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J E AN-J ACQUES ROUSSE AU

,.,

CONFISSOES

P ORTU GAL) A E D I T OR A
LISBOA
JEAN -JACQUES ROUSSEAU

nasceu em Genebra a 28 de Junho de 1712. Seu pai, relojoeiro


de mérito e de alguma instrução, como a mãe de Jean-Jacques
morrera de parto, confiou o filho aos cuidados de uns tios, que
o mandaram para casa de um pastor protestante, onde foi
educado. Mais tarde, o pai, espírito romanesco e aventureiro,
abandonou-o completamente e em 1728 Jean-Jacques foge de
Genebra. lll: então que Madame de Warens, que deixara o marido
e se encontrava em Annecy, a expensas do rei da Sabóia, con­
vertendo protestantes, toma conta dele e o converte ao catoli­
cismo. Em 1738, Jean-Jacques, que já se evadira três vezes,
instala-se, de novo, em casa de Madame de Warens, em Cham­
béry, para depois a acompanhar a Charmettes. Em 1741 aban­
dona definitivamente esta senhora e fixa-se em Paris, onde trava
relações com uma tal Thérese Levasseur, criada de servir, de
poucas letras, com quem viverá até ao fim dos seus dias. Os cinco
filhos que nascem desta união abandona-os o pai, um após outro,
no hospício dos Enfants-Trouvés, em Paris. lll: nessa altura que
começa a sua vida de homem de letras, logo célebre quando
concorre ao concurso aberto pela Academia de Dijon e obtém
o primeiro prémio pelo seu trabalho sobre a tese Si le rétablis­
sement des seiences et des arts a contribué à épurer les mreurs.
Em 1754 publica o seu discurso L'origine de l'inég'l.lité parmi les
hommes, que levantou grande celeuma. iF'ixa-se, por volta de
1756, na floresta de Montmorency, em casa de Madame d'®pinay,
mas não tarda a indispor-se com ela e com os seus amigos
Grimm e Diderot. Publica, em 1762, IG:mile, que lhe acarreta a
condenação dos católicos. Refugia-se na Suíça, mas aí é perse­
guido pelos protestantes. Em 1766 vai a Inglaterra a convite do
filósofo David Hume, com quem se indispõe pouco depois, regres­
sando a França, onde leva uma vida errante até se fixar de novo
em Paris (1770), na Rua Platiere, local em que habita durante
oito anos atormentado pela mania da perseguição. Em Maio de
1778, a convite do marquês de Girardin, alberga-se no castelo
d'Ermenonville, e aí anorre pouco depois, no dia 2 ou 3 de Julho,
vítima de uma doença algo misteriosa. confissões marca
uma data na literatura de afirmação intimista. lll: além disso
uma obra-prima literária, na qual se desenvolve em plena matu­
ridade o estilo vibrátil, incisivo, animado por contrastes, que
fizeram de Rousseau (salvo certos exageros que o tempo sepul­
tou) um dos maiores escritores de língua francesa. Este livro
eterno é a súmula da experiência humana do autor, das suas
ilusões e desilusões; aí se retrata a sociedade .tal qual a viu e
sentiu; documento de uma época, portanto: mas que a trans-
cendeu e permanece jov&.n.
BREVE INTRODUÇÃO

A obra de Jean-Jacques Rousseau pode dividir-se em duas


partes distintas. Numa contam-se os trabalhos de natureza teó­
rica ou doutrinal. Na outra os de natureza pessoal, confessional
ou testemunhal. Naquela incluem-se o famoso l!:mile ou de
l'éducation ou Du contrat social ou principe de droit politique.
São os seus famosos livros doutrinários que tamanha influência
vieram a ter no campo da moral, da política e da educação.
Nesta, Les confessions ou Les rêveries du promeneur solitaire,
obras precursoras da literatura psicológica e confessional dos
nossos dias. Como acontece muitas vezes nos domínios do espí­
rito, não foram as obras da primeira espécie que maior glória
literária trouxeram a Jean-Jacques Rousseau. As obras da
segunda deve este escritor, por assim dizer, a posteridade clás­
sica que mantém nas letras francesas.
Desde a mais tenra injdncia que Rousseau se viu só diante
da vida. O jacto de sua mãe ter morrido de parto e de o pai,
homem volúvel, romanesco e aventureiro, o haver abandonado
criança teve uma importtlncia capital na sua existência. Moral­
mente, Jean-Jacques ressentiu-se toda a vida dessa espécie de
libertinagem psicológica em que foi criado. Homem de coração
ardente e vontade mole, de tlnimo generoso e espírito ctlndido,
de sentidos despertos e costumes lassos, Jean-Jacques Rousseau,
ao ver-se, em Paris, célebre ou no caminho da celebridade,
encontra diante de si a inevitável torpeza dos invejosos e dos
despeitados. Grimm e Diderot, eis os seus mais implacáveis ini­
migos. Rousseau deu-lhes jàcilmente o flanco. A sua vida irre­
gular, a sua sinceridade desprevenida, a dissolução do meto
em que caíra, 1 ligando-se com essa criada de servir, Thérese
Levasseur, filha de uma mulher da mais baixa condição, eram
fácil presa para a calúnia. Não tardou que se expandisse noa

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meios de Paris que Jean-Jacques enjeitara os seus cinco filhos.
Literàriamente, Rousseau teve de arcar com as acusações mais
insinuosas e nem o pouparam como músico, aproveitando-se
de uma ingenuidade sua para o acusarem de plagiário. Foi o
caso que, compondo ele a ópera Le devin du village, Holbach lhe
mostrou um álbum de composições musicais inéditas, sua pro­
priedade, insistindo para que Rousseau introduzisse uma nova
pastoral no seu trabalho. Jean-Jacques, para lhe ser agradável,
acei"bou a sugestão e dias depois do espectáculo veio a encontrar
o álbum em cima da estante de Grimm, aberto na página em
que estava a pastoral que ele incluíra na sua ópera. Daqui
nasceu a campanha que teve por finalidade provar que Rousseau
não sabia compor.
Ora Rousseau, que muito sofreu com estas perseguições
caluniosas, procurou por várias vezes justificar-se. As Confissões
são, por assim dizer, o seu exame de consciência. Com esta obra,
de uma sinceridade que ultrapassa tudo quanto se conhecia até
então em matéria de humildade e de renúncia pessoal a qual­
quer preconceito de orgulho, tentava Jean-Jacques uma absolvi­
ção geral, não só dos seus pecados reais, mas também das falsas
acusações que pesavam sobre o seu carácter. Não é uma justi­
ficação em termos sociais, morais ou jurídicos: é uma verda­
deira confissão em sentido religioso. Implacável e feroz, Rous­
seau escalpeliza-se, não vacilando descer às mais íntimas parti­
cularidades da sua vida ·moral e sexual.
Seria preciso esperar pela obra de um Dostoievski ou de
um André Gide para se voltar a repetir na história de qualquer
literatura um tacto tão extraordinário.
Um homem que se desvenda perante os seus semelhantes
sem mesmo lhes ocultar aquilo que o humilhará diante deZe3

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é exemplo excepcional de sinceridade e de grandeza humanas.
Nem por outra razão é esta obra um dos mais sérios «documen­
tos humanos» que existem no mundo. Não é outra a razão de as
Confissões serem consideradas um dos documentos psicológicos
mais patéticos de todas as literaturas, não falando já no que
elas representam nas letras francesas, onde são consideradas
uma obra clássica.
Parece-me inútil encarecer o empreendimento da Portugália
Editora, tomando a iniciativa de jazer traduzir em português
esta obra-prima. Inútil me parece chamar a atenção para o
tacto de esta tradução ter sido feita por um dos nossos primeiros
compositores e musicólogos, que é ao mesmo tempo um dos
nossos escritores mais vigorosos. Rousseau foi compositor, e o
sentido musical era um dos dons que mais concorriam para a boa
orquestração da sua prosa, que, nem sempre sendo clara, nunca
deixa de ser extraordin,àriamente harmoniosa. Fernando Lopes
Graça, vencendo as dificuldades que uma tal prosa oferece a
qualquer tradução, soube penetrar nas obscuridades do texto
e manter as virtudes harmoniosas dele. Isto é garantia suficiente
para que a versão das Confissões, que a Portugália Editora lança.
a público, seja em tudo digna da obra-prima original.

JOAO GASPAR SIMOES


AS CONFIS SOES
DE J.- J. ROUSSEAU

PRIMEIRA PARTE
Este é o único retrato de homem, pintado exactamente
segundo o natural e em toda a sua verdade, que existe e que
provàvelmente existirá jamais. ,Quem quer que sejais, vós a
quem o meu destino ou a minha confiança fizeram árbitro
deste caderno, pelos meus infortúnios, pelas vossas entranhas,
e em nome de toda a espécie humana, conjuro-vos a não des ..
truir uma obra útil e única, que pode servir de primeira peça.
de comparação no estudo dos homens, certamente ainda por
começar, e a não furtar à honra da minha memória o único
monumento seguro do meu carácter não desfigurado pelos meus
inimigos. Fôsseis vós, vós mesmo, enfim, um dos meus impla­
cáveis inimigos, cessai de o ser para com as minhas cinzas, e não
leveis a vossa cruel injustiça até ao momento em que nem
vós nem eu já seremos vivos, a fim de que, ao menos uma vez,
possais prestar a vós próprio a nobre justiça de haverdes sido
generoso e bom quando podíeis ser mau e vindicativo; se é que
o mal para com um homem que nunca o praticou ou quis
praticar poderá chamar-se vingança 1•

1 Esta nota, espec1e de advertência, consignada no começo da pri­


meira parte das Confissões, não se encontra no manuscrito de Paris, que,
com o de Genebra, constitui a fonte documental da obra de Rousseau.
- N. do T.
LIVRO PRIMEIRO
Intus, et in Cute.

OU empreender uma coisa sem exemplo, e cuja realização

V não será imitada. Quero mostrar aos meus semelhantes


um homem em toda a verdade da natureza, e esse
homem serei eu. Eu só. Sinto o meu coração, e conheço os
homens. Não sou feito como nenhum dos que tenho visto; ouso
crer não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho
mais, sou pelo menos diferente. Se a natureza fez bem ou mal,
ao quebrar o molde em ,que me vazou, é o que só poderá ser
julgado depois de me haverem lido.
Soe a trombeta do juízo final quando lhe aprouver;
irei com este livro na mão apresentar-me ao juiz supremo.
Direi em voz alta: Eis aqui o que fiz, o que pensei, aquilo que
fui. Falei, com igual franqueza, do bem e do mal. Nadá calei de
mau, nada acrescentei de bom, e, se me aconteceu empregar
qualquer insignificante adorno, foi tão-somente para tapar uma
lacuna motivada pela minha falta de memória; posso ter tomado
como verdadeiro o que sabia havê-lo podido ser, nunca o que
sabia ser falso. Mostrei-me tal qual fui: desprezível e vil, quando
o hei sido; bom, generoso, sublime, quando o hei sido: revelei
o meu íntimo tal qual como tu próprio o viste. Ser supremo,
junta rà minha volta a inúmera turba dos meus semelhantes:
que eles escutem as minhas confissões, que gemam com as
minhas infâmias, que corem com as minhas misérias. Que, junto
do teu trono, cada um deles abra, por sua vez, o coração com
a mesma sinceridade, e que um só que seja te diga em seguida,
se ousar fazê-lo: Fui melhor do que esse homem.
Nasci em Genebra, em 1712, do cidadão Isaac Rousseau e
da cidadã Susanne Bernard. Um modestíssimo património, divi­
dido por quinze filhos, tinha reduzido quase a nada a parte de
meu pai, que, para viver, apenas dispunha do seu ofício de
relojoeiro, em ,que, na verdade, era grandemente exímio. Minha
mãe, filha do pastor Bernard, era mais rica: era discreta e for­
mosa. Não foi sem dificuldade que meu pai a conquistou. Os seus

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amores haviam começado quase ao nascer; dos oito aos nove
anos passeavam juntos na Treme, todas as tardes; aos dez anos,
já não podiam deixar-se. A simpatia, a compreensão das almas
fortaleceu neles o sentimento proveniente do hábito. Ambos eles,
naturezas ternas e sensíveis, só esperavam o momento de encon­
trar noutrem a mesma disposição, ou, antes, tal momento espe­
rava-os a eles próprios, e cada ·qual atirou com o coração ao pri­
meiro que se abriu para o receber. A sorte, que parecia contrariar
a sua paixão, não fez senão animá-la. !Não podendo alcançar a
noiva, o jovem namorado consumia-se de dor; ela aconselhou-o
a que viajasse, para a esquecer. !Ele foi viajar, sem resultado, e
regressou mais enamorado que nunca. Encontrou a sua amada
carinhosa e fiel. Depois desta prova, só lhes restava amarem-se
toda a vida; juraram-no, e o Céu abençoou o seu voto.
Gabriel Bernard, irmão de minha mãe, enamorou-se de uma
das irmãs de meu pai; mas esta não consentiu em desposá-lo
senão sob condição de ·que seu próprio irmão desposasse a irmã
dele. O amor tudo harmonizou, e os dois casamentos realiza­
ram-se no mesmo dia. Desta maneira, meu tio era marido de
minha tia, e os seus filhos foram duas vezes meus primos direi­
tos. Cada casal teve o seu ao fim de um ano; depois, foi neces­
sária nova separação.
'Meu tio Bernard era engenheiro: arranjou trabalho no Im­
pério e na Hungria, ao serviço do príncipe 'Eugénio. Distinguiu-se
no cerco e na batalha de Belgrado. Meu pai, depois do nasci­
mento de meu único irmão, partiu para Constantinopla, onde
o chamavam, e ficou sendo relojoeiro do serralho. Na sua
ausência, a beleza, o espírito e as prendas de minha mãe 1

1 Tinha-as, e brilhantíssimas, para o seu estado, pois que o pastor,


seu pai, que a adorava, grandemente cuidara da sua educação. Desenhava,
cantava, acompanhava-se à tiorba, era lida e versejava razoàvelmente.
Eis uns versos que, encontrando-se seu pai e seu marido ausentes, e indo
dP passeio com a cunhada e os seus dois filhos, ela fez de improviso
sobre um dito que alguém teve a respeito daqueles:

Ces deux Messieurs qui sont absens


Nous sont chers de bien de manieres;
Ce sont nos amis, nos amans;
ce sont nos maris et nos treres,
Et Zes peres de ces entans *.

(Nota de J.-J. Rousseau)

* Estes dois senhores que se acham ausentes I A muitos títulos nos


são queridos; 1 São nossos amigos, nossos amantes; I São os nossos maridos,
os nossos irmãos, 1 E os pais destas crianças.

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granjearam-lhe algumas homenagens. Monsieur da La Closure,
residente da França, foi um dos mais solícitos em render-lhas.
A sua paixão devia ter sido viva, pois que ao fim de trinta anos
vi-o enternecer-se ao falar-me dela. Para se defender dessa
paixão, minha mãe era mais do que virtuosa: amava o marido
com ternura. Pediu-lhe que voltasse depr·essa: ele abandonou
tudo, e �oltou. Fui eu o triste fruto deste regresso. Dez meses
depois, vim ao mundo, fraco e doente. O meu nascimento custou
a vida de minha mãe, e foi a minha primeira desgraça.
Não sei como meu pai suportou semelhante perda, mas
sei que nunca mais se consolou dela. Julgava ver minha mãe
em mim, sem poder esquecer que eu lha tinha tirado; nunca
me beijou sem que eu, graças aos seus suspir:os e aos seus abraços
convulsivos, não sentisse que um amargo pesar se misturava
às suas blandícias: por isso mesmo elas eram mais ternas.
Quando ele me dizia: Jean Jacques, falemos da mãe, dizia-lhe
eu: bem! meu pai, vamos então começar a chorar; e isto era já
o bastante para lhe arrancar as lágrimas. Ai! dizia ele a

gemer - restitui-ma, consola-me dela, enche o vazio que ela


deixou na minha alma. Se tu fosses apenas meu filho, amar­
-te-ia eu desta maneira? Quarenta anos depois de a ter perdido,
morreu nos braços de uma segunda mulher, mas com o nome
da pr,imeira na boca e a sua imagem no fundo do coração.
Foram estes os autores dos meus dias. De todos os dons
que o C'éu lhes concedeu, o único que me legaram foi um coração
sensível; tinha feito toda a sua felicidade, mas para mim foi a
causa de todas as desgraças da minha vida.

Nasci quase morto; poucas esperanças havia de que vin­


gasse. Trazia comigo o germe de uma indisposição que os anos
reforçaram, e que no presente só me abandona por vezes para
mais cruelmente me fazer sofrer doutro modo. Uma irmã de
meu pai, rapariga galante e discreta, velou tanto e tão bem por
mim que me salvou. No momento em que isto escrevo,
encontra-se ainda viva, cuidando, com a idade de oitenta anos,
de um marido mais novo do que ela, mas gasto pela bebida.
Minha querida tia, perdoo-vos haverdes-me feito viver, e afli­
ge-me não poder pagar-vos, no fim dos vossos dias, os extre­
mosos cuidados que me haveis prodigalizado no começo dos
meus! Tenho ainda também viva, sã e robusta, a minha ama
Jacqueline. As mãos que me abriram os olhos ao nascer poderão
ainda fecharmos na morte.

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Senti antes de pensar: é o destino comum da humanidade.
Experimentei-o mais do que qualquer outro. Ignoro o que fiz
até aos cinco ou seis anos. Não sei como aprendi a ler; só me
recordo das minhas primeiras leituras e do efeito que elas tive­
ram em mim: é desse tempo que eu dato, sem interrupção, a
consciência de mim mesmo. Minha mãe tinha deixado alguns
romances; pusemo-nos a lê-los, meu pai e eu, após a ceia.
De princípio, tratava-se apenas de me treinar na leitura, com
livros engraçados; mas dentro em breve o nosso interesse tor­
nou-se tão vivo, que começámos a ler sem descanso alternada­
mente um e outro, passando as noites nesta ocupação. Nunca
podíamos abandonar o volume senão no fim. Algumas vezes
meu pai, ouvindo de manhã as andorinhas, dizia, cheio de ver­
gonha: Vamos deitar-nos; ainda sou mais criança do que tu.
Graças a este perigoso método, adquiri em pouco tempo
não só uma extrema facilidade em ler e em compreender-me,
como uma inteligência das paixões única para a minha idade.
Ainda não tinha ideia alguma das coisas, e já todos os senti­
mentos me eram conhecidos. Nada tinha concebido, tinha
sentido tudo. As emoções confusas que experimentava umas
após outras não alteravam a razão que ainda não possuía, mas
formar�m-me outra d e têmpera diferente, e deram-me sobre a
vida noções bizarras e romanescas, de que nunca a experiência
e a reflexão puderam inteiramente curar-me.
Os romances acabaram no ano de 1719. No Inverno seguinte
foi outra coisa. Esgotada a biblioteca de minha mãe, recorremos
à parte da de seu pai que nos tinha calhado.
Felizmente, encontravam-se nela bons livros; nem podia
ser de outra maneira, visto que essa biblioteca tinha sido, na
verdade, formada por um pastor, um sábio, até; porque era
então moda, mas também por ser homem de gosto e de espírito.
A História da Igreja e do Império, por Le Sueur; .o Discurso sobre
a História Universal, de Bossuet; os Varões Ilustres, de Plutarco;
a História de Veneza, por Naní; as íMetamorjoses, de Ovídio; La
Bruyere; os Mundos, de Fontenelle; os Diálogos dos Mortos,
deste, e alguns volumes de IMoliere foram transportados para o
gabinete de meu pai, e eu lia-lhos todos os dias enquanto ele
trabalhava. Tomei-lhes um gosto raro e talvez único naquela
idade. Plutarco, sobretudo, tornou-se a minha leitura predilecta.
o prazer que sentia em relê-lo constantemente curou-me um
pouco dos romances, e em breve preferi Agesilau, Bruto, Aristides
a Orondato, Artamanes e J uba. Foi através destas interessantes
leituras e das conversas que elas ocasionavam entre meu pai e

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mim que se formou este espírito livre e republicano, este
carácter indomável e altivo, impaciente do jugo e da servidão,
que toda a minha vida me atormentou nas situações menos
próprias para o deixar expandir-se. Constantemente imbuído
de Roma e de Atenas, vivendo por assim dizer com os seus gran­
des homens, tendo nascido eu próprio cidadão de uma república
e filho de um pai cuja paixão mais intensa era o amor da
pátria, inflamava-me com o seu exemplo, julgava-me grego ou
romano; convertia-me na personagem cuja vida lia; o relato
dos lances de constância e de intrepidez que me haviam impres­
sionado tornavam-me os olhos brilhantes e a voz forte. Um dia
em que contava à mesa a aventura de Scevola, aterroriza­
ram-se, vendo-me avançar a mão e conservá-la sobre uma
lâmpada para imitar o seu acto.
Tilnha um irmão mais velho do que eu sete anos. Aprendia
o oficio de meu pai. A grande afeição que tinham por mim
fazia com que o descurassem um pouco a ele, coisa que não
aprovo. A sua educação sentiu-se deste descuro. Enveredou pela
libertinagem, mesmo antes da idade de ser um autêntico liber­
tino. Puseram-no em casa de outro patrão, donde desaparecia,
como fazia na casa paterna. Quase que não o via, e mal posso
dizer tê-lo conhecido; contudo, não deixava de o amar com
ternura, e ele amava-me tanto quanto um valdevinos pode
amar qualquer coisa. !Recordo-me que duma vez em que meu
pai, encolerizado, o castigava violentamente, me lancei impe­
tuosamente entre os dois, abraçando-me muito com ele. Desta
maneira, cobri-o com o meu corpo, recebendo os socos que lhe
eram dirigidos; e tanto me obstinei nesta atitude, que necessário
foi, por fim, que meu pai lhe perdoasse, desarmado quer
pelos meus gritos e pelas minhas lágrimas, quer para não me
maltratar mais do que a ele. Enfim, meu irmão acabou tão
mal que fugiu e desapareceu de todo. Algum tempo depois,
soubemos que estava na Alemanha. Nem uma só vez escreveu.
Desde então, nUJnca mais tivemos notícias suas, razão por que
fiquei sendo filho único.
Se este pobre rapaz foi educado negligentemente, o mesmo
não sucedeu ,com o irmão, e os filhos dos reis não poderiam ser
tratados com mais desvelos do que eu o fui durante os meus pri­
meiros anos, idolatrado por tudo o que me rodeava e, o que
é mais raro, sempre tratado como um menilno adorado, não
como um menino mimalho. Até sair da casa paterna, nem uma
só vez me deixaram correr na rua sozinho com as outras
crianças; nunca tiveram que me repreender nem satisfazer um

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destes caprichos fantásticos que se atribuem à natureza, quando
nascem todos unicamente da educação. Tinha os defeitos da
minha idade: era tagarela, lambareiro, algumas vezes menti­
roso; teria roubado fruta, bombons, comida; mas nunca senti
prazer em praticar o mal, em fazer estragos, em acusar os
outros, em atormentar os pobres animais. Recordo-me, porém,
de ter uma vez mijado na marmita de uma vizinha nossa,
chamada Madame Clot, enquanto ela se achava na prédica.
Confesso mesmo que a recordação da partida ainda hoje me faz
rir, pois que Madame Clot, boa senhora, de resto, era na verdade
a velha mais rabugenta que em minha vida conheci. Aqui está
a curta e verídica história de todos os meus delitos infantis.
Como poderia eu tornar-me mau, quando diante dos olhos
só tinha exemplos de brandura, e à minha volta as melhores
pessoas do mundo? rMeu pai, minha tia, minha ama, os meus
parentes, os nossos amigos, os nossos vizinhos, tudo o ·que me
rodeava não me obedecia, na verdade, mas amava-me; e eu
amava-os igualmente. :As minhas vontades eram tão pouco
acirradas e tão pouco contrariadas, que não me vinha ao espírito
tê-las. Posso jurar que, até que não estive sob o domínio de um
patrão, não soube o que era uma fantasia. Fora das horas pas­
sadas a ler ou a escrever junto de meu pai, ou em que ia passear
com minha ama, estava sempre com minha tia, a vê-la bordar
ou a ouvi-la cantar, sentado ou de pé ao lado dela; e sentia-me
contente. A sua alegria, a sua doçura, o seu rosto simpático
deixaram-me tão fortes impressões que ainda hoje vejo o seu
semblante, o seu olhar, os seus gestos; recordo-me dos seus
ditinhos afáveis; seria capaz de dizer como é que ela se vestia
e penteava, sem esquecer os dois caracóis que, segundo a moda
do tempo, os seus cabelos pretos lhe faziam nas fontes.
Estou convencido de que é a ela que devo o gosto ou, antes,
a paixão pela música, que só muito mais tarde se desenvolveu
a valer em mim. Sabia uma enorme quantidade de árias e de
canções, que cantava com um fio de voz muito doce. A sereni­
dade de alma desta excelente rapariga afastava dela e de
quanto a rodeava as quimeras e a tristeza. A sedução que o
seu canto tinha para mim era tal, que não só muitas dessas
canções me ficaram para sempre na memória como, hoje que
a perdi, e à maneira que vou envelhecendo, me lembro de algu­
mas delas, totalmente esquecidas desde criança, com um
encamto impossível de exprimir. Velho tonto, roido de cuidados
e de penas, direi que muitas vezes me surpreendo a chorar
como uma criança, tartamudeando com a minha voz já rachada

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e trémula essas c:mtiguitas? Há sobretudo uma que me acudiu
inteirinha 'à memória, pelo que respeita à música; mas a
segunda metade da letra furtou-se sempre a todos os meus
esforços para me recordar dela, se bem que as suas rimas me
lembrem confusamente. É assim o começo e tudo quanto pude
lembrar-me do resto:

Tireis, je n'ose
Écouter ton chalumeau
Sous l'ormeau:
car on en cause
Déjà dans notre hameau

.................. un berger
.................. s'engager
. . .. .. . ..... ...... sans danger;
Et toujours l'épine est sons la rose 1.

Pergunto-me onde está o encanto enternecedor que o meu


coração acha nesta canção: é um capricho em que nada com­
preendo, mas é-me completamente impossível cantá-la até ao
fim sem que as lágrimas me façam parar. Mil vezes já que
tencionei escrever para Paris, para que me procurem o resto
da letra, se é que ainda existe alguém que a conheça. Mas
tenho quase a certeza de que o prazer que experimento ao
recordar esta ária se desvaneceria se tivesse a prova de que
outras pessoas além da minha pobre tia Suson a cantaram.
Foram estas as primeiras afeições à minha entrada na vida;
assim começava a formar-se e a mostr:ar-se em mim este
coração a um tempo tão altivo e tão sensível, este carácter
efeminado e todavia indomável que, flutuando sempre entre

1 Os versos que Rousseau só dá fragmentàriamente são, segundo a


edição de Petitain (1839), os seguintes:

Un cceur s'expose
A trop s'engageT
Avec un berger:

Tradução:

Tireis, eu não ouso


Escutar tua frauta
Sob os ulmeiros:
Já disso se fala
Na nossa aldeia.
Expõe-se um coração
A comprometer-se de mais
com um pastor.

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a fraqueza e a coragem, entre o desleixo e a virtude, me pôs
em contradição comigo mesmo até ao fim, e foi causa de que
tanto a abstinência e a voluptuosidade como o prazer e a
prudência me hajam igualmente fugido.
o rumo de semelhante educação foi interr.ompido por um
acidente cujas consequências influíram :no resto da minha vida.
Meu pai teve uma altercação com um tal Monsieur Gautier,
capitão de França com parentes no Conselho. E ste Gautier, que
era um insolente e um cobarde, sangrou do nariz, e, para se
vingar, a<:usou meu pai de ter lançado mão da espada em plena
cidade. Como quisessem metel.i meu pai na cadeia, este insistiu
em que, segundo a lei, o acusador também lá desse entrada:
não o tendo conseguido, preferiu sair de Genebra e expatriar-se
-Jaqn -e a -eJuoq -e anb ma o�uod wnu Japa:> -e -epJA -e -epo� -eJ-ed
dade lhe pareciam comprometidas.
Fiquei sob a tutela de meu tio Bernard, empregado então
nas for.tificações de Genebra. Havia-lhe morrido a filha mais
velha, mas tinha um filho da minha idade. Puseram-nos os
dois como pensionários em casa do pastor Lambercier, em
Bossey, para aprender, com o latim, toda a quinquilharia de
que, sob o nome de educação, o fazem acompanhar.

Dois anos passados na aldeia adoçaram um pouco a minha


severidade romana e fizeram-me regressar à condição de garoto.
Em Genebra, onde me não obrigavam a coisa nenhuma, gostava
de aplicar-me, de ler: era quase a minha única distracção; em
Bossey, o trabalho levou-me a amar as brincadeiras que lhe
serviam de folga. O campo er. a para mim uma coisa de tal
maneira nova que não me cansava de o gozar. Ganhei-lhe um
amor tão vivo que nunca mais se pôde extinguir. A recordação
dos dias felizes aí passados fez-me ter saudades do seu convívio
e dos seus prazeres em todas as idades e até à altura em que
a ele voltei. iMonsieur {Lambercier era um homem bastante
razoável que, sem descuran a nossa instrução, não nos sobre­
carregava excessivamente com trabalhos. A prova da sua habi­
lidade a este respeito reside no facto de que, apesar da minha
aversão pelas obrigações, nunca me lembrei com aborrecimento
das horas de estudo, e se :não aprendi com ele muitas coisas,
o que aprendi foi sem custo, nada tendo esquecido.
A simplicidade desta vida campestre fez-me um bem dum
preço inestimável, abrindo o meu coração à amizade. Até então,
eu só havia conhecido sentimentos elevados, mas imaginários.

22
O hábito de viver em companhia, num ambiente de paz,
ligou-me afectuosamente a meu primo Bernard. Dentro em
pouco, nutri por ele sentimentos mais afectuosos do que os que
me haviam ligado a meu irmão, e que nunca mais se desvane­
ceram. Era um rapaz muito esgalgado, muito franzino, tão
brando de espír,ito como fraco de corpo, e que não abusava
demasiadamente da predilecção que em casa tinham por ele na
qualidade de filho do meu tutor. Os nossos trabalhos, as nossas
diversões, os nossos gostos eram os mesmos; éramos sós, éramos
da mesma idade, cada um de nós tinha necessidade de um
camarada; separarem-nos era, de certo modo, aniquilarem-nos.
A nossa dedicação um pelo outro era extr,ema, ainda que poucas
ocasiões tivéssemos de o mostrar; e não só não podíamos
viver separados um instante, como nem imaginávamos que
alguma vez isso pudesse acontecer. Ambos de espírito que cedia
fàcilmente às blandícias, condescendentes quando nos não que­
riam levar à força, estávamos em tudo sempre de acordo. Se,
graças ao favor de quem nos governava, ele tinha, em sua pre­
sença, algum ascendente sobre mim, quando nos encontrávamos
sós era eu que o tinha sobre ele, e o equilíbrio restabelecia-se.
Quando estudávamos, assoprava-lhe a lição, se ele hesitava;
quando tinha acabado o meu exercício, ajudava-o a fazer o
dele, e, nas nossas brincadeiras, guiava-se sempre pelos meus
gostos, de natureza mais activa. Enfim, os nossos caracteres
harmonizavam-se tão bem, e a amizade que nos unia era tão
verdadeira, que, para cima de cinco anos em que fomos quase
inseparáveis, tanto em Bossey como em Genebra, bulhámos
frequentemente, confesso-o, mas nunca foi preciso separarem­
-nos, nunca nenhuma das nossas zangas durou mais de um
quarto de hora, e nunca, nem uma só vez, fizemos queixa um
do outro. Estas observações são, se o quiserem, pueris, mas
fornecem todavia um exemplo porventura único desde que exis­
tem rapazes.
A maneira como eu vivia em !Bossey convinha-me tanto, que
só lhe faltou durar mais tempo para fixar em absoluto o meu
carácter. Os sentimentos ternos, afectuosos, serenos, consti­
tuíam o fundo. deste. Creio que nunca indivíduo nenhum da
nossa espécie foi naturalmente menos vaidoso do que eu. Era
levado por transportes a movimentos sublimes, mas caia ime­
diatamente na minha indolência. Ser amado por tudo o que
me rodeava era o meu mais vivo desejo. E ra afável, o meu primo
também; igualmente o eram aqueles que tomavam conta de
nós. Durante dois anos inteiros não fui testemunha nem vitima

23
de qualquer sentimento violento. Tudo alimentava no meu
coração as tendências que este recebera da natureza. Nada
conhecia mais agradável do que ver toda a gente contente
comigo e com tudo. Recordar-me-ei sempre de ,que nada me
perturbava mais do que ver no rosto de Mademoiselle Lambercier
indícios de inquietação e de desgosto quando, na igreja, me
acontecia hesitar ao responder ao catecismo. Só isto me afligia
mais do que a vergonha de fazer má figura em públi�o, o que
todavia me aborrecia extremamente: pois que, se bem que
pouco sensível aos elogios, fui-o sempre bastante à vergonha,
e posso dizer aqui que a expectativa das repreensões de Made­
moiselle Lambercier me alarmava menos do que o receio de a
desgostar. Contudo, não se subtraía à necessidade de ser severa,
da mesma maneira que o irmão; mas, como tal severidade,
quase s·empre justa, nunca era violenta, afligia-me e jamais
me revoltava. Irritava-me mais desagradar do que ser casti­
gado, e os sintomas de descontentamento eram para mim mais
cruéis do que o castigo infamante. lf:-me penoso explicar-me
melhor, mas é preciso. Como se mudaria de método com as
crianças, se se vissem melhor os efeitos futuros daquele que
indistinta e com frequência indiscretamente se emprega sem­
pre! A grande lição que se pode extrair dum exemplo tão
comum como funesto decide-me a contá-lo.
Como !Mademoiselle Lambercier tinha por nós uma ternura
de mãe, tinha também a sua autoridade, exercendo-a por veze'S
até ao ponto de nos infligir o castigo das crianças, se o mere­
cíamos. Durante muito tempo, ficou-se apenas pela ameaça,
e a ameaça dum castigo completamente novo para mim pare­
cia-me medonha; contudo, após a sua execução, achei que
experimentá-lo era menos terrível do que a sua expectativa;
e o que é mais curioso é que o castigo me afeiçoou ainda mais
a quem mo havia aplicado. Tornava-se mesmo necessária toda a
verdade desta afeição e toda a minha doçura natural para me
impedir de procurar de novo o mesmo tratamento e merecê-lo:
porque eu tinha encontrado na dor, e até na vergonha, um misto
de sensualidade que, mais do que o receio, me deixara o prazer
de o receber novamente da mesma mão. É certo que, misturan­
do-se sem dúvida nisso qualquer instinto precoce do sexo, o
mesmo castigo recebido do irmão de maneira nenhuma me teria
parecido agradável. !Mas, com o seu feitio, não havia que recear
tal substituição; e, se me abstinha de merecer o correctivo, era
ap!=Jnas com medo de indispor iMademoiselle Lambercier; porque
o imp,ério da bondade, mesmo da que os sentidos fizeram nas-

24
cer, é em mim tal, que no meu coração foi sempre ela que lhes
·

ditou as leis.
Tal reincidência, que eu afastava sem que. a temesse, sur­
giu sem ser por culpa minha, isto é, sem ser por minha vontade,
e eu aproveitei-me dela, posso dizer que com a consciência
tranquila. Esta segunda vez foi, porém, também a últim a :
porque Mademoiselle Lambercier, tendo sem dúvida percebido
por qualquer indicio que semelhante castigo não atingia o seu
fim, declarou que renunciava a ele, que a fatigava muito.
Tínhamos, até ·então, dormido no quarto dela, e às vezes mesmo,
no Inverno, na sua 'cama. Dois dias depois, mandaram-nos
deitar noutro quarto, e dai em diante tive a honra, que aliás
dispensava per,feitamente, de ser tratado por ela como um
rapaz crescido.
Quem havia de acreditar que semelhante· castigo infantil
recebido aos oito anos das mãos de uma rapariga de trinta
decidiria, para o resto da minha vida, dos meus gostos, dos
meus desejos, das minhas paixões, de mim próprio, e isso pre­
cisamente no sentido oposto ao que naturalmente seria de
esperar? Ao passo que os meus sentidos despertaram, os meus
desejos enganaram-se a tal ponto que, confinados no que hou­
vera experimentado, não trataram de procurar outra coisa. Com
um sangue .escaldante de sensualidade desde que nascera, con­
servei-me puro de toda a mácula até à idade em que os mais
frios e os mais lentos temperamentos se desenvolvem. Ator­
mentado durante muito tempo sem saber, de quê, devorava com
olhos ardentes as criaturas formosas ; a minha imaginação
recordava-as a todo o passo, unicamente para pô-las a servi­
rem-me à minha moda, e fazer delas outras tantas donzelas
Lambercier.
Este prazer estranho, sempre persistente e levado até à
depravação, até à loucura, manteve-me a honestidade nos costu­
mes, ·que pareceria dever tirar-me, mesmo depois da idade
núbil. Se alguma vez houve educação honesta e casta, foi segu­
ramente a que eu recebi. <As minhas tl'lês tias eram não somente
pessoas de uma ponderação exemplar, se não que mostravam
uma reserva que as mulheres já há muito não conhecem. IM:eu
pai, homem dado ao prazer, mas galanteador à antiga , nunca
proferiu ao pé das mulheres que mais amava uma palavra de que
uma virgem pudesse corar ; e nunca, como na minha familia
e diante de mim, se levou mais longe o respeito devido às
crianças. Sobre o mesmo capitulo, não encontrei em casa de
Monsieur Lamber.cier menos cuidados; e uma excelente criada

25
foi posta na rua por ter pronunciado diante de nós uma pala­
vra um pouco fresca. Não só nunca tive, até à adolescência,
ideia alguma clara a respeito da união dos sexos, como até
essa confusa ideia se me apresentava apenas como uma ima­
gem odiosa e repulsiva. Tinha pelas mulheres públicas um
horror que nunca desapareceu; não podia ver um liber.tino sem
desdém, sem pavor mesmo: porque a minha aversão pela liber­
tinagem ia até esse ponto, desde que, 'tendo ido um dia ao
pequeno Sacconex por um caminho fundo, vi umas covas
na terra feitas dos dois lados e me disseram que era onde essa
gente praticava as suas cópulas. As que tinha visto das cadelas
vinham-me também sempre ao espir.ito quando pensava nos
outros, e semelhante recordação dava-me náuseas.
Estes preconceitos da educação, já próprios só por si a retar­
dar as primeiras explosões de um temperamento inflamável,
foram, como disse, auxiliados pelo desvio que em mim provoca­
ram os primeiros rebates da sensualidade. Não imaginando senão
o .que havia sentido, apesar de excitações do sangue bastante
incómodas, só sabia dirigir os meus desejos para a espécie de
volúpia que me era conhecida, sem nunca chegar até à que me
tinham tornado odiosa e que tão perto estava da outra, sem que
eu disso tivesse a menor suspeita. Nas minhas loucas fantasias ,
nos meus furores eróticos, nos extravagantes actos a que eles
por V·ezes me levavam, solicitava imaginàriamente o socorro
do outro sexo, sem jamais pensar que ele pudesse servir para
algo diferente daquilo que eu morria por extrair dele.
Foi assim, pois, que, com um temperamento bastante
ardente, bastante lascivo, bastante precoce, não só passei toda
a idade da puberdade sem desejar, sem conhecer outros pra­
zeres além daqueles de que Mademoiselle Lambercier tão ino­
centemente me havia dado a ideia; como foi ainda assim que,
quando o progresso dos anos me fez homem, aquilo que devia
perder-me me preservou. Em vez de se desvanecer, o meu
antigo gosto de criança associou-se de tal maneira ao outro,
que nunca mais o pude afastar dos desejos ateados pelos meus
sentidos; e esta loucura, junto à minha timidez natural, tor,­
nou-me sempre muito pouco empreendedor com as mulheres,
por culpa de não ousar dizer tudo ou de tudo poder fazer, visto
que o género de prazer de que o outro não era para mim senão
o último termo não podia ser usurpado por aquele que o deseja,
nem adivinhado por aquela que pode concedê-lo. Passei assim
a vida a cobiçar e a calar-me junto das pessoas que mais
amava. Não ousando nunca declarar as minhas preferências,

26
distraía-as ao menos por meio de relações que me conserva­
vam a ideia delas. Estar de j oelhos diante de uma amante
imperiosa, obedecer às suas ordens, ter que lhe pedir perdão,
eram para mim doces delicias ; e quanto mais a minha viva
imaginação me inflamava o sangue, mais eu tinha o ar de um
amante acanhado. É concebível que semelhante maneira de
amar não permita progressos muito rápidos, nem sej a muito
perigosa para a virtude daquelas que constituem o seu objecto.
Muito pouco possuí, por conseguinte, mas não deixei de amar
bastante à minha maneira, isto é, pela imaginação. Eis porque
os meus sentidos, de acordo com o meu feitio tímido e o meu
espírito romanesco, fizeram com que me conservasse puro de
sentimentos e honesto de costumes, graças àquelas mesmas
preferências que, com um pouco mais de atrevimento, me
teriam mergulhado nas mais brutais voluptuosidades.
Dei o primeiro e o mais difícil passo no labirinto obscuro
e lodoso das minhas confissões. O que custa mais a dizer não
é o que é criminoso, mas o que é ridículo e vergonhoso. A partir
deste momento, estou seguro de mim mesmo ; depois do que
tive a ousadia de dizer, nada pode deter-me. Pode-se avaliar
do que me custaram semelhantes confissões s e disser que,
dura:nte toda a minha vida, tenho-me exaltado bastantes vezes
j unto das mulheres que amava na fúria de uma paixão que me
tirava a faculdade de ver, de ouvir, fora de mim e com todo
o corpo presa de um tremor convulsivo, nunca me pude decidir
a declarar-lhes a minha loucura e a implorar delas, na mais
·
íntima familiaridade, o 'único favor que faltava aos outros.
Isto só me aconteceu uma vez, era eu criança, com outra
criança da minh a idade, e mesmo assim foi ela que fez a pri­
meira proposta.

Recuando desta maneira até às primeiras impressões do


meu ser sensível, encontro elementos que, embora pareçam por
vezes incompatíveis, não deixaram de se associar para forte­
mente produzirem um efeito uniforme e simples ; e encontro
ainda outros que, sendo aparentemente os mesmos, formaram,
graças ao concurso de certas circunstâncias, combinações tão
diferentes que nunca se poderia imaginar terem elas alguma
relação entre si. Quem havia de acreditar que, por exemplo,
uma das mais vigorosas molas da minha alma foi caldeada n a
mesma fonte que derramou n o meu sangue a luxúria e a fra­
queza? Sem abandonar o assunto sobre que acabo de falar.

27
vamos ver como dele nasce uma impressão inteiramente dife­
rente.
Um dia, estava eu sozinho a estudar a lição num quarto
contíguo à cozinha. A criada pusera a secar no nicho da parede
da lareira as travessas de 'Mademoiselle Lambercier. Quando
voltou por elas, havia uma com uma fiada de dentes todos parti­
dos. Quem acusar de semelhante estrago? -ninguém, além de
mim, havia ali entrado. Interrogam-me: nego ter tocado na tra­
vessa. Monsieur e IMademoiselle Lambercier reúnem-se, exor­
tam-me, instam comigo, ameaçam-me; persisto teimosamente;
mas a convicção era demasiado forte, prevaleceu acima de todos
os meus protestos, se bem que fosse a primeira vez que me
vissem mentir com tanta audácia. A coisa foi levada a sério;
merecia sê-lo. A maldade, a mentira, a obstinação pareceram
igualmente dignas de castigo; mas as pancadas não me foram
infligidas por Mademoiselle Lambercier. Escreveram a meu tio
Bernard: este veio. Meu pobre primo era acusado doutro delito
não menos grave; fomos envolvidos na mesma execução. Esta
foi terrível. Se, procurando o remédio no próprio mal, tivessem
querido abrandar para sempre os meus sentidos depravados,
não poderiam ter procedido melhor. Por isso, me deixaram estes
sossegado durante bastante tempo.
Não puderam arrancar-me a confissão que exigiam de mim.
Voltando à carga várias vezes e deixando-me no mais lasti­
moso estado, permaneci inabalável. Teria suportado a morte,
e estava resolvido a tal. Foi necessário que a própria força
cedesse perante a diabólica teimosia de uma criança, porque
não chamavam outra coisa à minha constância. Enfim, sai
em estilhas desta cruel prova, mas triunfante. Há quase cin­
quenta anos que a aventura se passou, e não receio ser punido
doravante pelo mesmo delito: pois bem! declaro .à face do Céu
que estava inocente, que não tinha quebrad{l nem tocado na
travessa, que me não tinha aproximado do nicho, e que nem
sequer nisso tinha pensado. Não me perguntem como se deu
o desastre, ignoro-o e não posso compreender comD a coisa
se passou; o que sei de absoluta certeza é que estava inocente.
Imagine-se um carácter timido e dócil na vida ordinária,
mas ardente, altivo, indomável nas paixões; uma criança sem­
pre dirigida pela voz da razão, tratada sempre com brandura,
com equidade, com condescendência, que nem sequer tinha a
ideia da injustiça, e que pela primeira vez sofre uma tão terri­
vel, precisamente por parte das pessoas que mais adora e
respeita: que desmoronamento de ideias! que desordem de

28
sentimentos! que revolução no seu coração, na sua cabeça, em
todo o seu pequeno ser inteligente e moral! Digo que se imagine
tudo isto, se é possível: porque, por mim, sinto-me incapaz de
destrinçar, de seguir o mais pequeno vestígio de tudo o que
se passou então em mim.
Eu ainda não tinha razão suficiente para perceber como
as aparências me condenavam, e para me colocar no lugar dos
outros. Mantinha-me no meu, e tudo o que sentia era o rigor
de um castigo terrível por um crime que não havia cometido.
A dor do corpo, apesar de viva, era-me pouco sensível; só
sentia indignação, raiva, desespero. Meu primo, num caso seme­
lhante, e a quem haviam punido por uma falta involuntária
como se fosse um acto premeditado, entrava em furor a exem­
plo de mim, irritava-se, por assim dizer, em uníssono comigo.
Na mesma cama os dois, abraçávamo-nos em transportes con­
vulsivos, sufocávamos; e, quando os nossos moços corações,
um pouco aliviados, podiam exalar a sua cólera, sentávamo-nos
na cama e púnhamo-nos ambos a gritar com toda a força:
Carnitex, Carnitex, Carnitex.
Ao relatar esta cena, sinto ainda o pulso agitar-se-me:
terei sempre presentes tais momentos, ainda que viva cem
mil anos. Este primeiro sentimento da violência e da injus­
tiça gravou-se-me tão profundamente na alma, que todas as
ideias que se lhes ligam me trazem a minha primeira emoção;
e tal sentimento, na sua origem relativo a mim, tomou tal
consistência em si mesmo, e desligou-se de tal maneira de
qualquer interesse pessoal, que o coração se me exalta com
o espectáculo ou com o relato de qualquer acção injusta, seja
qual for o seu objecto e o lugar em que ela se cometa, como
se o seu efeito caisse sobre mim. Ao ler das crueldades
de um tirano feroz, das subtis perfídias de um intrujão de um
padre, de bom grado correria a apunhalar tais miseráveis,
ainda que por isso tivesse que perecer cem vezes. Com fre­
quência me alaguei de suor, perseguindo a correr ou à pedrada
um galo, uma vaca, um cão, qualquer animal que visse ator­
mentar outro apenas porque se sentia mais forte. Semelhante
sentimento pode ser natural em mim, e creio que o é; mas a
recordação profunda da primeira injustiça sofrida achou-se
durante tanto tempo e tão fortemente a ele ligado, que não
podia deixar de o ter reforçado considerávelmente.
Acabou aí a serenidade da minha vida de criança. Desse
momento em diante deixei de gozar de uma felicidade pura,
e hoje mesmo sinto que a recordação dos encantos da minha

29
meninice pára ai. Ficámos ainda em Bossey alguns meses.
Conservámo-nos aqui da mesma maneira como se nos repre­
senta o primeiro homem ainda no paraíso terrestre, mas tendo
cessado de o gozar: era, na aparência, a mesma situação, mas,
com efeito, uma maneira de ser inteiramente diferente. A dedi­
cação, o respeito, a intimidade, a confiança, já não ligavam os
discípulos aos seus guias; não os olhávamos já como a deuses
que liam em nossos corações; tínhamos menos vergonha de
fazer mal e mais medo de ser acusados: começávamos a escon­
der-nos, a insubordinar-nos, a mehtir. Todos os vicias da nossa
idade corrompiam a nossa inocência e envileciam as nossas
brincadeiras. O próprio campo perdeu aos nossos olhos aquela
sedução de doçura e de simplicidade que vai direita ao coração:
parecia-nos deserto e sombrio; tinha-se como que coberto de um
véu que nos escondia as suas belezas. Deixámos de cultivar os
nossos pequenos jardins, os nossos cheiros, as nossas flores.
Já não íamos esgaravatar levemente na terra, gritando de con­
tentamento ao descobrir o germe da semente que lá havíamos
enterrado. Perdemos o gosto a semelhante vida; perderam-nos
o gosto a nós; meu tio veio buscar-nos, e separámo-nos de
Monsieur e Mademoiselle Lambereier fartos uns dos outros,
lamentando pouco deixarmo-nos.
·Quase trinta anos se passaram depois de ter saído de
Bossey sem que a minha estada ali me lembrasse com prazer,
graças a recordações um pouco ligadas entre si; mas, tendo
passado a idade madura e pendendo para a velhice, sinto
renascer essas mesmas recordações enquanto as outras se des­
vanecem, gravando-se na minha memória com traços cujo
encanto e força aumentam de dia para dia: como se, sentindo
já a vida a fugir, procurasse reatá-la desde os seus começos.
Os mais insignificantes acontecimentos desse tempo dão-me
agrado pelo simples fado de serem desse tempo. 'Recordo-me
de todas as circunstâncias dos lugares, das pessoas e das horas.
Vejo a criada ou o criado a lidar no quarto, uma andorinha
entrando pela janela, uma mosca pousar-me na mão enquanto
decorava a minha lição; vejo todas as particularidades do
quarto em que estávamos; o escritório de Monsieur Lambercier
à direita, uma gravura representando os papas todos, um baró­
metro, um grande calendário, as framboesas dum jardim bas­
tante elevado no qual as traseiras da casa mergulhavam, e que
davam sombra à janela, entrando mesmo por ela algumas
vezes. Sei perfeitamente que o leitor não tem grande necessi­
dade de saber tudo isto, mas eu, eu é que tenho necessidade

30
de lho dizer. Porque não ousarei contar-lhe igualmente todas
as pequenas anedotas dessa idade feliz, que ainda me fazem
estremecer de alegria �quando as lembro! -cinco ou seis, sobre­
tudo .. . Transijamos. Perdoo-vos cinco; mas uma, uma só,
quero-a eu, contanto que ma deixem contar durante o máximo
de tempo que me seja possível, prolongando assim o meu
prazer.
Se só procurasse o vosso, poderia escolher a do traseiro
de f.Mademoiselle Lambercier, que, graças a uma infeliz cam­
balhota ao fundo da várzea, ficou inteiramente à mostra
quando ia a passar o rei da Sardenha; mas a da nogueira do
terraço é para mim mais engraçada, visto que fui nela autor,
ao passo que na da cambalhota só fui espectador; e confesso
que não achei a mais pequena palavra para rir de um acidente
que, embora cómico em si mesmo, me alarmou por amor de
uma pessoa que amava como mãe, ou talvez mais.
ó vós, curiosos leitores da grande história da nogueira do
terraço, escutai a sua horrível tragédia e ab!)tende-vos de vos
arrepiar, se podeis!
Da parte de fora do pátio havia, à direita de quem entrava,
um terreiro onde às vezes nos íamos assentar pela tarde, mas
no qu al não havia sombra alguma. Para a obter, Mademoiselle
Lambercier mandou ali plantar uma nogueira. A plantação da
árvore fez-se com solenidade: os seus padrinhos foram os dois
pensionários; e, enquanto iam enchendo a cova, nós, com a mão,
segurávamos a árvore com cantos de triunfo. Para se poder
regar, fez-se-lhe uma fossa em volta do pé. Ardentes espec­
tadores desta rega, meu primo e eu enfronhávamo-nos todos
os dias na ideia natural de que era mais belo plantar uma
árvore no terreiro do que uma bandeira numa brecha de uma
muralha, e resolvemos alcançar esta glória sem a partilhar
fosse com 'quem fosse.
Com esse fim, fomos cortar um tanchão de um salgueiro
novo, e plantámo-lo no terreiro, aí a oito ou dez pés da augusta
nogueira. Não nos esquecemos de fazer igualmente uma fossa
em volta da nossa árvore; a dificuldade estava em encontrar
com que a encher: porque a água vinha de bastante longe e
não nos deixavam correr para a ir buscar. Contudo, esta era
absolutamente necessária ao nosso salgueiro. Empregámos todas
as espécies de artimanhas para lha fornecer durante alguns
dias; e fomos tão bem sucedidos que o vimos rebentar e nasce­
rem-lhe umas folhinhas, cujo crescimento medíamos de hora em

31
hora, persuadidos de que não tardaria a dar-nos sombra,
embora estivesse apenas a um pé da terra.
Como. a nossa árvore nos absorvia inteiramente e nos tor­
nava incapazes de qualquer aplicação, delirando por ela a ponto
de, não sabendo que mosca nos mordera, passarem a vigiar-nos
de mais perto do que dantes, vimos o instante fatal em que a
água nos ia faltar, e amofinávamo-nos à espera de ver a nossa
árvore morrer de sede. Enfim, a necessidade, mãe da indústria,
sugeriu-nos uma invenção para salvar a árvore, e nós próprios,
duma morte certa: fazer por debaixo da terra uma caleira,
que secretamente trouxesse ao salgueiro parte da água com que
era regada a nogueira. Tal empreendilmento, executado com
ardor, não foi contudo imediatamente bem sucedido. Tomámos
tão mal conta da inclinação, que a água não corria; a terra
esboroava-se e entupia a caleira; a entrada enchia-se de lixo;
tudo marchava mal. Nada nos desanimou. Omnia vincit labor
improbus. Cavámos mais fundo a terra e a nossa fossa para
obrigar a água a correr; fizemos umas tábuas pequenas e estrei­
tas de fundos de caixas, e com umas deitadas em fila e outras
postas em :ângulo dos dois lados destas, fizemos um canal trian­
gular ao nosso regueiro. Plantámos-lhe à entrada bocadinhos de
madeira com aberturas que, formando uma espécie de grade
. ou ralo, prendiam o lodo ou as pedras sem tapar a entrada à
água. Cobrimos cuidadosamente a nossa obra com terra bem
calcada; e no dia em que tudo ficou pronto, aguardámos nos
transes da esperança e do receio a hora da rega. Após séculos de
espera, essa hora chegou por fim; como de costume, Monsieur
Lambercier veio também assistir à operação, durante a qual
nos conservámos os dois afastados, para lhe esconder a nossa
árvore, a que feli2lffiente ele voltava as costas.
Mal tinham acabado de despejar o primeiro balde, come­
çámos a ver correr água na nossa fossa. Observando tal, a
nossa prudência abandonou-nos; começámos a soltar gritos de
alegria que fizeram voltar !Monsieur Lambercier; e foi pena,
porque ele estava muito satisfeito a ver como a terra da nogueira
era boa e bebia iàvidamente a água. Estupefacto por vê-la divi­
dir-se por duas fossas, começa a gritar por seu turno, olha,
compreende a maroteira, manda de súbito trazer um alvião,
dá uma cavadela, faz voar dois ou três estilhaços das nossas
tábuas, e, gritando furiosamente: Um aqueduto! um aqueduto!
distribui uma data de golpes impiedosos, cada um dos quais
nos ia direito ao coração. Num instante, as tábuas, o regueiro,
a fossa, o salgueiro, tudo ficou destruído, tudo foi escavado, sem

32
que nesta. terrível expedição ele tivesse pronunciado outra pala­
vra além da exclamação incessantemente repetida: Um aque­
duto!, gritava ele, quebrando tudo, um aqueduto! um aqueduto!
Julgar-se-á que a aventura terminou mal para os pequenos
arquitectos; enganam-se: tudo acabou. Monsieur Lambercier
·
não nos dirigiu uma palavra de censura, não nos fez mais má
cara, e nunca mais nos falou do caso; ouvimo-lo mesmo pouco
depois rir a bandeiras despregadas com a irmã, porque o riso
de 'Monsieur Lambercier ouvia-se ao longe; e o que admira mais
ail).da é que, passado o primeiro calafrio, nós próprios nos não
afligimos muito. Plantámos outra árvore noutro sitio e frequen­
temente recordávamos a catástrofe da primeira, repetindo entre
nós, com ênfase: Um aqueduto! um aqueduto! Até este momento,
eu tinha tido acessos de orgulho intermitente, quando era Aris­
tides ou Bruto: o meu primeiro movimento de vaidade bem
pronunciado deu-se então. Termos podido construir um aque,­
duto por nossas mãos, haver posto uma estaca a fazer concor­
rência a uma árvore crescida, parecia-me o supremo grau da
glória. Aos dez anos, formava dela melhor juizo do que César
aos trinta.
Retive ou recordava-me tão bem da ideia da nogueira e
da histõriazinha com ela relacionada que um dos mais agra­
dáveis projectos da minha viagem a Genebra, em 1754, era ir
a Bossey rever os monumentos das minhas brincadeiras infantis,
e sobretudo a nogueira querida, que já então devia ter um terço
de século. Achei-me continuamente tão importunado, tão pouco
senhor de mim, que não pude encontrar uma ocasião para
satisfazer o meu desejo. Poucas probabilidades há de que tal
ocasião volte a apresentar-se-me alguma vez; contudo, não lhe
perdi o desejo nem a esperança; e estou quase certo de que se
algum dia voltasse àqueles sítios bem-amados, e encontrasse a
minha querida nogueira ainda em vida, a regaria com as minhas
lágrimas.
De volta a Genebra, passei dois ou três anos em casa de
meu tio, à espera do que resolveriam fazer de mim. Como meu
tio destinava o filho à engenharia militar, mandou-o aprender
um bocado de desenho e ensinava-lhe os Elementos de Euclides.
Tudo isso eu aprendia na sua companhia, tomando-lhe gosto,
sobretudo ao desenho. Entretanto, deliberava-se sobre se haviam
de fazer de mim relojoeiro, magistrado ou pastor. Eu gostava
mais de ser pastor, porque achava muito belo pregar, mas os
pequenos rendimentos de minha mãe, os quais tinham de ser
divididos entre mim e meu irmão, não chegavam para con-

3 33
tinuar os meus estudos. Como na idade em que me encontrava
não era muito urgente apressar a escolha, conservei-me, espe­
rando, em casa de meu tio, perdendo a bem dizer o meu tempo,
sem deixar de pagar, como era devido, uma pensão bastante ele­
•rada.
Meu tio, homem dado aos prazeres como meu pai, não sabia,
como este, prender-se com os seus deveres e pouco cuidava de
nós. Minha tia era uma devota um tanto ou quanto pietista,
que gostava mais de cantar salmos do que vigiar a nossa educa­
ção. Davam-nos quase inteira liberdade, de que nunca abusámos.
Sempre inseparáveis, bastávamo-nos um ao outro, e, não sendo
tentados pela companhia dos gaiatos da nossa idade, não apa­
nhámos nenhum dos vícios que a ociosidade nos podia inspirar.
Ando mesmo mal em supor. que nos conservávamos ociosos,
porque nunca na vida o estivemos menos, e o que nos tornava
mais· felizes é que todos os divertimentos por que sucessiva­
mente nos apaixonámos nos mantinham ocupados um e outro
em casa, sem sequer sentirmos a tentação de descer à rua.
Fazíamos gaiolas, flautas, volantes, tambores, casas, seringas de
sabugueiro, arbaletas. Estragávamos as ferramentas do meu
avô velhinho para fazer relógios como ele. Gostávamos de pre­
ferência, e sobretudo, de rabiscar papéis, desenhar, colorir, fazer
iluminuras, estmgar tintas. Apareceu em Genebra um charlatão
italiano chamado Gamba-corta; fomos vê-lo uma vez, e depois
não quisemos lá voltar ; mas ele tinha uns títeres, e nós puse­
mo-nos a fazer títeres ; os títeres dele representavam uma
espécie de comédias, e nós fizemos comédias para os nossos.
A falta de prática, contrafazíamos com as goelas a voz de
Polichinelo para representar estas encantadoras comédias, que
a nossa pobre familia tinha a boa paciência de ver e ouvir.
Tendo porém meu tio Bernard lido um dia em família um belo
sermão de sua lavra, abandonámos as comédias, e pusemo-nos a
compor sermões. Estes pormenores não são muito interessantes,
confesso-o ; mas mostram a que ponto era preciso que a nossa
primeira educação fosse bem dirigida, para que, quase senhores
do nosso tempo e de nós próprios em idade tão tenra, nós
tivéssemos tão pouca tentação de abusar. Tínhamos tão pouca
necessidade de encontrar companheiros que desprezávamos
mesmo a ocasião de o fazer. Quando íamos passear, olhávamos
sem invej a as suas brincadeiras, sem sequer pensar em tomar
parte nelas. A amizade enchia-nos a tal ponto o coração, que
bastava encontrarmo-nos juntos para que os mais simples
gostos fizessem as nossas delícias.

34
A força de nos verem inseparáveis, começaram a reparar
em nós; tanto mais que, em virtude de meu primo ser muito
grande e eu muito -pequeno, compúnhamos um par extraordi­
nàriamente divertido. Os rapazes troçavam dele, excitados pela
sua figura comprida e magra, pela sua carita de maçã cozida,
o seu aspecto mole, o seu andar indolente. Na giria da região
puseram-lhe o sobrenome de Barnâ Bredanna; e, assim que
saíamos, só ouvíamos em volta de nós o Barnâ Bredanna. Meu
primo suportava a coisa com mais calma do que eu. Zanga­
va-me, queria lutar: era o que os velhacos desejavam. Bati·lhes
e eles bateram-me. O meu pobre primo auxiliava-me o melhor
que podia; mas era fraquito, com um soco voltavam-no. En enfu­
recia-me então. Contudo, ainda que apanhasse bastantes murros,
nada queriam comigo, mas sim com Bannâ Bredanna; a minha
fúria turbulenta aumentava, porém, de tal maneira o mal, que,
com medo de que os rapazes da escola nos seguissem e nos
vaiassem. só ousávamos sair às horas das aulas.
Eis-me já vingador de injustiças. Para ser um paladino em
forma, só me faltava uma dama: arranjei duas. Ia de vez em
quando ver meu pai a Nion, cidadezinha do cantão de Vaud,
onde ele se tinha estabelecido. Gostavam muito de meu pai e
o filho beneficiava destes sentimentos. Durante as curtas esta­
dias que fazia junto dele, era de ver quem mais me apaparicava.
Uma taliMadame Vulson, sobretudo, fazia-me mil festas, e, para
cUmulo, a filha elegeu-me para seu namorado. Calcula-se o
que seja um namorado de onze anos para uma rapariga dE.'
vinte e dois. Todas estas velhacas gostam, porém, tanto de
exibir deste modo pequenos bonecos para esconder os grandes
ou seduzi-los com a representação de um jogo que elas sabem
tornar tentador! Eu, que não via entre ela e mim nenhuma
desproporção, tomei a coisa a sério; confiava-me de todo o
coração ou, antes, com a cabeça toda, porque a minha paixão
era só da cabeça, embora estivesse loucamente apaixonado, é
os meus entusiasmos, a minha agitação, as minhas fúrias dessem
origem a cenas de rebentar a rir.
Conheço duas espécies de amores bem distintos, bem reais,
e que quase nada têm de comum, ainda que bastante vivos
um e outro, e ambos diferentes da doce amizade. DurantP toda
a minha vida dividi-me entre estes dois amores de tão diversa
natureza, e experimentei-os até a ambos ao mesmo tempo; por
exemplo, no momento de que estou falando, enquanto me apo­
derava de Mademoiselle de Vulson tão pública e tirânicamente
que não podia suportar que homem algum se aproximasse dela,

35
tinha com Mademoiselle Goton brevíssimas mas assaz vivas
entrevistas, nas quais ela se dignava fazer de professora, e era
tudo; mas este tudo, que era com efeito tudo para mim, pare­
cia-me a suprema felicidade, e, sentindo já o preço do mistério,
se bem que só como criança soubesse utilizar-me dele, pagava a
Mademoiselle de Vulson, que de nada suspeitava, o cuidado que
ela tinha em me utilizar para esconder outros amores. Mas, com
grande mágoa minha, o meu segredo foi descoberto, ou menos
bem guardado por parte da minha professorazinha do que pela
minha, pois que não tardaram em separar-nos, e algum tempo
depois, passando em Coutance, de regresso a Genebra, ouvi umas
raparigas gritarem-me a meia-voz: Goton tic tac Rousseau 1•
Era, na verdade, uma pessoa singular, esta miudinha Made­
moiselle Goton. Sem ser bonita, tinha uma figura que dificil­
mente se esquecia, e de que ainda me lembro, com demasiada
frequência para um velho tonto. Os olhos, sobretudo, não eram
da idade dela, nem a estatura, nem o porte. Tinha um arzinho
importante e altivo, próprio do seu papel, e que deste havia oca­
sionado a primeira ideia entre nós. Mas o que ela tinha de mais
bizarro era uma mistura de audácia e de reserva dificilmente
concebível. Permitia-se ter comigo as maiores intimidades, sem
nunca me ter permitido nenhuma com ela; tratava-me precisa­
mente como uma criança: o que me fazia crer que ou ela tinha
já deixado de o ser, ou, ao contrário, ainda o era demasiado
para não ver mais do que uma brincadeira no perigo a que se
expunha.
Dava-me inteiramente, por assim dizer, a cada uma destas
criaturas, e de uma maneira tão perfeita que nunca me sucedia
na companhia de qualquer das duas pensar na outra. Contudo,
nada havia de parecido no que sentia por elas. Passaria a vida
inteira com Mademoiselle de Vulson, sem pensar em abando­
ná-la; mas quando me aproximava dela, a minha alegria era
tranquila e não chegava à. emoção. Amava-a sobretudo quando
bem acompanhada; os gracejos, as provocações, os próprios ciú­
mes prendiam-me, interessavam-me; triunfava orgulhosamente
com as suas preferências ao lado dos grandes rivais que pare­
cia maltratar. Atormentava-me, mas eu amava semelhante tor­
mento. Os aplausos, os incitamentos, os risos aqueciam-me,

1 Posslvelmente um trocadilho. Na nota da edição da Bibliothêque


de la Plêiade lê-se o seguinte: «Goton tic tac Rousseau: disse-se tic tac
para exprimir as pancadas das pessoas que bulham (Littré). Chegar ao
tic tac- chegar a vias de facto, na sátira X de Mathurin Régnier».- N. T.

35
animavam-me. Tinha arrebatamentos, saídas ; numa reunião
sentia-me transportado de amo r ; a sós, ficaria contrafeito, frio,
talvez aborrecido. Todavia, interessava-me ternamente por ela ;
sofria quando ela se achava doente, seria capaz de dar a minha
saúde para restaurar a sua, e note-se que eu sabia muito bem
por experiência o que era a doença, e o que era,. a saúde. Longe,
pensava nela, fazia-me falta ; ao pé dela, as suas carícias
eram-me doces ao coração, não aos sentidos. Era impunemente
seu familiar; a minha imaginação só pedia o que ela me con­
cedi a : contudo, não suportaria vê-la fazer o mesmo aos outros.
Amava-a corno irmão, mas tinha ciúmes dela corno um amante.
De Madernoiselle Goton tê-los-ia corno um turco, corno
um furioso, corno um tigre de imaginar só que fosse que ela
dispensava a outrem o mesmo acolhimento que me concedia a
mim ; porque isso mesmo er a uma graça que mister se tornava
pedir de joelhos. Abordava Mademoiselle de Vulson com um pra­
zer vivíssimo, mas sem confusão; ao passo que de ver apenas
Mademoiselle Goton, não via mais nada ; todos os meus sentidos
se transtornavam. Da primeira, era familiar, sem ter com ela
familiaridades; em face da segunda, ao contrário, achava-me tão
trémulo como agitado, mesmo no cúmulo das maiores familia­
ridades. Creio que não poderia viver se ficasse muito tempo
com ela; as palpitações sufocar-me-iam. Temia desagradar-lhes
por igual; mas era mais complacente com uma e mais obediente
com a outra. Por nada no mundo desejaria desgostar 'Made i:not­
selle de Vulson; mas se 'Mademoiselle Goton me mandasse atirar
ao fogo, creio que no mesmo instante lhe obedeceria.
Os meus amores, ou antes, as minhas entrevistas com esta
duraram pouco, felicissimamente para ela e para mim. 'Se bem
que as minhas relações com Mademoiselle de Vulson não sofres­
sem o mesmo perigo, nem por isso deixaram de sofrer a sua
catástrofe, depois de haverem durado um pouco mais. O remate
de tudo isto devia ter sempre o ar um pouco romanesco, e
prestar-se às exclamações. Se bem que o meu comércio com
Mademoiselle de Vulson fosse menos vivo, era talvez mais inte­
ressante. Nunca nos separávamos sem lágrimas, e é singular o
vazio acabrunhador em que me sentia mergulhado depois de a
ter deixado. Só podia falar dela, só pensava nela : as minhas
mágoas eram verdadeiras e vivas; mas creio que, no fundo, tais
heróicas mágoas não eram todas por ela, e que uma boa parte
ia para as distracções de que ela era o centro, sem que eu me
apercebesse disso. Para temperar as dores da ausência, escrevia­
mos um ao outro cartas, cujo patetismo era de fazer fender

37
as rochas. ·Enfim, tive a glória de ela não poder mais, e vir
ver-me a Genebra. o lance acabou de me .transtornar a cabeça;
durante os dois dias que ela ali permaneceu, andei ébrio, louco.
Quando partiu, quis deitar-me à água empós dela, e os meus gri­
tos retumbaram no ar durante bastante tempo. Oito dias depois,
enviou-me bombons e umas luvas ; o que me teria parecido de
uma grande galantaria, se não tivesse sabido ao mesmo tempo
que ela se havia casado, e que a tal viagem, com que lhe aprou­
vera honrar-me, era para comprar o seu vestido de noiva. Na
minha nobre cólera, j urei nunca mais voltar a ver a pérfida, sem
imaginar para ela castigo mais terrível. Contudo, não morreu
dele ; porque, vinte anos depois, tendo ido ver meu pai, e pas­
seando com ele no lago, perguntei quem eram as damas que se
viam num barco pouco afastado do nosso. Como! - diz-me meu
pai, sorrindo - o coração não to diz? São os teus antigos amo­
res ; é Madame Cristin, é Mademoiselle de Vulson. Estremeci
a este nome quase esquecido : mas disse aos barqueiros que
mudassem de direcção, pensando que, embora tivesse excelente
ocasião para me vingar, não valia a pena ser perjuro, e renovar
uma querela de vinte anos com uma mulher de quarenta.
O tempo mais precioso da minha infância perdia-se assim
em ninharias, antes de decidirem do meu destino. Após
longas deliberações para que seguisse as minhas disposições
naturais, tomaram enfim o partido para o qual eu menos as
mostrava, e puseram-me no escritório de Monsieur .Masseron,
escrivão, para que com ele aprendesse, como dizia Monsieur
Bernard, o util oficio de rato de justiça. Tal alcunha desagra­
dava-me soberanamente; a esperança de ganhar muitos escudos
por vias ignóbeis lisonjeava pouco o meu feitio altivo; a ocupa­
ção parecia-me aborrecida, insuportável; a assiduidade, a sujei­
ção, acabaram por desgostar-me dela, e nunca entrava no
cartório sem um horror que ia crescendo de dia para dia. Por
seu turno, Monsieur Masseron, descontente comigo, tratava-me
com desprezo, censurando-me constantemente a minha inércia,
a minha estupidez, repetindo-me todos os dias que meu tio lhe
tinha afiançado que eu sabia, que eu sabia, quando eu verda­
deiramente não sabia nada; que lhe tinha prometido um belo
rapaz, e que afinal lhe tinha dado um asno. Enfim, fui igno­
miniosamente despedido do cartório por inapto, e os praticantes
de IMonsieur iMasseron decretaram que eu só prestava para
manejar a lima.
Assim foi determinada a minha vocação, e puseram-me
como aprendiz, não na oficina de um relÓjoeiro, mas na de um

38
gravador. O desprezo do escr1vao tinha-me humilhado extre­
mamente, e obedeci sem resmungar. O meu patrão, que se cha­
mava Monsieur Ducommun, era um homem novo, boçal e vio­
lento, que em pouco tempo conseguiu apagar todo o viço da
minha inf:ância, embrutecer-me o carácter afável e vivo, e
reduzir-me pelo espírito, eom o já o era pela fortuna, à minha
verdadeira condição de aprendiz. O meu latim, as minhas anti­
guidades, a minha história, tudo foi esquecido por muito tempo ;
já não me lembrava sequer que tivesse havido Romanos no
mundo. Meu pai, quando o ia visitar, já não via em mim o seu
ídolo, para as damas eu já não era o galante Jean Jacques; e
eu próprio sentia tão bem que Monsieur e Mademoiselle Lamber­
cier não reconheceriam em mim o seu aluno, que tive vergonha
de lhes voltar a aparecer, e nunca mais os vi desde então.
Os gostos mais abjectos, a garotice mais baixa, sucederam às
minhas inofensivas distracções, sem delas me deixarem mesmo
a mais pequena ideia. Apesar da mais honesta das educações,
forçoso era que eu tivesse uma grande tendência para dege­
nerar ; porque tal coisa aconte-ceu ràpidamente, sem a menor
dificuldade, e nunca tão precoce César se transformou tão
depressa num Laridon.
O ofício em si mesmo não me desagradava : eu tinha um
pronunciado gosto pelo desenho, o manejo do buril divertia-me
bastante, e, como o talento de gravador-reloj oeiro é muito limi­
tado, tinha a esperança de chegar à perfeição. Talvez lá houvesse
chegado se a brutalidade do meu patrão e a excessiva mortifi­
cação me não tivessem desgostado do trabalho. Roubava-lhe
o meu tempo para o empregar em ocupações do mesmo género,
mas que para mim tinham o atractivo da liberdade. Gravava
uma espécie de medalhas para nos servirem, a mim e aos meus
companheiros, de ordem de cavalaria. O meu patrã o surpreen­
deu-me neste trabalho furtivo e moeu-me à pancada, dizendo
que eu me treinava a fazer moeda falsa, visto qu e as nossas
medalhas tinham as armas da república. Posso jurar verda­
deiramente que nenhuma ideia tinha do que fosse moeda falsa,
e pouquissima da verdadeira. Sabia melhor com o se faziam os
asses romanos do que as nossas moedas de três soldos.
A tirania do meu patrão acabou por me tornar insuportável
o trabalho de que viria a gostar, e por me inculcar vícios que
me haviam de ser odiosos, tais como a mentira, a preguiça, o
roubo. Nada me elucidou melhor da diferença que vai da depen­
dência filial à escravidão servil do que a recordação das trans­
formações que esta época produziu em mim. Naturalmente

39
tímido e pudico, nunca me afastei tanto de nenhum defeito.
como da impudência. Mas eu havia gozado de uma liberdade
honesta, que até então só gradualmente sofrera restrição, e
que, por fim, desapareceu inteiramente. Era atrevido em casa
de meu pai, livre em casa de Monsieur Lambercier, discreto em
casa de meu tio ; em casa de meu patrão tornei-me medroso,
e desde então fui um rapaz perdido. Acostumado, na maneira
de viver, a uma igualdade perfeita· com os meus superiores, a
não conhecer prazer algum que não pudesse alcançar, a não
ver manjar algum em que nã o tivesse o meu quinhão, a não
ter desejo algum qu e não manifestasse, a trazer, enfim, aos
lábios todos os movimentos do meu coração: imagine-se o que
não passei numa casa onde não ousava abrir a boca, onde devia
abandonar a mesa antes do postres, e o quarto logo que nele
nada tinha que fazer ; onde, constantemente amarrado ao traba­
lho, só via os outros divertirem-se e eu passar privações ; onde a
imagem da liberdade do patrão e dos companheiros aumentava
o peso da minha servidão ; onde, nas discussões a respeito do que
melhor sabia, não ousava abrir a boca ; onde, enfim, tudo o que
via se tornava para o meu coração um objecto de inveja, só
porque me achava privado de tudo. Adeus bem-estar, alegria,
palavras felizes que outrora me tinham muitas vezes feito
escapar ao castigo das minhas faltas. Não posso lembrar-me
sem me rir que uma noite, em casa de meu pai, ao ir deitar-me
sem ceia, como castigo de qualquer travessura, passei pela cozi­
nha com a minha triste fatia de pão e veio-me ao nariz o cheiro
da carne que estava a assar no espeto. Achavam-se em roda do
lume: era preciso dar as boas-noites a toda a gente ao passar.
Quando aJCabei a volta, olhei de soslaio para aquele assado que
tinha tão bom aspecto e cheirava tão bem, e não pude abster-me
de lhe fazer também um cumprimento e de lhe dizer em voz
lamentosa: Adeus, assado. A minha ingénua saída agradou tanto,
que me fizeram ficar para cear. Talvez que tivesse a mesma
felicidade em casa de meu patrão, mas decerto nunca ela me
ocorreria, ou nunca eu me atreveria a largá-la.
Eis como aprendi a cobiçar em silêncio, a esconder-me, a
dissimular, a mentir, e, enfim, a furtar, fantasia que nunca me
tinha vindo até então, e de que depois nunca pude curar-me
inteiramente. A cobiça e a impotência levam sempre a isto.
Razão por que todos os lacaios são ladrões, e por que todos
os marçanos devem sê-lo ; mas num estado regular e calmo,
onde tudo o que vêem está ao seu alcance, estes últimos, ao

40
c:rescerem, perdem essa vergonhosa tendência. Não tendo tido
a mesma sorte, não pude tirar dela idêntico proveito.
São quase sempre os bons sentimentos mal dirigidos que
levam as crianças a dar o primeiro passo no caminho do mal.
Apesar das privações e das tentações continuas, permaneci mais
de um ano em casa de meu patrão sem me ter resolvido a furtar
fosse o que fosse, nem mesmo de comer. O meu primeiro roubo
foi uma questão de condescendência ; mas abriu a porta a outros
que não tinham tão louvável fim.
Na oficina de meu patrão havia um oficial chamado Mon­
sieur Verrat, que morava na vizinhança, numa casa com um
horto bastante afastado, onde se criavam belos espargos. Como
Monsieur Verrat não tinha muito dinheiro, deu-lhe na gana
roubar à mãe. os espargos ainda em novidade e vendê-los para
comer uns bons almoços.
Como não queria expor-se e, aliás, não era muito ágil,
escolheu-me para tal expedição. Depois de alguns tagatés preli­
minares, que me conquistaram tanto mais que eu não via o
fim que tinham, propôs-me a coisa como uma ideia que lhe
acudira repentinamente. Questionei bastante ; ele insistiu
Nunca pude resistir aos afagos : cedi. Todas as manhãs ia colher
os mais lindos espargos ; levava-os ao Molard, onde alguma
velhota, percebendo que eu os acabara de roubar, mo dizia,
para os obter mais baratos. Aterrorizado, aceitava o que ela
muito bem me queria dar, e trazia o dinheiro a Monsieur Verrat.
O dinheiro transformava-se imediatamente num almoço de que
eu era o fornecedor, e que ele dividia com outro colega; eu, todo
contente com algumas migalhas, nem sequer lhes tocava no vinho.
A pequena artimanha durou alguns dias, sem sequer me
vir à ideia roubar o roubador, e cobrar dízimo dos espargos
de Monsieur Verrat. Executava a minha ladroíce com a
maior fidelidade: o único motivo que tinha era agradar a
quem ma levava a fazer. Se fosse porém surpreendido, quanta
pancada, quantas injúrias, que cruel tratamento me não espe­
rariam, enquanto acreditariam, sob palavra, o miserável, que
me desmentiria, ao passo que eu seria duplamente castigado
por ter ousado acusá-lo, tanto mais que ele era oficial e eu
aprendiz ! Eis como em qualquer estado o principal culpado se
sâlva à custa do fraco inocente.
Assim, aprendi que roubar não era tão terrível como me
havia parecido, e tirei tal partido da mi:nha ciência que nada
do que cobiçava e se encontrava ao meu alcance estava em
segurança. Em casa de meu patrão não era absolutamente mal

41
alimentado, e a sobriedade só me custava porque lha via observar
muito mal. O costume de fazer levantar da mesa as crianças,
precisamente quando se serve o que mais as tenta, parece-me
excelente para as tornar tão gulosas quanto gatunas. Em pouco
tempo, tornei-me ambas as coisas ; ordiillàriamente, saía-me
bem, mas às vezes muito mal, quando era descoberto.
Recordo-me de uma caça às maçãs, que ainda hoje me
arrepia e faz rir ao mesmo tempo, e que bem cara me custou.
As maçãs encontravam-se ao fundo de uma despensa, que
recebia luz da cozinha por uma fresta alta. Encontrando-me
certo dia sozinho em casa, trepei acima da masseira, para con­
templar no j ardim das Hespérides o precioso fruto de que não
podia aproximar-me. Fui buscar um pequeno espeto para ver
se lhes podia chegar com ele : era muito curto. Acrescentei-o
com outro mais pequeno que servia para a caça miúda; porque
o meu patrão gostava da caça. Espetei várias vezes infrutife­
ramente ; por fim, senti entusiasmado que trazia uma maçã.
Puxei devagarinho : a maçã já chegava à fresta, estava quase
a alcançá-la. Como contarei a minha dor? A maçã era muito
grande, não cabia pelo buraco. O que não inventei eu para
conseguir tirá-la! Tive de procurar suportes para manter o
espeto em posição, uma faca bastante grande para cortar a
maçã, uma ripa para a amparar. A força de destreza e de
tempo, consegui cortá-la, contando em seguida sacar os bocados
um após outro; mas mal se acharam separados, caíram ambos
na despensa. Leitor compassivo, compartilha da minha angústia.
Não perdi a coragem; mas tinha perdido bastante tempo.
Tinha medo de ser surpreendido; remeto para o dia seguinte
uma tentativa mais feliz, e deito-me ao trabalho tão tranquilo
como se nada tivesse feito, sem pensar nas duas indirectas
testemunhas que depunham contra mim na despensa.
No dia seguinte, achando azada a ocasião, tento nova expe­
riência. Subo ao meu estrado, estendo o espeto, ajeito-o, ia
mesmo a apontá-lo . . . Infelizmente, o dragão não dormia;
de repente, abre-se a porta da despensa: entra o patrão, cruza
os braços, olha-me e diz : Coragem! . . . A pena cai-me das mãos.
Em breve, à força de sofrer maus tratos, tornei-me menos
sensível ; pareceram-me, por fim, uma espécie de compensação
ao roubo, que me dava o direito de continuar a praticá-lo.
Em vez de voltar os olhos para trás e ver o castigo, dirigia-os
para a frente e contemplava a vingança. Pensava que deixar-me
bater por ladrã o era autorizar-me a sê-lo. Achava que o roubar
e o ser desancado iam de par. que isso constituía de certo

42
modo um estado e que, preenchendo a parte desse estado que
me competia, podia deixar a outra ao cuidado do meu patrão.
Assente nesta ideia, desatei a roubar mais afoito do que
dantes. Dizia de mim para mim : Que poderá acontecer-me,
afinal de contas ? Baterem-me. S ej a : nasci para isso.
Gosto de comer, sem ser ávido : sou sensual, mas não guloso.
Muitos outros gostos me distraem deste. Nunca me preocupei
com a boca senão quando o coração permanecia ocioso ; e isto
aconteceu-me tão raramente na vida, que nunca tive tempo
algum para pensar nos bons petiscos. Eis a razão por que não
limitei muito tempo a minha gatunice aos comestíveis e depressa
a estendi a tudo o que me tentava ; e se não me transformei
num gatuno em forma foi porque nunca me senti muito tentado
pelo dinheiro.
Na sala comum havia outra à parte, que o patrão con­
servava fechada à chave ; achei processo de abrir e fechar a
porta, sem que nada fosse notado. Uma vez ali, apropriava-me
das suas excelentes ferramentas, dos seus melhores desenhos,
dos seus cunhos, tudo o que eu cobiçava e que ele presumia
esconder de mim. No fundo, tais furtos eram assaz inocen­
tes, porque feitos unicamente para os pôr ao seu serviço :
mas eu ficava radiamte por ter estas bagatelas em meu poder ;
supunha roubar o talento com as suas produções. Além disso,
havia nas caixas restos de ouro e de prata, pequenas jóias,
moedas de valor, dinheiro. Quando tinha quatro ou cinco soldos
na algibeira, achava muito : contudo, longe de tocar em nada
disto, não me recordo mesmo de em vida minha lhe ter lançado
um olhar de cobiça. Via essas coisas com mais terror do . que
prazer. Creio perfeitamente que este horror do dinheiro e do que
serve para fazê-lo me vem em grande parte da educação. A isso
misturavam-se ideias intimas de infâmia, de prisão, de castigo,
de forca, que me teriam feito estremecer se fosse tentado; ao
passo que as minhas proezas não me pareciam mais do que
travessuras, e outra coisa não eram com efeito. Tudo isso só
me poderia valer uma boa esfrega de meu patrão, e de antemão
dispunha-me a ela.
Ainda uma vez, porém, eu nem sequer cobiçava o bastante
para ter de me abster de o fazer ; nada sentia que devesse com­
bater. Uma simples folha de lindo papel de desenhar tentava-me
mais do que o dinheiro para comprar uma resma. Tal excen­
tricidade liga-se a uma das singularidades do meu carácter;
teve tanta influência no meu comportamento que importa
explicá-la.

43
As minhas paixões são muito ardentes, e, enquanto me
agitam, não há nada que iguale a minha impetuosidade : deixo
de conhecer consideração, respeito, temor, decência ; sou cínico,
descarado, violento, intrépido ; não há honra que me detenha,
nem perigo que me atemorize : fora do único objecto que me
ocupa, o universo nada mais é para mim. Mas tudo isto não
dura mais que um momento, e no momento seguinte caio
abatido.
Apanhem-me calmo - sou a própria indol,ência, a própria
timidez ; tudo me assusta, tudo me desconcerta ; uma mosca a
voar faz-me medo ; uma palavra a dizer, um gesto a fazer
apavoram a minha preguiça; o receio e a vergonha subju­
gam-me a tal ponto, que o meu desejo era eclipsar-me aos
olhos de todos os mortais. Se é preciso agir, não sei o que hei-de
fazer ; se é preciso falár, não sei o que hei-de dizer ; se olham
para mim, fico atrapalhado. Quando me entusiasmo, sei algumas
vezes encontrar o que tenho a dizer ; mas em conversas ordi­
nárias, nada encontro, nada absolutamente ; tornam-se-me insu­
portáveis, pela simples razão de ser obrigado a falar.
Acrescente-se a isto que nenhum dos meus gostos domi­
nantes consiste em coisas que se comprem. Fazem-me mister
só prazeres puros, e o dinheiro envenena-os a todos. Gosto, por
exemplo, dos prazeres da mesa; contudo, não podendo supor­
tar nem os incómodos da boa companhia, nem a devassidão
do botequim, só posso apreciá-los com um amigo ; sozinho,
torna-se-me isso impossível ; a minha imaginação ocupa-se com
outras coisas, e vai-se-me o prazer de comer. ISe o meu sangue
inflamado me pede mulheres, o meu coração enternecido
pede-me ainda mais amor. Mulheres conseguidas a preço de
dinheiro perderiam para mim todos os seus encantos; duvido
mesmo que os pudesse aproveitar. É a mesma coisa com todos os
prazeres ao meu alcance ; se não são gratuitos, acho-os insípidos.
Só gosto dos bens que não são de ninguém além do primeiro
que os sabe apreciar.
o dinheiro nunca me pareceu essa coisa que acham tão
preciosa. Ainda mais - nunca me pareceu uma coisa muito
cómoda ; não serve para nada em si mesmo, é preciso trans­
formá-lo para gozarmos dele ; é preciso comprar, regatear, ser-se
enganado, pagar bem, ser mal servido. Queria obter uma coisa
de boa qualidade : com o meu dinheiro estou certo de que é má.
Compro caro um ovo fresco - está podre ; um lindo fruto - é
verde; uma rapariga - está iscada. Gosto de bom vinho - mas
onde havê-lo? Numa casa de vinhos? Como auer aue sejâ,

44
envenena-me. Quero absolutamente ser bem servido ; que cau­
telas, que dificuldades ! l!l preciso ter amigos, correspondentes,
dar comissões, escrever, ir, vir, esperar ; e, por fim, é-se frequen­
temente enganado. Que maçadas com o meu dinheiro! O temor
delas é maior do que o meu amor do bom vinho.
Durante o meu tempo de aprendiz, e mesmo depois, sai mil
vezes na intenção de comprar qualquer guloseima. Aproximo-me
de uma pastelaria, avisto umas mulheres ao balcão ; logo j ulgo
vê-las rir e fazer entre si troça do pequeno guloso. Passo em
frente de uma loja de frutas, lanço às lindas peras o rabo do
olho, o perfume delas tenta-me ; perto dall, dois ou três rapazes
olham para mim ; um homem que me conhece encontra-se à
porta da sua loj a ; ao longe, vejo vir uma rapariga ; não é a
criada da casa? A minha vista curta ilude-me de mil maneiras.
Tomo todos que passam por gente conhecida, em qualquer parte
me sinto intimidado, detido por qualquer obstáculo ; o desejo
aumenta com a timidez, e volto por fim para casa como um
idiota, devorado de desejos, tendo na algibeira com que satis­
fazê-los, e n ão tendo ousado comprar coisa alguma.
Entraria nos mais insípidos pormenores, se seguisse n o
emprego d o meu dinheiro, quer por mim, quer por outros, os
embaraços, a vergonha, a repugnância, os inconvenientes, os
desgostos de toda a ordem que sempre experimentei. A maneira
que avançando na minha vida o leitor for tomando conheci­
mento do meu feitio, perceberá tudo isso sem que haj a insistido
em dizer-lho.
Compreendido isto, compreender-se-á sem dificuldade uma
das minhas pretensas contradições : a de aliar uma avareza
quase sórdida com o maior desprezo pelo dinheiro. l!l para mim
um móbil tão pouco cómodo, que nem sequer penso em desejar
o que não tenho; e, quando o tenho, guardo-o bastante tempo
sem o gastar, por não saber empregá-lo segundo a minha fan­
tasia ; mas apresente-se ele uma ocasião cómoda e agradável,
aproveito-a tão bem que a minha bolsa fica vazia antes de
me ter apercebido de tal. De resto, não procurem em mim o
tique dos avarentos, o de gastarem por ostentação ; muito ao
contrário, gasto em segredo e por prazer : longe de gloriar-me
de gastar, escondo-o. Sinto tão bem que o dinheiro não é para
meu uso, que quase me envergonho de o ter, e ainda mais de
me servir dele. Se alguma vez tivesse tido rendimentos sufi­
cientes para viver cõmodamente, estou certíssimo de que nunca
teria sido tentado à avareza. Gastaria todos os meus rendimentos
sem procurar aumentá-los : mas a minha precári a situação man-

45
tém-me apreensivo. Adoro a liberdade. Detesto a mortificação,
a fadiga, a submissão. Enquanto o dinheiro que tenho na algi­
beira dura, assegura-me a independência ; evita-me parafusar
para encontrar mais ; necessidade que me causa sempre horror :
mas, com medo de o ver acabar, acarinho-o. O dinheiro que
temos é o instrumento da liberdade ; aquele que se busca é o
instrumento da servidão. Eis a razão por que aferrolho bem e
nada cobiço. O meu desinteresse não é, pois, senão preguiça ;
o prazer de ter não colhe a pena de adquirir : e a minha dissi­
pação não é ainda mais que preguiça ; quando se apresenta uma
ocasião de gastar agradàvelmente, nunca é de mais o proveito
que dela podemos tirar. Tento-me menos com o dinheiro do
que com as coisas, porque entre o dinheiro e a posse do que
se deseja há sempre um intermediário ; ao passo que este não
existe entre a própria coisa e a sua fruição. Vejo a coisa,
tenta-me ; se só vejo o meio de a adquirir, não me tenta. Por
isso, fui e sou ainda algumas vezes gatuno de bagatelas que
me tentam e que gosto mais de roubar do que pedir: contudo,
pequeno ou crescido, nunca na minha vida me lembro de ter
roubado um real a ninguém, excepto uma s6 vez, ainda não há
quinze anos, que roubei sete libras e dez soldos. Vale a pena
contar a aventura, porque nela entra uma impagável coinci­
dência de atrevimento e burrice, que eu próprio dificilmente
acreditaria se dissesse respeito a outrem que não a mim.
Era em Paris. Por volta das cinco horas, passeava eu no
Falais Royal com Monsieur de Francueil. Este puxa pelo relógio,
olha para ele, e diz-me : Vamos à ópera. Aceito de boamente;
partimos. Ele compra dois bilhetes de galeria, dá-me um, passa
à frente com o outro, eu sigo-o, ele entra. Ao entrar atrás dele,
encontro a porta atravancada. Olho, vejo toda a gente de pé ;
calculo que poderia muito bem perder-me nesta multidão, o u
pelo menos fazer supor a Monsieur d e Francueil que me perdi.
Saio, peço a minha senha, depois o meu dinheiro, e vou-me
embora, sem pensar que mal havia alcançado a porta toda a
gente se tinha sentad o e que Monsieur de Francueil podia então
ver perfeitamente que eu já lá não estava.
Como nunca houve nada mais estranho ao meu feitio do
que tal acto, noto-o, para mostrar que há momentos de uma
espécie de delírio em que se não devem julgar os homens
pelas suas acções. Não era isso precisamente roubar o dinheiro ;
era roubar o seu emprego : era tanto menor o roubo, quanto
maior era a infámia.

