas “de cima”, como também da
bom senso, da empatia e da sensibilidade de cada indivíduo.

Vivemos um contexto de uma complexidade nunca presenciada anteriormente, globalizado


tanto quanto fragmentado, da diferença tanto quanto da uniformidade, das diásporas quanto as
hibridizações culturais, do excesso tanto quanto da escassez, hiperconectado tanto quanto
isolado, e que, valorizando exclusivamente o momento presente, os prazeres imediatos, a
exaltação do ego, o poder, a fama, inflige o consumismo de modo a alimentar o sistema
capitalista. “A modernidade é globalizante e suas consequências são desestabilizadoras.”
(Colombo, 2012).

Inúmeras pesquisas apontam que o ser humano é involuntariamente influenciado pelo meio,
embora não exista uma exatidão no grau desta influência, pois que esta dependerá do
indivíduo, de sua liberdade de escolha e de seu desenvolvimento pessoal (formação).
Esvaziada de sentidos capazes de transcender o aqui e agora, como a civilização será capaz de
desenvolver nos indivíduos um pensamento verdadeiramente humano, autônomo e
emancipador? É provável que a única solução, capaz de, ao menos amenizar os danos sofridos
por uma formação reificada, seja uma “revolução cultural”, como aponta Bauman, se assim o
for, esta conseguirá se estabelecer através da educação (como formadora do indivíduo e da
sensibilidade humana).

Capítulo 2 - A educação e a estética na formação humana


2.1 – Educação e emancipação
“Uma democracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso
exige pessoas emancipadas. Só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de
emancipados.” Adorno (1995)

2.2 – A educação no mundo contemporâneo fluido


“Não estamos vivendo uma era de mudanças. Estamos vivendo uma mudança de era.” Marcos
Cavalcanti*

2.3 – A arte como formadora da consciência humana


Teoria Estética
Na época atual, a fatalidade de toda e qualquer arte é ser contaminada pela inverdade da totalidade
dominadora. (Adorno, A teoria Estética)

2.3.1 – A Educação como formação - pela estética na Educação


“Com a semiformação, não há espaço para a memória, para a criação estética, para os sonhos
poéticos, a linguagem tornou-se procedimento matemático”. (Romeiro, 2015)

Capítulo 3 – A Educação Estética em projetos de educação integral do indivíduo


3.1 PNA (Projeto Nacional de Arte – Portugal
3.2 BNCC (Base Nacional Comum Curricular) – Brasil
3.3 Colégio Libere Vivere
Considerações e conclusões finais

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