46
Não acabaria com semelhantes minudências se quisesse
seguir todos os caminhos pelos quais, durante o meu aprendizado,
passei da sublimidade do heroísmo à baixeza de um bandalho.
Contudo, adquirindo os vícios da minha profissão, foi-me impos­
sível adquirir-lhe completamente os prazeres. As diversões dos
meus camaradas aborreciam-me ; e quando a muita mortificação
me desgostava também do trabalho, tudo me aborrecia. Isto
restituiu-me o gosto da leitura, que há muito tinha perdido.
Estas leituras, roubadas ao trabalho, redundaram num novo
crime que me valeu novos castigos. Irritado pelo constrangi­
mento, este gosto transformou-se em paixão, e em breve em
fúria. A Tribu, famosa alugadora de livros, fornecia-mos de
todas as espécies. Bons e maus, tudo ingeria ; não escolhia:
lia tudo com a mesma avidez. Lia à banca, lia quando ia fazer
recados, lia no vestiário, esquecendo-me horas inteiras n a lei­
tura ; a cabeça andava-me à roda, não fazia senão ler. O patrão
espiava-me, surpreendia-me, batia-me, arrancava-me os livros.
Quantos volumes rasgados, queimados, deitados pela j anela fora!
com quantas obras desirmanadas não ficou a Tribu! Quando não
tinha com que lhe pagar, dava-lhe as minhas camisas, as
minhas gravatas, os meus trapos; todos os domingos lhe levava
regularmente os três soldos com que me brindavam.
Ora ai está, dir-me-ão, como o dinheiro se torna necessário.
É certo, mas foi quando a leitura me roubou toda a actividade.
Inteiramente entregue ao meu novo prazer, não fazia outra
coisa senã.o ler, já não roubava. Eis ainda aqui um dos meus
traços característicos. No pino de um certo hábito de ser,
um nada me distrai, me faz mudar, me interessa, me apai­
xona, enfim; esqueço então tudo, não penso senão no novo
objecto que me prende. o coração batia-me na impaciência de
folhear o novo livro que tinha na algibeira ; puxava por ele
assim que me encontrava só, e não pensav a mais em esqua­
drinhar o escritório de meu patrão. Mesmo que tivesse tido
paixões mais dispendiosas, custa-me a crer que roubasse. Limi­
tado ao tempo presente, não estava no meu modo de ser pre­
caver-me assim para o futuro. Tinha crédito na Tribu: os adian­
tamentos eram pequenos ; e logo que tinha o livro na algibeira,
não pensava em mais nada. O dinheiro que naturalmente rece­
bia ia da mesma forma para essa mulher ; e quando ela se
mostrava apressada, nada tinha mais à mão do que o meu
próprio vestuário. Roubar adiantadamente era por de mais
previdente, e roubar para p agar nem sequer era uma tentação.

47
A força de disputas, pancada, leituras furtivas e mal esco­
lhidas, o meu feitio tornou-se taciturno, selvagem ; a cabeça
começou a funcionar-me mal, e eu vivia como um verdadeiro
lobisomem. Se o meu gosto, porém, me não preservou dos livros
vulgares e insípidos, a minha dita preservou-me dos livros
obscenos e licenciosos : não é que a Tribu, mulher sob todos os
aspectos bastante acomodatícia, tivesse qualquer escrúpulo em
emprestar-mos ; mas, para os fazer render, falava neles com
um ar de mistério que me forçava precisamente a recusá-los,
tanto por repulsa como por vergonha ; e o acaso secundou tão
bem o meu feitio pudico, que só depois dos trinta e tantos anos
é que deitei a vista a um desses livros perigosos, que uma
linda dama pública acha incómodos porque, segundo ela, só se
podem ler com uma das mãos.
·

Em menos de um ano esgotei a lojeca da Tribu, e encon­


trei-me terrivelmente inactivo nos meus ócios. Curado dos
meus prazeres infantis e dos de garoto pelo da leitura, e
até pelas minhas leituras, as quais, ainda que feitas à toa e
frequentemente más, restituíam todavia o meu coração a senti­
mentos mais nobres do que os que a minha profissão me tinha
inculcado ; desiludido de tudo o que estava ao meu alcance,
e sentindo tão afastado de mim tudo o que seria capaz de me
tentar, não via coisa alguma possível de agradar ao meu cora­
ção. Os meus sentidos há já bastante tempo perturbados
pediam-me uma volúpia cujo objecto eu nem sequer sabia ima­
ginar. Estava tão longe do verdadeiro como se não tivesse sexo ;
e, púbere e sensível j á, pensava às vezes nas minhas loucuras,
mas nada via para além delas. Nesta estranha situação, a
minha imaginação inquieta tomou uma decisão que me salvou
de mim mesmo e me acalmou a sensualidade incipiente ; come­
çou a alimentar-se com as situações que me tinham interessado
nas minhas leituras, a recordá-las, a variá-las, a combiná-las,
a apropriá-las a mim de maneira tal que eu me transformasse
numa das personagens que imaginava, que me visse sempre nos
lances a meu gosto mais agradáveis, que o estado fictício em
que acabara por me lançar me fizesse, enfim, esquecer o meu
estado real, que tanto me aborrecia.
Este amor aos obj ectos imaginários e esta facilidade de
me prender a eles acabaram por me desgostar de tudo o que
me rodeava, e determinaram aquele amor da solidão que de
então para cá sempre me acompanhou. Ao diante se verá
mais de uma vez os estranhos efeitos desta disposição aparen­
temente tão misantropa e tão sombria, mas que com efeito

48
provém de um coração demasiado afável, demasiado amoroso,
demasiado terno que, à míngua de encontrar seres semelhantes,
é obrigado a alimentar-se de ficções. Basta-me, por agora, ter
apontado a origem e a causa primeira de uma tendência que
modificou todas as minhas paixões, e que, sofreando-as nelas
mesmas, me tornou sempre preguiçoso no agir, por muito
ardente no desej ar.
Cheguei assim aos dezasseis anos, inquieto, descontente de
tudo e de mim, sem o gosto da minha profissão, sem os pra­
zeres da minha idade, consumido por desejos cuj o objecto igno­
rava, chorando sem motivo para lágrimas, suspirando sem saber
porqu ê ; afagando, enfim, langorosamente as minhas quimeras,
à falta de nada ver à volta de mim que as merecesse. Aos
domingos, depois da prédica, os meus colegas vinham buscar-me
para tomar parte nas suas brincadeiras. De bom grado fugiria
deles, se pudesse ; uma vez, porém, enfronhado na brincadeira,
mostrava-me mais ardente e ia mais longe do que qualquer
deles ; difícil de demover e de reter. Foi sempre essa a minha
constante disposição. Quando saiamos de passeio para fora da
cidade, eu ia sempre à frente sem pensar na volta, a não ser
que os outros nela pensassem por mim. Caí nisso duas vezes ;
as portas fecharam-se antes de eu poder chegar. No dia seguinte,
trataram-me como se imagina, e da segunda vez prometeram-me
um tal acolhimento para a terceira, que resolvi não me expor
a tal ; contudo, essa tão temida terceira vez chegou. .
A minha vigilã.ncia foi posta em cheque por um maldito
capitão chamado Monsieur MinutoU, que fechava sempre a
porta a que estava de guarda meia hora antes dos outros.
Eu regressava com dois colegas. A meia légua da cidàde, ouço
tocar a recolher ; dobro o passo ; ouço tocar o tambor, desato
a correr: chego esbofeado, alagado de suor ; o coração pula­
va-me ; vejo ao longe os soldados na form a ; corro, grito com
voz ofegante. Era muito tarde. IA vinte passos das avançadas,
vejo levantar-se a primeira ponte. Tremo ao ver no ar aqueles
terríveis cornos, sinistro e fatal prenúncio da inevitável sorte
que começava para mim nesse momento.
No primeiro arrebatamento da dor, atiro-me para o talude
e mordo a terra. Os meus colegas, rindo-se da sua desdita, toma­
ram no mesmo instante o seu partido. Eu tomei o meu ; mas foi
de maneira diferente. Ali mesmo jurei nunca mais voltar para
casa de meu patrão ; e no dia seguinte, quando, à hora de abrir
as portas, entraram na cidade, disse-lhes adeus para sempre,
pedindo-lhes apenas que avisassem, às escondidas, meu primo

49
Bernard da resolução que tinha tomado, e do local onde ainda
uma vez me poderia ver.
'Quando entrei para a oficina, como estava mais separado
dele, via-o menos ; contudo, durante certo tempo encontráva­
mo-nos ao domingo ; mas insensivelmente cada um de nós
ganhou ou-tros hábitos, e víamo-nos mais raramente. Estou
convencido de que a mãe contribuiu bastante para esta
mudança. Ele era um rapaz da alta ; eu, misero aprendiz, não
passava de um garoto de Saint-Gervais 1 • Já não havia entre

nós igualdade apesar do nascimento ; conviver comigo era des­


lustrar-se. Contudo, as nossas relações não acabaram comple­
tamente, e como era um rapaz naturalmente bom, seguia às
vezes o coração, apesar das lições da mãe. Ao corrente da minha
resolução, acorreu, não para me dissuadir ou tomar parte nela,
mas para de certo modo adoçar a minha fuga, mediante uns
pequenos presentes ; porq1:1e os meus próprios recursos não pode­
riam levar-me muito longe. Entre outras coisas, deu-me uma
pequena espada de que eu gostava muito e que trouxe até Turim,
onde a necessidade me obrigou a desfazer-me dela, e onde a;
passei ao canal, por assim dizer. Quanto mais reflecti depois na
maneira como ele se comportou comigo neste momento critico,
mais me convenço de que seguiu as instruções da mãe, e talvez
do pai ; porque não é possível que por si mesmo ele não tivesse
feito qualquer esforço para me reter, ou que não tentasse
seguir-m e : mas nada. Encorajou mais o meu propósito do que
me dissuadiu dele ; depois, quando me viu absolutamente resol­
vido, partiu sem grandes lágrimas. Nunca mais nos vimos nem
nos escrevemos. li: pena : tinha um carácter essencialmente bom ;
tínhamos nascido para nos amarmos.
Antes de me abandonar :à fatalidade do meu destino, per­
mita-se-me que por um momento volte os olhos para o que
naturalmente me esperava se tivesse caído em mãos de um
patrão melhor. Nada convinha mais ao meu humor, nem era
mais próprio para me fazer feliz, que a tranquila e obscura
condição de um bom artista, sobretudo em certas classes, como
a dos gravadores de Genebra. Esta condição, suficientemente
rendosa para permitir uma existência fácil, menos para levar
à fortuna, teria limitado as minhas ambições para o resto dos
meus dias, e, deixando-me razoável vagar para cultivar uns

1 Referência aos dois bairros em que se dividia a cidade de Genebra :


o haut, no alto da colina, mais ou menoi.l \elegante ; e o bas, no sopé desta,
também chamado de Saint-Gervais, mais popular e modesto. - N. do T.

50
prazeres moderados, ter-me-ia contido na minha esfera, sem
me ofereeer qualquer meio de sair dela. Possuindo uma imagina­
ção bastante rica para embelezar com as suas quimeras todas as
situações, bastante forte para, por assim dizer, me transportar
à vontade de uma para outra, pouco me importava aquela em
que com efeito me achasse. Do lugar em ,que me encontrava ao
primeiro castelo no ar não poderia haver uma distância tão
grande que me não fosse fácil estabelecer-me nele. Disto apenas
resultava que o estado mais simples, o que me desse menos
incómodos e cuidados, que me deixava o espírito mais livre, era
o que mais me convinha ; e tal estado era precisamente o meu.
No seio da minha religião, da minha pátria, da minha família
e dos meus amigos teria levado uma vida sossegada e agra­
dável, como convinha ao meu carácter, na uniformidade de
uma ocupação a meu gosto e de uma sociedade conforme o
meu coração. Teria sido bom cristão, bom cidadão, bom pai de
família, bom amigo, bom operário, bom homem em tudo. Teria
amàdo a minha profissão, talvez a honrasse, e depois de ter
vivido uma vida obscura e simples, mas lisa e branda, teria
morrido tranquilamente no seio dos meus. Esquecido em breve,
sem dúvida, teria ao menos sido chorado durante o tempo que
se lembrassem de mim . . .
Em vez disto . . . que quadro vou eu pintar? Ah! não nos
antecipemos a contar as misérias da minha vida ; demasiado
ocuparei eu os meus leitores com esta triste matéria.

51
LIVRO SEGUNDO

ANTO quanto me pareceu triste o momento em que o

T terror me sugeriu o proj ecto de fugir, assim me pare­


ceu encantador o momento em que o pus em execução.
Criança ainda, o que eu ia fazer era abandonar a minha terra,
a minha familia, o meu arrimo, os meus recursos ; deixar uma
aprendizagem em meio, sem saber bastante do meu oficio para
viver ; entregar-me aos horrores da miséria, sem ver meio algum
de sair dela ; expor-me, em idade frágil e inocente, a todas
as tentações do vício e do desespero ; procurar lá longe os males,
os erros, as ratoeiras, a escravidão e a morte, sujeito a um
j ugo bem mais inflexível do que o que não havia podido supor­
tar, eram estas as perspectivas que eu deveria ter encarado.
Como era diferente o que me tinha pintado a mim mesmo !
A independência que j ulgava ter adquirido era o único senti­
mento que me impressionava. Livre e senhor da minha pessoa,
j ulgava tudo poder fazer, tudo conseguir : só tinha que tomar
balanço para subir e voar nos ares. Entrava seguro no vasto
espaço do mundo ; o meu valor ia enchê-lo ; ia encontrar, a cada
passo, festins, tesouros, aventuras, amigos prontos a servir-me,
amantes diligentes em agradar-me : mostrando-me, ia fazer
com que o universo se ocupasse de mim - não o universo todo,
porém ; dispensava-o de certo modo, não precisava de tanto.
Bastava-me uma sociedade amável, sem me preocupar com o <,

resto. A minha moderação circunscrevia-me numa esfera res-


trita, mas deliciosamente escolhida, onde tinha a certeza de
reinar. Favorito do senhor e da dama, enamorado da donzela,
amigo do irmão e protector dos vizinhos - isso me contentava ;
não precisava de mais.
Na expectativa deste modesto futuro, vagueei durante alguns
dias nas imediações da cidade, hospedando-me em casa de gente
do campo minha conhecida, que me recebia mais generosa­
mente do que o faria a gente da cidade. Acolhiam-me, hos­
pedavam-me, davam-me de comer com demasiada bondade

53
para se vangloriarem disso. o que faziam não podia chamar-se
dar esmola ; não punham no seu acto um ar suficientemente
superior.
A poder de viajar e percorrer mundo, fui ter a Confignon,
em terras da Sabóia, a duas léguas de Genebra. O prior cha­
mava-se Monsieur de Pontverre. Este nome, famoso na his­
tória da república, deu-me um forte abalo. Tinha curiosidade
em ver como eram feitos os descendentes dos fidalgos de «la
Cuiller» 1 • Fui visitar !Monsieur de Pontverre. Este recebeu-me
muito bem, falou-me da heresia de Genebra, da autoridade da
Santa Madre Igrej a, e deu-me de j antar. Achei pouco que res­
ponder a argumentos que terminavam desta maneira, e pensei
que os priores em casa de quem se j antava tão bem valiam ao
menos os nossos pastores. Eu era certamente mais ilustrado
do que Monsieur de Pontverre, por muito fidalgo que este fosse ;
mas era demasiado bom conviva para ser igualmente bom teó­
logo ; e o seu vinho de Frangi, que me pareceu excelente, argu­
mentava tão vitoriosamente a seu favor, que eu teria corado
de tapar a boca a tão admirável hospedeiro. Transigi portanto,
ou pelo menos não lhe resisti cara a cara. Se vissem a maneira
como eu o poupava, julgar-me-iam falso. Enganar-se-iam ; era
apenas honesto, esta é que é a verdade. A adulação, ou antes
a condescendência, nem sempre é um vício ; é a maior parte das
vezes uma virtude, sobretudo da parte da gente nova. A bon­
dade com que um homem nos trata obriga-nos para com ele :
não é para o enganar que transigimos, é para o não contristar,
para lhe não pagarmos o bem com o mal. Que interesse tinha
Monsieur de Pontverre em me receber, em tratar-me bem, em
querer convencer-me ? Nenhum, além do meu próprio interesse.
O meu coração moço reconhecia-o. A gratidão e o respeito
devido ao bom do padre comoviam-me. Eu sentia a minha
superioridade ; não queria acabrunhá-lo com ela como paga da
sua hospitalidade. Não havia qualquer motivo hipócrita neste
procedimento : não pensava em mudar de religião ; e, muito
longe de me familiarizar ràpidamente com semelhante ideia,
encarava- a pelo contrário com um horror que durante muito
tempo a devia conservar afastada de mim : a única coisa que
pretendia era não magoar quem acariciava a meu respeito

1 Aristocratas saboranos, inimigos dos genebrinos, que, vanglorian­


do-se de comer estes à colher, traziam pendente do pescoço uma colher,
como símbolo do seu partido. O prior de Confignon, Benoit de Pontverre,
célebre pelo seu espírito combativo, pertencia a uma família aristo­
crata.- N. do T.

54
semelhantes vistas ; queria cultivar a sua estima, e dar-lhe
esperanças de êxito, parecendo menos couraçado do que na
realidade estava. Nisto a minha falta parecia-se com o coque­
tismo das mulheres virtuosas, que, para alcançarem os seus
fins, sabem, algumas vezes, sem nada perder nem prometer,
fazer esperar mais do que tencionam cumprir.
A razão, a piedade, o amor da ordem exigiam certamente
que, longe de consentirem na minha loucura, me afastassem da
perdição a que corria, mandando-me para casa de minha
família . .Era isso que teria feito ou procurado fazer qualquer
homem verdadeiramente virtuoso. Contudo, Monsieur de Pont­
verre, se bem que fosse uma excelente pessoa, não era, certa­
mente, um homem V1rtuoso ; pelo contrário, era um devoto que
só conhecia a virtude de adorar as imagens e rezar o terço ;
uma espécie de missionário que, por amor da fê, nada imaginava
de melhor que escrever libelos contra os pastores de Genebra.
Em vez de pensar em mandar-me para ,casa, aproveitou o desejo
que eu tinha de me afastar dela para me tirar as possibilidades
de lá voltar, mesmo que tal me viesse à cabeça. Podia-se apostar
tudo em como ele me impelia a morrer de fome ou a fazer-me
vadio. Não era isso que ele via: o que ele via era uma alma
arrebatada à heresia e restituída là Igreja. Pessoa honesta ou
um meliante, que importava isso, desde que fosse à missa?
Não se julgue, aliás, que esta maneira de pensar é privativa
dos católicos ; é a de qualquer religião dogmática em que se
tem por essencial não o fazer, mas o crer.
Deus chama-vos, disse-me IMonsieur de Pontverre : ide a
Annecy ; lá encontrareis uma excelente senhora muito caridosa,
a quem os benefícios do rei permitem que afaste outras almas
do erro de onde ela própria saiu. Tratava-se de Madame de
Warens, recém-convertida, a quem, com efeito, os padres for­
çavam a partilhar com a canalha que aí vinha vender a fé
uma pensão de dois mil francos dada pelo rei da Sardenha.
Sentia-me bastante humilhado por precisar duma excelente
senhora muito caridosa. Gostava bem que me dessem o que
me era necessário, mas não que fossem caridosos comigo ; e
uma devota não tinha para mim grandes atractivos. Compelido,
porém, por IMonsieur de Pontverre, pela fome que me acossava,
contente outrossim por viajar e ter uma finalidade, decido-me,
embora a custo, e parto para Annecy. Podia lá chegar à von­
tade num dia ; mas não tinha pressa nenhuma, e levei três. Não
via castelo algum à direita ou à esquerda que não fosse logo em
busca da aventura que estava convencido e.sperar-me. Por

55
timidez, não ousava entrar no castelo, nem bater, mas punha-me
a cantar debaixo da janela que mais prometia, muito surpreen­
dido, depois de durante tanto tempo ter deitado os bofes pela
boca fora, de não ver aparecer nem damas, nem donzelas,
atraidas pela beleza da minha voz ou pelo sal das minhas can­
tigas, que as sabia boas, aprendidas com os meus colegas, e
que eu cantava admiràvelmente.
Chego por fim; vejo IMadame de Warens. Esta época da
minha vida decidiu do meu carácter; não posso resolver-me
a contá-la superficialmente. Tinha dezasseis anos e meio. Sem
ser o que se chama um bonito rapaz, era bem parecido na minha
pequena· estatura; tinha os pés bonitos, pernas finas, uni a.r
desembaraçado, uma fisionomia viva, boca engraçada, sobran­
celhas e cabelos pretos, olhos pequenos e fundos, mas que des­
pediam com força o fogo que me abrasava o sangue. Infeliz­
mente,· não tinha dado por nada disto, e nunca na vida me
sucedeu pensar na miriha pessoa senão quando já era tarde
para dela tirar qualquer partido. Tinha assim, junto com a
timidez da minha idade, a timidez de um natural amoroso,
constantemente perturbado pelo receio de desagradar. Aliás, se
bem que fosse dotado de um .espírito bastante formoso, como
nunca tinha frequentado a sociedade, era totalmente falto de
maneiras, e os meus conhecimentos, longe de me ajudarem,
só serviam para mais me intimidarem, fazendo-me sentir bem
a ausência delas.
Temendo, pois, que a minha abordagem pouco predispusesse
a. meu favor, socorri-me doutra maneira dos meus dotes, e
escrevi uma bela carta em estilo oratório, na qual, cosendo
frases de livros com locuções de aprendiz, exibia toda a minha
eloqurência para captar a benevolência de iMadame de Warens.
Juntei a carta de Monsieur de Pontverre à minha, e parti para
a terrível audiência. Não encontrei Madame de Warens; disse­
ram-me que tinha acabado de sair para ir à igreja. Era o dia
de Ramos do ano de 1728. Sigo-a a correr: vejo-a, alcanço-a,
falo-lhe ... Como não me recordarei do local! Frequentemente
o molhei depois com as minhas lágrimas e cobri com os meus
beijos. Porque não rodeio eu com um balaústre de oiro esse
ditoso lugar! porque não trago eu ali as homenagens da terra
inteira! Todo aquele a quem apraz honrar os monumentos
com a saudação dos homens, só de joelhos devia aproxi­
mar-se dele.
Era uma passagem por trás da casa, a qual, entre um regato,
à d ireita, que a separava d o jar dim, e o muro do pátio, à

56
esquerda, conduzia à igrej a dos franciscanos por uma porta
falsa. Prestes a transpor essa porta, Madame de Warens volta-se
à minha voz. Que foi de mim, ao vê-la ! Imaginava-a uma velha
devota muito rabugenta ; em meu entender, a boa dama de
Monsieur de Pontverre não podia ser outra coisa. Vejo um
rosto repleto de encantos, uns lindos olhos azuis cheios de sua­
vidade, uma tez fascinante, uma garganta encantadoramente
modelada. Nada escapou ao rápido golpe de vista do j ovem
prosélito ; porque, no mesmo instante, o fui dela, convicto de
que uma religião pregada por tais missionários não podia deixar
de levar ao Paraiso. Ela, sorrindo, pega na carta que com mão
trémula lhe estendo, abre-a, deita uma vista de olhos à de
Monsieur de Pontverre, torna à minha, que lê por inteiro, e que
teria relido se o lacaio a não adverte de que era tempo de
entrar. Meu filho - diz-me ·ela com uma voz que me fez
estremecer - muito novo começa a correr mundo ; é pena,
na verdade. iDepois, sem esperar que eu respondesse, acres­
centou : espere-me em minha casa ; diga que lhe dêem de
almoçar ; depois da missa irei falar consigo.
Louise Eleonor de 1Warens era uma menina da casa dos La
Tour de iPil, nobre e antiga familia de Vevay, cidade do cantão
de Vaud. IMuito nova, tinha casado com Monsieur de Warens, da
casa de Loys, filho primogénito de IMonsieur Villardin, de Lau­
sana. o casamento não fora muito feliz, e IMadame de Warens,
sem filhos e impelida por qualquer desgosto doméstico, apro­
veitou a ocasião em que o rei Vitor Amadeu se achava em Evian
para atravessar o lago e vir lançar-se aos pés do príncipe, aban­
donando assim o marido, a familia. e a sua. terra, por uma lou­
cura bastante semelhante à minha, e que também chorou todo
o tempo. o rei, que gostava de mostrar o seu fervor católico,
tomou-a sob a sua protecção, deu-lhe uma. pensão de mil e
quinhentas libras piemontesas, o que era muito para um prín­
cipe tão pouco pródigo, e vendo que, acolhendo-a assim, o
podiam julgar apaixonado, mandou-a, escoltada por um desta­
camento da sua guarda, para Annecy, onde ela, debaixo da
direcção de 'Michel Gabriel de Bernex, abjurou no Convento da
Visitação.
Quando cheguei a Annecy, havia seis anos que ela ali se
encontrava, contando então vinte e oito, pois que nascera no
começo do século. Tinha uma destas belezas que se conservam,
porque existem mais n a fisionomia do que nos traços ; por isso
a sua estava ainda inteiramente no primeiro viço. Tinha um
ar carinhoso e terno, um olhar muito doce , um sorriso angélico,

57
uma boca à medida da minha, cabelos cendrados de uma beleza
pouco vulgar, e a que ela dava um j eito de desleix;o que a
tornava muito interessante. Era de pequena estatura, baixa
mesmo, e um pouco atarracada do busto, mas não disforme ;
era impossível, porém, ver-se cabeç a mais linda, seio mais belo,
mãos e braços mais bonitos.
A sua educação tinha sido bastante desordenada : havia,
como eu, perdido a mãe là nascença, e, recebendo indiferente­
mente lições como calhava estas apresentarem-se, tinha apren­
dido um pouco com a governanta, um pouco com o pai, um
pouco com os mestres, e muito com os amantes, sobretudo com
um tal llVIonsieur de Tavel, que, possuindo gosto e conhecimentos,
havia com eles embelezado a pessoa que amava. Tantos géneros
diferentes prej udicaram-se contudo uns aos outros, e a pouca
ordem que ela neles pôs impediu ,que os seus diversos estudos
alargassem a finura natural do seu espírito. Assim, se bem que
possuísse alguns rudimentos de filosofia e de física, não deixou
de tomar o gosto do p ai pela medicina empírica e pela alquimia :
fazia elixires, tintas, bálsamos, magistérios, de que pretendia
possuir os segredos. Os charlatães, aproveitando a sua fraqueza,
assenhorearam-se dela, perseguiram-na, arruinaram-na, e con·­
sumiram-lhe, no meio dos fornos e das drogas, o espírito, o
talento, os encantos, com que poderia ter feito as delicias das
melhores sociedades.
:Mas se esses vis tratantes abusaram assim da sua edu­
cação mal dirigida para obscurecer-lhe as luzes da razão, o
seu execelente coração ficou à prova e conservou-se sempre o
mesmo : o seu carácter amável e doce, a sua sensibilidade para
com os desgraçados, a sua inesgotável bondade, o seu feitio
alegre, aberto e franco, nunca se alteraram ; e mesmo ao apro­
ximar-se da velhice, no seio da indigência, de males e calami­
dades várias, a serenidade da sua bela alma conservou-lhe até
ao fim da vida toda a alegria dos mais belos dias.
Os seus erros provieram-lhe de um fundo de actividade
inesgotável, que incessantemente desejava ocupar-se. Não eram
as intrigas de mulheres que a interessavam, era realizar
empreendimentos e dirigi-los. Tinha nascido para os grandes
negócios. No seu lugar, Madame de Longueville teria sido apenas
uma intriguista ; no lugar de IMadame de Longueville, teria ela
governado o Estado. As suas capacidades acharam-se desloca­
das ; e o que, numa situação mais alta, lhe teria dado a glória,
ocasionou a sua perda naquela em que viveu. Nas coisas que
estavam ao seu alcance, desenvolvia-lhes o plano na cabeça

58
e via sempre o seu objectivo em grande. Daqui resultava que,
empregando meios mais proporcionados às suas vistas do que
às suas forças, falhava por culpa dos outros, e como o seu
projecto ia a terra achava-se arruinada quando os outros quase
nada teriam perdido. Este gosto dos negócios, que tantos males
lhe acarretou, trouxe-lhe ao menos um grande bem no seu
asilo monástico, impedindo-a de ali se fixar para o resto da
vida, como estava tentada. A vida uniforme e simples das reli­
giosas, o seu mesquinho palavreado no locutório, nada disso
podia agradar a um espírito sempre em agitação, o qual, con­
cebendo todos os dias novos sistemas, tinha necessidade de
liberdade para se entregar a eles.
O bom bispo Monsieur de Bernex, com menos espírito que
Francisco de Sales, parecia-se com ele em muitos pontos ; e
Madame de Warens, a quem ele chamava filha, e que, em muitos
outros, se parecia com Madame de Chantal, poder-se-ia parecer
com ela ainda no seu retiro, se as suas predilecções a não tives­
sem desviado da ociosidade dum convento. Não foi por falta de
zelo que esta encantadora mulher deixou de se entregar às peque-­
ninas práticas devotas que parecia convirem a uma recém-con­
vertida vivendo debaixo da direcção de um prelado. Fosse
GUal fosse o motivo da sua mudança de religião, :foi sincera
na que abraçou. É possível que se tenha arrependido de
haver cometido a falta, mas não desejou, certamente, cair nela
de novo. Não só morreu como boa católica, viveu como tal de
boa fé, e eu, que j ulgo ter lido no fundo da sua alma, ouso
afirmar que só por horror à afe,c tação é que ela não se mostrava
em público devota: a sua piedade era demasiado sólida para
tomar a forma de devoção. Mas não é este o lugar para me
alongar sobre os seus princípios ; outras ocasiões terei de o fazer.
Os que negam a simpatia das almas que expliquem, se
puderem, como é que logo na primeira entrevista, à primeira
palavra, ao primeir o olhar, IMadame de Warens me inspirou
não somente a mais viva afeição, como uma perfeita confiança
que nunca veio a desmentir-se. Suponhamos que o que senti
por ela foi verdadeiramente amor, o que parecerá quando menos
duvidoso, a quem seguir a história das nossas relações ; - como
é que tal paixão foi, logo que nasceu, acompanhada pelos sen­
timentos que esta menos inspira : a paz do coração, a calma,
a serenidade, a segurança, a confiança ? Como é que, ao apro­
ximar-me pela primeira vez de uma mulher gentil, educada,
fascinante, de uma senhora de condição superior à minha,
como nunca havia abordado segunda, daquela de .quem de certo

59
modo dependia a minha sorte, segundo o maior ou menor inte­
resse que esta lhe merecesse ; como é que, digo, apesar de tudo
isso, eu me senti nesse mesmo instante tão livre, tão à vontade
como se estivesse perfeitamente certo de que lhe agradaria?
Como é que não tive um instante de embaraço, de timidez, de
confusão ? Naturalmente envergonhado, acanhado, por nunca
ter frequentado a sociedade, como é que, logo no primeiro dia,
no primeiro instante, a tratei com os modos fáceis, as palavras
ternas, o tom familiar que vim a empregar dez anos mais tarde,
quando uma maior intimidade tornou tudo isso natural? Tem-se
amor, não digo sem desejos, porque eu tinha-os, mas sem inquie­
tação, sem ciúme? Não é verdade que se desej a saber ao menos
do objecto que se ama se se é amado? !Pergunta que me veio
tanto ao espírito fazer-lhe alguma vez na vida, como pergun­
tar-me a mim mesmo se a amava - nem ela mostrou nunca
mais curiosidade a meu respeito. Houve, certamente, algo sin­
gular nos meus sentimentos por esta encantadora mulher, e ,
com a continuação, encontrar-se-lhe-ão certas extravagâncias
que não se esperam.
Veio à baila o meu futuro, e, para dele falarmos com mais
vagar, convidou-me para j antar. Foi a primeira refeição da
minha vida em que o apetite me faltou, e a criada de quarto
que nos servia disse também que eu era o primeiro viajante da
minha idade e do meu estofo a quem ela o via faltar. Esta obser­
vação, que não me prejudicou aos olhos da patroa, caiu um
pouco de chofre sobre um avantaj ado lapuz que j antava
connosco e devorou só à sua conta um j antar que chegava para
seis pessoas. Por mim, achava-me de tal maneira em êxtase que
não podia comer. O meu coração alimentava-se de um senti­
mento inteiramente novo, com o qual ocupava todo o meu ser ;
não me deixava ânimo para qualquer outra função.
Madame de Warens desejou conhecer os pormenores da
minha pequena história ; encontrei, para lha contar, todo o
fogo que havia perdido em casa de meu patrão. Quanto mais
ia interessando esta excelente alma a meu favor, mais ela
lastimava a sorte a que eu me ia expor. Não ousava exortar-me
a que voltasse para Genebra. Na sua posição, isso teria sido um
crime de lesa-catolicidade, e ela não ignorava como era vigiada
e como os seus discursos eram pesados. 'Mas falou-me num tom
tão comovido da aflição de meu pai, que se via bem como
aprovaria que eu fosse consolá-lo. !Sem dar por isso, não sabia
como estava advogando contra si própria. Além de que, como
creio tê-lo dito, a minha resolução estava tomada, quanto mais

60
eu a achava eloquente, persuasiva, mais as suas palavras me
iam direito ao coração. e menos p odia resolver-me a afastar-me
dela. Sentia que voltar para Genebra era pôr entre ela e mim
uma barreira quase intransponível, a não ser que renunciasse
ao passo que acabava de dar, e ao qual mais valia agarrar-me de
golpe. Foi o que fiz. Vendo a inutilidade dos seus esforços,
Madame de Warens não os levou até ao ponto de se compro­
meter ; contudo, disse-me com um olhar de comiseração : Pobre
criança, deves ir onde Deus te chama ; mas quando fores crescido,
recordar-te-ás de mim. Creio que nem ela mesmo pensava que
esta predição se realizaria tão cruelmente.
A dificuldade subsistia integral. Tão novo, como havia eu de
manter-me fora da minha terra ? Com a minha aprendizagem
apenas em meio, estava longe de saber o ofício. Mesmo que
o soubesse, não poderia viver na Sabóia, pais demasiado pobre
para ter artes. O vilão que j antava por nós, forçado a fazer
um a pausa para dar descanso aos queixos, emitiu um parecer que
dizia vir-lhe do tCéu, e que, a j ulgar pelas consequências, vinha
a.ntes do lado oposto ; era que fosse para Turim, onde, num
hospício fundado para a instrução dos catecúmenos, eu obteria,
dizia ele, a vida temporal c espiritual, até que, tendo entrado no
seio da 'Igreja, encontrasse um lugar conveniente, graças à
caridade das boas almas. Pelo que diz respeito ià.s despesas de
viagem, continuava o meu homem, Sua Eminência o Senhor
Arcebispo, se Madame lhe propõe esta santa obra, não deixará
de caridosamente lhe dar provimento ; e a senhora Baronesa,
que é tão caridosa, ajuntou ele, inclinando-se por sobre o prato,
certamente que também se apresentará a contribuir para isso.
Achei todas estas caridades bastante duras : tinha o coração
oprimido, nada dizia, e !Madame de Warens, sem apoiar o pro­
jecto com o mesmo entusiasmo com que era oferecido, conten­
tou-se em responder que cada qual devia contribuir para o bem
segundo as suas forças, e que falaria no assunto a !Monsenho r :
mas o diabo do homem, temendo que ela lhe não falasse a seu
gosto, e que tinha interessezinhos no negócio, apressou-se em
prevenir os esmoleres, e ensinou tão bem o recado aos bons dos
padres, que quando Madame de Warens, receando tal viagem, quis
falar nisso ao bispo, verificou que o negócio era coisa arrumada,
entregando-lhe este no mesmo instante o dinheiro destinado ao
meu pequeno viático. Não ousou insistir para eu fica r : apro­
ximava-me de uma idade em que uma mulher na sua não
pode decentemente querer reter um rapaz novo j unto dela.

61
Como desta maneira a minha viagem era fixada por quem
de mim se ocupava, força me foi submeter-me, e foi mesmo o
que fiz sem muita repugnância. Se bem que Turim fosse mais
longe do que Genebra, j ulguei que, por ser a capital, tinha
com Annecy relações mais estreitas do que uma cidade estranha
politica e religiosamente : além disso, partindo para obedecer
a IMadame de Warens, considerava-me como vivendo sempre
debaixo da sua direcção ; era mais do que viver na sua vizi­
nhança. ·Enfim, a ideia de uma grande viagem agradava à minha
mania ambulante, que já começava a manifestar-se. ·Afigurava­
-se-me belo atravessar, na minha idade, os montes, e elevar-me
acima dos meus camaradas a toda a altura dos Alpes. Ver
mundo é um atractivo a que nenhum genebrino resiste. Oon­
senti, portanto. o meu vilão devia partir dentro de dois dias
com a mulher. Confiaram-me e recomendaram-me a ele. Entre­
garam-lhe a minha bolsa, reforçada por Madame de Warens,
que em segredo me deu ainda um pequeno pecúlio, a que j untou
dilatadas instruções, e partimos na Quarta-Feira Santa.
No dia seguinte ao da minha partida, chegou a •Annecy meu
pai, correndo na minha peugada com um tal Monsieur Rival,
seu amigo, relojoeiro como ele, homem de espírito, formoso
espírito mesmo, o qual fazia versos melhor .que La Motte, e
falava quase tão bem como ele ; além disso, um perfeito homem
de bem, mas cuja literatura deslocada só teve como resultado
fazer um dos filhos comediante.
Estes cavalheiros viram Madame de Warens e contenta­
ram-se em chorar com ela a minha sorte, em vez de me segui­
rem e de me alcançarem, como fàcilmente o poderiam ter feito,
dado que iam a cavalo e eu a pé. O mesmo havia sucedido com
meu tio Bernard. Veio a Confignon, e aí, sabendo que eu estava
em Annecy, voltou para Genebra. Parecia que os meus parentes
conspiravam com a minha estrela para me entregarem ao des­
tino que me esperava. Foi devido a semelhante negligência que
o meu irmão se perdeu, e tão bem perdido que nunca mais nin­
guém soube dele.
Meu pai não era apenas um homem honrado ; era um
homem de uma firme probidade, e possuía uma destas almas
fortes que fazem as grandes virtudes ; além disso, era bom pai,
sobretudo para mim. Tinha por mim grande afeição ; mas gos­
tava também dos seus prazeres, e outras preferências tinham
estragado a afeição patern a desde que eu vivia longe dele.
Tinha voltado a casar-se em Nyon, e se bem que a mulher j á
não estivesse em idade d e m e dar irmãos, tinha contudo paren-

62
tes ; isso fazia outra família, outros objectos, um novo lar, que
não traria à lembrança tantas vezes a recordação de mim. !Meu
pai estava a envelhecer e não possuía bens alguns que o sus­
tentassem na velhice. !Meu irmão e eu tínhamos alguma coisa
de minha mãe, cuj o rendimento devia reverter a favor de meu
pai, enquanto nós nos conservássemos afastados. Tal ideia não
lhe ocorria directamente e não o impedia de cumprir o seu
dever ; mas agia surdamente sem ele próprio se aperceber disso,
e afrouxava por vezes a sua dedicação, que, sem isso, teria
levado mais longe. Eis, parece-me, a razão por que, tendo vindo
primeiro a Annecy no meu 'encalce, não me seguiu até Chambéri,
onde moralmente tinha a certeza de me encontrar. Eis ainda
a razão por que, tendo-o eu ido muitas vezes ver depois de haver
fugido, rPcebi sempre dele carinhos de pai, mas sem grandes
esforços para me reter.
Este procedimento por parte de um pai, cuja ternura e
virtude conheci tão bem, levou-me a fazer sobre mim mesmo
umas tantas reflexões que não pouco contribuíram para me
conservar o coração puro. íExtraí daí esta grande máxima de
moral, talvez a única de utilidade prática, que é a de evitar
as situações que põem os nossos deveres em oposição com os
nossos interesses, e nos revelam o nosso bem no mal dos outros,
convencido de que, em tais situações, mesmo que a elas traga­
mos um sincero amor da virtude, fraquejamos mais cedo ou mais
tarde sem dar por isso, e tornamo-nos inj ustos e maus nas
acções, sem deixarmos de ser justos e bons na alma.
Esta máxima profundamente gravada no meu coração, e
posta em prática, ainda que um pouco tarde, em todos os meus
actos, tem sido uma das que me deram um ar mais extrava­
gante e mais louco aos olhos do público, e sobretudo entre os
meus conhecidos. tAcusaram-me -de querer ser original e pro­
ceder diferentemente dos outros. Na verdade, não pensava de
maneira nenhuma em proceder como os outros, nem diferen­
temente deles. Desej ava sinceramente proceder segundo o que
me parecia melhor. Evitava com todas as minhas forças as
situações que me proporcionassem qualquer interesse em oposi­
ção com os interesses de outro homem, e por conseguinte me
dessem um secreto, se bem que involuntário desejo do mal de
tal homem.
Há dois anos quis Mylord íMarêchai incluir-me no seu
testamento. Opus-me com todas as forças. Fiz-lhe sentir que
por nada no mundo quereria figurar no testamento de quem
quer que fosse, e muito menos no dele. Aceitou : agora quer

63
estabelecer-me uma pensão vitalfcia, e a isso não me oponho
eu. Dir-se-á que lucro com a alteração, e assim pode ser. Con­
tudo, ó meu benfeitor e meu pai, se tenho a infelicidade de
sobreviver a vós, sei que perdendo-vos tenho tudo a perder,
e nada a ganhar.
1:: essa, em meu parecer, a boa filosofia, a única adequada
ao coração humano. Cada dia mais me compenetro da sua pro­
funda solidez, e examinei-a de diferentes maneiras em todos
os meus últimos escritos ; o público, porém, que é frívolo, não
soube reparar nela. Se viver suficientemente depois deste
empreendimento consumado para recomeçar outro, propo­
nho-me apresentar na continuação do Emílio um exemplo tão
agradável e tão frisante dessa mesma máxima, q1,1.e o meu leitor
será forçado a prestar-lhe atenção. Mas bast a de reflexões num
viajante ; já é tempo de continuar o caminho.
Fi-lo com mais prazer do que poderia esperar, e o meu
lapuz não se mostrou tão intratável como parecia. Era um
homem de meia-idade, que usava os cabelos pretos grisalhos
em rabicho, com um ar de granadeiro, a voz forte, bastante
divertido, andando bem, comendo melhor, e que exercia todas
as espécies de misteres, à falta de saber um qualquer. Creio
que se propunha instalar em 1Annecy não sei que manufactura.
Madame de Warens não deixara de se embair pelo proj ecto e era
para tratar de obter a aprovação do ministro que ele, bem
custeado, empreendia a viagem a Turim. O nosso homem tinha
o talento da intriga metendo-se sempre com padres, e mos­
trando-se solicito em servi-los ; tinha aprendido com eles uma
certa gíria devota de que se servia constantemente, j actando-se
de grande pregador. Até sabia em latim uma passagem da Bíblia,
e era como se soubesse mil, porque a repetia mil vezes por dia:
no resto, raro lhe faltando dinheiro, quando o sabia nas algi­
beiras dos outros ; mais m anhoso, porém, do que velhaco e pare­
cendo-se, quando em tom de engajador declamava as suas
homilias, com Pedro, o !Eremita, pregando a cruzada de espada
ao lado.
Quanto à esposa, !Madame Sabran, era um a excelente
mulher, mais calma de dia do que de noite. Como dormia sem­
pre no quarto deles, as suas insónias barulhentas desperta­
vam-me frequentemente, e ainda mais me teriam despertado
se delas tivesse compreendido a razão. 'Mas nem de tal descon­
fiava, e neste capítulo era de uma estupidez que só à natureza
confiou inteiramente o trabalho de me instruir.

64
Fazia alegremente a caminhada com o meu devoto guia
e a sua buliçosa companheira. Acidente algum perturbou a via­
gem ; achava-me na mais feliz disposição de corpo e de espírito
de toda a minha vida. Novo, vigoroso e cheio de saúde, de segu­
rança, de confiança em mim e nos outros, encontrava-me
naquele breve, mas precioso momento da vida, em que a pleni­
tude expansiva desta se espalha por assim dizer por todas as
nossas sensações, e aos nossos olhos embeleza a natureza inteira
com o encanto da nossa existência. A minha doce inquietação
tinha um objecto que a tornava menos errante e fixava a
minha imaginação. Considerava-me como a obra, o discípulo,
o amigo, quase o amante de IMadame de Warens. As coisas amá­
veis que me tinha dito, as pequenas atenções que me tinha
dispensado, o interesse que tão afàvelmente parecia ter tomado
por mim, os seus olhares fascinantes, que me pareciam cheios
de amor, porque mo inspiravam : tudo iss o alimentava as minhas
ideias durante o caminho, e me fazia sonhar deliciosamente.
Receio algum, dúvida alguma a respeito da minha sorte pertur­
bava tais devaneios. Em meu entender, mandar-me para Turim
era comprometer-se a fazer-me ali viver, a instalar-me ali
convenientemente. Já não tinha cuidados a meu respeito ; outros
se haviam encarregado disso. Assim, caminhava lesto, aliviado
de tal peso ; os desejos moços, a esperança encantadora, os
proj ectos brilhantes enchiam-me a alma. Todos os objectos
que via me pareciam garantia da minha próxima felicidade.
Nas casas, imaginava festins rústicos ; nos prados, alegres brin­
cadeiras ; à beira dos rios, banhos, passeios, pesca ; nas árvores,
frutos deliciosos ; à sua sombra, voluptuosos encontros ; nos
montes, cubas de leite e de nata, uma encantadora ociosidade,
a paz, a simplicidade, o prazer de ir sem saber para onde. Nada,
enfim, feria os meus olhos sem trazer ao meu coração qualquer
gostoso atractivo. A grandeza, a variedade, a real beleza do
espectáculo tornavam estes encantos dignos da razão ; a vai­
dade mesmo nisto tinha a sua part�. Ir tão novo a Itália, ter
já visto tanto mundo, seguir Aníbal através dos montes, pare­
cia-me uma glória superior à minha idade. Acrescente-se a tudo
isto paragens frequentes e boas, um grande apetite e com que
satisfazê-lo ; porque, na verdade, não valia a pena mostrar-me
falto dele, e, ao lado do j antar de tMonsieur Sabran , o meu não
se fazia notar.
Não me lembro de em todo o curso da minha vida ter tido
um interregno tão perfeitamente isento de cuidados e de aflições
como os sete ou oito dias que durou esta viagem ; pois que o

65
5
passo de Madame ISabran, pelo qual nós tínhamos de regular
o nosso, fez dela um grande passeio. Esta recordação deixou em
mim o mais vivo gosto por tudo o que com ela se relaciona,
mormente pelas montanhas e pelas excursões pedestres. Só via­
jei a pé durante os meus melhores dias, e sempre deliciosa­
mente. Os deveres, os negócios, a bagagem a transportar, obri­
garam-me depressa a fazer de homem e a servir-me de carros ;
a estes subiram comigo as ralações, as complicações, as dificul­
dades, e, desde então, nas minhas viagens não senti mais do que
a necessidade de chegar, quando dantes só sentia o prazer de
ir. Durante muito tempo procurei, em !Paris, dois camaradas com
gostos semelhantes aos meus, que estivessem na disposição de
consagrar, cada um deles, cinquenta luises da sua bolsa e um
ano do seu tempo para fazermos juntos, a pé, uma volta à
Itália, sem outro equipamento além de um rapaz para nos levar
o saco de noite. Apresentaram-se-me muitas pessoas, aparen­
temente encantadas com o projecto, mas considerando-o, no
fundo, um castelo no ar que serve de pretexto para conversar
mas que, na realidade, não se quer levar a efeito. Recordo-me
que falando apaixonadamente deste projecto a Diderot e a
Grimm, lhes comuniquei, enfim, a minha fantasia. Certa vez
julguei o negócio concluído ; mas tudo se reduzia em quererem
fazer uma viagem por escrito, na qual Grimm nada achava de
mais divertido do que obrigar Diderot a cometer bastantes
impiedades, e de pregar comigo na Inquisição, no lugar deste.
o desgosto que tive por tão depressa chegar a Turim foi
temperado pelo prazer de ver uma grande cidade, e pela espe­
rança de em breve nela fazer uma figura digna da minha pessoa,
pois que já me subiam là cabeça os fumos da ambição ; já me
considerava infinitamente acima da minha antiga condição
de aprendiz, e bem longe de prever que dentro em b reve ia
estar muito abaixo dela.
Antes de prosseguir, devo apresentar ao leitor as minhas
desculpas ou as minhas justificações, tanto por causa dos ínfi­
mos pormenores em que entrei, como por aqueles em que, ao
diante, entrarei, e que nenhum interesse podem ter aos seus
olhos. No projecto que formei de me mostrar inteiramente ao
público, é preciso que nada fique obscuro ou oculto ; preciso
conservar-me incessantemente debaixo dos seus olhos ; é pre­
ciso que ele me siga em todos os desvarios do meu coração,
em todos os escaninhos da minha vida ; que nem um só instante
me perca de vista, com receio de que, 'aO encontrar na minha
narração a mais pequena lacuna, o menor hiato, não tenha de

66
perguntar a si mesmo : - Que fez ele durante todo este tempo?
- e não tenha que me acusar por eu não querer diz.er tudo.
O que conto j á me expõe suficientemente à malícia dos homens,
para que a aumente ainda com o meu silêncio.
O meu peculiozito havia voado ; tinha dado à língua, e
a minha indiscrição não resultara em pura perda para os
meus . guias. Madame Sabran achou mesmo meio de me extor­
quir uma pequena fita lustrada de prata que 1Madame de
Warens me havia dado para a minha espadazinha, e que eu
chorei acima de tudo ; a própria espada lhe ficaria nas mãos
se eu tivesse sido menos pertinaz. !Durante a viagem haviam-me
fielmente pago todas as despesas, mas tinham-me deixado sem
nada. Chego a Turim sem vestuário, sem dinheiro, sem roupa
branca, e confiando exactlssimamente apenas ao meu valor
toda a honra da fortuna que ia fazer.
Trazia algumas cartas, que fui entregar ; e imediatamente
me conduziram ao hospício dos catecúmenos, para ai me ins·
truirem na religião por amor da qual me vendiam a minha
subsistência. Ao entrar, vi uma porta de sólidas barras de
ferro, a qual, assim que entrei, me fecharam nas costas com
duas voltas . .Este intróito pareceu-me mais imponente do que
agradável, e começava a dar-me que pensar, quando me fizeram
entrar numa sala bastante espaçosa. Por mobília, vi apenas, ao
fundo da quadra, um altar de madeira encimado por um grande
crucifixo, e em volta dele quatro ou cinco cadeiras igualmente
de madeira, que pareciam enceradas, mas que reluziam apenas
à força de delas se terem servido e de por elas se roçarem. Era
a sala de reunião, e nela se encontravam quatro ou cinco tene­
brosos bandidos, meus camaradas de instrução, e que mais pare­
ciam archeiros do diabo que aspirantes a filhos de Deus. Dois
destes tratantes eram esclavónios, que se diziam j udeus e mou­
ros, e que, segundo me confessaram, passavam a vida a correr a
Espanha e a Itália, abraçando o cristianismo e fazendo-se bapti­
zar onde quer que o resultado do baptismo valesse a pena.
Abriu-se outra porta de ferro, a qual dividia ao meio uma grande
varanda que dominava o pátio. Por esta porta entraram as
nossas irmãs catecúmenas, que iam, como eu, regenerar-se não
pelo baptismo, mas por uma solene abjuração. Eram, na ver­
dade, as maiores marafonas e as desavergonhadas mais ordi­
nárias que j amais empestaram o redil do Senhor. Só uma me
pareceu bastante bonita e interessante. Era pouco mais ou
menos da minha idade, talvez mais velha um ou dois anos.
Tinha uns velhacos de uns olhos que algumas vezes se encon-

67
travam com os meus. Isso inspirou-me um certo desejo de
travar conhecimento com ela; contudo, durante cerca de dois
meses que ela se conservou ainda nesta casa, onde já se encon­
trava há três, foi-me absolutamente impossível abordá-la, de
tal maneira estava recomendada à nossa velha carcereira, e
perseguida pelo santo missionário que trabalhava pela sua con­
versão com mais zelo do que diligência. Devia ser extremamente
estúpida, se bem que não tivesse ar disso, porque nunca ins­
trução alguma durou tanto tempo. O santo homem nunca a
achava em estado de abjurar. Ela, todavia, aborreceu-se da
clausura, e disse que queria sair, cristã ou não. Foi preciso
pegar-lhe na palavra, enquanto se achava em semelhante dis­
posição, não se revoltasse ela e já não o quisesse fazer.
A pequena comunidade reuniu-se em honra do recém­
-chegado. Dirigiram-nos uma espécie de exortação; a mim,
para me aconselhar a responder à graça que Deus me fazia;
aos outros, para os convidar a dispensarem-me as suas orações
e a edificarem-me pelos seus exemplos. Após o que, havendo
as nossas virgens voltado para a sua clausura, tive eu tempo
de me surpreender inteiramente à vontade daquela em que me
encontrava.
No dia seguinte de manhã, reuniram-nos novamente para
a instrução, e foi então que, pela primeira vez, comecei a reflec­
tir no passo que ia dar e nos preliminares que ali me haviam
arrastado.
Disse, repito e repetirei porventura uma coisa de que cada
vez estou mais compenetrado: se houve jamais criança que
recebesse uma educação razoável e sã, fui eu. Nascido numa
familia cujos costumes a distinguiam do povo, só tinha recebido
lições de prudência e exemplos honrosos de todos os meus paren­
tes. !Meu pai, embora gostasse dos seus prazeres, era não só
homem de uma firme probidade, mas de grande religião. Homem
galante na sociedade, cristão na intimidade, muito cedo me
havia inspirado os sentimentos de que se achava imbuído.
Das minhas três tias, todas discretas e virtuosas, as duas mais
velhas eram devotas, e a terceira, rapariga a um tempo cheia
de graça, de espírito e de senso, era-o talvez ainda mais do que
elas, embora com menos ostentação. !Do seio desta estimável
familia transitei para casa de Monsieur Lambercier, o qual,
posto que homem da Igreja e pregador, era por dentro um
crente e procedia quase tão bem como o dizia. Por meio de
preceitos suaves e judiciosos, a irmã e ele cultivaram os prin­
cípios de piedade que acharam no meu coração. Estas dignas

68
pessoas empregaram para isso meios tão verdadeiros, tão dis­
cretos, tão razoáveis, que, ao sermão, longe de me aborrecer,
nunca saia de lá sem interiormente me sentir comovido e sem
fazer projectos de me conduzir bem, ao que raramente faltava,
quando nisso pensava. A devoção, em casa de minha tia Ber­
nard, aborrecia-me um pouco mais, porque ela a transformava
num dever. Na oficina de meu patrão, não pensava mais em
tal, sem contudo pensar diferentemente. Não encontrava rapa­
zes para me perverterem. Tornei-me gaiato, mas não libertino.
Conservava pois da religião tudo o que um rapaz na idade
em que me encontrava podia conservar. Conservava mesmo
mais, pois porque hei-de eu disfarçar aqui o meu pensamento ?
A minha infância não foi a de uma criança ; senti, pensei sem­
pre como um homem. Foi só quando cresci que entrei n a classe
ordinária ; ao nascer, tinha dela saído. Rir-se-ão de me verem
modestamente apresentar-me como um prodígio. Pois sim : mas
quando se fartarem de rir, achem uma criança que, aos seis
anos, se prenda, interesse e entusiasme por romances a ponto
de se desfazer em lágrimas com eles ; então, sentirei a minha
vâidade ridícula, e convirei que ando mal.
Assim, quando disse que se não devia falar de religião às
crianças, se se queria que elas um dia a tivessem, e que estas
eram incapazes de conhecer Deus, mesmo à nossa maneira,
extrai este sentimento das minhas observações, não da minha
própria experiência: sabia que dela nada podia concluir para
os outros. Encontrai J. J. Rousseau de seis anos, falai-lhe de
Deus aos sete, e eu vos respondo que nenhum risco correis.
Percebe-se, creio eu, que, para uma criança, e mesmo para um
homem, ter religião é seguir aquela em que nasceu. As vezes,
tira-se-lha ; raramente a acrescentam ; a fé dogmática é um
fruto da educação. Além deste princípio comum que me ligava
ao culto de meus pais, tinha a aversão particular à nossa cidade
pelo catolicismo, que nos inculcavam como uma horrível idola­
tria, e cujo clero nos pintavam com as cores mais sombrias.
Tal sentimento ia em mim tão longe que, de começo, nunca
entrevia o interior de uma igreja, nunca ouvia o badalo de uma
procissão sem um frémito de terror e de medo, que nas cidades
depressa me abandonou, mas que frequentemente reapareceu,
ao achar-me em qualquer freguesia do c ampo, mais parecida
com aquela onde primeiramente o tinha sentido. lí1 verdade que
esta impressão recebia um singular contraste da recordação dos
afagos que os padres dos arredores de Genebra fazem de bom
grado às crianças da cidade. Enquanto a campainha do viático

69
me aterrorizava, a sineta da missa ou de vésperas trazia-me à
lembrança um almoço, uma merenda, manteiga fresca, frutos,
leite e queijo. O esplêndido jantar de Monsieur de Pontverre
também me havia produzido um grande efeito. Desta maneira,
tinha-me fàcilmente atordoado com tudo isso. Encarando o
papismo apenas pelo lado das suas relações com os folguedos
e a gulodice, tinha-me deixado captar sem dificuldade pela
ideia de nele viver ; mas a de ai entrar solenemente só se me
havia apresentado de fugida, e num futuro longínquo. Neste
momento, j á não houve meio de iludir-me : vi com o mais
vivo horror a espécie de compromisso que tinha tomado e as
suas consequências inevitáveis. Os futuros neófitos que 'via
à minha volta não eram de molde a sustentar a minha coragem
com o exemplo, e não pude esconder para mim mesmo que a
santa obra que ia praticar não era, uo fundo, senão a acção
de um bandido. Ainda que j ovem, senti que, qualquer que fosse
a verdadeira religião, ia vender a minha, e que, ainda que
escolhesse bem, ia no fundo do meu coração mentir ao Espírito
S anto e merecer o desprezo dos homens. Quanto mais nisto
pensava, mais me indignava contra mim mesmo ; e lastimava
o destino que ali me tinha trazido, como se tal destino não
fosse a minha própria obra. !Momentos houve em que estas
reflexões se tornaram tão fortes que, se tivesse encontrado um
instante a porta aberta, ter-me-ia certamente evadido ; tal
coisa não foi, porem, possível, e esta resolução também se não
manteve muito firme.
Combatiam-na demasiados desejos íntimos para a não leva­
rem de vencida. Aliás, a obstinação na intenção formada de não
voltar a Genebra, a vergonha, a própria dificuldade de tornar
a passar os montes, o enleio de me ver longe d a minha casa,
sem amigos, sem recursos : tudo isto concorria para me fazer
encarar como um arrependimento tardio os remorsos da minha
consciência ; fingia censurar o que tinha feito, para desculpar
o que ia fazer. Agravando os erros do passado, olhava o futuro
como uma consequência necessária deles. Não dizia para comigo :
nada se encontra ainda feito, e podes achar-te ilibado se quise­
res ; dizia antes : queixa-te do crime de que te tornaste culpado
e que te vês na necessidade de terminar.
Com efeito, que rara força de alma não seria precisa na
minha idade para anular tudo o que até então eu pudera pro­
meter ou dera a esperar, para quebrar as algemas com que eu
próprio me houvera encadeado, para declarar intrêpidamente
qu e queria permanecer na religião de meus pais, com risco de

70
tudo o que pudesse vir a acontecer! Este vigor não era da
minha idade, e é pouco provável que viesse a dar algum resul­
tado. As coisas tinham ido longe de mais para quererem que
elas sofressem um desmentido, e quanto maior fosse a minha
resistência tanto mais considerariam como uma lei o vencê-la
de qualquer maneira. o sofisma que me perdeu foi o da maioria
dos homens que se queixam de falta de força, quando já é
muito tarde para usarem dela. A. virtude só nos é difícil por
nossa própria culpa, e se sempre quiséssemos ser avisados, rara­
mente teríamos necessidade de ser virtuosos. Inclinações fáceis
de dominar arrastam-nos, contudo, sem resistência; cedemos a
tentações insignificantes, cujo perigo desprezamos. Insensivel­
mente, caímos em situações comprometedoras, de que fàcil­
mente nos houvéramos podido precaver, mas donde não podemos
mais sair sem heróicos esforços que nos aterram, e caímos por
fim no abismo, dizendo a !Deus: porque me fizeste tão fraco?
A nosso pesar, Ele responde porem às nossas consciências:
fiz-te demasiado fraco para saíres da voragem, porque te fiz
bastante forte para nela não caíres.
Não tomei precisamente a resolução de me fazer católico;
contudo, vendo o prazo ainda longe, dei tempo ao tempo para
me familiarizar com tal ideia; e, entrementes, ia imaginando
um acontecimento qualquer imprevisto que me viesse tirar de
apuros. Para ganhar tempo, resolvi opor a mais bela resistência
que me fosse possível. Em breve a minha vaidade me dispensou
de pensar na resolução tomada, e logo que me apercebi de que
atrapalhava por vezes aqueles que queriam instruir-me, nada
mais me foi preciso para procurar aterrorizá-los completamente.
Empreguei mesmo em semelhante empreendimento um desvelo
bem ridículo; pois que, enquanto eles me convertiam a mim,
quis eu convertê-los a eles. Acreditava ingênuamente que bas­
tava convenc1ê-los para levá-los a fazerem-se protestantes.
Não encontraram pois em mim precisamente tanta faci­
lidade como esperavam, nem do lado das luzes, nem do lado
da vontade. Geralmente, os protestantes são mais instruídos
do que os católicos. Deve sê-lo assim: a doutrina de uns exige
a discussão, a dos outros a submissãó�·O católico deve adoptar
a solução que lhe fornecem; o protestante deve aprender a
decidir. Sabiam-no; mas não esperavam nem do meu estado,
nem da minha idade, grandes dificuldades para pessoas experi­
mentadas. Aliás, eu ainda não tinha feito a primeira comunhão,
nem recebido a instrução que lhe diz respeito: sabiam-no
outrossim, mas não sabiam que em contrapartida eu havia sido

'71
muito bem. instruido em casa de !Monsieur Lambercier, e que,
além disso, tinha por meu lado um pequeno arsenal bastante
incómodo para estes senhores na História da Igreja e do Impé­
rio, que quase havia decorado em casa de meu pai e depois
quase esquecido, mas que me voltava à memória à medida que
a disputa se inflamava.
Um velho padre, baixinho, mas muito respeitável, fez-nos a
primeira conferência em comum. Para os meus camaradas, tal
conferência era mais um catecismo do que uma controvérsia,
e dava-lhe mais que fazer instrui-los do que resolver as suas
objecções. O mesmo não sucedeu comigo. Quando chegou a
minha vez, fi-lo parar em tudo; não lhe poupei uma só das
dificuldades que podia levantar-lhe, o que tornou a conferência
muito longa e muito aborrecida para os assistentes. O meu
velho padre falava muito, animava-se , disparatava, e esquiva­
va-se às dificuldades dizendo que não compreendia bem o fran­
cês. No dia seguinte, com receio de que as minhas indiscretas
objecções escandalizassem os meus camaradas, puseram-me
num quarto à parte com outro padre, mais novo, bem-falante,
isto é, fazedor de grandes frases, e satisfeito da sua pessoa
como j amais doutor algum. Não me deixei porém subjugar
por ai além com o seu ar imponente, e, sentindo que, no fim
de contas, cumpria a minha tarefa, pus-me a responder-lhe
com bastante segurança e a batê-lo aqui e ali o melhor que
podia. Ele j ulgava esmagar-me com Santo Agostinho, São Gre­
gório e os restantes Padres, e, com inacreditável surpresa,
achava que eu manejava todos esses Padres quase tão fàcil­
mente como ele ; não é que eu os tivesse alguma vez lido, nem
talvez ele; mas tinha de memória muitos passos tirados do meu
Le Sueur ; e logo que ele me citava um, sem discutir a citação,
eu rispostava-lhe com outro do mesmo Padre, o que frequen­
temente bastante o embaraçava. Por fim, todavia, acabava por
vencer, por duas razões : uma, porque era mais forte, e porque
eu, sentindo-me por assim dizer à mercê dele, achava por bem,
por muito novo que fosse, que não devia exasperá-lo; porque eu
via muito bem que o velho padre pequenino não tinha gostado
muito nem da minha erudição nem de mim. A outra razão resi­
dia em que o mais novo tinha estudos, e eu não ; o que fazia
com que pusesse na sua maneira de argumentar um método que
eu não podia seguir, e que, assim que se sentia acossado por
uma objecção imprevista, transferia-a para o dia seguinte, ale­
gando que eu saia do assunto em questão. Algumas vezes repelia
mesmo todas as minhas citações, sustentando que eram falsas

72
e, oferecendo-se para me ir buscar o livro, desafiava-me a que
as encontrasse nele. Sentia que não arriscava grande coisa, e
que, com toda a minha erudição de empréstimo, tinha pouca
prática de manej ar os livros e era muito pouco latinista p ara
poder encontrar qualquer p asso num grande volume, mesmo que
tivesse a certeza de que tal passo lá se encontrava. Suspeito
mesmo que se serviu da deslealdade de que acusava os pastores
protestantes, e fabricou por vezes passos para se livrar de uma
obj ecção que o incomodava.
Enquanto estas pequenas chicanas prosseguiam, e os dias
se passavam a discutir, a murmurar orações e a fazer de biltre,
aconteceu-me uma pequena aventura bastante desagradável e
repugnante, a qual esteve mesmo a ponto de acabar mal para
mim.
Não existe alma alguma tão baixa, coração algum tão bár­
baro que não seja susceptível de qualquer espécie de dedicação.
Um dos dois bandidos que se diziam mouros tomou-se de afeição
por mim. Abordava-me de bom grado, conversava comigo na sua
algaravia despej ada, prestava-me pequenos serviços, ofere­
cia-me por vezes parte do seu quinhão à mesa, e, sobretudo,
dava-me frequentes beijos com um ardor que me incomodava
bastante. Por muito medo que naturalmente me causasse aquela
cara de pão de espécies enfeitada com um grande gilvaz, e o
brilho daquele olhar, que mais do que terno parecia furioso,
suportava tais beijos, dizendo para comigo mesmo : O pobre
homem concebeu por mim uma forte amizade; faria mal em
desgostá-lo. Passava gradualmente a maneiras mais livres, e
fazia-me propostas tão singulares que eu o j ulgava transtornado
da cabeça. Uma noite, quis deitar-se comigo ; opus-me, dizendo
que a minha cama era muito pequena. Insistiu para· que viesse
para a dele; recusei de novo, porque o desgraçado achava-se
tão sujo e tresandava tanto a tabaco mastigado que me causava
vómitos.
No dia seguinte, muito cedo, achávamo-nos os dois sós n a
sala d e reunião : ele recomeçou com as suas caricias, m a s com
movimentos tão violentos que metiam medo. Por fim, quis passar
gradualmente às mais porcas intimidades e forçar-me, dispondo
da minha mão, a fazer o mesmo. Desprendi-me impetuosamente,
soltando um grito e dando um salto para trás, e, sem mostrar
indignação nem cólera, pois que não tinha a menor ideia do
que se tratava, exprimi a minha surpresa e o meu nojo com
tanta energia, que ele me largou : quando porém acabou de se
menear, vi partir em direcção à chaminé não sei quê de viscoso

73
e esbranquiçado, que me deu náuseas. Precipitei-me para a
varanda, mais impressionado, mais perturbado, mais aterrori­
zado mesmo do que ainda o havia estado em vida minha, e
prestes a sentir-me mal.
Não podia compreender o que o desgraçado tinha; julguei-o
atacado de epilepsia, ou de qualquer outro delirio ainda mais
terrível, e verdadeiramente nada conheço mais hediondo para
uma pessoa ver a sangue-frio do que aquela atitude obscena e
porca, aquele rosto horrivelmente inflamado pela mais brutal
concupiscência. Nunca vi nenhum outro homem em semelhante
estado; mas se nos nossos transportes junto das mulheres
somos assim, forçoso é que elas tenham os olhos inteiramente
fascinados para nos não ganharem horror.
Nada achei mais expedito do que ir contar a toda a
gente o que acabava de me suceder. A nossa velha superiora
disse-me que me calasse, mas eu reparei que a história a tinha
impressionado bastante, e ouvi-a resmungar entre dentes: Can
maledet! brutta bestial1 Como não compreendia porque devia

calar-me, continuei na minha, apesar da proibição, e dei de


tal maneira à língua que, no dia seguinte, de manhãzinha, apa­
rece um dos administradores que me deu uma grandíssima des­
compostura, acusando-me de fazer muito barulho por tão pouca
coisa e de comprometer a honra de uma casa sagrada.
,Prosseguiu na reprimenda, expUcando-me muitas coisas que
eu ignorava, mas que ele supunha não me ensinar, persuadido
de que me havia defendido sabendo o que queriam de mim, mas
não o tendo consentido. Disse-me gravemente que era uma
coisa proibida, assim como a luxúria, mas cuja intenção, aliás,
não era nada ofensiva para a pessoa que dela tivesse sido
objecto, e que não havia de que irritar-me por me terem achado
bonito. Disse-me sem rodeios que, quando era rapaz, ele próprio
tinha tido a mesma honra, e que, tendo sido surpreendido em
estado de não poder resistir, não tinha achado a coisa tão cruel.
Levou a impudência até ao ponto de se servir dos termos pre­
cisos, e, imaginando que o motivo da minha resistência tinha
sido o receio da dor, assegurou-me que tal receio era vão, e que
não havia nada de que me alarmar.
Eu escutava o infame, ·tanto mais surpreso, quanto era
certo ele não falar pÔr si mesmo; parecia que Só para meu bem
me esclarecia. o seu discurso parecia-lhe tão simples que nem

1 Tradução: Oão maldito! grande besta! - N. do T.

74
sequer tinha procurado o segredo de uma conversa particular;
connosco havia um terceiro eclesiástico, que se espavoria disto
tudo tanto como o outro. Este ar natural convenceu-me de tal
maneira, que acabei por acreditar que se tratava, sem dúvida,
de um costume admitido na sociedade, e de que ainda não tivera
tido ocasião de ser instruído ; do que resultou que o escutava
sem cólera, mas não sem repugnância. A imagem do que me
tinha sucedido, mas sobretudo do que tinha visto, gravou-se-me
de tal maneira na memória, que ao pensar no caso ainda sinto
náuseas. Sem a aumentar, a aversão por semelhante coisa esten­
deu-se ao seu apologista, e não pude conter-me o bastante para
que ele não visse o péssimo efeito das suas lições. Lançou-me
um olhar pouco terno, e desde então nada poupou para me
tornar desagradável a permanência no hospício. Conseguiu- o
tão b e m que, não vendo e u senão uma maneira d e sair dali,
dei-me tanta pressa em apr,oveitá-la quanto até então m e
havia esforçado por afastá-la.
A aventura pôs-me para o futuro a coberto dos cometi­
mentos dos pederastas, e a simples vista das pessoas que passa­
vam por sê-lo, recordando-me o aspecto e os gestos do meu
horrendo !Mouro, inspirou-me sempre tanta repulsa, que difi­
cilmente a podia esconder.. As mulheres, pelo contrário, ganha­
ram muito no meu espírito por virtude de semelhante compa­
ração : parecia-me que lhes devia em ternura de sentimentos,
em homênagens da minha pessoa, a reparação das ofensas do
meu sexo, e a macaca mais feia tornava-se a meus olhos um
objecto adorável, graças à recordação do tal falso africano.
Quanto a este, não sei o que lhe teriam dito; não me pare­
ceu que, à excepção de Dona Lorenza, alguém o visse com piores
olhos do que dantes. Contudo, nunca mais me abordou nem
falou. Oito dias depois, foi baptizado com grande cerimonial,
vestido de branco da cabeça aos pés, para figurar a candura
da sua alma regenerada. No dia seguinte, saiu do hospício, e
nunca mais o vi.
Um mês depois a minha vez chegou ; porque tinha sido
necessário todo este tempo para dar aos meus directores a honra
de uma conversão difícil, obrigando-me a fazer uma revisão
de todos os dogmas para triunfar da minha nova docilidade.
Enfim, suficientemente instruido e suficientemente prepa­
rado a contento dos meus mestres, levaram-me processional­
mente à igrej a metropolitana de S. João, para que ai fizesse a
abjuração solene, e recebesse os acessórios do baptismo, se bem
que não me baptizassem realmente: mas como é pouco mais

75
ou menos a mesma cerimónia, serve isso para persuadir o público
de que os protestantes não são cristãos. Achava-me revestido
de uma sorte de túnica cinzenta, ornada de passamanaria
branca, destinada a semelhantes ocasiões. A frente e atrás de
mim, dois homens levavam uma bacias de cobre, nas quais
batiam com uma chave, e onde cada qual depositava a sua
esmola, segundo a sua devoção ou o interesse que tinha pelo
recém-convertido. Nada, enfim, do fausto católico foi omitido
para tornar a solenidade mais edificante para o. público, e mais
humilhante para mim. Só o traj o branco, que me teria sido
muito útil, mo não deram, como ao Mouro, visto eu não ter a
honra de ser Judeu.
Isto não foi tudo. Houve que ir em seguida à Inquisição
receber a absolvição pelo crime de heresia, e reentrar no seio
da Igrej a com a mesma cerimónia a que Henrique IV foi subme­
tido pelo seu embaixador. O aspecto e as maneiras do muito
Reverendo Padre inquisidor não eram de molde a dissipar o
terror intimo que se tinha apoderado de mim ao entrar naquela
casa. Depois de várias perguntas acerca da minha fé, do meu
estado, da minha familia, perguntou-me bruscamente se minha
mãe se achava precita. O terror fez-me reprimir o primeiro
movimento de indignação ; contentei-me em responder-lhe que
esperava bem que não, e que, na sua hora derradeira, Deus a
houvesse alumiado. O frade calou-se, más fez uma careta que
de maneira nenhuma me pareceu um indicio de aprovação.
Feito tudo isto, no momento em que pensava ser enfim
colocado de acordo com as minhas esperanças, puseram-me n a
rua c o m pouco mais d e vinte francos e m moedas que tinha
rendido a minha colecta. Recomendaram-me que vivesse como
bom cristão, que fosse fiel à graça, desejaram-me boa sorte,
fecharam-me a porta nas costas, e tudo desapareceu.
Desta sorte se eclipsaram num instante todas as minhas
esperanças, e da tentativa interessada que acabava de fazer,
só me restava a recordação de haver sido ao mesmo tempo
apóstata e burlado. É fácil conceber a brusca revolução que
se devia operar nas minhas ideias, quando dos brilhantes pro­
jectos de fortun a que fizera me vi cair na mais completa miséria,
e que depois de pela manhã haver deliberado sobre a escolha do
palácio que la habitar, me vi à noite reduzido a ter de dormir
na rua. Hão-de j ulgar que comecei por me entregar a um
desprezo tanto mais cruel quanto devia irritar-se o remorso
das minhas faltas, exprobrando-me por toda a minha desdita
ser a minha própria obra. Nada disso. Pela primeira vez; na

76
vida, acabava de estar fechado durante mais de dois meses;
o primeiro sentimento que gozei foi o da liberdade reconquistada.
Novamente senhor de mim mesmo, e -tas minhas acções,
depois de longa escravidão, via-me no meio de uma grande
cidade farta de recursos, cheia de pessoas de condição, pelas
quais não podia deixar de ser acolhido, graças aos meus talentos
e ao meu mérito, logo que estes me tornassem conhecido. Além
disso, tinha todo o tempo para esperar, e os vinte francos que
guardava na algibeira pareciam-me um tesouro inesgotável.
Podia dispor dele à minha vontade, sem dar contas a ninguém.
Era a primeira vez que me via tão rico. Longe de desanimar
e de me pôr a chorar, o que fiz foi mudar de esperanças, e o
amor-próprio nada perdeu com isso. Nunca me senti tão con­
fiante e seguro; julgava já a minha fortuna feita, e achava
belo dever poder agradecê-la apenas a mim próprio.
A primeira coisa que fiz foi satisfazer a minha curiosidade,
percorrendo a cidade, quando mais não fosse para pôr a minha
liberdade em acto. Fui ver render a guarda; os instrumentos
militares agradavam-me bastante. Segui as procissões; gostava
do fabordão dos padres; fui ver o palácio do rei; aproximei-me
dele com receio; vendo, porém, outras pessoas entrar, imitei-as;
consentiram-mo. Devi talvez esta graça ao embrulhinho que
trazia debaixo do br.aço. Como quer que seja, tive-me em
grande conta ao achar-me em tal palácio; já quase me conside­
rava um seu habitante. Por fim, à força de andar para trás
e para diante, cansei-me; tinha fome e fazia calor: entrei numa
leitaria: serviram-me giunca, leite coalhado, e, com dois gricinos
daquele excelente pão fabricado no Piemonte e do qual gosto
mais do que de nenhum outro, arranjei por cinco ou seis soldos
um dos bons jantares de toda a minha vida.
Tornava-se necessário procurar pousada; como já sabia
piemontês o bastante para me fazer entender, não me foi dificil
encontrá-la, e tive a prudência de escolhê-la mais de acordo
com a minha bolsa do que com os meus gostos. Indicaram-me
na Rua do Pó a mulher de um soldado que, à razão de um soldo
por noite, albergava os criados que tinham licença de serviço.
Achei em sua casa um grabato vago, e nele me instalei. Era
nova e casada de há pouco, se bem que já tivesse cinco ou
seis filhos. Dormimos todos no mesmo quarto, mãe, filhos e
hóspedes; e a coisa continuou assim enquanto permaneci em
casa dela. Era, de resto, uma excelente mulher, praguejando
como um carroceiro, sempre descomposta e despenteada, mas

77
com bom coração, prestável, que se me afeiçoou, e que me foi
mesmo útil.
Passei vários dias entregue unicamente ao prazer da inde­
pendência e da curiosidade. Errei fora e dentro da cidade, esqua­
drinhando, visitando tudo o que me parecia curioso e novo;
e tudo o era, para um rapaz que acabava de sair do buraco
e que nunca tinha visto uma capital. Era sobretudo pontual
como cortesão, e todas as manhãs assistia à missa do rei.
Achava bonito ver-me na mesma capela com o príncipe e o
seu séquito: mas a minha paixão pela música, que começava
a declarar-se, contribuía mais para a minha assiduidade do que
a pompa da corte, a qual, uma vez vista e repetida, não interessa
muito tempo. O rei da Sardenha possuía então a melhor sin­
fonia da Europa. Somis, Desjardins, os Besozzi I, brilhavam nela
alternadamente. Nada mais era preciso para atrair um rapaz
que se ·entusiasmava com a execução do mais insignificante ins­
trumento, logo que fosse afinado. Aliás, só tinha para a magni­
ficência que me impressionava a vista uma admiração estúpida
e sem cobiça. A única coisa que me interessava no brilho da
corte era ver se lá não haveria qualquer jovem princesa mere­
cedora das minhas homenagens, e com quem pudesse compor
um romance. Estive a pique de começar um, num estado menos
brilhante, mas no qual, a havê-lo levado a cabo, teria encon­
trado prazeres mil vezes mais deliciosos.
Posto vivesse com grande economia, a minha bolsa esva­
zJava-se insensivelmente. Tal economia resultava, aliás, menos
da prudência, que de uma simplicidade de gosto que mesmo
ainda hoje a frequentação de grandes mesas não alterou.
Não conhecia e não conheço ainda melhor alimento que uma
refeição rustica. Pode-se ter sempre a certeza de que me regalam
perfeitamente com leite, ovos, ervas, queijo, pão de rolão e
vinho razoável; o meu bom apetite fará o resto quando à minha
volta não houver um chefe de mesa e criados a enfartarem-me
com o seu importuno aspecto. Obtinha, então, muito melhores
refeições, gastando seis ou sete soldos, do que depois, com seis
ou sete francos. Era pois sóbrio, à míngua de não ser tentado
a deixar de o ser: mesmo assim, •ando mal em chamar a tudo
isto sobriedade, visto que o fazia com toda a sensualidade possí­
vel. As minhas peras, a minha giunca, o meu queijo, os meus
gricinos, e alguns copos de carrascão de Montferrat, que se
podia cortar à faca, faziam-me o mais feliz dos lambareiros.

1 Besuzzi no original. - N. do T.

78
Apesar de tudo, o fim das vinte libras ia..;se vendo. Era do que
de dia para dia me ia apercebendo mais sensivelmente, e apesar
da leviandade da minha idade, a minha inquietação a respeito
do futuro em breve desandou em terror. De todos os meus caste­
los no ar, só me restava o de encontrar uma ocupação que me
permitisse viver, e isso mesmo não era de fácil realização.
Pensei no meu antigo oficio; não o conhecia porém suficiente­
mente para ir trabalhar para casa de um patrão, e os patrões
nem sequer abundavam em Turim.
Na expectativa de melhor, tomei pois a resolução de ir de loja
em loja oferec,er-me para gravar um monograma ou umas armas
em qualquer baixela, esperando tentar as pessoas pela modici­
dade dos preços, e pondo-me à sua disposição. O expediente
não foi muito feliz. iEm quase toda a parte se desembaraçaram
de mim, e o que encontrei que fazer era tão pouco que mal
chegava para uma que outra refeição. ·Um dia, contudo, pas­
sando cedinho pela Contrà Nova, vi por detrás dos vidros de
um balcão uma jovem lojista que aparentava tão boa vontade,
e com um aspecto tão atraente que, apesar da minha timidez
para com as mulheres, não hesitei em entrar, e oferecer-lhe
o meu pobre talento. Ela não me repeliu, mandou-me sentar,
contar a minha pequena história, lamentou-me, disse-me que
tivesse coragem, e que os bons cristãos não me abandonariam;
em seguida, enquanto mandava buscar, a casa de um ourives
vizinho, as ferramentas que eu dissera serem-me necessárias,
subiu à cozinha, e ela própria me trouxe com que almoçar. Este
preludio pareceu-me de bom agouro; o prosseguimento não o
desmentiu. :Pareceu-me satisfeita com o meu trabalhito, e ainda
mais com a minha tagarelice, quando me achei um pouco mais
sossegado; porque ela era sedutora e vistosa, e, apesar do
aspecto gracioso, o seu esplendor atemorizou-me. Contudo, o
seu acolhimento bondoso, as suas falas condoídas, os seus modos
doces e carinhosos em breve me puseram à vontade. Vi que
me saia bem, o que me fez apurar ainda mais. Posto que ita­
liana, e por de mais bonita para não ser um pouco coquette,
era todavia tão recatada, e eu tão tímido, que dificil era que
a coisa chegasse muito depressa ao ponto. Não nos deram
tempo para acabar a aventura. Lembram-me com redobrado
encanto os curtos momentos que passei junto dela, e posso dizer
terem-me eles deleitado com os mais doces e os mais puros
prazeres do amor nas suas primicias.
Era uma trigueira extremamente viva, mas cujo bom natu­
ral estampado no lindo rosto lhe tornava a vivacidade enterne-

79
cedora. Chamava-se lMadame Basile. O marido, mais velho do
que ela e razoàvelmente ciumento, confiava-a, durante as suas
viagens, à guarda de um caixeiro bastantemente desagradável
para ser sedutor, e que não deixava de por sua conta ter certas
pretensões, as quais não mostrava senão através do seu mau
humor. Ganhou-o a valer contra mim, se bem que eu gostasse
de o ouvir tocar flauta, porque a tocava muito bem. Este novo
Egisto resmungava sempre que me via entrar nos aposentos
da sua dama: tratava-me com um desprezo que ela lhe retri­
buía em conformidade. Parecia até que, para o atormentar,
Madame B!lsile se comprazia em acarinhar-me na sua presença,
e semelhante espécie de vingaraça, ainda que me agradasse
a valer, agradar-me-ia muito mais se fosse apenas entre nós.
Ela, porém, não a levava até ai, ou pelo menos não a levava
da mesma maneira. Quer porque me achasse muito novo, quer
porque não soubesse tomar a iniciativa, quer ainda porque qui­
sesse sêriamente mostrar-se discreta, tinha então uma espécie
de reserva que não repelia, mas que me intimidava sem que eu
soubesse porquê. Se não sentia por ela aquele respeito tão
verdadeiro como afectuoso que tinha por Madame de Warens,
sentia mais temor e muito menos familiaridade. Estava confuso,
trémulo; não ousava olhá-la, não ousava respirar junto dela;
e, no entanto, temia afastar-me dela, mais do que da morte.
Deitava olhares ávidos a tudo o que podia aperceber sem ser
descoberto: as flores do seu vestido, a ponta do seu lindo pé,
um bocado de braço rijo e branco que aparecia entre a luva
e a manga, assim como o que se lhe formava entre a gargan­
tilha e o lenço. Cada objecto aumentava a impressão dos outros.
A força de olhar o que podia ver, e até para lá do que podia
ver, os olhos turvavam-se-me, o peito oprimia-se-me, custa­
va-me imenso a dominar a respiração, a cada momento mais
alterada, e tudo quanto podia fazer era soltar sem ruído uns
suspiros bastante importunos no silêncio em que muitas vezes
nos achávamos. Felizmente que, ao que me parecia, :Madame
Basile, ocupada no seu trabalho, não dava por eles. No entanto,
reparava algumas vezes que, por uma espécie de simpatia, o
mantelete se lhe enfunava frequentemente. Este perigoso espec­
táculo acabava a minha perdição, e quando estava prestes a
ceder ao entusiasmo, ela dirigia-me uma palavra qualquer em
tom calmo, que imediatamente me fazia cair em mim.
Vi-a desta maneira muitas vezes só, sem que jamais uma.
palavra, um gesto, um olhar sequer demasiado expressivo,
acusasse o menor entendimento entre nós. No entanto, seme-

80
lhante estado, assaz atormentador para mim, fazia as minhas
delicias, e, na simplicidade do meu coração, mal podia ima­
ginar porque é que estava tão atormentiado. Parecia que estes
curtos colóquios também lhe não desagradavam, pelo menos
procurava para eles ocasiões bastante frequentes ; atenção cer­
tamente bem gratuita da sua parte, em vista do proveito que
delas tirava ou que me deixava a mim tirar.
Como certo dia, aborrecida com as tolas conversas do empre­
gado, subisse ao seu quarto, eu, na casa interior onde me
encontrava, dei-me pressa em acabar o meu trabalhito e segui-a.
A porta do quarto estava entreaberta; entrei sem ser notado.
Ela estava bordando ao pé de uma janela, tendo em frente a
parte do quarto oposta à entrada. Não podia ver-me entrar,
nem ouvir-me, por causa do barulho das carroças na rua.
Arranj ava-se sempre bem : nesse dia o seu prep aro chegava ao
coquetismo. A sua atitude era graciosa, a cabeça um pouco
baixa deixava ver a alvura do pescoço; os cabelos, alteados
com elegância, achavam-se enfeitados com flores. !Reinava em
toda a sua pessoa uma sedução que tive tempo de considerar,
e que me pôs fora de mim. Cai de joelhos à entrada do quarto,
certissimo de que ela me não podia ouvir, e sem pensar que
me pudesse ver: havia, porém, na chaminé um espelho que
me traiu. Não sei o efeito que semelhante êxtase lhe fez ; não
olhou para mim, não me disse nada; contudo, voltando um
pouco a cabeça, indicou-me a esteira a seus pés com um simples
movimento do dedo. Estremecer, soltar um grito, precipitar-me
para o lugar que ela me tinha indicado, foi para mim uma e a
mesma coisa : mas no que dificilmente se acreditaria é que em
tal estado a nada mais me afoitei ; não ousei dizer uma só
palavra, nem erguer os olhos para ela, nem tocá-la sequer,
conservando-me numa posição bastante forçada para me encos­
tar por um momento aos seus joelhos. Permaneci mudo, imóvel :
mas não tranquilo, certamente; tudo em mim denotava a agi­
tação, a alegria, o reconhecimento, os ardentes desejos incertos
do seu objecto e contidos pelo receio de desagradar, que fazia
com que o meu coração não pudesse serenar.
Ela não parecia nem mais calma nem menos timida do
que eu. Perturbada por me ver ali, interdita por m e haver
atraido, e começando a entrever todas as consequências de um
sinal partido sem dúvida antes de reflectir, não me agasalhava
nem me repelia, não tirava os olhos da costura, tratava de
proceder como se não me visse a seus pés : toda a minha estu­
pidez não me impedia, porém, de perceber que ela partilhava

6 81
o meu enleio, quiçá os meus desejos, e que um pudor seme­
lhante ao meu a continha, sem que dai me viesse força para
o vencer. Os cinco ou seis anos a mais do que eu que ela tinha
deviam, em meu entender, deixar à sua conta toda a intrepidez,
e eu dizia para comigo que, pois que ela nada fazia para excitar
a minha, era porque não queria que eu usasse dela. Mesmo
ainda hoje acho que pensava bem, e ela certamente possuía
suficiente espírito para ver que um noviço como eu tinha neces­
sidade não só de ser encorajado, como de ser instruido. Não
sei como teria acabado esta cena viva e muda, nem por quanto
tempo teria ficado imóvel naquela posição ridícula e deliciosa,
se não nos tivessem interrompido. No auge da minha agitação,
ouço abrir a porta da cozinha que ficava ao lado do quarto
onde nos encontrávamos, e LMadame Basile, alarmada, disse-me
vivamente com a voz e com o gesto: :Levante-se, vem ai Rosina.
Levantando-me à pressa, agarrei a mão que me estendia, e
depus nela dois ardentes beijos, ao segundo dos quais senti
essa encantadora mão premer-se um pouco contra os meus
lábios. Nunca na vida tive um momento tão doce: mas a
ocasião que perdi não voltou mais, e os nossos jovens amores
ficaram por ali.
li: talvez por isso mesmo que a imagem dessa gentil mulher
ficou gravada no fundo do meu coração em traços tão fasci­
nantes. Embelezou-se mesmo nele à maneira que fui conhecendo
melhor o mundo e as mulheres. !Por pouca experiência que ti­
vesse, teria procedido de outra forma para animar um rapazinho:
mas se o seu coração era fraco, era contudo honesto; cedia invo­
luntàriamente à inclinação que a arrastava: era, segundo todas
as aparências, a sua primeira infidelidade, e. dar-me-ia certa­
mente mais trabalho vencer o seu pejo do que o meu. Sem che­
gar a tal, gozei junto dela doçuras inexprimíveis. Nada de
quanto me fez sentir a posse das mulheres vale os dois minutos
que passei a seus pés, sem sequer ousar tocar-lhe no vestido.
Não, não há prazeres semelhantes aos que nos pode dar uma
mulher honesta a quem amamos; junto dela tudo é um favor.
Um pequeno sinal com o dedo, uma mão levemente premida
contra a minha boca, são os únicos favores que recebi de
Madame Basile, e a recordação desses favores tão correntes
transporta-me ainda quando neles penso.
Nos dois dias seguintes bem fiz por espreitar um novo
encontro; foi-me impossível achar ocasião para tal, e da parte
cela não vislumbrei diligência alguma em proporcioná-lo. A sua
atitude tornou-se mesmo, não direi mais fria, mas mais reser-

82
vada do que de costume, e creio que evitava os meus olhares,
com medo de não poder dominar convenientemente os seus.
O maldito do caixeiro fez-se mais insuportável do que nunca :
tornou-se mesmo escarninho, trocista ; disse-me que e u teria
sorte com as mulheres. Tremia de haver cometido qualquer
indiscrição, e, considerando-me já em entendimento com ela,
queria velar de mistério um prazer que até então não tinha disso
grande necessidade ; o que me tornou mais circunspecto no
buscar ocasiões para satisfazê-lo, e à força de as querer seguras,
não as topei nunca mais.
Eis ainda outra loucura romanesca de que nunca mais me
pude curar, e que, aliada à minha timidez natural, desmentiu
bem os vaticínios do caixeiro. Amava demasiado sinceramente,
demasiado perfeitamente, ouso dizê-lo, para fàcilmente poder
ser feliz. Nunca houve paixões ao mesmo tempa mais vivas e
mais puras do que as minhas, nunca houve amor mais terno,
mais verdadeiro, mais desinteressado. Mil vezes teria sacrifi­
cado a minha felicidade à da pessoa que amava ; a sua repu­
tação era-me mais cara do que a minha vida, e nunca eu teria
querido comprometer um momento do seu descanso contra todos
os prazeres da voluptuosidade. Isto levou-me a ter tantos cuida­
dos, tanta discrição, tanta precaução nos meus empreendi­
mentos, que nunca fui bem sucedido em nenhum. o meu fraco
êxito j unto das mulheres veio sempre de as ,amar de mais.
Voltando ao flautista Egisto, o que era mais singular era
que à medida que se tornava mais insuportável, o pérfido parecia
tornar-se mais condescendente. Logo no primeiro dia em que
a sua dama simpatizou comigo, pensou ela em tornar-me útil
no armazém. Eu sabia razoàvelmente de aritmética ; ela havia­
-lhe proposto que me ensinasse a fazer a escrita; mas aquele
azedo aceitou mal a proposta, temendo talvez ser suplantado.
Desta maneira, todo o meu trabalho depois do buril consistia
em transcrever algumas contas e memórias, pôr um pouco a
limpo a escrita, e traduzir algumas cartas comerciais de italiano
para francês. De súbito, o homenzinho lembrou-se de falar
novamente na proposta que houvera sido feita e rejeitada, e
disse-me que me ensinaria a fazer a escrita por partidas dobra­
das ; que queria habilitar-me a oferecer os meus serviços a Mon­
sieur Basile, quando este se achasse de volta. Havia no seu
tom, no seu ar não sei quê de falso, de malicioso, de irónico,
que me não inspirava confiança. Sem esperar a minha resposta,
Madame Basile disse-lhe secamente que eu lhe ficava muito
obrigado pelo oferecimento, que esperava que a fortuna favo-

83
recesse enfim os meus méritos, e que seria uma grande pena
que com tanto espírito viesse a ser um simples caixeiro.
Madame Basile havi·a-me dito várias vezes que desejava
apresentar-me a uma pessoa que poderia ser-me útil. Pen­
sava muito atinadamente que já era tempo de me separar
dela. As nossas mudas declarações tinham-se feito na quinta­
-feira. No domingo deu ela um j antar, ao qual assisti e a
que assistiu igualmente um j acobino de boa presença, a quem
me apresentou. O frade tratou-me muito afectuosamente,
felicitou-me pela minha conversão, e referiu-me vários passos
da minha história que me deram a entender que ela lha tinha
contado pormenorizadamente ; depois, dando-me duas panca­
dinhas com as costas da mão na cara, disse-me que fosse dis­
creto, que tivesse coragem, e que o fosse visitar, para conver­
sarmos mais à vontade sozinhos. Supus, em vista das atenções
que todos lhe dispensavam, que era um homem de consideração,
e, pelo tom paternal que tomou com Madame Basile, que era
o seu confessor. Também me recordo perfeitamente de que à
sua honesta familiaridade se misturavam testemunhos de estima
e até de respeito pela sua penitente, o que então me fez menos
impressão do que hoj e. Se fosse mais inteligente, como teria
ficado comovido por haver podido sensibilizar uma mulher
nova respeitada pelo seu confessor !
A mesa não era muito grande para aquele número de pes­
soas; foi precisa outra mais pequena, onde me achei na agra­
dável vizinhança do senhor caixeiro. Não perdi nada com isso,
em matéria de atenções e de iguarias ; para a mes a pequena
eram enviadas bastantes travessas, o que certamente se não
fazia em atenção à sua pessoa.
Tudo corria muito bem até ali : as mulheres estavam extre­
mamente alegres, os homens extremamente galanteadores;
Madame Basile fazia as honras da casa com uma graça encan­
tadora. A meio do j antar, ouve-se parar uma cadeirinha à porta;
alguém sobe - Monsieur Basile. Vejo-o como se entrasse agora,
de casaca vermelha com botões de ouro, cor a que ganhei
aversão desde esse dia. !Monsieur Basile era um homem alto e
bonito, que se apresentava muito bem. Entra com estrépito, e
com ar de quem surpreende a criadagem, se bem que ali não
houvesse senão amigos seus. A mulher salta-lhe ao pescoço,
agarra-lhe as mãos, faz-lhe mil caricias, que ele recebe sem
lhas retribuir. Cumprimenta a companhia, põem-lhe um talher,
e ele come. Mal tinham começado a falar da viagem, deita
ele os olhos para a mesa pequena, e pergunta em tom severo

84
quem era aquele rapazinho. 'Madame Basile conta-lhe tudo
ingênuamente. Ele pergunta se eu habito lá em casa. Respon­
dem-lhe que não. Porque não? - replica ele grosseiramente
- visto que aqui permanece durante o dia, pode muito bem
ficar de noite. O frade tomou a palavra, e, depois do elogio
grave e verdadeiro de 'Madame Basile, fez o meu em poucas
palavras, acrescentando que, em vez de censurar a piedosa
caridade da mulher, devia apressar-se a tomar parte nela, visto
que nada havia que passasse os limites da discrição. O marido
replicou em tom mal-humorado, que disfarçava em parte, retido
pela presença do frade, mas que bastou para me fazer perceber
que estava instruido a meu respeito, e que o caixeiro me tinha
servido à sua maneira.
Mal nos Unhamos levantado da mesa, chega este em triunfo,
expedido pelo patrão, para declarar da sua parte que saisse
imediatamente daquela casa, e que nunca mais na minha vida
lá pusesse os pés. Temperou o recado com tudo o que podia
torná-lo insultuoso e cruel. Parti sem nada dizer, mas com o
coração magoado, não tanto por abandonar aquela gentil
mulher, como por deixá-la exposta à brutalidade do marido.
Este tinha certamente razão em não querer que ela lhe fosse
infiel; ela, contudo, posto que discreta e bem-nascida, era ita­
liana, quer dizer, sensível e vingativa, e ele fazia mal, segundo
me parece, em empregar com ela os meios mais próprios a
chamar sobre si a desgraça que temia.
Tal foi o resultado da minha primeira aventura. Experimen­
tei passar duas ou três vezes pela rua, para ver ao menos aquela
de quem o meu coração sentia constantes saudades; mas em
lugar dela só vi o marido e o vigilante empregado que, aper­
cebendo-me, fez-me com o côvado um gesto mais expressivo que
acolhedor. Ao ver-me tão bem espiado, perdi a coragem e não
voltei mais a passar por lá. Quis, ao menos, ir visitar o protector
que ela me havia arranjado. Infelizmente, não sabia o seu nome.
Várias vezes vagueei inutilmente à roda do convento, diligen­
ciando encontrá-lo. Por fim, outros sucessos me levaram a
recordação encantadora de Madame Basile, e em breve a esqueci
de tal maneira que, embora permanecendo tão ingénuo e tão
noviço como dantes, nem sequer era atraído pelas mulheres
bonitas.
No entanto, as liberalidades de Madame Basile haviam
restaurado um pouco o meu pequeno enxoval, muito modesta­
mente, aliás, e com as cautelas de uma mulher prudente, que
cuidava mais da decência do que dos atavios, querendo impe-

85
dir-me de sofrer e não fazer-me brilhar. A casaca, que tinha
trazido de Genebra, estava ainda boa e usável ; j untou-lhe sim­
plesmente um chapéu e alguma roupa branca. Não tinha punhos ;
ela não mos quis dar, se bem que eu os cobiçasse a valer.
Contentou-se em pôr-me em condições de me conservar limpo, e
era isso um cuidado que não se tornava necessário recomen­
dar-me, quando aparecia diante dela.
Poucos dias depois da catástrofe, a minha hospedeira, que,
como relatei, me ganhara afeição, disse-me que possivel­
mente me havia encontrado um lugar, e ,que uma dama de
condição me queria ver. A estas palavras, j ulguei-me verdadei­
ramente metido em altas aventuras : porque eu voltava sempre
ao mesmo. Esta não foi tão brilhante como havia imaginado.
Dirigi-me a casa da dita dama com o criado que lhe tinha
falado de mim. Interrogou-me, examinou-me : não lhe desa­
g;adei ; e imediatamente entrei ao seu serviço, não precisamente
na qualidade de favorito, mas na de lacaio. Vestiram-me com
as cores do seu pessoal ; a única distinção era que eles usavam
cordões, e a mim não mos deram: como as librés não tinham
galões, era como se fosse um trajo burguês. Eis o termo ines­
p erado onde vieram parar por fim todas as minhas esperanças.
A senhora condessa de Vercellis, em casa de quem entrei, era
viúva e sem filhos: o marido era piemontês ; quanto a ela,
julguei-a sempre saboiana, por não poder imaginar que uma
piemontesa falasse francês tão bem e com um acento tão puro.
Era de meia-idade, com uma figura muito nobre, o espírito
ilustrado, amando a literatura francesa e nela entendida. Escre­
via muito e sempre em francês. As suas cartas tinham a forma
e quase a graça das de Madame de Sévigné ; algumas delas
poderiam enganar-nos. A minha principal ocupação, para mim
nada desagradável, era escrevê-las, ditando-mas ela, pois as
não podia escrever por seu próprio punho, em virtude de um
cancro do peito, que muito a fazia sofrer.
!Madame de Vercellis possuía não só muito espírito, como
era uma alma sublime e forte. Assisti à sua última doenç a ;
vi-a sofrer e morrer sem nunca trair u m instante d e fraqueza,
sem fazer o menor esforço para se constranger, sem sair do
seu papel de mulher, e sem perceber que estava procedendo
com filosofia, palavra que não se achava ainda em moda, e
que nem sequer conhecia no sentido que ela hoj e tem.
Esta força de carácter ia por vezes até quase à secura.
Madame de Vercellis pareceu-me sempre tão pouco sensível
para com os outros como para consigo própria: e quando· fa.zit\

86
bem aos infelizes, era mais para praticar o bem em si, do que
por verdadeira comiseração. Experimentei algo desta insensi­
bilidade durante os três meses que passei j unto dela. Era natu­
ral que ganhasse afeição a um rapaz esperançoso, que tinha
constantemente debaixo dos olhos, e que, sentindo-se à morte,
pensasse que ele teria necessidade de socorro e de protecção
depois dela desaparecer : no entanto, quer porque me não
j ulgasse digno de particular atenção, quer porque as pessoas
que a assediavam não lhe houvessem permitido que pensasse
senão nelas, nada fez por mim.
Recordo-me muito bem, contudo, haver ela mostrado certa
curiosidade em conhecer-me. Interrogava-me por vezes: gostava
que eu lhe mostrasse as cartas que escrevia a Madame de
Warens, que a inteirasse dos meus sentimentos. Ela, porém, não
se mostrava seguramente muito hábil em conhecê-los, não me
revelando nunca os seus. O meu coração gostava de se abrir,
contanto que sentisse que o fazia noutro coração. Interrogações
frias e secas, sem nenhum indicio de aprovação ou de censura
às minhas respostas, não me inspiravam nenhuma confiança.
Quando nada me dizia se a minha tagarelice agradava ou desa­
gradavà, estava sempre com receio, e procurava mostrar menos
o que pensava do que nada dizer que pudesse prejudicar-me.
Notei depois que esta m aneira seca de interrogar as pessoas
é um tique muito frequente nas mulheres que presumem de
espirituosas. Imaginam que não deixando mostrar os seus sen­
timentos conseguem penetrar melhor os dos outros: mas não
vêem que assim procedendo tiram a coragem de os mostrar.
Um homem que é interrogado começa só por esse facto a pôr-se
em guarda, e se vem a acreditar que não tomam por ele um ver­
dadeiro interesse e o que pretendem é apenas bisbilhotar, mente
ou cala-se, ou então redobra de cuidado a seu próprio respeito,
preferindo passar por tolo a ser vitima da curiosidade dos outros.
Enfim, é sempre um mau expediente querer ler no coração dos
outros fazendo gala em esconder o nosso.
Madame de Vercellis nunca me disse uma palavra que
revelasse afeição, piedade, benevolência. Interrogava-me fria­
mente; eu respondia com reserva. As minhas respostas eram
tão tímidas que ela devia tê-Ias achado banais e aborreceu-se
com elas. Por fim, já não me interrogava, e não me falava
senão por motivos de serviço. Julgava-me menos de acordo
com o que eu era, do que de acordo com o que havia feito de
mim, e à força de não ver em mim mais do que um lacaio,
obstou a que eu me mostrasse diferentemente.

87
Creio que foi desde então que experimentei aquele jogo
maligno dos interesses ocultos em que esbarrei toda a vida
e que provocou em mim uma bem natural aversão pela ordem
aparente que os gera. Sem filhos, iMadame de Vercellis tinha
por herdeiro um sobrinho, o conde de La Roque, que lhe fazia
assiduamente a corte. Além disso, os criados principais, que a
viam aproximar-se do fim, não se faziam esquecidos, e à sua
volta havia tanta gente solicita, que difícil seria que ela tivesse
tempo para pensar em mim. A testa da casa achava-se um tal
Monsieur Lorenzy, homem atilado, cuja mulher, ainda mais
atilada, se havia de tal maneira insinuado nas boas graças da
patroa, que se achava em casa desta mais na condição de uma
amiga do que na de uma mulher a seu soldo. Tinha-lhe arran­
jado para criada de quarto uma sobrinha, chamada Mademoiselle
Pontal, uma espertalhona, que se dava ares de criada grave,
e ajudava a tia a assediar de tal maneira a patroa, que esta
só pelos olhos delas via, e só pelas suas mãos agia.
Não tive a felicidade de agradar a estas três pessoas: obe­
decia-lhes, mas não as servi a ; não concebia que, além do serviço
da patroa comum, devia ainda ser criado dos seus criados.
Aliás, eu era uma espécie de personagem inquietante para
eles. Viam bem que não era aquele o meu lugar; receavam que
Madame o visse igualmente, e que o que esta pudesse fazer para
nele me colocar viesse diminuir o seu quinhão: porque seme­
lhante espécie de indivíduos, demasiado ambiciosos para serem
justos, consideram tudo o que se deixa aos outros como roubado
aos seus próprios bens. Juntaram-se, portanto, para me afasta­
rem da vista de IMadame de Vercellis.
iMadame de Vercellis gostava de escrever cartas; no estado
em que se encontr ava, tal coisa era para ela uma distracção:
levaram-na a aborrecê-la, dissuadindo-a disso com a ajuda do
médico, e convenceram-na de que o escrever a fatigava. A pre­
texto de que não me entendia com o serviço, substituíram-me
por dois alentados e rústicos portadores de cadeirinha, que a
não largavam ; fizeram por fim a coisa tão bem que, quando ela
fez testamento, há oito dias já que eu não lhe entrava no
quarto. � certo que depois disso continuei a lá entrar como
dantes, e fui mesmo mais assíduo do que ninguém, porque as
dores da pobre senhora me afligiam ; a firmeza com que ela
as sofria tornavam-ma extremamente respeitável e amada, e
no seu quarto chorei bastantes lágrimas sinceras, sem que
ninguém desse por isso.

88
Por fim; perdemo-la. Vi-a expirar. A sua vida havia sido
a de uma mulher de espírito e de senso ; a sua morte foi a de
um sages. Posso dizer que me tornou a religião católica agra­
dável, em virtude da serenidade de alma com que cumpria os
seus deveres, sem negligência e sem afectação. Era natural­
mente séria. No fim da doença, adquiriu um a espécie de alegria
por de mais igual para ser simulada, e que não era senão um
contrapeso fornecido pela própria razão à tristeza do estado
em que se encontrava. Só nos dois últimos dias é que foi à
cama, e não deixou de se entreter tranquilamente com toda
a gente. Por fim, sem falar já, e j á nas vascas da agonia, deu
um grande traque. Bom ! - disse ela, voltando-se - mulher
que traquej a não é mulher morta. Foram as últimas palavras
que pronunciou.
Havia legado um ano de ordenado aos criados ordinários;
mas eu, como não estava inscrito no rol da casa, nada tive.
o conde de La Roque, contudo, mandou-me dar trinta libras,
deixando-me a casaca nova que trazia no corpo, e que Monsieur
Lorenzy me queria tirar. Prometeu-me mesmo que ia procurar
empregar-me e permitiu-me que o fosse visitar. Fi-lo duas ou
tvês vezes, mas não pude falar-lhe. Desanimava fàcilmente, e
não voltei lá mais. Ver-se-á em breve que procedia mal.
Porque não terminei eu tudo o que tinha a dizer sobre
a minha permanência em casa de Madame de Vercellis! Posto
que a minha situação aparente continuasse idêntica, não sai
contudo de casa dela da mesma maneira como para lá havia
entrado. Trouxe de lá as longas recordações do crime e o insu­
portável peso de remorsos com os quais, ao fim de quarenta
anos, a minha consciência ainda se acha carregada, e cujo
amargo sentimento, longe de se atenuar, mais se irrita à medida
que envelheço. Quem poderia j ulgar que a falta de uma criança
tivesse consequências tão cruéis ? É destas mais que prováveis
consequências que o meu coração não poderá consolar-se. Fiz
talvez perecer no opróbrio e na miséria uma rapariga gentil,
honesta, digna de estima, e que certamente valia muito mais
do que eu.
É muito difícil que a dissolução de um lar não acarrete
um pouco de confusão na casa, e que muitas coisas se não
extraviem: contudo, a fidelidade dos criados e a vigilância de
Monsieur e Madame Lorenzy eram tais, que nenhuma falta se
verificou no inventário. Só Mademoiselle Pontal perdeu uma
fitazita cor-de-rosa e prata já velha. Outras coisas muito melho­
res se achavam ao meu alcance: apenas esta fita me tentou;

89
roubei-a, e como a não tivesse escondido, em breve a acharam.
Quiseram saber como a havia conseguido. Atrapalho-me, balbu­
cio, e por fim, corando, digo que foi Marion que ma deu. Marion
era uma rapariga dos Maures, a quem IM:adame de Vercellis havia
dado o lugar de cozinheira quando, tendo deixado de oferecer
j antares, despedira a que tinha, visto necessitar mais de bons
caldos do que de ópimos assados. Marion não era apenas
bonita como tinha umas cores tão frescas quais só nas serras
se encontram, e sobretudo um ar de simplicidade e de doçura
que faziam com que a não pudéssemos ver sem a amarmos ;
era, aliás, boa rapariga, discreta, e de uma fidelidade a toda a
prova. Foi o que causou surpresa quando a denunciei. Não
tinham de maneira nenhum a menos confiança em mim do
que nela, e pensaram que o que importava era verificar qual
dos dois era o ladrão. Chamaram-na; a reunião era numerosa,
e o conde de La Roque fazia parte dela. !Logo que Marion chega,
mostram-lhe a fita, e eu acuso- a descaradamente ; ela fica
interdita, cala-se, deita-me um olhar que teria desarmado o
demónio, e a que o meu bárbaro coração resiste. Por fim, nega
firmemente, mas sem exaltação, interpela-me, exorta-me a cair
em mim, a não desonrar uma inocente rapariga que nunca pra­
ticou o mal ; e eu, com uma impudência infernal, confirmo a
minha declaração, e sustento na cara dela que foi ela quem
me deu a fita. A pobre rapariga desatou a chorar, e só disse
estas p alavras: Ah, Rousseau, julgava que Unheis um bom
carácter; causais a minha desgraça ; mas não queria estar no
vosso lugar. Foi tudo. Continuou a defender-se com tanta sim­
plicidade como firmeza, mas sem nunca ter para mim a menor
invectiva. Tal moderação, comparada com o meu tom decidido,
foi-lhe prej udicial. Não era natural supor-se de um lado uma
tão diabólica audácia, e do outro uma tão angélica brandura.
Pareceram não se decidir absolutamente, mas as prevenções
eram por mim. Na balbúrdia em que se estava, não houve
tempo para aprofundar as coisas ; e o conde de la Roque, ao
despedir os dois, contentou-se em dizer que a consciência do
culpado bastaria para vingar o inocente. Não foi em vão que
fez o vaticínio; nem um só dia ele deixou de se cumprir.
Desconheço o que aconteceu à vitima da minh a calúnia;
não é contudo provável que depois disso lhe tenha sido fácil
arranjar um bom emprego. Fosse como fosse, carregava com ela
uma imputação cruel para a sua honra. O roubo era uma ninha­
ria, mas era um roubo, e, o que mais é, utilizado para seduzir
um rapazinho: enfim, a mentira e a obstinação nada podiam

90
fazer esperar daquela em quem tantos vícios se juntavam. E eu
nem sequer considero a miséria e o abandono como o maior
dos perigos a que a expus. Na sua idade, quem sabe aonde
poderá tê-la levado o desânimo da inocência ultraj ada? E se
o remorso de a haver podido fazer infeliz é insuportável, jul­
gue-se qual não será o de haver podido torná-la pior do que eu !
Esta recordação cruel inquieta-me por vezes, e agita-me
a tal ponto que, nas minhas insónias, vejo a rapariga que me
vem censurar o meu crime,· como se o houvera cometido ontem.
Enquanto vivi tranquilamente, inquietou-me menos ; todavia,
no meio de uma vida agitada, tira-me a mais doce eonsolação
dos inocentes perseguidos: faz-me bem sentir o que me parece
haver dito em qualquer obra minha, a saber, que o remorso
adormece durante um destino próspero, e exaspera-se na adver­
sidade. Contudo, nunca pude desabafar o meu coração no seio
de um amigo, fazendo-lhe esta confissão. Nunca a mais estreita
intimidade me levou a fa21ê-la a ninguém, nem sequer a Madame
de Warens. Tudo o que pude fazer foi confessar ter que
... acusar-me de uma acção atroz, mas nunca disse em que é que
esta consistia. Semelhante peso ficou-me pois sem alívio n a
consciência até hoj e, e posso dizer que o desejo d e me libertar
dele de qualquer maneira contribuiu fortemente para a reso­
lução que tomei de escrever as minhas confissões.
Procedi francamente na que acabo de fazer, e não se achará
certamente que tratei de atenuar a perfídia do meu crime. Não
realizaria porém o intento deste livro, se ao mesmo tempo não
expusesse as minhas disposições interiores, e receasse descul­
par-me no que é eonforme com a verdade. Nunca a maldade
esteve tão longe de mim como naquele cruel momento, e quando
aeusei a infeliz rapariga, é singular, mas a verdade é que o fiz
por amizade para com ela. Tinha-a presente no pensamento,
e desculpei-me com o primeiro objecto que se me ofereceu.
Acusei-a de ter feito o que eu queria fazer, e de me ter dado
á fita, porque a minha intenção era dar-lha a ela. Quando
depois a vi aparecer, o coração p artiu-se-me, mas a presença
de tanta gente foi mais forte do que o meu arrependimento.
Pouco temia o castigo: só temia a vergonha ; mas esta temia-a
mais do que a morte, mais do que o crime, mais do que nada
no mundo. Desejaria afundar-me, asfixiar-me no centro da
terra ; a vergonha invencível prevaleceu, só a vergonha eausou
a minha impudência; e quanto mais me tornava criminoso,
mais o terror de o reconhecer me fazia intrépido. Só via o
horror de, publicamente, e comigo presente, ser recoDheeido,

91
declarado ladrão, mentiroso, caluniador. Uma angústia univer­
sal arrebatava-me todo e qualquer outro sentimento. Se m e
tivessem deixado voltar a mim, teria infalivelmente declarado
tudo. Se Monsieur de La Roque me tivesse chamado à parte,
e me dissesse : Não deite esta rapariga a perder ; se é culpado,
confesse-mo , ter-me-ia arrojado imediatamente a seus pés,
estou perfeitamente certo disso. Mas o que fizeram foi inti­
midar-me, quando seria necessário dar-me coragem.
A idade é ainda merecedora de certas atenções; eu mal
havia saido da infância, ou antes, ainda nela me encontrava.
As verdadeiras infâmias são ainda mais criminosas na moci­
dade do que em idade madura: tudo aquilo, porém, que não
é m ais do que fraqueza, é muito menos criminoso, e a minha
falta, no fundo, não era outra coisa. Assim, a recordação desta
aflige-me menos pelo mal em si mesmo do que pelo que devia
ter causado. Fez-me o bem de me preservar para o resto da
vida de qualquer acto tendente ao crime, em virtude da impres­
são terrivel que me ficou do único que j amais cometi; e j ulgo
sentir que a minha repugnância pela mentira me vem em
grande parte do desgosto de haver cometido uma tão feia.
Se é um crime que se possa expiar, como me atrevo a crê-lo,
deve , está-lo, graças a tantas infelicidades que me acabrunham
no fim da vida, a quarenta anos de rectidão e de honra nas
ocasiões dificeis, e a pobre IM:arion encontra tantos vinga­
dores neste mundo, que, por muito grande que tenha sido a
ofensa que eu lhe fiz, pouco temo de levar comigo a culpa
dela. Eis o que tinha a dizer neste artigo. Seja-me permitido
nunca mais voltar a falar nele.

92
LlVRO TERCEIRO

mNDO
T
saldo de casa de !Madame de Vercellis pouco mais ou
menos como para lá havia entrado, voltei para casa da
minha antiga hospedaria, e lá fiquei cinco ou seis sema­
nas, durante as quais a saúde, a mocidade, a ociosidade me
tornaram com frequência o temperamento importuno. Acha­
va-me inquieto, distraído, sonhador; chorava, suspirava, dese­
java uma felicidade de que não fazia ideia, e cuja privação me
fazia sofrer. Tal estado não pode ser descrito; e mesmo poucos
homens o podem imaginar, porque a maior parte deles foram
ao encontro desta plenitude de vida, a um tempo torturante
e deliciosa, que, na embriaguez do desejo, dá um gosto anteci­
pado do prazer. o meu sangue escaldante enchia-me constan­
temente a cabeça de raparigas e mulheres: mas não lhes pres­
sentindo a verdadeira utilidade, empreg�va-as bizarramente em
pensamento nas minhas fantasias, sem nada mais saber fazer
delas; e tais pensamentos mantinham-me os sentidos numa
actividade sobremodo incómoda, de que, por felicidade, me não
ensinavam a libertar-me. Teria dado a vida para voltar a·
sncontrar durante um. quarto de hora uma damizela Goton.
Já não estávamos, porém, nos tempos em que as brincadeiras
de criança a isso nos levavam como que por si mesmo. A ver­
gonha, companheira da consciên
1 cia do mal, tinha chegado com
os anos; havia aumentado a minha timidez natural, a ponto
de torná-la invencível; e nunca, nem então, nem depois, pude
chegar a fazer uma proposta lasciva sem que as investidas
daquela a quem a fazia me não tivessem de qualquer modo
levado a isso, embora sabendo que não era escrupulosa, e quase
certo de me pegar na palavra.
A minha agitação cresceu a tal ponto que, não podendo
conteros desejos, atiçava-os por meio das manobras mais
extravagantes. Procurava as alamedas sombrias, os retiros
escusas, onde pudesse, de longe, expor-me às pessoas do
outro sexo no estado em que desejaria poder achar-me junto

93
delas. O que estas viam não era o objecto obsceno, nem eu
nisso pensava; era o objecto ridículo. Não se pode descrever
o prazer idiota que eu tinha exibindo-o aos seus olhos. 1Da1
a sentir o tratamento desejado, só havia um passo a dar, e
não duvido de que qualquer corajosa, ao passar, me não houvesse
proporcionado o divertimento, se eu tivesse a audácia de esperar.
Tal loucura provocou uma catástrofe quase tão cómica, mas
um pouco menos agradável para mim. Certo dia fui instalar-me
ao fundo de um pátio, onde havia um poço ao qual as raparigas
da casa vinham frequentemente buscar água. Nesse sitio havia
uma pequena descida que comunicava com as caves por várias
passagens. Na escuridão sondei estas passagens· subterrâneas,
e, achando-as compridas e escuras, julguei que não termina­
·vam, e que, no caso de ser visto e surpreendido, encontraria
nelas refúgio. Confiado em tal, ofereci às raparigas que vinham
ao poço um espectáculo mais irrisório do que sedutor. As mais
discretas fingiram nada ver; outras largaram a rir; outras
julgaram-se insultadas e fizeram barulho. Fugi para o escon­
derijo, onde me seguiram. Ouvi uma voz de homem com a qual
não tinha, contado, e alarmei-me. Penetrei nos subterrâneos,
com risco de me perder: o barulho, as vozes, a voz do homem,
perseguiam-me sempre. Contava com a escuridão, e vi luz.
Estremeci, e penetrei mais além. Uma parede fez-me parar,
e, não podendo ir mais longe, tive de .esperar ali o meu destino.
Num instante fui alcançado e agarrado por um homem alto
que tinha uns grandes bigodes, um grande chapéu, um grande
terçado, escoltado por quatro ou cinco velhas, cada qual armada
de um pau de vassoura, e no meio das quais descortinei a esper­
talhonazita que me havia descoberto, e que sem dúvida desejava
ver-me a cara.
O homem do terçado, agarrando-me por um braço, per­
g;mtou-me brutalmente que fazia eu ali. É de calcular que não
tinha a resposta pronta. No entanto, serenei; e, fazendo
um esforço em semelhante momento crítico, extrai da cabeça
um expediente romanesco, que me deu resultado. Disse-lhe, em
tom suplicante, que tivesse piedade da minha idade e do meu
estado; que era um moço estrangeiro, bem-nascido, cujo cérebro
se avariara; que tinha fugido da casa paterna porque me
queriam internar; que estava perdido, se ele me denunciava;
mas que, se quisesse ter a bondade de me deixar ir embora,
talvez eu um dia lhe pudesse agradecer o favor. Contra toda
a expectativa, o meu discurso e o meu aspecto produziram efeito:
o terrível homem ficou comovido; e, depois de uma pequents-

94
sima reprimenda, deixou-me partir sossegadamente, sem me
perguntar mais nada. Pela cara que a rapariga e as velhas
fizeram ao ver-me partir, pensei que tão temivel homem me
havia sido muito útil, e que sozinho com elas não teria podido
desenvencilhar-me tão fàcilmente. Ouvi-as resmonear não sei
quê, com o que nada me preocupei; pois que, contanto que o
terçado e o homem se não juntassem a elas, tinha a certeza,
com a minha ligeireza e o meu vigor, de bem depressa me ver
livre tanto dos arrochos como delas.
Alguns dias depois, ao passar numa rua com um jovem
abade meu vizinho, dou de caras com o homem do terçado.
Este reconheceu-me e, imitando-me com uma voz itrocista,
disse-me: 4:SoU um príncipe, sou um principe; e eu sou um
estupor; mas Sua Alteza que não torne outra vez.:. Nada mais
acrescentou, e eu esgueirei-me, baixando a cabeça e agradecen­
do-lhe, da alma, a discrição. Pensei que aquelas malditas velhas
o tinham envergonhado por se ter acreditado em mim. Como
quer que seja, e por mais piemontês que fosse, era um bom
homem, e nunca penso nele sem um movimento de· grati­
dão: porque a história era tão divertida, que outro qualquer,
no seu lugar, só para fazer rir, ter-me-ia desacreditado. Esta
aventura, sem ter as consequências que seriam de temer, não
deixou de me tornar discreto por muito tempo.
A minha estada em casa de lMadame de Vercellis havia-me
proporcionado alguns conhecimentos, que eultivava na espe­
rança de me poderem ser úteis. Entre outras pessoas, ia às vezes
ver um padre saboiano ehamado Monsieur Gaime, preceptor dos
filhos do conde de !Mellarêde. Era ainda novo e pouco conhecido,
mas cheio de bom senso, de probidade, de luzes, e um dos homens
mais honestos que conheci. De nada me pôde valer quanto ao
que me trazia a sua casa: não gozava de suficiente reputação
para me colocar; mas encontrei junto dele outro proveito mais
precioso de que beneficiei toda a vida - lições de sã moral e
mâximas de recta razão. Na sequência dos meus gostos e das
minhas ideias, tinha-me sempre achado ora muito pelo cimo,
ora muito pelo baixo, Aquiles ou Tersites, tão depressa herói
como bandalho. Monsieur Gaime teve o cuidado de me colocar
no meu lugar e de me mostrar a mim mesmo, sem me poupar
nem me desanimar. Falou-me muito honrosamente do meu natu­
ral e dos meus talentos: mas aerescentou que via deles nascerem
os obstâculos que me impediriam de os aproveitar; de maneira
que, segundo ele, estes deviam não tanto servir-me de degraus
para conquistar a fortuna, como de recursos para prescindir

95
aela. Pintou-me um quadro veridico da vida humana, de que
eu só tinha ideias falsas; mostrou-me como, num destino
adverso, o homem prudente pode sempre visar a felicidade e
correr a favor do vento para a alcançar; como não existe ver­
dadeira felicidade sem sabedoria, e como a sabedoria se encon­
tra em todos os estados. Atenuou bastante a minha admiração
pela grandeza, demonstrando-me que os que dominavam os
outros não eram nem mais sábios nem mais felizes. Disse-me
uma coisa que frequentemente me acudiu à memória a saber:
que se cada homem pudesse ler no coração de todos os outros,
haveria mais pessoas a quererem descer do que a quererem
subir. Semelhante reflexão, cuja verdade me impressionou, e
que não é nada exagerada, foi-me proveitosissima no decurso
da vida, fazendo-me manter tranquilamente no meu lugar.
Deu-me as primeiras ideias verdadeiras da honestidade, que
o meu génio enfático só tinha apreendido nos seus excessos.
Fez-me sentir que o entusiasmo pelas virtudes sublimes era de
pouco uso na sociedade; que, elevando-nos muito alto, estáva­
mos sujeitos a cair; que a continuidade dos pequenos deveres
sempre bem desempenhados não exigia menos ânimo do que
as acções heróicas; que delas se tirava melhor partido para a
honra e para a felicidade; e que valia infinitamente mais ter
sempre a estima dos homens, do que uma vez por outra a sua
admiração.
Para assentar nos deveres do homem, tornava-se neces­
sário remontar ao seu princípio. Aliás, o passo que acabava de
dar, e que tinha tido como consequência a minha situação pre­
sente, levou-nos a falar de religião. Calculam já que o honesto
Monsieur Gaime é, ao menos em grande· parte, o ,original do
Vigário saboiano 1• Simplesmente, como a prudência o obrigava
a falar com mais reserva, explicou-se menos abertamente acerca
de certos pontos; quanto ao resto, as suas má'Ximas, os seus
sentim�mtos, os seus pareceres foram os mesmos, e até o conse­
lho de voltar à minha terra, tudo se passou como depois o rela­
tei ao público. Sem pois me alongar com conversas cuja subs­
tância cada qual pode ver, direi que as suas lições, sábias, mas
primeiramente sem efeito, deixaram-me no coração um germe
de virtude e de religião que nunca se extinguiu, e que s6 espe­
rava, para frutificar, os cuidados de uma mão mais querida.

1 Referência ao herói do livro do próprio Rousseau, intitulado Pro­


fissão de Fé do Vi'gário Saboiano. -N. do T.

96
Se bem que nessa ocasião a minha convez .sação fosse pouco
sólida, nem por isso deixei de me sentir comovido. As suas
práticas, longe de me aborrecerem, deram-me prazer, em vir­
tude da sua clareza, da sua simplicidade, e sobretudo de um
certo interesse do coração de que eu as sentia cheias. Tenho
uma alma terna, e sempre me liguei às pessoas menos na razão
do bem que me fizeram do que do bem que me quiseram, e
nisto nunca o meu tacto me enganou. Por isso me afeiçoei
verdadeiramente a Monsieur Gaime ; era por assim dizer seu
segundo discípulo; e tal coisa fez-me naquela própria ocasião
o bem inapreciável de me desviar do pendor para o vicio a que a
minha ociosidade me arrastava.
Um dia em que menos o esperava, vieram chamar-me da
parte do conde de La Roque. A força de o procurar sem lhe
poder falar, tinha-me aborrecido e não voltara mais a sua
casa : j ulgava que me havia esquecido, ou que ficara com
má impressão a meu respeito. Enganei-me. Por mais de
uma vez fora testemunha do prazer com que eu cumpria os
meus deveres junto da tia ; tinha-lho até dito, e voltou a
falar-me nisso, quando eu próprio nem já em tal coisa pensava.
Recebeu-me bem. Disse-me que, sem me haver embaído com
promessas vagas, tinha procurado colocar-me, que o havia con­
seguido, que me punha no caminho de vir a ser qualquer coisa,
que me competia a mim fazer o resto ; que a casa onde conse­
guira fazer-me entrar era poderosa e considerada, que não
necessitava de outros protectores para avançar no meu cami­
nho e que podia estar certo de que, embora me tratassem
de começo como criado, como anteriormente, se me j ulgassem,
pelos meus sentimentos e pela minha conduta, superiores a esta
condição, estavam dispostos a não me deixar nela. O fim do dis­
curso desmentiu cruelmente as brilhantes esperanças que o seu
começo me havia dado. o quê ! sempre lacaio ! - disse para
comigo mesmo, com um despeito amargo que a confiança em
breve desfez. Sentia-me muito pouco feito para tal lugar, para
temer que nele me deixassem.
Levou-me a casa do conde de Gouvon, escudeiro-mar da
rainha e chefe da ilustre casa de Solar. O ar de dignidade deste
respeitável velho tornou-me mais comovedora a afabilidade do
seu acolhimento. Interrogou-me com interesse, e eu respondi­
-lhe com sinceridade. Disse ao conde de La iRoque que a minha
fisionomia era agradável e anunciava espírito ; que lhe parecia
que, com efeito, ele me não faltava, mas que isso não era bas­
tante, e que era preciso ver o resto ; depois, voltando-se para

7 97
mim : Meu filho - disse-me ele - começar é dificil em
quase todas as coisas ; para si não o será todavia muito. Sej a
discreto e procure agradar a todos nesta casa ; eis, neste
momento, a sua única ocupação: além disso, tenha boa von­
tade ; desejam tomar conta de si. No mesmo instante, passou
aos aposentos da m arquesa de Breil, sua nora, a quem me
apresentou, e em seguida ao abade Gouvon, seu filho. Este
prelúdio pareceu-me de bom agouro. Já tinha os olhos bem
abertos para imaginar que não se fazem tantas cerimónias na
recepção de um lacaio. Com efeito, não me trataram como tal.
Comia na copa; não me fizeram envergar libré, e como o conde
de Favria, rapaz estouvado, quisesse levar-me nas traseiras do
seu coche, o avô proibiu-me que andasse nas traseiras fosse de
que coche fosse, e que acompanhasse quem quer que fosse fora
de casa. Servia, porém, à mesa, e adentro de portas fazia pouco
mais ou menos o serviço de um lacaio ; mas fazia-o até certo
ponto livremente, sem estar especialmente subordinado a nin­
guém. Além de algumas cartas que me eram ditadas, e de algu­
mas estampas que o conde me mandava cortar, era quase senhor
do meu tempo em todo o dia. Semelhante experiência, em que
eu não reparava, era certamente muito perigosa ; nem sequer
era muito humana ; porquanto esta grande ociosidade podia
fazer-me contrair vícios, que sem isso não teria.
Foi o que, porém, não aconteceu felizmente. A lições de
Monsieur Gaime haviam-me ido direito ao coração, e eu gos­
tava tanto delas que me escapava algumas vezes para ir escutá­
-las de novo. Creio que os que me viam sair desta maneira
furtiva não adivinhavam onde eu ia. Nada de mais sensato do
que os conselhos que ele me dava a respeito da minha conduta.
Os meus começos foram admiráveis ; era de uma aplicação, de
uma atenção, de um zelo que encantavam todos. O abade Gaime
avisou-me sensatamente a que moderasse eu este primeiro fer­
vor, com medo não viesse ele a afrouxar e o notassem. A sua
estreia - disse-me ele - é a regra daquilo que exigirão de
si : trate de proceder de maneira a fazer mais, lá para diante,
mas evite sempre fazer. menos.
Como me não haviam examinado do ponto de vista das
minhas pequenas capacidades, supondo que só possuía as que
me havia dado a natureza, não parecia, apesar do que o conde
de Gouvon me houvera dito, que pensassem em tirar de mim
qualquer partido. Negócios que surgiram inopinadamente fize­
ram com que fosse quase esquecido. o marquês. de Breil, filho
do conde de Gouvon, era então embaixador em Viena. ISobrevie-

98
ram movimentos da corte que se fizeram sentir na fam111a,
e durante algumas semanas reinou uma tal agitação que não
deixava tempo para pensar em mim. Contudo, até essa ocasião,
tinha-me descuidado pouco. Uma coisa houve que me fez bem
e mal, afastando-me de toda e qualquer libertinagem exterior,
mas tornando-me um pouco mais distraído com os meus deveres.
Mademoiselle de Breil era uma menina pouco mais ou
menos da minha idade, bem feita, muito bonita, muito branca,
com os cabelos muito pretos, e, ainda que morena, tinha nas
feições aquele ar de doçura das loiras a que o meu coração
nunca resistiu. O vestido de cerimónia, tão favorável às pessoas
novas, punha em relevo o seu lindo busto, desafogava-lhe o
peito e os ombros, e fazia-lhe a tez ainda mais deslumbrante,
em virtude do luto que então traziam. Dir-se-á que não é próprio
de um criado reparar nestas coisas. Andava mal, sem dúvida ;
reparava, contudo, e nem era o único que o fazia. A mesa, o
mordomo e os criados de quarto falavam às vezes no mesmo,
com uma grassaria que me fazia sofrer cruelmente. Não estava,
contudo, transtornado do miolo, a ponto de cair seriamente
enamorado. Não me esquecia de mim ; mantinha-me no meu
lugar, e nem mesmo os meus desejos se adiantavam. Gostava
de ver Mademoiselle de Breil, de ouvi-la dizer algumas pala­
vras que denotavam espírito, senso, honestidade : a minha
ambição, limitada ao prazer de a servir, não ia além dos meus
direitos. Quando se achavam à mesa, estava atento, buscando
ocasião de os tornar prestáveis. Se o lacaio se desviava um
momento da sua cadeira, imediatamente me viam no lugar
deste: fora disso, conservava-me em frente dela ; procurava­
-lhe nos olhos o que ela iria pedir, espiava o momento de lhe
mudar de prato. O que não teria feito para que ela se dignasse
ordenar-me qualquer coisa, olhar-me , dizer-me uma palavra
só que fosse ! mas nada : mortificava-me por não lhe ser útil ;
nem sequer reparava em mim. Como o irmão, porém, que algu­
mas vezes me dirigia à mesa a palavra, me tivesse dito não sei
quê pouco amável, dei-lhe uma resposta tão fina e tão bem
composta, que ela reparou em tal, e olhou para mim. Este
relance de olhos, que foi rápido, não deixou de me transportar.
No dia seguinte, apresentou-se ocasião de obter segundo, e apro­
veitei-a. Nesse dia havia um grande j antar, no qual pela pri­
meira vez vi com grande admiração minha o mordomo servir
de espada e chapéu na cabeça. Por acaso, calhou falar-se na
divisa da casa de Solar, que se via na tapeçaria com o brasão :
Tel fiert qui ne tue pas. Como os piemonteses não são em geral

99
muito fortes em francês, alguém achou que a divisa tinha um
erro de ortografia, e disse que a palavra fiert não precisava do t.
O velho conde de Gouvon ia a responder ; mas tendo olhado
para mim, viu que eu sorria sem nada me atrever a dizer :
ordenou-me que falasse. Eu, então, disse que não me parecia
que o t estivesse a mais ; que fiert era uma velha palavra fran­
cesa, que não vinha do termo jerus, altivo, ameaçador, mas do
verbo jerit, bate, fere ; e que nesse caso se me afigurava que
a divisa não queria dizer: tal que não mata ameaça, mas sim
tal que não mata fere.
Todos me olhavam e olhavam uns para os outros sem
nada dizer. Nunca na vida se viu estupefacção semelhante.
Mas o que mais me envaideceu foi ver claramente no rosto
de Mademoiselle de Breil um certo ar de satisfação. Esta
tão desdenhosa criatura dignou-se lançar-me segundo olhar
que valia ao menos o primeiro ; em seguida, voltando-se para
o avô, pareceu esperar com impaciência o elogio que este me
devia, e que com efeito me dirigiu, tão rasgado e completo e
com um ar tão contente, que toda a mesa se apressou a fazer
coro com ele. Este momento foi breve, mas delicioso sob todos
os aspectos. Foi um destes raríssimos momentos que colocam
as coisas na sua ordem natural, e vingam dos ultrajes da for­
tuna o mérito aviltado. Alguns minutos depois, Mademoiselle
de Breil, erguendo de novo QS olhos para mim, pediu-me,
num tom de voz tão tímida como afável, que lhe desse de beber.
Calculam que a não fiz esperar ; ao aproximar-me, porém, apo­
derou-se de mim um tal tremor, que, enchendo de mais o copo,
entornei parte da água no prato e até sobre ela. O irmão per­
guntou-me estouvadamente porque tremia eu daquela maneira.
A pergunta não servia para me acalmar, e Mademoiselle de
Breil corou até à menina dos olhos.
Aqui termina o romance, no qual se notará, como sucedeu
com Madame Basile e por toda a minha vida fora, que a con­
clusão dos meus amores nunca é feliz. Em vão me afeiçoei à
antecâmara de Madame de Breil: não obtive nem um único
sinal de atenção por parte da filha. Saía e entrava sem me
olhar, e eu, por mim, mal ousava relanceá-la. Era mesmo tão
estúpido e tão atado, que certo dia em que ela, ao passar, deixou
cair a luva, em vez de me precipitar sobre tal luva, que gosta­
ria de cobrir de beijos, não me atrevi a sair do meu lugar,
e permiti que um grande alarve de um criado, que de boa
vontade teria esmagado, a apanhasse. Para cúmulo do meu
atarantamento, descobri que não tinha a felicidade de agradar

100
a IMadame de Breil. Não só me não mandava fazer nada,
como nunca aceitava os meus serviços ; e duas vezes que me
encontrou na antecâmara perguntou-me num tom bastante
seco se não tinha nada que fazer. Tive de renunciar. à adorada
antecâmara. Primeiro, tive pena, mas distracções imprevistas
surgiram, e em breve nem sequer pensava no caso.
Achei uma consolação ao desdém de Madame de Breil
nos favores do sogro, que reparou, alfim, que eu me encontrava
ali. Depois do jantar de que falei, tive à noite com ele uma
conversa de cerca de meia hora, sobre a qual pareceu ficar
satisfeito e eu radiante. O bom do velho, posto que homem de
espírito, tinha menos do que Madame de Vercellis, mas possuía
melhor coração, e eu tive mais êxito com ele. Disse-me que me
ligasse ao abade Gouvon, seu filho, porque este se afeiçoara
a mim ; que a sua afeição, se eu soubesse aproveitá-la, me podia
ser útil, fazendo-me adquirir o que me faltava para as ideias
que formavam a meu respeito. No dia seguinte, logo de manhã,
voei aos aposentos do Senhor Abade. Este não me recebeu como
um criado ; mandou-me assentar ao pé do lume, e, interrogan­
do-me com a maior doçura, viu em breve que a minha educação
incipiente em tantas coisas não havia terminado nenhuma.
Achando, sobretudo, que sabia pouco latim, decidiu ensinar-mo
melhor. Combinámos em que viria ter com ele todas as manhãs,
e logo no dia seguinte comecei. [)esta maneira, devido a um
daqueles caprichos que frequentemente se depararão na minha
vida, sucedia que, a um tempo acima e abaixo do meu estado,
era discípulo e serv o na mesma casa, e que na minha servidão
tinha no entanto um preceptor, que por nascimento só o devia
ser dos filhos dos reis.
O abade Gouvon era filho cadete ; a familia destinara-o
ao episcopado, razão por que os seus estudos tinham sido levados
mais longe do que é costume entre os filhos-família. Haviam-no
mandado para a Universidade de Viena, onde tinha permanecido
vários anos e de onde havia trazido uma boa dose de cruscan­
tismo1 para vir a ser pouco mais ou menos em Turim o que

o abade de Dangeau havia sido outrora em Paris. A aversão


pela teologia lançara-o nas belas-letras, coisa que sucede
frequentemente em Itália àqueles que seguem a carreira da
prelatura. Havia lido os poetas ; escrevia razoàvelmente versos
em latim e italiano. Numa palavra, tinha o gosto que se tornava

1 Purismo da língua italiana, segundo os princípios da Academia de


Crusca. - N. do T.

101
necessano para formar o meu e proceder a uma escolha da
farragem com que eu havia atulhado a cabeça. Contudo, quer
porque o meu palavrório o tivesse iludido a respeito da minha
ciência, quer porque não pudesse suportar o aborrecimento do
latim elementar, começou por me meter em altas cavalarias ;
e mal me havia feito traduzir algumas fábulas de Fedro, atirou
comigo para o Virgilio, de que eu não percebia quase nada.
rComo se verá adiante, estava destinado a reaprender fre­
quentemente o latim e a nunca mais o saber. Contudo, traba­
lhava com bastante aplicação, e o S enhor Abade dispensava-me
os seus cuidados com uma bondade cuj a recordação ainda me
enternece. Passava em companhia dele boa parte da m anhã,
tanto por amor da minha instrução, como para o servir ; não
se tratava do serviço da sua pessoa, porque não consentia que
lhe prestasse nenhum, mas de escrever ditando ele e fazer
cópias ; e a minha função de secretári o foi-me mais útil do que
a de discípulo. Desta maneira, aprendi não só o italiano em
toda a sua pureza, mas ganhei gosto à literatura e certo dis­
cernimento acerca dos bons livros, que não podia adquirir com
a Tribu, e que de muito me serviu quando mais tarde me pus
a trabalhar sozinho.
Sem projectos romanescos, foi este o tempo da minha vida
em que mais razoàvelmente me pude entregar à esperança de
triunfar. Muito satisfeito comigo, o Senhor Abade dizia-o a
toda a gente, e o pai tinha-se-me afeiçoado de tal maneira que
o conde de Favria me comunicou haver ele falado de mim ao
rei. A própria Madame de Breil deixara de ter para
mim o seu ar desdenhoso. Por fim, tornei-me uma espécie de
favorito da casa, com grande ciúme dos outros criados, que,
'Vendo-me honrado com as lições do filho do patrão, bem per­
cebiam que não seria para permanecer por muito tempo como
seu igual.
Tanto quanto pude julgar dos desígnios que formavam a
meu respeito por algumas palavras apanhadas no ar, e nas quais
só reflecti depois, pareceu-me que a cas a de Solar, querendo
enveredar pela carreira diplomática, e quiçá preparar com tempo
a dos ministérios, gostaria de instruir antecipadamente um
súbdito de mérito e de talento, que, dependendo apenas dela,
pudesse posteriormente obter a sua confiança e servi-la util­
mente. Este projecto do conde de Gouvon era nobre, j udicioso,
magnânimo, e na verdade digno de um grande senhor benemé­
rito e previdente : contudo, além de que eu não lhe via então
todo o alcance, era sensato de mais para a minha cabeça, e

102
exigia uma submissão muito longa. A minha louca ambição
só procurava a fortuna através das aventuras, e, não vendo
qualquer mulher em tudo isto, semelhante maneira de triunfar
parecia-me lenta, penosa e triste ; ao passo que deveri a achá-la
tanto mais honrosa e segura quanto nela se não intrometessem
as mulheres, pois que a espécie de mérito que estas protegem
não valia certamente aquele de que me supunham dotado.
Tudo corria às mil maravilhas. Tinha obtido, quase arran­
cado a estima de toda a gente : as experiências haviam termi­
nado ; e na casa consideravam-me em geral como um rapaz das
melhores esperanças, que não se achava no seu lugar, mas
esperavam verem-no alcançá-lo. O meu lugar não era porém
o que me estava destinad o pelos homens, e devia alcançá-lo
por vias bem diferentes. Toco num daqueles traços caracterís­
ticos que me são próprios, e que basta apresentar ao leitor sem
lhe acrescentar qualquer reflexão.
Posto em Turim houvesse bastantes recém-convertidos da
mesma espécie que eu, não gostava deles e nunca tinha querido
ver nenhum. Mas vira alguns genoveses que o não eram, entre
os quais um tal Monsieur CMussard, por alcunha o Cara-Torta,
pintor miniaturista e vagamente meu parente. Este Monsieur
Mussard descobriu o meu paradeiro em casa do conde de Gouvon,
e foi lá visitar-me com outro genov>ês, chamado Bâ.cle, que
tinha sido meu colega de oficio. Este Bâ.cle era um rapaz diver­
tidíssimo, muito alegre, cheio de repentes cómicos que a idade
tornava agradáveis. Eis-me subitamente apaixonado por Mon­
sieur Bâcle, mas apaixonado a ponto de o não poder abandonar.
Ia partir dentro em breve, regressando a Genebra. Que
perda para mim ! Sentia bem toda a sua extensão. Para apro­
veitar ao menos o tempo que me deixavam, nunca o abandonava,
ou, antes, era ele que nunca me abandonava ; porque não perdi
o j uizo a ponto de sair de casa sem licença para ir p assar o
dia com ele ; em breve, porém, vendo que ele me assediava
inteiramente, fecharam-lhe a porta, e eu irritei-me de tal
maneira que, esquecendo tudo, menos o meu amigo Bâ.cle, não
aparecia nem ao Senhor Abade nem ao Senhor Conde, e não
me viam mais em casa. Deram-me repreensões que não escutei.
Ameaçaram-me de me despedir. Tal ameaça perdeu-me : fez-me
entrever que era possível que Monsieur Bã.cle não partisse só.
Dessa altura em diante não vi outro prazer, outra sorte, outra
felicidade que não fosse fazer tal viagem, ao fim da qual, de
resto, entrevia Madame de Warens, mas imensamente distante ;
porquanto voltar a Genebra era no que nunca pensava. Os mon -

103
tes, os prados, os bosques, os ribeiros, as aldeias sucediam-se
interminràvelmente, e sempre com novos atractivos ; este ditoso
trajecto parecia dever absorver a minha vida inteira. Recor­
dava-me deliciosamente como a mesma viagem me havia
parecido encantadora à vinda. O que não seria quando a
toda a sedução da independência se j untasse a de seguir
viagem com um companheiro da minha idade, com os mesmos
gostos e de belo humor, à vontade, sem dever, sem constran­
gimento, sem obrigação de ir ou de ficar senão quando nos
aprouvesse ! Era preciso ser louco para sacrificar semelhante
fortuna a projectos de ambição de execução lenta, difícil,
incerta, e que, supondo-os re alizados um dia, não valiam em
toda a sua magnificência um quarto de hora de verdadeiro
prazer e de liberdade na mocidade.
Cheio desta j udiciosa fantasia, comportei-me tão bem que
consegui fazer-me expulsar, e em verdade não foi sem dificul­
dade. Uma noite, ao entrar em casa, o mordomo declarou-me,
da. parte do !Senhor Conde, que estava despedido. Era precisa­
mente o que eu desej ava ; porquanto, sentindo a meu pesar o
extravagante da minha conduta, quis acrescentar-lhe, para me
desculpar, a injustiça e a ingratidão, j ulgando, assim, assacar
o mal aos outros, e j ustificar para comigo mesmo uma decisão
a que era levado por necessidade. Vieram comunicar-me da
parte do conde de Favria que lhe fosse falar no dia seguinte
de manhã, antes de partir ; e como vissem que, no estado de
j uízo em que me achava, era capaz de não fazer nada disso,
o mordomo transferiu para depois dessa visita o dar-me algum
dinheiro que me haviam destinado, e que certamente eu tinha
ganho muito mal ; pois que, não tendo querido deixar-me na
condição de criado, não me haviam fixado ordenado.
O conde de Favria, por muito novo e estouvado que fosse,
dirigiu-me nessa ocasião as mais sensatas palavras, quase ousa­
rei dizer as mais ternas, de tal maneira e tão lisonjeira e tocan­
temente me expôs os cuidados do tio e as intenções do avô a
meu respeito. Por fim, e depois de vivamente me ter desenro­
lado diante dos olhos tudo o que eu sacrificava para correr à
minha perdição, ofereceu-se para fazer o meu sossego, exigindo
apenas como condição que nunca mais tornasse a ver esse
desgraçado rapaz que me havia seduzido.
Era tão claro que tudo o que ele me dizia não era da
sua lavra, que, apesar da minha estúpida cegueira, senti toda
a bondade do meu velho patrão, e comovi-me : mas esta adorada
viagem estava por de mais gravada na minha imaginacão para

104
que coisa alguma pudesse contrabalançar-lhe o encanto. Acha­
va-me inteiramente fora de mim : insisti na minha, empeder­
ni-me, fiz-me orgulhoso, e respondi arrogantemente que, logo
que me haviam despedido, e que eu estava de acordo, já não era
tempo de voltar atrás, e que, sucedesse o que sucedesse na minha
vida, estava inteiramente resolvido a não me deixar pôr duas
vezes fora da mesma casa. O rapaz, então, j ustamente irritado,
chamou-me os nomes que eu merecia, agarrou-me pelos ombros
e pôs-me fora do quarto, fechando-me a porta nas costas. Sai
triunfante, como se acabasse de ganhar a maior das vitórias,
e, com medo de ter que travar segundo combate, cometi a indig­
nidade de partir sem ir agradecer ao Senhor Abade todos os
seus favores.
Para se imaginar até onde ia neste momento o meu delirio,
seria preciso conhecer a que ponto o meu coração é susceptível
de se entusiasmar pelas coisas mais insignificantes, e com que
veemência ele mergulha na imaginação do obj ecto que o seduz,
por muito fútil que esse objecto seja por vezes. Os mais bizarros,
os mais infantis, os mais loucos planos Viêm acariciar a minha
ideia favorita, e provar-me a verosimilhança de a ela me entre­
gar. Acreditar-se-á que perto dos dezanove anos se possa buscar
num frasquinho vazio a subsistência do resto dos nossos dias?
Ora ouçam :
Há umas semanas atrás, o abade Gouvon tinha-me pre­
senteado com uma fontezinha de Hierão, muito bonita, e que
me entusiasmava. A força de fazer funcionar a fonte e de
falar na nossa viagem, pensámos, o prudente Bâcle e eu, que
uma poderia muito bem auxiliar a outra e prolongá-la. Haveria
no mundo alguma coisa tão curiosa como uma fonte de Hierão?
Este princípio foi a base sobre a qual construímos o edifício
da nossa fortuna. Em cada aldeia, devíamos reunir os aldeões
em volta da nossa fonte, e então os banquetes e os bons petiscos
deviam chover sobre nós tanto mais abundantemente quanto
um e outro estávamos convencidos de que os viveres nada
custam àqueles que os colhem, e que se eles não enchem a
pança aos viandantes é pura má vontade sua. Por toda a parte
só fantasiávamos festins e patuscadas, contando que, desem­
bolsando apenas o vento dos nossos pulmões e a água da nossa
fonte, esta nos poderia garantir as despesas no Piemonte, n a
Sabóia, e m França, em todo o mundo. Projectámos viagens que
nunca mais acabavam, e dirigimos os nossos passos primeira­
mente para o norte, mais pelo prazer de atravessar os Alpes,

105
do que pela hipotética necessidade de pararmos enfim em qual­
quer parte.
Tal foi o projecto sobre o qual eu assentei pôr-me em
campo, abandonando sem pesar o meu protector, o meu
preceptor, os meus estudos, as minhas esperanças, a expec­
tativa de uma fortuna quase certa, para começar uma vida
de verdadeiro vagabundo. Adeus capital ; adeus corte, ambi­
ção, vaidade, amor, beldades, e todas as grandes aventuras
cuja esperança ali me havia trazido no ano anterior. Parto com
a minha fonte e o meu amigo Bâcle, a bolsa levemente recheada,
mas o coração saturado de alegria, e só pensando em gozar esta
felicidade ambulante a que de súbito havia limitado os meus
brilhantes projectos.
Fiz esta extravagante viagem quase tão agradàvelmente no
entanto como o havia esperado, porém não perfeitamente da
mesma maneira ; pois que, embora a nossa fonte divertisse por
momentos as patroas e as criadas dos albergues, nem por isso
deixava de ser preciso pagar !à saída. Isso, porém, não nos
inquietava, e nós não pensávamos tirar inteiramente partido do
expediente senão quando o dinheiro começasse a faltar-nos.
Um acidente evitou-nos tal trabalho : a fonte quebrou-se perto
de Bramant ; e j á não era sem tempo, porque, sem ousar dizê-lo,
sentíamos que começava a aborrecer-nos. Esta desgraça tornou­
-nos mais alegr,es do que anteriormente, e rimo-nos a bom rir
da nossa loucura, de nos termos esquecido de que os nossos fatos
e os nossos sapatos se gastariam, ou de termos j ulgado poder
renová-los com o manejo da nossa fonte. Continuámos a viagem
tão alegremente como a tínhamos começado, mas marchando
um pouco m ais direito ao termo a que o esgotamento da nossa
bolsa nos impunha como necessário de chegar.
Em Chambéri comecei a pensar, não na tolice que acabava
de fazer, pois que nunca homem algum tomou tão depressa o
seu partido com respeito ao passado, mas no acolhimento que
me esperava em casa de Madame de Warens ; porquanto eu
considerava a sua casa exactamente como a minha casa paterna.
Tinha-lhe co�unicado a minha entrada em casa do conde de
Gouvon ; Madame de Warens sabia em que condições eu ai me
encontrava, e, felicitando-me, dava-me lições muito sensatas
a respeito da maneira como devia corresponder aos favores que
me dispensavam. Considerava a minha fortuna como certa,
se eu por culpa minha a não destruísse. Que diri a ela ao ver-me
aparecer? Não me veio sequer là. ideia que poderia fechar-me
a porta: mas receava o desgosto que ia dar-lhe ; receava as

106
suas censuras, para mim mais duras do que a miséria. Resolvi
sofrer tudo em silêncio e fazer tudo para a acalmar. No uni­
verso só a via a ela : viver sem a sua graça era uma coisa
impossível.
O que mais me inquietava era o meu companheiro de via­
gem, que eu não lhe queria mostrar ainda por cima, e de que
temia não me poder desfazer fàcilmente. Preparei a separação,
mostrando-me muito frio com ele no último dia. o manhoso
compreendeu-me ; era mais doido do que parvo. Julguei que se
magoaria com a minha inconstância ; enganava-me ; o meu
amigo Bâcle não se magoava com coisa nenhuma. Mal havia­
mos posto o pé em Annecy, diz-me ele : Cá estás em tua casa
- e abraçou-me, disse-m e adeus, fez uma pirueta, e desapare­
ceu. Nunca mais ouvi falar dele. O nosso conhecimento e a
nossa amizade duraram ao todo cerca de seis semanas, mas
as suas consequências duraram tanto como eu.
Como o coração me batia ao aproximar-me da casa de
Madame de Warens ! As pernas tremiam-me, os olhos velavam­
-se-me, não via nada, não ouvia nada, não teria reconhecido
ninguém ; fui obrigado a p arar várias vezes para respirar e
acalmar-me. Era o receio de não obter o socorro de que tinha
necessidade que me perturbava a este ponto ? Na ·m inha idade,
o medo de morrer de fome causa tal alarme ? Não, não ; digo-o
com tanta verdade com o orgulho, que nunca em ocasião alguma
da minha vida dependeu do interesse ou da indigência regozi­
jar-se-me ou apertar-se-me o coração. No decurso de uma vida
desigual e memorável em vicissitudes, muitas vezes sem asilo e
sem pão, vi sempre com o mesmo olhar a opulência e a miséria.
Se preciso fosse, poderia mendigar ou roubar como qualquer
outro, mas não inquietar-me por me ver reduzido a tal. Poucos
homens sofreram tanto como eu, poucos choraram tantas lágri­
mas na sua vida ; nunca, porém, a pobreza ou o receio de nela
cair me fizeram soltar um suspiro ou verter uma lágrima. Dos
verdadeiros bens ou dos verdadeiros males, a minha alma,
à prova da fortuna, só conheceu os que não dependem dela, e
foi quando nada de essencial me faltava que eu me senti o
mais infeliz dos mortais.
O aspecto de Madame de Warens tranquilizou-me mal
apareci diante dela. Estremeci ao primeiro som da sua voz ;
lanço-me a seus pés e, no entusiasmo da mais viva alegria,
colo a minha boca à sua mão. Quanto a ela, ignoro se tinha
sabido noticias a meu respeito ; no seu rosto, porém, vi pouca
surpresa, e nenhum desgosto. Pobre crian�a � me disse ela

107
em voz carinhosa - cá estás então novamente? Sabi a bem que
eras demasiado novo para semelhante viagem ; alegro-me ao
menos por saber que não deu tão mau resultado como eu temia.
Depois, obrigou-me a contar-lhe a minha história, que não
foi longa, o que fiz fidelissimamente, suprimindo, no entanto,
certos artigos, sem contudo me poupar, nem me desculpar.
Surgiu a questão do meu aloj amento. Madame de Warens
consultou a criada de quarto. Eu não ousava respirar durante
esta deliberação ; quando ouvi, porém, que dormiria lá em casa,
custou-me a conter-me, e vi levarem o meu saquitel para
o quarto que me foi destinado, pouco mais ou menos como
Saint-Preux viu repor a sua cadeira em casa de Madame de
Wolmar 1• Tive além disso o prazer de saber que este favor
não seria passageiro ; e em certo momento que me supunham
atento a qualquer outra coisa, ouvi-a dizer : Dirão o que quise­
rem ; mas visto que a Providência mo traz de novo, estou resol­
vida a não o abandonar.
Eis-me, pois, instalado em sua casa. Todavia, a minha
instalação de agora não é aquela a partir da qual dato os dias
felizes da minha vida, mas serviu para a preparar. Posto que
aquela sensibilidade do coração, que nos faz verdadeiramente
gozar de nós, sej a obra da natureza, e talvez um produto da
organização, tem contudo necessidade de situações que a desen­
volvam. Sem estas causas ocasionais, um homem de grande
sensibilidade inata nada sentiria, e morreria sem ter conhecido
o seu lar. Era o que eu tinha sido pouco mais ou menos até
então, e era o que talvez fosse sempre, se não houvesse conhecido
Madame de Warens, ou se, mesmo havendo-a conhecido, não
tivesse vivido j unto dela o tempo suficiente para adquirir o doce
hábito dos sentimentos afectuosos que ela me inspirou. Ousarei
dizer que quem apenas sente o amor não sente o que há de mais
doce na vida? Conheço outro sentimento, talvez menos impe­
tuoso, mas mil vezes mais delicioso, algumas vezes aliado ao
amor, frequentemente separado dele. Este sentimento também
não é apenas a amizade ; é mais voluptuoso, mais terno : não
penso que possa actuar com alguém do mesmo sexo ; pelo menos
eu fui amigo como homem algum ainda o foi, e nunca o expe­
rimentei com nenhum dos meus amigos. Isto não é claro, mas
subsequentemente virá a sê'-lo ; os sentimentos só se descrevem
bem através dos seus efeitos.

1 Referência a um passo da Nova Heloísa, do próprio autor. - N. do lf".

108
Madame de Warens habitava numa velha casa, suficiente­
mente grande no entanto para ter um belo quarto sobresselente,
de que fez a sua sala de visitas, e foi ali que me aloj aram. Este
quarto dava para a passagem de que falei, na qual ocorreu a
nossa primeira entrevista, e, para lá do regato e dos j ardins,
avistava-se o campo. Para o seu j ovem habitante, esta vista
não era coisa indiferente. Depois de Bossey, era a primeira
vez que via verdura em frente das minhas j anelas. Metido
sempre entre quatro paredes, aos meus olhos não se deparavam
senão telhados ou o pardacento das ruas. Como me foi sensível
e doce tal novidade ! Aumentou muito as minhas disposições
para a ternura. Para mim, esta encantadora paisagem era
ainda um dos favores da minha querida protectora ; parecia-me
que a havia ali posto expressamente para mim ; mansamente
nela me colocava ao seu lado ; por toda a parte a via entre as
flores e a verdura ; os seus encantos e os da Primavera confun­
diam-se aos meus olhos. O meu coração, até então sopeado,
achava-se mais à larga neste espaço, e os meus suspiros exa­
lavam-se mais livremente no meio destes vergéis.
Em casa de !M:adame de Warens não se via a magnificência
que encontrara em Turim ; nela se encontrava, porém, a elegân­
cia, a decência, e uma abundância patriarcal, com a qual nunca
se associou o fausto. Tinha pouca baixela de prata, não tinha
porcelanas, na cozinha não havia caça, nem na adega vinhos
estrangeiros ; mas tanto uma como outra estavam bem forne­
cidas para servir toda a gente, e nas chávenas de faiança servia
ela um excelente café. Quem quer que a viesse visitar, ficava
convidado para j antar com ela ou em sua casa ; e nunca ope­
rário, recoveiro ou transeunte algum saía de lá sem comer ou
beber. O pessoal compunha-se de uma criada de quarto, de
Friburgo, bastante bonita, chamada Merceret, de um criado da
sua terra, chamado Claude Anet, de que falarei ao diante,
de uma cozinheira e dois portadores de cadeirinha ajustados
para quando saia de visita, o que raramente fazia. Tudo isto era
de mais para duas mil libras de renda ; contudo, os seus peque­
nos rendimentos bem administrados poderiam chegar para tudo
numa região em que a terra é muito boa e o dinheiro muito raro.
Infelizmente, a economia não foi nunca a virtude favorita de
Madame de Warens : endividava-se, pagav a ; o dinheiro andava
numa roda-viva, e tudo marchava.
A maneira como el a tinha a casa montada era precisa­
mente a que eu teria escolhido : imagine-se se não havia de
aproveitar com prazer tal coisa. O que menos me agradava era

109
ter de ficar dur�nte tanto tempo à mesa. Madame de Warens
dificilmente suportava o primeiro odor da sopa e das comidas,
que quase a fazia desmaiar, e a sua repugnância durava bas­
tante tempo. Voltava a si a pouco e pouco, conversava, mas
não comia. Só ao fim de uma meia hora experimentava o
primeiro bocado. Neste entretempo, teria eu j antado tvês vezes ;
a minha refeição havia terminado muito antes de ela iniciar a
sua. Recomeçava para lhe fazer companhi a ; comia, assim,
por dois, e nem por isso passava pior. Enfim, entregava-me ao
doce sentimento de bem-estar que experimentava j unto dela,
tanto mais quanto a esse bem-estar de que gozava se não
j untava cuidado algum a respeito dos meios de o sustentar.
Como ainda me não confiava intimamente o estado dos seus
negócios, eu supunha que €les continuavam sempre na mesma.
Continuei depois a achar os mesmos atractivos em sua casa ;
contudo, mais ao corrente da sua situação real, e vendo que
tais atractivos lhe usurpavam os rendimentos, não gozei deles
tão tranquilamente. A previdência estragou-me sempre o pra­
zer. Vi o futuro inutilmente ; nunca pude evitá-lo.
Logo no primeiro dia se estabeleceu entre nós a mesma
doce familiaridade que subsistiu até ao fim da sua vida. Deu-me
o nome de filho; o seu era o de mamã; e ficámos sempre filho
e mamã, mesmo quando o número de anos quase fez desapare­
cer a diferença que entre nós havia. Acho que estes dois nomes
dão maravilhosamente a ideia do nosso tom, da simplicidade
das nossas maneiras, e sobretudo da ligação dos nossos cora­
ções. Madame de Warens foi para mim a mais carinhosa das
mães, sem j amais procurar o seu próprio prazer, mas sempre
o meu bem ; e se os sentidos eontaram na minha dedicação
por ela, não foi para mudar a natureza desta, mas simplesmente
para a tornar mais delicada, para me embriagar com o encanto
de ter uma mamã j ovem e bonita a quem era delieioso acari­
nhar : digo acarinhar ao pé da letra, visto que nunca ela pensou
em evitar os beijos ou as mais ternas caricias maternais, nem
nunca entrou no meu coração a ideia de abusar delas. Todavia,
dir-se-á que por fim tivemos relações doutra espécie : de acordo ;
mas é preciso esperar, não posso dizer tudo ao mesmo tempo.
O único momento de verdadeira paixão que j amais ela me
fez experimentar foi o reLance de olhos da nossa primeira entre­
vista ; e mesmo assim tal momento foi produto da surpresa.
A indiscrição dos meus olhares nunca ia esquadrinhar o que
ficava debaixo do seu ·lenço, se bem que certa opulência mal
disfarçada nesse sitio pudesse muito bem ali atrai-los. Junto

110
dela não tinha nem entusiasmos nem desejos; conservava-me
numa serenidade encantadora, gozando sem saber de quê. Teria
assim passado a vida e até a eternidade sem me aborrecer um
instante. Foi ela a única pessoa com a qual nunca senti aquela
secura nas conversas que me transforma num suplicio o dever de
as sustentar. Os nossos colóquios não eram tanto práticas como
uma palração inesgotável, que precisava de ser interrompida
para terminar. Longe de ser necessário obrigarem-me a falar,
seria antes necessário obrigarem-me a calar-me. A força de
meditar nos seus projectos, Mamã caia em frequentes devaneios.
Pois bem ! eu deixava-a devanear, calava-me, contemplava-a,
e sentia-me o mais feliz dos homens. Tinha ainda uma mania
singular. Sem exigir os favores das conversas a sós, buscava-as
continuamente, e gozava-as com uma paixão que se transfor­
mava em fúria quando os importunos as vinham perturbar.
Logo que alguém aparecia, homem ou mulher, saia eu a res­
mungar, sem poder suportar ficar como terceiro junto dela.
Punha-me a contar os minutos na antecâmara, maldizendo mil
vezes esses eternos visitantes, sem poder imaginar que tivessem
tanta coisa para lhe dizer, pois que eu tinha ainda muito mais.
Quando a não via, era quando sentia toda a força da minha
dedicação por ela. Quando a via, só me sentia contente ; mas
durante a sua ausência, a minha inquietação ia até ao ponto
de se tornar dolorosa. A necessidade de viver com ela dava-me
arrebatamentos de ternura que iam frequentemente até às
lágrimas. Lembrar-me-ei sempre de que num dia santo de
guarda, enquanto ela se achava rezando as vésperas, fui passear
para fora da cidade, com o coração cheio da sua imagem e do
desejo ardente de passar os meus dias junto dela.'Tinha sufi­
ciente senso para ver que presentemente tal coisa não era pos­
sível, e que uma felicidade que tanto prazer me dava seria
curta. Semelhantes ideias davam ao meu devaneio uma tris­
teza que contudo nada tinha de sombrio, e que uma fagueira
esperança temperava. o som dos sinos, que sempre me impres­
sionou singularmente, o canto das aves, a beleza do dia, a
doçura da paisagem, as casas dispersas pelo campo, nas quais
em ideia eu punha a nossa habitação comum; tudo isto me
comovia de tal maneira e me fazia uma impressão tão viva,
suave, triste e enternecedora, que eu me vi como que em êxtase
transportado a esse feliz tempo e a essa feliz morada onde o
meu coração, na posse de toda a felicidade que lhe aprou­
vesse, a gozava em arroubamentos inexprimíveis, sem mesmo
pensar na volúpia dos sentidos. Não me recordo de nunca como

111
nesse momento me ter lançado no futuro com uma tão grande
força de ilusão ; e o que mais me impressionou na recordação
deste sonho, quando ele se realizou, foi ter encontrado os obj ec­
tos exactamente como os havia imaginado. Se houve alguma
vez sonho de homem acordado com o aspecto de uma visão
profética, o meu foi seguramente isso. Só a sua duração ima­
ginária me desiludiu; pois os dias, e os anos, e a vida inteira,
passavam-se nele numa inalterável tranquilidade ; ao passo
que, com efeito, tudo isso apenas durou um momento. Ai de
mim! a minha felicidade mais constante passou-se em sonho ;
a sua realização foi quase no m,esmo instante seguida do des­
pertar.
Seria um nunca mais acabar se contasse permenorizada­
mente todas as loucuras que a recordação da querida Mamã
me fazia cometer quando não a tinha à minha beira. Quantas
ve�es beijei a minha cama, pensando que ela se havia deitado
nela; os cortinados, todos os móveis do quarto, pensando que
eram dela, que ela lhes havia tocado com as suas lindas mãos ;
até o próprio sobrado, no qual me prosternava, pensando que
ela o tinha pisado ! Em sua própria presença, escapavam-me
por vezes extravagâncias que só o mais violento amor parecia
poder inspirar. Um dia, à mesa, quando ela ia a levar um naco
à boca, grito-lhe que ia nele um cabelo : ela deixa-o cair no
prato ; eu agarro-o àvidamente, e engulo-o. Numa palavra, de
mim ao mais apaixonado amante havia uma única diferença,
embora essencial, e que torna a minha situação na casa quase
inconcebível à razão.
Eu havia regressado da Itália, não precisamente como para
lá partira, mas talvez como nunca ninguém na minha idade
de lá regressou. Trouxera não a minha inocência, mas a
minha virgindade. Havia sentido o progresso dos anos ; o meu
temperamento inquieto tinha-se por fim declarado, e a sua
primeira erupção, bem involuntária, havia-me dado a respeito
da minha saúde rebates que pintam melhor do que nada a
inocência em que até então vivera. Em breve tranquilizado,
aprendi aquele perigoso suprimento que engana a natureza,
e livra de muitos desregramentos os rapazes do meu carác­
ter à custa da saúde, do vigor, e algumas vezes da vida. ESte
vicio, que a vergonha e a timidez acham tão cómodo, tem além
disso um atractivo para as imaginações vivas : o de poder dispor
à sua vontade, por assim dizer, de todo o belo sexo, e de pôr ao
serviço dos seus prazeres a beleza que os seduz, sem necessidade
de obter o seu consentimento. Seduzido por esta funesta vanta-

112
gem, procedia de modo a destruir a boa constituição que a
natureza havia restabelecido em mim, e ·à qual eu dera tempo
para se organizar bem. Acrescente-se a esta disposição o local
da minha presente situação ; instalado em casa de uma mulher
bonita, acariciando a sua imagem no fundo do coração, vendo-a
constantemente todo o dia ; rodeado à noite dos objectos que
ma faziam lembrar, deitado numa cama onde sei que ela
esteve deitada. Quantos estimulantes ! Tal ou tal leitor a quem
eles se representam vê-me j á semimorto. Muito ao contrário,
o que devia perder-me foi precisamente o que me salvou,
pelo menos por algum tempo. Embriagado pelo encanto de
viver ao pé dela, pelo desejo ardente de passar os dias com
ela, quer presente, quer ausente, via sempre nela uma afectuosa
mãe, uma irmã querida, uma deliciosa amiga, e nada mais.
Via-a sempre assim, sempre a mesma, e nunca a via senão a
ela. A sua imagem, sempre presente ao meu coração, não dei­
xava nele lugar para qualquer outra; era para mim a única
mulher que existia no mundo; e a extrema doçura dos senti­
mentos que ela me inspirava, não deixando aos meus sentidos
o tempo de despertarem para outros, protegia-me dela e de todo
o seu sexo. Numa palavra, era discreto porque a amava. Em
vista destes efeitos, que exprimo mal, quem puder que diga
de que natureza era a minha afeição por ela. !Por mim, tudo
o que posso dizer é que, se esta já parece bastante extraordiná­
ria, p arecê-lo-á muito mais posteriormente.
Passava o tempo o mais agradàvelmente possivel, ocupado
em coisas que menos me seduziam. Ele era redigir projectos,
passar memórias a limpo, transcrever receitas ; ele era escolher
ervas, picar drogas, olhar por alambiques. No meio de tudo isto,
apareciam multidões de viandantes, de mendigos, de visitas
de todas as espécies. 'Mister era atender ao mesmo tempo um
soldado, um boticário, um cónego, uma bela dama, um irmão
laico. !Praguejava, resmungava, mandava toda esta maldita
barafunda ao diabo. Quanto a ela, a quem tudo divertia, as
minhas fúrias faziam-na rebentar de riso ; e o que mais a fazia
ainda rir era ver-me tanto mais furioso quanto eu próprio não
podia deixar de me rir. Er,am encantadores estes pequenos ins­
tantes, em que eu tinha o prazer de rezingar ; e se durante a
querela surgia novo importuno, ela sabia tirar ainda disso par­
tido para a diversão, prolongando maliciosamente a visita, e
deitando-me olhares que me fariam de bom grado bater-lhe.
Dificilmente se retia de rebentar, ao ver-me, constrangido e
sopeado pelo decoro, lançar-lhe olhares de possesso, enquanto

8
113
no fundo do coração, e mesmo mau grado meu, achava tudo
isto bastante cómico.
Sem me agradar em si mesmo, tudo isto, porém, me diver­
tia, porque fazia parte de uma maneira de ser que eu achava
encantadora. Nada do que se fazia à minha volta, nada de
quanto me obrigavam a fazer estava de acordo com os meus
gostos, mas estava de acordo com o meu coração. Suponho que
teria chegado a amar a medicina, se a minha repugnância por
ela não houvesse propiciado cenas de loucura que constante­
mente nos divertiam : foi talvez a primeira vez que esta arte
produziu semelhante efeito. Eu pretendia conhecer pelo cheiro
um livro de medicina, e o que é mais engraçado é qu.e rara­
mente me enganava. Madame de Warens obrigava-me a provar
as mais detestáveis drogas. Escusado era fugir ou procurar
defender-me ; apesar da minha resistência e das minhas horrí­
veis caretas, quando via os seus lindos dedos todos lambuzados
aproximarem-se-me da boca, forçoso era acabar por abri-la e
chupar. Quando todo o seu diminuto pessoal se j untava na
mesma quadra a ver-nos correr e gritar no meio de gargalha­
das, julgar-se-la assistir, à representação de qualquer farsa, e
de maneira nenhuma que ali se faziam electuários ou elixires.
Contudo, não passava todo o tempo nestas traquinices.
No quarto que ocupava tinha encontrado alguns livros : O Espec­
tador, Puffendorf, Saint-li:vremond, A Henriqueida. !Por desfas­
tio, lia um pouco de tudo isto, se bem que já não tivesse a
antiga paixão da leitura. O Espectador 1, sobretudo, agradou-me
muito e fez-me muito bem. O abade Gouvon tinha-me ensi­
nado a ler com menos avidez e com mais reflexão; a leitura
fazia-me mais proveito. Acostumei-me a reflectir a respeito da
elocução, a respeito da elegância da construção ; exercitei-me
a distinguir o francês puro dos meus idiomas regionais. FUi
levado, por exemplo, a corrigir um erro de ortografia, que como
todos os genoveses fazia, graças a estes dois versos da Hen­
riqueida 2:

Soit qu'un ancien respect pour le rang de leurs maitres


ParLât encor pour lui dans le cceur de ces traítres a.

1 Le Spectateur, de Joseph Addison.


2 La He:nriade, poema de Voltaire (1723).
N. do T.
a Tradução:

Quer porque um antigo respeito pelo sangue de seus senhores


Falasse ainda por ele no coração desses traidores.

114
A palavra parltlt, que me chocou, ensinou-me que se tornava
necessário um t na terceira pessoa do conjuntivo, ao passo que
anteriormente eu escrevia e pronunciava parla como no per­
feito e no indicativo.
Por vezes, conversava com Mamã a respeito das minhas
leituras ; outras vezes, lia a seu lado, o que me dava grande
prazer: exercitava-me a ler bem, o que também me foi ütil.
Já disse que ela possuía um formoso espírito : estava então
em toda a sua frescura. Várias pessoas de letras se empenha­
ram em agradar-lhe, ensinando-lhe a julgar as obras de espírito.
Tinha, se assim posso exprimir-me, o gosto um tanto ou quanto
protestante ; só falava de Bayle, e tinha em muita conta Saint­
-Évremond, que há muito estava morto em França. Isto não
a impedia, porém, de conhecer a boa literatura e de discorrer
bem a respeito dela. Fora educada em boa convivência ;
e. tendo vindo ainda nova para a Sabóia, havia perdido no
comércio da aristocracia da região aquele tom afectado da
região de Vaud, onde as mulheres confundem a pretensão com
o espírito, e só sabem falar por epigramas.
Se bem que só de passagem tivesse visto a corte, exami­
nara-a com um rápido golpe de vista, suficiente para lha
tornar conhecida. Conser;vou sempre nela amigos, e, apesar dos
ciúmes secretos, apesar das murmurações que o seu comporta­
mento e as suas dívidas provocavam, nunca lhe foi retirada a
pensão. Possuía a experiência do mundo e o espírito de reflexão
que faz tirar partido dessa experiência. Tal era o assunto pre­
dilecto das suas conversas, e tal era o género de instrução de
que eu tinha a maior necessidade, em vista do quimérico das
minhas ideias. Líamos juntos La Bruyêre : agradava-lhe mais do
que La Rochefoucault, livro triste e desolador, sobretudo na
mocidade, em que se não gosta de ver o homem como este é.
Quando começava a moralizar, perdia-se às vezes um pouco nos
espaços ; eu, porém ganhava paciência, beijando-lhe de tempo
a tempo as mãos ou a boca, e as suas dilações já não me aborre­
ciam.
:Semelhante vida era doce de mais para poder durar. Eu
sentia-o, e a inquietação de vê-la terminar era a única coisa
que perturbava o meu prazer. Brincando, Mamã estudava-me,
observava-me, interrogava-me, e construía a minha fortuna
à força de proj ectos de que eu podia perfeitamente prescindir.
Felizmente, não se tratava apenas de conhecer as minhas incli­
nações, os meus gostos, as minhas capacidades ; era necessário
encontrar ou provocar as ocasiões de as aproveitar, e tudo isso

115
não era negócio apenas de um dia. Os próprios prej uízos que a
pobre senhora tfnha concebido como beneficiando o meu mérito
recuavam os momentos de o pôr à prova, tornando-a mais
difícil quanto à escolha dos meios. Enfim, tudo marchava ao
sabor dos meus desejos, graças à boa opinião que ela tinha de
mim : mas foi preciso abatê-la, e, desde então, adeus tranqui­
lidade.
·
Um dos seus parentes, chamado 'Monsieur d'Aubonne, veio
visitá-la. E.ra um homem de muito espírito, intrigante, genial
em projectos, como ela, mas que se não arruinava com eles,
uma espécie de aventureiro. ;Acabava de propor ao cardeal
Fleury um plano de lotaria muito sério, que não tinha agradado.
Vinha propô-lo à corte de Turim, onde foi adoptado e posto em
prática. Demorou-se algum tempo em Annecy, e caiu enamorado
da Senhora Mordoma, pessoa muito amável, muito ao meu gosto,
e a única que via �om prazer em casa de Mamã. :Monsieur
d'Aubonne viu-me ; a sua parente falou-lhe de mim: encarre­
gou-se ele de me examinar, de ver para que é que eu serviria, e,
se me achasse de qualidade, de procur�r colocar-me.
IMadame de Warens mandou-me ir a casa dele duas ou três
manhãs a seguir, a pretexto de qualquer recado, e sem me
prevenir de coisa alguma. Foi muito hábil em fazer-me dar à
Ungua, familiarizou-se comigo, pôs-me tanto quanto possivel
à vontade, falou-me em bagatelas e numa infinidade de assun­
tos, tudo sem dar a entender que me observava, sem a mais
pequena afectação, e como se, entretendo-se comigo, quisesse
falar comigo sem embaraços. Estava encantado com ele. O resul­
tado das suas observações foi que eu, apesar do que prometia
o meu exterior e a minha fisionomia viva, era, se não comple­
tamente inepto, .quando menos um rapaz de fraco espírito, sem
ideias, quase sem experiência, numa palavra, muito limitado
de todos os pontos de vista, e que a honra de vir um dia a ser
cura da aldeia era a mais alta fortuna a que podia aspirar. Tal
foi em resumo o que ele disse de mim a Madame de Warens.
Foi a segunda ou terceira vez que me julgaram desta
maneira: não foi a última, e a sentença de IMonsieur \Masseron
foi frequentes vezes confirmada.
A causa destes j uizos liga-se tanto ao meu carácter, que
não se torna necessário explicá-la aqui ; pois que em consciência
percebe-se perfeitamente que eu não poderia sinceramente estar
de acordo com tal coisa, e, apesar do que houvessem dito Mon­
sieur Masseron, Monsieur d'Aubonne e tantos outros, não pode­
ria, com toda a impàrcialidade possível, tomá-los à letra.

116
Em mim j untam-se duas coisas quase inaliáveis, sem que
eu possa imaginar um meio termo : um temperamento assaz
ardente, paixões vivas, impetuosas, e ideias que nascem lenta­
mente, irresolutas e que só me v êm feitas as coisas. Dir-se-ia
que o meu coração e o meu espírito não pertencem ao mesmo
individuo. O sentimento, mais rápido do que o relâmpago, vem
encher-me a alma ; mas em vez de me iluminar, queima-me e
deslumbra-me. Sinto tudo e nada vejo. !Sou arrebatado, mas
estúpido ; preciso de sangue-frio para pensar. O que mais admira,
porém, é que possuo um tacto bastante seguro, penetração,
finura mesmo, logo que me dêem tempo : faço com vagar exce­
lentes improvisos, mas no momento devido nunca fiz nem disse
nada que valesse a pena. Sustentaria uma lindíssima conversa­
ção pelo correio, como dizem que os espanhóis fazem com o
xadrez. Quando li o dito de um duque de Sabóia, que, de viagem,
se voltou para trás, exclamando: «Eu te arranjo, meu negociante
de Paris» \ disse para comigo : Cá estou eu.
Semelhante lentidão no pensar, junta a tal vivacidade no
sentir, não a tenho só quando converso, mas até mesmo quando
estou só ou quando trabalho. As ideias organizam-se-me na
cabeça com a mais incrível dificuldade : circulam nela surda­
mente, fermentam até me perturbarem, me excitarem, me
darem palpitações ; e, no meio de toda esta emoção, não vejo
nada nitidamente, não poderia escrever uma única palavra, pre­
ciso esperar. Insensivelmente, este grande movimento acalma,
este caos ordena-se, cada coisa entra no seu lugar, lentamente,
porém, e depois de longa e confusa agitação. Viram alguma
vez ópera em Itália? Nas mudanças de cenário reina nestes
grandes teatros uma desagradável confusão, que dur a bastante
tempo ; os cenários estão todos misturados ; de toda a, parte
se vêem puxões que causam aflição, e parece que vai tudo desa­
bar : todavia, a pouco e pouco tudo se vai arranjando, nada
falta, e ficamos surpresos de ver suceder a este longo tumulto
um espectáculo encantador. É esta manobra que se faz pouco
mais ou menos no meu cérebro quando quero escrever. Se sou-

1 Este passo refere-se à seguinte anedota, que se conta a respeito


do duque de Sabóia, Carlos Manuel I. Achando-se este em Paris, entrou
numa loja para comprar qualquer coisa; e como tivesse oferecido por ela
um preço irrisório, o negociante respondeu-lhe: «Sim, ora vá à m... !»
No momento, Carlos Manuel nada respondeu. Mais tarde, porém, ao regres­
sar à Sabóia, e achando-se perto de Lyon, a resposta do negociante vem-lhe
à memória, e ele volta-se para trás, na direcção de Paris, e diz: «A votre
gorge, marchand de Paris.» - N. do T.

117
oesse primeiro esperar, e depols exprimir na sua belez a as coiSa:!>
que desta maneira se pintaram nele, poucos autores me teriam
excedido.
Provém daqui a grande dificuldade que tenho em escrever.
Os meus manuscritos, riscados, gatafunhados, confusos, inde­
cifráveis, são testemunha do trabalho que me deram. Não há
um só que não me tivesse sido necessário escrevê-lo quatro ou
cinco vezes antes de entregá-lo ao prelo. Nunca pude fazer
nada de pena na mão, em frente de uma mesa e de papel : é
passeando, no meio das rochas e dos bosques, é à noite na
cama, durante as minhas insónias, que escrevo mentalmente ;
imagine-se que lentidão, sobretudo para um homem absoluta­
mente falho de memória verbal, e que nunca na vida pôde
decorar seis versos. Um que outro dos meus períodos virei-o e
revirei-o cinco ou seis noites de seguida na cabeça, antes de
achá-lo em estado de ser confiado ao papel. Daqui provém
ainda que me dou melhor com as obras que requerem trabalho
do que com as que exigem ser feitas com certa ligeireza, como
as cartas, género de que nunca achei o tom, e cuja ocupação
é para mim um suplício. Não há carta sobre os assuntos mais
insignificantes que me não custe horas e horas de fadiga, ou,
então, se quero escrever imediatamente o que me vem à cabeça,
não sei nem começar nem acabar ; a carta redunda num pala­
vreado longo e confuso ; mal me compreendem ao lê-la.
Custa-me não só exprimir as ideias, como até recebê-las.
Estudei os homens e creio-me um observador razoável: contudo,
nada sei ver do que vej o ; só vejo bem aquilo de que me lembro,
e só nas minhas recordações tenho espírito. Não sinto nada,
não penetro em nada de quanto se diz, de quanto se faz, de
quanto se passa na minha presença. O sinal exterior é tudo o
que me impressiona. Em seguida, porém, tudo isso me vem
à memória : recordo-me do lugar, do tempo, do tom, do olhar,
do gesto, da circunstância ; nada me escapa. Acho então, pelo
que se fez ou se disse, o que se pensou, e raramente me engano.
Tão pouco senhor do meu espírito, só comigo mesmo, ima­
gine-se como deve ser a minha conversação, quando, para falar
a propósito, é preciso pensar logo e a um tempo em mil coisas.
Basta a ideia de tantas conveniências, e a certeza de esquecer
ao menos uma, para me intimidar. Nem sequer compreendo
como se ousa falar em reunião : porquanto, a cada palavra, seria
necessário passar revista a todas as pessoas que aí se encon­
tram ; seria necessário conhecer o seu carácter, saber as suas
histórias para termos a certeza de nada dizer que possa ofender

118
alguém. A este respeito, os que vivem na sociedade têm uma
grande vantagem: como sabem melhor o que devem calar, estão
mais seguros do que dizem ; e mesmo assim largam por vezes
verdadeiras enormidades. Imagine-se o que será daquele que
ali cai de surpresa: é-lhe quase impossível falar impunemente
durante um minuto. Nas conversas a sós, há outro inconve­
niente que ainda acho pior - a necessidade de falar sempre:
quando nos falam é preciso responder, e se não se diz uma
palavra, é preciso reanimar a conversação. Bastaria este insu­
portável constrangimento para me desgostar da sociedade. Não
acho tormento mais terrível do que a obrigação de falar ime­
diatamente e sempre. Não sei se isto se relaciona com a minha
mortal aversão por toda a espécie de dependência ; mas basta
ser absolutamente necessário que eu fale, para infallvelmente
dizer uma tolice.
E o que é mais fatal é que, em lugar de saber calar-me
quando nada tenho a dizer, é então que, para mais depressa
pagar a minha divida, me ataca a fúria de querer falar. Apres­
so-me a balbuciar prontamente palavras sem ideias, felicíssimo
quando elas absolutamente nada significam. Ao querer vencer
ou esconder a minha inépcia, raramente deixo de a mostrar.
Dos mil exemplos que poderia citar, apresento um, que data de
quando já não era criança, mas de um tempo em que, tendo
vivido bastantes anos na sociedade, esta me houvera comuni­
cado o seu à-vontade e o seu tom, se isso tivesse sido coisa
fácil. Uma noite, achava-me na companhia de duas grandes
damas e de um homem que se pode nomear - era o duque de
Gontaut. Não havia mais ninguém na sala, e eu esforçava-me
por produzir algumas palavras, Deus sabe quais ! , numa conver­
sação entre quatro criaturas, das quais três não tinham certa­
mente necessidade do complemento da minha pessoa. A dona
da casa mandou buscar um electuário, que tomava duas vezes
ao dia por causa do estômago. A outra dama, vendo as caretas
que ela fazia, disse-lhe rindo: É electuário de Tronchin ? 1
Não me parece - respondeu no mesmo tom a primeira.
A mim não me parece muito melhor - acrescep.tou galante­
mente o espirituoso !Rousseau. Todos ficaram interditos ; não
se trocou a menor palavra, o menor sorriso, e dai a bocado a
conversa tinha mudado de rumo. Com outra, a enormidade
poderia ter sido apenas engraçada ; dirigida, porém, a uma
mulher demasiado gentil para não ter dado um pouco que falar

1 Espécie de purgativo. - N. ão T.

119
de si, e que eu certamente não tinha a intenção de ofender,
era terrível ; e creio que custou bastante às duas testemunhas,
homem e mulher, evitarem rebentar. São deste género os rasgos
de espírito que deixo escapar quando quero falar sem ter nada
que dizer. Dificilmente esquecerei aquele ; pois que, além de
ser em si mesmo bastante memorável, tenho na mente as suas
consequências, que não raro me vêm à memória.
Eis, creio eu, o bastante para se poder compreender como,
não sendo idiota, passei frequentemente por isso, mesmo junto
de pessoas que estavam em boas condições para me poder julgar :
coisa tanto mais desgraçada quanto é certo a minha fisionomia
e os meus olhos prometerem mais, tornando semelhante espe­
rança frustrada mais sensível aos outros a minha estupidez.
Este pormenor, a que uma ocasião particular deu azo, não é
inútil para o que deve vir a seguir. Contém a chave de muitas
coisas extraordinárias que me viram fazer e que foram atribuí­
das a um feitio selvagem que não tenho. Teria amado a con­
vivência como qualquer outro, se não tivesse a certeza de nela
me revelar não somente com desvantagem para mim, mas intei­
ramente diferente do que sou. A decisão que tomei de escrever
e de me esconder é precisamente a que me convinha. Comigo
presente, nunca viriam a saber o que eu valia, e nem sequer
. o teriam suspeitado ; e foi o que aconteceu com Madame Dupin,
posto que mulher de espírito, e posto haver eu vivido em sua
casa bastantes anos ; ela própria mo disse muitas vezes desde
então. Tudo isto, aliás, sofre certas excepções, e ao assunto
voltarei lá para diante.
Determinada desta forma a medida das minhas capacida­
des, e fixada a situação que me convinha, não se tratou, pela
segunda vez, senão de cumprir a minha vocação. A dificuldade
residia em que eu não houvera feito os meus estudos, e que
nem sequer sabia suficiente' latim para ser padre. Madame de
Warens pensou em mandar-me para o seminário durante algum
tempo. Falou nisso ao superior. Era um lazarista 1 chamado
Monsieur Gros, excelente homenzinho, meio zarolho, magro,
grisalho, o mais espirituoso e o menos pedante dos lazaristas
que conheci ; o que, na verdade, não é dizer muito.
Vinha algumas vezes a casa de !Mamã, que o agasalhava,
o acarinhava, o provocava até, consentindo por vezes que ele
lhe apertasse os atilhos, emprego de que Monsieur Gros se
encarregava de muito boa vontade. Enquanto ele desempenhava

1 Padre da Congregação de S. Vicente de Paulo. - N. do T.

120
esta função, ela corria no quarto de um lado para o outro,
fazendo ora isto, ora aquilo. O Senhor Superior, agarrado aos
atilhos, seguia-a resmungando, e dizendo a cada instante: Mas,
Madame, esteja quieta. Era coisa de um grande pitoresco.
iMonsieur Gros acedeu de bom grado ao proj ecto de Mamã.
Contentou-se com uma pensão bastante módica, e encarregou-se
da minha instrução. Tratava-se apenas de obter o consentimento
do bispo, que não só o deu, como quis pagar a pensão. Consen­
tiu também que eu conservasse o traj o laico até que, graças a
uma experiência, pudessem avaliar do êxito que se devia esperar.
Que mudança ! Tive de sujeitar-me. Ia ao seminário como
se fosse ao suplício. Como é triste um seminário, sobretudo
quando se sai de casa de uma mulher gentil ! Só para lá levei
um livro que havia rogado a \Mamã me emprestasse, e que me
foi de grande remédio. Não será fácil adivinhar que género de
livro era : um livro de música. Entre as prendas que Madame
de Warens cultivara, a música não havia sido esquecida. Tinha
voz, cantava razoàvelmente, e tocava um bocado de cravo:
tivera a complacência de me dar algumas lições de canto ;
e foi preciso começar muito detrás, porque eu mal sabia a
música dos nossos salmos. Em oito ou dez lições de mulher, bas­
tante espaçadas, longe de me habilitar a solfejar, nem a quarta
parte dos sinais musicais aprendi. Eu tinha, no entanto, uma tal
paixão por esta arte, que quis experimentar praticá-la sôzinho.
O livro que levei nem sequer era dos mais fáceis ; eram as can­
tatas de Clérambault 1• Imagine-se qual não terá sido a minha
aplicação e a minha obstinação, quando disser que, sem saber
transposição nem o compasso, consegui ler e cantar sem erros o
primeiro recitativo e a primeira ária da cantata Alfeu e Are­
tusa; é certo que esta ária está tão bem escandida que basta
apenas recitar os versos no seu ritmo para se achar o da ária.
Havia no seminário um maldito de um lazarista que me
atormentou, e me fez ganhar horror ao latim que queria ensi­
nar-me. Tinha os cabelos lisos, gordurosos e pretos, uma cara
de pão de espécies, uma voz de búfalo, olhar de coruj a parda,
crinas de porco-espinho em vez de barba ; o seu sorriso era
sardônico ; os seus membros funcionavam como o poleame de
um manequim : esqueci-me do seu odioso nome; a sua cara
horrorosa e açucarada ficou-me, porém, na memória, e dificil­
mente me lembro dela sem estremecer. Parece-m é encontrá-lo

1 Famoso organista e cravista francês do tempo de Luís XIV, um


dos criadores da cantata francesa. - N. do T.

121
ainda nos corredores, adiantando graciosamente o sujo barrete
para me fazer sinal de entrar no quarto, mais horrível para
mim do que um cárcere. Imagine-se que contraste produzia tal
mestre no discípulo de um abade da corte !
Se houvesse ficado dois meses à mercê deste monstro, tenho
a certeza de que a minha cabeça não resistiria. o bom Monsieur
Gros, porém, apercebendo-se de que eu andava triste, que não
comia, que estava a emagrecer, adivinhou a causa do meu pesar ;
não era difícil. Arrancou-me das garras da minha fera, e, num
contraste ainda mais pronunciado, confiou-me ao mais afável
dos homens : era um abade novo, natural de Faucigny, chamado
Monsieur G:âtier, que seguia o curso do seminário, e que, por
deferência para com Monsieur Gros, e j ulgo que pela humani­
dade, se prestou a roubar aos seus estudos o tempo que cedia
para dirigir os meus ; nunca vi fisionomia mais terna do que a
de !Monsieur G:âtier. Era louro e a barba puxava-lhe para o
ruivo : tinha o porte comum às pessoas da sua região, as quais,
sob uma figura pesada, escondem todas um grande espírito ;
mas o que o distinguia verdadeiramente era uma alma sensível,
afectuosa, dedicada. Nos seus grandes olhos azuis havia uma
mistura de doçura, de ternura e de tristeza, que fazia com que
o não pudéssemos ver sem nos interessarmos por ele. Dir-se-ia,
pelo olhar, pelo tom da voz, que este pobre rapaz previa o seu
destino, e que percebia ter nascido para ser infeliz.
O seu carácter não desmentia a fisionomia; cheio de paciên­
cia e de deferência, parecia antes estudar comigo do que ensi­
nar-me. Não seria preciso tanto para que eu o amasse : o seu
predecessor tinha tornado tal coisa muito fácil. Contudo, apesar
de todo o tempo que me dispensava, apesar de toda a boa
vontade que um e outro despendíamos, e se bem que ele fosse
muito hábil, eu avançava pouco, posto trabalhasse muito. É sin­
gular que possuindo eu bastante compreensão, nunca tivesse
aprendido nada com os mestres, salvo meu pai e Monsieur Lam­
bercier. O pouco mais que sei, aprendi-o sozinho, como se verá
mais adiante. O meu espírito, rebelde a toda espécie de jugo,
não pode sujeitar-se à lei do momento; o próprio receio de não
aprender impede-me de estar atento; com medo de impacientar
quem me fala, finjo ouvir, ele prossegue, e eu nada ouço. O meu
espírito quer regular-se pela sua hora, não pode submeter-se
à de outrem.
Como havia chegado o tempo das ordenações, Monsieur
Gâtier voltou diácono para a sua terra. Levou com ele as
minhas saudades, a minha dedicação, o meu reconhecimento.

122
Fiz por ele votos que foram tão ouvidos como os que fiz por
mim próprio. Alguns anos depois soube que, estando vigário
numa p aróquia, tinha feito um filho a uma rapariga, a única
por quem o seu afectuosíssimo coração j amais se apaixonou.
Foi um escândalo terrível numa diocese com uma administração
severíssima. Os padres de bom exemplo só devem fazer filhos
em mulheres casadas. Como faltou a esta lei do decoro, Mon­
sieur Gâtier foi preso, difamado, expulso. Não sei se depois
conseguiu refazer a sua vida ; mas o sentimento do seu infor­
túnio, profundamente gravado no meu coração, veio-me à
memória quando escrevia o Emílio, e, j untando IMonsieur Gâtier
a Monsieur Gaime, fiz destes dois dignos sacerdotes o original
do Vigário Saboiano. !Desvaneço-me por a imitação não ter
desonrado os modelos.
Quando me achava no seminário, iMonsieur d'Aubonne foi
obrigado a abandonar Annecy. O Intendente lembrou-se de não
achar bem que ele <:ortejasse a mulher. Era fazer como o cão
do j ardineiro; pois que, se bem que Madame Corvezy fosse gentil,
vivia muito mal com ela ; gostos ultramontanos tornavam-lha
inútil, e tratava-a tão brutalmente que se pensou na separação.
Monsieur C'orvezy era um infame, preto como uma toupeira,
gatuno como uma coruja, e que à forç a de vexames acabou por
ser expulso por sua própria culpa. !Diz-se que os provençais se
vingam dos seus próprios inimigos com canções : Monsieur
d'Aubonne vingou-se do seu com uma comédia ; enviou a peça
a Madame de Warens, que ma deixou ver. Agradou-me, e des­
pertou em mim a fantasia de fazer também uma, para experi­
mentar se, com efeito, era tão estúpido como o autor tinha
decretado: mas só em Chambéri é que a executei, ao escrever
o Amante de si próprio. Assim, quando disse no prefácio desta
peça que a havia escrito aos dezoito anos, menti alguns anos.
li: pouco mais ou menos desta altur a que data um sucesso
pouco importante em si mesmo, mas que para mim teve con­
sequências, e que deu que falar na sociedade quando eu o
havia esquecido. Tinha licença de sair uma vez por semana ;
não necessito dizer como a utilizava. Num domingo em que
me encontrava em casa de \Mamã, declarou-se incêndio num
edifício dos frades cordoeiros contíguo. Estes tinham nele o
forno, e o edifício achava-se repleto de feixes de lenha seca até
ao tecto. Tudo ardeu num instante: a casa de Mamã corria
grande perigo, envolvida pelas chamas que o vento trazia
até ali. Dispúnhamo-nos a despejá-la à pressa, trazendo os
móveis para o j ardim, que ficava em frente das minhas

123
antigas j anelas, para lá do regato de que falei. Eu achava-me
tão perturbado, que atirava indiferentemente pela j anela fora
tudo o que me caía debaixo das mãos, inclusive um grande
almofariz de pedra, que noutra ocasião a custo levantaria. Dis­
punha-me mesmo a atirar com um grande espelho, se alguém
não me houvesse impedido de o fazer. O bom bispo, que nesse
dia tinha vindo visitar Mamã, também não ficou inactivo: des­
ceu ao j ardim e pôs-se a rezar com ela e com todos os que ali
se achavam ; de maneira que, ao chegar pouco depois, vi toda a
gente de j oelhos, e ajoelhei igualmente. Enquanto prosseguia a
oração do santo homem, o vento mudou, mas tão bruscamente e
tão oportunamente, que as chamas que envolviam a casa e en­
travam já pelas j anelas se dirigiram para o outro lado do pátio,
não sofrendo a casa dano algum. Dois anos depois, como Mon­
sieur de Bernex tivesse morrido, os Antoninos, seus antigos con­
frades, começaram a recolher as peças que poderiam servir para
a sua beatificação. A instâncias do padre Boudet, juntei a tais
peças um certificado do facto que acabo de referir, no que
andei bem ; mas no que andei mal, foi em apresentar tal facto
como um milagre. Tinha visto o bispo a rezar, e enquanto ele
se achava rezando, vi o vento mudar e até muito oportuna­
mente; era isto o que eu podia dizer e certificar ; que uma
destas duas coisas fosse a causa da outra, isso é que eu não
devia atestar, porque não o podia saber. No entanto, tanto
quanto posso recordar-me das minhas ideias, procedia de boa
fé, porque era então sinceramente católico. O amor do mara­
vilhoso, tão natural no coração humano, a minha veneração
por aquele virtuoso prelado, o íntimo orgulho por haver eu pró­
prio porventura cooperado no milagre, contribuíram para m e
deslumbrar ; e a verdade é que s e tal milagre tivesse sido resul­
tante de fervorosas preces, poderia muito bem atribuir-me uma
parte nele.
'Quando, passados mais de trinta anos, publiquei as Cartas
da Montanha, Monsieur Freron desenterrou o certificado, não
sei como, e utilizou-o na sua folha. !Deve-se reconhecer que a
descoberta era feliz, e que a oportunidade me pareceu a mim
próprio divertidíssima.
Eu estava destinado a ser o rebotalho de todas as profissões.
Se bem que Monsieur Oâtier houvesse feito acerca dos meus
progressos o relato menos desfavorável que lhe foi possível,
via-se que tais progressos não se achavam em proporção com o
meu trabalho, o que não era encorajante para me fazerem
prosseguir os estudos. De modo que bispo e superior abor-

124
receram-se, e entregaram-me a Madame de Warens eomo um
indivíduo que nem sequer era bom para padre, muito bom rapaz,
de resto, e nada depravado ; donde resultou que, apesar de
tantos prej uízos desanimadores a meu respeito, Madame de
Warens me não abandonou.
Tornei a trazer triunfalmente para casa dela o seu livro
de música, que tanto arranj o me tinha feito. A tal ária de
Alfeu e Aretusa era pouco mais ou menos tudo o que eu havia
aprendido no seminário. A minha queda decidida para esta
arte despertou nela a ideia de me fazer músico : a ocasião era
propícia; em sua casa fazia-se música, ao menos um a vez por
semana, e o mestre de música da catedral, que dirigia o pequeno
concerto, vinha visitá-la com muita frequência. Era um pari­
siense chamado Monsieur Le iMaitre, bom compositor, muito
vivo, muito alegre, ainda novo, de boa presença, com pouco
espírito, mas de resto muito bom homem. !Mamã apresentou-mo :
afeiçoei-me a ele, e eu, por meu turno, não lhe desagradava :
falou-se na pensão, e chegaram a um acordo. iEm suma, fui
para sua casa e nela passei o Inverno tanto mais agradàvel­
mente quanto era certo que não distando a escola de canto
mais de vinte passos de casa de iMamã, estávamos lá num
instante, e lá ceávamos j untos muitas vezes.
Já se deixa ver que a vida da escola, sempre a cantar e
cheia de alegria, na companhia dos músicos e ·dos meninos de
coro, me agradava mais do que a do seminário, na companhia
dos padres de S. Lázaro. Tal vida, no entanto, nem por ser
livre era menos igual e regulada. Nasci para amar a indepen­
dência e nunca abusar dela. 'Durante seis meses inteiros não
sai uma só vez, a não ser para ir a casa de iMamã ou à igrej a,
e nem me tentava fazê-lo. lEste período foi um daqueles em que
vivi no maior sossego, e de que me lembro com o maior prazer.
Nas diferentes situações em que me encontrei, algumas foram
marcadas por um tal sentimento de bem-estar, que ao recordá­
-las me sinto impressionado como se ainda as vivesse. Lem­
bro-me não só das épocas, dos lugares, das pessoas, mas de
todos os objectos circunvizinhos, a temperatura da atmosfera, o
seu cheiro, a sua cor, uma certa impressão local que só ai se fez
sentir, e cuja viva recordação aí me faz voltar de novo. Por
exemplo, tudo o que se ensaiava na escola, tudo o que se cantava
no coro, tudo o que lá se fazia, a bela e nobre indumentária
dos cónegos, as casulas dos padres, as mitras dos chantres, a
fisionomia dos músicos, um velho carpinteiro coxo que tocava
contrabaixo, um abadezito loirinho ,que tocava violino, o farrapo

125
de sotaina que, depois de ter tirado a espada, Monsieur Mattre
envergava por cima do fato laico, e a bela e fina sobrepeliz
com que lhe cobria os andrajos para ir ao coro; o orgulho com
que, de flautita de bocal na mão, eu me ia instalar na orquestra
da tribuna para tocar um pequeno solo que Monsieur Le Maitre
havia composto expressamente para mim, o esplêndido j antar
que em seguida nos esperava, o espléndido apetite que para ele
levávamos; este concurso de objectos vivamente recordados
deleitou-me mil vezes em pensamento, tanto ou mais do que
na realidade. Conservei sempre uma terna afeição por certa
ária do Conditor alma Syderum que se move em j âmbicos, por­
que num domingo do Advento ouvi da cama, antes do alvore­
cer, cantar este hino nas escadarias da catedral, segundo um
rito desta igreja. rMademoiselle Merceret, criada de quarto de
Mamã, sabia um bocado de musica; nunca esquecerei um
pequeno motete Atterte que Monsieur Le !Maitre me fez cantar
com ela, e que a patroa escutava com tanto prazer. Tudo, enfim,
até mesmo a excelente Perrine, a criada, tão boa rapariga e
que os rapazes do coro tanto faziam dar ao cavaco, tudo, nas
recordações desta época de felicidade e de inocência, me acode
frequentemente para me deleitar e me entristecer.
Há perto de um ano que eu vivia em Annecy sem receber a
menor censura: todos estavam contentes comigo. Desde que
partira de Turim, não tinha feito disparates, e continuei a não
os fazer enquanto permaneci sob a vigilância de Mamã. Ela me
guiava, e guiava-me sempre bem ; a minha dedicação por ela
tornara-se a minha unica paixão; e o que prova que não se
tratava de uma paixão insensata, era que o meu coração for­
mava a minha razão. É certo que um unico sentimento, absor­
vendo por assim dizer todas as minhas faculdades, me impedia
de aprender o quer que fosse, nem mesmo a musica, apesar
de todos os esforços que empregava. Mas a culpa não era
minha ; punha nisso toda a minha boa vontade, toda a minha
aplicação. Era distraído, sonhador, suspirava : que podia eu
fazer? Aos meus progressos nada faltava que dependesse de
mim ; para cometer, contudo, novas loucuras, bastava apenas que
um motivo qualquer mas viesse inspirar. Tal motivo apresen­
tou-se ; o acaso arranjou as coisas, e, como se verá depois, a
minha estouvada cabeça tirou delas partido.
Uma noite de Fevereiro em que fazia muito frio, quando
nos achávamos todos em volta do lume, ouvimos bater à porta
da rua. Perrine agarra na lanterna, desce e abre a porta ;
entra com ela um rapaz novo, que sobe; apresenta-se com

126
grande à-vontade, e dirige a Monsieur Le Maitre um breve e
bem apurado cumprimento, dando-se por músico francês cujas
finanças em mau estado o obrigavam a oferecer-se de localidade
cm localidade para seguir o seu caminho. Ao ouvir falar em
músico francês, o coração do bom Le Maitre alvoroçou-se-lhe:
amava apaixonadamente o seu país e a sua arte. Agasalhou
o moço viandante, ofereceu-lhe abrigo, de que este parecia
ter grande necessidade e que aceitou sem se fazer muito
rogado. Examinei-o enquanto se aquecia e palrava à espera
da ceia. Era de pequena estatura, mas com o arcaboiço largo;
o seu tronco tinha não sei quê de contrafeito, mas sem
nenhuma deformação particular ; era por assim dizer um
corcunda de ombros chatos, mas creio que coxeava um pouco.
Trazia um fato preto, mais usado do que velho, caindo aos
bocados, uma camisa muito fina e muito suj a, lindos punhos
de filó, polainas em cada uma das quais podia meter as
duas pernas, e, para se proteger da neve, um· pequeno chapéu
de trazer debaixo do braço. Havia, contudo, nesta indumentária
algo de nobre que a sua atitude não desmentia ; a sua fisiono­
mia era distinta e simpática ; falava correntemente e bem, mas
com muito pouca modéstia. Tudo denotava nele um jovem
estroina que havia tido educação, e que andava mendigando não
como pedinte, mas como doido. iDisse-nos que se chamava
Venture de Villeneuve, ,que vinha de !Paris, que se havia
perdido no caminho ; esquecendo um pouco o seu papel de
músico, acrescentou que ia a Grenoble, ver um parente que
tinha no parlamento.
Durante a ceia falou-se de música, e ele falou dela com
acerto. Conhecia todos os grandes virtuosos, todas as obras céle­
bres, todos os actores, todas as actrizes, todas as mulheres for­
mosas, todos os cavalheiros importantes. Parecia estar ao cor­
rente de tudo o que se dizia ; mal se começava, porém, um
assunto, logo ele embrulhava a conversa, graças a qualquer
garotice que provocava o riso e fazia esquecer tudo o que se
havia dito. Estávamos a um sábado: no dia seguinte havia
música na catedral ; I:Monsieur Le rrviaitre propõe-lhe que fosse
lá cantar: De muito boa vontade; pergunta-lhe que parte can­
tava: a de tenor. . . e fala noutra coisa. tAntes de partirmos
para a igreja, apresentam-lhe a sua parte para que ele a estu­
dasse ; não lhe deitou a vista. Semelhante fanfarronada sur­
preendeu Le Maitre. Vai ver, disse-me este ao ouvido, que não
sabe nem uma nota de música. Receio-o bem, respondi-lhe eu.
Segui-os bastante inquieto. :Ao começarem, o coração batia-me

127
com uma violência terrível, porque me interessava muito por
Monsieur Venture.
Em breve tive motivos para serenar. Cantou os seus dois
solos com toda a afinação e com todo o gosto que se possa
imaginar, e, o que é mais, com uma voz bem bonita. Nunca
tive surpresa mais agradável. Depois da missa, Monsieur Ven­
ture recebeu os intermináveis cumprimentos dos cónegos e dos
músicos, aos quais respondeu galhofando, mas sempre com
muita graça. Monsieur Le Maitre abraçou-o gostosamente ; eu
fiz a mesma coisa: ele percebeu que eu me achava muito con­
tente, o que pareceu agradar-lhe.
Hão-de concordar, estou disso certo, em que, depois de me
haver apaixonado por Monsieur Bâcle, que, no fim de contas,
não passava de um rústico, podia apaixonar-me por Monsieur
Venture, que possuía educação, talento, espírito, prática do
mundo, e que podia passar por um amável estroina. Foi o que
me sucedeu, e o que, estou certo, sucederia a qualquer rapaz
no meu lugar, e tanto mais fàcilmente, aliás, quanto melhor
tacto possuísse para apreciar o mérito, e melhor gosto para se
interessar por ele; porque Venture possuía indubitàvelmente tal
mérito, e possuía sobretudo outro muito raro na sua idade, qual
era o de não romper a mostrar os seus conhecimentos.
li: certo que se gabava de muitas coisas que não sabia ; mas a
respeito das que sabia, e que eram em número bastante elevado,
nada dizia: esperava o momento de as exibir; fazia-as então
valer sem precipitação, o que produzia o maior efeito. Como
parava depois de cada coisa, sem falar do resto, não se podia
saber quando exibiria tudo. Folgazão, divertido, inesgotável na
conversa, sorrindo sempre sem nunca se rir, dizia as coisas mais
grosseiras no tom mais elegante, obrigando as pessoas a descul­
par-lhas. Até as mulheres mais recatadas se admiravam do
que lhe toleravam. Bem faziam por se convencer de que deviam
zangar-se com ele : não tinham força para isso. Só lhe convi­
nham mulheres perdidas, e não creio que houvesse nascido para
ter aventuras galantes, mas havia nascido para dar um encanto
infinito à sociedade das pessoas que o tinham. Com tantos pre­
dicados agradáveis, era dificil que num pais onde estes se conhe­
cem e apreciam permanecesse muito tempo limitado à esfera
dos músicos.
A minha predilecção por Monsieur Venture, mais razoável
na sua causa, foi também menos extravagante nos seus efeitos,
se bem que mais viva e duradoura do que a que me havia
atraido para IMonsieur Bâcle. Gostav a de o ver, de o ouvir;

128
tudo o que ele fazia me parecia um encanto ; tudo o que dizia
m e pareciam oráculos ; o meu entusiasmo, porém, não ia até
ao ponto de não poder separar-me dele. Tinha perto de mim um
bom escudo contra tal excesso. Aliás, embora achasse as suas
máximas muito boas para ele, sentia que não serviam para
mim; necessitava de uma outra espécie de volúpia, de que ele
não fazia ideia, e de que nem sequer me atrevia a falar-lhe,
convicto de que troçaria de mim. No entanto, gostaria de asso­
ciar esta afeição com a que me dominava. Falava dele com
entusiasmo a !Mamã ; Le Maitre fazia-o encomiàsticamente.
Mamã consentiu que lho apresentassem. Tal entrevista não
deu, porém, resultado algum: ele achou-a preciosa ; ela achou-o
libertino ; e, alarmando-se por mim por causa de tão mau conhe­
cimento, proibiu-me não só de lho voltar a trazer, como me
pintou com tanta força os perigos que eu corria com esse rapaz,
que me tornei um pouco mais circunspecto na minha dedicação,
e feliclssimamente para os meus costumes e para a minha
cabeça, em breve nos separámos.
:Monsieur Le IMaitre tinha os prazeres da sua arte; gostava
do vinho. Contudo, à mesa era sóbrio, mas quando trabalhava
no seu gabinete precisava de beber. A criada sabia-o tão bem
que, logo que ele preparava o papel para compor e agarrava no
violoncelo, a garrafa e o copo seguiam-no imediatamente, e a
garrafa renovava-se de tempo a tempo. Sem nunca se achar
completamente embriagado, estava quase sempre tocado; e era
pena, na verdade, porque era um rapaz essencialmente bom e
tão alegre que Mamã lhe chamava o gatinho. Infelizmente,
prezava o seu talento, trabalhava muito e bebia igualmente.
Tal coisa atacou-lhe a saúde e finalmente o humor: tornava-se
às vezes taciturno e ofendia-se com facilidade. Incapaz de
grassarias, incapaz de responder a quem quer que fosse, nunca
dirigiu uma palavra feia, nem sequer a nenhum dos rapazes
do coro; mas também não lhe deviam responder, o que era
j usto. O pior era que, tendo pouco espírito, não distinguia os
modos e os caracteres, e muitas vezes se enxofrava por nada.
O antigo capitulo de Genebra, onde outrora tantos prín­
cipes e bispos consideravam uma honra entrar, perdeu no
exilio o seu antigo esplendor, mas conservou o seu orgulho.
Para nele se poder ser admitido, é preciso ser fidalgo ou doutor
da Sorbona, e, se depois do orgulho que provém do mérito pes­
soal, existe algum outro perdoável, é o que provém do nasci­
mento. Aliás, todos os padres que têm laicos a seu soldo tratam­
-nos em geral com bastante sobranceria. Era assim que os

9 129
cónegos tratavam por vezes o pobre Le Maitre. O chantre, sobre­
tudo, o abade de Vidonne, que era aliás um homem afabilissimo,
mas muito senhor da sua nobreza, nem sempre tinha por ele as
atenções devidas ao seu talento ; e o outro nem sempre supor­
tava de boamente o seu desdém. Na ISemana Santa desse ano,
tiveram eles uma briga mais brava do que de costume, durante o
j antar que o bispo dava habitualmente aos cónegos, e para o
qual Le IMaitre era sempre convidado. O chantre fez-lhe qual­
quer injustiça, e disse-lhe qualquer palavra dura que aquele
não pôde digerir ; tomou imediatamente a resolução de fugir
na noite seguinte, e nada o pôde dissuadir de tal, se bem que
Madame de Warens, de quem se foi despedir, tudo fizesse para
o acalmar. Não pôde resistir ao prazer de se vingar dos seus
tiranos, deixando-os atrapalhados com as festas de Páscoa,
época em que tinham a maior necessidade dele. Mas o que o
atrapalhava a ele próprio era a sua música, que queria levar
consigo, o que não era fácil: esta enchia uma mala bastante
grande e pesada, que não se podia levar debaixo do braço.
Mamã fez o que eu teria feito, e o que faria do mesmo modo
no seu lugar. Vendo-o, depois de tantos esforços inúteis para
o reter, resolvido a partir como quer que fosse, decidiu ajudá-lo
em tudo o que dependesse dela. Ouso dizer que devia fazê-lo,
pois ,que Le Maitre se tinha consagrado, por assim dizer, ao
seu serviço. Quer pelo que dizia respeito à sua arte, quer pelo
que dizia respeito às suas delicadezas, estava inteiramente às
ordens dela, e o amor com que as seguia dava um novo valor
à sua amabilidade. IMadame de Warens não fazia, pois, mais do
que restituir a um amigo, num momento capital, o que este fazia
amiúde por ela, há tflês ou quatro anos ; IMamã, porém, tinha
uma alma que, para cumprir tais deveres, não necessitava pen­
sar que para ela se tratava, de facto, de deveres. Mandou-me
chamar, ordenou-me que seguisse IMonsieur Le IMaitre ao menos
até Lyon, e que lhe fosse dedicado enquanto ele precisasse de
mim. Confessou-me depois que o desej o de me afastar de Ven­
ture tinha contribuído bastante para esta combinação. Consul­
tou Claude Anet, o fiel criado, a respeito do transporte da mala.
Este foi de opinião que, em vez de se alugar em Annecy um
animal de carga, que infalivelmente nos faria descobrir, seria
melhor, quando anoitecesse, levar em braços a mala até certa
distância, e alugar em seguida, em qualquer aldeia, um burro
para a transportar até Seyssel, em terras de França, onde j á
nenhum risco .correríamos. Seguiu-se o seu conselho ; partimos
nessa mesma noite, às sete horas; e Mamã, a pretexto de pagar

130
as minhas despesas, engrossou a magra bolsa do pobre gatinho
com um suprimento que não deixou de lhe convir. Claude Anet,
o j ardineiro e eu levámos a mala como pudemos até à primeira
aldeia, onde um burro nos revezou, e na mesma noite dirigi­
mo-nos para Seyssel.
Parece-me haver j á observado que há épocas em que me
assemelho tão pouco a mim próprio que me poderiam tomar
por outro homem de carácter inteiramente oposto. Vai disso
ver-se um exemplo. Monsieur Reydelet, prior de 'Seyssel, era
cónego de IS. Pedro, conhecido portanto de Monsieur Le Maitre,
P um dos homens de quem este mais devia esconder-se. A minha

opinião, ao contrário, foi que nos apresentássP-mos ao prior,


e lhe pedíssemos alojamento sob qualquer pretexto, como se
ali nos achássemos com o consentimento do capítulo. Esta ideia
agradou a Le 'Maitre, porque lhe tornava a vingança escarninha
e divertida. Dirigimo-nos pois descaradamente para casa de
Monsieur Reydelet, que nos recebeu muito bem. Le Maitre disse­
-lhe que ia a Belley, a instâncias do bispo, para dirigir a música
das cerimónias da Páscoa ; que contava tornar a passar alguns
dias depois, e eu, apoiando-me em semelhante mentira, enfiei
mais umas cem tão naturalmente, que 'Monsieur Reydelet,
achando-me um lindo rapaz, se tomou de amizade por mim e me
fez mil afagos. Fomos bem tratados, bem dormidos. Monsieur
Reydelet não sabia como nos agradar; e separámo-nos como os
melhores amigos do mundo, prometendo demorar-nos mais na
volta. Mal pudemos esperar que nos achássemos sós para
desatar às gargalhadas, e confesso que elas ainda me voltam ao
pensar em tal, pois não se poderia imaginar partida mais bem
pregada e mais feliz. Ter-nos-ia divertido durante toda a j or­
nada se 'Monsieur Le Maitre, que não parava de beber e de
divagar, não fosse por duas ou três vezes acometido de um
ataque a que se tornava bastante atreito e que se parecia muito
com a epilepsia. A coisa lançou-me em complicações que me
aterrorizavam, e das quais pensei livrar-me em breve como
pudesse.
Fomos a Belley passar as festas da Páscoa, como havíamos
dito a Monsieur Reydelet ; e, se bem que não nos esperassem,
fomos recebidos pelo mestre de música e acolhidos por toda a
gente com grande prazer. IMonsieur Le .!Maitre era considerado
pela sua arte, e merecia-o, o mestre de música de Belley hon­
rou-o com as suas melhores obras e tratou de obter a aprovação
de tão bom juiz: porque, além de ser um conhecedor, .!Monsieur
Le 'Maitre era justo, nada invej oso e nada adulador. Era superior

131
a todos esses mestres de música da província, e eles mesmos o
sentiam tão bem, que o olhavam menos como confrade do que
como chefe.
Depois de havermos passado três ou quatro agradáveis dias
em Belley, partimos e prosseguimos a nossa j ornada sem outros
acidentes além dos que acabo de contar. Chegados a Lyon,
albergámo-nos em Nossa Senhora da Piedade, e enquanto espe­
rávamos a mala, que mereê de outra mentira embarcáramos no
Ródano graças aos cuidados do nosso bom protector Monsieur
Reydelet, Monsieur Le Maitre foi visitar os seus conhecidos,
entre os quais o padre Caton, cordoeiro, de quem ao diante
se falará, e o abade Dortan, conde de Lyon. Um e outro rece­
beram-no bem ; mas traíram-no, como se verá dentro em breve ;
a sua felicidade esgotara-se em casa de Monsieur Reydelet.
Dois dias depois de termos chegado a Lyon, passando numa
ruazinha, não muito distante do nosso albergue, Le Maitre foi
subitamente acometido por um dos seus ataques, tão violento
desta vez que fiquei apavorado. Gritei, chamei por socorro, indi­
quei o albergue e supliquei que o levassem ali ; depois, enquanto
as pessoas se j untavam e se desvelavam em volta de um homem
caído no meio da rua sem sentidos e escumando, foi abandonado
pelo único amigo com o qual deveria contar. Aproveitei o mo­
mento em que ninguém pensava em mim ; dobrei a esquina da
rua, e desapareci. Graças ao céu, terminei esta terceira penosa
confissão. Se ainda tivesse muitas semelhantes a fazer, aban­
donaria o trabalho que comecei.
De tudo o que disse até agora, alguns vestígios ficaram nos
lugares onde vivi ; mas o que tenho a dizer no livro seguinte é
quase inteiramente desconhecido. São as maiores extravagân­
cias da minha vida, e felizmente que não acabaram pior.
A minha cabeça, porém, afinada pelo tom de um instrumento
estranho, achava-se fora do seu diapasão : voltou a ele por si
só ; e então parei com as minhas loucuras, ou ao menos cometi
outras que se harmonizavam mais com o meu natural. Esta
época da minha mocidade é aquela de que me lembro mais con­
fusamente. Quase nada suficientemente interessante para o
meu coração nela se passou para que me volte a sua viva recor­
dação, e é difícil que em tantas andanças, em tantas deslo­
cações sucessivas, não faça algumas transposições de tempo e
de lugar. Escrevo absolutamente de memória, sem documentos,
sem materiais que ma possam refrescar. Há acontecimentos na
minha vida que tenho tão presentes como se acabassem de me
suceder; mas há lacunas e vazios que não p osso p reencher senão

132
com a ajuda de relatos tão confusos como a recordação que
deles me ficou. Cometi algumas vezes, pois, erros, e poderei
cometê-los ainda a respeito de insignificâncias, até à época em
que tenho sobre mim indicações mais seguras ; mas no que
verdadeiramente interessa ao assunto, tenho a certeza de ser
exacto e fiel, como sempre procurarei sê-lo em tudo : eis com
o que podem contar.
Logo que deixei Monsieur Le íMaitre, tomei a minha reso­
lução, e voltei para Annecy. A causa e o mistério da nossa par­
tida haviam despertado em mim um grande interesse, quanto
à segurança da retirada ; e tal interesse, apoderando-se de mim
inteiramente, havia-me distraído durante alguns dias do que
me solicitava para trás ; logo, porem, que me achei mais seguro
e tranquilo, o sentimento dominante retomou o seu lugar. Nada
me encantava, nada me tentava, nenhum desej o tinha senão
voltar para j unto de Mamã. A ternura e a verdade da minha
afeição por ela tinham arrancado do meu coração todos os
projectos imaginários, todas as loucuras ambiciosas. Não via
outra felicidade além da de viver ao pé dela, e não dava um
passo sem sentir que me afastava de tal felicidade. Voltei, pois,
logo que me foi possível. O meu regresso foi tão rápido e o meu
espírito achava-se tão distraído que, embora me recorde com
tanto prazer de todas as minhas outras viagens, não guardo a
mínima recordação desta; não me lembro absolutamente de
nada, a não ser a minha partida de Lyon e a minha chegada a
Annecy. Imagine-se sobretudo se esta última época me havia
de sair da memória ! Ao chegar, não encontrei Madame de
Warens; tinha partido para Paris.
Nunca desvendei ao certo o mistério desta viagem. Ter-mo­
-ia dito, estou disso certo, se tivesse apertado com ela ; mas
nunca houve ninguém menos curioso dos segredos dos seus
amigos do que eu: o meu coração, apenas ocupado com o pre­
sente, enche com este toda a sua capacidade, todo o seu espaço,
e, fora dos prazeres passados que constituem doravante as
minhas únicas alegrias, não há nele um canto vago para o que
já não existe. Tudo o que julgo haver entrevisto do pouco que
Madame de Warens me contou foi que, na revolução ocasio­
nada em Turim pela abdicação do rei da Sardenha, ela receava
ser esquecida, e quis, ao abrigo das intrigas de Monsieur
à'Aubonne, buscar os mesmos benefícios na corte de França,
onde frequentemente me havia dito preferi-los, pois que aí a
afluência dos grandes negócios faz com que se não seja tão desa-

133
gradJàvelmente vigiado. Se assim é, admira bastante que à sua
volta lhe não hajam feito pior cara, e que tenha sempre gozado
da pensão sem interrupção. !Muitas pessoas julgaram que
Madame de Warens havia sido encarregada de qualquer missão
secreta, quer por parte do bispo, que tinha então negócios na
corte de França, e onde foi mesmo obrigado a ir, quer por parte
de alguém ainda mais poderoso, que lhe soube propiciar um
feliz regresso. Se assim foi, o que é certo é que a embaixatriz não
havia sido mal escolhida, e que, nova e bela ainda, tinha todos
os dons necessários para se sair bem de uma negociação.

134
LIVRO QUARTO

HEGO e não a encontro. Imaginem a minha surpresa e a

C minha dor! Foi então que comecei a sentir o remorso


de haver cobardemente abandonado Monsieur Le Mattre,
o qual se tornou ainda mais vivo quando soube da desgraça que
lhe tinha acontecido. A mala da música que continha toda a
sua fortuna, essa preciosa caixa, salva com tanto custo, tinha
sido apanhada, ao chegar a Lyon, por diligência do conde Dor­
tan, a quem o capitulo havia escrito, prevenindo-o do furto.
Em vão havia Le :Maitre reclamado os seu bens, o seu ganha­

estava quando menos sujeita a litígio ; não o houve. O


-pão, o trabalho de toda a sua vida. A propriedade da mala
negócio
decidiu-se no mesmo instante pela lei do mais forte, e o pobre
Le 'Maitre perdeu desta maneira o fruto do seu talento, a obra
da sua mocidade, e os recursos dos seus velhos dias.
Nada faltou ao golpe que recebi para o tornar acabrunhante.
Achava-me, todavia, na idade em que os desgostos nos fazem
pouca mossa, e em breve lhes descobri consolações. Esperava ter
dentro em pouco noticias de Madame de Warens, posto des­
conhecesse o seu endereço e ela ignorasse �que eu estava
de volta ; e quanto à minha deserção, não me sentia, no fim
de contas, tão culpado. Fora 'útil a Monsieur Le Mattre
na sua fuga, era este o único serviço que havia dependido de
mim. Se tivesse permanecido com ele em França, não o teria
curado do seu mal, não lhe teria salvo a mala, só faria dupli­
car-lhe as despesas, sem poder servir-lhe para nada. Eis como
eu então via as coisas : hoje, vejo-as diferentemente. Não é
quando uma feia acção acaba de ser cometida que ela nos ator­
menta, mas sim quando muito tempo depois nos acode à memó­

O
ria; porque a sua recordação nunca se apaga.
único remédio que tinha para obter noticias de Mamã
era esperar ; pois como havia eu de ir procurá-la a Paris, e com
que havia eu de fazer a viagem ? Não havia lugar mais seguro
do que Annecy para mais cedo ou mais tarde saber onde ela

135
estava. Fiquei pois aqui. Mas portei-me muito mal. Não fui
ver o bispo, que me havia protegido e que me podia protefler
ainda. Já não tinha a minha protectora j unto dele, e temia as
reprimendas a respeito da nossa evasão. No seminário ainda
menos apareci. IMonsieur Gros já lá não estava. Não vi ninguém
conhecido ; bem desejaria ir visitar a Senhora Superiora, mas
nunca me atrevi a fazê-lo. Ainda fiz pior do que tudo isto : voltei
a encontrar IMonsieur Venture, em quem nem sequer tinha pen­
sado depois da minha partida, apesar de todo o meu entusiasmo
por ele. Encontrei-o próspero e festejado em todo Annecy ; as
damas disputavam-no. Este êxito acabou de me dar a volta ao
miolo. Nada mais vi além de IMonsieur Venture, e este quase me
fez esquecer Madame de Warens. Para aproveitar das suas
lições mais fàcilmente, propus-lhe que partilhasse comigo a sua
morada ; ele concordou. Estava hospedado em casa de um sapa­
teiro, personagem divertida e cómica, que, na sua gíria, não
tratava a mulher senão por porcalhxJna, nome que ela bem
merecia. Tinha com ela pegas que venture se apostava em
fazer durar, parecendo querer fazer o contrário. Dizia-lhes,
friamente, com o seu sotaque provençal, palavras que produziam
o maior efeito ; eram cenas de rebentar a rir. As manhãs pas­
savam-se assim sem se dar por isso: às duas ou três horas,
comíamos qualquer coisa ; Venture partia para as suas assem­
bleias, onde j antava, e eu ia passear sozinho, meditando no seu
grande merecimento, admirando, cobiçando os seus raros dons , e
amaldiçoando a minha triste estrela que me não chamava a
essa feliz vida. Ai, como me enganava a tal respeito ! A minha
teria sido cem vezes mais sedutora se eu houvesse sido menos
tolo, e se houvesse sabido aproveitá-la melhor.
Madame de Warens só tinha levado !Anet c"onsigo; em
Annecy deixara Merceret, a criada de quarto, de que j á falei.
Encontrei-a habitando ainda na casa da patroa. Mademoiselle
Merceret era uma rapariga um pouco mais velha do que eu,
pouco bonita, mas muito agradável ; uma boa friburguesa sem
malícia, e em quem não conheci outro defeito além do de ser por
vezes um pouco teimosa com a patroa. Ia vê-la frequentemente.
Era uma antiga conhecida, e vê-la recordava-me uma outra mais
querida que ma fazia amar. Tinha várias amigas, entre as quais
uma tal Mademoiselle Giraud, genebrina, que por meus pecados
se lembrou de gostar de mim. Instava sempre com IMerceret para
que me levasse a sua casa ; eu consentia em ir, porque gostava
muito de Merceret, e porque havia lá outras pessoas que via de
bom grado. Quanto a \Mad,emoiselle Giraud, que me fazia negaças

136
de todas as espécies, nada se poderá acrescentar à aversão que
tinha por ela. Quando aproximava da minha cara o seu foci­
nho magro e escuro, esborratado de rapé, dificilmente me repri­
mia de escarrar nele. Tinha, porém, pa<:iência ; salvo isso, diver­
tia-me bastante no meio de todas aquelas raparigas, e, fosse
para agradar a IMademoiselle Giraud, fosse para me agradarem
a mim mesmo, todas me festej avam à porfia. Eu em tudo isto
não via senão a amizade. Pensei depois que só dependia de mim
ver mais alguma coisa: não reparava porém em tal, nem nisso
pensava.
Aliás, as costureiras, as criadas, as caixeirinhas não me ten­
tavam. Precisava de meninas finas. Cada qual tem as suas
fantasias, esta foi sempre a minha, e neste capitulo não penso
como Horácio. Contudo, o que me atrai não é de maneira
nenhuma a vaidade da situação ou da categoria ; é uma tez
mais bem conservada, mãos mais belas, adornos mais graciosos,
um ar de delicadeza e de asseio em toda a pessoa, mais gosto
na maneira de vestir e na de falar, vestidos mais finos e mais
bem feitos, calçado mais gentil, fitas, rendas, cabelos mais bem
penteados. Preferirei sempre a menos bonita, contanto que tenha
tudo isto. Eu próprio acho semelhante preferência bastante
ridícula, mas o meu <:oração dá-a, mau grado meu.
Pois bem ! Tal partido apresentava-se-me novamente, e
novamente não dependia senão de mim o aproveitá-lo. Como
gosto de cair de tempos a tempos nos momentos agradáveis
da minha mocidade ! Eram-me tão do<:es ! Foram tão breves,
tão raros, e gozei-os tão fàcilmente ! Ai ! só a sua recordação
restitui ainda ao meu coração uma pura volúpia, de que tenho
necessidade para reanimar a minha coragem e suportar os abor­
recimentos do resto dos meus anos.
Uma manhã, a aurora pareceu-me tão bela, que, vestin­
do-me à pressa, precipitei-me para o campo para ver nascer
o sol. Saboreei todo o eneanto de semelhante prazer ; era a
semana imediata ao S. João. A terra, como que de grande gala,
achava-se coberta de ervas e de flores ; os rouxinóis, quase
no fim dos seus gorjeios, pareciam comprazer-se em prolon­
gá-los; todas as aves, fazendo em eoncerto as suas despedidas
à Primavera, cantavam o nascer de um lindo dia de Verão, de
um destes lindos dias que já não se vêem na minha idade, e
que nunca se viram na triste terra onde hoje habito 1 •

1 Wootton, em Straffordshire. - Nota de Rousseau.

137
Havia-me insensivelmente afastado da cidade ; o calor
&.umentava, e eu passeava sob as sombras de um valezito ao
longo de um ribeiro. Atrás de mim ouço passos de cavalo e vozes
de raparigas que pareciam atrapalhadas, mas que nem por isso
riam de menos boa vontade. Volto-me, chamam-me pelo meu
nome, aproximo-me, e encontro duas raparigas minhas conhe­
cidas, !Mademoiselle de Graffenried e IMademoiselle Galley, que,
não sendo boas amazonas, não sabiam como obrigar os cavalos
a atravessar o ribeiro. Mademoiselle de Graffenried era uma
rapariga de Berna, muito gentil, que, devido a algumas loucuras
próprias da idade, havia sido expulsa da sua terra e imitara
Madame de Warens, em casa de quem a vira algumas vezes ;
não tendo, porém, alcançado uma pensão como esta, dera-se por
muito feliz em se ligar com Mademoiselle Galley, a qual, afei­
çoando-se-lhe, tinha levado a mãe a dar-lha por companheira,
até que a pudessem colocar de qualquer maneira. Mademoi­
selle Galley, mais nova um ano do que ela, era ainda mais
bonita ; tinha não sei quê de mais delicado, de mais fino ; era
ao mesmo tempo miudinha e bem constituída, o que é o mais
belo momento para uma rapariga. Ambas se amavam com ter­
nura, e o bom carácter de uma e de outra só poderia conservar
por muito tempo esta união, se é que qualquer namoro a não
viesse estragar. Disseram-me que iam para Toune, velho castelo
pertencente a !M:adame Galley; imploraram o meu socorro para
obrigar os cavalos a atravessar, porque sozinhas não o poderiam
levar a cabo. Quis chicotear os cavalos ; mas temiam por mim
os coices e por elas os pinotes. Recorri a outro expediente. Peguei
no cavalo de Mademoiselle Galley pelo freio, e depois, levando-o
atrás de mim, atravessei o ribeiro com água até meio das pernas,
tendo-me o outro cavalo seguido sem dificuldade. Feito isto, quis
cumprimentar as moças, e partir como um palerma : elas tro­
caram algumas palavras entre si em voz baixa, e iMademoiselle
de Graffenried, dirigindo-se a mim, disse : Não, não, não nos
fugis sem mais nem menos. 'Molhastes-vos para nos servir ; e nós,
em consciência, devemos cuidar de vos enxugar : é mister que
nos acompanheis, por favor ; levamo-vos ·como nosso prisio­
neiro. O coração batia-me, e olhei para Mademoiselle Galley.
Sim, >sim - acrescentou esta, rindo-se da minha cara de
espanto - prisioneiro de guerra; subi para a garupa do cavalo
de !M:ademoiselle de Graffenried ; ,queremos arcar com a res­
ponsabilidade da vossa pessoa. Mas, Mademoiselle, eu não tenho
a honra de cónhecer a Senhora sua IMãe; que vai ela dizer,
vendo-me aparecer? A mãe não está em Toune - ripostou

138
Mademoiselle de Graffenried - estamos sozinhas ; voltamos esta
noite e vós voltais connosco.
O efeito da electricidade não é mais rápido do que o que
semelhantes palavras produziram em mim. Ao atirar-me para
cima do cavalo de Mademoiselle de Graffenried tremia de ale­
gria, e quando tive que a abraçar para me segurar, o coração
batia-me com tanta violência que ela o notou ; disse-me que o
dela também lhe batia assim por causa do medo de cair ; era
quase, na minha posição, convidar-me a verificar a coisa ; nunca
me atrevi a fazê-lo, e, durante todo o trajecto, os meus braços
serviram-lhe de cinta, muito apertada na verdade, mas sem
se desviarem um só momento. Haverá mulheres que ao lerem
isto me esbofeteariam de bom grado, e não andariam mal.
A j ovialidade da viagem e a tagarelice das raparigas agu­
çaram de tal maneira a minha, que até à noite, e enquanto
permanecemos juntos, nem um só momento deixámos de falar.
Tinham-me posto tanto à vontade, que a minha língua falava
tanto como os meus olhos, se bem que não dissesse as mesmas
coisas. Só em certos momentos, quando me encontrava sozinho
com uma ou com outra, é que a conversa se embrulhava um
pouco ; mas a ausente voltava em breve, e não nos dava tempo a
que a embrulhada se esclarecesse. Chegados a Toune, comigo
bem seco, almoçámos. Depois foi preciso proceder• à importante
questão de preparar o j antar. Enquanto cozinhavam, as duas
raparigas beijavam de vez em quando os filhos da caseira, e o
pobre bicho-de-cozinha via-as assim proceder roendo o freio. Da
cidade tinham enviado mantimentos, e havia com que fazer um
bom jantar, sobretudo em matéria de guloseimas ; infelizmente,
porém, tinham-se esquecido do vinho. Tal esquecimento não
surpreendia raparigas que não bebiam : eu, contudo, aborreci-me
com a história, pois que havia contado um pouco com seme­
lhante recurso para me tornar afoito. Também elas ficaram
aborrecidas, talvez pelas mesmas razões, mas não o creio. A sua
viva e encantadora alegria era a própria inocência ; e, aliás, que
poderiam elas fazer de mim entre as duas ? Mandaram pro­
curar vinho por todos os arredores ; não o encontraram, de tal
maneira os aldeões deste cantão são sóbrios e pobres. Como
me mostrassem o seu pesar, disse-lhes que não estivessem tão
desgostosas, que não precisavam de vinho para me embriagarem.
Foi o único galanteio que me atrevi a dizer-lhes em todo o
dia ; creio, porém, que as velhacas viam de resto que tal galan­
teio era a verdade.

139
Jantámos na cozinha da caseira, as duas amigas sentadas
em bancos dos dois lados da comprida mesa, e o hóspede entre
as duas, numa tripeça. Que j antar ! Que recordação encanta­
dora ! Podendo-se tão fàcilmente gozar prazeres tão puros e tão
verdadeiros, porque querer procurar outros? Nunca ceia alguma
nos botequins de !Paris se assemelhou a esta refeição, não digo
apenas na graça, na doce alegria, mas até na sensualidade.
Depois do j antar, fizemos uma economia. Em vez de tomar
o . café que nos sobrara do almoço, guardámo-lo para a merenda,
com o creme e os bolos que elas haviam trazido ; e para man­
termos o apetite desperto, fomos para o pomar acabar a sobre­
mesa com cerejas. Eu subi à árvore e atirava-lhes com molhos
delas, reenviando-me elas os caroços através dos ramos. De uma
vez, iMadamoiselle Galley, estendendo o avental e recuando a
cabeça, postou-se tão bem, e eu visei com tanta certeza, que
lhe fiz cair um molho de cerejas no seio ; e desatámos a rir.
Eu dizia para comigo mesmo : Porque não são os meus lábios
cerejas ! Como lhos atiraria igualmente de boa vontade !
O dia passou-se assim brincando com a maior liberdade, e
sempre com a maior compostura. Nem uma só palavra equívoca,
nem uma só graça atrevida ; e tal compostura de m aneira
nenhuma a impúnhamos a nós próprios ; vinha naturalmente,
e o tom que empregávamos era o que nos ditavam os nossos
corações. Enfim, o meu recato, outros dirão a minha idiotice,
foi tal, que a única intimidade que me escapou foi beijar uma
só vez a mão de Mademoiselle Galley. É certo que a circuns­
tância aumentava o preço deste ligeiro favor. Estávamos sós,
eu respirava a custo, ela tinha os olhos baixos. Em vez de achar
palavras, a minha boca lembrou-se de se lhe colar à mão, que
ela retirou vagarosamente, depois de eu a ter beijado, olhan­
do-me com um ar nada irritado. Não sei o que seria capaz de
lhe dizer : a amiga entrou, e nesse momento pareceu-me feia.
Por fim, lembraram-se de que se não devia esperar que
anoitecesse para regressar à cidade. Só nos restava o tempo
suficiente para chegar com dia, e demo-nos pressa em partir,
distribuindo-nos conforme tínhamos vindo. Se me tivesse atre­
vido, teria alterado esta ordem ; porque o olhar de Mademoiselle
Galley havia-me vivamente perturbado o coração ; contudo,
não ousava dizer-lhe nada, e não lhe competia a ela propor a
troca. Enquanto íamos andando, íamos dizendo que o dia fazia
mal em acabar ; no entanto, longe de lamentarmos que este
houvesse sido curto, achávamos que Unhamos tido o segredo de

140
o tornar comprido, graças a todas as brincadeiras com que sou­
béramos enchê-lo.
Deixei-as pouco mais ou menos no mesmo sitio em que elas
se haviam apoderado de mim. Com que mágoa nos separámos !
Com que prazer projectámos voltar a encontrarmo-nos ! Doze
horas passadas juntos valiam para nós séculos de familiaridade.
A doce recordação deste dia nada custava àquelas gentis rapa­
rigas: a afectuosa união que reinava entre nós três valia os
m ais vivos prazeres, e não teria podido subsistir com eles :
amávamo-nos sem mistério e sem vergonha, e queríamos amar­
-nos sempre assim. A inocência dos costumes tem a sua volúpia,
que vale bem a outra, porque não tem interrupções e opera con­
tinuamente. !Por mim, sei que a recordação de tão belo dia me
comove mais, me encanta mais, me ocorre mais ao coração do
que a de quaisquer outros prazeres que gozei n a vida. Não sabia
muito bem o que queria destas duas encantadoras criaturas,
mas ambas me interessavam sobremodo. Não digo que, se tivesse
sido senhor das minhas disposições, o meu coração se sentiria
dividido ; havia nele uma ligeira preferência. Teria feito a
minha felicidade tendo por namorada Mademoiselle Graffen­
ried ; mas a escolher, creio que teria gostado mais dela para
confidente. Como quer que seja, parecia-me ao deixá-las que
não poderia mais viver sem uma e sem outra. Quem me diria
que não as tornaria a ver, e que ali acabariam os nossos efé­
meros amores?
Quem isto ler não deixará de rir das minhas aventuras
galantes, notando que depois de tantos preliminares, as m ais
ousadas acabam numa mão beijada. ó leitores meus ! Não
tenhais ilusões. Talvez tenha tido mais prazer nos meus amores
que terminam nessa mão beijada, do que vós nunca tivestes
nos vossos, começando pelo menos por aí.
Vrmture, que na véspera se havia deitado muito tarde,
entrou pouco depois de mim. Desta vez não o vi com a mesma
satisfação do costume, e evitei contar-lhe como passar'a o
dia. As raparigas tinham-me falado dele com pouca simpatia,
e pareciam-me descontentes por me saber em tão ruins mãos:
isto prejudicou-o no meu espírito ; aliás, tudo o que me distraia
delas só me podia ser desagradável. Contudo, em breve me
chamou a si e a mim, falando-me da minha situação. Esta era
demasiado critica para poder continuar. Posto que despendesse
pouco, o meu pequeno pecúlio acabava de se esgotar : estava
sem recursos. A respeito de noticias de Mamã, nada ; não sabia
�" '\\ ,\ " ' '- ,

141
que fazer, e sentia o coração terrivelmente oprimido por ver
o amigo de Mademoiselle Galley reduzido a esmolar.
Venture disse-me que havia falado de mim ao senhor Vice­
-Senescal, e que queria lá levar-me a j antar no dia seguinte ;
que se tratava de um homem que me podi a prestar serviços
graças aos seus amigo s ; aliás, um bom conhecimento a fazer,
um homem de espirito e de letras, de um comércio muito agra­
dável, inteligente e gostando das pessoas inteligentes : em
seguida, misturando como de costume às coisas mais sérias a
mais medíocre frivolidade, mostrou-me umas engraçadas copias
vindas de Paris, sobre uma ária de uma ópera de Mouret que
então se representava. Estas copias haviam agradado tanto
a IMonsieur Simon ( era este o nome do Vice-Senescal ) que ele,
em resposta, queria fazer outras sobre a mesma ária: tinha dito
a Venture que fizesse também umas ; e este teve a loucura de
me levar a fazer terceiras, para que, dizia ele, se vissem as
copias chegar no dia seguinte, como as padiolas do Romance
Cómico 1•
A noite, não podendo dormir, fiz como pude as minhas
copias. Para versos que escrevia pela primeira vez, escapavam,
talvez melhores até, ou ao menos escritos com mais gosto, do
que o haveria feito na véspera, pois que o assunto girava à
volta de uma dulcíssima situação, coisa para que o meu cora­
ção se achava já inteiramente preparado. De manhã mostrei as
minhas copias a Venture, que as achou muito bonitas e as
meteu no bolso sem me dizer se havia feito as dele. Fomos
jantar a casa de lMonsieur Simon, que nos recebeu muito bem.
A conversa foi agradável : não podia deixar de o ser entre dois
homens de espírito, a quem as lefturas haviam aproveitado.
Por mim, desempenhava o meu papel, escutava, e calava-me.
Nem um nem outro falou das copias ; também não falei nelas, e,
que eu saiba, nunca as minhas vieram à baila.
Monsieur Simon pareceu gostar da minha atitude : foi
pouco mais ou menos tudo quanto de mim apurou nesta entre­
vista. Já me tinha visto várias vezes em casa de Madame de
Warens, sem fazer grande caso de mim. 1: pois deste j antar que
posso datar o nosso conhecimento, o qual de nada me serviu
pelo que respeita ao obj ectivo que me haví a levado a procurá-lo,
mas de que depois tirei diferente proveito, que me lev a a
recordá-lo com prazer.

1 Referência a um passo do célebre romance de Scarron. - N. do T.

142
Andaria mal se não falasse da sua figura, da qual, a j ulgar
pela sua qualidade de magistrado, e pela finura de espírito de
que se ufanava, nenhuma ideia se faria se eu dela nada dissesse.
O senhor Vice-Senescal Simon não tinha seguramente dois pés
de altura. As pernas, direitas, finas e mesmo bastante compridas,
tê-lo-iam tornado maior se fossem verticais ; mas pousavam de
viés, como as de um compasso muito aberto. O corpo não só
era curto, como delgado, e, sob todos os aspectos, de uma peque­
nez inconcebível. Devia parecer um gafanhoto quando nu. A
cabeça, de tamanho natural, com um rosto bem formado, um
ar nobre, olhos bastante bonitos, parecia uma cabeça postiça
plantada sobre um coto. Poderia evitar despesas com o fato,
porque só a grande cabeleira o vestia perfeitamente dos pés à
cabeça.
Tinha duas vozes inteiramente diferentes, que alternavam
constantemente na conversação, primeiro num .contraste engra­
çadíssimo, mas bastante desagradável em breve. Um a era grave
e sonora ; era, se assim posso dizer, a voz da cabeça. A outra
nítida, aguda, penetrante, era a voz do corpo. Quando se expri­
mia com muito apuro, quando falava muito pausadamente,
quando poupava o fôlego, podia falar sempre com a voz grossa ;
mas mal se animava, mal uma inflexão mais viva se propor­
cionava, logo essa inflexão se transformava como que no silvo de
uma chave, e ele tinha a maior dificuldade desta vida em reto­
mar a sua voz de baixo.
Com a figura que acabo de pintar, e que não é exagerada,
Monsieur Simon era amável, galanteador, e levava até ao coque­
tismo os cuidados do seu amanho. Como procurava tirar partido
da sua pessoa, dava de bom grado as suas audiência de manhã
n a cama ; pois que ao ver-se na travesseira aquela bela cabeça,
ninguém ia imaginar que a coisa não passava dai. Isto deu por
vezes lugar a cenas de que tenho a certeza toda Annecy se
lembra ainda. Uma manhã em que nesse leito, ou antes, sobre
esse leito, em bela coifa de dormir muito fina e muito branca,
enfeitada com dois grandes laçarotes cor-de-rosa, ele esperava
os queixosos, aparece um aldeão, que bate à porta. A criada
tinha saído. Como o !Senhor Juiz ouvisse bater de novo, grita :
Entre; e isto, como houvesse sido dito um pouco forte de mais,
saiu-lhe com a voz aguda. o homem entra ; procura donde parte
aquela voz de mulher, e vendo no leito uma touca, um laçarote
de fitas, quer sair, dirigindo a «Madame» muitas deseulpas.
Monsieur Simon zangá-se, o que o faz gritar ainda com voz
mais aguda. o aldeão, confirmado na sua ideia, e julgando-se

143
insultado, descompõe-no, diz-lhe que segundo toda a aparência
ela não passa de uma rameira, e que o Senhor Juiz não dá.
lá muito bons exemplos em sua própria casa. O juiz, furioso,
e tendo por armas apenas o bacio, ia atirá-lo à cara do pobre
homem, quando a governanta entrou.
Este anãozinho, tão pouco favorecido de corpo pela natu ­
reza, havia recebido dela uma compensação pelo lado do espí­
rito : este era naturalmente agradável, e ele tivera o cuidado
de ilustrá-lo. Embora fosse, segundo se dizia, bom j uriscon­
sulto, não gostava da profissão. Tinha-se lançado na literatura
amável, e havia-se saído bem. Nela adquirira sobretudo
aquela tintura brilhante, aquela flor que cativa no trato,
mesmo com as mulheres. Sabia de cor todos os ditinhos anedó­
ticos e outros semelhantes : tinha arte de os fazer render, con­
tando com interesse, com mistério, como sendo uma anedota
da véspera, o que se havia passado há sessenta anos. Sabia
musica e cantava com agrado na sua voz de homem : tinha,
enfim, bastantes dons apreciáveis para um magistrado. A força
de adular as damas de Annecy, havia caido na moda entre elas :
tinham-no sempre na cola como um pequeno saju. Pretendia
mesmo ter muita sorte com elas, o que as divertia imenso. Uma
dama d'.Épagny dizia que para ele o derradeiro favor era beijar
uma mulher no j oelho.
Como conhecia os bons livros, e falava deles de bom grado,
as suas conversas eram não só engraçadas, mas instrutivas.
Posteriormente, quando ganhei gosto ao estudo, cultivei a sua
convivência, e dei-me muito bem. De Chambéri, onde me achava
então, ia algumas vezes visitá-lo. Louvava, animava a minha
emulação, dando-me acerca das minhas leituras bons conselhos,
que utilizei frequentemente em meu proveito. Infelizmente,
naquele corpo tão franzino habitava uma alma muito sensível.
Alguns anos mais tarde, uma questão qualquer desagradável
·
desgostou-o, e morreu. Foi pena ; era seguramente um bom
homenzito, de quem começávamos por nos rirmos, e que aca­
bávamos por amar. Se bem que a sua vida se tenha achado
pouco ligada à minha, como recebi dele úteis lições, julgo, por
gratidão, dever dedicar-lhe uma pequena recordação.
Logo que me achei livre, corri à rua de Mademoiselle Galley,
persuadido de que devia ver entrar ou sair alguém, ou ao
menos abrir qualquer j anela. Nada, nem um gato apareceu, e
durante todo o temp o que ali permaneci a casa conservou-se
fechada como se não estivesse habitada. A rua era pequena e
deserta, qualquer homem se fazia notar : de tempo a tempo

144
alguém passava, entrava ou saia da vizinhança. Eu estava gran­
demente atrapalhado com a figura que fazia : parecia-me que
adivinhavam porque é que ali me achava, e semelhante ideia
torturava-me, porque sempre preferi aos meus prazeres a honra
e a tranquilidade das minhas ado11adas.
Cansado, enfim, de fazer de namorado espanhol, para mais
sem guitarra, tomei a decisão de escrever a !M:ademoiselle Graf­
fenried. Gostaria mais de escrever à amiga ; mas não me atrevia
a fazê-lo, e convinha começar por aquela a quem devia o
conhecimento da outra e com quem tinha mais familiaridade.
Escrita a carta, fui levá-la a Mademoiselle Giraud, como fora
combinado com elas ao separarmo-nos. Foram elas que me
sugeriram o expediente. Mademoiselle Giraud reparava móveis
e tapeçarias ; como trabalhava às vezes em casa de Madame
Galley, entrava em .casa dela. A mensageira, contudo, não me
pareceu muito bem escolhida ; receava porém que, se pusesse
objecções àquela, me não propusessem outra. Além disso, não
ousava dizer que esta queria trabalhar em seu próprio proveito.
Sentia-me humilhado por Mademoiselle Giraud ousar supor
que era para mim do mesmo sexo que aquelas donzelas. Enfim,
aquele entreposto era preferível a nenhum, e fiquei-me por ali,
mesmo com todos os riscos.
A primeira palavra minha, a Giraud compreendeu-me : não
era difícil. Se uma carta para entregar a umas meninas não
falasse por si mesmo, bastava o meu ar idiota e atarantado
para me descobrir. Já se vê que tal recado não lhe deu grande
prazer : todavia, encarregou-se dele, e executou-o fielmente.
No dia seguinte de manhã, corri a sua casa, e encontrei a res­
posta. Como me dei pressa em sair para a ir ler e cobrir de
beijos :à vontade ! Escusado será dizê-lo ; mas o que não será
escusado é contar a resolução tomada por <M:ademoiselle Giraud,
na qual achei mais moderação e delicadeza do que contava da
sua parte. Tendo suficiente bom senso para ver que com os
seus trinta e sete anos, os seu olhos de lebre, o seu nariz esbor­
ratado, a sua voz áspera e a sua pele escura nada podia contra
aquelas duas raparigas cheias de encantos e em todo o esplendor
da beleza, não quis nem traí-las nem servi-las, e preferiu per­
der-me a reservar-me para elas.
Não tendo notícias da patroa, havia já algum tempo
que a !M:erceret pensava em voltar para Friburgo ; Mademoiselle
Giraud decidiu-a a isso. Fez mais : deu-lhe a entender que
seria bom que alguém a acompanhasse a casa do pai, e propôs­
-lhe que fosse eu esse alguém. A pequena Merceret, a quem eu

10 145
também não desagradava, achou esplêndida tal ideia. No mesmo
dia falaram-me do assunto como coisa assente ; e como eu nada
achasse de desagradável nesta maneira de disporem de mim,
consenti, encarando semelhante viagem como uma questão de
oito dias, quando muito. A Giraud, que não pensava o mesmo,
arranjou tudo. Não tive outro remédio senão confessar o estado
das minhas finanças. A isso se deu remédio : a Merceret encar­
regou-se de me pagar as despesas ; e, para compensar de um
lado o que despendia do outro, decidiu-se, a meu pedido, que
se mandaria à frente a sua pequena bagagem, e que nós faría­
mos a pé o caminho em pequenas j ornadas. Assim se fez.
Aflige-me que tantas raparigas se tenham apaixonado por
·
mim. No entanto, como não há que estar muito vaidoso dos
resultados que tirei de todos esses amores, creio poder dizer
sem escrlipulos a verdade. A Merceret, mais nova e menos
desembaraçada que a Giraud, nunca me provocou tão aberta�
mente ; imitava-me, porém, nas maneiras, nas inflexões da voz,
repetia as minhas palavras, tinha por mim as atenções que eu
devia ter por ela, e, como era muito medrosa, tinha sempre
todo o cuidado em que dormíssemos no mesmo quarto : identi­
dade que raramente fica por aí numa viagem de um rapaz de
vinte anos com uma rapariga de vinte e cinco.
Desta vez, todavia, ficou-se por ai. iEl"a tal a minha ingenui­
dade, que, se bem que a Merceret não fosse desagradável, nem
s'êquer me veio ao espírito durante toda a viagem, não digo a
menor tentação galante, mas a menor ideia que com tal se rela­
cionasse ; e, mesmo que semelhante ideia me tivesse ocorrido, era
demasiado néscio para saber aproveitá-la. Não conjecturava
como é que uma rapariga e um rapaz se arranjavam para dormir
j untos ; julgava serem preciso séculos para p reparar este ter­
rível acordo. Se a pobre IMerceret, pagando-me as despesas,
contava com qualquer coisa equivalente, enganou-se, e nós che­
gámos a Friburgo exacltamente como havílamos partido de
Annecy.
Ao passar por Genebra, não fui ver ninguém, mas, ao atra­
vessar as pontes, estive prestes a desmaiar. Nunca vi as mura­
lhas desta ditosa cidade, nunca nela penetrei sem sentir um
tal ou qual desfalecimento do coração, que provinha de um
excesso de emoção. Enquanto a nobre imagem da liberdade me
exaltava a alma, as de igualdade, de união, de doçura dos costu­
mes comoviam-me até às lágrimas, inspirando-me um vivo des­
gosto por haver perdido todos estes bens. Em que erro eu me

146
achava, mas como este erro era natural ! Julgava ver tudo isso
na minha pátria, porque a trazia no coração.
Era necessário passar por Nyon. Passar sem ver o meu
bom pai ! Se tivesse tido essa coragem, teria morrido de pena.
Deixei a Merceret na hospedaria, e fui Vlê-lo a todo o risco.
Oh ! como andava mal em temê-lo ! A minha chegada, a sua
alma abriu-se aos sentimen.os paternos de que se achava plena.
Quantas lágrimas chorámos, enquanto nos beijávamos ! Meu
pai a principio supôs que eu voltava para junto dele. Contei­
-lhe a minha história, e dei-lhe parte da minha resolução. Ele
combateu-a tibiamente. Apontou-me os perigos a que me expu­
nha, disse-me que as loucuras mais breves eram as melhores.
De resto, nem sequer teve a tentação de me reter à forç a ;
e nisso acho que tinha razão ; mas o certo é que não fez para
me convencer a regressar tudo o que poderia fazer, quer porque
j ulgasse que depois do passo que dera não devia voltar atrás,
quer porque ficasse embaraçado sem saber o que na minha idade
poderia fazer de mim. Soube depois que ficou f azendo da minha
companheira de viagem uma opinião completamente injusta e
longe da verdade, mas aliás muito natural. !Minha madrasta, boa
mulher, um pouco melíflua, fingiu querer reter-me para cear.
Não fiquei ; disse-lhes, no entanto, que na volta esperava estar
mais tempo com eles, e deixei lá ficar depositada a minha
· pequena trouxa, que mandara vir por barco, e que me incomo­
dava. Parti no dia seguinte cedinho, muito contente por ter
visto meu pai e haver ousado cumprir o meu dever.
·Chegámos a Friburgo sem novidade. Para o fim da viagem,
a solicitude de Mademoiselle Merceret diminuiu um pouco.
Depois de ali nos encontrarmos, só mostrou frieza, e o pai, que
não nadava na opulência, também me não fez um acolhimento
por aí além : fui ficar numa tasca. No dia seguinte, fui vê-los ;
ofereceram-me de j antar, e eu aceitei. Separámo-nos sem lágri­
mas; à noite, voltei para a minha baiuca, e parti dois dias depois
de haver chegado, sem saber muito bem onde tencionava ir.
Eis aqui ainda uma circunstância da minha vida em que
a Providência me oferecia precisamente o que me convinha
para os meus dias deslizarem felizes. A !Merceret era uma exce­
lente rapariga, pouco brilhante, pouco bonita, mas também sem
ser feia ; pouco viva, bastante razoável, salvo um ou outro leve
capricho, em que lhe dava para chorar, mas que nunca tinha
consequências violentas. Tinha por mim uma verdadeira incli­
nação ; poderia tê-la desposado sem custo, e seguir a profissão
do pai. O meu gosto pela música viria a fazer com que a amasse.

147
Estabelecer-me-ia em Friburgo, cidadezinha pouco bonita, mas
habitada por muito boa gente. Teria sem dúvida perdido gran­
des prazeres, mas teria vivido em paz até à minha derradeira­
hora; e melhor do que ninguém devo eu saber que não havia
que hesitar em tal negócio.
Voltei, não a Nyon, mas a Lausana. Queria saciar-me com
a vista do belo lago que daí se vê na -sua maior extensão. A maior
parte dos meus íntimos motivos determinantes nunca foram
mais sólidos. As vistas remotas raramente possuem força sufi­
ciente para me fazer agir. A incerteza do futuro fez-me sempre
considerar os projectos de execução long.a como engodos de
papalvo. Entrego-me à esperança como qualquer outro, desde
que ela me não custe muito a alimentar; mas se é mister ter
paciência durante muito tempo, já não sou o mesmo. O mais
ínfimo prazer ao meu alcance tenta-me mais do que as alegrias
do Paraíso. Excepto, todavia, o prazer a que deve seguir-se a dor;
este não me tenta, porque só amo os prazeres puros, os quais
nunca se obtêm quando sabemos que preparamos o arrependi­
mento por nossas próprias mãos.
Precisava absolutamente chegar onde quer que fosse, e
quanto mais perto, melhor; pois que, tendo-me perdido no cami­
nho, me achei à noite em IMoudon, onde gastei o pouco que me
restava, fora dez coroas, que voaram no dia seguinte ao jantar:
de sorte que, chegando à noite a uma aldeiazita perto de Lau­
sana, entrei numa tasca sem dez réis para pagar ceia e cama,
e sem saber que fazer. Tinha muita fome; mostrei presença de
espírito, e pedi de cear, como se tivesse com que pagar bem.
-
Fui-me deitar sem pensar em coisa nenhuma, dormi tranquila-
mente; e, depois de haver almoçado de manhã, contando com o
patrão, quis deixar-lhe o casaco, como penhor dos sete tostões
em que importava a minha despesa. O honrado homem recusou;
disse-me que, graças ao Céu, nunca tinha esfolado ninguém,
que não queria começar por amor de sete tostões, que guardasse
o meu casaco, e que lhe pagaria quando pudesse. A sua bondade
comoveu-me, menos, porém, do que seria devido e do que me
comovi mais tarde a o pensar na cena. Não tardei em mandar­
-lhe o dinheiro e os meus agradecimentos por um homem de
confiança: quinze anos depois, porém, ao tornar a passar em
Lausana, senti viva pena por haver esquecido o nome da tasca
e do patrão. Teria ido vê-lo; teria tido muito prazer em lem­
brar-lhe a sua boa obra, e provar-lhe que ela não havia sido mal
empregada. Serviços sem dúvida mais importantes, mas pres­
tados com mais ostentação, não me pareceram tão dignos de

148
reconhecimento como a humanidade simples e sem alarde
daquele honrado homem.
Ao aproximar-me de Lausana, meditava na desgraça em
que me encontrava, na maneira de sair dela sem ir mostrar
esta miséria a minha madrasta, e comparava-me nesta pere­
grinação pedestre com o meu amigo Venture ao chegar a
Annecy. Entusiasmei-me a tal ponto com semelhante ideia que,
sem pensar que não tinha nem o garbo nem o talento dele,
veio-me à cabeça passar em Lausana por um pequeno Venture,
ensinando música, que não sabia, e dizendo-me de Paris, onde
nunca tinha estado. Como na cidade não havia escola de canto
onde pudesse exercer a vigairaria, e como, além disso, não
cuidava ir intrometer-me com a gente do ofício, comecei, em
consequência de tão belo projecto, por procurar um pequeno
albergue, onde pudesse alojar-me razoàvelmente bem e barato.
Indicaram-me um tal (Ferrotet, que recebia pensionários. Acon­
teceu que o tal Perrotet era o melhor homem do mundo, e me
recebeu muito bem. Preguei-lhe umas patranhazitas que havia
preparado. Prometeu-me que falaria de mim e que trataria de
me arranjar alunos ; disse-me que só me pediria o dinheiro
quando eu o houvesse ganho. O preço da pensão era de cinco
mil réis em prata ; vistas as coisas, era pouco, mas para mim
era muito. Perrotet aconselhou-me que entrasse primeiro em
regime de meia-pensão, o que consistia apenas numa sopa, nada
mais, ao j antar, mas em cear bem à noite. Concordei. Este pobre
Perrotet concedeu-me todas estas facilidades com a melhor
boa vontade do mundo, e não se poupava a nada para me ser
útil. Por que razão terei eu encontrado tão boas pessoas quando
era novo, e em velho encontro tão poucas? Ter-se-á extinguido
a sua raça? Não ; mas a categoria das pessoas onde hoje tenho
necessidade de as procurar não é a mesma onde então as encon­
trava. Como entre o povo as grandes paixões só falam intermi­
tentemente, os sentimentos da natureza ouvem-se com mais
frequência. Nas classes mais altas estes acham-se absolutamente
abafados, e, sob a máscara do sentimento, é sempre o inte­
resse ou a vaidade que fala.
De Lausana escrevi a meu pai, que me enviou a minha
trouxa e me deu excelentes conselhos, os quais eu devia ter
aproveitado melhor. Já assinalei momentos de delírio incon­
cebíveis, em que deixava de ser eu próprio. Eis ainda um dos
mais notáveis. Para se compreender a que ponto eu perdera o
juizo, a que ponto eu me havia por assim dizer venturizado,
basta ver quantas extravagâncias acumulava ao mesmo tempo.

149
Eis-me mestre de canto sem saber ler uma ária ; pois que ainda
que os seis meses passados com Le Maltre me houvessem sido
de algum proveito, nunca poderiam ser suficientes ; e além disso
aprendia com um mestre : era o bastante para aprender mal.
Parisiense de Genebra, e católico em terra protestante, entendi
dever mudar de nome, como mudara de religião e de pátria.
Aproximava-me cada vez mais, tanto quanto possível, do meu
grande m odelo. Ele havia-se denominado Venture de Ville­
neuve ; eu, do nome de Rousseau, fiz o anagrama de Vaussore,
e passei a chamar-me Vaussore de Villeneuve. Venture sabia
composição, se bem que não o dissesse ; eu, não a sabendo, gaba­
va-me da minha ciência a toda a gente, e, sem saber anotar o
mais trivial <<vaudeville», inculcava-me como compositor. E não
é tudo : tendo sido apresentado a Monsieur de Treytorens, pro­
fessor de direito, que gostava de música e dava concertos em
sua casa, quis proporcionar-lhe uma amostra do meu talento,
e pus-me a compor uma peça para lá ser executada, com tanto
descaramento como se disso percebesse alguma coisa. Tive a
persistência de trabalhar durante quinze dias nesta bela obra,
d e copiá-la a limpo, de tirar as partes, e de as distribuir com
tanta confiança como se se tratasse de uma obra-prima d e
harmonia. Enfim, para coroar condignamente esta sublime pro­
dução, fiz uma coisa em que dificilmente se acreditará, e que
é, contudo, verdadeira: meti-lhe no fim um lindo minuete, que
se cantava pelas ruas, e de que porventura toda a gente se
lembra ainda, sobre esta letra outrora muito conhecida :

Quel capricet
Quelle injustice!
Quoi! ta Clarisse
Tra'hiroit tes teux! etc. 1

Venture tinha-me ensinado esta ária e o respectivo baixo


com outra letra indecorosa, com a ajuda da qual a havia fixado.
No fim da minha composição meti, por conseguinte, o minuete
com o seu baixo, suprimindo-lhe a letra, e dei-o como se fosse
meu, com a mesma intrepidez como se falasse a habitantes
da Lua.

1 Tradução :

Que capricho!
Que injustiça !
Quê ! a tua Clarisse
Trairia os teus ardores !

150
Reúnem-se para executar a minha peça. Explico a cada
qual o género de movimento, o estilo da execução, as repetições
das suas partes ; não tinha mãos a medir. Afinam durante cinco
ou seis minutos, que foram para mim cinco ou seis séculos.
Enfim, quando tudo estava pronto, bato na minha estante
magistral com um lindo rolo de papel as duas ou três pancadas
C.e : Atenção. Silêncio. Ponho-me gravemente a bater o com­
passo. Começam . . . Não, desde que existe ópera francesa 1, nunca
se ouviu um tal charivari. o quer que tivessem pensado do meu
pretenso talento, o efeito foi pior do que tudo o que pareciam
esperar. Os músicos morriam de riso; os ouvintes abriam muito
os olhos, e gostariam bem de fechar os ouvidos ; mas não era
possível. Os carrascos dos sinfonistas, que queriam divertir-se,
arranhavam nos violinos de maneira a furar os tímpanos de um
surdo. Tive a firmeza de continuar sempre para a frente, dei­
xando cair, é certo, grossas bagas de suor, contido, porém, pela
vergonha, e sem ousar fugir, abandonando tudo. Para conso­
lação, ouvi à minha volta os assistentes dizerem aos ouvidos
uns dos outros, ou antes aos meus, este : Não há uma só coisa
suportável ; aquele : 1Que música danada! ; outro ainda : Que
demónio de sabat! Pobre Jean Jacques, nesse cruel momento não
contavas de maneira nenhuma que um dia, diante do rei de
França e de toda a sua corte, os teus sons provocariam murmú­
rios de surpresa e de aplauso, e que à tua volta, em todos os
camarotes, as mais gentis mulheres diriam ao ouvido umas das
/ outras : Que sons deliciosos! Que música encantadora ! Estas
melodias vão todas direitas ao coração!
O que porém pôs toda a gente de bom humor foi o minuete.
Mal se haviam tocado alguns compassos, ouvi de todos os lados
desatarem a rir. Todos me felicitavam pelo meu gosto melódico;
asseveravam-me que este minuete havia de dar que falar de
mim, e que eu merecia ser cantado por toda a parte. Não é
mister descrever a minha angústia, nem confessar que bem a
merecia.
No dia seguinte , um dos meus sinfonistas, chamado Lutold,
veio visitar-me, e foi suficientemente delicado para não me feli­
citar pelo meu 'êxito. O profundo sentimento da minha idiotice, a
vergonha, o pesar, o desespero do estado a que me via reduzido,
a impossibilidade de nos meus desgostos conservar fechado o

1 Rousseau era inimigo da ópera francesa, que achava demasiado


barulhenta, em contraste com a simplicidade da ópera italiana, para a qual
iam as suas preferências, pelo menos até se congraçar com aquela, já para
o fim da sua vida_ - N_ do T.

151
coração, fizeram com que me abrisse com ele ; soltei a comporta
das lágrimas; e, em vez de me contentar com revelar-lhe a
minha ignorância, disse-lhe tudo, pedindo-lhe segredo, que ele
me prometeu, e que cumpriu como se pode imaginar. Nessa
mesma noite, Lausana inteira sabia quem eu era ; e, o que é
notável, ninguém me fez cara, nem mesmo o bom Perrotet, que
com tudo isto não se aborreceu de me hospedar e de me ali­
mentar.
Eu· ia vivendo, mas bem tristemente. As consequências de
semelhantes entradas não me tornaram Lausana uma estância
agradável. Os alunos não se apresentavam aos magotes; nem
uma só aluna, e ninguém da cidade. Ao todo, apareceram-me
dois ou três corpulentos tudescos I, que eram tão estupidos como
eu era ignorante, que me aborreciam de morte, e que não saíram
das minhas mãos grandes solfistas. Chamaram-me apenas a
uma casa, onde uma serpentezinha de uma rapariga se divertiu
a mostrar-me uma quantidade de musica, da qual eu não sabia
ler uma nota, e que ela teve a malicia de cantar depois diante
do Senhor Mestre, para lhe mostrar como aquilo se executava.
Era tão pouco capaz de ler uma ária à primeira vista que, no
brilhante concerto de que falei, me foi impossível seguir um
momento a execução para saber se estavam a tocar realmente o
que tinha debaixo dos olhos e que eu próprio havia composto.
No meio de tantas humilhações, tinha dulcíssimas conso­
lações nas notícias que de vez em ,quando recebia das minhas
duas encantadoras amigas. Encontrei sempre nas mulheres uma
grande virtude consoladora, e,. nos meus desgostos, nada mitiga
mais as minhas aflições do que sentir o interesse que por elas
toma uma pessoa gentil. Todavia, esta correspondência cessou
pouco tempo depois, e nunca m ais foi reatada; mas foi por
minha culpa. Ao mudar de terra, esqueci-me de lhes mandar
o meu endereço, e, obrigado pela necessidade a pensar constan­
temente em mim, em breve as esqueci completamente.
Há muito tempo que não falo da minha pobre !Mamã; mas
se julgam que também a esqueci, enganam-se redondamente.
Não deixava de pensar nela, desejando encontrá-la, não só pela
falta que ela me fazia à minha subsistência, mas ainda mais
pela que me fazia ao meu coração. A minha dedicação por ela,
por muito viva, por muito terna que fosse, não me impedia de
amar outras ; mas não da mesma maneira. Todas deviam igual­
mente aos seus encantos a minha ternura; esta, porém, só aos

1 Teutches, no original, isto é: suíço-alemães - N. do T.

152
encantos das outras resistia, e não lhes teria sobrevivido ; ao
passo que Mam� poderia envelhecer e fazer-se feia, sem que
eu a amasse com menos ternura. O meu coração havia trans­
mitido plenamente à sua pessoa a homenagem que primeira­
mente havia tributado à sua beleza ; e, qualquer mudança que
sofresse, desde que fosse sempre ela, os meus sentimentos não
podiam sofrer alteração. Sei bem que devia estar-lhe reconhe­
cido ; mas, na verdade, não pensava em tal. Fosse o que fosse
que ela houvesse ou não feito por mim, seria sempre a mesma
coisa. Não a amava nem por dever, nem por interesse, nem
por decoro : amava-a porque tinha nascido para a amar. Quando
me enamorava de qualquer outra, confesso que tal coisa me
distraia, e pensava nela com menos frequência ; mas fazia-o
com o mesmo prazer, e nunca, enamorado ou não, pensei nela
sem sentir que não poderia haver para mim verdadeira felici­
dade na vida enquanto estivesse separado dela.
Não tendo há tanto tempo noticias suas, nunca acreditei
que a tivesse inteiramente perdido, ou que ela me houvesse
esquecido. Dizia para comigo : saberá mais tarde ou mais cedo
que ando errante, e dar-me-á seja como for sinais de vida;
hei-de encontrá-la, tenho disso a certeza. Neste entretempo,
era-me doce habitar na sua terra, passar pelas ruas onde
ela havia passado, diante das casas onde ela havia morado, e
tudo isto por hipótese, pois que uma das minhas ineptas esqui­
sitices consistia em nunca me informar dela nem pronunciar­
-lhe o nome sem a mais absoluta necessidade. Parecia-me que
falando nela dizia tudo o que ela me inspirava, que a minha
boca revelava o segredo do meu coração, que de certo modo a
comprometia. Julgo mesmo que nisto entrava algum receio de
que me dissessem mal dela. Tinha-se falado muito da sua dili­
gência, e um pouco da sua conduta. Com medo de que me não
dissessem o que queria ouvir, preferia que me não falassem
dela de maneira nenhuma. Como os meus alunos me não toma­
vam muito tempo, e a sua terra natal só ficava a quatro léguas
de Lausana, dei lá um passeio de dois ou três dias, durante os
quais nunca me abandonou a mais doce emoção. A vista do lago
de Genebra e das suas admiráveis margens teve sempre aos
meus olhos uma atracção especial que não sei explicar, e que
reside não só na beleza do espectáculo, mas não sei em quê
mais interessante que me impressiona e me enternece. Sempre
que chego ao cantão de Vaud, experimento uma impressão
composta da recordação de Madame de W arens, que nele nasceu,
de meu pai, que aí viveu, de 'Mademoiselle de Vulson, que aí

153
recebeu as primícias do meu coração, de muitas viagens de
recreio que lá fiz em criança, e, ao que me parece, de qualquer
outra causa ainda mais intima e mais forte que tudo isto. Quando
o desejo ardente daquela vida feliz e doce que me foge, e para
a qual nasci, vem inflamar-me a imaginação, é sempre na região
de Vaud, perto do lago, naqueles encantadores campos que ela
se fixa. É nas margens deste lago e não de qualquer outro que
me é absolutamente mister ter um vergel; ali me é mister ter
um amigo seguro, uma mulher gentil, uma vaca e um barqui­
nho. !Só gozarei de uma perfeita felicidade na terra quando
tiver tudo isto. Rio-me da simplicidade com que tantas vezes
fui àquela região unicamente para nela buscar esta felicidade
imaginária. Surpreendia-me sempre de encontrar nos seus habi­
tantes, sobretudo nas mulheres, um carácter diferente daquele
que eu buscava. Como tal coisa me parecia disparatada! A região
P.. a gente que a cobre nunca me pareceram feitas uma para a
outra.
Nesta viagem a Vevay, entreguei-me à mais suave melan­
colia, seguindo aquelas formosas margens. O meu coração aspi­
rava com paixão a mil felicidades inocentes : enternecia-me,
suspirava e chorava como uma criança. ,Quantas vezes, parando
para à minha vontade chor ar, me distraí, sentado numa grande
pedra, a ver cair as minhas lágrimas na água!
Em Vevay, fui hospedar-me na Chave, e durante os dias
que ali permaneci sem ver ninguém ganhei à cidade um amor
que me acompanhou em todas as minhas viagens, e que por
fim lá me fez situar os heróis dos meus romances. De bom grado
diria às pessoas que têm gosto e são sensíveis : Ide a Vevay,
visitai a região, examinai-lhe os panoramas, passeai-vos no
lago, e dizei-me se a natureza não criou esta bela província
para uma Jiúlia, para uma Clara, para um 'Saint-Preux 1 ; mas
não os procurem lá. Volto :à minha história.
'Como era católico e me apresentava como tal, seguia sem
rebuço e sem escrúpulos o culto a que me convertera. Aos domin­
gos, se o tempo estava bonito, ia à missa a Assens, a duas léguas
de Lausana. Fazia de ordinário o passeio com outros católicos,
sobretudo com um bordador parisiense, de cujo nome me
esqueci. Não era u m parisiense como eu, era um autêntico pari­
siense de Par<is, um arquiparisiense simplório, bondoso como um
champanhense. Amava tanto a sua terra que nunca quis duvidar
que eu de lá fosse também, com medo de perder esta ocasião

1 Personagens da Nova Heloísa, do próprio Rousseau_ - N_ do 'I'.

154
de falar dela. iMonsieur de Crouzas, lugar-tenente do bailio, tinha
um j ardineiro, de Paris também, mas menos condescendente, e
que considerava a glória da sua terra comprometida quando
alguém ousava dizer que era de lá sem ter essa honra. Interro­
gava-me com o ar de um homem convicto de me apanhar em
falso, e depois sorria maliciosamente. Perguntou-me uma vez o
que havia de notável no Mercado Novo. Desorientei-me, como se
pode calcular. Tendo vivido vinte anos em Paris, devo conhecer
hoje a cidade ; contudo, se me fizessem agora tal pergunta, não
me verta menos atrapalhado para lhe responder ; e desta atrapa­
lhação podia igualmente concluir-se que eu nunca havia estado
em Paris : de tal maneira, mesmo quando se acha a verdade,
estamos sujeitos a basearmo-nos em princípios enganosos.
Não posso dizer exactamente quantos dias permaneci em
Lausana. Não trouxe da cidade recordações muito memoráveis.
Sei apenas que, não encontrando aí com que viver, fui para
Neufchâtel, e aqui passei o Inverno. Nesta última cidade dei-me
melhor ; arranjei alunos, e ganhei com que pagar ao meu bom
amigo Perrotet, que fielmente me havia enviado a minha parca
bagagem, embora eu lhe devesse bastante dinheiro.
Ensinando, aprendia insensivelmente a música. A minha
vida decorria com bastante doçura ; um homem razoável podia
considerar-se contente com ela : mas o meu coração inquieto
pedia-me outra coisa. Aos domingos e nos dias em que me
achava livre, percorria os campos e os bosques das cercanias,
sempre errante, sonhando,. suspirando ; e uma vez que saia da
cidade, só à noite regressava. Um dia, encontrando-me em Bou­
dry, entrei numa taberna para almoçar: vejo um homem de
grandes barbas, com uma casaca cor de violeta à maneira grega,
um barrete de peles, de traje e ar bastante nobres, e que por
vezes tinha dificuldade em fazer-se compreender, pois que só
falava num a gíria quase indecifrável, mais semelhante, no
entanto, ao italiano do que a qualquer outra língua. Era eu a
única pessoa que percebia quase tudo o que o homem dizia ;
este só podia comunicar com o patrão e com os naturais da
região por meio de sinais. Disse-lhe algumas palavras em ita­
liano, que ele compreendeu perfeitamente: levantou-se, e veio
abraçar-me entusiasmado. Em breve tínhamos travado relações,
P dai em diante servi-lhe de intérprete. O seu j antar era exce­

lente, o meu menos que medíocre. Convidou-me para comparti­


lhar dele ; fiz-me pouco rogado. Bebendo e algaraviando, aca­
bámos de nos familiarizar, e, terminada a refeição, éramos inse­
paráveis. Contou-me que era prelado grego e arquimandrita de

155
Jerusalém ; que estava encarregado de fazer um peditório na
Europa para a restauração do S anto S epulcro. Mostrou-me belas
credenciais da czarina e do imperador; tinha ainda muitas de
outros soberanos. Estava muito satisfeito com o que havia anga­
riado até aquela altura ; mas tivera inacreditáveis dificuldades na
Alemanha, por não saber uma palavra nem de alemão, nem de
latim, nem de francês, e reduzido ao seu grego, ao turco ou à
língua franca 1 como único recurso ; o que lhe não havia pro­
porcionado muitos no país onde se tinha encafuado. Propôs-me
que o acompanhasse para lhe servir de secretário e de intér­
prete. Apesar da casaquinha violeta, recentemente comprada, e
que não ia mal com o meu novo posto, eu tinha um aspecto
tão pouco próspero, que o prelado não julgou difícil cativar-me,
e não se enganou. Em breve chegámos a um acordo; eu nada
pedia, e ele prometia muito. Sem caução, sem garantia, sem o
conhecer, entrego-me ao seu comando, e eis-rr.e a partir do dia
seguinte a caminho de Jerusalém.
Começámos a nossa viagem pelo cantão de Friburgo, onde
pouco fez. A dignidade episcopal não permitia que se andasse
a mendigar e a pedir aos particulares ; apresentámos, porém,
o seu mandado ao Senado, que lhe deu uma pequena quantia.
Dali fomos a Berna. Esta cidade deu-nos mais trabalho, e o
exame dos títulos do arquimandrita não foi negócio apenas de
um dia. Hospedámo-nos n o Fal,cão, então excelente albergue,
onde se encontravam boas companhias. A mesa era bastante
frequentada e bem servida. Há muito tempo que comia mal;
estava bem precisado de me refazer, a ocasião apresentava-se,
e eu aproveitei-a. o Senhor Arquimandrita era também um
excelente conviva, gostando bastante de abancar, alegre, falando
bem para os que o compreendiam, e não era desprovido de
certas luzes, utilizando com muita gr·aça a sua erudição grega.
Um dia, à sobremesa, deu um grande golpe num dedo, quando
partia nozes ; e como o sangue corresse em abundância, mostrou
o dedo à sociedade, e disse, rindo : M�rate, signori, questo e
sangue pelasgo 2•

Em Berna, as minhas funções não lhe foram imiteis, e não


me saí tão mal delas como havia receado. Era muito mais ousado
e bem falante do que o teria sido se trabalhasse para mim pró-

1 Mistura de francês, italiano e espanhol, falada por alguns povos do


Levante. - N. do T.
2 «Vede, senhores, isto é sangue pelasgo.» (Referência ao povo que,
nos tempos pré-históricos, ocupou a Grécia.) - N. do T.

156
prio. Em Friburgo, as coisas não se passaram com tanta sim­
plicidade.
Foram necessárias longas e frequentes conferências com
os principais do Estado, e o exame dos títulos do arquimandrita
não foi negócio apenas de um dia 1• Enfim, depois de tudo estar
em ordem, foi este admitido à audiência do Senado. Entrei com
ele na minha qualidade de intérprete, e disseram-me que falasse.
Não esperava nada disto, e não me tinha vindo à ideia que
depois de haver conferenciado durante tanto tempo com os
membros, fosse preciso dirigir-me ao corpo, como se nada hou­
vesse sido dito. Imagine-se a minha atrapalhação! Um homem
tão acanhado como eu, falar não só em público, mas diante do
Senado de Berna, e falar de improviso, sem ter um só minuto
que fosse para me preparar, era caso para me meter pelo chão
dentro. Nem sequer me senti intimidado. Expus sucinta e clara­
mente a missão do arquimandrita. Louvei a piedade dos prín­
cipes que haviam contribuído para a colecta a que ele tinha
vindo. Excitando a emulação da de !Suas Excelências, disse que
não se poderia esperar menos da sua habitual munificência ;
e em seguida, procurando provar que esta boa obra o era igual­
mente para todos os cristãos sem distinção de seita, acabei por
prometer as bênçãos do Céu àqueles ·que nela quisessem tomar
parte. Não digo que o meu discurso tivesse produzido efeito;
mas o certo é que foi apreciado, e que ao sairmos da audiência
o arquimandrita recebeu um presente muito decente, e, ainda
por cima, cumprimentos a respeito do espírito do secretário, dos
quais tive o agradável cargo de ser o intérprete, mas que não
ousei comunicar-lhe à letra. Foi esta a única vez na minha vida
em que falei em público e diante de um soberano, e também a
única porventura em que· falei corajosamente e bem. Que dife­
rentes disposições do mesmo homem! Há três anos, tendo ido
visitar a Yverdun o meu velho amigo IMonsieur Roguin, recebi
uma deputação para me agradecer alguns livros que havia ofe­
reddo à biblioteca da cidade. Os suíços são grandes arenga­
dores ; estes cavalheiros fizeram-me uma arenga. Senti-me obri­
gado a responder-lhes; mas atrapalhei-me de tal maneira na
resposta, e a minha cabeça turvou-se-me a tal ponto, que res­
pondi sumàriamente, e prestei-me à chacota. Posto que natu­
ralmente tímido, fui algumas vezes atrevido em rapaz, nunca

1 No original, esta frase encontra-se em duplicado, como se verifica


pela página anterior.- N. do T.

157
em idade avançada. Quanto mais conheço o mundo, menos m e
afaço ao seu tom.
Partindo de Berna, dirigimo-nos para Soleure, pois a inten­
ção do arquimandrita era seguir derrota pela Alemanha,
e voltar pela Hungria ou pela Polónia, o que tomava a via­
gem enorme: no entanto, como de caminho a bolsa se lhe
enchia mais do que se esvaziava, pouco temia os desvios. Por
mim, que tanto gostava de andar a cavalo como a pé, nada de
melhor poderia desejar do que viajar assim toda a vida ; estava
escrito, porém, que não havia de ir tão longe.
A primeira coisa que fizemos, ao chegar a Soleure, foi ir
cumprimentar o embaixador de França. Infelizmente para o
meu bispo, o embaixador era o marquês de Bonac, que havia
sido embaixador na Porta, e que devia estar ao facto de tudo
o que dizia respeito ao Santo S epulcro. O arquimandrita teve
uma audiência de um quarto de hora, à qual eu não fui admi­
tido, pois que o embaixador sabia franco, e falava italiano pelo
menos tão bem como eu. A saída, quis seguir o meu grego; deti­
veram-me : foi a minha vez. Como me havia feito passar por
parisiense, estava sob a jurisdição de !Sua Excelência. Este per­
guntou-me quem eu era, exortou-me a dizer-lhe a verdade:
prometi-lho, pedindo-lhe uma audiência particular, que me foi
concedida. O embaixador levou-me ao seu gabinete, fechou a
porta atrás de nós, e aí, lançando-me aos seus pés, cumpri a
minha palavra. Mesmo que nada houvesse prometido, nem por
isso deixaria de falar, pois que uma permanente necessidade
de desabafar me traz continuamente o coração aos lábios ; e ,
depois d e m e haver aberto sem reservas a o músico Lutold, não
cuidava de ter mistérios com o marquês de Bonac. Agradou-lhe
tanto a minha histõriazinha e a efusão que reparou pôr eu nela
ao contá-la, que me pegou na mão, entrou nos aposentos da
Senhora Embaixatriz, e me apresentou a esta, contando-lhe
resumidamente o que eu lhe narrara. Madame de Bonac
acolheu-me bondosamente, e disse-me que não devia continuar
na companhia daquele monge grego. Resolveu-se que ficaria no
palacete, enquanto viam o que poderiam fazer de mim. Quis ir
despedir-me do meu pobre arquimandrita, por quem me afei­
çoara ; não mo permitiram. /Mandaram-lhe dar conhecimento
do meu impedimento, e um quarto de hora depois vi chegar a
minha pequena trouxa. IMonsieur de la 'Martiniêre foi quem, de
certo modo, se ocupou de mim. Conduzindo-me ao quarto que
me tinha sido destinado, disse-me ele : No tempo do conde de
Luc, este quarto foi ocupado por um homem célebre, que tinha

158
um nome como o vosso 1: depende de vós substitui-lo em todos
os sentidos, e dar ocasião a que um dia se diga : Rousseau pri­
meiro, Rousseau segundo. Tal conforto, inesperado então, teria
lisonjeado menos os meus desejos se tivesse podido prever por
que preço o p agaria um dia.
O que Monsieur de la \Martiniêre me havia dito despertou
a minha curiosidade. ·Li as obras daquele cujo quarto ocupava,
e, baseado no cumprimento que me haviam feito e julgando ter
queda para a poesia, fiz a primeira tentativa de uma cantata
em homenagem a Madame de Bonac. Esta queda não se con­
firmou. De tempos a tempos faço alguns versos medíocres ; é
um óptimo exercício para nos treinarmos nas inversões ele­
gantes, e aprender a escrever melhor em prosa ; todavia, nunca
achei na poesia francesa encanto suficiente para a ela me entre­
gar completamente.
'Monsieur de la Martiniêre quis ver o meu estilo, e pediu-me
que lhe fizesse por escrito o mesmo relato que havia feito ao
Senhor Embaixador. Escrevi-lhe uma gl\ande carta, que sei
ter sido conservada por 1Monsieur de Mar·ianne , há muito adido
do marquês de Bonac, e que depois veio a suceder a Monsieur
de la Martiniêre, durante a embaixada de Monsieur de Courteil­
les. Pedi a Monsieur de Malesherbes que procurasse obter-me
uma cópia dessa carta. ISe conseguir obtê-la por ele ou por
qualquer outro, encontrar-se-á na compilação que deve acom­
panhar as minhas Confissões.
A experiência que eu começava a ter moderava a pouco e
pouco os meus projectos romanescos, e, por exemplo, não só
não cai enamorado de IMadame de Bonac, como senti logo que
não podia fazer vida em casa do marido. Nem !Monsieur de
la !Martiniêre presente, nem por assim dizer a sua sucessão
na pessoa de \Monsieur de ·Marianne , me davam esperanças de
que a minha fortuna fosse além de um emprego de subsecre­
tário, coisa que me nã o seduzia infinitamente. Por conseguinte,
quando me consultaram a respeito do que queria fazer, mostrei
grande desejo de ir a Paris. Tal ideia agradou ao /Senhor Embai­
xador, porque tendia ao menos a desembaraçá-lo de mim. Mon­
sieur de Merveilleux, secretário-intérprete da embaixada, disse
que o seu amigo !Monsieur Godard, coronel suíço ao serviço da
França, procurava alguém para fazer companhia ao sobrinho,
que começava muito novo o serviço militar, e pensava que eu
lhe poderia convir. A minha partida foi resolvida de acordo

1 O poeta Jean Baptiste Rousseau, que viveu de 1670 a 1741.- N. ào T

159
com esta ideia levianamente tomada ; e eu, que via uma viagem
a fazer e Paris ao cabo desta, fiquei louco de contentamento.
Deram-me algumas cartas, cem francos para a viagem, acom­
panhados de uma porção de bons conselhos, e parti.
Gastei na viagem uns quinze dias, que posso contar entre
os mais felizes da minha vida. Era novo, tinha saúde, tinha
bastante dinheiro, muitas esperanças, viajava só. Admirar-se­
-iam de me ver contar com semelhante p artido, se não se tives­
sem j á familiarizado com o meu feitio. As minhas doces
quimeras acompanhavam-me, e nunca o calor da minha ima­
ginação as criou tão magníficas. ·Quando me ofereciam um
lugar vago numa carruagem, ou quando alguém me abordava
no caminho, punha-me carrancudo por ver desabar a fortuna
cujo edifício ia construindo. Desta feita, as minhas ideias eram
marciais. Ia ligar-me a um militar e tornar-me eu próprio mili­
tar; pois que se haviam arranj ado as coisas de maneira a que
começasse por cadete. Julgava já ver-me em uniforme de oficial
com uma bela pluma branca. O meu coração ensoberbecia-se
a tão nobre ideia. Tinha umas luzes de geometria e de forti­
ficações ; tinha um tio engenheiro ; era de certo modo filho de
peixe! A vista curta constituía um pequeno obstáculo, que
contudo me não atrapalhava ; e , à força de presença de espírito
e de intrepidez, contava compensar este defeito. Havia lido
algures que o marechal de Schomberg era muito curto de vista ;
porque não havia de o ser igualmente o marechal Rousseau?
Inflamava-me a tal ponto com estas loucuras, que só via tropas,
muralhas, gabiões, baterias, e eu, no meio do fogo e do fumo,
dando tranquilamente as minhas ordens, de óculo na mão.
Contudo, quando atravessava os campos deleitosos, quando con­
templava os arvoredos e os regatos, o seu impressionante aspecto
fazia-me suspirar de pena ; no meio da minha glória, sentia que
o meu coração não tinha nascido para tão grande tumulto, e ,
sem saber como, e m breve m e achava no meio dos meus bucolis­
mos, renunciando para sempre aos trabalhos de Marte.
Como a chegada a Paris desmentiu a ideia que eu fazia desta
cidade ! A decoração exterior que havia visto em Turim, a beleza
das ruas, a simetria e alinhamento das casas, faziam-me pro­
curar em Paris algo mais. Tinha imaginado uma cidade tão
grande como formosa, do mais imponente aspecto, e na qual
só se viam soberbas ruas, palácios de mármore e de ouro.
Entrando pelo arrabalde de Saint-IMarceau, só vi ruazitas estrei­
tas e mal-cheirosas, feias casas escuras, um ambiente de por­
caria, de pobreza, de mendigos, de carroceiros, de remendonas,

160
de apregoadoras de tisanas e de chapéus velhos. Tudo isto me
chocou de principio a um tal ponto, que todas as verdadeiras
magnificências de Paris, que depois me foi dado ver, não pude­
ram destruir esta primeira impressão, ficando-me sempre uma
secreta repugnância pelas habitações desta capital. Posso dizer
que todo o tempo que ai passei depois só o empreguei a procurar
meios de viver afastado dela. Tais são os frutos de uma imagi­
nação excessivamente activa, que exagera para lá do exagero dos
homens, e vê sempre mais do que o que lhe dizem. Tinham-me
gabado tanto !Paris, que a imaginara como a antiga Babi­
lónia, da qual, aliás, havia feito uma imagem onde haveria
quiçá outro tanto a descontar, se a tivesse visto. O mesmo me
sucedeu na ópera, onde me apressei a ir logo no dia imediato
àquele em que cheguei ; e o mesmo me sucedeu ainda em Ver­
salhes ; depois, ainda, ao ver o mar ; e o mesmo me sucederá
sempre, vendo espectáculos em que me houverem falado muito :
porque é impossível aos homens e difícil à própria natureza
ultrapassar em riqueza a minha imaginação.
Pela maneira como fui recebido por todos aqueles para
quem levava cartas de apresentação, j ulguei a minha fortuna
feita. A pessoa a quem ia mais recomendado e que menos me
agasalhou foi iMonsieur de Surbeck, que se achava retirado do
serviço e vivia filosoficamente em Bagneux, onde fui várias
vezes, e onde nunca me ofereceu sequer um copo de água.
Obtive melhor acolhimento por parte de IMadame de Merveil­
leux, cunhada do interprete, assim como por parte do sobrinho
deste, oficial da guarda : mãe e filho não só me receberam bem,
como m e ofereceram a sua mesa, de que frequentemente apro­
veitei durante a minha estada em Paris. !Madame de Merveilleux
p areceu-me dever ter sido formosa ; os seus cabelos eram mara­
vilhosamente pretos, f\azend<o, à moda antiga, caracóis nas
fontes. Restava-lhe o que não morre com as graças: um espírito
muito agradável. Pareceu-me apreciar o meu, e fez tudo o que
pôde para me servir ; ninguém, todavia, a secundou, e eu em
breve me desiludi acerca de todo aquele grande interesse que
parecia terem tomado por mim. Deve-se no entanto prestar
j ustiça aos franceses: não se consomem em protestos tanto
quanto se diz, e os que fazem são quase sempre sinceros; têm,
porém, uma maneira de aparentemente se interessarem por
nós que engana mais do que as palavras. Os grosseiros cumpri­
mentos dos suíços só podem iludir os tolos: os modos dos fran­
ceses são mais cativantes pelo simples facto de serem mais
simples ; havia de supor-se que não nos dizem tudo o que querem

11 161
fazer, para nos surpreenderem mais agradàvelmente. Direi mais :
não são falsos nas suas demonstrações ; são naturalmente pres­
táveis, humanos, benevolentes e até, apesar do que se diz, mais
verdadeiros do que qualquer outra nação ; mas são levianos e
inconstantes. Têm, com efeito, os sentimentos que mostram
pelas pessoas, mas esses sentimentos vão-se como vieram.
Falando connosco, estão cheios da nossa p essoa; logo que dei­
xam de nos ver, esquecem-nos. Nada é permanente no seu cora­
ção : neles tudo é obra do momento.
Fui, pois, muito acarinhado e pouco favorecido. O coronel
Godard, a cujo sobrinho me haviam dado, revelou-se um velho
sordidamente avarento, o qual, embora podre de rico, ao ver
a minha desgraça quis haver-me por nada. Queria que, em
vez de um verdadeiro preceptor, eu fosse para o sobrinho uma
espécie de criado sem ordenado. Continuamente às ordens dele,
e dispensado por isso do serviço, deveria viver do meu soldo
de cadete, isto é, de soldado; e mal anuía em dar-me o uni­
forme ; queria que eu me contentasse com o do regimento.
Madame de Merveilleux, indignada com as suas propostas, foi
a própria que me dissuadiu de as aceitar ; o filho foi da mesma
opinião. Procurou-se outra coisa, e nada se achou. No entanto,
eu começava a estar em apertos, e os cem francos c om que
tinha feito a viagem não podiam levar-me muito longe. Feliz­
mente, recebi do Senhor Embaixador uma pe,quena quantia que
b astante arranjo me fez, e creio que este me não abandonaria
se eu tivesse sido mais paciente: contudo, arrastar-me, esperar,
solicitar são para mim coisas impossíveis. Zanguei-me, não
voltei a aparecer, e tudo acabou. Não me tinha esquecido da
minha pobre iMamã ; mas como encontrá-la? Onde ir pro­
curá-Ia? IMadame de Merveileux, que conhecia a minha his­
tória, ajudou-me durante muito tempo a procurá -la inutilmente.
Por fim, comunicou-me que Madame de 1Warens havia partido
há mais de dois meses, mas que não sabiam se ela tinha ido
para a Sabóia ou para Turim, e que algumas pessoas diziam
haver ela voltado para a ISuíça. Não foi preciso mais para que
me resolvesse a segui-la, profundamente convicto de que, onde
quer que ela se achasse, a encontraria mais fàcilmente na pro­
víncia do que em Paris, onde o não conseguira.
Antes de partir, exerci o meu novo talento poético numa
epístola ao coronel Godard, onde escarnecia dele o melhor que
podia. !Mostrei a salsada a Madame de IMerveilleux que , em
vez de me repreender como era seu dever, se riu bastante dos
meus sarcasmos, assim como o filho, que, segundo creio, não

162
gostava de Monsieur Godard, e é preciso confessar que este não
era nada simpático. Estava tentado a enviar-lhe os versos;
encorajaram-me a isso; fiz um pequeno embrulho com o seu
endereço, e como nesse tempo não havia distribuição postal
em Paris, meti-o na algibeira, e mandei-lho quando passei por
Auxerre. Rio-me ainda por vezes ao pensar nas caretas que o
coronel devia ter feito ao ler este panegirico, onde se achava
pintado traço por traço. Começava assim :

Julgavas, velho libertino, que uma louca mania


De educar teu sobrinho m'inspiraria inveja.

Esta breve composição, na verdade mal escrita, mas a que não


faltava sal, e que fazia prever certo talento para a sátira, foi
no entanto o único escrito satírico que saiu da minha pena.
O meu coração é muito pouco odiento para tirar partido de
semelhante talento: mas creio que, através de alguns escritos
polémicos, escritos de tempos a tempos para me defender, se
pode conjecturar que, possuísse eu temperamento combativo,
os meus agressores raramente me levariam a melhor.
O que mais lamento nos pormenores da minha vida de
que me esqueci, é não haver feito um diário das minhas viagens.
Nunca pensei tanto, nunca vivi tanto, nunca fui tanto eu, se
assim ouso exprimir-me, como nas que fiz só e a pé. Andar
tem qualquer coisa que me anima e aviva as ideias : quase não
posso pensar quando estou parado; preciso pôr o corpo em
movimento para que o espírito o estej a também . A vista dos
campos, a sucessão dos aspectos agradáveis, o bom ar e o bom
apetite, a boa saúde que adquiro andando, a liberdade das
tascas, o afastamento de tudo quanto me faz sentir a minha
dependência, de tudo o que me recorda a minha situação, tudo
isto desoprime a minha alma, me dá uma maior audácia de
pensar, me lança de certo modo na imensidade dos seres, para
os combinar, escolher, fazê-los meus à minha vontade, sem
constrangimento e sem temor. Disponho da natureza inteira
como seu senhor ; o meu coração, errando de obj ecto em obj ecto,
une-se, identifica-se com os que lhe agradam, rodeia-se de
imagens encantadoras, embriaga-se com sentimentos deliciosos.
Se para os fixar me distraio a descrev·ê-'los para mim mesmo,
que vigor de pincelada, que frescura de colorido, que energia de
expressão eu lhes não dou! Dizem que tudo isso se encontra nas
minhas obras, embora escritas n o declinar dos anos. Oh! se
tivessem visto as da minha primeira mocidade, as que fiz

163
durante as minhas viagens, as que compus e nunca escrevi ! . . .
Porque nã.o a s escrevo, dizeis vós? E porque hei-de escrevê-las,
responderei eu? Porque hei-de roubar a mim próprio o encanto
presente do prazer, para dizer aos outros que tive esses praze­
res? Que me importavam os leitores, um público, toda a terra,
quando eu planava no céu? Aliás, levava eu acaso comigo papel
e penas? Se houvesse pensado em tudo isso, nada me teria
ocorrido. Nã.o previa que viria a ter ideias ; estas vêm quando
lhes apetece, nã.o é quando me apetece a mim. Ou nã.o vêm, ou
vêm em tropel, e o seu número e a sua força prostram-me.
Dez volumes por dia nã.o chegariam. Onde arranj ar tempo para
os escrever? Ao chegar, só pensava em j antar bem. Sentia que
um novo paraíso me esperava à porta. Só pensava ir em sua
busca.
Nunca senti isto tã.o bem como no regresso de que falo.
Ao dirigir-me a Paris, havia-me limitado às ideias relativas
ao que ia fazer. Tinha-me lançado na carreira onde ia entrar,
e percorrera-a com bastante glória: mas esta carreira não
era aquela onde o coraçã.o me chamava, e os seres reais
prej udicavam os seres imaginários. O coronel Godard e o sobri­
nho figuravam mal ao pé de um herói tal como eu. Graças ao
Céu, encontrava-me agora liberto de todos estes obstáculos :
podia mergulhar à vontade no p aís das quimeras, porque só
isso ficava na minha frente. iPor isso me embrenhei tanto nele,
que várias vezes me perdi realmente no caminho; e enfadar­
-me-ia grandemente se fosse mais a direito, pois que, sentindo
que em Lyon me ia de novo encontrar na terra, o meu desejo
era nunca mais lá chegar.
Certo dia, tendo-me propositadamente desviado para ver
de perto um sítio que me pareceu admirável, este agradou-me
tanto e dei nele tantas voltas que, por fim, me perdi inteira­
mente. Depois de correr inutilmente durante horas e horas,
entrei, cansado e morto de sede e de fome, em casa de um
camponês, a qual nã.o tinha muito boa aparência, mas era a
única que via nos arredores. Julgava que me sucederia o mesmo
que em Genebra e na Suíça, onde todos os habitantes abas­
tados estã.o em condições de exercer a hospitalidade. Pedi a este
que me desse de j antar, p agando eu. Ofereceu-me leite desna­
tado e pã.o grosseiro de cevada, dizendo-me que era tudo o que
tinha. Bebi deliciado o leite, e comi o pã.o, pragana e tudo;
mas isto não era muito reconfortante para um homem exte­
nuado de fadiga. o camponês, que me examinava, julgou da
verdade dá minha história pela do meu apetite. Imediatamente,

164
após me haver dito ver bem 1 que eu era um bom rapaz que
não estava ali para o denunciar, abriu um pequeno alçapão
ao lado da cozinha, desceu por ele, e voltou dai a pouco com
um óptimo pão trigueiro de frumento, um presunto bem apete­
cível, embora encetado, e um a garrafa de vinho, cuj a vista
me alegrou o coração mais do que tudo o resto. A isto juntou
uma omeleta assaz gorda, e eu j antei como nunca peão nenhum
jantou. Quando viemos a contas, eis que lhe volta a inquie- .
tação e o receio ; não queria de maneira nenhuma o meu
dinheiro, e rejeitava-o extraordinàriamente perturbado, e o
mais engraçado é que eu não conseguia perceber de que é que
ele tinha medo. Por fim, pronunciou a tremer as terríveis pala­
vras de fiscais e de ratos de cave. Deu-me a perceber que
escondia o vinho por causa das coimas, que escondia o pão
por causa da talha, e que seria um homem perdido se descon­
fiassem que não morria de fome. Tudo o que me disse a este
propósito, e de que eu não tinha a menor ideia, me fez uma
impressão que nunca mais se desvanecerá. Encontra-se aqui o
germe do ódio inextinguível que depois se desenvolveu no meu
coração contra os vexames que o infeliz povo sofre, assim como
contra os seus opressores. Este homem, ainda que abastado, não
ousava comer o pão que havia ganho com o suor do seu rosto,
e só podia evitar a sua própria ruína mostrando a mesma
miséria que reinava à sua volta. Saí de casa dele tão indignado
como comovido, e deplorando a sorte destas belas terras, às
quais a natureza prodigalizou os seus dons apenas para os
tornar presa dos bárbaros publicanos.
É esta a única recordação precisa que me ficou de quanto
me sucedeu na presente viagem. Só me lembro ainda de que,
ao aproximar-me de Lyon, me veio a tentação de continuar
o caminho, para ir ver as margens do Lignon; pois que, entre
os livros que havia lido com meu pai, não tinha esquecido a
Astrée, o qual era o que mais frequentemente me vinha à
memória. Perguntei pelo caminho para 'Forest; e, enquanto
conversava com a minha hospedeira, esta disse-me que se
tratava de uma bela região com recursos para os operários,
que nela havia muitas forjas, e que ali se trabalhava muito
bem em ferro. Tal elogio acalmou de súbito a minha curio­
sidade romanesca, e j ulguei fora de propósito ir em demanda
de dianas e de silvandros a uma terra de ferreiros. A excelente

1 Aparentemente, eu não tinha então a fisionomia que depois me


vieram a dar nos meus retratos. Nota ele J.-J. .Rousseau.
-

165
mulher que assim me encorajava tinha-me certamente tomado
por um moço serralheiro.
Não ia a Lyon precisamente sem intenções. Ao chegar,
fui às Chasottes ver Mademoiselle do Châtelet, amiga de
Madame de Warens, e para a qual esta me havia dado uma
carta quando eu partira com \Monsieur Le Maitre : desta
·

maneira, tratava-se de um conhecimento j á feito. Mademoiselle


do Ghâtelet disse-me que com efeito a sua amiga havia pros­
seguido o seu caminho até ao Piemonte, e que ela própria estava
na incerteza, ao partir, sobre se havia ou não de parar na
Sabóia ; se eu quisesse, escreveria para saber notícias, e o melhor
que tinha a fazer era esperá-las em Lyon. Aceitei o ofereci­
mento : mas não ousei dizer a IMademoiselle do Chatelêt que
tinha pressa na resposta, e que a minha pequena bolsa vazia não
me permitia esperá-la por muito tempo. O que me reteve não
foi o facto de ela me ter recebido mal. Pelo contrário, havia-me
agasalhado muito bem, e tratava-me num pé de igualdade que
me tirava a coragem de lhe dar a conhecer o meu estado, e
descer do papel de bom companheiro ao de um infeliz mendigo.
Parece-me ver com bastante clareza o seguimento de tudo
o que anoto neste livro. Contudo, j ulgo recordar-me, na mesma
ocasião, de outra viagem a Lyon, cujo momento não posso
precisar, e na qual me encontrei j á muito em apuros. Uma
pequena anedota assaz difícil de contar nunca me permitirá.
esquec ê-la. Uma tarde, após uma ligeirissima ceia, achava-me
sentado na Bellecour, pensando na maneira de me tirar de
apur·os, . quando um homem de boné veio sentar-se ao meu
lado ; o homem tinha o aspecto de um destes operários de seda
a que chamam em Lyon t·ajjetatiers 1 • Dirige-me a palavra ;
respondo-lhe: e assim entabulámos conversa. Mal tínhamos
conversado um quarto de hora, propõe-me ele, sempre com o
mesmo sangue-frio e sem mudar de tom, que nos divertíssemos
na companhia um do outro. Esperei que me explicasse de que
género de divertimento se tratava ; ele, porém, sem nada acres­
centar, preparou-se para me dar o exemplo. Estávamos quase
encostados um ao outro, e a noite não era suficientemente
escura para me impedir de ver qual o exercício a que ele se
preparava. Nada queria da minha pesso a ; nada, ao menos,
revelava tal intenção, e nem o lugar o teria favorecido. Só que­
ria precisamente, como dizia, divertir-se e que eu me divertisse,
cada qual por sua conta ; e tal coisa parecia-lhe tão simples,

1 Isto é: que trabalham em tafetá. - N. do T.

166
que nem sequer supôs que a mim me não parecesse o mesmo.
Aterrorizei-me tanto com a sua impudência que, sem lhe res­
ponder, me levantei precipitadamente e larguei a correr a bom
correr, j ulgando o miserável na minha cola. Estava tão pertur­
bado que, em vez de alcançar o meu domicílio pela Rua de
Saint-Dominique, corri para o lado do cais, e só parei para lá da
ponte de madeira, tão trémulo como se acabasse de cometer
um crime. Era sujeito ao mesmo vicio ; tal recordação curou-me
dele por longo tempo.
Na mesma viagem, tive outra aventura pouco mais ou
menos do mesmo género, mas que me acarretou um perigo
muito maior. Sentindo os meus recursos aproximarem-se do fim,
economizava o pouco que me restava. Comia cada vez com
menos frequência na hospedaria, e em breve deixei de o fazer
de todo, pois por cinco ou seis soldos podia encher-me na
taberna tão bem como ali por vinte e cinco. Não indo lá comer,
não sabia como lá havia de ir dormir, não porque devesse
grande coisa, mas porque me envergonhava de ocupar um
quarto sem nada dar a ganhar à hospedeira. A estação corria
formosa. Uma noite, como fizesse muito calor, resolvi-me a
dormir na praça, e j á me havia instalado num banco, quando
um abade que ia a passar, ao ver-me assim deitado, se apro­
ximou e me perguntou se eu não tinha domicílio. Confessei-lhe
o meu caso, e ele pareceu ficar bastante comovido ; sentou-se ao
meu lado, e conversámos. O abade falava agradàvelmente ;
tudo o que me disse deu-me dele a melhor opinião do mundo.
Quando viu o momento ensej ado, disse-me que não estava alo­
j ado com muita largueza, que só tinha um quarto, mas que fora
de dúvida não me deixaria dormir assim na praça; que era tarde
para procurar aloj amento, e que por esta noite me oferecia
metade da sua cama. Aceito o oferecimento, esperando já anga­
riar um amigo que podia ser-me útil. Partimos ; ele petisca lume
com o fuzil. o quarto pareceu-me asseado na sua pequenez :
fez-me as honras dele com toda a amabilidade. Tirou de um
armário um boião de vidr o com ginjas em aguardente ; come­
mos duas cada um, e fomo-nos deitar.
Este homem tinha os mesmos gostos que aquele Judeu do
hosp1cio, mas não os manifestava tão brutalmente. Quer porque,
sabendo que me podiam ouvir, receasse forçar-me a defen­
der-me, quer porque com efeito se achasse menos afoito nos
seus projectos, não ousou propor-me abertamente a execução
destes, e diligenciava convencer-me sem me afligir. Mais escla­
recido do que da primeira vez, em breve compreendi as suas

167
intenções, e tremi ; não sabendo nem em que casa nem entre
que mãos me encontrava, receei, se fizesse barulho, pagá-lo
com a vida. Fingi ignorar o que ele queria de mim ; no entanto,
parecendo bastante incomodado com as suas caricias e abso­
lutamente decidido a não tolerar que elas progredissem, procedi
tão bem que ele se viu obrigado a conter-se. Falei-lhe então
com toda a brandura e com toda a firmeza de que era capaz;
e, sem mostrar desconfiar de nada, desculpei-me da inquietação
que lhe havia ocasionado com a minha antiga aventura, que
fingi contar-lhe em termos tão cheios de repugnância e de
horror que, segundo creio, o agastei a ele mesmo, o que o fez
desistir completamente das suas nojentas intenções. Passámos
tranquilamente o resto da noite. Disse-me mesmo bastantes
coisas muito boas, muito sensatas; não era certamente um
homem sem valor, posto fosse um grande desavergonhado.
De manhã, o Senhor Abade, que não queria mostrar ar de
descontentamento, falou de almoçar, e pediu a uma das filhas
da patroa, que era bonita, que lho trouxesse. Ela respondeu-lhe
que não tinha tempo. !Dirigiu-se à irmã, que não se dignou
responder-lhe. Continuámos esperando : nada de almoço. Pas­
sámos, enfim, à câmara das moças. Receberam o Senhor Abade
com um ar pouco carinhoso ; e eu ainda menos tive que
louvar-me do seu acolhimento. A mais velha, levantando-se,
pisou-me com o tacão aguçado a ponta do pé, no sítio em
que um calo bastante doloroso me havia forçado a cortar
o sapato; a outra veio bruscamente tirar de trás de mim uma
cadeira em que ia a sentar-me; a mãe, ao despej ar água pela
j anela, aspergiu-me com ela a cara: onde quer que me metesse,
faziam-�e dali sair para procurar qualquer coisa; nunca na
minha vida me vira em semelhante festa. Via nos seus olha­
res insultantes e trocistas um furor escondido, sobre o qual
tinha a estupidez de nada compreender. Espantado, estupefacto,
prestes a considerá-las todas doidas, começava seriamente a
assustar-me, quando o abade, que fingia nada ver nem ouvir,
j ulgando com razão que não havia que esperar o almoço, resol­
veu sair, e eu apressei-me em segui-lo, bem contente por esca­
par àquelas três fúrias. De caminho, propôs-me que fôssemos
almoçar a um café. Embora cheio de fome, não aceitei o ofere­
cimento, no qual ele também não insü<tiu muito, e separámo-nos
à terceira ou quarta esquina ; eu, en,cantado por perder de vista
tudo o ,que se referia àquela m aldita casa ; ele, muito satisfeito,
ao que creio, por me haver afastado dela o suficiente para que
me não fosse fácil reconhecê-la. Como nem em Paris, nem em

168
/

nenhuma outra cidade, nada me aconteceu de parecido com


estas duas aventuras, ficou-me delas uma impressão pouco
vantajosa para o povo de Lyon, e considerei sempre esta cidade
como a da Europa em que reina a mais horrível corrupção.
A recordação dos extremos a que nela me vi reduzido tam­
bém não contribui para que me lembre dela com muito agrado.
Se eu fosse como qualquer outro, se tivesse tido a habilidade
de pedir dinheiro emprestado e de me endividar na minha
tasca, fàcilmente me teria livrado da atrapalhação ; mas neste
ponto a minha falta de jeito igualava a minha repugnância ;
e para se ter ideia a que ponto vão uma e outra, basta que se
saiba que, depois de haver passado quase toda a minha vida com
dificuldades, a pontos, frequentemente, de me faltar o pão, nem
uma só vez me sucedeu vir ter comigo um credor para me
pedir dinheiro que não lho desse imediatamente. Nunca soube
contrair dividas miúdas, e preferi sempre sofrer a dever.
Era certamente sofrer ver-me reduzido a passar a noite
na rua, e foi o que muitas vezes me sucedeu em Lyon. Os poucos
soldos que me restavam preferia gastá-los em pão a despendê­
-los em aloj amento ; pois que, afinal de contas, arriscava-me
menos a morrer de sono do que de fome. O que é admirável
é que neste cruel estado eu nã o me sentia inquieto nem triste.
Nãb tinha o menor cuidado a respeito do futuro, e esperava
as respostas que devia receber de Mademoiselle do Châtelet
dormindo ao relento, e deitando-me no chão ou em cima de um
banco tão tranquilamente como num leito de rosas. Até me
lembro de ter passado uma noite deliciosa fora da cidade,
num caminho que costeava o Ródano ou o Saóna, não me lem­
bro bem qual deles. Jardins subindo em terrados bordavam o
caminho do lad o oposto. Tinha feito muito calor nesse dia,
e o anoitecer estava encantador ; o orvalho humedecia as ervas
murchas ; não havia vento, a noite estava tranquila ; o ar era
fresco, sem ser frio ; o sol, depois de se haver posto, tinha
deixado no céu umas nuvens vermelhas cujo reflexo tornava
a água cor-de-rosa; as árvores dos terrados estavam carrega­
das de rouxinóis que dialogavam uns com os outros. Eu passea­
va-me numa espécie de êxtase, entregando os meus sentidos e
o meu coração à volúpia de tudo isto , suspirando apenas um
pouco com pena de o gozar sozinho. Absorto no meu doce deva­
neio, prolonguei o passeio pela noite fora, sem notar que estava
cansado. Por fim, notei-o. Deitei-me voluptuosamente sobre a
laje de uma espécie de nicho ou de falsa porta cavada no
muro de um terrado ; o céu da minha cama era formado nela

169
copa das árvores; precisamente por cima de mim estava um
rouxinol ; adormeci embalado pelo seu canto: o meu sono foi
doce, e o meu despertar ainda mais. Era dia alto: ao abrirem-se,
os meus olhos viram a água, a verdura, a paisagem admirável.
Levantei-me, sacudi-me, a fome atacou-me, encaminhei-me ale­
gremente para a cidade, resolvido a gastar num bom almoço
as duas moedas de pataco que ainda me restavam. Estava
tão bem disposto, que me fui cantando caminho fora, e até
me lembro de ,que cantava uma cantata de Batistin, intitu­
lada Os banhos de Thoméry, que sabia de cor. Bendito sej a
o bom Batistin e mais a sua boa cantata, que me valeu um
almoço melhor do que eu contava, e um j antar ainda muito
melhor do que esperava. Quando ia no melhor da caminhada
e da cantoria, ouço alguém atrás de mim ; volto-me, e vej o
um antonino que me seguia e parecia escutar-me com prazer.
Este aborda-me, saúda-me, pergunta-me se sei música. Res­
pondo : um pouco, para dar a entender muito. Ele continua a
interrogar-me ; conto-lhe uma parte da minha história. Pergun­
ta-me se nunca copiei música. As vezes, respondo-lhe. E era
verdade ; a melhor maneira para mim de a aprender era copiá-la.
Muito bem! - diz-me ele - acompanhai-me ; poderei dar-vos
ocupação alguns dias, durante os quais nada vos faltará, dado
que consintais em não sair do quarto. IA.quiesci de boamente e
segui-o.
Este antonino chamava-se !Monsieur Rolichon ; gostava de
música, sabia-a e cantava em pequenos concertos que fazia com
os amigos. Nisso não havia nada que não fosse decente e
honesto ; mas esse gosto degenerava aparentemente em mania,
que ele em parte era obrigado a ocultar. Levou-me a um pe­
queno quarto que ocupei, e no qual encontrei muita música
copiada por ele. Deu-me mais para copiar, em especial a cantata
que eu havia cantado, e que ele próprio devia cantar dentro de
poucos dias. Ff,quei ali três ou quatro, copiando durante todo o
tempo em que não comia; porque nunca na minha vida me achei
tão faminto nem melhor alimentado. Ele próprio me trazia as
minhas refeições da cozinha, e esta devia na verdade ser boa, se
o seu passadio valia o meu. Nunca nos meus dias tive tanto pra­
zer em comer, e deve-se também confessar que estes acepipes
vinham muito a propósito, porque eu via-me seco como um cara­
pau. Trabalhava quase com tanto ânimo como comia, e j á não
é dizer pouco. É certo que n ão era tão apurado como diligente.
Alguns dias depois, encontrando Monsieur Rolichon na rua,
comunica-me este que as partes copiadas tornavam a música

170
quase inexeçutável, de tal maneira se achavam cheias de omis­
sões, duplicações e transposições. Devo confessar que posterior­
mente escolhi, com o trabalho de copista, o oficio do mundo para
que menos queda tinha. Não é que as minhas notas não fossem
bonitas e eu não copiasse com muita limpeza; mas o aborreci­
mento de um trabalho demorado causa-me tão grandes distrac­
ções que levo mais tempo a raspar do que a escrever, e se não
verifico com a máxima atenção as partes, a execução resulta
sempre uma trapalhada. Trabalhei, pois, muito mal, querendo
trabalhar bem, e para andar mais depressa levei tudo torto. Isto
não impediu Monsieur !Rolichon de me tratar bem até ao fim,
e de me dar ainda à saída um escudozito, que eu pouco merecia,
e que me recobrou completamente ; pois que, poucos dias depois,
recebi notícias de Mamã, que se achava em Chambéri, e dinheiro
para ir ter com ela, o que fiz com entusiasmo. De então para cá,
as minhas fin,anças estiveram frequentemente periclitantes,
mas nunca o bastante para ser obrigado a j e j uar. Assinalo esta
época com um coração sensível aos favores da Providência. Foi
a última vez na minha vida que senti a miséria e a fome.
Fiquei ainda em Lyon sete ou oito dias, à espera das incum­
bências de que Mamã havia encarregado Mademoiselle do Châ­
telet, que vi durante este tempo com mais assiduidade do que
anteriormente, tendo o prazer de falar com ela a respeito da
amiga, sem me sentir já destraido por aqueles cruéis exames da
minha situação, que me forçavam a esconder-lha. !Mademoiselle
do Châtelet não era nova nem bonita, mas não era isenta de
graç a ; era dada e familiar, e o seu espírito valorizava eeta fami­
liaridade. Possuía aquele gosto de moral observadora que leva a
estudar os homens ; e foi dela, antes de mais nada, que eu herdei
esse mesmo gosto. Gostava dos romances de Le \Sage, e parti­
cularmente do Gil Elas; falou-me dele, emprestou-mo, e eu li-o
com prazer ; mas não me achava ainda maduro para esta espécie
de leituras ; necessitava de romances de grandes sentimentos.
Passava assim o meu tempo à grade de 'Mademoiselle do Châtelet
com tanto prazer como proveito, e é certo que as conversas inte­
ressantes e sensatas de uma mulher de merecimento são mais
próprias para formar um rapaz do que toda a pedantesca filoso­
fia dos livros. Nas Chasottes travei conhecimento com outras
pensionistas e suas amigas, entre as quais uma rapariga de ca­
torze anos, chamada IMademoiselle !Serre, que à data não me
chamou muito a atenção, mas de quem me apaixonei oito ou
nove anos depois, e com razão, pois que era uma rapariga encan­
tadora.

171
Absorvido com a expectativa de voltar a ver em breve a
minha boa !Mamã, dei um pouco de trégua às quimeras, e a feli­
cidade real que me esperava dispensou-me de a procurar nas
visões. Não só a voltava a encontrar, mas voltava a encontrar
junto dela e por ela uma situação agradável: porque Mamã pre­
tendia haver-me encontrado uma ocupação que esperava con­
vir-me, e que me não afastaria dela. Cansava-me em conjectu­
ras para adivinhar de que ocupação se trataria, e na verdade
necessário seria adivinhar para acertar: Tinha dinheiro sufi­
ciente para fazer cômodamente a viagem. Mademoiselle do Châ­
telet quis que eu ar-ranjasse um cavalo; não aceitei, e tinha
razão: teria perdido o prazer da última viagem a pé que fiz na
minha vida, pois que não posso dar tal nome às excursões que
frequentemente fazia aos arredores, quando me encontrava em
Motiers.
Uma coisa bem singular é a minha imaginação excitar-se
tanto mais agradàvelmente quanto menos agradável é a situa­
ção em que me encontro, e, ao contrário, ser menos risonha
quando tudo ri à minha volta. A minha péssima cabeça não
pode sujeitar-se às coisas. Não sabe embelezar, quer criar.
Os objectos reais pintam-se nela quando muito tal qual são;
só sabe embelezar os objectos imaginários. Se quero pintar a
Primavera, necessito estar no Inverno; se quero descrever uma
paisagem, preciso estar cercado de muros; e já disse mil vezes
que se estivesse fechado na Bastilha, traçaria lá o quadro da
liberdade. Ao partir de Lyon, só vislumbrava um porvir agra­
dável; achava-me tão contente, e tinha razão para isso, quão
triste me achava ao partir de Paris. Contudo, não senti durante
esta viagem os devaneios deliciosos que me haviam seguido na
outra. Sentia o coração sossegado, e mais nada. Aproximava-me
enternecido da excelente amiga que ia tornar a ver. Gozava
antecipadamente, mas sem entusiasmo, o prazer de viver junto
dela: tinha-o sempre esperado; era como se nada de novo me
tivesse acontecido. Preocupava-me com o que ia fazer, como
se houvesse motivos para grandes preocupações. Os meus pen­
samentos eram calmos e doces, mas não celestiais e embriaga­
dores. Todos os objectos por que passava me atraiam a vista;
prestava atenção à paisagem; notava as árvores, as casas, os
ribeiros;· deliberava nas encruzilhadas, tinha medo de me per­
der, e não me perdia. Numa palavra, não estava no emp1reo,
estava ora onde estava, ora onde ia, nunca mais longe.
Ao relatar as minhas viagens, estou como estava ao fazê-las:
não podia chegar. O coração pulava.:me de alegria ao aproxi-

172
mar-me da minha querida !Mamã, e nem por isso ia mais
depressa. Gosto de andar à vontade, e de parar quando me ape­
tece. :A vida ambulante é a que me convém. Caminhar a pé por
um lindo tempo, numa linda região, sem pressas, tendo por termo
da viagem um objectivo agradável: eis a maneira de viver,
entre todas, que mais do meu gosto é. Aliás, conhecem já o que
entendo por uma linda região. Nunca região plana alguma,
por muito bela que fosse, me pareceu tal a meus olhos. Preciso
de torrentes, de rochedos, de pinheiros de florestas sombrias,
•.

montanhas, caminhos rudes a subir e a descer, precipícios à


minha beira que •metam bastante medo. Tive este prazer, e
gozei-lhe todas as. seduções, ao aproximar-me de Chambéri.
A pouca distância de uma montanha fendida, a que chamam o
Pas-de-l'Echelle, abaixo do grande caminho talhado na rocha
no sítio chamado Chailles, corre e cachoa em abismos medonhos
um riozito, que parece ter levado milhares de anos a cavá-los.
Protegeram o caminho com um parapeito para evitar os aci­
dentes: o que fazia com que eu pudesse contemplar-lhe o fundo
e ter vertigens à minha vontade, porque o que há de engraçado
no meu gosto pelos lugares escarpados é estes fazerem-me
andar a cabeça à roda e eu gostar grandemente deste torvelinho,
logo que me ache em segurança. Bem agarrado ao parapeito,
espetava o nariz para a frente, e ficava ali horas e horas, entre­
vendo de vez em quando aquela espuma e aquela água azul,
cujos mugidos ouvia através dos gritos dos corvos e das aves
de rapina, que voavam de rocha para rocha e de brenha para
brenha cem toesas abaixo de mim. Nos sítios em que o declive
era suficientemente liso e a brenha suficientemente rala para
se verem os calhaus, ia buscá-los a distância, e trazia alguns,
tão grandes quanto podia; fazia com eles uma pilha em cima
do parapeito; depois, atirando-os uns após outros, entreti­
nha-me a vê-los rolar, saltar e voar em mil estilhas, antes de
atingirem o fundo do precipício.
'Mais perto de Chambéri, ofereceu-se-me espectáculo idên­
tico, mas em sentido contrário. O caminho passa junto da mais
bela cascata que vi em minha vida. A montanha é a tal ponto
escarpada que a água brota em jorro e, ao cair, forma uma
arcada tão vasta que se pode passar entre a cascata e a rocha,
sem muitas vezes nos molharmos. 1Mas se não tomamos bem
cautela, somos fàcilmente enganados: pois que, em virtude
da grande altura, a água esparge-se e cai como poeira, e
quando nos aprci)Ximamos demasiadio desta nuvem, sem de

173
antemão nos apercebermos de que nos vamos molhar, imedia­
tamente nos sentimos inteiramente encharcados.
Enfim, chego e vejo-a. iNão estava só. O Senhor Inten­
dente-Geral achava-se com ela no momento em que entrei.
Sem me dizer nada, agarra-me na mão, e apresenta-me com
aquela graça que lhe abria todos os corações : Aqui tendes,
Senhor, o pobre rapaz ; protegei-o enquanto ele o merecer ;
já não estarei em cuidado a seu respeito para o resto da sua
vida. Depois, dirigindo-me a palavra : Meu filho - disse-me
ela _, pertence ao rei ; agradeça ao Senhor Intendente que
lhe dá o pão. Arregalei os olhos sem nada dizer, sem saber
muito bem o que pensar ; pouco faltou para que a incipiente
ambição não me desse volta ao miolo, e eu não começasse a
fazer de pequeno intendente. A minha fortuna revelou-se
menos brilhante do que tal intróito me havia feito supor ; mas,
por agora, era suficiente para viver, e para mim era muito.
Eis do que se tratava. Julgando o rei Vítor Amadeu que, pela
sorte das guerras anteriores, e pelo estado do antigo patrimó­
nio dos seus pais, este lhe fugiria um dia, só procurava consu­
mi-lo. Tendo resolvido, havia não muitos anos, lançar sobre a
nobreza o imposto de talha, tinha ordenado um cadastro geral do
país, com o fim de que, tornando o imposto real, este pudesse ser
repartido com mais equidade. O trabalho, começado pelo pai,
foi terminado pelo filho. Empregaram-se na tarefa duzentos a
trezentos homens, tanto agrimensores, a quem chamavam geó­
metras, como escreventes, a quem chamavam secretários, e
era entre estes últimos que Mamã me havia inscrito. Sem ser
muito lucrativo, o lugar dava para viver à larga nesta terra.
O mal é que o emprego era temporário, mas permitia procurar
e esperar, e foi por previdência que ela tratou de conseguir do
intendente uma protecção particular, para daí poder passar a
qualquer emprego mais sólido quando este terminasse.
Entrei em funções poucos dias depois de chegar. o trabalho
não era nada difícil, e em breve me pus ao corrente dele.
Foi assim que depois de quatro ou cinco anos de voltas e de
sofrimentos, desde a minha saída de Genebra, eu comecei pela
primeira vez a ganhar o meu pão com honra.
Estes longos pormenores da minha primeira mocidade terão
parecido bem pueris, e isso desgosta-me : posto que tenha nas­
cido homem sob tantos aspectos, conservei-me bastante tempo
criança, e, sob tantos outros, ainda o sou. Não prometi oferecer
ao público uma grande personalidade ; prometi pintar-me tal
qual sou ; e, para me conhecerem bem em idade mais avançada,

174
necessário é terem-me conhecido bem na mocidade. Como em
geral os obj ectos me deixam menos impressão do que recorda­
ções deles, e como todas as minhas ideias são formadas de
imagens, os primeiros acidentes que se me gravaram na cabeça
ai permaneceram, ao passo que os que depois nela se vieram a
imprimir combinaram-se com aqueles mais do que os apagaram.
Há uma certa sucessão de afecções e de ideias que modificam
as que se lhes seguem, e que é preciso conhecer para j ulgarmos
bem destas. Em tudo diligencio desenvolver bem as primeiras
causas, para fazer compreender o encadeamento dos efeitos.
Quereria de certo modo poder tornar a minha alma transpa­
rente aos olhos do leitor, e para isso procuro mostrar-lha de
todos os pontos de vista, iluminá-la por todos os lados, proce­
dendo de tal maneira que não se opere nela nenhum movimento
que ele não distinga, a fim de poder julgar por si mesmo do
princípio que os produz.
Se eu próprio me encarregasse do resultado e lhe dissesse :
é este o meu carácter, poderia ele julgar, se não que o engano
a ele, ao menos que me engano a mim. 1Contudo, contando-lhe
pormenorizadamente e com simplicidade tudo o que me acon­
teceu, tudo o que fiz, tudo o que pensei, tudo o que senti, não
posso induzi-lo em erro, a menos de o querer fazer expressa­
mente ; mesmo assim, não o conseguiria fàcilmente desta
maneira. Pertence-lhe a ele reunir estes elementos e determi­
nar o ser formado por eles : o resultado deve ser obra sua ; e se
se engana, então todo o erro será de sua responsabilidade. Ora,
não basta para tal fim que a minha narração sej a fiel,
é também necessário que sej a exacta. Não me pertence a mim
j ulgar da importância dos factos, devo relatá-los todos, e dei­
xar-lhe a ele o cuidado de escolher. Foi o que até agora diligen­
ciei fazer com toda a coragem, não esmorecendo na continua­
ção. As recordações da idade intermédia são, porém, sempre
menos vivas do que as da primeira mocidade. Comecei por
tirar destas o melhor p artido que me era possível. Se as outras
não me voltam à memória com a mesma força, os leitores
impacientes aborrecer-se-ão porventura, mas eu não ficarei
descontente com o meu trabalho. Só uma coisa temo neste
cometimento : não é dizer algo a mais ou dizer mentiras ; mas
sim não dizer tudo, e calar verdades.

175
LIV RO QUINTO

ARECE-ME que, como acabo de contar, foi em 1732 que

P cheguei a Ghambéri, e entrei para o meu emprego no


cadastro real. Tinha vinte anos feitos, quase vinte e um.
Pelo que diz respeito à inteligência, estava desenvolvido para
a idade ; mas quanto ao pensar, tinha pouco, e estava bem
precisado das mãos em que cai para aprender a conduzir-me :
pois que alguns anos de experiência não haviam podido
curar-me radicalmente das minhas visões romanescas, e apesar
de todos os reveses que havia sofrido, conhecia tão pouco o
mundo e os homens, que era como se não tivesse pago aquelas
lições.
Habitava em minha casa, isto é, em casa de Mamã ; mas
não voltei a encontrar o meu quarto de Annecy. Nem j ardim,
nem regato, nem paisagem. A casa que ela ocupava era som­
bria e triste, e o meu quarto o mais sombrio e triste da casa.
Um muro por vista, um beco por rua, pouco ar, pouca luz,
pouco espaço, grilos, ratos, tábuas podres ; tudo isto j unto não
tornava a habitação muito risonha. !Mas estava em casa dela,
junto del a ; continuamente à minha secretária ou no seu quarto,
notava pouco a fealdade do meu ; não tinha tempo para nele
sonhar. Parecerá extravagante que !Mamã se tenha fixado em
Chambéri expressamente para habitar nesta detestável casa:
foi até da parte dela um acto de habilidade que eu não devo
omitir. Dirigia-se para Turim com repugnância, sentindo bem
que, depois de recentíssimas revoluções, e n a agitação em que
a corte se achava, não era esse o momento para ali se apresen­
tar. Os seus negócios, contudo, exigiam que se mostrasse ; temia
ser esquecida ou prej udicada. Sabia sobretudo que o conde de
Sain-Laurent, intendente-geral das finanças, não a favorecia.
Havia em Chambéri uma velha casa, mal construída, e em tão
mau local que permanecia sempre vazi a ; alugou-a e instalou-se
nela. Isto serviu-a melhor do que uma viagem ; a pensão não
lhe foi suprimida, e desde então o conde de Saint-Laurent per­
tenceu a o número dos seus amigos.

12 177
Encontrei ali a sua vida organizada pouco mais ou menos
como anteriormente, e o fiel Claude Anet sempre com ela.
Este, como creio haver dito, era um aldeão de !Moutru, que
em criança colhia ervas no Jura para fazer chá da Suíça, e
que Madame de Warens tomara ao seu serviço por causa das
drogas, achando cómodo ter um ervanário como lacaio. Apai­
xonou-se de tal maneira pelo estudo das plantas, e ela favore­
ceu tanto essa inclinação, que se tornou um verdadeiro botânico,
e se não tivesse morrido cedo, teria adquirido nome nesta
ciência, assim como o havia merecido entre as pessoas de bem.
Como era sério, grave mesmo, e como eu era mais novo do que
ele, tornou-se para mim uma espécie de preceptor, livrando-me
de muitas loucuras , porque me inspirava respeito, e eu não
me atrevia a esquecer-me de mim próprio na su a presença.
Inspirava respeito mesmo à ama, a qual lhe conhecia o bom
senso, a rectidão, a inviolável dedicação por ela, e que ela lhe
pagava bem. Claude Anet era sem dúvida um homem raro, e
até o único no seu género que ainda vi. Vagaroso, sério, reflec­
tido, circunspecto no proceder, frio nas maneiras, lacónico e
sentencioso nas conversas, era nas suas paixões de uma impe­
tuosidade que nunca deixava transparecer, mas que o devorava
por dentro, e que só lhe fez cometer uma tolice na vida, que foi
envenenar-se. lEsta cena trágica passou-se pouco depois da
minha chegada, e foi necessária para me fazer conhecer a inti­
midade deste rapaz com a ama ; pois que se ela própria ma
não tivesse confessado, nunca eu teria dado por nada. Se a dedi­
cação, o zelo e a fidelidade podem merecer semelhante recom­
pensa, esta era-lhe certamente devida, e bem, e o que prova que
Claude era disso digno, é o facto de nunca ter abusado dela.
Raramente tinham discussões, e estas acabavam sempre bem.
Uma houve todavia que acabou mal : a ama, encolerizada, diri­
giu-lhe uma palavra ultrajante, com que ele não pôde confor­
mar-se. Claude só consultou o seu de�espero, e, achando à mão
um frasco de láudano, emborcou-o, e foi depois deitar-se tran­
quilamente, esperando nunca jffi ais acondar. Felizmente que
Madame de Warens, inquieta, agitada também, e errando pela
casa, encontrou o frasco vazio e adivinhou o resto. Correndo
para o socorrer, soltava gritos que me atraíram ; contou-me tudo,
implorou o meu auxílio, e conseguiu com bastante custo fazer-lhe
vomitar o ópio. Testemunha desta cena, admirava a minha par­
voíce por nunca ter tido a menor suspeita das relações que ela
me revelava. Mas ·Claude Anet era tão discreto, que outros mais
clarividentes podiam ter sido enganados. A reconciliação fez-se

178
de tal forma que eu próprio me senti vivamente impressionado,
e, desde então, associando à estima o respeito por ele, tornei-me
de certo modo seu aluno, e não me dei pior.
Todavia, não soube sem custo que alguém podia viver com
Mamã numa maior intimidade do que eu. Nem sequer tinha
pensado em desejar para mim tal lugar, mas era-me duro vê-lo
ocupado por outrem ; era naturalíssimo. Contudo, em vez de
ganhar ódio a quem mo havia roubado, senti realmente esten­
der-se a Claude a dedicação que tinha por Mamã. !Em tudo
desejava vê-la feliz ; e, visto que, para sê-lo, Mamã tinha neces­
sidade de Claude, sentia prazer em que ele fosse também feliz.
Por seu lado, Claude fazia perfeitamente suas as vistas da
ama, e ganhou sincera amizade ao amig o que esta escolhera.
Sem assumir comigo a autoridade que o seu posto lhe dava
direito a exercer, exerceu naturalmente aquela que o seu pensar
lhe dava sobre o meu. Nada ousava fazer que ele pudesse desa­
provar, e ele não desaprovava senão o que estava mal. Vivíamos
assim numa união que nos fazia a todos felizes, e que s6 a
morte pôde destruir. Uma das provas da excelência de carácter
desta mulher encantadora está em que todos os que a amavam
se amavam entre si. Os ciúmes, a própria rivalidade, subme­
tiam-se ao sentimento dominante que ela inspirava, e nunca
vi nenhum dos que a rodeavam querer mal ao outro. Que os
que me lêem suspendam um momento a leitura ao chegar a
este elogio, e se, pensando no caso, acharem outra mulher de
quem possam dizer o mesmo, liguem-se a ela por amor do
repouso da sua vida, sej a ela de resto a última das devassas.
Desde a minha chegada a Chambéri até à minha partida
para Paris, em 1'741 , começa um período de oito ou nove anos,
durante o qual poucos sucessos tenho a relatar, porque
a minha vida foi tão simples como calma, e esta uniformidade
era precisamente aquilo de que eu mais necessitava para acabar
de formar o meu carácter, que perturbações continuas impediam
de se fixar. !Foi durante este precioso período que a minha
educação, embrulhada e sem continuidade, tomando consis­
tência, fez de mim o que nunca mais cessei de ser através das
tormentas que me esperavam. Tal progresso foi insensível e
lento, pouco rico de sucessos memoráveis ; mas merece, todavia,
ser seguido e desenvolvido.
De começo, apenas me achava ocupado com o meu tra­
balho ; a maçada do escritório não me deixava pensar em m ais
nada. o pouco tempo que tinha livre passava-o j unto da minha
boa IMamã, e como ele nem sequer para ler me sobrava, não me

179
dava na fantasia fazê-lo. Quando porém a minha tarefa, trans­
formada numa espécie de rotina, ocupou menos o meu espírito,
este retomou as suas inquietações ; a leitura tornou-se-me nova­
mente necessária, e como se tal gosto se fosse continuamente
irritando pela dificuldade de me entregar a ele, ter-se-ia trans­
formado em paixão, como sucedera em casa de meu patrão,
se outros gostos surgindo inopinadamente não tivessem vindo
distrair-me daquele.
Se bem que as nossas operações não exigissem uma aritmé­
tica muito transcendente, exigiam o suficiente para às vezes
me caúsar embaraços. Para vencer esta dificuldade, comprei
·
livros de aritmética, e aprendi-a bem, porque a aprendi só.
A aritmética prática vai mais longe do que se pensa quando
nela se quer pôr um rigor exacto. Há operações de uma grande
extensão, no meio das quais vi por vezes os melhores geómetras
perderem-se. A reflexão j unta :à prática dá ideias claras, e
encontram-se então métodos abreviados, cuja invenção lisonjeia
o amor-próprio, cuja justeza satisfaz o espírito, e que levam a
fazer com prazer um trabalho ingrato em si m esmo. Enfro­
nhei-me tanto nela, que não havia problema solúvel só por
números que me embaraçasse, e agora, que tudo o que soube
se me esvai diàriamente da memória, tal aquisição ainda nela
subsiste em parte ao cabo de trinta anos de interrupção.
Há poucos dias, numa viagem que fiz a Davenport, assistindo,
em casa do meu hospedeiro, à lição de aritmética dos filhos,
fiz sem errar, e com um prazer inacreditável, uma operação
das mais complexas. Alinhando as minhas parcelas, parecia-me
que me encontrava ainda nos meus dias felizes de Chambé:r1.
Era voltar de longe sobre as próprias passadas.
A aguarelagem dos mapas dos nossos geómetras havia-me
também restituído o gosto do desenho. Comprei tintas, e pus-me
a fazer flores e paisagens. É pena que tivesse pouco talento
para esta arte ; a inclinação era completa. No meio dos lápis
e dos pincéis, seria capaz de passar meses inteiros sem sair,
Como tal ocupação se tornasse par_a mim demasiado absor­
vente, viam-se obrigados a arrancar-me a ela. Sucede o mesmo
com todos os prazeres nos quais começo a empenhar-me ;
aumentam, transformam-se em paixão, e em breve nada mais
vejo no mundo além do entretenimento em que me ocupo.
A idade não me curou deste defeito, e nem sequer o diminuiu,
P agora que isto estou escrevendo, eis-me apaixonado como
um velho tonto por outro estudo inútil de que não entendo

180
nada 1, e que aqueles mesmos que a ele se entregaram quando
novos são obrigados a abandonar na idade em que eu o quero
começar.
Era então que tal estudo devia ter lugar. A ocasião era
boa, e tive certa tentação de o começar. A satisfação que via
nos olhos de Anet, quando voltava para casa carregado de
novas plantas, fez-me estar duas ou três vezes a ponto de ir
herborizar com ele. Estou quase convencido de que se o houvesse
feito uma só vez, teria sido conquistado, e talvez hoje fosse um
grande botânico : pois que não conheço no mundo estudo algum
que se harmonize melhor com os meus gostos naturais do que
o das plantas, e a vida que levo no campo há dez anos não é
mais do que uma contínua herborização, na verdade sem objec­
tivo nem progresso ; não tendo porém então ideia alguma da
botânica , ganhei por ela uma espécie de desprezo e mesmo
de aversão ; considerava-a apenas um estudo de boticário. A pró­
pria Mamã, que gostava dela, não lhe dava outro uso ; só pro­
curava as plantas comuns para as aplicar nas suas drogas.
Deste modo, a botânica, a química e a anatomia, que eu con­
fundia no meu espírito sob o nome de medicina, só serviam
para me fornecer sarcasmos divertidos todo o dia, e valer-me
uns bofetões de vez em quando. Aliás, crescia gradualmente
em mim um gosto diferente e bem oposto àquele, o qual em
breve absorveu todos os outros. Refiro-me à música. Devo ter
nascido certamente para esta arte, pois que desde criança
comecei a amá-la, ela é a única que constantemente àmei todo
o tempo. o que admira é que uma arte para a qual nascera nie
desse contudo tanto trabalho a aprender, e com progressos tão
lentos, que, depois de uma prática de toda a vida, nunca con­
segui chegar ao apuro de cantar com segurança e correcta­
mente tudo. O que me tornava então sobretudo o seu estudo
agradável era o facto de poder fazê-lo com Mamã. Possuindo
aliás gostos muito diferentes, a música era para nós um ponto
de reunião que eu gostava de aproveitar. Ela não se recusava a
isso ; eu achava-me então pouco mais ou menos tão adiantado
como ela ; em duas ou três vezes líamos uma ária. Algumas
vezes, vendo-a afadigada em volta de um forno, dizia-lhe :
Mamã, tenho aqui um duo encantador, que me parece bem que
vai provocar um empireuma nas suas drogas. Ah! palavra de
honra - dizia ela - se tu mas fazes queimar, faço-tas
comer. Discutindo, ia-a arrastando para o cravo : aqui nos

1 Refere-se à botânica. - N. do T.

181
esquecíamos ; o extracto de genebra ou de absinto calcinava :
ela esborratava-me a cara com ele, e tudo isto era delicioso.
Vê-se que, com pouco tempo de sobra, tinha bastante em
que empregá-lo. Todavia, sobreveio-me ainda mais uma dis­
tracção, que valeu bem todas as outras.
Ocupávamos uma enxovia tão abafada, que por vezes sen­
tíamos necessidade de sair para tomar ar. Anet convenceu
Mamã a alugar nos arredores um horto para lá pôr plantas.
Junto ao horto havia uma casinhota muito engraçada, que se
mobilou com o indispensável. Instalou-se nela uma cama ; íamos
lá j antar frequentemente, e eu às vezes dormia lá também.
Insensivelmente, entusiasmei-me pelo retirozinho ; trouxe alguns
livros, bastantes gravuras ; passava uma parte do meu tempo a
embelezá-lo e a preparar qualquer surpresa agradável a Mamã,
quando esta ali fosse passear. Deixava-a para vir ocupar-me
dela, para nela pensar com mais prazer : outro capricho que não
relevo nem explico, mas que confesso, porque a coisa era assim.
Recordo-me de que certa vez Madame de Luxemburgo fala­
va-me, troçando, de um homem que abandonava a amante
para lhe escrever. Disse-lhe que poderia muito bem ser eu
tal homem, e teria podido acrescentar que o havia sido algumas
vezes. Todavia, nunca senti ao pé de !Mamã essa necessidade
de me afastar dela para a amar mais : porquanto, a sós com
ela, sentia-me tão perfeitamente à vontade como se estivesse
sozinho, e isto nunca me sucedeu com mais ninguém, homem
ou mulher, por grande que fosse a nossa afeição. Ela, porém,
achava-se com tanta frequência rodeada, e de pessoas que bem
pouco me agradavam, que o despeito e o aborrecimento me
expulsavam para o meu asilo, onde a tinha como queria, sem
receio de .que os importunos ali nos seguissem.
Enquanto assim dividido entre o trabalho, o prazer e a
instrução, vivia no mais doce repouso, a Europa não se achava
tão tranquila como eu. A França e o imperador acabavam de
declarar a guerr a : o rei da Sardenha tinha entrado na con­
tenda, e o exército francês corria ao Piemonte para entrar no
Milanês. Uma coluna passou por Chambéri, e entre outros o
regimento de Champagne, de que era coronel o Senhor Duque
de La Trimouille, ao qual fui apresentado, e que me prometeu
muitas coisas, mas que certamente nunca mais voltou a pensar
em mim. o nosso hortozinho achava-se situado precisamente
no cimo do arrabalde por onde entravam as tropas, de maneira
que eu fartava-me do prazer de ir vê-las passar, e apaixona­
va-me pelo êxito desta guerra como se ele me interessasse

182
grandemente. Até então, nunca me havia dado para pensar
nos negócios públicos, e pus-me , pela primeira vez, a ler os
j ornais, mas com uma tal p arcialidade pela França, que o
coração me batia de contentamento aos seus menores triunfos,
ao passo que os seus reveses me afligiam como se se tivessem
abatido sobre mim. Se tal loucura fosse apenas passageira, não
me dignaria falar nela ; mas enraizou-se-me a tal ponto no
coração, sem nenhum motivo, que, depois, quando em Paris
me fiz antidéspota e altivo republicano, senti, mau grado
meu, uma secreta predilecção por este mesmo país que achava
servil, e pelo governo que eu fazia gala em criticar. o que é
engraçado é que sentindo vergonha de uma inclinação de tal
modo contrária às minhas máximas, não ousava confessá-la
a ninguém, e troçava das derrotas dos franceses, se bem que,
mais do que a eles, estas me fizessem sangrar a mim o coração.
Sou certamente o único indivíduo que, vivendo num país que o
tratava bem, e que ele adorava, tomou um falso ar de desdém a
seu respeito. !Enfim, esta inclinação era tão desinteressada da
minha parte, tão forte, tão constante, tão .invencível, que,
mesmo depois de ter saído do reino, depois do governo, os magis­
trados, os autores se haverem à porfia irritado contra mim,
depois de se ter tornado de bom tom prostrar-me com inj ustiças
e injúrias, nunca pude curar-me da minha loucura. Amo-os
mau grado meu, se bem que me maltratem. Ao ver começar
já a decadência da Inglaterra, predita por mim no meio dos
seus triunfos, deixo-me embalar pela louca esperança de que
a nação francesa, vitoriosa por seu turno, virá porventura um
dia libertar-me do triste cativeiro em que vivo.
Procurei durante muito tempo a razão desta parcialidade,
e só posso achá-la na ocasião que a viu nascer. Um crescente
gosto pela literatura me afeiçoava aos livros franceses, aos
autores destes livros, e ao pais destes autores. No próprio
momento em que diante dos meus olhos desfilava o exército
francês, lia eu os grandes capitães de Br-antôme. Tinha a cabeça
cheia dos Clisson, dos Bayard, dos Lautrec, dos Coligny, dos
Montmorency, dos La Trimouille, e afeiçoava-me aos seus des­
cendentes como a herdeiros do seu valor e da sua coragem.
A cada regimento que passava, julgava voltar a ver os famosos
bandos negros que outrora haviam cometido tantos feitos no
Piemonte. Aplicava, enfim, ao que via, as ideias que extraía
dos livros ; as minhas continuas leituras, sempre arrancadas à
mesma nação, alimentavam a minha afeição por ela, e fize­
ram-me por fim ganhar por ela uma paixão cega que nada pôde

183
vencer. Tive depois ocas1ao de notar nas minhas viagens que
esta impressão não era particular à minha pessoa, e que agindo
pouco mais ou menos em todos os países sobre aquela parte
da população que prezava a leitura e cultivava as letras, con­
trabalançava o ódio geral que o ar superior dos franceses ins­
pira. Mais do que os homens, os romances conquistam-lhe a
estima das mulheres de todos os países, as obras-primas dra­
máticas prendem a mocidade aos seus teatros. A celebridade
do de Paris atrai multidões de estrangeiros que voltam dali
entusiasmados : o excelente gosto da literatura submete-lhe,
enfim, todos os espíritos que o possuem, e na tão infeliz guerra
de que saem vi os seus autores e os filósofos aguentar a glória
do nome francês, ofuscada pelos seus guerreiros.
Eu era, pois, um ardente francês, o que me tornou ávido
de noticias. Ia com a multidão dos papalvos esperar para a
praça a chegada dos correios, e, mais burro do que o burro
da fábula, preocupava-me extraordinàriamente com saber qual
seria o patrão cuj a albarda teria a honra de aguentar ; por­
quanto afirmava-se então que nós pertenceríamos à França, e
fazia-se a permuta entre a Sabóia e o !Milanês. Deve-se todavia
reconhecer que eu tinha alguns motivos para me sentir receoso ;
porquanto, se esta guerra desse mau resultado para os aliados,
a pensão de Mamã achava-se em grande perigo. Eu, porém,
estava cheio de confiança nos meus bons amigos, e por esta
vez, e apesar da surpresa de Monsieur de Broglie, a minha con­
fiança ' não foi iludida, graças ao rei da :Sardenha, em quem
não havia pensado.
Enquanto na Itália se batiam, em França cantava-se.
As óperas de Rameau começavam a dar que falar, e reabilitar
as suas obras teóricas, cuj a obscuridade só permitia o alcance
de poucas pessoas. Ouvi falar por acaso do seu Tratado de
Harmonia 1, e não descansei enquanto não adquiri o livro. Tam­
bém por acaso cai doente. A doença era inflamatória ; foi viva
e curta, mas a convalescen ç a foi longa, e durante um mês não
me achei em estado de sair. Neste tempo, encetei, devorei o meu
Tratado de Harmonia; este, porém, era tão longo, tão difuso,
tão mal arrumado, que senti ser-me necessário um tempo con­
siderável para o estudar e deslindar. Suspendi a minha atenção
e recreei os meus olhos com música. As cantatas de Bernier, que

1 O Tratado de Harmonia, de Rameau («Traité de l'Harmonie réduite


à ses príncipes naturels») , publicado em 1722, é uma obra capital de música
teórica, e a pedra basilar da ciência harmónica clãssica. - N. do T.

184
andava a estudar, não me saiam da ideia. Aprendi de cor quatro
ou cinco, entre as quais a dos Amores dormindo, que desde
então nunca mais revi, e que ainda sei quase inteiramente,
assim como o Amor mordido por uma abelha, lindíssima can­
tata de Clérambault, que aprendi pouco mais ou menos na
mesma ocasião.
Para acabar comigo, chegou de Vai d'Aosta um j ovem
organista chamado abade Falais, bom músico, boa pessoa, e
que acompanhava muito bem ao cravo. Travei conhecimento
com ele, e eis-nos inseparáveis. Era discípulo de um frade ita­
liano, grande organista. Falava-me dos princípios deste ; eu
comparava-os com os do meu Rameau ; enchia a cabeça de
acompanhamentos, acordes, harmonia. Era preciso preparar o
ouvido para tudo isto : propus a !Mamã um pequeno concerto
por mês ; ela acedeu. E aí fico eu tão embebido de tal concerto,
que nem de dia nem de noite pensava noutra coisa ; e real­
mente a coisa ocupava-me, e bastante, só em j untar a mústca,
os concertistas, os instrumentos, tirar as partes, etc. Mamã can­
tava ; o padre Caton, a que j á me referi, e a quem me hei-de
referir ainda, também cantava ; um mestre de dança, chamado
Roche, com o filho tocavam violino ; Gavanas, músico piemontês,
empregado no cadastro, e que depois se casou em Paris, tocava
violoncelo ; o abade Falais acompanhava ao cravo : eu tinha a
honra de dirigir o concerto, sem esquecer o porrete do lenhador 1•
Imagine-se como tudo isto era bonito ! Não precisamente como
em casa de Monsieur de Treytorens, mas não andava longe.
O p equeno concerto de Madame de Warens, recém-conver­
tida e vivendo, dizia-se, da caridade do rei, fazia murmurar o
bando beato ; era, porém, uma diversão agradável para várias
pessoas honestas. /Serão capazes de adivinhar quem é que nesta
ocasião eu ponho à frente delas? Um frade, mas um frade que
era um homem de merecimento, amável mesmo, cujos infor­
túnios me impressionaram depois vivamente, e cuja recordação,
associada à dos meus dias felizes, ainda hoje me é cara. Tra­
ta-se do padre Caton, cordoeiro, que, j untamente com o conde
Darton, havia feito apreender em Lyon a música do pobre
gatinho, o que não é o mais formoso feito da sua vida.
Era bacharel pela Sorbona : tinha vivido durante muito tempo
em Paris na melhor roda, e muito familiar sobretudo de casa
do marquês de Entremont, então embaixador na Sardenha. Era

1 Isto é, a batuta. A expressão, empregada em sentido irónico, é


tomada de um escrito polémico de Grimm. N. elo T.
-

185
um homem alto, bem constituído, de cara cheia, olhos à flor
do rosto, cabelos pretos que sem afectação encaracolavam nas
têmporas ; ar a um tempo nobre, franco, modesto, apresentan­
do-se simplesmente e bem ; não tendo nem a compostura san­
tarrona ou impudente dos frades, nem o trato soberbo de um
homem na moda, posto que o estivesse, mas antes a firmeza de
um homem de bem que, sem corar do seu traj e , se honra a
si mesmo e se sente sempre no seu lugar entre pessoas de
bem. Posto que o padre Caton não tivesse suficientes estudos
para um doutor, tinha-os que bastasse para um homem de
sociedade ; e como não se dava pressa em mostrar os seus conhe­
cimentos, metia-os tão a propósito, que parecia possuir mais.
Tendo vivido bastante na sociedade, tinha-se agarrado mais aos
talentos agradáveis, do que a um sólid o saber. Tinha espírito,
fazia versos, falava bem, cantava melhor, tinha uma linda
v.:>z, tocava órgão e cravo. Nem tanto era preciso para ser
·
requestado ; de sorte que o er a ; isso, porém, fê-lo tão pouco
descurar as preocupações do seu estado, que, apesar de con­
correntes bastante ciosos, foi nomeado definidor da sua pro­
víncia, ou, como se diz, um dos grandes colares da ordem.
Este padre Caton conheceu !Mamã em casa do marquês de
Entremont. Ouviu falar dos nossos concertos, e quis tomar
parte neles ; assim foi, de facto, e a eles emprestou o seu brilho.
Em breve nos achámos ligados pelo comum amor da música,
que tanto num como noutro era uma paixão bastante viva ;
com a diferença de que ele era verdadeiramente músico , ao
passo que eu não passava de um trapalhão. Com Canavas e o
abade Palais íamos fazer música para o seu quarto, e por vezes,
nos dias de festa, no seu órgão. !Partilhávamos com frequência
dos seus j antares íntimos ; pois que o que era ainda admirável
num frade é que ele era generoso, magnifico, e sensual sem gras­
saria. Nos dias dos nossos concertos, ceava em casa de Mamã.
Estas ceias eram muito alegr-es, muito agradáveis ; não havia
papas na língua ; cantavam-se duos ; eu estava à vontade, tinha
espírito, saídas ; o padre Caton era encantador, Mamã era ado­
rável, o abade Palais, com a sua voz de boi, era o alvo das nossas
graças. Momentos agradáveis da mocidade folgazã, há quanto
tempo vos partistes !
Como não voltarei a falar do pobre padre Caton, em duas
palavras acabarei aqui a sua triste história. Os outros frades,
ciosos ou antes furiosos por lhe acharem certo merecimento,
uma elegância de costumes que nada tinha da crápula monás­
tica, ganharam-lhe ódio, porque ele não era tão odiento como

186
eles. Os chefes coligaram-se contra ele, e incitaram os fraditos
que lhe cobiçavam o lugar, e que tempos antes não ousavam
olhar para ele. Ofenderam-no de mil maneiras, destituíram-no,
roubaram-lhe o quarto que ele havia mobilado com tanto gosto,
embora com simplicidade, relegaram-no não sei para onde ;
enfim, os miseráveis acabrunharam-no com tantas ofensas,
que a sua honesta e j ustamente altiva alma não pôde resistir,
e, depois de haver feito as delicias das mais amáveis sociedades,
veio a morrer de dor sobre um vil grabato, no fundo de uma
célula ou enxovia qualquer, lastimado, chorado por todas as
pessoas de bem que o haviam conhecido, e que não lhe acharam
outro defeito além do de ser frade.
Com este modesto modo de existência, trabalhei tão bem
em tão pouco tempo, que, inteiramente absorvido pela música,
não me achava em estado de pensar em mais nada. Só de
contra vontade i a ao escritório ; o tormento e a assiduidade
do trabalho tornaram-se para mim um suplicio insuportável, e
acabei enfim por decidir abandonar o emprego para me dedicar
totalmente à música. Pensar-se-á com razão que tal loucura
não deixou de sofrer oposição. Abandonar um posto honesto e
com ordenado fixo para correr atràs de uns incertos alunos,
era uma resolução muito pouco sensata para poder agradar a
Mamã. Suposto mesmo que os meus futuros progressos seriam
tão grandes como eu imaginava, era limitar muito modesta­
mente a minha ambição o reduzir-me para toda a vida ao
estado de músico. Ela, que só fazia projectos magnificas, e que
j á me n ão considerava inteiramente do ponto de vista de Mon­
sieur d'Aubonne, era com desgosto que me via seriamente absor­
vido por um talento que achava tão frívolo, e repetia-me fre­
quentemente aquele provérbio da província, um pouco menos
verdadeiro em Paris, que quem bem canta e bem dança tem um
ofício que pouco avança. Por outro lado, via-me arrastado por
um gosto irresistivel ; a minha paixão pela música transfor­
mava-se em mania, e era bem de recear que, ressentindo-se
das minhas distracções, o meu trabalho me levasse a ser des­
pedido, o que seria melhor partir de mim próprio. Eu fazia-lhe
ver também que este emprego não devia durar muito tempo,
que necessitava ter uma aptidão para viver, e que era mais
seguro acabar de adquirir por meio da prática aquela para que o
meu gosto pendia, e que ela tinha escolhido, do que colocar-me
à mercê de protecções, ou fazer novas experiências, que podiam
falhar, e deixar-me, depois de haver passado a idade de apren­
der, sem recursos para ganhar o meu pão. Extorqui-lhe, por fim,

187
o seu consentimento, mais à força de importunidades e de cari ­
cias do que de razões que a satisfizessem. Corri logo, soberbo,
a apresentar os meus agradecimentos a Monsieur Coccelli, direc­
tor-geral do cadastro, como se houvesse praticado o acto mais
heróico, e abandonei voluntAriamente o meu emprego, sem
motivo, sem razão, sem pretexto, com tanta ou mais satisfação
do que a que tinha tido ao ingressar nele ainda não havia dois
anos.
Este procedimento, por muito desarrazoado que fosse, gran­
j eou-me na terra uma espécie de consideração, que não deixou
de me ser útil. Uns, imaginaram recursos que eu não tinha ;
outros, vendo-me inteiramente entregue à música, j ulgaram do
meu talento pelo meu sacrifício, e. acreditaram que, com uma
tal paixão por esta arte, o que possuía devia ser de ordem supe­
rior. Em terra de cegos quem tem um olho é rei ; passei em
Chambéri por um bom mestre, porque só os havia maus. Não
me faltando, de resto, um certo gosto do canto, favorecido ainda
pela minha idade e pela minha figura, em breve tive mais
alunos do que aqueles de que havia mister para suprir os meus
vencimentos de secretário.
É certo que, como atractivo de vida, não se podia passar
mais ràpidamente de um extremo ao outro. No cadastro, ocupado
oito horas por dia no mais aborrecido dos trabalhos, com pes­
soas ainda mais aborrecidas, fechado num triste escritório
empestado pela respiração e pelo suor de todos aqueles labros­
tes, a maior parte deles muito mal penteados e muito suj os, sen­
tia-me às vezes abatido até ter vertigens com a atenção, o
cheiro, a maçada e o aborrecimento. Em troca, eis-me de súbito
lançado na boa sociedade, admitido, requestado pelas melhores
casas; em toda a parte um acolhimento cortês, afectuoso, um
ar de festa : gentis donzelas bem vestidas esperam-me, rece­
bem-me pressurosas ; só vejo objectos encantadores, só me
cheira a rosas e a flor de laranj eira ; canta-se, conversa-se,
rimo-nos, divertimo-nos ; só dali saio para ir para outro sítio
fazer o mesmo. Há-de concordar-se que em igualdade de melho­
ria não havia que hesitar n a escolha. !Deste modo, dei-me tão
bem com a que fiz, que nunca me sucedeu arrepender-me, e
nem sequer me arrependo neste momento, em que peso pelo
peso da razão as acções da minha vida, e em que me acho liberto
dos motivos pouco sensatos que me arrastaram.
Foi esta por assim dizer a única vez em que, escutando
apenas as minhas inclinações, não vi a minha expectativa
frustrada. O fácil acolhimento, o espírito sociável, o feitio brando

188
dos habitantes da terra tornaram-me agradá.vel o comércio da
sociedade, e o gosto que então tomei por ela provou-me perfeita­
mente que, se não gosto de viver entre os homens, a culpa é
menos minha do que deles. É pena que os saboianos não sejam
ricos, e s€ria porventura pena que o fossem ; porque, tal como
são, é a melhor e mais sociável gente que conheço. Se há cida­
dezinha no mundo em que se possa apreciar a doçura da vida
num comércio agradável e certo, é Chambéri. A nobreza da pro­
víncia, que aí se retme, tem apenas o suficiente para viver ;
não tem que chegue para subir : e , como não pode entregar-se
à ambição, forçoso lhe é seguir o conselho de Cineas. Consagra
a mocidade à vida militar, e depois volta para envelhecer tran­
quilamente em sua casa. 1A honra e a razão presidem a esta
distribuição. As mulheres são bonitas, e podiam prescindir de
o ser ; têm tudo o que pode valer a beleza, e até supri-la. É sin­
gular que havendo-me a minha profissão chamado a ver tantas
raparigas, não me recordo de ter visto em Chambéri uma só
que não fosse encantadora. Direis que já estava de antemão
disposto a tal, e talvez tenhais razão ; mas nisto não tinha eu
necessidade de pôr n ada de minha casa. Na verdade, não posso
recordar-me S€m prazer das minhas lindas alunas. !Porque não
posso eu, mencionando aqui as mais formosas, chamá-las igual­
mente, e eu com elas, à idade feliz em que nos achávamos,
quando dos momentos tão doces como inocentes que passei
junto delas ! A prim€ira foi !Mademoiselle de Mellarêde, minha
vizinha, irmã do aluno de IMonsieur Gaime. Era uma morena
muito viva, mas de uma vivacidade meiga, sem estouvamento.
Era um bocadinho magra, como a maior parte das raparigas da
sua i dade ; mas os seus olhos brilhantes, a sua cintura fina e
o seu ar não necessitavam de gordura para agradar. Ia lá de
manhã, e ela ordinàriamente não se achava ainda arranj ada,
tendo por penteado apenas os cabelos negligentemente puxados
para cima, e adornados com algumas flores que lhes punham
à minha chegada, e que tiravam ao partir, para se pentear.
Nada no mundo temo tanto com uma pessoa bonita por arran­
j ar ; ataviada, receá-la-ia mil vezes menos. !Mademoiselle de
Menthon, a casa d€ quem ia à tarde, estava-o sempre, e fazia-me
uma impressão igualmente doce, mas diferente. Tinha os cabe­
los de um loiro cendrado : era muito miudinha, muito timida
e muito branca ; uma voz límpida, afinada e suave, mas que

não ousava desenvolver-se. Tinha no peito uma cicatriz de uma


queimadura com água a ferver, que um lenço de passamanaria
azul não ocultava inteiramente. Por vezes, este sinal atraia

189
para aquele sitio a minha atenção, a qual em breve não se
fixava de todo n a cicatriz. Mademoiselle de Challes, outra vizi­
nha minha, era já uma rapariga feita ; grande, ombros bastante
largos, gorda ; tinha sido muito engraçada. Já não era uma
beleza, mas era uma pessoa que merece ser citada pelas suas
boas graças, pelo seu feitio igual, pela sua bondade natural.
A irmã, Madame de Charly, a mais linda mulher de Chambéri,
já não aprendia música, mas fazia-a aprender à filha, muito
nova ainda, mas cuj a beleza incipiente prometia igualar a da
mãe, se infelizmente não fosse um pouco ruiva. Na Visitação,
tinha uma rapariguita francesa, de cujo nome me esqueci, mas
que merece um lugar na lista das minhas preferências. Tinha
apanhado o tom lento e arrastado das religiosas, e dizia neste
tom arrastado as coisas mais atrevidas, que não pareciam ir
com os seus modos. Era, de resto, preguiçosa, achava que não
valia a pena exibir o seu espírito, o que era um favor que
não concedia a toda a gente. \Só ao fim de um mês ou dois de
lições e de neglig·ência é que ela descobriu este expediente para
me tornar mais assíduo ; porquanto eu, por mim mesmo, nunca
cuidei de sê-lo. Gostava das lições quando as dava, mas não
gostava de ser obrigado a dá-Ias nem dominado pelas horas
delas. o constrangimento e a sujeição são-me insuportáveis em
tudo ; far-me-iam odiar o próprio prazer. Diz-se que entre os
maometanos, ao romper do dia, passa na rua um homem para
ordenar aos maridos que cumpram os seus deveres para com
as mulheres. A tal hora eu seria um mau turco.
Tinha também algumas alunas na burguesia, entre as quais
uma que foi a causadora indirecta de uma alteração nas minhas
relações, e de que vou falar, porque, enfim, devo contar tudo.
Era filha de um merceeiro, e chamava-se Mademoiselle Lard,
autêntico modelo de uma estátua grega, e que eu apontaria
como a rapariga mais bonita que ainda vi, se existisse verda­
deira beleza sem vida e sem alma. A sua indolência, a sua
frieza, a sua insensibilidade atingiam um grau inacreditável.
Era igualmente impossível agradar-lhe ou irritá-Ia, e estou
convencido de que se alguém se atrevesse a atentar contra ela,
ela teria consentido em tudo, não por prazer, mas por estu­
pidez. A mãe, que não queria correr esse risco, não a largava
um instante. Mandando- a aprender a cantar, dando-lhe por
professor um rapaz novo, fazia todo o possível para a espevi­
tar ; mas nada dava resultado. Enquanto o professor provocava
a filha, a mãe provocava o professor, o que não dava melhor
resultado. Madame Lard associava à sua vivacidade natural toda

190
aquela que a filha deveria possuir. Tinha uma. carita esperta,
irregular, mas simpática, com sinais de bexigas. Os olhos eram
pequenos e muito ardentes, um tanto ou quanto vermelhos, por­
que quase sempre sofria deles. Todas as manhãs, ao chegar,
achava o café com leite pronto, e a mãe nunca deixava de me
receber com um beijo bem pespegado na b oca, e que eu por
curiosidade gostaria de restituir à filha, para ver como esta o
receberia. Aliás, tudo isto se fazia de uma maneira tão simples
e tão sem consequências, que, quando Monsieur Lard se achava
presente, as festas e os beijos nem por isso deixavam de prosse­
guir. Era um simplório, o autêntico pai de sua filha, e a quem
a mulher não enganava, porque não havia necessidade disso.
Eu prestava-me a todos estes afagos com a minha estupidez
do costume, tomando-os muito ingenuamente por demonstra­
ções de pura amizade. Algumas, contudo, importunavam-me ;
porque a viva Madame Lard não deixava de ser exigente, e se
durante o dia eu passasse pela loja sem parar, haveria barulho.
Quando estava com pressa, necessitava dar uma volta e passar
noutra rua, pois sabia muito bem que não era tão fácil sair de
sua casa como lá entrar. Madame Lard preocupava-se dema­
siado comigo para que eu me não preocupasse com ela. As suas
gentilezas sensibilizavam-me sobremodo; falei no caso a Mamã,
como se se tratasse de uma coisa sem reserva ; e ainda mesmo
que a houvesse, nem por isso deixaria de lhe falar ; pois que me
era impossível ter para com ela segredos a respeito fosse do
que fosse : o meu coração conservava-se aberto diante dela como
diante de Deus. Mamã não aceitou inteiramente a coisa com a
mesma simplicidade do que eu. Viu investidas onde eu só tinha
visto amizade; pensou que Madame Lard, considerando ponto
de honra largar-me menos idiota do que me tinha encontrado,
conseguiria de uma maneira ou doutra fazer-se compreender,
e além de que não era justo que outra mulher se encarregasse
da instrução do seu discípulo, tinha outros motivos mais dignos
dela para me proteger das ciladas a que a minha idade e o
meu estado me expunham. Na mesma altura, armaram-me
outra de um género mais perigoso, de que me livrei; mas que
lhe fez ver que os perigos que constantemente me ameaçavam
tornavam necessárias todas as c autelas de que ela fosse capaz.
A condessa de IMenthon, mãe de uma das minhas alunas,
era uma senhora de muito espírito, e passava por não ser menos
maldosa. Dizia-se que havia sido ela a causadora de bastantes
discórdias, uma das quais, entre outras, tinha acarretado con­
sequências fatais à casa de Entremont. Mamã tinha estado

191
suficientemente relacionada com ela para lhe conhecer o carác­
ter; como houvesse inocentemente inspirado certa preferência
a alguém por quem Madame de Menthon tinha as sua preten,
sões, ficou aos olhos desta culpada do crime de tal preferência,
se bem que a própria Madame de Menthon não tivesse sido
nem requestada, nem aceita ; e Madame de Menthon procurou
depois pregar várias partidas à sua rival, mas sem resultado.
Como amostra, contarei uma das mais cómicas. Encontravam-se
elas reunidas no campo com vários cavalheiros das vizinhanças,
entre os quais o aspirante em questão. Um dia, Madame de
Menthon disse a um destes cavalheiros que Madame de Warens
não passava de uma preciosa; que não tinha gosto, que se
arranjava mal, que cobria o colo como uma burguesa. Quanto
a este último artigo, lá tem as suas razões, respondeu-lhe o
sujeito, que gostava de gracej ar; eu sei que ela tem uma horrível
ratazana estampada no seio, e tão parecida que até parece que
corre. Como o amor, o ódio torna as pessoas crédulas. Madame
de Menthon resolveu tirar partido desta descoberta, e um dia
em que Mamã se encontrava a j ogar com o ingrato favorito
da dama, esta aproveitou a ocasião para p assar por trás d a
rival, e depois, fazendo-a quase cair d a cadeira, entreabriu-lhe
com perícia o lenço. Mas, em vez de uma ratazana, o cavalheiro
apenas viu um objecto totalmente diferente, o qual não era
mais fácil esquecer do que ver, o que transtornou os cálculos
da dama.
Eu não era pessoa com quem Madame de :Menthon, que
só queria gente brilhante à sua volta, se preocupasse. Pres­
tou-me, todavia, certa atenção, não pela minha figura, com
que decerto se não importava absolutamente hada, mas pelo
espírito que supunham em mim, e que talvez pudesse tornar-me
prestável aos seus gostos. Um dos mais vivos que possuía era
o da sátira. Gostava de escrever canções e versos sobre as
pessoas com quem não simpatizava. !Se me achasse suficiente
'
talento para lhe ajudar a arranjar os· versos, e suficiente com­
placência para lhos escrever, os dois poríamos em breve Cham­
béri em estado de sitio. !Remontar-se-ia à origem de tais pan­
fletos: Madame de Menthon livrar-se-ia de complicações, sacri­
ficando-me, e eu seria metido na prisão talvez para o resto
dos meus dias, para aprender a fazer de Febo com as damas. ,
Felizmente, nada disto foi avante. IMadame de Menthon con­
vidou-me duas ou três vezes a j antar, para conversar comigo,
e achou que eu não passava de um idiota. Eu próprio o sentia,
e lastimava-me, cobiçando os talentos do meu amigo Venture,

192
a o passo que devia agradecer à minha estupidez os perigos de
que ela me livrava. Continuei para Madame de Menthon o pro­
fessor de canto da filha, e mais nada: mas vivi sossegado e
sempre benquisto de toda Chambéri, o que valia mais do que
ser um formoso espírito para ela, e uma serpente para o resto
da terra.
Seja como for, !Mamã viu que, para me arrancar aos peri­
gos da mocidade, tempo era de me tratar como um homem, e
foi o que fez, da maneira porém mais singular que em seme­
lhante circunstância jamais ocorreu a mulher alguma. Notei­
-lhe um ar mais grave, e mais moral nas conversas do que
de -costume. A alegria brincalhona com que entremeava sempre
as suas instruções sucedeu de súbito um tom de constante
firmeza, que não era nem familiar, nem severo, mas que pare­
cia preparar uma expli-cação. Depois de em vão ter procurado
em mim mesmo a causa desta mudança, perguntei-lha a ela;
era o que ela esperava. Propôs-me que déssemos no dia seguinte
um passeio ao hortozito: estávamos lá logo de manhã. Tinha ela
tomado providências para que nos ,deixassem sós todo o dia;
empregou-o .em preparar-me às bondades que queria ter comigo;
não, como qualquer outra mulher, por meio da artimanha das
suas provocações, mas por meio de conversas cheias de senti­
mento e de razão, mais próprias para me instruírem do que
para me seduzirem, e que me falavam mais ao coração do que
aos sentidos. No entanto, por excelentes e úteis que fossem as·
falas que teve comigo, e se bem que estas fossem nada mais
nada menos que frias e tristes, não lhes prestei toda a atenção
que mereciam, e não as gravei na memória como faria em
qualquer outra ocasião. O começo, aquele ar de preparação
havia-me inquietado: enquanto ela ia falando, eu, sonhador
e distraído mau grado meu, preocupava-me menos com o que
ela dizia, do que em cogitar aonde quereria chegar, e logo que
o compreendi, o que não foi fácil, o inesperado de tal ideia,
que nem uma só vez me tinha acudido ao pensamento desde
que vivia na sua companhia, absorvendo-me completamente,
não me permitiu mais ser senhor de pensar no que ela me dizia.
Só pensava nela e não a ouvia.
Pretender que os rapazes novos prestem atenção ao que se
lhes quer dizer, mostrando-lhes ao cabo um objecto de grande
interesse para eles, é um contra-senso muito vulgar nos pro­
fessores, e que eu próprio não evitei no meu Emílio. Impressio­
nado pelo objecto que lhe apresentam, o rapaz preocupa-se
unicamente com este, e salta a pés juntos por cima dos nossos

13
193
discursos pr·eliminares, para se dirigir em primeiro lugar ali
onde segundo . a sua vontade o levamos muito lentamente.
Quando queremos que ele preste atenção, não devemos dei­
xar-nos descobrir de antemão, e foi neste ponto que Mamã
se mostrou imprudente. Em virtude de uma singularidade que
relevava do seu espírito sistemático, tomou a precaução intei­
ramente vã de apresentar as sua condições; mas logo que lhes
vi o prémio, nem sequer as escutei, e apressei-me em tudo con­
sentir. Duvido mesmo que em semelhante caso haj a em toda
a terra um homem bastante franco ou bastante corajoso para
se atrever a negociar, e uma única mulher que lhe pudesse
perdoar havê-lo ele feito. Como consequência da mesma extra­
vagância, incluiu neste acordo as mais graves formalidades, e
deu-me para pensar no caso oito dias, que, fingindo, lhe afirmei
não serem necessários : pois que, para cúmulo de singularidade,
bastante contente fiquei por mos dar, a tal ponto a novidade
destas ideias me havia impressionado, e de tal maneira eu sen­
tia nas minhas uma revolução que pedia o seu tempo para nelas
-
pôr ordem!
Julgar-se-á que estes oito dias me pareceram oito séculos.
Muito ao contrário; teria desejado que com efeito durassem
isso. Não sei como descrever o estado em que me encontrava,
cheio de um certo terror misturado de impaciência, temendo
o que desej ava, até ao ponto de por vezes me pôr seriamente
a procurar na cabeça qualquer meio honesto para evitar a feli­
cidade. Imaginem o meu temperamento ardente e lascivo, o meu
sangue inflamado, o meu coração ébrio de amor, o meu vigor,
a minha saúde, a minha idade; pensem que em tal estado, se­
dento de mulheres, não me tinha ainda aproximado de nenhuma;
que a imaginação, a necessidade, a vaidade, a curiosidade, se
j untavam para me devorarem do ardente desej o de ser um
homem e de o parecer. Acrescente-se, sobretudo, porque é isso
que se não deve esquecer, que a minha viva e terna afeição
por ela, longe de arrefecer, não havia feito senão aumentar
de dia para dia; que só ao pé dela me sentia bem; que só
me afastava dela para nela pensar ; que tinha o cora:ção cheio
não só das suas bondades, do seu carácter obsequiador, mas do
seu sexo, da sua figura, da sua pessoa, dela, num a palavra,
e sob todos os aspectos por ·que ela me pudesse ser querida;
e não se pense que os dez ou doze anos que eu tinha a menos
do que ela a faziam ou me parecia a mim fazerem-na velha.
Desde que, havia cinco ou seis anos, eu, mal a vira, experimen­
tara tão doces arroubos, ela tinha realmente mudado pouco,

194
e a mim de maneira nenhuma mo parecia. Para mim foi sem­
pre encantadora, e era-o ainda para toda a gente. Só a cintura
lhe havia engrossado um pouco. Quanto ao resto, era o mesmo
olhar, a mesma tez, os mesmos seios, os mesmos traços, os mes­
mos lindos cabelos louros, a mesma alegria, tudo, até a mesma
voz, aquela voz argentina da mocidade, que me fez sempre tanta
impressão, que ainda hoje não posso ouvir sem emoção o som
de uma bonita voz de rapariga.
Naturalmente, o que havia a temer na expectativa da posse
de pessoa tão amada era que eu a antecipasse, e não pudesse
dominar os desejos e a imaginação o bastante para me con­
servar senhor de mim mesmo. Ver-se-á como em idade mais
avançada bastava a ideia dos leves favores que me esperavam
para me aquecer o sangue a um ponto que me era impossível
fazer impunemente o curto trajecto que me separava de casa
da pessoa amada. Como, por que prodígio, mostrei eu, na flor
da idade, tão pouco ardor no meu primeiro prazer? Como pude
ver aproximar-se-lhe a hora com mais desgosto do que con­
tentamento? Como é que, em vez das delícias que deviam embria­
gar-me, sentia quase repugnância e receio? Se tivesse podido
furtar-me com decência à felicidade, não há dúvida de que o
haveria feito da melhor vontade. Prometi extravagâncias na
história da minha afeição por Madame de Warens; aqui têm
uma que certamente ninguém esperava.
Julga o leitor, já revoltado, que, possuída por outro homem,
ela se degradava aos meus olhos dando-se aos dois, e que um
sentimento de menos estima esfriava os que esse homem me
havia inspirado: engana-se. É certo que esta co-posse me dava
um desgosto cruel, tanto por uma bem natural delicadeza, como
porque, com efeito, eu a achava pouco digna dela e de mim;
quanto aos meus sentimentos a seu respeito, aquela não os
alterava todavia, e posso jurar que nunca a amei com tanta
ternura como quando menos desejava possui-la. Conhecia dema­
siado o seu coração casto e o seu temperamento de gelo para
acreditar um instante que o prazer dos sentidos contasse algo
naquele abandono de si própria : estou perfeitamente convencido
de que só o desejo de me arrancar a perigos doutro modo quase
inevitáveis, e de me conservar perfeitamente inteiro, quanto
a mim e quanto aos meus deveres, a fazia infringir um sobre
que não tinha as mesmas vistas que as outras mulheres, como
a seguir se verá. Lamentava-a e lamentava-me. Desejaria dizer­
-lhe : Não, Mamã, não é preciso ; respondo por mim sem ser
necessário o que pretende. !M:as não ousava ; primeiro, porque

195
não era coisa que se dissesse, e depois, porque no fundo eu
sentia que não era verdade, e que, com efeito, s6 havia uma
mulher que podia proteger-me das outras mulheres e pôr-me
à prova das tentações. Sem desejar possui-la, rej ubilava por
ela me tirar o desejo de possuir outras, de tal maneira encarava
como uma desgraça tudo o que pudesse distrair-me dela.
O longo hábito de vivermos j untos, e vivermos inocente­
mente, longe de enfraquecer os meus sentimentos a seu res­
peito, havia-os reforçado, mas havia-lhes dado ao mesmo tempo
uma outra forma, que os tornava mais afectuosos, porventura
mais ternos, mas menos sensuais. A força de lhe chamar Mamã,
à força de proceder para com ela com a familiaridade de um
filho, acostumara-me a �onsiderar-me como tal. C'.reio que
está nisto a verdadeira causa do meu pouco ardor em possui-la,
embora a amasse tanto. Lembro-me muito bem que os meus
primeiros sentimentos, sem serem mais vivos, eram mais
voluptuosos. Em Annecy, achava-me em êxtase; em Cham­
béri, já não. Amava-a o mais apaixonadamente possível ; mas
amava-a mais por ela e menos por mim, ou, pelo menos, buscava
junto dela mais a minha felicidade do que o meu prazer: era
para mim mais do que uma irmã, mais do que uma mãe, mais
do que uma amiga, mesmo ma.is do que uma amante, razão por
que não era uma amante. !Enfim, amava-a de mais para a
cobiçar: eis o que nas minhas ideias é mais claro.
Esse dia, mais temido que esperado, chegou por fim. Pro­
meti tudo, e não menti. o meu coração confirmava as minhas
promessas sem desejar-lhes a recompensa. Contudo, obtive-a.
Pela primeira vez me vi nos braços de uma mulher, e de uma
mulher que adorava. Fui feliz? Não, apreciei o prazer. Não sei
que indizível tristeza lhe envenenava o encanto. Era como se
houvesse cometido um incesto. Por duas ou três vezes, apertan­
do-a nos braços com entusiasmo, lhe inundei o seio de lágrimas:
Quanto a ela, não se mostrava nem triste, nem ardente ; con­
servava-se carinhosa e calma. Como era pouco sensual e não
havia buscado a voluptuosidade, não lhe sentiu as delicias e
nunca lhe sentiu os remorsos.
Répito: todas as suas faltas lhe vieram dos seus erros,
nunca das suas paixões. Tinha bom fundo, um coração puro,
amava o que era honesto, as suas inclinações eram rectas e
virtuosas, tinha um gosto delicado; nascera para uma ele­
gáncia nos costumes que sempre amou e que nunca seguiu,
porque em vez de escutar o coração, que a guiava bem, escutava
a razão, que a guiava mal. Quando falsos princípios a transvia-

196
ram; os seus verdadeiros sentimentos desmentiram-nos sempre :
infelizmente, porém, tinha pretensões a filósofa, e a moral que
para si mesma havia arranjado estragou a que o coração lhe
ditava.
Monsieur de Tavel, seu primeir o amante, foi o seu pro­
fessor de filosofia, e os princípios que lhe inculcou eram aqueles
de que necessitava para a seduzir. Achando- a presa ao marido,
aos seus deveres, sempre fria, razoável, e inatacável pelos sen­
tidos, atacou-a com sofismas, e conseguiu fazê-la encarar os
deveres a que se havia agarrado como sendo um palavreado de
catecismo, feito apenas para divertir as crianças; a união dos
sexos como o mais indiferente acto em si mesmo; a fidelidade
conjugal como uma aparência obrigatória, cuja inteira morali­
dade dizia respeito :à opinião; o repouso dos maridos como a
única regra do dever das mulheres, de maneira que as infi­
delidades ignoradas, nulas para aquele a quem elas ofendiam,
eram-no também para a consciência; persuadiu-a, enfim, de
que a coisa em si nada era, que só adquiria existência graças
ao escândalo, e que toda a mulher que aparentava de discreta
só por isso o era efectivamente. Foi assim que o desgraçado
conseguiu o seu fim, corrompendo a razão de uma criança, a
quem não havia podido corromper o coração. Foi punido pelo
mais corrosivo ciúme, persuadido de que ela o tratava a ele
como ele a havia ensinado a tratar o marido. Não sei se neste
ponto se enganava. O pastor Perret passou por ser o seu suces­
sor. O que sei é que o temperamento frio desta mulher nova,
o qual a devia premunir contra tal sistema, foi o que mais
tarde a impediu de renunciar a ele. Não podia conceber que
se desse tanta importância a uma coisa que nenhuma tinha
para ela. Nunca honrou com o nome de virtude uma abstinên­
cia que tão pouco lhe custava.
Nunca teria abusado desse falso princípio a favor de si
mesma; mas abusou a favor de outrem, e isso em virtude de
uma outra máxima quase tão falsa, mas mais de acordo com
a bondade do seu coração. Acreditou sempre que nada prendia
tanto um homem a uma mulher como a posse, e se bem que
só tivesse amizade pelos amigos, tinha por eles uma amizade
tão terna, que empregava todos os meios que dela dependiam
para mais fortemente os prender a si. O que é mais extraor­
dinário é que quase sempre foi bem sucedida. Era na realidade
tão amável, que quanto maior era a intimidade em que se vivia
com ela, mais nela se achavam novas razões para a amar.
Quando teve preferências pouco dignas dela, longe de o fazer

197
por baixeza de inclinações, o que nunca entrou no seu nobre
coração, fê-lo unicamente devido à grande generosidade do seu
coração, demasiado humano, demasiado compassivo, demasiado
sensível, e que ela nem sempre dominou com suficiente dis­
cernimento.
rse alguns falsos princípios a perderam, quantos outros
admiráveis não tinha ela de que nunca se desviou ! Quantas
virtudes não resgatavam as suas fraquezas, se assim se pode
chamar aos erros em que os sentidos contavam tão pouco!
o mesmo homem que a enganou sob determinado a specto,
esclareceu-a admiràvelmente sob muitíssimos outros; e como
as suas paixões, que não eram fogosas, lhe permitiam seguir-lhe
sempre os ensinamentos, tudo ia bem quando os sofismas
daquele a não transviavam. Mesmo nos seus defeitos, eram
para louvar as suas razões; podia proceder mal enganando-se,
mas nada podia querer de mau. Detestava a duplicidade, a men­
tira ; era justa, equitativa, humana, desinteressada, fiel à sua
palavra, aos seus amigos, aos deveres que reconhecia como tal,
incapaz de vingança e de ódio, e nem sequer concebendo que o
perdão tivesse algum mérito. Voltando, enfim, ao que tinha de
menos desculpável, sem pesar o que os seus favores valiam,
nunca os transformou num vil comércio; prodigalizava-os, mas
não os vendia, se bem ,que para viver tivesse constante neces­
sidade de expedientes; e atrevo-me a dizer que se Sócrates pôde
estimar Aspásia, teria respeitado •Madame de Warens.
Sei de antemão que, atribuindo-lhe um carácter sensível
e um temperamento frio, serei acusado, como de costume, de
me contradizer, e com dobrada razão. Talvez que a natureza
se tenha enganado, e que esta combinação não devesse reali­
za'r-se; sei apenas que se deu, de facto. Todos os que conheceram
Madame de Warens, e que ainda em grande parte existem, pude­
ram verificar que ela era assim ; ouso mesmo acrescentar que só
conheceu no mundo um verdadeiro prazer : proporcioná-lo àque­
les a quem amava. Permito a cada qual, contudo, que a este res­
peito discorra inteiramente à sua vontade, e a doutamente
provar que tal não era verídico. A minha função é dizer a
verdade, não é obrigar ninguém a acreditá-la.
Tudo o que acabo de dizer descobri-o a pouco e pouco
pelas conversas que se seguiram à nossa união, e que só por
si a tornaram deliciosa. !Mamã havia esperado com razão
que a sua condescendência me seria útil ; tirei dela grande
proveito para a minha instrução. Até então havia-me falado
de mim só, como se eu fora uma criança. Começou a tratar-me

198
como um homem, e falou-me de si. Tudo o que me dizia era
tão interessante para mim, comovia-me a tal ponto, que, cur­
vando-me sobre mim mesmo, reverti em meu próprió proveito
as suas confidências mais do que houvera feito com as suas
lições. Quando se sente verdadeiramente que é o coração que
fala, o nosso abre-se para lhe receber os desabafos; e nunca
toda a moral de um pedagogo valerá a tagarelice afectuosa e
meiga de uma mulher sensata por quem temos afeição.
Como a intimidade em que vivia com !Mamã lhe dava
maiores possibilidades de me apreciar melhor do que até então,
pensou ela que, apesar do meu ar desajeitado, valia a pena
cultivar-me para a vida de sociedade, e que se eu um dia nesta
me mostrasse com uma certa preparação, estaria apto a sin­
grar nela. Nesta ideia, começou não só a formar o meu juizo,
mas o meu exterior, as minhas maneiras, a tornar-me tão
amável quanto estimável, e se é certo que na sociedade se pode
associar o sucesso com a virtude, o que quanto a mim não
creio, estou pelo menos convicto de não haver para tal outro
caminho senão o que ela tomou, e que me quis ensinar. Porque
Madame de Warens conhecia os homens, e tinha num grau
superior a arte de tratar com eles sem falsidade e sem impru­
dência, sem os enganar e sem os desgostar. Tal arte existia,
porém, mais no seu carácter do que nas suas lições ; sabia pô-la
melhor em prática do que ensiná-la, e eu era a pessoa no mundo
menos apta para aprendê-la. Desta maneira, pouco faltou para
que tudo o que ela fez neste sentido tivesse sido pena perdida,
e o mesmo sucedeu com o seu cuidado em me arranjar mestres
de dança e de armas. Apesar de leve e esbelto, não consegui
aprender a dançar um minuete. Por causa dos calos, tinha-me
de tal maneira habituado a andar com os calcanhares, que
Roche não me pôde modificar, e com um aspecto tão ágil,
nunca eu fui capaz de saltar o mais pequeno valado. Na sala
de armas foi ainda pior. Depois de três meses de lições jogava
ainda à parede, incapaz de assaltar, e nunca tive o pulso sufi­
cientemente flexível, ou o braço suficientemente firme, para
conservar o florete quando aprazia ao mestre fazer-mo voar.
Acrescente-se que tinha uma repugnância mortal tanto por este
exercício, como pelo mestre que tratava de mo ensinar. Nunca
havia de julgar que se podia ter tanta vaidade na arte de matar
um homem. Para pôr o seu vasto génio ao meu alcance, só se
&xprimia por meio de comparações extraídas da música, que
ignorava. Achava analogias surpreendentes entre os botes de
terça e de quarta e os intervalos musicais do mesmo nome.

199
Quando queria fazer uma finta, dizia-me que tomasse cautela
com aquele sustenido, porque os sustenidos se chamavam anti­
gamente fintas; quando me havia feito fugir da mão o florete,
dizia-me, com um riso escarninho, que era uma pausa. Enfim,
nunca na minha vida vi pedante mais insuportável do que tal
homenzinho com a sua pluma e o seu plastrão.
Fiz, pois, poucos progressos nos meus exercícios, e em
breve os abandonei por pura repulsa; fi-los, porém, numa arte
mais útil, qual seja a de me mostrar contente com a minha
sorte, sem desejar outra mais brilhante, coisa para que come­
çava a sentir não ter nascido. Inteiramente entregue ao desejo
de fazer a felicidade da vida de !Mamã, gostava de estar sempre
ao pé dela, e, apesar da minha paixão pela música, quando se
tornava necessário afastar-me e sair fora de casa, comecei a
sentir-me mortificado com as lições. Ignoro se Claude Anet
descobriu a intimidade do nosso comércio. Tenho razões para
crer que ela não lho escondeu. Era um rapaz bastante esperto,
mas muito discreto, que nunca dizia o contrário do que pen­
sava, mas que nem sempre dizia o que pensava. Sem de maneira
nenhuma dar mostras de estar ao corrente do que se passava,
parecia-o pela forma como se comportava, mas a sua conduta
não provinha seguramente de uma baixeza de alma, mas do
facto de que, tendo-se compenetrado dos princípios da ama,
não podia desaprovar que esta agisse de acordo com eles. Embora
tão novo como ela, era tão ponderado e tão grave, que nos
olhava quase como duas crianças dignas de indulgência, e nós
olhávamo-lo a ele como um homem respeitável, cuja estima
devíamos saber conservar cuidadosamente. Só depois de Mamã
lhe haver sido infiel é que eu conheci bem toda a sua dedicação
por ele. Como sabia que eu só pensava, sentia e respirava por
ela, mostrou-me quanto o amava, para que eu o amasse da
mesma maneira, e insistia ainda menos na sua amizade do que
na sua estima, visto ser este o sentimento que eu mais plena­
mente poderi a p artilhar. Quantas vezes nos enterneceu ela o
cotação e nos fez abraçar com lágrimas, dizendo-nos que lhe
éramos ambos necessários para ser feliz na vida! E que as
mulheres que isto lerem não sorriam maldosamente. Com o seu
temperamento, tal necessidade não era equívoca : era apenas a
do coração.
Assim se estabeleceu entre nós três uma sociedade por­
ventura sem exemplo na terra. Todos os nossos desej os, os
nossos cuidados, os nossos corações eram em comum. Para
lá deste pequeno circulo, nada transpirava. O nábito de viver-

200
mos j untos e de assim vivermos exclusivamente tornou-se tão
grande, que se um de nós três faltava às refeições ou uma
quarta p essoa chegava, estava tudo estragado, e, apesar das
nossas relações particulares, as práticas a sós eram para nós
menos doces do que reunirmo-nos todos. O que evitava entre nós
constrangimentos era uma confiança recíproca extrema, e o
que evitava que nos aborrecêssemos era acharmo-nos bastante
ocupados. \Mamã, sempre com projectos e sempre activa, não
nos deixava de maneira nenhuma ociosos nem um nem outro,
e nós, à nossa conta, ainda tínhamos bastante com que encher
o tempo. Em meu entender, a ociosidade não é menor flagelo
da sociedade do que a solidão. Nada amesquinha mais o espírito,
nada provoca mais nonadas, mais ditos, m ais murmurações,
mexericos e mentiras, do que permanecermos eternamente
fechados numa casa em frente uns dos outros, reduzindo toda
a nossa tarefa à necessidade de tagarelar continuamente.
Quando toda a gente se acha ocupada, só se fala quando há
qualquer coisa a dizer; mas quando nada se faz, é absoluta­
mente mister estar sempre a falar, e de todos os males é este
o mais incómodo e o mais perigoso. ouso mesmo ir mais longe,
e sustento que para tornar uma reunião agradável, é não só
necessário que cada qual faça qualquer coisa, mas qualquer
coisa que exija um pouco de atenção. Fazer nõzinhos é o mesmo
que nada fazer, e requer-se tanta solicitude para entreter uma
mulher que faz nõzinhos como outra que está de braços cru­
zados. Quando ela, porém, borda, é outra coisa; encontra-se
suficientemente ocupada para tapar as intermitências do silên­
cio. O que é chocante e ridículo é ver durante todo este tempo
uma dúzia de mequetrefes levantarem-se, sentarem-se, ir e vir,
rodar sobre os calcanhares, remexer duzentas vezes os tições do
fogão, e puxarem pelo caco para manterem um interminável
fluxo de palavras: que linda ocupação ! ,Façam o que fizerem, tais
pessoas são sempre pesadas aos outros e a elas próprias. Quando
eu estava em Motiers, ia fazer cordão para casa das minhas
vizinhas; se continuasse a frequentar a sociedade, havia de
trazer sempre na algibeira um sempre-em-pé, e brincaria com
ele todo o dia, para evitar de falar quando nada tivesse a dizer.
Se cada qual fizesse o mesmo, os homens tornar-se-iam menos
maus, o seu trato tornar-se-ia mais seguro, e, penso eu, mais
agradável. Enfim, que os engraçados riam, se quiserem, mas
eu sustento que a única moral ao alcance do nosso século é
a moral do sempre-em-pé.

201
De resto, não nos deixavam muito preocupados com a
maneira de evitarmos de nosso moto próprio o tédio; e a afluên­
·
cia dos importunos já nos causava bastante, para que sobrasse
algum quando ficávamos sós. A impaciência que noutros tem­
pos eles provocavam em mim não havia diminuído, e a única
diferença era que eu agora tinha menos tempo para a ela me
entregar. A pobre !Mamã não havia perdido a sua antiga fan­
tasia em matéria de empreendimentos e de sistemas. Muito
pelo contrário, quanto mais as dificuldades domésticas se tor­
navam prementes, mais ela para as resolver se entregava a
quimeras. Quanto menos recursos tinha no presente, mais os
forjava no futuro. O progresso dos anos só lhe havia aumentado
esta mania ; e à medida que ia perdendo o gosto dos prazeres
do mundo e da mocidade, substituía-o pelo dos segredos e dos
projectos. Os charlatães, os fabricantes, os alquimistas, os em­
preendedores de toda a espécie, que, esbanjando os milhões da
própria fortuna, acabavam por precisar de um escudo, não lhe
desamparavam a casa. Nenhum de lá saía com a algibeira
vazia, e uma das minhas surpresas era o facto de ela poder
assim tanto tempo aguentar tais prodigalidades sem lhes esgo­
tar a fonte, e sem cansar os credores.
Na época a que me refiro, o projecto que mais a preocupava,
e que não era o mais despropositado dos que havia feito, era
fundar em Chambéri um .Jardim Botânico real, com um demons­
trador contratado, e percebe-se de antemão a quem tal lugar
era destinado. A situação da cidade, no meio dos Alpes, tor­
nava-a bastante favorável à botânica, e !Mamã, que facilitava
sempre um projecto por outro, juntou-lhe o de um Colégio de
Farmácia, que verdadeiramente parecia muito útil num país
tão pobre, onde os .boticários são quase os únicos médicos.
A aposentação em Chambéri do físico-mar Grossi, depois da
mort e do rei Vítor, pareceu-lhe favorecer grandemente esta
ideia, e talvez lha tivesse sugerido. Como quer que seja, pôs-se
a amimar Grossi, que todavia não era muito para mimos, visto
ser na verdade o sujeito mais cáustico e mais bruto que ainda
conheci. Julgá-lo-ão por dois ou três exemplos que vou citar
para amostra.
Um dia, achava-se ele em conferência com outros médicos,
um dos quais viera de IAnnecy, e era o médico assistente
do doente. Este mancebo, ainda pouco maduro como médico,
atreveu-se a discordar do Senhor Fisico-iMor. Este, como única
resposta, perguntou-lhe, quando saiam, por onde é que ele
seguia, e que carro tomava. O outro, depois de o haver satis-

202
feito, perguntou-lhe por sua vez se lhe podia ser prestável em
qualquer coisa. Nada, nada, disse Grossi, é só para me ir
pôr a um a j anela que fique no seu trajecto para ter o prazer
de ver passar um burro a cavalo. Era tão avarento como rico
e duro. Um dos amigos quis um dia pedir-lhe dinheiro empres­
tado com boas garantias : Meu amigo, disse-lhe ele, aper­
tando-lhe o braço e rangendo os dentes, ainda que S. Pedro
descesse do Céu para me pedir dez pistolas emprestadas e me
desse como caução a Trindade, eu não lhas emprestava. Um
dia, como houvesse sido convidado para j antar com o conde de
Picon, governador da Sabóia, e pessoa muito devota, chega antes
da hora, e Sua Excelência, que estava ocupado a rezar o rosário,
propõe-lhe que faça o mesmo como distracção. Não sabendo
muito bem que responder, Grossi faz uma careta horrível, e
põe-se de j oelhos. !Mas mal tinha rezado duas ave-marias, não
podendo aguentar-se mais, levanta-se bruscamente, agarra na
bengala e parte sem dizer palavra. o conde de Picon corre
atrás dele, gritando-lhe: IMonsieur Grossi ! Monsieur Grossi !
fique, temos uma excelente bartavela no espeto. Senhor Conde,
responde-lhe o outro voltando-se, ainda que me desse um
anjo assado, eu não ficaria. Era assim o Senhor Fisico­
-Mor Grossi, que Mamã resolveu e conseguiu domesticar. Apesar
de extremamente ocupado, acostumou-se a vir a casa dela com
muita frequência, ganhou amizade a Anet, mostrou interessar-se
pelos conhecimentos deste, falava deles com apreço, e, o que não
seria de esperar de tal urso, parecia tratá-lo com consideração,
para desfazer a impressão do passado. Conquanto Anet se não
achasse já na situaçã o de criado, sabia-se que o tinha sido,
e não era preciso nada menos do que o exemplo e a autoridade
do Senhor Físico-<Mor para a seu respeito adoptarem o tom que
não aceitariam de qualquer outro. Claude Anet, de casaca
preta, de peruca bem penteada, com a sua compostura grave
e decente, o seu comportamento sensato e circunspecto, com
conhecimentos bastante extensos em matéria de medicina e de
botânica, e com o favor do director da Faculdade, podia razoA­
velmente esperar preencher com aplauso o lugar de demonstra­
dor real das plantas, se o projectado estabelecimento houvesse
vingado, e realmente Grossi tinha gostado do plano, tinha-o
perfilhado, e só esperava, para o propor à corte, ocasião em que
a paz permitisse pensar em coisas úteis, e consentisse dispor
de algum dinheiro para a elas prover.
Este projecto, cuja realização me teria provàvelmente lan­
çado na botânica, para a qual me parece havia nascido, falhou.

203
porém, devido a um destes golpes inesperados que transtor­
nam as mais bem concertadas intenções. Eu estava destinado
a tornar-me a pouco e pouco um exemplo das misérias hum anas.
Dir-se-ia que a Providência, chamando-me a tão grandes pro­
vas, largava de mão tudo o que me poderia evitar conhecê-las.
Num passeio que Anet havia feito ao alto da serra em cata de
jenipa, planta rara que só se dá nos Alpes, e de que Monsieur
Grossi tinha necessidade, o pobre rapaz apanhou um tal resfria­
mento que teve uma pleurisia, de que nem a jenipa conseguiu
salvá-lo, embora, segundo se diz, seja própria para elas, e, ape­
sar de toda a arte de Grossi, que era certamente um homem
muito hábil, apesar dos cuidados infinitos que lhe dispensámos,
a sua boa ama e eu, morreu-nos ao quinto dia nos braços, após
a mais cruel agonia, em que, além das minhas, não conheceu
outras exortações; e eu prodigalizei-lhas com transportes de
dor e de dedicação, que se ele estivesse em estado de me ouvir
lhe deviam trazer alguma consolação. Eis como perdi o mais
sólido amigo que em toda a minha vida tive, homem apreciável e
raro, em quem a natureza substituiu a educação, que na servidão
alimentou todas as virtudes dos grandes homens, e a quem,
porventura, para se revelar como tal a todo o mundo, só lhe
faltou viver e ocupar nele o seu lugar.
No dia seguinte, no meio da mais viva e da m ais sincera
aflição, falava nisto com Mamã, e no meio da conversa, tive de
súbito o pensamento vil e indigno de que lhe herdaria a far­
pela, e sobretudo um belo casaco preto que me havia dado
nas vistas. Pensei-o, e por conseguinte disse-o ; porque com ela
isso era para mim uma e a mesma coisa. Nada lhe fazia sentir
mais a perda que tinha sofrido do que estas infames e odiosas
palavras, porque o desinteresse e a nobreza de alma eram as
qualidades que o defunto havia possuído no mais alto grau. Sem
nada responder, a pobre mulher voltou-se para o lado e pôs-se
a chorar. Queridas e preciosas lágrimas ! Foram ouvidas e der­
ramaram-se todas no meu coração; lavaram até ao ultimo os
vestígios que nele havia de um sentimento baixo e desonesto;
de então para cá nunca mais lá entrou nenhum.
Esta perda causou a Mamã tão grande prejuízo como dor.
Desse momento em diante os seus negócios não pararam na
sua decadência. Anet era um rapaz exacto e arrumado, que
mantinha a casa da ama em ordem. Receavam a sua vigHân­
cia, e o desbarato era menor. Até ela temia as suas censuras,
e retraia-se m ais no seu esbanjamento. Não lhe bastava a sua
dedicacão. queria conservar a sua estima, e temia a justa

204
repreensão que ele por vezes ousava dirigir-lhe por ela esbanjar
tanto os bens dos outros como os seus. Eu pensava como ele, e
dizia-lhe o mesmo ; não tinha porém sobre ela o mesmo ascen­
dente, e as minhas palavras não pesavam como as dele. Quando
Anet desapareceu, forçoso me foi ocupar o seu lugar, para o qual
tinha tão pouca aptidão como gosto ; preenchi-o mal. Era pouco
cuidadoso, muito tímido ; ao mesmo tempo que resmungava com
os meus botões, deixava ir tudo na mesma . .Aliás, bem havia
obtido a mesma confiança, o que não havia era obtido a
mesma autoridade. Via a desordem, lastimava-a, lamentava-me
dela, e não me escutavam. Era demasido novo e demasiado vivo
para ter o direito de ser razoável, e quando me queria meter
�'· censor, Mamã dava-me palmadinhas de ternura, chama­
va-me o seu mentorzinho, e obrigava-me a retomar o papel que
me convinha.
O profundo sentimento da miséria em que, mais cedo ou
mais tarde, as suas despesas mal reguladas haviam de lançá-la,
fez-me uma impressão tanto mais forte quanto é certo que
tendo-me tornado administrador da casa podia j ulgar por mim
mesmo da desigualdade da balança entre o deve e o haver.
li: desta época que eu dato a tendência para a avareza, que
desde então sempre senti. Nunca fui insensatamente pródigo,
salvo por capricho passageiro; até então nunca, contudo, me
havia inquietado por aí além sobre se tinha muito ou pouco
dinheiro. Comecei a prestar-lhe atenção e a tomar cuidado com
a minha bolsa. Tornava-me mesquinho por um motivo muito
nobre ; pois que, em verdade, s6 pensava em garantir alguns
recursos a Mamã na catástrofe que previa. 'Receava que os cre­
dores lhe penhorassem a pensão, que esta lhe fosse completa­
mente suprimida, e, de acordo com as minhas curtas vistas, ima­
ginava que o meu pequeno pé-de-meia lhe podia então ser de
grande utilidade. Para o fazer, e sobretudo para o conservar, era
necessário, porém esconder-me dela ; porque, enquanto ela fosse
vivendo de expedientes, não conviria que soubesse que eu tinha
um dinheirito. Procurava, pois, por aqui e por ali pequenos escon ­
derijos onde depositava a ocultas alguns luises, esperando
aumentar constantemente este depósito até ao momento de lho
depor aos pés. Era porém tão inábil na escolha dos esconderijos,
que ela farejava-os sempre ; depois, para me dar a 1entender que
os havia descoberto, tirava o ouro que eu lá tinha posto e punha
mais noutras espécies. Todo envergonhado, restituía à bolsa
comum o meu pequeno tesouro, e nunca ela deixava de o empre-

205
gar em meu proveito em trapos ou trastes, como uma espada
de prata, um relógio,.ou qualquer outra coisa parecida.
Inteiramente convencido de que o juntar nunca me daria
resultado, e seria para ela um fraco recurso, senti, por fim,
que contra a desgraça que eu receava só me restava o de pro­
ver por mim mesmo à sua subsistência, quando, cessando de
prover à minha, ela se visse na iminênci a de lhe faltar o pão.
Infelizmente, orientando os meus projectos no sentido dos meus
gostos, teimava loucamente em buscar fortuna na música, e
sentindo nascerem-me ideias e cantos na cabeça, acreditei que,
logo que me achasse em condições de tirar partido deles, me
tornaria um homem célebre, um Orfeu moderno, cujos sons
deviam atrair todo o dinheiro do !Peru. Começando a ler razoà­
velmente a música, do que devia tratar era de aprender com­
posição. A dificuldade estava em encontrar quem ma ensi­
nasse; pois que, apenas com o meu Rameau, não esperava lá
chegar ·sozinho, e depois da partida de Le Maitre, não havia
ninguém na Sabóia que percebesse coisa alguma de harmonia.
Vamos ver ainda aqui uma daquelas inconsequências de
que se encontra cheia a minha vida, e que tantas vezes me
fizeram marchar contra os meus fins, mesmo quando pensava
para eles me dirigir directamente. Venture falara-me muito
no abade Blanchard, seu professor de composição, homem
de valor e de grande talento, que era então mestre de música
da catedral de Besançon, e que hoje o é da capela de Versalhes.
Meteu-se-me na cabeça ir a Besançon dar lições com o abade
Blanchard, e esta ideia pareceu-me tão razoável, que consegui
que Mamã a achasse igualmente razoável. Ei-la tratando do meu
pequeno enxoval, e isso com a profusão que punha em tudo.
Sempre com o projecto de evitar uma bancarrota, e de reparar
no futuro a obra da sua dissipação, começava assim no mesmo
instante por lhe causar uma despesa de oitocentos francos:
apressei a sua ruína para me pôr em condições de a ela reme­
diar. !Por muito desatinado que fosse este procedimento, por
minha parte a ilusão era completa, e pela dela também. Está­
vamos ambos persuadidos, eu, que trabalhava utilmente para ela,
ela, que trabalhava u tilmente para mim.
Esperava encontrar ainda Venture em .Annecy e pedir-lhe
uma carta para o abade Blanchard. Já lá não estava. Como
única informação, tive de me contentar com uma missa a
quatro partes de sua composição, que ele me havia deixado.
Com esta recomendação, parto para Besançon, passando por
Genebra, onde fui ver os meus parentes, e por Nyon, onde fui

206
ver meu pai, que me recebeu com o de costume, e se encarregou
de me mandar a mala, que seguia após mim, porque eu vinha
a cavalo. Chego a Besançon. O abade Blanchard recebe-me
bem, promete-me as suas luzes, e oferece-me os seus serviços.
Estávamos prestes a começar, quando sei por uma carta de meu
pai ·que me tinham apreendido e confiscado a mala nas Rousses,
posto francês na fronteira da /Suíça. Aterrorizado com seme­
lhante notícia, utilizo os conhecimentos que havia feito em
Besançon para saber o motivo de tal confiscação; pois que, na
certeza absoluta de não trazer contrabando, não podia calcular
qual o pretexto em que se haviam baseado. Soube-o por fim :
devo contá-lo, porque é um caso curioso.
Conhecia em Cambéri um velho lionês, muito bom homem,
chamado Duvivier, que tinha trabalhado nos vistos durante a
regência e que, à falta de emprego, viera trabalhar para o cadas­
tro. Havia vivido na sociedade ; tinha capacidades, algum saber,
era afável, educado ; sabia música, e como estávamos na mesma
sala, as nossas preferências haviam-nos ligado no meio dos gros­
seirões que nos rodeavam. Tinha em Paris correspondentes que
lhe forneciam aqueles pequenos nadas, aquelas novidades eféme­
ras, que correm não se sabe porquê, que morrem não se sabe
como, sem que ninguém mais volte a pensar nelas ·quando delas
&=\ deixa de falar. Como o levava algumas vezes a j antar a
casa de iMamã, ele fazia-me de certo modo a corte, e, para se
mostrar agradável, procurava fazer-me apreciar aquelas bana­
lidades por que tive sempre tanta repugnância que em toda a
minha vida me sucedeu ler apenas uma para mim só. Para lhe
agradar, pegava naqueles preciO;sos papelinhos, metia-os no
bolso e nunca mais neles pensava, senão para os utilizar naquilo
para que eles serviam. Infelizmente, um destes malditos papéis
ficara na algibeira da j aleca de um fato novo, que eu vestira
duas ou três vezes para estar em regra com os funcionários
alfandegários. Esse papel era uma paródia j ansenista, bastante
chata, da bela cena do Mithridate, de !Racine. Não lhe tinha
lido dez versos e deixara-o por esquecimento n a algibeira.
Foi isso que provocou a confiscação da mala. A cabeça do
inventário da mala, os funcionários fizeram um magnifico pro­
cesso verbal, em que, supondo que o escrito vinha de Genebra
para ser impresso e distribuído em França, se alargavam em
santas invectivas contra os inimigos de Deus e da Igrej a, e em
elogios à sua piedosa vigilância, que havia sustado a execução
deste infernal projecto. Acharam sem dúvida que as minhas
camisas cheiravam também a heresia; pois que, por mor desse

207
terrível papel, tudo me confiscaram sem que eu, por mais que
fizesse, alguma vez viesse a ter novas nem mandados da minha
pobre pacotilha. o pessoal das repartições a quem nos dirigi­
mos pedia tantas instruções, informações, certificados, memó­
rias, que, vendo-me a mais não ser perdido em tal labirinto,
fui obrigado a abandonar tudo. Lamento verdadeiramente não
ter conservado o processo verbal do posto de Rousses. Era uma
peça notável a figurar na colecção que deve acompanhar este
escrito. Esta perda obrigou-me a regressar imediatamente a
Chambéri, sem nada haver feito com o abade Blanchard, e, bem
vistas as coisas, com a infelicidade a perseguir-me em todos os
meus empreendimentos, resolvi interessar-me unicamente por
Mamã, correr os seus riscos, não me inquietando mais em vão
com um futuro a respeito do qual nada podia. Recebeu-me
como se eu fosse portador de tesouros, restabeleceu a pouco e
pouco o meu guarda-roupa, e a minha desdita, tão grande
para um como para outro, foi quase logo esquecida assim que
cheguei.
Embor·a esta desgraça houvesse resfriado os meus pro­
jectos musicais, não deixei de estudar sempre o meu Rameau ;
e a poder de esforços consegui por fim entendê-lo e fazer uns

pequenos exercícios de composição, cujo êxito me encorajou.


O conde de Bellegarde, filho do marquês de Entremont, havia
regressado de Dresda, depois da morte do rei Augusto. Tinha
vivido durante bastante tempo em Paris: gostava extraordi­
nàriamente de música, e havia-se apaixonado pela de Rameau.
O irmão, o conde de Nangis, tocava violino, e a irmã, a con­
dessa de La Tour, cantava um bocado. Tudo isto pôs a música
na moda em Chambéri, vindo a fundar-se ali uma espécie de
concertos públicos, cuja direcção a princípio me quiseram dar;
em breve se aperceberam, contudo, que isso ultrapassava as
minhas forças, e arranjaram as coisas de outra maneira. Nem
por isso deixava de apresentar neles algumas pecinhas da minha
lavra, entre as quais uma cantata, que agradou bastante. Não
era uma composição bem feita, mas estava cheia de melodias
novas e de coisas de efeito, que não eram de esperar de mim.
Aqueles cavalheiros não podiam acreditar que, solfej ando eu tão
mal, fosse capaz de compor razoàvelmente, e não duvidaram de
que eu me tivesse apropriado do trabalho de outrem. Para
o verificar, IMonsieur de Nangis veio ter comigo uma manhã,
com uma cantata de Clérambault, transposta por ele, segundo
dizia, para comodidade da voz, e para a qual era necessário
escrever um novo baixo, pois que a transposição tornava o de

208
Clérambault impraticável no instrumento. Respondi-lhe que
se tratava de um trabalho de respeito, que não podia ser feito
imediatamente. Julgou ele que eu buscava um pretexto, e instou
para que lhe escrevesse ao menos o baixo de um recitativo.
Escrevi-o por conseguinte, certamente mal, porque para tra­
balhar bem preciso em tudo do meu à-vontade e de liberdade;
mas ao menos escrevi-o segundo as regras, e como Monsieur
de Nangis se achava presente, não pôde duvidar que eu conhe­
cesse os elementos da composição. Desta maneira não perdi os
meus alunos, mas arrefeci um pouco a respeito da música, vendo
que se faziam concertos prescindindo da minha pessoa.
Foi pouco mais ou menos por essa altura que, feita a paz,
o exército francês transpôs de novo os montes. Vários oficiais
vieram visitar Mamã, entre os quais o conde de Lautrec, coro­
nel do regimento de Orléans, depois plenipotenciário em Gene­
bra, e por fim marechal de França, a quem ela me apresentou.
Pelo que Mamã lhe disse, p areceu interessar-se muito por mim,
e prometeu-me muitas coisas, das quais só se lembrou nos últi­
mos anos da sua vida, quando eu já não precisava dele. O j ovem
marquês de Sennecterre, cuj o p ai era então embaixador em
Turim, passou na mesma altura em Ghambéri. Jantou em casa
de Madame de Menthon ; eu também lá j antava nesse dia.
Depois do j antar, falou-se de música ; era um grande conhe­
cedor. A ópera Jette 1 era então coisa de novidade ; referiu-se a
ela, e m andaram-na buscar. Fez-me estremecer ao propor-me
que executássemos os dois a ópera, e, abrindo o livro, adregou
de topar no trecho célebre, para dois coros :

A terra, o inferno, o próprio Céu,


Tudo treme diante do Senhor.

o m arquês diz-me: Quantas partes quereis tocar? Por


mim, tocarei estas seis. Eu ainda não estava acostumado a
esta" petulância francesa ; e embora houvesse uma vez por outra
soletrado algumas partituras, não compreendia como é que a
mesma pessoa podia executar ao mesmo tempo seis partes, ou
mesmo duas. Na prática da música nada me custou tanto como
saltar assim ràpidamente de uma parte para a outra, e ter
ao mesmo tempo debaixo da vista toda a partitura. Pela forma
como me desempenhei desta tarefa, Monsieur de Sennecterre
devia estar tentado a acreditar que eu não sabia música. Foi

1 Célebre ópera de Montéclair, cantada pela primeira vez em 1732.


N. do T.

14 209
talvez para se certificar desta dúvida que me propôs notar uma
canção que queria dar a Mademoiselle de Menthon. Não podia
esquivar-me. Cantou a canção; eu escrevi-a sem lha fazer repe­
tir muitas vezes. Ele leu-a em seguida, e achou que estava
notada com muita correcção, o que era verdade. Tinha visto
a minhà atrapalhação, e mostrou prazer em fazer render este
pequeno sucesso. Tratava-se, contudo, de uma coisa muito sim­
ples. No fundo, eu sabia muito bem música; só me faltava
aquela vivacidade d o primeiro golpe de vista que nunca tive
em coisa nenhuma, e que em música só se adquire com a prática
consumada. Fosse como fosse, fui sensível ao honesto cuidado
que ele teve em desfazer no espírito dos outros, e no meu, a
pequena vergonha por que me tinha feito passar ; e encontran­
do-me com ele, doze ou quinze anos mais tarde, em várias
casas de Paris, muitas vezes me senti tentado a lembrar-lhe
esta anedota, e mostrar-lhe que a conservava na memória. Ele,
porém, havia perdido a vista de então para cá : receei reavi­
var-lhe o seu desgosto, recordando-lhe com o havia sabido uti­
lizar-se dela, e calei-me.
Chega o momento em que começo a ligar a minha existên­
cia passada com a presente. Algumas amizades desse tempo,
que se p rolongaram até agora, tornaram-se-me bem preciosas.
Fazem-me por vezes chorar aquela feliz obscuridade em que
os que se diziam meus amigos o eram de facto e me ama­
vam por mim mesmo, por pura bondade, não pela vaidade de se
acharem ligados a um homem conhecido, ou pelo secreto desej o
de terem dessa forma mais ocasiões de lhe fazerem mal. l!l desta
altura que data o meu primeiro encontro com o meu velho
amigo Gauffecourt, que conservei sempre, apesar dos esforços
que fizeram para mo roubar. Conservei sempre ! Não, ai de
mim! Acabo de o perder. Ele, porém, só deixou de me amar
quando deixou de viver, e a nossa amizade só terminou com a
sua morte. Monsieur de Gauffecourt era um dos homens mais
amáveis que têm existido. Era impossível vê-lo sem o amarmos,
e viver com ele sem lhe ganharmos completa afeição. Nunca
em minha vida vi fisionomia mais aberta, mais afãvel, que
tivesse tanta serenidade, que denotasse tanto sentimento e inte­
ligência, que inspirasse mais confiança. ·Quem o via, por muito
reservado que fosse, não podia deixar de se sentir imediata­
mente tão familiarizado com ele como se o conhecesse de há
vinte anos, e eu, que tanta dificuldade tenho em me sentir à
vontade com novas caras, com ele estive-o f ogo no primeiro
momento. O seu tom, o seu acento, a sua palavra acompa-

210
nhavam perfeitamente a sua fisionomia. A sua voz tinha uma
sonoridade clara, cheia, bem timbrada, uma bela voz de baixo,
poderosa e incisiva, que enchia o ouvido e soava ao coração.
É impossível possuir uma alegria mais igual e mais doce, graças
mais verdadeiras e mais simples, talentos mais naturais e culti­
vados com mais gosto. Acrescente-se a isto um coração amante,
mas amando um pouco de mais quase toda a gente, um carácter
prestável sem muito discernimento, servindo os amigos dedica­
damente, ou, antes, fazendo-se amigo das pessoas a quem podia
servir, e sabendo habilissimamente conduzir os seus negócios,
·
conduzindo calorosissimamente os dos outros. Gauffecourt era
filho de um simples relojoeiro, e ele próprio havia sido relo­
j oeiro. A sua figura e o seu merecimento chamavam-no, con­
tudo, a outra esfera, onde não tardou em entrar. Travou conhe­
cimento com Monsieur de La Closure, residente da França em
Genebra, que lhe ganhou amizade. Arranj ou-lhe em Paris outros
conhecimentos, que lhe foram úteis, e graças aos quais conse­
guiu ser o fornecedor dos sais do Valais, o que lhe proporcionou
vinte mil libras de renda. Do lado dos homens, a sua fortuna,
bastante bonita, limitou-se a isso ; mas do lado das mulheres,
havia uma multidão delas : tinha por onde escolher, e fez o que
quis. O que houve de mais raro e mais louvável nele foi ter
ligações em todas as esferas e em toda a parte ter sido adorado,
requestado por toda a gente, sem nunca ninguém o invejar
nem odiar, e creio que morreu sem nunca na sua vida ter tido
um inimigo. Homem feliz ! Todos os anos vinha a b anhos a
Aix, onde se junta a boa sociedade das regiões vizinhas. Ligado
com toda a nobreza da Sabóia, vinha de Aix a Chambéri visitar
o conde de Bellegarde, e o pai deste, o conde de Entremont, em
casa de quem Mamã o conheceu e mo apresentou. As nossas
relações de então, que pareciam sem consequências, e se inter­
romperam durante muitos anos, renovaram-se no momento a
que me referirei, e transformaram-se em verdadeira afeição.
É o bastante para me autorizar a falar de um amigo de quem
fui tão íntimo : ainda, porém, que nenhum interesse pessoal
me ligasse à sua memória, tratava-se, contudo, de um homem
tão amável e de um natural tão feliz, que, para honra da espé­
cie humana, j ulgaria sempre dever conservá-la. Um homem tão
encantador tinha, todavia, os seus defeitos, tal como os outros,
segundo se poderá verificar adiante ; mas se os não tivesse,
seria porventura menos amável. Mister era termos algo a per­
doar-lhe, para que ele fosse tão interessante como era.

211
Uma outra ligação da mesma época não se encontra extinta,
e ilude-me ainda com aquela esperança da felicidade temporal,
que com tanta dificuldade morre no coração do homem. Mon­
sieur de Conzié, fidalgo saboiano, então novo e gentil, teve a
fantasia de aprender músic a, ou antes, de travar conhecimento
com a pessoa que a ensinava. Monsieur de Conzié, homem de
espírito e com gosto pelo saber, possuía um carácter afável que
o tornava muito dado, e eu próprio o era bastante para com as
pessoas em quem o encontrava. Em breve estreitámos relações 1•
O germe de literatura e de filosofia que começava a fermen­
tar-me na cabeça, e que só esperava um pouco de cultura e de
emulação para se desenvolver inteiramente, foi nele que as
encontrou. Monsieur de Conzié tinha poucas disposições para
a música, o que para mim foi um bem; as horas das lições
passavam-se em outras coisas que não a solfejar. Almoçávamos,
conversávamos, Uamos algumas novidades, e nem uma palavra
de música. A correspondência de Voltaire com o príncipe real
da Prússia dava então que falar : entretínhamo-nos frequente­
mente a respeito destes dois homens célebres, dos quais um,
há pouco no trono, se manifestava já tal qual dentro em pouco
se devia mostrar, fazendo-nos o outro, tão denegrido então
como admirado hoje, deplorar sinceramente a desgraça que
parecia persegui-lo, e que com frequência se vê ser o apanágio
dos grandes talentos. O princip� da Prússia havia sido pouco
feliz em novo, e Voltaire parecia destinado a não sê-lo nunca.
O interesse que sentíamos por um e por outro estendia-se a
tudo o que com eles se relacionava. Nada do que escrevia Vol­
taire nos escapava. O gosto que senti por estas leituras inspi­
rou-me o desejo de aprender a escrever com elegância, e pro­
curar imitar o belo colorido deste autor, que me encantava.
Algum tempo depois apareceram as suas Cartas Ftlos6ttcas.
Se bem que não sejam com certeza a sua melhor obra, foi a que
mais me atraiu ao estudo, e desde então nunca mais se extin­
guiu em mim esse gosto incipiente.
Não tinha ainda chegado, porém, o momento de a ele me
entregar a sério. Subsistia ainda em mim um humor um pouco
volúvel, um desejo de ir e vir, que, em vez de se extinguir, se
tinha antes limitado, e que era alimentado pela vida que se
levava em casa de Madame de Warens, demasiado barulhenta

1 Voltei a vê-lo depois, e achei-o inteiramente transformado. Que


grande bruxo, aquele Monsieur de Choiseul! Nenhum dos meus antigos
conhecidos escapou às suas metamorfoses! - Aditamento de Rousseau à
margem de um dos dois manuscritos das Confissões: o de Paris.

212
para o meu feitio solitário. Aquela multidão de desconhecidos que
de todos os lados ali afluíam diàriamente, e a persuasão em que
eu estava de que essa gente o que queria era apenas enganá-la,
cada qual à sua maneira, transformava a habitação num verda­
deiro inferno. Desde que sucedera a Claude Anet na confiança
da ama e seguia de mais perto o estado dos seus negócios, sen­
tia-me aterrorizado com o mal que via progredir. Mil vezes havia
ralhado, rogado, instado, conjurado, e· sempre inutilmente.
Tinha-me lançado aos pés dela, tinha-lhe feito ver violenta­
mente a catástrofe que a ameaçava, tinha-a exortado viva­
mente a reduzir as suas despesas, começando por mim, a sofrer
um pouco enquanto era nova, de preferência a ir multiplicando
constantemente as dívidas e os credores e expor-se, quando fosse
velha, aos vexames destes e à miséria. Sensível à sinceridade
da minha dedicação, Mamã enternecia-se comigo, e prometia-me
as coisas mais lindas do mundo. Chegasse ele qualquer farrou­
pilha, e imediatamente esquecia tudo. Depois de mil provas da
inutilidade dos meus ralhos, que me restava fazer senão desviar
a vista do mal ·que não podia evitar? Afastei-me da casa cuja
porta não podia guardar; fazia a Nyon, a Genebra, a Lyon peque­
nas viagens que, ao mesmo tempo que adormentavam o meu
intimo desgosto, aumentavam as razões dele em vista da des­
pesa que fazia. Posso jurar que teria suportado com alegria todos
os cortes nesta, se tal economia aproveitasse verdadeiramente a
Mamã; convicto, porém, de que tudo de quanto eu me privava
ia para os vigaristas, abusava da sua indulgência gastando a
meias com eles, e, como o cão que vem do açougue, trazia o meu
quinhão do bocado que não pudera salvar.
Não me faltavam pretextos para todas estas viagens, e, aliás,
Mamã ter-mos-ia fornecido, com tantas ligações, relações, negó­
cios e recados a dar a pessoas de confiança que por toda a parte
tinha. Ela não desejava mais que mandar-me; eu não desejava
mais que partir; o que não podia deixar de fazer-me uma vida
de andarilho. Tais viagens proporcionaram-me algumas boas
relações, que me vieram a ser depois agradáveis ou úteis; entre
outras, a de Monsieur Perrichon, em Lyon, que me culpo de não
haver suficientemente cultivado, em vista das gentilezas que
teve para comigo; a do bom Parisot, de que a seu tempo falarei;
em Grenoble, a de Madame Deybens e da Senhora Presidenta de
Bardonanche, mulher de grande espírito, que se me teria afei­
çoado se eu estivesse em situação de a visitar com mais frequên­
cia; em Genebra, a de Monsieur de La Closure, residente da
França, que me falava frequentemente de minha mãe, de quem

213
o seu coração se não pudera desprender, apesar da morte e do
tempo ; a dos dois Barillot, dos quais Barillot pai, que me tratava
por neto, era de uma convivência amabilissima, e um dos homens
mais dignos que j amais conheci. Durante a agitação da Repú­
blica, estes dois cidadãos lançaram-se em par-tidos contrários :
o filho no da burguesia, o pai no dos magistrados, e quando em
1737 se pegou em armas, estando eu em Genebra, vi o pai e o
filho saírem armados da mesma casa, um para subir à câmara
municipal, o outro para se dirigir ao seu quartel, certos de se
encontrarem duas horas mais tarde cara a cara, expostos a
matarem-se um ao outro. Este horrível espectáculo produziu em
mim uma tão viva impressão, que jurei nunca me tornar cúm­
plice de nenhuma guerra civil, e se alguma vez entrasse nos
meus direitos de cidadão, nunca sustentar a liberdade interna
pelas armas, nem com a minha pessoa, nem com o meu povo.
Faço a mim mesmo a justiça de ter mantido tal j uramento numa
ocasião delicada, e achar-se-á, quero-o ao menos pensar, que
esta moderação teve algum mérito.
Eu não havia, porém, chegado ainda àquela primeira efer­
vescência patriótica que Genebra em armas provocou no meu
coração. Pode-se avaliar como me achava longe de tal coisa por
um acontecimento muito grave para mim, que me esqueci de
mencionar na devida altura, mas que não devo omitir.
Meu tio Bernard havia há alguns anos embarcado para a
Carolina a fim de dirigir a construção da cidade de Charlestown,
cujo plano era dele. Ali morreu pouco depois ; meu pobre primo
tinha também morrido ao serviço do rei da Prússia, e minha tia
perdia assim quase ao mesmo tempo o filho e o marido. A morte
destes reanimou um pouco a sua amizade pelo parente mais
próximo que lhe restava, e que era eu. Quando ia a Genebra,
hospedava-me em sua casa, e entretinha-me a desencantar e
a folhear os livros e os papéis que meu tio havia deixado.
Encontrei muitos documentos curiosos, assim como algumas car­
tas de que ninguém certamente desconfiava. Minha tia, que fazia
pouco caso desta papelada, ter-me-ia deixado levar tudo, se eu
quisesse. Contentei-me com dois ou três livros comentados pelo
punho de meu avô Bernard, o p astor, e, entre outras, as obras
póstumas de Rohault, in 4.0, cujas margens se achavam repletas
de excelentes escólios, que me deram o gosto das matemáticas.
Este livro ficou entre os de Madame de Warens ; lamentei sempre
não o haver guardado. A acrescentar a estes livros, cinco ou seis
memórias manuscritas, e uma só impressa, do famoso Micheli
Ducret, homem de grande talento, sábio esclarecido, mas por de

214
mais agitado, que havia sido bem cruelmente tratado p elos
magistrados de Genebra, e que recentemente morrera na
fortaleza de Arberg, onde há muito se encontrava preso por ser,
segundo se dizia, conivente na conspiração de Berna.
Tal memória era uma crítica assaz j udiciosa daquele
grande e ridículo plano de fortificação que em parte foi exe­
cutado em Genebra, com grande gáudio das pessoas do ofício,
que desconhecem o fim secreto que o Conselho tinha em vista
na execução deste magnífico empreendimento. Como Micheli
havia sido irradiado da Oâmara das fortificações por haver cen­
surado 'tal plano, julgara, na sua qualidade de membro dos
Duzentos, e mesmo na de ·Cidadão, que poderia dar a sua opinião
sobre o assunto mais por extenso, e era o que havia feito nesta
memória, que cometera a imprudência de mandar impri­
mir, mas não de publicar ; porquanto só havia mandado tirar o
número de exemplares que enviou aos Duzentos, e que foram
inteiramente interceptados no correio por ordem do Conselho
Menor. Encontrei esta memória entre os papéis de meu tio, assim
como a resposta que este havia sido encarregado de lhe dar, e
levei uma e outra. Fizera esta viagem pouco depois de ter saido
do cadastro, e havia permanecido de certo modo em relações
com o advogado Coccelli, que era o chefe. Algum tempo depois,
o director da Alfàndega lembrou-se de me convidar para p adri­
nho de um filho seu, e deu-me Madame Coccelli por comadre.
As honrarias transtornaram-me o miolo ; e, orgulhoso por me
achar tão de perto ligado ao senhor advogado, tratei de fazer-me
importante para me mostrar digno desta glória.
Nesta ordem de ideias, entendi nada melhor poder fazer do
que mostrar-lhe a memória de M1cheli, que era na realidade um
documento raro, para lhe provar que pertencia à família de
notáveis de Genebra conhecedores dos segredos de Estado. Con­
tudo, em virtude de uma semi-reserva que dificilmente poderia
explicar, não lhe mostrei a resposta de meu tio à memória, tal­
vez por ser manuscrita, e ao senhor advogado não convir senão
letra de forma. Este, porém, viu tão bem o valor do escrito que
eu tinha tido a ·estupidez de lhe mostrar, que nunca mais eu o
tornei a haver nem ver, e absolutamente convencido da inutili­
dade dos meus esforços, conferi merecimento à coisa, •transfor­
mando o roubo em presente. Não duvido um só instante que ele·
não tivesse feito render bem junto da corte de Turim o dito
documento, mais curioso, no entanto, do que útil, e que não
tivesse todo o cuidado em ser reembolsado de qualquer maneira
do dinheiro que deveria ter despendido para o obter. Felizmente,

215
de todos os futuros contingentes, um dos menos provâveis é que
o rei da Sardenha venha um dia cercar Genebra. Mas como a
coisa não é impossível, terei sempre que censurar à minha tola
vaidade o haver mostrado os maiores defeitos desta praça ao seu
mais antigo inimigo.
Desta maneira passei dois ou três anos entre a música, os
magistérios, os projectos, as viagens, vacilando permanente­
mente entre uma coisa e outra, procurando fixar-me sem saber
em quê, todavia seduzido gradualmente pelo estudo, vendo gente
das letras, ouvindo falar de literatura, metendo-me eu mesmo
por vezes a falar dela, e apreendendo mais a giria dos livros do
que a ,ciência do seu conteúdo. Nas minhas viagens a Genebra,
ia frequentemente visitar de fugida o meu velho e bom amigo
Simon, que fomentava bastante a minha incipiente emulação
por meio de noticias fresquissimas acerca da república das letras,
colhidas do Baillet ou do Colomiés. Via também muito em Cham­
béri um j acobino, professor de fisica, um bonachão de frade,
cujo nome esqueci, e que por vezes fazia umas experiênciazitas
que me divertiam extremamente. Quis, como ele, fazer tinta
simpâtica. Para tal fim, depois de haver enchido mais de meia
garrafa de cal viva, ouro-pigmento e âgua, rolhei-a bem. A efer­
vescência começou com bastante violência quase imediatamente.
Corri para a garrafa para a desarrolhar, mas não cheguei a
tempo ; rebentou-me na cara como uma bomba. Engoli ouro­
-pigmento, cal ; ia morrendo. Fiquei cego durante mais de seis
semanas, e desta maneira aprendi a não me intrometer com a
física e�erimental sem lhe conhecer os rudimentos.
Esta aventura não veio muito a propósito para a minha
saúde, que hâ j â algum tempo se achava senstvelmente alterada.
Não sei como é que tendo eu o peito bem conformado, e não
fazendo excessos de nenhuma espécie, enfraquecia a olhos vis­
tos. Sou bastante largo de ombros, tenho o peito amplo , os pul­
mões devem nele funcionar à vontade ; no entanto, respirava
mal, sentia-me oprimido, suspirava involuntàriamente, tinha
palpitações, escarrava sangue ; sobreveio uma febre lenta, e
nunca mais me livrei completamente dela. Como é que na flor
da idade se pode cair em tal estado, sem �termos nenhuma viscera
estragada, sem nada havermos feito para arruinar a saúde?
A espada gasta a bainha, diz-se às vezes. Eis a minha história.
As minhas paixões me fizeram viver, e as minhas paixões me
mataram. Que paixões? perguntar-se-à: as coisas mais pueris
do mundo, mas que me impressionavam como se se tratasse da
posse de Helena ou do trono do universo. Primeiro, as mulheres.

216
Quando possui uma, os sentidos acalmaram-se-me, mas o cora­
ção nunca. As necessidades do amor devoravam-me no seio da
voluptuosidade. Tinha uma extremosa mãe, uma amiga querida ;
mas faltava-me uma amante. Imaginava-a no lugar daquela ;
criava-a para mim mesmo de mil maneiras para a mim próprio
me iludir. Se eu pensasse que tinha Mamã nos braços quando
isso se dava, os meus amplexos não seriam menos vivos, mas
todos os meus desejos se desvaneceriam, soluçaria de •ternura,
mas não alcançaria o prazer. O prazer ! Está ele destinado ao
homem ? Ah ! se acaso uma só vez na vida tivesse gozado na sua
plenitude todas as delicias do amor, imagino que a minha frágil
existência o não poderia suportar ; morreria imediatamente.
'Um amor sem ob}ecto me queimava, pois, e é porventura
assim •que ele mais consome. Inquietava-me, atormentava-me
com o mau estado dos negócios de Mamã, e com a imprudente
conduta dela, que não podia deixar dé acarretar a sua ruína total
dentro de pouco tempo. A minha cruel imaginação, que vai sem­
pre ao encontro das desgraças, fazia-me constantemente ver
aquela com toda a sua violência e com todas as suas consequên­
cias. Via-me de antemão forçosamente separado pela miséria
daquela a quem havia consagrado a minha vida, e sem a qual
não poderia gozá-la. Era por isto que a minha alma se encon­
trava sempre agitada. Os desejos e os receios devoravam-me
alternadamente.
A música era outra das minhas paixões, menos fogosa, mas
não menos devastadora pelo ardor com que a eia me entregava,
pelo estudo obstinado dos obscuros livros de Rameau, pela minha
invencível teimosia em querer encaixá-los na memória, que con­
tinuava a recusar-se a isso, pelas minhas continuas correrias,
pelas enormes compilações que amontoava, passando frequen­
temente as noites inteiras a copiar. E porque me deter nas coisas
permanentes, quando todas as loucuras que me passavam pela
cabeça inconstante, os prazeres fugitivos apenas de um dia, uma
viagem, um concerto, uma ceia, um passeio a dar, um romance
a ler, uma comédia a ver, tudo o que no mundo havia de menos
premeditado nos meus prazeres ou nos meus negócios, se trans­
formava para mim em paixões igualmente violentas que, n a
sua ridícula impetuosidade, m e causavam o mais autêntico tor­
mento? A leitura, feita com fúria e frequentemente interrom­
pida, das desditas de Cléveland, acabrunhou-me mais, creio eu,
do •que as minhas próprias.
HaVia um genebrino, chamado Monsieur Bagueret, que
tinha estado empregado na corte da Rússia, no tempo de Pedro

217
o Grande ; um dos homens mais velhacos e um dos maiores
extravagantes que ainda vi, sempre cheio de projectos tão extra­
vagantes como ele, que fazia descer os milhões como a chuva,
e a quem os zeros nada custavam. Tendo vindo parar a Cham­
béri em virtude de qualquer processo no Senado, esse homem
apoderou-se de Mamã como era de esperar, e, em troca dos
tesouros de zeros que generosamente esbanjava com ela, extraia­
-lhe um a um os seus pobres escudos. Eu não gostava dele, e
ele via- o ; comigo, tal coisa não é difícil : não havia espécie
alguma de baixeza que ele não empregasse para me seduzir.
Lembrou-se de me propor aprender com ele o xadrez, que
jogava um bocado. Experimentei quase mau grado meu, e depois
de haver aprendido razoàvelmente a marcha das pedras fiz tão
rápidos progressos, que antes do fim da primeira sessão já lhe
dava a torre que ele no começo me havia dado. Não foi
preciso mais nada: ai estou eu possesso do xadrez. Compro um
tabuleiro ; compro o calabrês 1 ; fecho-me no meu quarto ; passo
nele dia e noite a querer aprender de cor •todas as partidas. a
encaixá-las na cabeça a bem ou a mal, a j ogar sozinho sem
descanso e interminàvelmente. Ao fim de dois ou t11ês meses de
tão lindo trabalho e de esforços inimagináveis, apareço no café,
magro, amarelo e quase emparvecido. Assento-me, volto a jogar
com Monsieur Bagueret : bate-me uma vez, duas vezes, vinte
vezes ; tinham-se-me misturado tantas combinações na cabeça,
a minha imaginação havia de tal maneira enfraquecido, que
diante de mim só via uma nuvem. Todas as vezes que quis trei­
nar-me, com o livro de Philidor ou com o de Stamma, a estudar
algumas partidas, sucedeu-me a mesma coisa, e depois de me
esgotar de fadiga, achei-me mais fraco do que anteriormen te.
De resto, quer tenha abandonado o xadrez, quer tenha reco­
brado for,ças jogando-o, nunca mais avancei um ápice desde
essa primeira sessão, e encontrei-me sempre no mesmo ponto
em que me achava ao terminá-la. Podia treinar-me durante
milhares de anos, que acabaria por poder dar a torre a Bagueret,
e nada mais. Ora aí está um tempo bem empregado ! , dizeis vós.
E não gastei pouco. Só terminei esta primeira tentativa quando
não tive mais forças para continuar. Quando me mostrei ao sair
do quarto, tinha um ar de desenterrado, e, a continuar no mesmo
caminho, não teria permanecido desenterrado muito tempo.

1 Referência ao tratado do calabrês Grego, publicado em 1689.


- N. do T.

218
Concordar-se-á em que é difícil que uma tal cabeça, sobretu:io
no ardor da mocidade, mantenha sempre a saúde do corpo.
A alteração da minha agiu sobre o meu carácter, e tem­
perou o ardor das minhas fantasias. Sentindo-me enfraquecer,
tornei-me mais calmo e perdi um pouco o furor das viagens.
Mais sedentário, fui atacado nãO de aborrecimento, mas de
melancolia ; os vapores sucederam-se às paixões ; o meu abati­
mento transformou-se em tristeza; chorava e suspirava a pro­
pósito de nada ; sentia a vida fugir-me sem a ter gozado ; lamen­
tava o estado em que deixava a minha pobre Mamã, aquele em
que a via prestes a cair ; posso dizer que abandoná-la e deixá-la
numa situação de piedade era o meu único desgosto. Cai por
fim verdadeiramente doente. Ela tratou-me como nunca mãe
alguma tratou um filho, o que lhe fez bem a ela própria, dis­
traindo-a dos projectos e conservando afastados os projectan­
tes. Que doce morte, se ela então viesse ! Se tinha gozado pouco
os bens da vida, tinha-lhe sentido pouco as desgraças. A minha
alma mansa podia par.tir sem o sentimento cruel da injustiç:J.
dos homens, que envenena a vida e a morte. Tinha a consolação
de sobreviver na melhor metade de mim próprio ; mal era morrer.
Sem as inquietações que a sorte dela me causava, teria morrido
como se adormecesse, e tais inquietações tinham até um objec­
tivo carinhoso e terno que lhes temperava a amargura. Dizia-lhe
eu : Sois depositária de todo o meu ser ; tomai a vosso cargo
fazê-lo feliz. Duas ou tvês vezes, achando-me pior, sucedeu-me
levantar-me de noite, e arrastar-me ao quarto dela para dar-lhe,
a respeito da sua conduta, conselhos que ouso dizer cheios de
acerto e de senso, mas nos quais se evidenciava mais que tudo
o interesse que me despertava a sua sorte. Como se as lágrimas
fossem o meu alimento e o meu remédio, fortificava-me com as
que vertia ao pé dela, com ela, sentado no seu leito, segurando
as suas mãos nas minhas. As horas passavam-se nestas práticas
nocturnas, e eu volta va delas em melhor estado do que tinha
vindo ; contente e calmo com as promessas que ela me h avia
f:eito, com as esperanças que me havia dado, adormecia sobre
elas com a paz no coração, e resignado para com a Providência.
Praza a Deus que depois de tantas razões para odiar a vida,
depois de tantas tempestades que agitaram a minha e que só
me fazem dela um fardo, a morte que deve cerrá-la me seja tão
pouco cruel como me haveria sido naquela ocasião.
A força de cuidados, de atenções e de afeições inacreditá­
veis, salvou-me, e na verdade só ela me podia salvar. Tenho
pouca fé na medicina dos médicos, mas muita na dos verdadeiros

219
amigos ; as coisas de que depende a nossa felicidade fazem-l!e
muito melhor do que ,todas as outras. Se há na vida um senti­
mento delicioso, é o que experimentámos ao sermos restituídos
um ao outro. A nossa afeição mútua não aumentou, isso era
impossível ; mas ganhou não sei quê de mais intimo, de mais
tocante na sua grande simplicidade. Eu tornava-me inteiramente
obra dela, inteiramente seu filho, e mais ainda do que se ela
fosse minha verdadeira mãe. Sem nisso pensarmos, começámos
a não nos separarmos mais um do outro, a levar de certo modo
a nossa existência em comum, e sentindo que reciprocamente
éramos não só necessários, mas bastantes um ao outro, acostu­
mámo-nos a não pensar em mais nada estranho a nós, a limitar
absolutamente toda a nossa felicidade e todos os nossos desejos
a esta posse mútua, e porventura única entre os mortais, a qual
não era, como disse, a do amor, mas uma posse mais essencial,
que, sem dizer respeito aos sentidos, ao sexo, à idade, à figura,
dizia respeito a <tudo aquilo por que somos nós próprios, e que
só se pode perder deixando de ser.
A que se deve não haver esta preciosa crise trazido a feli­
cidade do resto dos seus e dos meus dias? Não foi por minha
culpa. Presto a mim mesmo esta consoladora j ustiça. Também
não foi por culpa dela, pelo menos por sua vontade. Estava
escrito 'que em breve o invencível natural retomasse o seu domí­
nio. Este fatal regresso não se fez, porém, subitamente. Graças
ao céu, houve um intervalo, breve e precioso intervalo, que não
terminou por culpa minha, e de que não terei a censurar-me
havê-lo aproveitado mal !
Posto que curado da minha grande doença, não havia reco­
brado o meu vigor. O peito não se tinha restabelecido ; persistia
sempre um resto de febre, que me mantinha fraco. Nada maís
me dava prazer senão acabar os meus dias ao pé daquela que
tão querida me era, fazendo- a persistir nas boas resoluções que
tomara, fazendo-lhe sentir em que consistia o verdadeiro encanto
de uma vida feliz, e fazendo a felicidade da sua, tanto quanto
isso dependia de mim. Mas eu via, sentia mesmo que a continua
solidão de uma intimidade exclusiva numa casa sombria e triste
acabaria por se tornar triste também. O remédio a isso apresen­
tou-se como de per si. Mamã tinha-me prescrito o leite. e qua­
ria que eu fosse tomá-lo ao campo. Consenti, dado que ela viesse
comigo. Nada mais foi preciso para a decidir ; tratava-se apenas
de escolher o local.
o j ardim do arrabalde não era prôpriamente no campo ;
rodeado de casas e de outros j ardins, não tinha nada os atrac-

220
tivos de um verdadeiro retiro campestre. Aliás, depois da morte
de Anet, tinhamo-lo abandonado por motivos de ordem econó­
mica, visto que já nos não interessava aí cultivar plantas, e que
outras ideias nos faziam ter poucas saudades desse retiro.
Aproveitando-me nesta al•tura da repugnância que a cidade
lhe cáusava, propus-lhe que a abandonássemos completamente,
e que nos fôssemos instalar numa solidão agradável, numa casi­
nha qualquer suficientemente distante para despistar os impor­
tunos. Ela tê-lo-ia feito, e esta decisão sugerida pelo seu e pelo
meu bom anjo, ter-nos-ia possivelmente reservado dias felizes
e tranquilos até ao momento.em que a morte nos viesse separar.
Tal estado não era, porém, aquele a que éramos chamados.
Mamã, depois de passar a vida na abundância, devia sofrer todos
os desgostos da miséria e do desconforto para lha fazerem aban­
donar com menos pena; e eu, graças a um conjunto de mal3s
de todas as esp�ies, devia servir um dia de exemplo a quem
quer que, inspirado apenas pelo amor do bem público e da jus­
tiça, se atreva, apenas com a força da sua inocência, a dizer
abertamente a verdade aos homens sem se escorar em cabalas,
sem arranjar partidos para o proteger.
Um deplorável receio a deteve. Não ousou abandonar aquela
velha casa com medo de magoar o seu proprietário. O teu pro­
jecto de isolamento é encantador, disse-me ela, muito do
meu agrado; é preciso todavia viver nesse isolamento.. Aban­
donando a minha prisão arrisco-me a perder o meu pão, e
quando já não o tivermos nos bosques, será necessário regressar
à cidade para o procurar. Não a abandonemos inteiramente para;
termos menos necessidade de cá voltar. Paguemos ao conde de
Saint-Laurent esta pequena pensão para que ele me conserve a
minha. Busquemos um retiro qualquer suficientemente afastado
da cidade para nele vivermos em paz, e suficientemente perto
para a ela voltarmos sempre que for necessário. Assim se fez.
Depois de havermos procurado algum tempo, fixámo-nos nas
Charmettes, propriedade de Monsieur de Conzié, às portas de
Chambéri, mas retirada e solitária como se estivéssemos a cem
léguas. Entre dois outeiros razoàvelmente elevados, acha-se um
valezinho orientado a norte-sul, no fundo do qual corre, entre
calhaus e árvores, um pequeno ribeiro. Ao longo do vale
acham-se, a meia-encosta, algumas casas dispersas, bastante
aprazíveis para quem aprecie um asilo um pouco selvagem e
retirado. Após havermos experimentado duas ou três destas
casas, escolhemos por fim a mais bonita, pertencente a um
fidalgo no serviço militar, chamado Noiret. A casa era perfeita-

221
mente habitável. Tinha ·à frente um j ardim formando terraço,
em baixo uma vinha, defronte uma pequena mata de castanhei­
ros, e prados para alimento do gado ; tudo, enfim, o que era pre­
ciso para o pequeno lar c ampestre que aqui queríamos fundar.
Tanto quanto posso lembrar-me da época e da data, tomámos
posse dela pelos fins do Verão de 1736. Fiquei entusiasmado no
primeiro dia que lá dormimos. ó 'Mamã, disse eu à minha
encantadora amiga, abraçando-a e inundando-a de lágrimas de
ternura e de alegria, esta moradia é a morada da felicidade
c da inocência ! Se não as encontramos aqui na companhia um
do outro, é inútil procurá-las onde quer que sej a.

222
LIVRO SEXTO

Hoc erat in votis: modus agri non ita magnus,


Hortus ubi, et tecto vicinus fugis aquce tons,
Et paullum sylvce super his joret .. .l

AO posso acrescentar: auctius atque D í melius tecere : ;

N mas não importa, não precisava de mais ; nem mesmo


necessitava da propriedade, chegava-me o desfrutá-Ia:
e há muito que disse e senti que o proprietário e o possuidor são
frequentemente duas pessoas muito diferentes, pondo mesmo de
parte os maridos e os amantes.
Começa aqui a breve felicidade da minha vida ; chegam
agora os tranquilos mas rápidos momentos que me dão direito
a di:oer que vivi. Momentos preciosos e tão suspirados ! Ah ! ,
recomeçai para mim o vosso agradável curso, deslizai, se é possí­
vel, mais lentamente na minha recordação do que realmente
o fizestes na vossa fugitiva sucessão. Que farei para prolongar
à minha vontade esta tão tocante e simples narrativa, para
repetir sempre as mesmas coisas, sem, ao repeti-las, aborrecer
mais os meus leitores do que eu próprio me aborreci ao recome­
çá-las incessantemente? Ainda se tudo isto c onsistisse em factos,
em acções, em palavras, eu poderia de qualquer maneira descre­
vê-lo, exprimi-lo ; como diz,e r, porém, o que não era dito, nem
feito, nem sequer pensado, mas gozado, mas sentido, sem que
eu possa apontar outro objecto da minha felicidade além deste
próprio sentimento? Levantava-me com o sol, e era feliz,
passeava, e era feliz ; via Mamã, e era feliz ; deixava-a, e era
feliz ; percorria os bosques, os outeiros, vagueava pelos vales,.
lia, permanecia ocioso ; trabalhava no horto, colhia frutos, aju-

I «Era isto o que eu desejava : uma terra não muito grande, um


jardim, uma nascente de água viva defronte de casa, e ainda por cima um
bosquezito.» (Horácio, Sátiras, 1 . II, sátira VI.)
2 «Os deuses, contudo, favoreceram-me mais.» - lbid.

223
dava à. lida da casa, e a felicidade seguia-me por toda a parte :
não existia em coisa nenhuma precisa, estava inteiramente em
mim mesmo, não podia abandonar-me um só momento.
Nada do que me sucedeu durante esta época adorável, nada
do que fiz, disse e pensei todo o tempo que ela durou me saiU
da memória. Os tempos que a precedem e que se lhe seguem
recordam-me ,com intermitências ; evoco-os irregular e confu­
samente : aquele, porém, recordo-o em bloco como se ainda
durasse. A minha imaginação, que quando eu era novo tomava
sempre a minha dianteira, e agora retrocede, compensa graças
a estas doces recordações a esperança que para sempre perdi.
Nada mais vejo no futuro que possa seduzir-me ; só os regres­
sos ao passado me c onsolam, e estes regressQs tão vivos e tão
verídicos à época a que me refiro fazem-me por vezes viver
feliz apesar dos meus infortúnios.
Um só exemplo destas recorda•ções dará a medida da sua
força e da sua verdade. !No primeiro dia que fomos dormir às
Charmettes, Mamã viajava de c adeirinha, e eu seguia-a a pé.
Há uma subida : como ela era muito pesada e receava fatigar
os portadores, quis descer pouco mais ou menos a meio do
caminho e fazer o resto a pé. Enquanto ia caminhando viu qual­
quer coisa azul numa sebe, e disse-me : Há ali pervinca ainda
em flor. Eu nunca tinha visto pervinca ; não me abaixei para
a examinar de perto, e tenho a vista curta de mais para distin­
guir de pé as plantas rasteiras. Deitei-lhe apenas ao passar um
olhar, e perto de trinta anos se passaram sem que tornasse e
ver pervincas ou lhes tivesse prestado atenção. Em 1764, encon­
trando-me em Cressier com o meu amigo Monsieur du Peyrou,
subíamos nós um pequeno outeiro no alto do qual há um lindo
caramanchel a que ele chama com razão a Bela-Vista. Eu come­
çava então a herborizar um pouco. Ao subir, olhando por entre
as moitas, soltei um grito de alegria : Ah! olha pervinca! - e
era pervinca, com efeito. Du Peyrou notou o meu entu ­
siasmo, mas desconhecia a causa dele ; sabê-la-á, espero -o,
quando um dia ler isto. Pela impressão provocada por um
objecto tão pequeno, pode o leitor avaliar da que me fizeram
todos aqueles que se relacionam com a mesma época.
No entanto, o ar do campo não me restituiu a saúde antiga.
Estava fraco ; e mais fraco fiquei ainda. Não pude aguentar
o leite ; tive que o deixar. A água como remédio para todas
as coisas estava então na moda ; pus-me a água, e com tão
pouca discrição que esta esteve a ponto de me curar, não de meus
males, mas da vida. Todas as manhãs, depois de me levantar,

224
ia à fonte com um copo, e, passeando, bebia sucessivamente
obra de duas garrafas. As refeições, abandonei totalmente Q
vinho. A água que bebia era um pouco pesada e difícil de
digerir, como acontece com a maioria das águas de montanha.
Em suma, arranjei-me tão bem que em menos de dois meses
o meu estômago, que até então era muito bom, se achava com­
pletamente arruinado. Não digerindo j á, compreendi que j á
não podia esperar curar-me. A o mesmo tempo aconteceu-me
um acidente tão singular em si mesmo como nas suas conse­
quências, as quais só comigo acabarão.
Uma manhã, em que me não achava pior do que de cos­
tume, ao pôr de pé uma mesinha, senti em todo o corpo uma
súbita e inconcebível revolução. Não _ poderei melhor compará-la
do que com uma espécie de tempestade .que se me levantou no
sangue, e imediatamente se me espalhou por todos os membros.
As artérias puseram-se-me a latejar com tanta força, que não
só sentia o seu latejo, como até o ouvia, sobretudo o das caró­
tidas. A isto juntou-se um grande ruído nos ouvidos, ruído
triplo ou antes quádruplo, a saber : um zumbido grave e surdo,
um murmúrio mais nítido, como que de água corrente, um
silvo muito agudo e o latejo de que acabo de falar, e cujas pan­
cadas podia perfeitamente contar sem tomar o pulso nem tocar
no corpo com as mãos. Este ruido interior era tão grande que
me privou da delicadeza de ouvido 1que dantes tinha, e me
deixou não inteiramente surdo, mas com uma dureza de ouvido,
que conservei de então para cá.
Imagine-se a minha ;surpresa e o meu susto. Julguei-me
morto ; meti-me na cama : chamou-se o médico ; contei-lhe o
caso a tremer, julgando-o irremediável. Creio que ele pensou
o mesm o ; mas fez o seu dever. Alinhou uma série de extensos
argumentos, de que não compreendi absolutamente nada ;
depois, como consequência da sua sublime teoria, começou
tn anima vili a cura experimental que lhe aprouve tentar. Esta
era tão molesta, tão enfadonha e tão pouco operante, que bem
depressa me cansei dela ; e ao fim de quinze dias, vendo que
não estava melhor nem pior, abandonei a cama e retomei a
minha vida ordinária, com as minhas palpitações nos ouvidos
e os meus zumbidos, que desde essa data, isto é, há trinta anos,
não me largaram nem um minuto.
Até então tinha sido um grande dorminhoco. A total pri­
vação do sono •que se. juntou a todos estes sintomas, e que
constantemente os acompanhou até aqui, acabou de me con­
vencer que pouco tempo de vida me restava. Tal persuasão tran-

15
225
quilizou-me temporàriamente a respeito da preocupação de me
curar. Como não podia prolongar a vida, resolvi tirar da que
me restava todo o partido possível ; e, por um singular favor
da natureza, dava-se o caso de ·que, em tão funesto estado,
me achava isento das dores que éste parecia dever chamar
sobre mim. Aquele ruído importunava-me, mas não me fazia
sofrer : nenhuma outra incomodidade habitual o acompanhou,
além da insónia durante a noite, assim como, desde sempre,
da falta de respiração, que não ia até à asma e só se fazia
sentir quando queria correr ou fazer qualquer trabalho mais
violento.
Este acidente, que devia matar-me o corpo, só matou em
mimi as paixões, e eu diàriamente dou graças ao céu pelos
excelentes efeitos que ele produziu na minha alma. Posso bem
dizer que só comecei a viver quando me supunha um homem
morto. Dando às •coisas que ia deixar o seu verdadeiro valor,
comecei a ter preocupações mais nobres, como que ;anteci­
pando aquelas que em breve devia satisfazer e que até então
havia fortemente descurado. Havia frequentemente troçado da
religião em moda, mas nunca tinha perdido inteiramente a reli­
gião. Por isso me custou menos a voltar a 1tal assunto, tão
triste para tantas pessoas, mas tão doce para quem dele faz
um •objecto de consolação e de esperança. Nesta ocasião, Mamã
foi-me mais útil do que o poderiam ser todos os teólogos.
Ela, que reduzia tudo a sistemas, não podia deixar de fazer
o mesmo com a religião ; o seu sistema religioso era composto
de i deias absolutamente ,desconexas, umas inteiramente sãs,
outras inteiramente extravagantes, de sentimentos relativos
ao seu carácter e de preconceitos provenientes da sua educação.
· Os crentes fazem em geral Deus como eles próprios são ; os
bons fazem-no bom, os mau s fazem-no mau ; ·os devotos, ran­
corosos e irascíveis, só vêem o inferno, porque desejariam a
danação de toda a 'gente ; as almas amaráveis e doces não acre­
ditam muito nele ; e uma das coisas que não deixa de me causar
surpresa é ver o bom do Fénelon dele falar no seu Telémaco,
como se nele acreditasse a valer: espero, contudo, que men­
tisse em tal ocasião ; porque, enfim, por muito verdadeiro que
se, sej a, forçoso' é mentir algumas vezes quando se é bispo.
A mim não me podia Mamã mentir ; e esta alma sem fel, que
não podia imaginar um Deus vindicativo e sempre colérico, só
via clemência e misericórdia onde os devotos não vêem mais que
justiça e punição. Dizia ela muitas vezes que não havia justiça
em Deus !Ser justo para connosco, visto que, não nos tendo dado

226
o necessário para o ser, isso seria exigir mais do que nos havia
dado. O que nela havia de singular é que, não acreditando no
inferno, não deixava de acreditar no purgatório. Tal facto
provinha de não saber que fazer das almas dos maus, visto
não poder condená-los nem juntá-los aos bons até que eles o
não viessem a ser ;igualmente, e, com efeito, deve-se reconhecer
que, tanto neste mundo como no outro, os maus são sempre
deveras incómodos.
Outra singularidade. Vê-se que este sistema destrói toda
a doutrina do pecado ,original e da redenção, abala a base do
cristianismo comum, e que o catolicismo, pelo menos, não pode
subsistir. Contudo, Mamã era boa católica, ou afirmava sê-lo,
e é indubitável que o afirmava com inteira boa fé. Parecia-lhe
que explicavam demasiado ,liberalmente e demasiado severa­
mente as Escrituras. Tudo que nélas se lê acerca das penas
eternas lhe parecia cominatório ou figurado. A morte de Jesus
Cristo parecia-lhe um exemplo de caridade verdadeiramente!
divino para ensinar aos homens a amarem Deus e a amarem-se
igualmente entre si. Numa palavra, fiel à religião que abraçara,
admitia sinceramente a inteira profissão de fé desta ; mas
quando se chegava à discussão de cada artigo, sentia-se que a
sua crença era inteiramente diferente da da Igreja, embora
submetendo-se-lhe. Tinha a este respeito uma simplicidade de
coração, uma franqueza mais eloquente que todas as chicanas,
e que confundia o próprio confessor, pois que nada lhe escondia.
Sou boa católica, dizia-lhe ela, quero sê-lo sempre ; perfilho com
todas as forças da minha alma as decisões da Santa Madre Igreja.
Não sou senhora da minha fé, mas sou-o da minha vontade.
Submeto-a sem reserva, e tudo quero crer. Que mais exige
de mim?
Mesmo que de modo algum houvesse moral cristã, creio
que ela a teria seguido, de tal maneira esta se adaptava bem
ao seu carácter. Fazia tudo o que era ordenado ; mas tê-lo-ia
feito da mesma maneira, mesmo que não fosse ordenado. Gos­
tava de obedecer nas coisas insignificantes, e se lhe não hou­
vesse sido permitido, e até ordenado, comer carne, teria jejuado
de si para com Deus, sem que de modo nenhum tivesse entrado
em linha de conta com a prudência. Toda esta moral estava,
porém, subordinada aos princípios de Monsieur de Tavel, ou,
antes, pretendia ela não lhe ser em ·nada contrária. Teria, com
a consciência tranquila, dormido com vinte homens, e até sem
sentir nisso mais escrúpulo do que desejo. Sei que neste ponto
muitas devotas não são mais escrupulosas ; mas a diferença é

227
que estas são seduzidas pelas suas pa1xoes, ao passo que ela
era-o apenas pelos seus sofismas. Nas conversas mais enterne­
cedoras, e, ouso dizer, nas mais edificantes, seria capaz de cair
neste assunto sem mudar de fisionomia nem de tom, sem se
julgar em contradição com ela própria. Se necessário fosse, seria
até capaz de a interromper de propósito, reatando-a depois com
a mesma naturalidade anterior: de tal maneira estava con­
vencida de ·que tudo isso não passava de uma máxima de polícia
social, que toda a pessoa sensata podia interpretar, aplicar,
ressalvar, consoante o espírito da -coisa, sem o menor risco de
ofender a Deus. Neste ponto, se bem que não fosse certamente
da sua opinião, não ousava combatê-la, com vergonha do papel
pouco elegante que para isso me seria necessário desempenhar.
Bem poderia eu procurar estabelecer a regra para os outros,
di} igenciando isentar-me dela; porém, além de que o seu tem­
peramento era suficiente para prevenir o abuso dos seus prin­
cípios, sei •que não era mulher ·que se deixasse enganar, e que
reclamar para mim a excepção era outorgar-lha a favor de
todos .quantos lhe aprouvesse. Aliás, relato incidentalmente
aqui esta incoerência com as outras, se bem ·que ela tivesse
sempre tido poucas consequências na sua conduta, e naqueia
altura mesmo nenhumas: prometi, todavia, expor fielmente os
seus princípios, e quero cumprir a minha promessa. Regresso
à minha pessoa.
Encontrando nela todas as máximas de que tinha neces­
sidade para proteger a minha alma do terror da morte e das
suas consequências, bebia com convicção nesta fonte de con­
fiança. Afeiçoava-me a ela mais do que nunca, desejaria trans­
fundir inteiramente nela a vida que sentia prestes a abandonar­
-me. Deste redobramento da minha afeição, da convicção de que
me restava pouco tempo de vida, da profunda tranquil1d.ade a
despeito da minha sorte futura, de tudo isto resultava um
estado habitual de grande calma, sensual mesmo, no sentido
de que amortecendo todas as paixões que afastam para longe
os nossos temores e as nossas esperanças, me deixava sem
inquietação e sem receio gozar os poucos dias .que me restavam.
Uma coisa contribuía para os tornar mais agradáveis: era a
preocupação de alim�mtar o gosto que Mamã nutria pelo campo
por meio de todas as distracções que eu ali podia reunir. Fazen­
do-a amar o seu horto, a sua capoeira, os seus pombos, as suas
vacas, eu próprio me afei•çoava a tudo isto; e as suas miúdas
ocupações, •que me .enchiam o dia sem perturbar a minha tran­
quilidade, valeram mais do que o leite e todos os remédios para

228
conservar a minha pobre máquina, e até restabelecê-la tanto
quanto isso era possível.
As vindimas, a apanha da fruta entretiveram-nos o resto
do ano, e prenderam-nos cada vez mais à vida do campo, no
meio das excelentes pessoas ,que nos rodeavam. Vimos com
grande mágoa chegar o Inverno, e voltámos para a cidade como
se tivéssemos partido para o exílio; eu, sobretudo, que duvi­
dando tornar a ver a Primavera, julgava dizer adeus para sem­
pre às Charmettes. Não as abandonei sem beijar a terra e as
árvores, e sem várias vezes me voltar para trás ao afastar-me
dali. Tendo largado há muito os meus alunos, tendo perdido o
gosto pelas distracções e pelas companhias da cidade, não saia,
não via ninguém, com excepção de Mamã, e de Monsieur
Salomon, que há pouco começara a ser seu médico e meu;
homem de bem, homem de espírito, grande cartesiano, disser­
tando muito bem acerca do sistema do mundo, e cujas agra­
dáveis e instrutivas conversas me foram mais proveitosas que
todas as suas receitas. Nunca pude suportar a palhada tola e
néscia das conversas vulgares; mas as conversas úteis e sólidas
deram-me sempre grándíssimo prazer, e nunca me furtei a elas.
Gostava bastante das de Monsieur Salomon; parecia-me que
na sua companhia me adiantava nos altos conhecimentos que
a minha alma ia adquirir quando tivesse perdido os seus entra­
ves. A satisfação que ele me dava estendia-se aos assuntos que
tratava, e comecei a procurar os livros que podiam auxiliar-me
a compreendê-lo melhor. Os que me convinham mais eram os
que aliavam a devoção às ciências, como o faziam particular­
mente os do Oratório e do Port-Royal. Comecei a lê-los, ou,
antes, a devorá-los. Caiu-me nas mãos um do padre Lamy inti­
tulado: Diálogos sobre as Ciências. Era uma espécie de intro­
dução ao conhecimento dos livros que tratam destas. Li-o e.
reli-o mil vezes; resolvi fazer dele o meu guia. Senti-me por
fim, apesar do meu estado, arrastado a pouco e pouco para o
estudo com irresistível força, e ao mesmo tempo que conside­
rava cada dia como o último dos meus dias, estudava com tanto
ardor como .se devesse viver sempre. Diziam que isto me fazia
mal; eu, por mim, creio que me fez bem, e não só à minha alma
como ao meu corpo; porque esta aplicação que me apaixonava
tornou-se-me tão deliciosa que, não pensando já nos meus
males, afligia-me menos com eles. É, porém, verdade que nada
me proporcionava um alívio real; não tendo, contudo, dores
agudas, acostumei-me a estar inactivo, a não dormir, a pensar
em vez de agir, e, enfim, a encarar a ruína contínua e lenta

229
da minha máquina como um progresso inevitável que só a morte
poderia deter.
Esta opinião não só me desprendeu de todos os vãos cuidados
da vida, como me libertou da importunidade dos remédios, a
que até então mau grado meu me haviam sujeitado. Salomon,
convencido de que as suas drogas me não podiam salvar, pou­
pou-me ao ressaibo que elas me deixavam, e contentou-se em
distrair a dor da querida !Mamã com algumas daquelas receitas
inofensivas que iludem a esperança do doente e mantêm os cré­
ditos do médico. Abandonei a dieta rigorosa ; voltei a beber vinho
e a fazer a vida de um homem com saúde, na medida das minhas
forças, sóbrio em tudo, mas sem me abster de nada. Saí mesmo,
e recomecei a visitar os meus conhecimentos, sobretudo Mon­
sieur de Conzié, cuja convivência me agradava bastante. Enfim,
quer porque me parecesse belo aprender até à minha última
hora, quer porque um resto de esperança de viver se albergasse
no fundo do meu coração, a expectativa da morte, longe de
moderar o meu gosto pelo estudo, parecia animá-lo, e eu apres­
sava-me em juntar alguns conhecimentos para o outro mundo,
como se estivesse convencido que me encontraria lá apenas com
os que de cá levava. Ganhei gosto pela loja de um livreiro cha­
mado Bouchard, onde se reuniam alguns homens de letras ; e
como a Primavera, que eu julgava não tornar a ver, estava
às portas, forneci-me de alguns livros para as Charmettes, no
caso de eu ter a dita de para lá voltar.
Tive-a, de facto, e aproveitei-a o melhor possível. É inex­
primível a alegria com que vi os primeiros rebentos. Tornar a
ver a Primavera era como ressuscitar no paraíso. Mal a neve
começou a derreter-se, abandonámos a nossa enxovia, e che­
gámos às Charmettes suficientemente cedo para termos as pri­
micias do rouxinol. Desde esse momento não mais acreditei
que morria, e é realmente singular que nunca tivesse tido gran­
des doenças no campo. Sofri muito, mas nunca fui à cama.
Muitas vezes, sentindo-me pior ,que de costume, disse : Quando
me virdes quase a morrer, ponde-me à sombra de um carvalho,
que eu vos prometo voltar de lá.
Embora fraco, retomei as minhas funções campestres, mas
de forma proporcionada às minhas forças. Tive verdadeiro des­
gosto em não poder tomar sozinho conta do horto ; contudo,
depois de meia dúzia de enxadadas, achava-me sem fôlego,
alagado em suor, sem poder mais. Quando me baixava, as pal­
pitações aumentavam, e o sangue subia-me com tanta força
· à cabeça que precisava levantar-me imediatamente. Obrigado

230
a limitar-me a ocupações menos fatigantes, tomei conta, entre
outras coisas, do pombal, e afeiçoei-me tanto a este, que passava
nele horas e horas seguidas sem me aborrecer um só instante.
O pombo é muito tímido e difícil de domesticar. No entanto,
consegui inspirar aos meus tanta confiança, que eles me seguiam
para toda a parte, deixando-se apanhar quando eu queria. Não
podia aparecer no horto ou no pátio sem imediatamente me
virem poisar dois ou três nos braços, na cabeça, e, apesar do
prazer que me davam, este cortej o tornou-se por fim tão incó­
modo, que me vi obrigado a retirar-lhes tal familiaridade. Tive
sempre um singular prazer em domesticar animais, sobretudo
os que são tímidos e selvagens. Achava encantador inspirar-lhes
uma confiança que nunca atraiçoei: queria que me amassem
em liberdade.
Disse eu que havia trazido livros comigo ; utilizei-os, mas
de maneira tal que eles me serviram menos para me instruir
do que para me abater. A ideia errada que tinha das coisas con­
vencia-me de que para ler um livro com proveito era necessário
possuir todos os conhecimentos que ele supunha, muito longe
de imaginar que o próprio autor muitas vezes os não possuía,
e que os ia beber a outros livros à medida que deles ta necessi­
tando. Esta ideia disparatada obrigava-me a parar a cada ins­
tante, a correr constantemente de um livro para outro, e por
vezes, antes de chegar à décima página do que desejava estudar,
ter-me-ia sido preciso esgotar bibliotecas inteiras. Contudo,
teimei tanto neste extravagante método, que perdi um tempo
infinito, e acabei por transformar a cabeça ao ponto de nada
mais poder ver nem saber. Felizmente, apercebi-me de que o
caminho errado por onde me metia me fazia perder num
enorme labirinto, e saí dele antes de me haver inteiramente
extraviado. Por muito pouco gosto que se tenha pelas ciências,
a primeira coisa que ao entregarmo-nos a elas sentimos é a
sua ligação, que faz com que elas se atraiam, se auxiliem, se
esclareçam mutuamente, e com que uma delas não possa dis­
pensar a outra. Embora o espírito humano não possa abarcar
todas, e que s e j a s e m p r e p r e c i s o e s c o l h e r uma como
principal, se não se possuírem algumas noções das outras,
encontramo-nos frequentemente na obscuridade mesmo a res­
peito da nossa própria. Senti que o que havia empreendido era
bom em si mesmo, e que só havia que mudar de método.
Tomando primeiro a enciclopédia, ia-a dividindo nos seus ramos.
Vi que era necessário fazer precisamente o contrário, tratar sepa­
radamente cada um, e prosseguir à parte com cada um até ao

231
ponto onde eles se juntassem. Desta maneira, voltei à síntese
comum, mas voltei a ela como homem que sabe o que faz.
Nisto, a meditação servia-me de conhecimento, e uma reflexão
deveras natural aj udava-me a guiar-me como devia ser. Quer
vivesse, quer morresse, não tinha tempo a perder. Nada saber
perto dos vinte e cinco anos, e tudo querer aprender, é compro­
metermo-nos a aproveitar bem o tempo. Sem saber a que ponto
a sorte ou a morte podiam suster o meu zelo, queria, para o que
desse e viesse, adquirir ideias sobre todas as coisas, tanto para
sondar as minhas disposições naturais, como para j ulgar por
mim mesmo o que mais valia a pena estudar.
Na execução deste plano achei outra vantagem em que
não tinha pensado, que foi a de aproveitar bem o tempo. iNão
devo ter nascido para estudar, pois que uma atenção prolon-
. gada fatiga-me a um ponto tal que me é impossível ocupar-me
fortemente meia hora seguida com o mesmo assunto, sobre­
tudo se sigo as ideias dos outros : porquanto, no que toca às
minhas, tem-me sucedido entregar-me por vezes a elas durante
bastante tempo, e até com êxito notável. Ao fim de seguir
durante algumas páginas um autor que é preciso ler com apli­
ca.ção, o meu espírito abandona-o e perde-se nas nuvens. Se
teimo, canso-me inutilmente; as alucinações voltam-me, não vejo
mais nada. Se, porém, assuntos diferentes se sucedem, mesmo
ininterruptamente, um repousa-me do outro, e sem mesmo ter
necessidade de descansar, sigo-os mais fàcilmente. Aproveitei
esta observação no meu plano de estudos, e entremeei-os de
tal maneira que me achava ocupado todo o dia sem nunca me
fatigar. li: certo que os cuidados rurais e domésticos me propor­
cionavam úteis distracções; no meu fervor crescente, achei
porém em breve o meio de poupar tempo para estudar, ocupan­
do-me simultâneamente das duas coisas, sem pensar que por isso
uma delas marchasse menos bem. Em todos estes pequenos por­
menores que me encantam e com que frequentemente fatigo o
meu leitor, ponho todavia uma discrição por que ele não daria
se eu não tivesse o cuidado de o advertir. Neste ponto, por
exemplo, lembro-me deliciado de todas as experiências diferen­
tes que fiz para distribuir o meu tempo de maneira a simultâ­
neamente extrair dele tanto prazer e utilidade quanto era
possível; e posso dizer que o tempo em que vivi retirado, sempre
doente, foi aquele em que na minha vida me senti menos ocioso
e menos aborrecido. Desta maneira, dois ou três meses se pas­
saram a tactear o pendor do meu espírito, e a gozar, na mais
bela estação do ano, e num sítio que esta tornava encantado,

232
as graças da vida cujo preço sentia bem, as de uma sociedade
tão livre como doce, se é que se pode dar o nome de sociedade
a uma tão perfeita união, e as das luzes que me propunha
adquirir ; porque, para mim, era como se já as possuísse, ou me­
lhor ainda, visto que o prazer de aprender contava bastante na
minha felicidade.
Passemos por cima destas experiências, que constituíam
para mim outros tantos prazeres, prazeres por de mais simples
no entanto para serem explicados. Mais uma vez : a verdadeira
felicidade não se descreve ; sente-se, e sente-se tanto mais
quanto menos se pode descrever, porque não resulta de um
concurso de factos, é um estado permanente. Repito-me fre­
quentemente, mas repetir-me-ia bem mais se dissesse a mesma
coisa todas as vezes que esta me vem ao espírito. Quando por
fim o meu método de vida, frequentemente alterado, ganhou
um curso uniforme, eis pouco mais ou menos como eu o distribuí.
Levantava-me todas as manhãs antes do nascer do sol.
Subia através de um pomar vizinho até a um caminho formo­
síssimo que ficava da parte de cima da vinha, e seguia a encosta
até Chambéri. Ai, enquanto passeava, fazia a minha oração,
a qual não consistia numa vã balbuciação dos lábios, mas numa
sincera elevação do coração ao autor daquela risonha natureza,
cujas belezas tinha diante dos olhos. Nunca gostei de orar no
meu quarto ; parece-me que as paredes e todos estes insignifi­
cantes trabalhos dos homens se interpõem entre Deus e mim.
Gosto de contemplá-lo nas suas obras, enquanto o meu coração
se eleva a ele. Posso dizer que as minhas orações eram puras,
e por isso dignas de serem ouvidas. Para mim, e para aquela
de quem as minhas preces nunca me separavam, só pedia uma
vida inocente e tranquila, isenta do vicio, da dor, de dificuldades
penosas; a morte dos justos, e a sua sorte no futuro. Aliás, este
acto passava-se mais em admiração e contemplação do que em
rogos, e eu sabia que junto do dispensador dos verdadeiros bens
o melhor meio de obter os que nos são necessários não é tanto
pedi-los como merecê-los. No regresso do meu passeio dava
uma volta bastante grande, entretendo-me a examinar com
interesse e volúpia os objectos campestres que me rodeavam,
e que são os únicos de que a vista e o coração nunca se cansam.
De longe, observava se já entrava a luz do dia nos aposentos
de Mamã : quando via os contraventos abertos, exultava de
alegria e corria apressadamente. Se estavam fechados, entrava
no j ardim à espera que ela acordasse, entretendo-me a reme­
morar o que havia aprendido na véspera, ou a jardinar. Os

233
contraventos abriam-se, eu ia beijá-la à cama, ainda meio­
-adormecida a maior parte das vezes, e este beijo tão puro
como carinhoso devia à sua própria inocência o encanto a que
nunca se juntou a volúpia dos sentidos.
Almoçávamos de ordinário café com leite. Era a altura
do dia em que nos achávamos mais sossegados, em que con­
versávamos mais à nossa vontade. Destas reuniões, que ordinà­
riamente se prolongavam bastante, ficou-me um gosto vivíssimo
pelos almoços, e prefiro infinitamente o hábito da Inglaterra
e da Suíça, onde o almoço é uma verdadeira refeição que reúne
todos, ao da França, onde cada qual almoça sozinho no seu
quarto, e muitas vezes nem sequer almoça. Depois de uma hora
ou duas de conversa, ia-me aos meus livros até ao jantar. Come­
çava por qualquer livro de filosofia, como a Lógica do Port-Royal,
o Ensaio de Locke, Malebranche, Leibnitz, Descartes, etc. Em
breve descobri que estes autores estavam em quase perpétua
contradição entre si, e formei o quimérico projecto de os con­
ciliar, o qual me fatigou e me fez perder bastante tempo. Dava
cabo da cabeça, e não andava para a frente. Renunciei também
por fim a este método, e adoptei outro infinitamente melhor,
ao qual atribuo todos os progressos que consegui fazer, apesar
da minha deficiência de capacidad e ; pois que o certo é que
tive sempre muito pouca para estudar. Ao ler cada autor, tomei
por principio adoptar e seguir todas as suas ideias, sem as mis­
turar com as minhas ou com as dos outros, e nunca cijscutir
com ele. Dizia para comigo: Comecemos por armazenar ideias,
verdadeiras ou falsas, mas claras, e esperemos que a minha
cabeça esteja suficientemente aprovisionada para poder com­
pará-las e escolher. Este método tem os seus inconvenientes,
bem o sei, mas deu-me resultado quanto ao meu objectivo de
me instruir. Ao fim de alguns anos passados a não pensar exac­
tamente senão através dos outros, por assim dizer sem reflectir e
quase sem raciocinar, encontrei-me com um fundo de conheci­
mentos bastante grande para me bastar a mim mesmo, e pensar
sem o auxilio dos outros. Depois, quando as viagens e os quefaze­
res me tiraram os meios de consultar os livros, entretive-me a
rever e a comparar o que tinha lido, a pesar cada coisa na balança
da razão, e a julgar por vezes os meus mestres. Nem por haver
começado tarde a exercer a minha faculdade de julgamento
achei que esta tivesse perdido o seu vigor; e quando publiquei
as minhas próprias ideias, não me acusaram de ser um discípulo
servil e de jurar in verba magistri.

234
Dai passava à geometria elementar; pois nunca fui mais
longe, por teimar em querer vencer a minha fraca memória,
à força de voltar centos e centos de vezes sobre os meus passos
e querer recomeçar incessantemente o mesmo caminho. Não
gostei de Euclides, que procura mais o encadeamento das
demonstrações do que a ligação das ideias ; preferi a geometria
do P.e Lamy, que desde então se tornou um dos meus autores
predilectos, e cujas obras releio ainda com prazer. Seguia-se a
álgebra, e o IP.e Lamy foi sempre quem eu tomei por guia.
Quando me achei mais adiantado, agarrei na Ciéncia do cál­
culo, do P.e Reynaud, depois na Análise demonstrada, do mesmo,
que só vi pela rama. Nunca avancei suficientemente para per­
ceber bem a aplicação da álgebra à geometria. Nunca gostei
desta maneira de operar sem se ver o que se faz, e parecia-me
que resolver um problema de geometria por meio de equações
era o mesmo que tocar uma ária dando a uma manivela. Quando
achei pela primeira vez, por meio do cálculo, que o quadrado de
um binómio era composto pelo ,quadrado de cada um dos seus
termos, e do dobro do produto de um pelo outro, apesar da
justeza da multiplicação não o quis acreditar antes de ter feito
a figura. Não era que eu não gostasse grandemente da álgebra,
não considerando nela senão a quantidade abstracta; mas apli­
cada à extensão, queria ver a operação através das linhas; de
contrário, não compreendia nada.
Depois disto, vinha o latim. Era o estudo mais difícil, e no
qual nunca fiz grandes progressos. Atirei-me primeiramente ao
método latino do Port-Royal, mas sem resultado. Aqueles versos
bárbaros causavam-me vómitos, e não conseguiam entrar-me
no ouvido. Perdia-me naquela chusma de regras, e ao aprender
a última esquecia tudo o que ficava para trás. Um estudo de
palavras não é o que convém a um homem sem memória, e era
precisamente para forçar a minha a adquirir capacidade que
eu insistia em tal estudo. Por fim, tive de o abandonar. Com­
preendia suficientemente a construção para, com a ajuda de um
dicionário, poder ler um autor fácil. Segui este caminho, e
dei-me bem. Consagrei-me à tradução, não escrita, mas mental,
e fiquei por aí. A poder de tempo e de exercícios, acabei por
conseguir ler assaz correntemente os autores latinos, mas nunca
pude falar nem escrever esta língua ; o que frequentemente me
causou embar3iços quando, não sei como, me achei incluído
entre os homens de letras. Outro inconveniente, resultante
desta maneira de aprender, foi nunca saber a prosódia, e ainda
menos as regras da versificação. Desejando todavia sentir a

235
harmonia da lingua no verso e na prosa, fiz bastantes esforços
para o conseguir ; mas sem mestre, estou convencido ser tal
coisa quase impossível. Tendo aprendido a composição do mais
fácil dos versos, o hexâmetro, tive a paciência de escandir o
Virgílio quase todo, marcando-lhe os pés e a quantidade; depois,
quando tinha dúvidas sobre se uma silaba era longa ou breve,
ia consultar o meu Virgílio. Já se deixa ver que este método me
fazia cometer muitos erros, por causa das alterações permitidas
pelas regras da versificação. Se estudar sozinho tem vantagens,
tem também grandes inconvenientes, e dá sobretudo um trabalho
inacreditável. Sei-o melhor do que ninguém.
Antes do meio-dia largava os livros, e se o j antar não estava
pronto, ia visitar os meus amigos pombos, ou trabalhar no horto
à espera da hora. Quando ouvia chamarem por mim, corria­
satisfeitissimo e munido de um grande apetite ; porque há a
notar ainda que, por muito doente que esteja, o apetite nunca
me falta. Jantávamos com a melhor disposição, falando das
nossas coisas, até que Mamã pudesse comer, íamos, duas ou três
vezes por semana, quando o tempo estava bonito, tomar café nas
traseiras da casa, num recanto fresco e tufoso, que eu havia
guarnecido com lúpulo, e que nos agradava sobremodo quando
fazia calor ; passávamos ali uma horazita a visitar os nossos
legumes, as nossas flores, em conversas relativas à nossa
maneira de viver, que nos faziam apreciar melhor a sua doçura.
Tinha eu outra pequena família ao cabo do horto: eram as abe­
lhas. Nunca deixava de ir visitá-las, frequentemente na compa­
nhia de Mamã ; interessava-me muito observá-las a trabalhar,
divertindo-me imenso vê-las voltar da colheita, com as coxa­
zitas muitas vezes tão carregadas que lhes era difícil caminhar.
!Nos primeiros dias a curiosidade tornou-me indiscreto, e as
abelhas morderam-me duas ou três vezes ; mas depois viemos
a conhecer-nos tão bem, que, por muito perto que eu me che­
gasse, elas consentiam-no, e por muito cheios que estivessem
os cortiços prestes a largar o enxame, rodeavam-me muitas
vezes, poisando-me nas mãos e na cara, sem que nunca
nenhuma me picasse. Todos os animais desconfiam do homem,
e têm razão : uma vez, porém, convencidos de que lhes não
queremos fazer mal, a sua confiança torna-se tão grande que
é mister ser-se mais do que bárbaro para se abusar dela.
Voltava aos meus livros: as minhas ocupações da tarde
deviam, todavia, merecer menos o nome de trabalho e de estudo
do que o de recreação e entretenimento. Nunca pude suport'tr
a concentrUJção do meu gabinete depois de jantar, e em geral

236
qualquer esforço durante as horas de calor é-me penivel. Entre­
tinha-me, pois, sem me forçar e quase sem método, a ler sem
estudar. O que mais exactamente seguia era a história e a geo­
grafia, e como estas não exigiam nenhuma contenção de espí­
rito, progredi nelas tanto quanto a minha fraca memória o
permitia. Quis estudar o P.e Pétau, e mergulhei nas trevas da
cronologia ; mas desgostei-me da sua parte critica, que não tem
por onde se lhe pegue, e dediquei-me de preferência à medição
exacta dos tempos e à marcha dos corpos celestes. Ter-me-ia
mesmo interessado pela astronomia se possuísse aparelhos,
mas tive de me contentar com alguns elementos colhidos nos
livros, e com algumas grosseiras observações feitas com um
óculo de alcance, só para conhecer a situa;ção geral do céu, pois
que a minha vista curta não me permite distinguir com bas­
tante nitidez os astros a olho nu. A este propósito lembro-me
de uma aventura cuja recordação muitas vezes me fez rir. Tinha
eu comprado um planisfério celeste para estudar as constela­
ções. Havia montado o planisfério num caixilho; e, nas noites
de céu limpo, descia ao j ardim e punha o caixilho sobre quatro
estacas da minha altura, com o planisfério voltado para baixo,
e, para o alumiar sem que o vento me apagasse a vela, pu-la
num balde para a terra entre as quatro estacas; depois
olhando alternadamente o planisfério com os olhos e os astros
com o óculo, exercitava-me a conhecer as estrelas e a discernir
as constelações. Parece-me haver dito que o j ardim de Monsieur
Noiret era em terrado; do caminho via-se tudo o que ali se
fazia. Uma noite, bastante tarde, alguns campónios ao pas­
sarem viram-me numa grotesca indumentária entretido naquela
operação. A claridade que alumiava o planisfério e cuja causa
eles não viam porque os bordos do balde lhes encobriam a luz,
aquelas quatro estacas, aquele grande papel gatafunhado de
figuras, aquele caixilho, assim como o manejo do óculo, que
viam ir e vir, davam a esta visão um aspecto de mágica que os
aterrorizou. A minha indumentária não era de molde a tran­
quilizá-los: um chapéu desabado por cima do barrete, e um
casibeque acolchoado de Mamã que ela me obrigara a vestir,
ofereciam aos olhos a imagem de um verdadeiro bruxo, e como
era quase meia-noite, não duvidaram que aquilo fosse o começo
do sabat. Com pouca curiosidade de ver o resto, fugiram alarma­
díssimos, acordaram os vizinhos para lhes contarem a visão, e a
história correu tão depressa, que logo no dia seguinte toda a
gente sabia que em casa de Monsieur Noiret se celebrava o sabat.
Não sei que resultado dariam por fim estes rumores, se um dos

237
camponeses que havia sido testemunha dos meus esconjuras não
tivesse nesse mesmo dia feito as suas queixas a dois j esuítas
que nos vinham visitar, e que, sem saber do que se tratava, os
desenganaram entretanto. Estes contaram-nos a história ; eu
contei-lhes o caso, e rimo-nos todos bastante. No entanto,
temendo a reincidência, resolveu-se que doravante eu fizesse as
observações sem luz, indo consultar o planistério em casa. Os que
nas Cartas da Montanha leram a minha mágica de Veneza, com
certeza acharão que eu de longa data tinha grande vocação
para bruxo.
Tal era a vida que levava nas Charmettes quando me não
achava ocupado com quaisquer serviços rurais; porque estes
eram os que preferia, trabalhando eu como um aldeão naquilo
que não era superior às minhas forças ; a verdade, porém, é que
a minha extrema fraqueza só me concedia então neste artigo
o mérito da boa vontade. Aliás, queria fazer duas obras ao
mesmo tempo, e por esta razão não fazia nenhuma como devia
ser. Tinha-se-me metido na cabeça arranjar memória à força ;
teimava em querer aprender muitas coisas de cor. Com este
fito, trazia sempre comigo um livro qualquer, que com uma
incrível dificuldade ia estudando e revendo enquanto ia traba­
lhando. Não sei como é que obstinando-me nestes vãos e cons­
tantes esfoDços me não tornei por fim estúpido. Devo ter
aprendido e reaprendido bem vinte vezes as églogas de Virgílio,
de que não sei uma só palavra. Perdi ou desirmanei uma quan­
tidade de livros graças ao hábito que tinha de levá-los comigo
para toda a parte, para o pombal, para o horto, para o pomar,
para a vinha. Absorvido com outras coisas, punha o livro ao
pé de uma árvore ou em cima de uma sebe ; fosse onde fosse,
esquecia-me dele, e encontrava-o muitas vezes, ao fim de quinze
dias, podre ou roído pelas formigas e pelos caracóis. Esta fúria
de aprender transformou-se numa mania que quase me fazia
parecer idiota, de tal modo me achava sempre inteiram�nte
ocupado a resmungar qualquer coisa entre dentes.
Os escritos do Port-Royal e do Oratório, que eram os que
eu mais frequentemente lia, tinham-me feito semijansenista,
e apesar de toda a minha confiança, a sua severa teologia
aterrava-me por vezes. O terror do inferno, que até então pouco
temera, perturbava um pouco a minha calma, e se Mamã me
não tivesse tranquilizado, essa terrível doutrina ter-me-ia trans­
tornado inteiramente. O meu confessor, que o era também dela,
contribuía por seu lado para me conservar a boa disposição do
espírito. Era o P.e Hémet, jesuíta, bom e sensato velhinho, cuja

238
memória venerarei sempre. Posto que jesuíta, tinha a simplici­
dade de uma criança, e a sua moral, não tanto frouxa como
doce, era precisamente aquilo de que eu necessitava para equi­
librar as tristes impressões do Jansenismo. Este bonachão e o
seu companheiro, o P.e Coppier, vinham frequentemente visitar­
-nos às Charmettes, apesar do caminho ser mau e estirado para
pessoas da sua idade. As suas visitas faziam-me muito bem :
que Deus queira pagá-lo às suas almas, porque já eram nessa
altura bastante velhos para que os possa supor ainda em vid<t.
Eu também os ia visitar a Chambéri; a pouco e pouco familiari­
zei-me com a casa ; a sua biblioteca estav!l às minhas ordens ;
a lembrança deste tempo feliz associa-se em mim ao dos jesuí­
tas, a ponto de me fazer amar um gr31ças ao outro, e se bem
que a sua doutrina me tenha sempre parecido perigosa, nunca
pude achar em mim força para os odiar sinceramente.
Desejaria saber se pelo coração dos outros homens passam
por vezes puerilidades como as que frequentemente passam pelo
meu. No meio dos meus estudos e de uma vida tão inocente
quanto é possível levá-la, e apesar de tudo o que me haviam
dito, o medo do inferno perturbava-me ainda. Frequentemente
perguntava a mim mesmo : Em que estado me encontro eu?
Se morresse neste momento, seria condenado às penas eternas?
Segundo os jansenistas, a coisa era indubitável, mas segundo a
minha consciência, parecia-me que não. Sempre temeroso, e
vacilando nesta cruel incerteza, recorria, para sair dela, aos
mais ridículos expedientes, que de boa vontade me levariam a
enclausurar um homem se o visse fazer a mesma coisa. Um
dia, meditando neste triste assunto, exercitava-me maquinal­
mente a atirar pedras ao tronco das árvores, e isto com a minha
perícia ordinária, quer dizer, quase sem atingir nenhuma.
Mesmo no meio deste belo exercício, lembrei-me de fazer para
mim próprio uma espécie de prognóstico, para acalmar a minha
inquietação. Disse para comigo: Vou atirar com esta pedra
à>quela árvore que ali está em frente; se a atinjo, é sinal d e
salvação ; s e falho, é sinal de condenação. Enquanto tal dizia,
atiro a pedra com mão trémula e com um horrível baque do
cor31ção, mas com tanta felicidade que a pedra bate mesmo no
meio da árvore ; o que na verdade não ·era difícil, pois que
tivera o cuidado de escolher uma bastante grande e bastante
perto. Desde então nunca mais duvidei da minha salvação. Ao
lembrar-me deste episódio,. não sei se deva rir se chorar de
mim mesmo. Vós outros, grandes homens, que certamente rides,

239
felicitai-vos; mas não insulteis a minha miséria, porque eu vos
juro que a sinto bem.
Estas perturbações, estes alarmes, inseparáveis porventura
da devoção, não eram, aliás, um estado l)€rmanente. De ordinário,
achava-me bastante calmo, e a impressão que a ideia de uma
morte próxima despertava na minha alma era não tanto uma
impressão de tristeza como de um tranquilo deperecimento,
que até tinha as suas doçuras. Acabo de encontrar entre os meus
velhos papéis uma espécie de exortação que a mim mesmo diri­
gia, e na qual me felicitava por morrer na idade em que acha­
mos bastante coragem em nós próprios para enfrentar a morte,
e sem haver experimentado durante a minha vida grandes males,
nem de corpo, nem de espírito. Como tinha inteira razão! Um
pressentimento fazia-me recear viver para sofrer. Parecia que
previa a sorte que me esperava no fim dos meus dias. Nunca
estive tão perto da sabedoria como nessa feliz época. Sem grandes
remorsos acerca do passado, liberto das preocup�ções do futuro,
o sentimento constantemente dominante da minha alma era o
de gozar o presente. Os devotos têm ordinàriamente uma sen­
sualidadezita muito viva que lhes faz saborear com delícias os
prazeres inocentes que lhes são permitidos. Os mundanos consi­
deram isso um crime, não sei porrquê, ou antes, sei-o bem : é
porque invejam nos outros o gozo dos prazeres simples de que
eles próprios perderam o gosto. Este gosto tinha-o eu, e achava
encantador satisfazê-lo com a consciência tranquila. O meu
coração, ainda moço, entregava-se a tudo com um prazer de
criança, ou antes, se assim ouso dizê-lo, com uma volúpia de
anj o : porque em verdade estas tranquilas voluptuosidades têm
a serenidade das do paraíso. Jantares no campo, em Monta­
gnole, ceias no caramanchão, a apanha da fruta, as vindimas,
os serões a gramar o linho com o pessoal, tudo isto constituía
para nós outras tantas festas, nas quais Mamã sentia tanto
prazer como eu. Os passeios mais solitários tinham um encanto
ainda maior, porque o coração expandia-se com mais liberdade.
Entre outros, demos um que marca 1,1ma época na minha memó­
ria, no dia de S. Luís, patrono de Mamã. Partimos juntos e sós
de manhãzinha, depois da missa que um carmelita tinha vindo
dizer ao roml)€r do dia, numa cal)€la contígua à casa. Eu
propusera que fôssemos l)€rcorrer a encosta oposta àquela em
que nos achávamos e que ainda não havíamos visitado. Tinha­
mos enviado as provisões ad,iante, porque a caminhada devia
durar todo o dia. Mamã, apesar de ser um bocado roliça e gorda,
não andava mal: íamos de colina em colina e de bosque em

240
bosque, algumas vezes ao sol e frequentemente à sombra, des­
cansando de quando em quando, e esquecendo-nos horas intei­
ras ; conversando a respeito de nós, da nossa união, da doçura
da nossa sorte, e fazendo pela sua duração votos que não foram
ouvidos. Tudo parecia conspirar para a felicidade deste dia.
Chovera há pouco ; não havia poeira alguma, e os ribeiros iam
cheios; um ventinho fresco agitava as folhas, o ar estava puro,
o horizonte sem nuvens, no céu assim como nos nossos corações
reinava a serenidade. Fizemos o nosso j antar em casa de um
aldeão, partilhando-o com a família;, que nos abençoava de
boamente. Estes pobres saboianos são tão boas pessoas ! Depois
do jantar, recolhemo-nos à sombra de umas grandes árvores,
e aí, enquanto eu juntava uns pedaços de lenha para fazer o
café, Mamã entretinha-se a herborizar entre as moitas, e, com
as flores do ramo que no caminho eu lhe havia feito, chamou-me .
a atenção para mil coisas curiosas da sua estrutura, que muito
me divertiram e que deviam despertar em mim o gosto pela
botânica; a ocasião, porém, ainda não tinha chegado, eu andava
entretido com uml:l_ quantidade de outros estudos. Uma ideia
que me acudiu distraiu-nos das flores e das plantas. O estado
de alma em que me encontrava, tudo o que havíamos dito e
feito nesse dia, todos os objectos que me haviam impressionado,
trouxeram-me à lembrança a espécie de sonho que, sete ou oito
anos antes, eu havia tido em Annecy perfeitamente acordado,
e que na sua devida altura relatei. A correspondência entre as
duas coisas era tão impressionante, que ao pensar no caso
comovi-me até às lágrimas. !Num rapto de ternura abracei a
amiga querida, dizendo-lhe arrebatadamente : Mamã, Mamã,
este dia estava-me prometido desde há muito, e para além
dele nada vejo. Graças a vós, a minha felicidade toca o auge ;
possa ela não declinar de hoje para o futuro! Possa ela durar
enquanto durar o prazer 'que me dais ! Só acabará comigo.
Assim deslizaram felizes os meus dias, e tanto mais felizes
quanto era certo que, nada vendo que pudesse perturbá-los,
considerava que só com o meu fim terminariam. Não é que a
fonte dos meus cuidados tivesse estancado inteiramente ; mas
via-a seguir outro curso, que eu dirigia o melhor que podia
sobre objectivos úteis, a fim de que com ela levasse o seu próprio
remédio. Mamã amava naturalmente o campo, e este amor não
esfriava comigo. A pouco e pouco adquiriu o dos cuidados rurais ;
gostava de fazer render as terras ; e tinha sobre o assunto conhe­
cimentos que utilizava com prazer. Não contente com o que
dependia da casa que havia tomado, alugava ora um campo,

16 241
ora um prado. Enfim, transferindo o seu feitio empreendedor
para os objectivos agrícolas, em lugar de permanecer inactiva
em casa, estava em vias de se transformar numa grande lavra­
dora. Eu não gostava muito de a ver assim multiplicar-se, opon­
do-me a isso tanto quanto podia, absolutamente convicto de
que a enganariam sempre, e que o seu feitio liberal e pródigo
tornaria sempre a despesa maior do que a receita. Consolava-me,
todavia, pensando que ao menos esta receita não seria nula e
a ajudaria a viver. De todos os empreendimentos que Mamã
podia organizar, este parecia-me o menos ruinoso, e, ao con­
trário dela, sem nele ver um objecto de lucro, considerava-o
uma ocupação constante, que a livrava dos maus negócios e dos
vigaristas. Nesta ideia, desejava ardentemente recobrar tanta
forç a e saúde quanta a que me era necessária para vigiar os seus
negócios, para me fazer seu capataz, ou o seu principal traba­
lhador, e naturalmente o exercício a que tal coisa me obrigava,
arrancando-me com frequência aos livros e distraindo-me do
meu estado de saúde, devia contribuir para o melhorar.
No Inverno seguinte, Barillot, ao regressar da Itália, trou­
xe-me alguns livros, entre os quais o Bontempi e a Cartella
per musica, do P.e Banchieri, que me afeiçoaram à história da
música e às investigaJções teóricas desta arte. Barillot ficou
algum tempo ·connosco, e como havia alguns meses que eu
atingira a maioridade 1, assentou-se em que na Primavera pró­
xima iria a Genebra reclamar a herança de minha mãe ou ao
menos a parte que me cabia, enquanto se não sabia o que era
feito de meu irmão. O plano realizou-se como houvera sido
resolvido. Fui a Genebra, e por seu lado meu pai foi lá também.
Há muito que aparecia na cidade sem que o incomodassem,
embora a sua pena não tivesse expirado, mas como estimavam
a sua coragem e respeitavam a sua probidade, fingiam ter esque­
cido a questão ; e os magistrados, ocupados com o grande pro­
j ecto que estalou pouco depois, não queriam assustar antes de
tempo a burguesia, lembrando-lhe fora de propósito a sua antiga
parcialidade.
Temia que houvesse dificuldades por causa da minha
mudança de religião ; não houve nenhuma. A este respeito, as
leis de Genebra são menos severas que as de Berna, onde todo
aquele que muda de religião perde não só estado, como
bens. Os meus não me foram por conseguinte disputados, mas,
não sei como, deu-se o caso de se encontrarem reduzidos a muito

1 25 anos. - N. do T.

242
pouca eoisa. Se bem que houvesse quase a certeza de que meu
irmão tinha morrido, faltava a prova jurídica. A mim falta­
vam-me os títulos suficientes para reclamar a parte dele, e.
deixei-a sem pena para ajudar a viver meu pai, que gozou dela
enquanto viveu. Logo que as formalidades judiciais terminaram
e eu recebi o meu dinheiro, gastei uma parte em livros, e voei
para ir depor o resto aos pés de Mamã. Durante a viagem, o
coração pulava-me de alegria, e o momento e m que depositei
este dinheiro nas suas mãos foi para mim mil vezes mais doce
do que aquele em que o senti nas minhas. Mamã recebeu-o
com aquela simplicidade das almas boas, que, fazendo estas
coisas sem esforço, as vêem sem admiração. O dinheiro foi quase
todo gasto em meu proveito, e isto com a mesma simplicidade.
Teria sido exactamente gasto da mesma maneira se tivesse vindo
doutro lado.
Entretanto, a minha saúde não havia maneira de se
restabelecer; ao contrário, enfraquecia a olhos vistos ; encon­
trava-me pálido como um morto e magro como um esqueleto ;
as pulsaJções das artérias eram terríveis, as palpitações mais
frequentes ; sentia-me continuamente oprimido, e por fim a
minha fraqueza aumentou tanto, que só com dificuldade me
movia ; não podia apressar o passo sem sufocar, não podia bai­
xar-me sem ter vertigens, não podia levantar o mais leve peso ;
para um homem tão remexido como eu, estava reduzido à mais
torturante inacção. Ê certo que a tudo isto se misturavam muitos
fumos. Os fumos são a doença das pessoas felizes ; eram a minha :
as lágrimas que frequentemente vertia sem razão alguma para
chorar, os violentos terrores motivados pelo ruído de uma folha
ou de uma ave, a desigualdade de humor no meio da paz da
mais doee vida, tudo isto denotava aquele tédio do bem-estar
que faz por assim dizer delirar a sensibilidade. Somos tão pouco
feitos para gozarmos a felicidade cá na terra, que é forçosa­
mente necessário ,que a alma ou o corpo sofram quando não
sofrem ambos, e que o perfeito estado de um prejudique quase
sempre o outro. Quando poderia gozar deliciosamente a vida,
a decadência da minha máquina impedia-mo, sem que se
pudesse dizer onde estava verdadeiramente a sede do mal. Mais
tarde, apesar do declínio dos anos e de males bem reais e bem
graves, o c orpo parece-me ter recobrado forças para sentir
melhor as desgraças, e agora que isto escrevo, doente e quase
sexagenário, acabrunhado por dores de toda a espécie, sinto
em mim mais vigor e vida para sofrer do que senti para gozar

243
quando me achava na flor da vida e no seio da mais verdadeira
felicidade.
Para cúmulo, como havia incluído nas minhas leituras
um pouco de fisiologia, pus-me a estudar anatomia, e pas­
sando revista à multidão e ao jogo das pe,ças que compunham
a minha máquina, esperava sentir desarranjar-se-me tudo isto
vinte vezes ao dia : longe de me admirar por me encontrar ago­
nizante, admirava-me antes de que me encontrasse vivo, e não
lia a descrição de uma doença sem crer que era a que eu tinha.
Estou convencido de que se não tivesse estado d:oente, viria a
adoecer, graças a este fatal estudo. Achando em cada doença
sintomas da minha, julgava tê-las todas, e ainda por cima
adquiria uma ainda mais cruel de que me julgava livre, a fan­
tasia de me curar : é uma doença difícil de evitar quando nos
pomos a ler livros de medicina. A for,ça de procurar, de reflectir,
de comparar, estava em acreditar que a base do meu mal era
um pólipo no coração, e o próprio Salomon pareceu impressio­
nado com esta ideia. Razoàvelmente, devia eu partir desta opi­
nião para me confirmar na resolução precedente. Não procedi
assim. Retesei todas as molas do espírito para procurar como é
que nos podemos curar de um pólipo no coração, resolvido a
empreender esta maravilhosa cura. Numa viagem que Anet
fizera a Montpellier para ver o Jardim Botânico e o demonstra­
dor, Monsieur Sauvage, disseram-lhe que Monsieur Fizes tinha
curado um pólipo semelhante. Mamã lembrou-se disso e c omuni ­

cou-mo. Não foi preciso mais para me inspirar o desejo de Jr


consultar Monsieur Fizes. A esperança de me curar fez-me achar
coragem e forças para empreender a viagem. O dinheiro pro­
veniente de Genebra forneceu-me os meios necessários. Longe
de me desviar do meu projecto, Mamã exortou-me a que o rea­
lizasse, e eis-me a caminho de Montpellier.
Não tive necessidade de ir tão longe para encontrar o médico
de que necessitava. Como o cavalo me fatigava muito, em
Grenoble tomei uma cadeirinha. Em Moirans, chegou uma ;fila
de cinco ou seis cadeirinhas depois da minha. Desta feita era
verdadeiramente a aventura das macas. A maioria das cadei­
rinhas formavam o cortejo duma recém-casada chamada
Madame du Colombier. Com esta, achava-se uma outra mulher,
chamada Madame de Larnage, não tão nova nem tão bela como
Madame du Colombier, mas não menos gentil, e que de Romans

onde aquela ficava, devia seguir viagem até ao CBourg-Saint
··Andiol, perto do Pont-Saint-Esprit. Com a timidez que me
conhecem, calculam já que não travei imediatamente conheci-

244
mento com as brilhantes damas e a comitiva que as cercava;
por fim, contudo, seguindo nós o mesmo caminho, hospedando­
-nos nos mesmos albergues, e, sob pena de passar por um
lobisomem, for,çado a sentar-me à mesma mesa, não tive outro
remédio senão travar tal ·conhecimento. Este fez-se, pois, e até
mais cedo do que eu desejaria ; porque todo este barulho não
convinha muito a um doente, e sobretudo a um doente do meu
feitio. Mas a curiosidade torna as velhacas das mulheres tão
insinuantes, que, para alcançarem conhecer um homem, come­
çam por lhe dar volta ao miolo. Assim sucedeu comigo. Madame
du Colombier, inteiramente rodeada dos seus luluzitos, não tinha
muito tempo para me provocar, e, aliás, não valia a pena fazê-lo,
porque nos íamos separar ; mas Madame de Larnage, menos
assediada, tinha de arranjar provisões para a viagem. Eis
Madame de Larnage a perseguir-me, e adeus pobre Jean Jacques,
ou antes, adeus febre, fumos, pólipo ; tudo desaparece ao pé dela,
excepto certas palpitações ·que me ficaram e de que ela não
queria curar-me. O mau estado da minha saúde constituiu o
primeiro texto das nossas relações. Via-se que eu estava doente,
sabia-se que ia a Montpellier, e necessário era que o meu aspecto
e as minhas maneiras não denunciassem em mim um debo­
chado, visto que em seguida se tornou claro não haverem suposto
que eu ia ali para me tratar de doença vergonhosa.
Se bem que para um homem o estado de doença não sej a
uma grande recomendaJção junto das damas, aos olhos destas
tornou-me, contudo, interessante. De manhã, mandavam saber
notícias minhas e convidar-me para tomar o chocolate na sua
companhia; informavam-se de como havia passado a noite.
Certa vez, segundo o meu louvável costume de falar sem pensar,
respondi que não sabia. Tal resposta levou-as a suporem-me
louco ; examinaram-me melhor, e o seu exame não me foi pre ­
j udicial. Uma vez, ouvi Madame du Colombier dizer à amiga: Não
tem maneiras, mas é gentil. Estas palavras tranquilizaram-me
grandemente, e fizeram com que de facto me resolvesse a sê-lo.
Ao relacionarmo-nos, necessário er� falar de nós, dizer
donde vínhamos, quem éramos. Isto atrapalhava-me ; sentia
perfeitamente que, entre gente de boa sociedade, e com mulheres
galantes, a palavra de récem-convertido ia-me matar. Não se�
por que extravagância me fiz passar por inglês, dei-me por
j acobita, e como tal me tomaram ; disse que me chamava
Dudding; chamaram-me Monsieur Dudding. O maldito de um
tal marquês de Torignan que ali se achava, doente como eu,
velho ainda por cima e de muito mau humor, lembrou-se de

245
travar conversa com Monsieur Dudding. Falou-me do rei Jaime,
do pretendente, da antiga corte de Saint-Germain. Estava sobre
brasas : de tudo aquilo só sabia o pouco que havia lido do conde
Hamilton 1 e nos jornais ; no entanto, este pouco utilizei-o tão
bem, ,que me livrei de atrapalhações : feliz por não se lembrarem
de me interrogar a respeito da língua inglesa, de que não sabia
uma só palavra.
Toda a sociedade se dava bem, e via com pena o momento
de se separar. As nossas jornadas eram de caracol. Num domingo
achámo-nos em Saint-Marcelin. Madame de Larnage quis ir à
missa, e eu fui com ela: tal coisa esteve a ponto de estragar-me
o negócio. Comportei-me como sempre. A minha atitude sim­
ples e recolhida fê-la supor que eu era devoto, levando-a a ter
de mim a pior opinião do mundo, como me confessou dois dias
depois. Foi-me necessário em seguida mostrar-me extremamente
galante para desfazer esta má impressão; ou antes, Madame de
Lamage, como mulher experimentada e que não desistia fàcil­
mente, quis de bom grado correr os riscos de se adiantar ela
própria, para ver como eu me sairia da coisa. Adiantou-se tanto
e de tal maneira, que muito longe de presumir da minha figura,
julguei antes que ela me desfrutava. Não houve espécie alguma
de asneira que eu não fizesse por conta desta loucura ; era pi.or
que o marquês de O Legado 2• Madame de Larnage persistiu
na sua, fez-me tantas negaças e disse-me coisas tão ternas, que
um homem muito menos idiota dificilmente levaria tudo isto
a sério. Quanto mais ela fazia, mais eu me agarrava à minha
ideia, e o que mais me atormentava era que afinal de contas
me apaixonava verdadeiramente. Dizia-o para comigo mesmo, e
dizia-lho a ela suspirando : Ah ! porque não é tudo isto ver­
dade ! Seria o mais feliz dos homens. Creio que a minha sim­
plicidade de noviço não fez mais que excitar-lhe a fantasia ; não
quis ter disso o desmentido.
Tínhamos deixado em Romans Madame du Colombier e
a sua comitiva. Madame de Larnage, o marquês de Torignan e
eu continuámos o nosso caminho com a maior lentidão e o maior
agrado possível. Apesar de doente e resmungão, o marquês era
uma excelente pessoa, mas que não gostava que ninguém lhe
fizesse sombra. Madame de Larnage escondia tão mal a predi­
lecção que tinha por mim, que ele descobriu-a mesmo antes

1 Fidalgo irlandês, autor das Memórias da vida do cavaleiro de Gram­


mont, escritas em França, onde acompanhara os Stuart. - N. do T.
2 comédia de Marivaux. - N. do T.

246
de mim; e os seus maliciosos sarcasmos deveriam dar-me ao
menos a confiança que eu não ousava ganhar com as bondades
da dama, se, graças a uma singularidade de espírito de que só
eu era capaz, não se me tivesse metido na cabeça que eles se
entendiam os dois para caçoarem de mim. Esta tola ideia acabou
de me transtornar o miolo, e fez-me fazer a mais sensaborona
figura numa situação em que o meu coração, realmente infla­
mado, me poderia ter ditado outra bem mais brilhante. Não
concebo como é que Madame de Larnage não se aborreceu com
a minha falta de graça, e não me despediu com o último dos
desprezos. Era, contudo, uma mulher de e spírito, que sabia dis­
tinguir a sua roda, e que via perfeitamente haver mais tolice
do que frieza no meu proceder.
Conseguiu por fim fazer-se compreender, o que teve a sua
dificuldade. Tínhamos chegado a Valence para j antar, e,
segundo o nosso louvável costume, passámos ali o resto do dia.
Hospedámo-nos fora da cidade, em Saint-Jacques; recordar­
-me-ei sempre da pousada, assim como do quarto que Madame
de Larnage ocupava. Depois do j antar, quis ela dar um passeio :
sabia que Monsieur de Torignan não era andarilho; seria o pro­
cesso de arrwnjar uma entrevista a sós e da qual havia resolvido
tirar partido, visto que não havia tempo a perder se o queríamos
aproveitar. Demos uma volta à cidade ao longo dos fossos. Repe­
ti-lhe a longa história das minhas lamentações, a que ela respon­
deu num tom de tal ternura, apertando-me por vezes contra o
coração o braço que me agarrava, que era necessário uma estu­
pidez como a minha para verificar se ela falava a sério. O que
havia de impagável na cena era que eu próprio me achava
excessivamente emocionado. Já disse que Madame de Larnage
era gentil: o amor tornava-a encantadora; restituía-lhe todo o
viço da primeira mocidade, e conduzia as suas provocações com
tanta arte, que seria capaz de seduzir um homem experimen­
tado. Encontrava-me por conseguinte pouco à vontade e sem­
pre à espera de me poder escapar; mas o receio de ofender ou
de desagradar, o terror ainda maior de ser apupado, assobiado,
ridicularizado, de fornecer uma história para se contar à mesa,
e de receber os cumprimentos do impiedoso Torignan a respeito
das minhas conquistas, retiveram-me a ponto de me sentir
indignado comigo mesmo pela idiotice do meu pudor, e por não
poder vencê-lo censurando-me a mim próprio. Passava torturas:
tinha abandonado j á as minhas falas de Céladon 1 , que sentia
1 Personagem da Astreia, romance de Urfé, o qual simboliza a cons­
tância e a timidez no amor. - N. do T.

247
totalmente ridículas em tão bela via : e sem saber j á que atitude
tomar, nem que dizer, calava-me ; parecia enfadado, fazia, enfim,
tudo o 'que era preciso para chamar sobre mim o tratamento
que havia receado. Felizmente, Madame de Larnage tomou uma
decisão mais humana. Interrompeu bruscamente o silêncio,
lançando-me um bra;ço à roda do pescoço, e imediatamente a
sua boca falou com suficiente clareza na minha para me poder
deixar na dúvida. A crise não podia vir mais a propósito. Tor­
nei-me amável. Já era bem tempo. Madame de Larnage dera-me
aquela confiança cuja privação me impediu quase sempre d�
ser eu. Fui-o nessa altura. Nunca os meus olhos, os meus senti­
dos, o meu coração e a minha boca falaram tão bem; nunca eu
reparei mais plenamente os meus erro s ; e se esta pequena con­
quista havia custado as suas dificuldades a Madame de Larnage,
tenho razões para crer que não as lastimou.
Ainda que viva cem anos, nunca me lembrarei sem pra­
zer desta encantadora mulher. Digo encantadora, embora ela não
fosse nem bonita nem nova ; mas como também não era nem
feia nem velha, nada tinha na figura que obstasse a que o seu
espírito e as suas graças produzissem o seu efeito. Muito ao
contrário das outras mulheres, o que tinha menos fresco era
o rosto, e creio que o vermelhão lho tinha estragado. Tinha as
suas razões para se mostrar fácil ; era o meio de merecer tudo
o que valia. Podíamos vê-la sem a amar, mas não possui-la sem
a adorar. E isso prova, parece-me a mim, que ela nem sempre

era tão pródiga das suas bondades como o foi comigo. Tinha-se
apaixonado com demasiada rapidez e com demasiada vivacidade
para se poder desculpar, mas na sua paixão o coração contava
pelo menos tanto como os sentidos ; e durante o breve e deli­
cioso tempo que passei junto dela sou levado a crer, pelas
cautelas forçadas que me impunha, que, embora sensual e volup­
tuosa, preferia ainda assim a minha saúde aos seus prazeres.
O nosso entendimento não passou despercebido ao marquês
de Torignan. Nem por isso deixou de me atentar ; pelo contrário,
tratava-me mais do que nunca como um pobre namorado enco­
lhido, vitima dos rigores da sua dama. Nunca deixou escapar uma
palavra, um sorriso, um olhar que me levassem a suspeitar de
que nos havia descoberto, e julgaria que o tínhamos enganado,
se Madame de Larnage, que via mais do. que eu, não me hou­
vesse dito que não, e que o marquês era apenas um homem
galante; e, com efeito, não se poderia ter intenções mais hones­
tas, nem procedimento mais cortês do que o que ele mostrou
sempre, mesmo para comigo, apesar dos gracejos, sobretudo

248
depois do meu sucesso. Talvez que me atribuísse essa honra,
supondo-me menos idiota do que o havia parecido. Enganava-se,
como se viu : mas não importa, eu aproveitava-me do seu erro,
e é verdade que como as aparências eram por mim, eu dava
de boamente e com muito gosto o flanco aos seus epigramas,
ripostando-lhe mesmo algumas vezes com bastante felicidade,
todo ancho por me honrar junto de Madame de Larnage com
o espírito que ela me havia dado. !Não era já o mesmo homem.
Estávamos numa região e numa época em que se comia
bem ; por toda a parte o fazíamos, graças aos bons cuidados de
Monsieur de Torignan. Dispensaria contudo que os estendesse
até aos nossos quartos, mas ele mandava à frente um lacaio
para os reservar, e o velhaco, ou por sua iniciativa, ou por ordem
do patrão, instalava-o sempre ao lado de Madame de Larnage,
desterrando-me a mim para a outra extremidade da casa. Tal
coisa, contudo, não me embaraçava muito, e as nossas entre­
vistas não deixavam por isso de ser mais sedutoras. Esta vida
deliciosa durou quatro ou cinco dias, durante os quais eu me
fartei, me embriaguei com as mais doces voluptuosidades.
Goz·ei-as puras, vivas, sem mistura de qualquer desgosto : são
as primeiras e únicas que assim gozei, e posso dizer que devo
a Madame de Larnage não haver morrido sem conhecer o
prazer.
Se o que sentia por ela não era precisamente amor, retri­
buía-lhe ao menos com tal ternura aquele de que ela me dava
provas, punha uma sensualidade tão ardente no prazer, e uma
intimidade tão doc·e nas conversas, que fazia com que atingís­
semos todo o encanto da paixão sem aquele delírio que trans-
. torna a cabeça e faz com que se não saiba gozar. Só uma vez
na vida senti o verdadeiro amor, e não foi ao pé dela. Também
não a amava como tinha amado e como amava Madame de Wa­
rens ; mas era por isso mesmo que a sua posse era cem vezes
melhor. Junto de Mamã, o meu prazer era sempre perturbado por
um sentimento de tristeza, por uma secreta angústia do coração
que não conseguia dominar sem desgosto ; em vez de me felicitar
por a possuir, censurava-me por a aviltar. Ao contrário, junto
de Madame de Larnage, orgulhoso de ser homem e de ser feliz,
entregava-me aos meus sentidos com alegria, com c onfiança;
compartilhava a impressão que despertava nos dela; estava
suficientemente em mim para contemplar com tanta vaidade
como volúpia o meu triunfo e para dele tirar com que o redobrar.
Não me recordo do sitio onde deixámos o marquês de
Torignan, que era da região, mas antes de chegar a Montéli-

249
mart achámo-nos sós, e a partir desse momento Madame de
Larnage instalou a criada de quarto na minha cadeirinha e eu
passei para a dela para lhe fazer companhia. Posso afirmar
que desta maneira a viagem não nos aborreceu, e eu teria bas­
tante dificuldade em dizer como era a região que percorríamos.
Tinha em Montélimart afazeres que a retiveram ali três dias,
durante os quais, todavia, só me largou obra de um quarto de
hora para fazer uma visita que lhe valeu lamentáveis aborreci­
mentos e alguns convites que teve o cuidado de não aceitar.
Alegou que se sentia incomodada, o que todavia nos não impediu
de todos os dias passearmos sozinhos um com o outro na mais
bela região e deba�o do mais belo céu do mundo� Oh ! estes
três dias ! Algumas vezes os lembrei com saudade, nunca mais
tive outros iguais.
Os amores em viagem não são feitos para durar. Houve que
nos separarmos, e confesso que já era tempo, não porque esti­
vesse farto, nem a ponto disso, pois que cada dia me afeiçoava
mais; mas, apesar de toda a discrição da dama, não me res­
tava mais do que a boa vontade, e, antes de nos separarmos,
quis ir até onde podia, o que ela tolerou como precaução contra
as moças de Montpellier. Iludimos as nossas mágoas com pro­
jectos de nos voltarmos a ver. Visto que este regime me fazia
bem, decidiu-se que o aplicaria, e que iria passar o Inverno ao
Bourg-Saint-Andiol, sob a direcção de Madame de Larnage.
Apenas devia ficar cinco ou seis semanas em Montpellier, para
lhe dar tempo a arranjar as coisas de maneira a evitar as más
línguas. Deu-me largas instruções sobre o que devia saber, sobre
o que devia dizer, sobre o modo como me devia comportar. No
entrementes, devíamos escrever-nos. Falou-me bastante e muito
a sério dos cuidados a tomar com a minha saúde ; exortou-me
a que consultasse pessoas capazes, a que prestasse muita atenção
ao que me prescrevessem, e encarregou-se de enquanto esti­
vesse ao pé dela me fazer cumprir as prescrições médicas, por
muito severas que estas fossem. Creio que falava com sinceri­
dade, visto amar-me, do que me deu mil provas mais seguras
do que os favores. Pela minha bagagem julgou que eu não nadava
na opulência; embora também não fosse rica, quis, quando nos
separámos, obrigar-me a compartilhar da sua bolsa, que trazia
bem recheada de Genebra, e só a custo a dissuadi de tal
coisa. Enfim, separámo-nos, eu com o coração transbordante
dela, e ela, ao que me parece, com uma grande afeição por mim.
Acabei a viagem recomeçando-a com as recordações que
dela tinha, e desta feita bem contente por me achar numa boa

250
cadeirinha e aí poder sonhar mais à vontade nos prazeres que
havia gozado e nos que me haviam sido prometidos. Só pensava
no Bourg-8aint-Andiol e na encantadora vida que lá me espe­
rava ; só via Madame de Larnage e a sua roda : o resto inteiro
do universo nada era para mim, até da própria Mamã me esque­
cera. Entretinha-me a combinar em pensamento todos os por­
menores em que Madame de Larnage havia entrado, para ter
de antemão uma ideia da sua casa, da sua vizinhança, das suas
reuniões, de toda a sua maneira de viver. Tinha uma filha de
quem me havia frequentemente falado com a idolatria de uma
mãe. A filha tinha quinze anos feitos; era viva, encantadora e
tinha um carácter amável. Haviam-me prometido que seria
acarinhado por ela : não esquecera esta promessa, e tinha
grande curiosidade em imaginar como é que Mademoiselle de
Larnage trataria o bom amigo de sua mamã. Foram estes os
assuntos dos meus devaneios desde Pont-Saint-Esprit até
Remoulin. Tinham-me dito que fosse ver a ponte do Gard; não
deixei de o fazer. Depois de um almoço de ·excelentes figos, .tomei
um guia, e fui ver a ponte do Gard. Era a primeira obra dos
romanos que via. Esperava encontrar um monumento digno das
mãos que o haviam construído. Desta feita o objecto ultrapassou
a minha expectativa; e foi a única vez na minha vida que tal
sucedeu. Só os romanos podiam provocar tal impressão. O aspecto
da simples e nobre construção impressionou-me tanto mais
quanto era certo encontrar-se no meio de um deserto onde o
silêncio e a solidão tornam o objecto mais tmpressionante e a
admiração mais viva, porque esta pretensa ponte era na reali­
dade um aqueduto. Perguntamos a nós próprios que força trans­
. portou estas enormes pedras a uma região tão distante de qual-
quer pedreira, e juntou os braços de tantos homens num sitio
onde não mora ninguém. Percorri os três andares do soberbo
edifício, que o respeito quase me impedia de ousar pisar com
os meus pés. A ressonância dos meus passos debaixo daquelas
imensas abóbadas dava-me a ilusão de ouvir a voz forte daque­
les que as haviam construído. Perdia-me nesta imensidade como
um insecto. Ao mesmo tempo que me fazia pequeníssimo, sentia
não sei ·quê que me elevava a alma, e eu dizia para comigo
mesmo, suspirando : Porque não nasci eu romano ! Fiquei ali
muitas horas em arrebatadora contemplação. Voltei distraído e
sonhador, e este sonho não foi favorável a Madame de Larnage.
Ela bem tinha pensado em me acautelar das moças de Montpel­
lier, mas não da ponte do Gard. Nunca podemos pensar em tudo.

251
Em Nimes fui visitar as arenas. É uma obra muito mais
esplendorosa que a ponte do Gard, mas que me fez muito menos
impressão, quer porque a minha admiraç'ão se houvesse esgo­
tado no primeiro objecto, quer porque a situação do outro no
meio de uma cidade fosse menos próprià para a estimular.
o vasto e soberbo circo está rodeado de feias casitas, e a arena
acha-se pejada de outras casas ainda mais pequenas e mais
feias, de maneira que o conjunto só produz um efeito desar­
monioso e confuso, em que o desgosto e a indignação asfixiam
o prazer e a surpresa. Vi depois o circo de Verona, infinita­
mente mais pequeno e menos belo que o de Nimes, mas mantido
e conservado com toda a decência e asseio possíveis, e que por
isso mesmo me causou uma impressão mais forte e mais agradá­
vel. Os franceses não cuidam de nada e não respeitam nenhum
monumento. Inflamam-se todos para empreender qualquer coisa,
mas não sabem nada acabar nem nada conservar.
Estava a tal ponto mu dado, e a minha sensualidade em
exercício tão bem desperta, ,que parei um dia na Ponte de
Lunel para comer à grande com a companhia que ali se encon­
trava. Este restaurante era então o mais afamado da Europa,
e merecia a fama. Quem o dirigia tinha sabido tirar partido da
eX'celente situação em que ele se achava para o manter forne­
cido com abundância e bom gosto. Era realmente curioso encon­
trar numa casa só e isolada no meio do campo uma mesa servida
de peixe do mar e de água doce, de excelente caça, de vinhos
finos, e com aquelas atenções e cuidados que só se encontram
entre os grandes e os ricos, e tudo isto por uns módicos trinta
e cinco soldos. A Ponte de Lunel não continuou, porém, durante
muito tempo neste pé, e à força de abusar da sua reputa.ção,
acabou por a perder inteiramente.
Durante a minha viagem tinha-me esquecido de que estava
doente ; lembrei-me disso ao chegar a Montpellier. Os fumos
estavam verdadeiramente curados, mas todos os outros males
continuavam ; e se bem que o hábito mos tornasse menos sen­
síveis, quem quer que por eles fosse atacado de súbito seria
o bastante para se julgar morto. Com efeito, não eram tão
dolorosos como assustadores, e faziam sofrer mais o espírito
do que o corpo, cuja destruição pareciam anunciar. Daqui resul­
tava que, distraído por vivas paixões, não mais pensava no meu
estado ; mas como este não era imaginário, sentia-o logo que
recuperava a presença de espírito. Pensei pois seriamente nos
conselhos de Madame de Larnage e na finalidade da minha
viagem. Fui consultar os mais ilustres facultativos. mormente

252
Monsieur Fizes, e, por excesso de precaução, tomei pensão em
casa de um médico. Era um irlandês chamado Fitz-Moris, que
recebia numerosos estudantes de medicina, o que oferecia ao
doente que lá se instalasse a comodidade de Monsieur Fitz-Moris
se contentar com uma módica pensão para a comida, nada
levando aos pensionistas pelos seus cuidados médicos. Encarre­
gou-se da execução das prescrLções de Monsieur Fizes, e de
tomar conta da minha saúde. Quanto ao regime, desempenhou
muito bem o seu papel: não se apanhavam indigestões naquela
pensão, e, apesar de não ser muito sensivel às privações deste
género, os objectos de comparação achavam-se tão próximos,
que eu por vezes não podia deixar de achar que Monsieur de
Torignan era melhQr despenseiro que Monsieur Fitz-Moris. No
entanto, como também se não morria de fome, e como toda
aquela mocidade era bastante alegre, semelhante maneira de
viver fez-me realmente bem, impedindo-me de voltar a cair
em enfraquecimento. Passava a manhã a tomar drogas, mor­
mente não sei que águas, creio que águas de Vals, assim como
a escrever a Madame de Larnage; porque a correspondência
seguia o seu rumo normal, ·e Rousseau encarregava-se de levan­
'
tar as cartas de seu amigo Dudding. Ao meio-dia, ia dar uma
volta à Canourgue, com algum dos nossos jovens comensais,
todos muito bons rapazes; juntávamo-nos, iamos jantar. Depois
do jantar, um importante negócio ocupava os mais dentre nós
até à noite, o qual negócio era ir fora de portas jogar a ceia
em duas ou três partidas de bola. Eu não jogava; não tinha
nem força nem jeito; mas apostava, e como o interesse da
aposta me obrigava a seguir os nossos jogadores e as bolas
através de caminhos rudes e cheios de pedras, fazia um exer­
cido agradável e salutar que me convinha perfeitamente. Cea­
va-se numa locanda dos arredores. Não será necessário dizer
que tais .ceias eram bastante alegres; acrescentarei, porém,
que eram muito decentes, embora as moças da locanda fossem
bonitas. Monsieur Fitz�Moris, grande jogador de bola, era o
nosso presidente, e posso dizer que, apesar da má reputaç'áo
dos estudantes, encontrei mais maneiras e decoro entre tpda
aquela mocidade do que fàcilmente se encontraria entre muitos
homens feitos. Eram mais barulhentos que devassos, mais ale­
gres que libertinos, eu afaço-me com tanta facilidade a um
género de vida quando é voluntário, que nada mais desejaria do
que ver esta durar sempre. Entre os estudantes havia vários
irlandeses com os quais tratava de aprender algumas palavras
de ingJês, como precaução para o Bourg-Saint-!Andiol, visto

253
que se aproximava o momento de para ali partir : Madame de
Larnage instava em todas as malas-postas para que o fizesse,
e eu preparava-me para lhe obedecer. É claro que, nada tendo
compreendido dos meus males, os médicos consideravam-me
um doente imaginário, e nessa conformidade me tratavam com
a sua esquina, as suas águas, o seu soro de leite. Muito ao con­
trário dos teólogos, os médicos e os filósofos só admitem como
verdadeiro o que podem e�plicar, e fazem da sua inteligência
a medida dos possíveis. Estes cavalheiros nada percebiam do
meu mal ; logo não estava doente : pois como supor que os
doutores não soubessem tudo? Percebi que só procuravam diver­
tir-me e fazer-me comer o meu dinheiro, e pensando que o
seu substituto do Bourg-Saint-Andiol faria tudo isso tão bem
como eles, mas mais agradàvelmente, resolvi dar-lhe a prefe­
rência, e nesta sensata intenção deixei Montpellier.
Parti por fins de Novembro, depois de uma estadia de seis
semanas ou dois meses nesta cidade, onde deixei uma dúzia
de luizes sem proveito algum nem para a minha saúde nem
para a minha instrução, a não ser um curso de anatomia come­
çado sob a direoção de Monsieur Fitz-Moris, e que fui obrigado
a abandonar em virtude do horrível fedor dos cadáveres que
dissecávamos, o qual me foi impossível suportar. Pouco satis­
feito comigo mesmo a respeito da resolução que havia tomado,
ia pensando no caso à maneira que me encaminhava para
Pont-Saint-Esprit, que era ao mesmo tempo o caminho para
o Bourg-Saint-Andiol e para ·Chambéri. As recorda.ções de
Mamã, assim como as suas cartas, posto que menos frequentes
que as de Madame de Larnage, despertavam no meu coração
os remorsos que havia abafado durante a primeira viagem.
A volta, tornaram-se tão vivos, que, hesitante entre o amor
e o prazer, me puseram em estado de ouvir apenas a razão.
Em primeiro lugar, podia ser menos feliz do que da primeira
vez, no papel de aventureiro que ia re·começar ; bastaria que
houvesse no Bourg-Saint-Andiol uma só pessoa que houvesse
estado em Inglaterra, que conhecesse os ingleses, ou que sou­
besse a língua para me desmascarar. A família de Madame de
Larnage podia-se indispor contra mim e tratar-me pouco cor­
têsmente. A filha, em quem mau grado meu pensava mais do
que deveria, também me inquietava : receava enamorar-me dela,
e tal receio fazia já metade da obra. Como recompensa das
bondades da mãe, ia eu procurar corromper a filha, travar o
mais detestável comércio, introduzir em sua casa a discórdia,
a desonra, o escândalo e o inferno? Esta ideia horrorizou-me :

254
tomei a valer a firme resolução de me c ombater e de me vencer
se esta fatal inclinação viesse a manifestar-se. Mas porque
me expor a semelhante combate ? Que miserável situação seria
viver com a mãe, farto dela, morrendo pela filha sem ousar mos­
trar-lhe o meu coração ! Que necessidade tinha eu de ir ao encon­
tro desta situação, expor-me às desgraças, às afrontas, aos remor­
sos, por prazeres de que havia de antemão esgotado o maior
encanto? Porque o certo é que a minha fantasia havia per­
dido o seu primeiro ardor ; o gosto do prazer ainda subst'Stia,
mas não a paixão. A tudo isto se misturavam as reflexões rela­
tivas à minha situação, aos meus deveres, àquela Mamã tão
boa, tão generosa, que, sobrecarregada já de dívidas, ainda se
sobrecarregava mais com as minhas despesas insensatas, que
se arruinava por mim, e que eu tão indignamente enganava.
Esta acusação tornou-se tão violenta que por fim venceu. Ao
aproximar-me de Saint-Esprit, tomei a resolução de evitar o
caminho do Bourg-Saint-Andiol, e seguir a direito. Executei-a
corajosamente, com alguns suspiros, confesso-o, mas também
com aquela satisfação interior, que pela primeira vez na minha
vida saboreava, de poder dizer a mim mesmo: Mereço a minha
própria estima : sei preferir o meu dever ao meu prazer. Eis
a primeira obrigação verdadeira que eu devia ao estudo. Fora
ele ,que me ensinara a reflectir, a comparar. Depois dos prin­
cípios tão puros que há pouco tempo havia adoptado, depois
das regras de sabedoria e de virtude a que me havia habituado
e que tão orgulhoso me sentia de seguir, a vergonha de ser tão
pouco consequente comigo mesmo, de desmentir tão cedo e tão
abertamente as minhas próprias máximas, acabou por levar
de vencida a volúpia. Talvez o orgulho contasse tanto como a
virtude na minha resolução ; mas se este orgulho não é a pró­
pria virtude, produz resultados tão semelhantes, que a confusão
é perdoável.
Uma das vantagens das boas acções é elevar a alma e pre­
dispô-la a praticar outras melhores : porque é tal a fraqueza
humana, que se deve incluir no número das boas acções a absten­
ção do mal que se está tentado a cometer. Logo que tomei a mi­
nha resolução, volvi-me outro homem, ou melhor, regressei ao
que já antes era, e que aquele momento de embriaguez havia feito
desaparecer. Cheio de bons sentimentos e boas resoluções, con­
tinuei a viagem na boa intenção de expiar a minha falta, só
pensando em pautar doravante a minha conduta pelas leis da
virtude, em dedicar-me sem reserva ao servtço da melhor das
mães, em consagrar-lhe tanta fidelidade quanta era a afeição

255
que por ela tinha, e a nunca mais escutar outro amor que não
fosse o dos meus deveres. Ai de mim! a sinceridade do meu
regresso ao bem parecia promet�r-me outro destino ; o meu,
porém, estava já escrito e encetado, e quando o meu coração,
cheio de amor pelas coisas boas e honestas, só via inocência e
felicidade na vida, chegava o funesto momento que devia arras­
tar atrás de si a comprida cadeia das minhas desgraças.
A pressa de chegar fez-me ser mais diligente do que con­
tara. Tinha-lhe comunicado de Valence o dia e a hora a que
chegaria. Tendo ganho meio dia nas minhas contas, fiquei esse
tempo em Ghaparillan, na intenção de chegar precisamente no
momento que havia anunciado. Queria gozar em todo o seu
encanto o prazer de a voltar a ver. Preferia diferi-lo um pouco
para lhe juntar o de ser esperado. Tal precaução havia-me dado
sempre resultado. Tinha sempre visto assinalar a minha che­
gada com uma espécie de pequena festa : não deixava de con­
tar com ela desta vez ; e por isso valia bem a pena facilitar
aquelas atenções, a que tão sensível era.
Cheguei portanto à hora marcada. J1á de bem longe pro­
curava descobri-la no caminho ; o coração batia-me cada vez
mais à maneira 'que me aproximava. Cheguei estafado, pois
havia deixado a carruagem na cidade ; não vejo ninguém, nem no
pátio, nem à porta, ·nem à janela : começo a tremer, receio
qualquer acidente. Entro ; tudo tranquilo ; os trabalhadores cea­
vam na cozinha ; de resto, nada de preparativos. A criada pare­
ceu surpreendida de me ver ; ignorava que eu estava para
chegar. Subo, e vejo-a por fim, à,quela querida Mamã, tão ter­
namente, tão vivamente, tão puramente amada ; corro, lanço­
-me aos seus pés. Ah ! chegaste, pequeno, disse-me ela abra­
çando-me, fizeste boa viagem ? Como estás? Semelhante aco­
lhimento deixou-me um pouco interdito. Perguntei-lhe se
não tinha recebido a minha carta. Disse-me que sim. Julgava
que não, disse eu, e a explicação ficou por ali. Estava com
ela um rapaz novo. Conhecia-o por já lá o ter visto em casa
antes de partir ; mas desta vez parecia encontrar-se instalado ; e
encontrava, de facto. Numa palavra, achei o meu lugar ocupado.
Este rapaz era do cantíio de Vaud ; o pai, que se chamava
Vintzenried, era porteiro, ou, como se dizia, capitão do castelo de
Chillon. O filho do Sr. Capitão era moço cabeleireiro, e nesta
qualidade corria mundo quando se apresentou a Madame de
Warens, que o recebeu bem, como fazia a todos os viandantes, e
sobretudo aos da sua terra. Era um deslavadão lourinho, bas­
tante bem feito, de cara insignificante, assim como de espírito,

256
falando como o belo Leandro ; misturando todos os modos, todos
os gostos da sua profissão com a longa história dos seus grandes
triunfos ; só mencionando metade das marquesas com quem
havia dormido, e pretendendo nunca ter enfeitado cabeça de
jovem mulher bonita alguma sem que não houvesse enfeitado
também a cabeça do respectivo marido ; vaidoso, idiota, igno­
rante, insolente ; de resto, o melhor filho do mundo. Tal foi o
substituto que me arranjaram enquanto estive ausente, e o
associado que me ofereceram quando voltei.
Oh! se as almas libertas das suas prisões terrenas vêem
ainda do seio da luz eterna o que se passa entre os mortais,
perdoai, sombra querida e respeitável, se não concedo maior
perdão ás vossas culpas do que às minhas, se desvendo igual�
mente umas e outras aos olhos dos leitores. Devo ser, quero ser
verdadeiro para convosco e para comigo próprio : com isso per­
dereis sempre muito menos do que eu. Ah ! quantas fraquezas,
se assim se pode chamar aos desvarios da vossa razão , não
foram resgatadas pelo vosso amável e doce carácter, pela vossa
inesgotável bondade de coração, pela vossa franqueza e por
todas as vossas excelentes virtudes ! Tivestes erros e não vícios ;
a vossa conduta foi repreensível, mas o vosso coração foi sem­
pre puro. Ponha-se numa balança o bem e o mal, e sejamos
justos : onde haveria mulher que se pudesse comparar a vós,
se a sua vida intima se tivesse patenteado como a vossa?
O révem-vindo havia-se mostrado zeloso, diligente, exacto
em todas as incumbências de Madame de Warens, que eram
sempre numerosíssimas ; tinha-se tornado capataz dos traba­
lhadores. Tão barulhento quanto eu o era pouco, mostrava-se
e fazia-se sobretudo ouvir a um tempo à charrua, nos fenos,
nos bosques, na cavalari,ç a, na capoeira. Só o horto descura­
va, porque era um trabalho demasiado calmo e que nenhum
barulho fazia. O seu maior prazer eram os carregos e os car-'
retos, serrar ou rachar lenha ; viam-no sempre de machado ou
alvião em punho; ouviam-no. correr, martelar, gritar como um
possesso. Fazia o trabalho de não sei quantos homens, mas o
barulho era sempre de dez ou doze. Toda esta zaragata inspi­
rava respeito à minha pobre Mamã ; achou que o mancebo era
um tesouro para os seus negócios. Querendo prendê-lo, empre­
gou para isso todos os meios que julgou convenientes, sem
esquecer aquele com que mais contava.
Devem já conhecer o meu coração, os seus mais constantes
sentimentos, sobretudo aqueles que neste momento me tra­
ziam para junto dela. Que rápida e total revolução em todo o

17 257
meu ser ! Ponham-s� no meu lugar para o avaliar. Num instante
vi evaporar-se para sempre todo o porvir de felicidade que havia
imaginado. Todas as doces ideias que afectuosamente acalen­
tava desapareceram, e eu, que desde criança só sabia ver a
minha existência aliada à dela, pela primeira vez me vi só.
Este instante foi terrível : os que se lhe seguiram foram sempre
sonrbrios. ,Eu era ainda novo, mas aquele doce sentimento de
gosto e de esperança que vivifica a mocidade abandonou-me
para sempre. Desde então, o meu ser sensível ficou meio-morto.
Só vi na minha frente os tristes restos de uma vida insípida,
� se ainda por vezes uma imagem de felicidade aflorou nos
meus desejos, essa felicidade não era a que me era peculiar ;
sentia que se a obtivesse não seria verdadeiramente feliz.
Eu era tão tolo e a minha confiança era tão ilimitada que,
apesar do tom familiar do récem-vindo, atribuído por mim aos
efeitos daquela facilidade do feitio de 'Mamã, que aproximava
toda a gente dela, nunca teria suspeitado da sua verdadeira
causa se ela própria ma não tivesse dito ; Mamã, contudo, apres­
sou-s�e a fazer-me esta confissão com uma franqueza capaz de
aumentar o meu furor, se o meu coração tivesse podido levar as
coisas para esse lado ; achando, pelo que lhe dizia respeito a ela,
as coisas muito simples, censurando-me de descurar a casa, ale­
gando as minhas frequentes ausências, como se o seu tempe­
ramento fosse de natureza a exigir que o vazio destas fosse
preenchido. ó Mamã ! , disse-lhe eu com o coração oprimido
pela dor, como ousais comunicar-me tais coisas ! É esta a
recompensa duma afeição como a minha ! Então conservaste-me
tantas vezes a vida só para me tirardes tudo o que ma tor­
nava cara? Dais-me a morte, mas haveis de vos arrepender.
Tranquilamente, como para me endoidecer, respondeu-me que
eu era uma criança, que não se morria com tais coisas ; que
nada perderia ; que nem por isso seríamos menos amigos, menos
íntimos em todos os sentidos ; que a sua eterna afeição por mim
não podia diminuir nem acabar senão com ela. Numa palavra,
deu-me a entender que todos os meus direitos continuariam tal
qual, e que, partilhando-os com outrem, não seria por isso
privado deles.
Nunca a pureza, a verdade dos meus sentimentos para
com ela, nunca a sinceridade, a honestidade da minha alma
se me revelaram melhor a mim próprio do que nesse instante.
Lancei-me aos pés dela, abracei-me com os seus joelhos ver­
tendo torrentes de lágrimas. Não, Mamã, disse-lhe eu veemen­
temente, amo-vos por de mais para vos envilecer ; a vossa

258
posse é-me por de mais cara para a partilhar com outrem ;
os remorsos que a acompanharam quando a adquiri aumen­
taram com o meu amor ; não posso conservá-Ia pelo mesmo
preço. Estarei sempre em adora,ção para convosco, sede sempre
digna dela : ainda me é mais necessário respeitar-vos, do que
possuir-vos. É a vós, ó Mamã, é a vós que eu me submeto; é
à união dos nossos corações que eu sacrifico todos os meus pra­
zeres. Houvesse eu de perecer mil vezes antes de gozar daqueles
que degradam o que amo !
Mantive-me nesta resolução, ouso dizê-lo, com uma cons­
tância digna do sentimento que ma havia ditado. A partir deste
momento só olhei para esta tão adorada Mamã com os olhos
de um verdadeiro filho ; e deve-se notar que, apesar da minha
resolução não obter a sua intima aprovação, como por de mais
me apercebi, nunca ela empregou para me fazer desistir dela
nem falas iqsinuantes, nem caricias, nem nenhuma daquelas
hábeis provocações que as mulheres sabem empregar sem se
comprometer, e que raramente deixam de lhes dar resultado .
Reduzido a buscar para mim u m destino independente dela,
e sem sequer poder imaginar qual, em breve passei ao outro
extremo, buscando-o inteiramente nela. Procurei-o tão perfei­
tamente, que em breve quase consegui esquecer-me de mim
próprio. O ardente desejo de a ver feliz, fosse por que preço
fosse, absorvia todas as minhas afeições : por mais que ela
quisesse separar a sua felicidade da minha, eu via-a como
minha, a despeito dela.
Desta maneira, começaram com as minhas desgraças a
germinar em mim as virtudes cuja semente j azia no fundo
da minha alma, cultivadas ·pelo estudo, e que para desabro­
charem só esperavrum o fermento da adversidade. O primeiro
fruto de tão desinteressada disposição foi afastar do meu cora­
ção todo e qualquer sentimento de ódio e de invej a contra quem
me havia suplantado. Ao contrário, quis, e quis sinceramente,
afeiçoar-me àquele rapaz, formá-lo, trabalhar para a sua edu­
cação, fazer-lhe sentir a sua felicidade, torná-lo digno dela, se
tal era possível, fazer por ele, numa palavra, tudo o que Anet
havia feito por mim em circunstâncias análogas. Não havia,
contudo, analogia entre as pessoas. Com mais doçura e mais
luzes, não tinha a presença de espírito e firmeza de Anet, nem
aquela força de carácter que inspirava respeito, e de que eu
tinha necessidade para triunfar. Ainda menos encontrava no
rapaz as qualidades que Anet encontrara ·em mim: a mansidão,
a dedica!ção, o reconhecimento, sobretudo o sentimento da neces-

259
sidade que tinha das suas atenções, e o ardente desejo de as
tornar úteis. Tudo isto faltava agora. Aquele que eu desejava
formar não via em mim mais do que um pedante jmportuno
que só tinha palavreado. Ao contrário, admirava-se a si pró­
prio como um homem importante naquela casa, e medindo os
serviços que julgava prestar pelo barulho que fazia, considerava
infinitamente mais úteis os seus machados e os seus alviões
do que todos os meus calhamaços. Sob certo ponto de vista,
não andava errado ; mas partia daí para tomar uns ares de
fazer uma pessoa rebentar de riso. Dava-se ares de fidalgo
lavrador com os camponeses ; em breve procedeu da mesma
forma comigo, e por fim com a própria Mamã. Como o
nome de Vintzenried lhe não parecia suficientemente nobre
trocou-o pelo de Monsieur de Courtilles, e foi sob este último
nome que se tornou conhecido em Chambéri e em Maurienne,
onde veio a casar.
Enfim, o ilustre ·cavalheiro tanto fez que passou a ser tudo
naquela casa, e eu nada. Como quando tinha a infelicidade de
lhe desagradar era com Mamã que ele ralhava e não comigo,
o receio de a expor às suas brutalidades tornava-me dócil a
tudo o que ele desejava, e sempre que se punha a rachar lenha,
ocupação que desempenhava com uma prosápia sem igual,
necessário era que eu ali permanecesse como espectador ocioso,
e tranquilo admirador da sua proeza. Este rapaz não tinha,
contudo, uma índole absoluta111ente má ; amava Mamã, porque
era impossível não a amar ; não tinha sequer por mim aversão,
e quando os intervalos das suas fogosidades permitiam que lhe
falássemos, escutava-nos por vezes com perfeita docilidade,
concordando francamente em que não passava de um idiota :
depois do que nem por isso fazia menos idiotices. Aliás, tinha
uma inteligência tão estreita e gostos tão baixos, que era difí­
cil falar-lhe razoàvelmente e quase impossível agradarmo-nos
dele. A posse de uma mulher cheia de encantos, acrescentava
o e:x:citante de uma criada de quarto velha, ruiva, desdentada,
cujos serviços Mamã tinha a paciência de suportar, embora a
enojasse. Descobri esta nova lig3!Ção, e fiquei fulo de indig­
nação : descobri, porém, outra coisa que me desgostou muito
mais ainda, e ·que me lançou num desalento muito mais pro­
fundo do ·que tudo o que se tinha passado até então; foi o
resfriamento de Mamã para comigo.
A privação que me havia imposto a mim mesmo, e que ela
parecera aprovar, é uma destas coisas que as mulheres de
maneira nenhuma perdoam, façam a cara que fizerem, menos

260
pela privação que dai resulta para elas próprias, do que pela
indiferença pela posse da sua pessoa que nisso vêem. Conside­
rai a mulher mais sensata, mais filósofa, a menos escrava dos
seus sentidos; o mais imperdoável crime que o homem, com
quem aliás pouco se preocupa, pode cometer a seu respeito, é.
o de poder gozá-la ·e não o fazer. Força é que isto não sofra
excepção, para que uma simpatia tão natural e tão forte fosse
nela alterada por uma abstinência que só .tinha por motivo
a virtude, a dedicação e a estima. Desde então deixei de encon­
trar nela aquela intimidade dos corações que constituiu sempre
o mais doce gosto do meu. Só se abria comigo quando tinha
que se queixar do recém-vindo; quando estavam de bem um
com o outro, eu pouco entrava nas suas confidências. Enfim,
Mamã adquiria a pouco e pouco uma maneira de ser em que eu
já não tomava parte. A minha presença ainda lhe dava prazer,
mas já lhe não fazia falta, e eu poderia passar dias inteiros
sem a ver, que ela não se aperceberia disso.
Insensivelmente, senti-me isolado e só naquela mesma casa
de que dantes era a alma, e onde por assim dizer vivia em
duplicado. A pouco e pouco acostumei-me a apartar-me de
tudo o 'que ali se fazia, daqueles que ali habitavam, e para me
poupar a constantes dilacerações, fechava-me com os meus
livros, ou então ia para o meio dos bosques suspirar e chorar
à minha vontade. Em breve esta vida se me tornou completa­
mente insuportável. Senti que a presença pessoal e o afasta­
mento de coração de uma mulher que me era tão querida
irritavam a minha dor, e que deixando de a ver sentir-me-ia
menos cruelmente separado dela. Formei o projecto de aban­
donar a casa; comuniquei-lho, e ela, longe de lhe pôr obstá­
culos, favor·eceu-o. Tinha em Grenoble uma amiga chamada
Madame Deybens, cujo marido era amigo de Monsieur de Mably,
preboste geral de Lyon. Monsieur Deybens propôs-me a educação
dos filhos de Monsieur de Mably: aceitei, e parti para Lyon, sem
deixar nem quase sentir a menor pena de uma separação, cuja
ideia bastaria para dantes nos causar angústias de morte.
Eu tinha pouco mais ou menos os conhecimentos neces­
sários a um preceptor, e julgava-me com talento para .tal. Tive
tempo para me desiludir durante o ano que passei em casa de
Monsieur de Mably. O meu natural brando :ter-me-ia .tornado
apto para desempenhar esta profissão, se a exaltação com as
suas borrascas não tivesse intervindo. Enquanto tudo mar­
chava bem, ·e eu via frutificarem os cuidados e as penas, a que
entálo me não poupava, era um anjo; era um diabo quando

261
as coisas marchavam mal. Quando os meus pupilos me não
compreendiam, disparatava, e, quando se mostravam maus,
seria capaz de os matar: o que não era o processo de os tornar
sábios e ajuizados. Tinha dois; eram de feitio muito diferente.
Um, de oito a nove anos, chamado Sainte-Marie, .tinha uma
figura bonita, um espírito bastante aberto, bastante vivo, bas­
tante estouvado, divertido, malicioso, mas de uma malfcia ale­
gre. o mais novo, chamado Condillac, quase parecia estúpido,
amigo do laré, teimoso que nem um jerico, e não era capaz de
aprender nada. Está-se a ver que com dois sujeitos destes nada
podia fazer. Com paciência e presença de espírito talvez tivesse
podido obter resultados; mas, à falta de uma coisa e outra, nada
fiz que prestasse, e os meus alunos iam muito mal. A mim não
me fàltava aplicaJção, mas faltava-me uniformidade, e sobre­
tudo prudência. Só sabia empregar com eles três armas,
sempre inúteis e frequentemente perniciosas às crianças: o
sentimento, o raciocínio, a cólera. Ora me enternecia com
Sainte-Marie até chorar; queria enternecê-lo a ele próprio,
como se a criança fosse susceptível de uma verdadeira emoção
do coração; ora me consumia a falar-lhe à razão, como se ele
pudesse compreender-me; e como às vezes me opunha argu­
mentos subtilissimos, achava-o verdadeiramente razoável, por­
que era arrazoador. O pequeno Condillac atrapalhava-me ainda
mais, porque, nada compreendendo, nada respondendo, não se
comovendo com coisa nenhuma, de uma .teimosia a toda a
prova, triunfava tanto mais de mim qua:nto mais me havia
enfurecido; era ele então a pessoa sensata, e eu a criança. Via
todas as minhas faltas, sentia-as; estudava o espírito dos meus
alunos, penetrava-os muito bem, e não creio que nem uma só
vez as suas manhas me tenham enganado. Mas de que me
servia saber ver o mal se não sabia aplicar-lhe o remédio? Pene­
trando tudo, nada evitava, nada conseguia, e tudo quanto fazia
era precisamente o que não deveria fazer.
Comigo mesmo não obtinha muito melhores resultados do
que com os meus alunos. Tinha sido recomendado a Madame
de Mably por Madame Deybens. Esta havia-lhe pedido que me
inculcasse maneiras e me desse o tom da sociedade. Madame de
Mably tomou para isso algumas providências, e quis que eu
aprendesse a fazer-lhe as honras da casa; sai-me porém �ão
desastradamente, tinha tal vergonha, era tão idiota, que ela
desanimou e largou-me de mão. O que, segundo o meu costume,
não impediu que me apaixonasse por ela. Fiz o bastante para
que ela o percebesse; mas nunca ousei declarar-me. Não esteve

262
disposta a adiantar-se, e eu fiquei-me pelas olhadelas e pelos
suspiros, de .que até em breve me aborreci, ao ver que não
davam nada.
Em· casa de Mamã havia perdido o gosto, dos pequenos
furtos, visto que, sendo tudo meu, nada tinha a roubar. Aliás,
os princípios elevados ·que me havia imposto deviam tornar-me
daqui por diante muito superior a tais baixezas, e é cellto que
ordinàriamente o fui desde então: menos, porém, por haver
aprendido a vencer as minhas tentações do que por lhes haver
cortado as raizes, e recearia grandemente roubar se, como
quando era criança, fosse sujeito aos mesmos desejos. Tive disso
a prova em casa de Monsieur de Mably. Rodeado de pequenas
coisas que fàcilmente podia roubar, mas para as quais nem sequer
olhava, lembrei-�me de cobiçar um certo vinhito branco d'Arbois,
belíssimo, que alguns copos bebidos de vez em onde à mesa me
tinham feito apreciar grandemente. Era um pouco turvo; eu
julgava saber clarificar bem o vinho; gabava-me disso, pelo
que mo confiaram; clarifiquei-o e estraguei-o, mas só à vista;
continuou sempre muito agradável ao paladar, e a ocasião
proporcionou-me reservar de tempos em tempos algumas gar­
rafas para beber à minha vontade no meu quartito. Infeliz­
mente, nunca pude beber sem comer. Que fazer para arranjar
pão? Era-me impossível fazer reserva dele. Mandá-lo comprar
pelos criados, era denunciar-me e .quase insultar o dono da
casa. Comprá-lo eu mesmo, nunca me atreveria a fazê-lo.
Podia lá um lindo cavalheiro, de espada à ilharga, ir à padaria
comprar um bocado de pão? Lembrei-me por fim do último
recurso de uma princesa, a quem diziam que a gente do campo
não tinha pão, e que respondeu: Que comam broinhas. Comprei
broinhas. Mesmo assim, o ,que não foi preciso! Nesta intenção saí
só, percorri várias vezes a cidade inteira, e passei em frente de
trinta pastelarias antes de me decidir a entrar em qualquer.
Necessário era que houvesse apenas uma pessoa na loja, e que
a sua fisionomia me atraísse bastante, para me atrever a passar
o rebate. Mas também quando, uma vez na posse da minha que­
rida broínhazita, e, bem fechado no quarto, ia buscar a garrafa
ao fundo de um armário, que belas patuscadas eu não fazia
sõzinho, lendo algumas páginas de um romance! Porque ler
enquanto como foi sempre a minha fantasia, à míngua de par­
ceiro: é o complemento da sociedade que me falta. Devoro
alternadamente uma página e um naco: é como se o livro
jantasse comigo.

263
Nunca fui libertino nem devasso, e nunca na minha vida
me embriaguei. Desta maneira os meus furtozitos não eram
muito indiscretos: no entanto, descobriram-nos; as garrafas
denunciaram-me. Fingiram não dar por nada, mas nunca mais
superintendi na adega. Monsieur de Mably procedeu em tudo
isto digna ·e prudentemente. 'Era um homem distintissimo, que,
debaixo de um aspecto tão severo como o seu cargo, possuía um
carácter verdadeiramente afável e uma rara bondade de cora­
ção. Era judicioso, equitativo, e, o que seria menos de esperar
num oficial da polícia, mesmo muito humano. Percebendo-lhe a
indulgência, afeiçoei-me-lhe mais, do que resultou prolongar a
minha estadia em sua casa mais do que o faria se não fora isso.
Mas enfim, desgostoso com uma ocupação para que não :tinha
tendências e numa situação dificílima, e que nada de agradável
tinha para mim, resolvi-me, depois de um ano de experiência,
durante o qual não me poupei a cuidados, a abandonar os meus
discípulos, inteiramente convencido de que nunca conseguiria
ectucá-los como devia ser. O próprio Monsieur de Mably via .tudo
isto tão bem como eu. Creio, no entanto, que só por sj nunca se
resolveria a despedir-me se eu lhe não houvesse evitado esse
trabalho; e, em semelhante caso, tal excesso de condescendência
não é certamente uma coisa que eu possa aprovar.
O que tornava o meu estado mais insuportável era a com­
paraçáo
l constante que fazia ·com o que havia deixado; era a
recordação das minhas .queridas Charmettes, do meu horto, das
minhas árvores, da minha fonte, do meu pomar, e sobretudo
daquela para quem eu nascera, que dava alma a tudo isto. Ao
pensar nela, nos nossos prazeres, na nossa inocente vida, aper­
tava-se-me o coração, sufocava a ponto de perder a coragem
para fazer fosse o que fosse. Mil vezes me tentei a partir ime­
diatamente a pé para voltar para junto dela; ,contanto que a
tornasse a ver ainda uma vez, alegrar-me-ia morrer nesse
mesmo instante. Não pude por fim resistir a tão enternecedoras
recorda;ções, que me chamavam para junto dela custasse o que
custasse. Dizia comigo mesmo ,que não havia sido bastante
paciente, bastante condescendente, bastante carinhoso, que
podia ainda viver feliz numa amizade muito doce, se nisso
pusesse mais boa vontade do que havia feito. Arquitecto os mais
belos projectos do mundo, morro por realizá-los. Abandono tudo,
renuncio a tudo, par·to, voo, chego precisamente com todos os
·entusiasmos da minha primeira mocidade, e acho-me aos seus
pés. Ah! teria morrido de alegria se encontrasse no seu acolhi­
mento, nos seus afagos, no seu coração, enfim, a quarta oarte do

264
que nele encontrava noutros tempos, e que por mim ainda lhe
trazia.
Horrível ilusão das coisas humanas! Recebeu-me sempre
com aquele excelente coração, que só com ela podia morrer; eu
vinha, porém, buscar o passado que já não existia e que não
podia ressuscitar. Mal me achava com ela há meia hora, senti
a minha antiga felicidade morta para sempre. Encontrei-me na
mesma desoladora situação que me havia obrigado a fugir, e
isto sem que pudesse dizer que alguém era o culpado; porque
no fundo Courtilles não era mau, e parecia tornar a ver-me com
mais prazer do que pesar. Como poderia eu porém suportar sen­
tir-me a mais junto daquela para quem havia sido tudo, e que
não podia deixar de ser tudo para mim? Como viver como estra­
nho numa casa de que era filho? A vista dos objectos que haviam
sido testemunhas da minha felicidade passada tornava-me o
confronto mais cruel. Noutra casa sofreria menos. Ver-me,
porém, a relembrar constantemente tantas recordações agradá­
veis, era exasperar o sentimento do que havia perdido. Consu­
mido por vãs saudades, entregue à mais sombria melanêolia,
tomei novamente a decisão de ficar só fora das horas das refei­
ções. Fechado ·com os meus livros, buscava neles distracções
úteis, e sentindo iminente o perigo que outrora tanto receava,
atormentava-me de novo em procurar em mim mesmo os meios
de lhe fazer frente quando faltassem de todo os recursos a
Mamã. Eu havia conduzido as coisas da casa de maneira a pode­
rem continuar sem irem a pior; depois de mim, porém, tudo
estava muaado. O ecónomo era um esbanjador. Queria brilhar:
bom cavalo, boa carruagem; gostava de se exibir com prosápia
aos olhos dos vizinhos; constantemente se metia em empreendi­
mentos de que nada percebia. Comiam a pensão antecipada­
mente, os trimestres achavam-se empenhados, as rendas atra­
sadas, e as dívidas continuavam como de costume. Previa que
não tardaria que a pensão fosse suspensa e talvez suprimida.
Enfim, só entrevia ruína e desastres, e parecia-me que estavam
tão próximos, que de antemão lhes sentia todos os horrores.
o meu amado gabinete era a minha única distracção. A força
de nele procurar remédios contra os tormentos da minha alma,
lembrei-me de os procurar igualmente contra os males que adi­
vinhava, e, voltando às minhas antigas ideias, achei-me cons­
truindo novos castelos no ar para tirar aquela pobre Mamã dos
extremos cruéis em que a via prestes a cair. Não me sentia
suficientemente sábio e não me julgava com suficiente espírito
para brilhar na república das letras e fazer fortuna por esta

265
via. Uma nova ideia que se me apresentou inspirou-me a con­
fiança que a mediocridade das minhas capacidades me não podia
dar. Não tinha abandonado a músi-ca, embora houvesse deixado
de a ensinar; pelo contrário, estudara bastante teoria para
me poder considerar um sábio ao menos neste aspecto. Reflec­
tindo na dificuldade que tivera para aprender a ler as notas
e na que ainda tinha para cantar à primeira vista, cheguei à
conclusão de que tal dificuldade podia provir tanto da coisa como
de mim, sabendo sobretudo que de uma maneira geral aprender
música não é coisa fácil para ninguém. Examinando a cons­
tituição das notas, achei-as com frequência muito mal inventa­
das. Há muito que havia pensado em notar a escala por meio de
algarismos, evitando assim ter que traçar constantemente linhas
e pontos logo que ·era necessário anotar a mais insignificante
àriazita. Tinha parado quando se me depararam dificuldades
quanto às o�tavas e quanto ao compasso e aos valores. Esta velha
ideia voltou-me ao espírito, e, pensando novamente no assunto,
vi que aquelas dificuldades não eram intransponíveis. Meditei
nisso com êxito, e consegui notar não importa que música por
meio dos meus algarismos com o maior rigor, e posso dizer com
a maior simplicidade. A partir deste momento julguei a minha
fortuna feita; e, no entusiasmo de a partilhar com aquela a quem
tudo devia, só pensava em partir para Paris, sem duvidar de que
apresentando o meu projecto à Academia viesse a provocar uma
revolução. Tinha trazido de Lyon algum dinheiro; vendi os meus
livros. A minha resolução foi tomada e executada em quinze dias.
Enfim, cheio das ideias magníficas que ma haviam inspirado,
sempre o mesmo em todos os tempos, parti da Sabóia com o
meu sistema musical, como outrora havia partido de Turim com
a fonte de Hierão.
Tais foram os devaneios e os erros da minha mocidade.
Narrei a sua história com uma fidelidade de que o meu coração
se acha satisfeito. Se, posteriormente, honrei a minha idade
madura com algumas virtudes, tê-las-ia contado com a mesma
franqueza, e tal era a minha intenção. Mas preciso deter-me
aqui. O tempo pode levantar muitos véus. Se a minha memó­
ria chegar à posteridade, talvez que um dia esta venha a conhe­
cer o que tinha a dizer. Saber-se-á então porque me calo.

266
AS CONFISSOES
DE J.- J. ROUSSEAU

Intits, et in Cute.

SEGUNDA PARTE
Estes cadernos, cheios de om1ssoes de toda a ordem e que
eu próprio não tive tempo de reler, bastam para pôr qualquer
amigo da verdade na pista desta, dando-lhe os meios de se con­
vencer dela graças às suas próprias investigações. Infelizmente,
parece-me dificil e mesmo impossível que eles possam escapar
à vigilância dos meus inimigos. !Se caírem nas mãos de um
homem de bem [ou dos amigos de Monsieur de Choiseul, se
chegarem ao próprio !Monsieur de Choiseul, não creio ainda irre­
mediável a honra da minha memória. Mas, ó Céu, protector
da inooência, preserva estes últimos esclarecimentos a respeito
da minha das mãos das Sr.as de Boufflers, de Verdelin, e dos seus
amigos. :Salva ao menos destas duas fúrias a memória de um
desgraçado a quem a abandonaste enquanto vivo foi] 1•

1 Esta espec1e de advertência não figura no manuscrito de Paris


As palavras que se acham entre colchetes foram riscadas e tornadas quase
ilegíveis pelo próprio Rousseau no manuscrito de Genebra. A sua decifração
deve-se ao erudito Léopold Micheli.- N. do T.
I
I

I
I


LIVRO SÉTIMO

óS dois anos de silêncio e de paciência, mau grado o que

A .
determinara comigo mesmo, retomo a pena. Leitor, sus­
pende o teu juizo sobre as razões que me forçam a fazê-lo:
não poderás julgá-las senão depois de me haver lido.
Viram decorrer a minha plácida mocidade numa vida igual,
bastante doce, sem grandes contratempos nem grandes pros­
peridades. Esta mediocridade foi em grande parte obra do meu
natural ardente, mas fraco, menos pronto ainda a empreender
do que susceptível de desanimar; saindo do repouso aos repen­
tes, mas voltando a ele por cansaço e por gosto, o que, fazen­
do-me sempre regressar, longe das grandes virtudes e mais longe
ainda dos grandes v1cios, à vida ociosa e tranquila para a qual
sentia ter nascido, nunca me permitiu alcançar nada de grande,
nem no bem, nem no mal.
Que quadro tão diferente irei dentro em pouco traçar!
A sorte, que durante trinta anos favoreceu as minhas inclina,..
ções, contrariou-as durante os restantes trinta, e, desta oposição
constante entre a minha situação e as minhas tendências, ver­
-se-ão nascer erros enormes, desgraças inauditas, e todas as vir­
tudes, com excepção da força, que podem honrar a adversidade.
Toda a primeira parte foi inteiramente escrita de memória;
nela devia ter cometido muitos erros. Forçado a escrever igual­
mente a segunda de memória, cometerei provàvelmente muitos
mais. A doce recordação dos meus melhores anos, passados tão
tranquila como inocentemente, deixaram-se mil impressões en­
cantadoras que gosto constantemente de relembrar. Em breve se
verá quão diferentes são as do resto da minha vida. Recordá-las,
é renovar-lhes as amarguras. Longe de exasperar as da minha
situação com estes retornos, afasto-as tanto quanto possivel, e
muitas vezes o consigo a ponto de já não poder voltar a encon­
trá-las quando é necessário. Esta facilidade em esquecer os males
ê uma consolação que o Céu me concedeu no meio dos que a sorte
devia um dia acumular sobre mim. A minha memória, que uni-

271
cament€ me recorda objectos agradáveis, é o feliz contrapeso da
minha imaginação, que só me faz prever ·cruéis destinos.
Tendo passado a outras mãos, todos os papéis que havia
juntado para me compensarem a memória e guiar-me neste
cometimento, nunca mais voltarão às minhas. Só tenho um guia
fiel com o qual posso contar: é a cadeia dos sentimentos que
assinalaram a sucessão do meu ser, e graças a eles a dos acon­
tecimentos que foram a sua causa ou efeito. Esqueço fàcilmente
as minhas desditas; mas não posso esquecer os meus erros, e
ainda menos esqueço os meus bons sentimentos. A sua recorda­
çáo é-me por de mais cara para jamais se apagar no meu cora­
ção. Posso cometer omissões nos factos, transposições, erros de
datas; não posso, porém, ·enganar-me a respeito do que senti,
nem a respeito daquilo que os meus sentimentos me levaram
a fazer; e é disto que principalmente se trata. O objectivo pró­
prio das minhas confissões é fazer conhecer exactamente o meu
íntimo em todas as situações da minha vida. Foi a história da
minha alma que eu prometi, e para a escrever fielmente não
necessito doutras memórias; basta-me entrar dentro de mim,
como fiz até aqui.
Há no entanto, e multo felizmente, um período de seis a
sete anos de que tenho informações seguras num caderno com
traslados de cartas cujos originais estão nas mãos de Monsieur
du Peyrou. Este caderno, que acaba em 1760, compreende
todo o 'tempo da minha estada na Hermitage e da minha desa­
vença com os meus pretensos amigos: época memorável da
minha vida, e que foi a origem de todas as minhas restantes
desgraças. Com respeito às ·cartas originais que me possam res­
tar, e que são em pequeno número, longe de as transcrever no
seguimento do caderno, demasiado volumoso para que possa
esperar subtrai-Ias à vigilância dos meus Argos, transcrevê­
-las-ei neste próprio escriJto, quando me parecerem fornecer
qualquer esclarecimento quer em meu beneficio quer em meu
prejuízo: porque eu não receio que o leitor esqueça alguma vez
que fa;ço as minhas confissões, para crer que faço a minha apo­
logia; mas também não deve esperar que eu cale a verdade
quando esta falar a favor de mim.
De resto, esta segunda parte só tem de comum com a pri­
meira esta mesma verdade, e só na importância das coisas é
que lhe leva vantagem. Fora isso, só lhe pode em tudo ser infe­
rior. Escrevi a primeira, com prazer, com satisfaç·ão, à minha
vontade, em Wooton ou no castelo de Trye; todas as recordações
que tinha de relembrar eram para mim outros tantos gostos.

272
Voltava ineessantemente ao trabalho com um novo prazer, e
podia livremente compor as minhas descrições até ficar con­
tente com elas. Hoje, a minha memória e a minha cabeça enfra­
quecidas tornam-me quase incapaz de qualquer trabalho; só
à força e com o coração oprimido pela angústia é que me dedico
a este. Só me oferece desgraças, traições, perfídias, recordações
tristes e pungentes. Por tudo do mundo desejaria poder enterrar
na noite dos tempos o que tenho a dizer, e, forçado mau grado
meu a falar, vejo-me novamente obrigado a esconder-me, a ser
manhoso, a tratar de iludir, a abaixar-me às coisas para as
quais não nascera; os sobrados sob os quais me acho têm ouvi­
dos: cercado de espiões e vigias maldosos e atentos, inquieto e
distraído, lanço à pressa no papel algumas palavras interrom­
pidas que mal tenho tempo de reler, e ainda menos de corrigir.
Apesar das imensas barreiras que amontoam continuamente à
roda de mim, sei que há sempre o receio de ,que a verdade <:e
esca;pe através de algumas fendas. Como proceder para a fazer
romper? Tento-o com pouca esperança de êxito. Calculem se
há nisto al&o com que pintar agradáveis quadros e dar-lhes um
colorido muito atraente. Tenho pois que prevenir os que quise­
rem encetar esta leitura de que, prosseguindo-a, nada os pode
precaver contra o aborrecimento, a não ser o desejo de acabar de
conhecer um homem, e o amor sincero da justiça e da verdade.
Fiquei, na primeira parte, no momento em que partia des­
gostoso para Paris, deixando o meu coração nas Charmettes,
construindo ali o meu último castelo no ar, projeC!tando trazer
um dia aos pés de Mamã, restituída a si:' mesma, os tesouros que
houvesse adquirido, e contando com o meu sistema musical
como se fora a fortuna certa.
Demorei-me algum tempo em Lyon para ver os meus conhe­
cimentos, arranjar algumas recomendações para Paris, e vender
os livros de geometria que havia trazido comigo. Toda a gente
me recebeu bem. Monsieur e Madame de Mably mostraram pra­
zer em ver-me, convidando-me para jantar várias vezes. Em
sua casa conheci o abade de Mably, como já houvera conhecido
o abade de Cond.illac, ambos de visita a seu irmão. O abade de
Mably deu-me algumas cartas de apresentação para Paris, entre
as quais uma para Monsieur de Fontenelle e outra para o conde
de Caylus. Com um e outro mantive relações muito agradáve;s,
sobretudo com o primeiro, que até à morte não deixou de me
manifestar a sua amizad� e nas nossas entrevistas me deu
conselhos que eu deveria ter aproveitado melhor.

13 273
Tornei a ver Monsieur Bordes, que conhecera havia muito
tempo, e que frequentemente me obsequiou com grande gene­
rosidade e com o maior prazer. Agora, como sempre, achei-o o
mesmo. Foi ele que conseguiu vender-me os livros, e espontâ­
neamente ofereceu-me ou arranjou-me excelentes recomenda­
ções para Paris.
Tornei a ver o Sr. Intendente, cujo conhecimento devia a
Monsieur Bordes, e a quem fiquei a dever o do Sr. Duque d.e
Richelieu, que nessa ocasião passou por Lyon. Fui-lhe apresen­
tado por Monsieur Pallu. Monsieur de Richelieu recebeu-me bem
e disse-me que o fosse visitar em Paris; o que fiz várias vezes,
sem que contudo as minhas relações com tão alto personagem,
de quem mais tarde terei que falar com frequência, me tivessem
jamais sido úteis no que quer que fosse.
Tornei a ver o músico David, que me havia prestado ser­
viços quando numa das minhas anteriores viagens me achara
aflito. Tinha-me emprestado ou dado um boné e umas meias,
que nunca lhe restitui, e que ele nunca me pediu, embora nos
tivéssemos visto várias vezes desde então. Fiz-lhe, contudo,
depois um presente quase equivalente. Diria mais se aqui se
tratasse do que eu deveria fazer; mas trata-se do que fiz, o que
infelizmente não é a mesma coisa.
Tornei a ver o nobre e generoso Perrichon, o que não se deu
sem que me ressentisse da sua ordinária magnificência; pois
que me fez o mesmo presente que anteriormente havia feito
ao gentil Bernard 1, pagando-me o lugar na diligência. Tornei
a ver o cirurgião Parisot, o melhor e o mais prestável dos
homens; tornei a ver a sua querida Godefroi, que ele há dez
anos conservava, e' cujo único merecimento consistia quase
e:x!Clusivamente na doçura do seu carácter e na bondade do seu
coração, mas que não podíamos abordar sem inte re sse nem
abandonar sem enternecimento; pois que se achava no último
período de uma tisica de que morreu pouco depois. Nada mostra
melhor as verdadeiras inclinações de um homem do que o género
das suas afeições 2 • Quando se havia visto a doce Godefroi, conhe­
cia-se o bom Parisot.

1 Pierre-Joseph Bernard (1710-1775), colaborador de Rameau e autor


da Arte de amar. - N. do T.
2 «A não ser que ele se haja primeiramente enganado na escolha,
ou que aquela a quem ele se houvera afeiçoado tenha depois mudado de
carácter graças a um concurso de causas extraordinárias; o que não é
absolutamente impossível. Se se quisesse admitir sem modificação este
princípio, seria pois preciso julgar de Sócrates por xantipa, sua mulher,

274
Devo obrigações a todos estes homens de bem. Posterior­
mente arredei-os a todos, não certamente por ingratidão, mas
devido àquela minha invencivel preguiça que frequentemente
o faz parecer. Nunca o sentimento dos seus serviços me saiu
do coração; rter-me-ia porém custado menos provar-lhes o meu
reconhecimento do que testemunhar-lho assiduamente. A pon­
tualidade em escrever foi sempre coisa acima das minhas for­
ças; logo que entro de desleixar-me, a vergonha e a confusão
em reparar a minha falta fazem-ma agravar, e passo a não
escrever de todo. Conservei-me pois silencioso, parecendo tê-los
esquecido. Parisot e Perrichon nem sequer em tal repararam,
e encontrei-os sempre na mesma; mas vinte anos depois ver­
-se-á, com Monsieur Bordes, até onde o amor-próprio de um
espirito formoso pode levar a sua vingança quando se julga
desprezado.
Antes de abandonar Lyon, não devo olvidar uma pessoa
bem amável que tornei a ver com mais prazer do que nunca,
e que no meu coração deixou bem doces recordações. É Made­
moiselle Serre, de quem falei na primeira parte, e com a qual
tinha reatado relações quando me achava em casa de Monsieur
de Mably. Como tinha mais vagar nesta viagem, vi-a com mais
frequência; o meu coração afeiçoou-se-lhe vivamente. Tenho
algumas razões para pensar que o dela não me era desfavo­
rável, mas Mademoiselle Serre concedeu-me tal confiança que
me tirou a tentação de abusar dela. Não tinha nada, e eu tam­
bém não; as nossas situações eram por de mais semelhantes
para que pudéssemos unir-nos, e, em vista dos planos que tinha,
estava bem longe de pensar no casamento. Disse-me que um
rapaz negociante, chamado Monsieur Genêve, parecia querer
afeiçoar-se-lhe. Vi-o uma ou duas vezes em casa dela; pare­
ceu-me ser homem de bem, e passava por sê-lo. Persuadido de
que seriam felizes, desejei que ele casasse com ela, como depois
veio a suceder, e, para não perturbar os seus inocentes amores,
dei-me pressa em partir, formulando pela felicidade daquela
encantadora rapariga votos que, ai! só foram rutendidos cá em
baixo por um tempo demasiado breve, pois que vim a saber
depois que, ao fim de dois ou três anos de estar casada, havia

e de Dion por Calippus, seu amigo: o que seria o mais infquo e o mais
falso juízo jamais formulados. Aliás, afaste-se daqui qualquer aplicação
injuriosa para a mulher. lll: certo que esta é mais l imitada e mais suscep­
tível de enganar do que eu o havia julgado; mas pelo seu carácter puro,
excelente, sem malícia, é digna de toda a minha estima, e tê-la.-á enquanto
viver.»- Nota de J.-J. Rousseau.

275
morrido. Entretido com as minhas doces saudades durante todo
o resto da viagem, senti nesse momento e senti frequentes
vezes desde então, ao pensar em tal, que se os sacrifícios que
fazemos ao dever e à virtude nos custam caro, somos bem pagos
pelas suaves record31ções que nos deixam no fundo do coração.

Tanto quanto na minha anterior viagem tinha visto Paris


pelo lado desfavorável, desta vez fi-lo pelo lado brilhante; não,
todavia, pelo que diz respeito à minha instalação; porquanto,
seguindo um endereço que me fora dado por Monsieur Bordes,
fui-me hospedar no hotel de Saint-Quentin, na rua dos Cordiers,
perto da Sorbona, péssima rua, péssimo hotel, péssimo quarto,
mas onde no entanto se haviam hospedado homens de valor,
como Gresset, Bordes, os abades de Mably, de Condillac, e muitos
outros, dos quais infelizmente já lá não encontrei nenhum.
Encontrei porém um tal Monsieur de Bonnefond, fidalgo pro­
vinciano, coxo, litigante, armado em purista, a quem devo
haver conhecido Monsieur Roguin, presentemente o deão dos
meus amigos, e por intermédio deste o filósofo Diderot, de quem
mais tarde terei muito que falar.
Cheguei a Paris no Outono de 1741, com quinze lufses de
contado, a minha comédia Narciso, e o meu projecto musi­
cal como únicos recursos, e tendo por conseguinte pouco tempo
a perder para procurar tirar partido de 1tudo isto. Dei-me pressa
em fazer render as minhas recomendações. Um rapaz novo que
chega a Paris com uma figura razoável, e que se apresenta
dotado de talentos, tem sempre a certeza de receber agasalho.
Comigo, assim sucedeu; o que me valeu satisfações sem me apro­
veitar grande coisa. De todas as pessoas a quem me recomenda­
ram, só três me foram úteis: Monsieur Damesin, fidalgo saboiano,
então escudeiro, e creio que favorito da Sr: Princesa de Carig­
man; Monsieur de Bose, secretário da Academia das Inscrições e
guarda das medalhas do gabinete do rei; e o padre Castel
jesuíta, autor do Cravo ocular. Todas estas recomendações :
com excepção de Monsieur Damesin, provinham do abade
de Mably.
Monsieur Damesin providenciou ao mais urgente com dois
conhecimentos que me arranjou: um, o de Monsieur de Gasc,
presidente «à mortien> 1 do parlamento de Bordéus, e que tocava
muito bem violino; o outro, o abade de Léon, que então habi-

1 Barrete redondo de veludo preto, espécie de insígnia em certos


cargos importantes.
- N. do T.

276
tava na Sorbona, moço fidalgo muito amável, que morreu na
flor da idade depois de haver brilhado na sociedade alguns ins­
tantes sob o nome de cavaleiro de Rohan. Ambos tiveram a
fantasia de aprender composição. Dei-lhes alguns meses de
lições que aguentaram um pouco a minha bolsa exausta.
O abade de Léon ganhou-me amizade, e quis fazer de mim
seu secretário; não era contudo rico, e ao todo só pôde ofere­
cer-me oitocentos francos, que com bastante pesar recusei, mas
que não podiam chegar-me para casa, comida e vestuário.
Monsieur de Bose recebeu-me muito bem. Amava o saber,
e possuía-o; mas era um pouco pedante. Madame de Bose pode­
ria ser sua filha; era brilhante e presumida. Jantava algumas
vezes com eles. Não se poderia ter um ar mais desastrado e
mais idiota do que eu tinha diante dela. Os seus modos livres
intimidavam-me, e tornavam os meus mais divertidos. Quando
ela me apresentava um prarto, adiantava o garfo para timida­
mente espetar um bocadinho do que me oferecia; de maneira
que restituía ao criado o prato que me havia destinado, vol­
tando-se para que eu a não visse rir. Não suspeitava o mais
mínimo que na cabeça de tal labrego pudesse existir algum espí­
rito. Monsieur de Bose apresentou-me a Monsieur de Réaumur,
seu amigo, e que vinha jantar a sua casa todas as sextas-feiras,
dia da Academia das Ciências. Falou-lhe do meu projecto, e
do desejo que eu tinha de o submeter ao exame da Academia.
Monsieur de Réaumur encarregou-se da proposta, que foi aceita;
no dia marcado, fui introduzido e apresentado por Monsieur de
Réaumur, e no mesmo dia, 22 de Agosto de 1742, tive a honra
de ler à Academia a Memória que havia preparado para esse
fim. Posto que esta ilustre assembleia fosse certamente impo­
nentissima, senti-me diante dela menos intimidado do que
diante de Madame de Bose, e sai-me razoàvelmente da minha
leitura e das minhas respostas. A Memória teve êxito, e valeu-me
cumprimentos, que me surpreenderam tanto quanto me lison­
jearam, pois que dificilmente imaginava que perante uma Aca­
demia quem quer que a ela não pertencesse pudesse possuir senso
comum. Os delegados que me apresentaram foram: Monsieur
de Mairan, Monsieur Hellot e Monsieur de Fouchy: todos certa­
mente pessoas de valor, mas dos quais nem um só sabia música,
o suficiente ao menos para estar em situação de apreciar o
meu projecto.
Durante as minhas conferências com estes senhores, che­
guei, com tanta certeza como admiração, à convicção de que
se os sábios têm às vezes menos preconceitos do que os outros

277
homens, em compensação agarram-se com muito mais força
aos que têm. Por muito fracas, por muito erróneas que em
grande parte fossem as suas objecções, e se bem que eu lhes
respondesse timidamente, confesso-o, e exprimindo-me mal,
mas com razões peremptórias, nem uma só vez consegui
fazer-me compreender por eles e satisfazê-los. Pasmei sempre
da facilidade com que, gra;ças a algumas frases sonoras, me
refutaram sem me haver compreendido. Descobriram, não sei
onde, que um monge chamado padre Souhaitti havia em tempos
concebido notar a gama por meio de algarismos. Foi o bas­
tante para sustentarem que o meu sistema não era novo, pas­
sando por sê-lo; pois que, embora eu não houvesse nunca ouvido
falar no padre Souhaitti, e embora o seu sistema de escrever
as sete notas do cantochão sem sequer pensar nas oitavas não
merecesse de modo nenhum ser posto em paralelo com a minha
invenção simples e cómoda de notar fàcilmente com algarismos
a música imaginável, claves, pausas, oitavas, compassos, tempos
e valores das notas, coisas em que o padre Souhaitti nem sequer
havia pensado; era contudo absolutamente verdadeiro dizer-se
que, quanto à elementar expressão das sete notas, era ele o
seu primeiro inventor. Todavia, além de haverem dado a esta
invenção primitiva mais importância do que ela tinha, não se
ficaram por aqui, e logo que quiseram falar dos fundamentos
do sistema, não fizeram mais do que desarrazoar. A maior van­
tagem do meu era anular as rtransposições e as claves, de sorte
que o mesmo trecho se achava notado e transportado à von­
tade, em ,qualquer tom que se quisesse, por meio da mudança
suposta de uma só letra ini'cial no começa da ária. Aqueles
senhores haviam ouvido dizer aos musicastros de Paris que
o método de executar por transposição não valia nada. Parti­
ram daqui para transformarem em objecção invencível contra
o meu sistema a sua mais nítida vantagem, e decidiram que
a minha notação era boa para a música vocal, e má para a
música instrumental; em vez de decidirem, como deviam, que
era boa para a música vocal e melhor ainda para a música
instrumental. De acordo com o seu relatório, a Academia outor­
gou-me um certificado cheio de amabi:lissimos cumprimentos,
mediante o qual se esclarecia que, quanto ao fundo, não julgava
o meu sistema nem novo nem útil. Supus não ser necessário
ilustrar com semelhante peça a obra intitulada Dissertação
sobre a música moderna, com a qual apelei junto do público.
Vem a propósito observar que, mesmo com um espírito
limitado, o conhecimento único, mas profundo, da coisa é pre-

278
ferivel, para bem se julgar dela, a todas as luzes fornecidas
pela cultura das ciências, quando a elas se não juntou o estudo
particular daquela de que se trata. A única obje·cção sólida
que havia a fazer ao meu sistema foi feita por Rameau. Mal
lho expliquei, viu-lhe ele logo o lado fraco. Os seus sinais,
disse-me ele, são muito bons pelo que toca a representarem
claramente os intervalos e a mostrarem sempre o simples no
duplo, coisas que as notas ordinárias não fazem; são porém
maus no aspecto em que exigem uma ope-ração do espirita 'que
nem sempre pode seguir a rrupidez da execução. A posição das
nossas notas, continuou ele, representa-se à vista sem o con­
curso desta operação. Se duas notas, uma muito aguda, outra
muito grave, se encontram ligadas por uma série de notas inter­
mediárias, vejo ao primeiro golpe de vista o progresso por graus
conjuntos de uma para a outra, mas para no seu sistema me
certificar desta série é necessàriamente preciso que eu soletre
um a um todo$ os algarismos: o golpe de vista não basta.
A objecção pareceu-me irrespondível, e imediatamente concor­
dei com ela: embora seja simples e evidente, só pode ser suge­
rida por uma grande prática da arte, e não é para admirar que
não tenha ocorrido a nenhum académico; o que é para admi­
rar é que todos estes grandes sábios, que sabem tantas coisas,
saibam tão mal que cada qual não devia julgar senão do
seu oficio.
As frequentes visitas que eu fazia aos meus comissários e a
outros académicos habilitaram-me a travar conhecimento com
tudo o que Paris conta de mais distinto na literatura; e graças a
isso tal conhecimento tornou-se realmente efectivo, quando, pos­
teriormente, me vi de súbito inscrito entre eles. Quanto ao pre­
sente, obcecado pelo meu sistema musical, teimava em querer
operar por meio dele uma revolução nas belas-artes, e alcançar
deste modo a celebridade que, nas belas-artes, se associa sempre
em Paris à fortuna. Fechei-me no meu quarto e durante dois ou
três meses trabalhei com ine�rimivel ardor na refundição da
Memória que havia lido à Academia, em vistas de uma obra des­
tinada ao público. A dificuldade estava em encontrar um editor
que quisesse tomar conta do meu manuscrito, visto haver alguma
despesa a fazer com os novos caracteres, os editores não ati­
rarem com os seus escudos à cabeça dos principiantes, e, apesar
disso, me parecer inteiramente justo 'que a minha obra me
rendesse o pão que eu havia comido escrevendo-a.
Bonnefond arranjou-me Quillau pai, que fez comigo um
contrato a meias, sem contar com o privilégio, que eu paguei

279
sozinho. O dito Quillau tanto fez, que me fiquei apenas pelo
privilégio, e nunca recebi um real da edição, que provàvelmente
teve fraca venda, se bem que o abade Desfontaines me hou­
vesse prometido fazê-la circular, e que os outros jornalistas
houvessem dito muito bem dela.
o maior obstáculo à experimentação do meu sistema era o
receio de que, a não ser ele admitido, se perdesse o tempo �asto
em aprendê-lo. A isto respondia eu que a prática das minhas
notas tornava as ideias tão claras, que mesmo para aprender
música pelos caracteres ordinários ainda se ganhava tempo
começando pelos meus. Para prová-lo experimentalmente, ensi­
nei gratuitamente música a uma jovem americana, chamada
Mademoiselle Des Roulins, que Monsieur Roguin me havia apre­
sentado; em três meses achava-se apta a decifrar com as
minhas notas fosse que música fosse, e até a cantar à primeira
vista melhor do que eu toda aquela que não fosse sobrecarregada
de dificuldades. Tal êxito foi impressionante, mas ignorado.
Qualquer outro teria enchido com ele os jornais; no entanto,
tendo eu algum talento para achar as coisas úteis, nunca o tive
para tirar delas partido.
Eis como se quebrou novamente a minha fonte de Hierão:
desta vez, porém, eu ·tinha trinta anos, e encontrava-me na ci­
dade de Paris, onde se não vive do nada. A decisão que tomei neste
extremo só surpreenderá aqueles que não houverem lido bem
a primeira parte das minhas confissões. Acabava de despender
movimentos tão grandes como inúteis; tinha necessidade de
tomar fôlego. Em vez de me entregar ao desespero, entre­
.

guei-me tranquilamente à pregui!Ça e aos cuidados da Provi­


dência, e, para lhe dar tempo a operar a sua obra, pus-me a
comer, sem pressa, alguns Iufses que ainda me sobravam, regu­
lando sem a cercear a despesa dos meus descuidados prazeres,
só indo ao café de dois em dois dias, e ao teatro duas vezes por
semana. Com respeito à despesa com as moças, não tive que
fazer nenhuma reforma, pois que nunca na minha vida des­
pendi um soldo para esse fim, a não ser uma só vez, de que em
breve falarei.
A segurança, a volúpia, a confiança com que me entregava
a esta vida indolente e solitária, que não tinha com que fazer
durar três meses, é uma das singularidades da minha vida e
uma das extravagâncias do meu feitio. A extrema necessidade
que eu havia de que pensassem em mim era precisamente o que
me tirava a coragem de me mostrar, e a necessidade de fazer
visitas tornava-mas a tal ponto insuportáveis, que deixei até

280
de ver os académicos e outras pessoas de letras, entre as quais
me havia já insinuado. Marivaux, o abade de Mably, Fontenelle
foram quase que os únicos a casa de quem continuei a ir por ve­
zes. !Mostrei mesmo ao primeiro a minha comédia Narciso.
Agradou-lhe e teve a amabilidade de a retocar. Diderot, mais
novo do que aqueles, era pouco mais ou menos da minha idade.
Gostava de música; conhecia a sua teoria; falávamos juntos dela;
ele falava-me igualmente das suas obras em projecto. Isto em
breve criou entre nós relações mais intimas, que duraram
quinze anos, e que provàvelmente durariam ainda, se infeliz­
mente, e por cu1pa dele, eu não tivesse sido atirado para o
mesmo oficio.
Não se imagina em que empregava eu o curto e precioso
interregno que ainda me restava antes de ser forçado a mendigar
o meu pão: pois a estudar de cor passos de poetas, que mil vezes
havia aprendido e outras tantas esquecido. Todas as manhãs,
ai pelas dez horas, eu me ia passear para o Luxemburgo, com
um Virgilio ou um Rousseau 1 na algibeira, e ai ficava, até à
hora do jantar, a recordar ora uma ode sagrada, ora uma
bucólica, sem me aborrecer pelo facto de, enquanto revia a
daquele dia, esquecer infalivelmente a da véspera. Recorda­
va-me de que depois da derrota de Nicias em Siracusa, os ate­
nienses cativos ganhavam a vida a recitar os poemas de
Homero. O partido que para me precaver contra a miséria tirei
deste rasgo de erud:Lção, foi exercitar a minha excelente memó­
ria a decorar os poetas.
Outro expediente não menos sólido que eu tinha era Q
xadrez, a que consagrava regularmente, no Maugis, as tardes
em que não ia ao espectáculo. Travei ali conhecimento com
Monsieur de Légal, com um tal Monsieur Husson, com Philidor,
com todos os grandes jogadores de xadrez do tempo e nem por
isso me tornei mais desembaraçado. Não duvidava, no entanto,
de que por fim viesse a ser mais forte do que eles, e, em meu
entender, isso era o suficiente para me servir de remédio. Fosse
qual fosse a loucura por que me entusiasmasse, a maneira como
raciocinava a seu respeito era sempre a mesma. Dizia para
comigo: Todo aquele que se distinguir em qualquer coisa pode
ter a certeza de que será procurado. Distingamo-nos, pois, não
importa em quê; serei procurado, as ocasiões apresentar-se-ão,
e o meu mérito fará o resto. Esta criancice não era o sofisma

1 o poeta Jean-Baptiste Rousseau, a quem já se fez referencia.


- N. do T.

281
da minha razão, era o da minha indolência. Aterrorizado com
os grandes e imediatos esforços que seria necessário fazer para
me empenhar em qualquer coisa, tratava de lisonjear a minha
preguiça, e os argumentos com que velava a minha vergonha
eram dignos dela.

Desta maneira, esperava tranquilamente que o meu


dinheiro acabasse, e creio que teria chegado ao último soldo
sem por isso me inquietar mais, se o padre Castel, a quem
quando ia ao café visitava algumas vezes, me não tivesse arran­
cado desta letargia. O padre Castel era louco, mas de resto
bom homem: zangava-se por me ver consumir-me assim sem
nada fazer. Já que nem os músicos nem os sâbios cantam em
uníssono convosco, disse-me ele, mudai de corda e vede a s
mulheres. Talvez tenhais mais sorte dessa banda. Falei de
vós a Madame de Beuzenval; ide visitá-la da minha parte. :É uma
excelente mulher que verá com prazer um conterrâneo do filho
e do marido. Encontrareis lá a filha, Madame de Broglie, que
é uma mulher de espírito. Outra é Madame Dupin, a quem falei
igualmente de vós: levai-lhe o vosso trabalho; ela deseja ver­
-vos, e receber-vos-á bem. Em Paris nada se faz senão atra­
vés das mulheres: são como curvas de que os sages são as
assimptotas; aproximam-se constantemente delas, mas sen•
nunca lhes tocarem.
Após haver diferido de dia para dia estas terríveis maça­
das, ganhei por fim coragem, e fui ver Madame de Beuzenval.
Recebeu-me bondosamente. Como Madame de Broglie houvesse
entrado no aposento, disse-lhe ela: Minha filha, aqui está Mon­
sieur Rousseau de quem o padre Castel nos falou. Madame
de Broglie cumprimentou-me pela minha obra, e, levando-me
ao cravo, mostrou-me que se havia entretido com ela. Vendo
eu no relógio que era quase uma hora, quis-me ir embora.
Madame de Beuzenval disse-me: Está longe do seu bairro, fique,
jantará cá. Não me fiz rogado. Um quarto de hora depois
compreendi que o jantar para que me havia convidado era na
copa. Madame de Beuzenval era uma bondosissima mulher, mas
muito limitada, e bastante cheia da sua nobreza polaca; tinha
poucas ideias acer,ca das atenções que se devem ao talento.
Mesmo nesta ocasião julgava-me mais pelo meu porte do que
pela minha indumentária, a qual, se bem que muito simples,
era bastante limpa, e de maneira nenhuma inculcava um
homem habituado a jantar na copa. Tinha-me esquecido do
caminho desta há muitíssimo tempo para desejar voltar a

282
aprendê-lo. Sem deixar transparecer todo o meu despeito, disse
a Madame de Beuzenval estar-me lembrando de uns quefazer­
zitos que me chamavam ao meu bairro, e quis partir. Madame
de Broglie aproximou-se da mãe, e disse-lhe ao ouvido algumas
palavras que produziram efe�to. Madame de Beuzenval levan­
tou-se para me reter e disse-me: Espero que nos dará a honra
de jantar na nossa companhia. Entendi que mostrar-me soberbo
seria mostrar-me idiota, e fiquei. Aliás, a bondade de Madame de
Broglie havia-me tocado e tornava-ma interessante. Fiquei
muito satisfeito por jantar com ela, e esperei que em me conhe­
cendo melhor não tivesse que lamentar haver-me proporcio­
nado essa honra. O Sr. Presidente de Lamoignon, grande amigo
da casa, jantava lá também. Tinha, como Madame de Broglie,
aquela ligeira gíria de Paris, toda palavrinhas, toda alusões
finas. Nada havia ali em que o pobre Jean Jacques pudesse bri­
lhar. Tive o bom senso de não querer passar por gentil a des­
pei�o de Minerva, e calei-me. Feliz de mim se sempre houvesse
sido assim tão prudente! Não me encontraria no abismo em
que hoje me vejo.
A minha descortesia desolava-me por não poder justificar
aos olhos de Madame de Broglie o que esta havia feito em meu
beneficio. Depois do jantar, lembrei-me do meu recurso cos­
tumado. Tinha na algibeira uma epístola em verso, escrita a
Parisot durante a minha estada em Lyon. Não faltava um certo
calor ao trecho; pus ainda mais na maneira como o recitei, e
fi-los chorar a todos os três. Quer por vaidade, quer porque hou­
vesse verdade nas minhas interpretações, julguei perceber que
os olhares de Madame de Broglie diziam à mãe: E então,
mamã, enganei-me ao dizer-vos que este homem estava mais
indicado para jantar connosco do que com as criadas? Até
este momento sentia-me um pouco pesaroso; contudo, depois
de me haver vingado desta forma, senti-me contente. Madame
de Broglie, levando um pouco longe de mais o juizo favorável
que tinha feito a meu respeito, .julgou que eu iria causar sensa­
ção em Paris, e tornar-me um homem de muita sorte. Para guiar
a minha inexperiência, deu-me as Confissões do Conde de t
. . .

Este livro, disse-me ela, é um mentor que vos será útil na


sociedade: fareis bem em consultá-lo por vezes. Guardei mais
de vinte anos este exemplar, grato à mão donde ele provinha,
mas rindo-me frequentemente da opinião que esta dama parecia
ter a respeito do meu mérito de galã. Logo que li a obra, dese-

1 Obra de Duelos. - N. do T.

283
jei obter a amizade do autor. A minha inclinação inspirava-me
muito bem: é o único amigo que tive entre os homens de letras 1•

Desde então ousei supor que, interessando-se por mim, a


Sr.• Baronesa de Beuzenval e a sr: Marquesa de Broglie não me
deixariam ficar muito tempo sem recursos, e não me enganava.
Falemos agora do meu ingresso em casa de Madame Dupin,
que teve mais longínquas consequências.
Como se sabe, Madame Dupin era filha de Samuel Bernard
e de Madame Fontaine. Eram três irmãs, a que se poderia cha­
mar as três graças: Madame de La Touche, que teve uma esca­
padela em Inglaterra com o duque de Kingston; Madame d'Arty,
amante e, mais do que isso, a amiga, a única e sincera amiga do
Sr. Príncipe de Conti, mulher adorável tanto pela doçura, pela
bondade do seu encantador cará:cter, como pela formosura do seu
espírito e pela inalterável alegria do seu feitio; Madame Dupin,
enfim, a mais formosa das três, e a única em cuja conduta não
havia desatino algum a censurar. Foi ela o preço da hospitali­
dade de !Monsieur Dupin, a quem a mãe a deu com um lugar
de recebedor geral dos impostos e uma enorme fortuna, grata
pelo acolhimento com que ele a recebera na sua província.
Quando a vi pela primeira vez, era ainda uma das mulheres
mais bonitas de Paris. Recebeu-me quando. fazia a sua toilette.
Tinha os braços nus, os cabelos soltos, o penteado mal arran­
jado. Tal acolhimento era para mim inteiramente novo; a
minha pobre cabeça não resiste; perturbo-me, perco-me, e ai
estou eu imediatamente apaixonado por Madame Dupin.
Parece que a minha perturbação me não prejudicou no
seu conceito; não deu por nada. Acolheu o livro e o autor,
falou-me do meu projecto como pessoa instruída, cantou,
acompanhou-se ao cravo, reteve-me para jantar, sentou-me à
mesa ao lado dela; nem tanto era preciso para me enlouquecet;
o que sucedeu. Permitiu-me que a viesse ver; usei, a�busei desta
permissão. Aparecia quase todos os dias, jantava com ela duas
ou três vezes por semana. Morria desejoso de falar; nunca
ousava fazê-lo. Várias razões refor1çavam a minha timidez natu­
ral. O ingresso numa casa opulenta era uma porta aberta à
fortuna; na minha situação, não me queria arriscar a que ma
fechassem. Por muito amável que fosse, Madame Dupin era
séria e fria; nas suas maneiras não achava nada de provocador

1 Acreditei-o durante tanto tempo e de tal maneira que foi a ele


que, no meu regresso a Paris, confiei o manuscrito das minhas confissões.
·
Nunca o desconfiado J. J. pôde acreditar na perfídia e na falsidade senão
depois de haver sido vitima delas. - Nota àe J.-J. Rousseau.

284
que me permitisse afoitar-me. A sua casa, tão brilhante então
como nenhuma outra em Paris, reunia sociedades às quais só
faltava serem um pouco menos numerosas para serem de escol
em todos os sentidos. Madame Dupin gostava de todas as pes­
soas que resplandeciam: os grandes, os homens de letras, as
mulheres formosas. Em sua casa só se viam duques, embaixado­
res, dignitários. A Sr: Princesa de Rohan, a Sr." Condessa de.
Forcalquier, Madame de Mirepoix, Madame de Brignolé, Milady
Hervey, podiam passar por suas amigas. Monsieur de Fontenelle,
o abade de Saint-Pierre, o abade Sallier, Monsieur de Four­
mont, Monsieur de Bernis, Monsieur de Buffon, Monsieur de
Voltaire pertenciam à sua roda e vinham aos seus jan­
tares. Se a sua atitude reservada não atraia muito a gente nova.,
a sua sociedade, desta forma tanto melhor seleccionada, nem
por isso era menos imponente, e o pobre Jean Jacques não
tinha grandes motivos para se envaidecer de brilhar no meio
de tudo isto. !Não me atrevia pois a falar; mas não podendo
mais calar-me, atrevi-me a escrever. Conservou dois dias a
minha carta sem me falar nela. Ao terceiro dia restituiu-ma,
dirigindo-me verbalmente algumas palavras de estimulo num
tom frio que me gelou. Quis falar, as palavras eXJpiraram-me
nos lábios; a minha súbita paixão extinguiu-se com a espe­
rança, e, depois de uma declaração em forma, continuei a viver
com- ela como dantes, sem nunca mais lhe falar de nada, nem
mesmo com os olhos.
Julguei que a minha idiotice tinha esquecido; enganava-me.
Monsieur de Francueil, filho de Monsieur Dupin e enteado de
Madame Dupin, era pouco mais ou menos da idade desta e da
minha. Tinha espirita, boa figura; podia ter pretensões; dizia-se
que as tinha junto dela, talvez apenas por ela lhe haver dado
uma mulher verdadeiramente feia, verdadeiramente boa,
vivendo perfeitamente bem com ambos. Monsieur de Francueil
amava e cultivava os talentos. A música, de que era perfeito
conhecedor, foi um meio de ligação entre nós. Via-o bastante;
afeiçoei-me a ele: de repente, deu-me a entender que Madame
Dupin achava as minhas visitas demasiado frequentes, e me
pedia que as espa-çasse. Tal cumprimento teria vindo na devida
altura quando ela me havia devolvido a carta; todavia, oito ou
dez dias depois, e sem qualquer outro motivo, parecia-me
fora de propósito. Tal facto ocasionava uma posição tanto mais
singular, quanto era certo eu nem por isso ser menos bem rece­
bido do que dantes em casa de Monsieur e de Madame de
Francueil. No entanto, aparecia mais raramente, e deixaria de

285
lá ir de todo, se, graças a um outro capricho imprevisto,
Madame Dupin não me houvesse pedido que tomasse conta do
filho durante oito ou dez dias, pois que, como ia mudar de aio,
ficava só durante este tempo. Passei estes oito dias num supli­
cio que só o prazer de obedecer a Madame Dupín me podia
tornar suportável; porque o infeliz Chenonceaux já tinha então
aquela desgraçada cabeça que esteve a ponto de desonrar a
fam1lia, e que o levou a morrer na ilha de Bourbon. Enquanto
permaneci junto dele, impedi-o de fazer mal a si próprio ou
aos outros, e foi tudo: ainda assim, não foi um .trabalho insig­
nificante; não me teria encarregado dele outros oito dias, ainda
que Madame Dupin se me entregasse como recompensa.
Monsieur de Francueil ganhava-me amizade, eu trabalhava
com ele; começámos juntos um curso de química com Rouelle.
Para me aproximar dele, deixei o hotel de Saint-Quentin, e fui
instalar-me no Jogo da Péla da Rua Verdelet, a qual vai ter
à Rua Plâtriêre, onde Monsieur Dupin habitava. Em virtude de
uma constipação mal curada, apanhei um catarro do peito
que me ia levando. Tive frequentemente na minha mocidade
destes desarranjos inflamatórios, pleurisias, e sobretudo amig­
dalites a que era muito atreito, as quais não registo aqui, mas
que no entanto me fizeram ver de bem perto a morte para me
familiarizar com a sua imagem. Durante a convalescença, tive
tempo para reflectir na minha situação, e deplorar a minha
fraqueza, a minha timidez, e a minha indolência, a qual, não
obstante o fogo de que me sentia abrasado, me deixava arras­
tar numa ociosidade de espírito sempre às portas da miséria.
Na véspera do dia em que caíra doente, tinha ido ver uma ópera
de Royer, que então se representava, e cujo titulo esqueci.
Apesar da minha prevenção contra os talentos dos outros, que
me fez sempre desoonfiar dos meus, não podia deixar de achar
a música fraca, sem -calor, sem invenção. Ousava dizer às vezes
comigo mesmo: Parece-me que era capaz de fazer melhor do
que isto. Mas a terrível ideia que tinha da composição de uma
ópera, e a importância que eu queria dessem a tal cometi­
mento as pessoas da arte, desanimavam-me imediatamente,
fazendo-me corar de haver ousado pensar em tal coisa. Onde
encontrar, aliás, quem quisesse forneeer-me a letra e dar-se
ao trabalho de a ajeitar à minha vontade? Tâis ideias a res­
peito de música e de ópera voltaram-me durante a doença, e
no delirio da febre, compunha melodias, duos, coros. Tenho a
certeza de haver feito dois ou três trechos di prima intenzione,
quiçá dignos da admiração dos mestres se estes houvessem

286
podido ouvi-los executar. Oh, se os sonhos de uma pessoa cheia
de febre se pudessem registar, que grandes e sublimes coisas
não se veriam por vezes sair do seu delirio!
Estes assuntos de música e de óper à preocuparam-me ainda
durante a convalescença, mas com mais calma. A força de
pensar nisso, e mau grado meu, quis descarregar o coração, e
tentar fazer sozinho uma ópera, letra e música. Não era intei­
ramente a minha primeira tentativa. Tinha feito em Chambéri
uma ópera-tragédia intitulada Ijis e Anaxareto, que tive o bom
senso de atirar ao lume. Em Lyon havia feito outra intitulada
A Descoberta do Novo Mundo, a qual acabou por ter o mesmo
destino, dep-ois de a haver lido a Monsieur Bordes, ao abade
de Mably, ao abade Trublet e a outros, e se bem que houvesse
já escrito a música do prólogo e do primeiro acto, e que David,
ao vê-la, me tivesse dito que havia nela trechos dignos do
Buononcini.
Desta vez, antes de pôr mãos à obra, levei tempo a medi­
tar o meu plano. Projectava um bailado heróico com três assun­
tos diferentes em três actos separados, cada qual com uma
música de carácter diferente; e, tomando para cada assunto
os amores de um poeta, intitulava a ópera de As musas galan­
tes. O primeiro acto, num género de música forte, era o Tasso;
o segundo, num género de música terna, era o Ovídio; e o
terceiro, intitulado Anacreonte, devia respirar a alegria do
ditirambo. Comecei por experimentar o primeir-o acto, e entre­
guei-me a ele com um entusiasmo 1que, pela primeira vez, me
fez gozar as delícias da inspiração musical. Uma tarde, à entrada
da ópera, sentindo-me atormentado, dominado pelas ideias,
meto o dinheiro na algibeira, corro a fechar-me em casa, dei­
to-me na cama, depois de haver fechad-o bem os cortinados para
impedir que a luz entrasse, e, uma vez ali, entregando-me intei­
ramente ao estro poético e musical, componho ràpidamente em
sete ou oito horas a melhor parte do primeiro acto. Posso dizer
que os meus amores pela princesa de Ferrara ( porque eu nesse
momento era o Tasso) , assim como os meus nobres e altivos
sentiment-os para com o injusto irmão dela, deram-me uma
noite mil vezes mais deliciosa do que se me houvesse encontrado
nos braços da própria princesa. De manhã, não me restava na
cabeça mais do que uma pequeníssima parte do que tinha feito ;
mas este pouco, quase delido pelo cansaço e pelo· s-ono, não
deixava de acusar ainda a energia dos trechos de que oferecia
os destroços.

287
Por esta vez, não levei muitq longe o trabalho, porque
outros quefazeres me desviaram dele. Enquanto me afeiçoava à
casa Dupin, Madame de Beuzenval e Madame de Broglie, que
continuava a visitar uma vez por outra, não me haviam esque­
cido. O Sr. Conde de Montaigu, capitão da guarda, acabava de
ser nomeado embaixador em Veneza. Era um embaixador no
género de Barjac, a quem fazia assiduamente a corte. O irmão,
o cavaleiro de Montaigu, fidalgo da casa do Sr. Delfim, era das
relações das duas damas e do Sr. Abade de Alary, da Acade­
mia francesa, que eu via algumas vezes. Sabendo que o embai­
xador procurava um secretário, Madame de Broglie propôs-me.
Entrámos em negociações. Pedi cinquenta luises de ordenado,
o que era pouquíssimo num lugar em 'que se tem que brilhar.
Só me queria dar cem pistolas, fazendo eu a viagem à minha
custa. A proposta era ridícula. Não pudemos chegar a acordo.
Monsieur de Francueil, que fazia todos os esforços para que eu
ficasse, venceu. Fiquei, e Monsieur de Montaigu partiu, levando
um outro secretário chamado Follau, que lhe haviam dado na
secretaria dos negócios estrangeiros. Mal chegaram a Veneza,
zangaram-se. Ao ver que lidava com um doido, Follau abando­
nou-o; e como Monsieur de Montaigu só tinha um moço abade
chamado De Binis, que se achava sob as ordens do secretário e
não era capaz de desempenhar o lugar deste, recorreu a mim.
O irmão cavaleiro, homem de espírito, deu-me a entender que
o lugar de secretário tinha direitos fixos, e atentou-me tanto
que acabei por aceitar os mil francos. Deram-me vinte luises
para a viagem, e parti.
Em Lyon, bem desejaria tomar o caminho do Monte Cenis,
para de passagem ir visitar a pobre Mamã. Desci porém o
Ródano e fui embarcar em Toulon, tanto por causa da guerra
e por motivos de ordem económica, como para obter um pas­
saporte de Monsieur de Mirepoix, que então governava a Pro­
vença e a quem eu vinha recomendado. Como Monsieur de
Montaigu não podia passar sem mim, escrevia-me carta após
carta para apressar a viagem : um incidente retardou-a.
Por esse tempo havia peste em Messina. A esquadra inglesa
achava-se aqui fundeada, e visitou o falucho em que eu me en­
contrava; o que, à chegada a Génova, depois _de uma longa e pe­
nivel travessia, nos obrigou a uma quarentena de vinte e um dias.
Deram a escolher aos passageiros fazê-la a bordo ou no lazareto,
onde nos preveniram de que só encontraríamos as ·quatro pare­
des, porque ainda não tinham tido tempo para o mobilar. Todos
escolheram o falucho. O calor insuportável, e exiguidade do

288
espaço, a impossibilidade de a gente se poder mexer, a vermina
levaram-me, a todo o risco, a preferir o lazareto. Conduzi­
ram-me a um grande edificio de dois andares absolutamente
nu, onde não encontrei nem uma janela, nem uma cama, nem
uma cadeira, nem sequer um escabelo para me sen•tar, nem
uma pouca de palha para me deitar. Trouxeram-me o capote,
o saco de noite e as duas malas; fecharam-me nas costas umas
grandes portas de enormes fe•chaduras, e ali fiquei, senhor de
passear à vontade de quarto em quarto e de andar em andar,
encontrando por toda a parte a mesma solidão e a mesma
nudez.
Nada disto me fez arrepender de ter escolhido o lazareto
de preferência ao falucho, e, qual novo Robinson, dispus-me
a instalar-me por vinte e um dias como se o fizesse para toda
a vida. Entretive-me primeiro a c8)Çar os piolhos que tinha apa­
nha;do no falucho. Quando, à força de mudar de roupa e de
fruto, me achei por fim limpo, pus-me a mobilar o quarto que
havia escolhido. Com os casacos e as ca;misas fiz um bom col­
chão, lençóis com toalhas que cosi, uma coberta do roupão, um
travesseiro do capote enrolado. Com uma das malas ao com­
prido fiz uma ·cadeira, com a outra ao alto uma mesa. Saquei
de papel, duma escrivaninha, e dispus como numa biblioteca
uma dúzia de livros que trazia. Em suma, acomodei-me tão bem,
que, com excepção dos cortinados e das janelas, achava-me tão
comodamente neste lazareto absolutamente vazio como no meu
Jogo da Péla da Rua Verdelet. As refeições eram-me servidas
com grande cerimonial ; dois granadeiros, de baioneta calada,
escoltavam-nos ; a escada era a sala de jantar, o patamar ser­
via-me de mesa, o degrau inferior de assento, e quando o jan­
tar se achava servido, retiravam-se tocando uma campainha
para me advertirem de ir para a mesa. Entre as refeições,
quando não lia nem escrevia, ou quando não trabalhava no
mobiliário, ia passear para o cemitério dos protestantes, que
me servia de pátio, e aí subia a uma lanterna que dava para o
porto, donde podia ver os navios entrar e sair. Passei assim
catorze dias, e poderia passar os vinte inteiros sem me abor­
recer uin instante, se Monsieur de Joinville, enviado de França,
a quem mandara uma carta avinagrada, perfumada e meio
queimada, não houvesse abreviado de oito dias a minha clausura :
fui passá-los a casa dele, e, confesso-o, dei-me melhor no seu
·
albergue do que no do lazareto. Acarinhou-me muito. O secre­
tário Dupont era um bom rapaz, que me levou a várias casas,
tanto de Génova como do campo, onde nos divertimos bas-

19 289
tante, e eu estabeleci com ele relações e correspondência, que
mantivemos muito tempo. Continuei agradàvelmente a minha
viagem através da Lomb.ardia. Vi Milão, Verona, Brescia, Pádua,
e cheguei por fim a Veneza, impacientemente esperado pelo
embaixador.
Encontrei montes de oHcios, da corte assim como dos outros
embaixadores, cuja parte cifrada ele não havia podido ler, em­
bora para isso possuísse todas as cifras necessárias. Como nunca
havia trabalhado em repartição alguma nem visto na minha
vida uma cifra ministerial, comecei por temer atrapalhar-me;
contudo, achei que não havia nada mais simples, e em menos
de oito dias tinha decifrado tudo, o que certamente não pagava
a pena; pois que, além de que a embaixada de Veneza se
encontra bastante inactiva, não seria nunca a semelhante
homem que iriam confiar a mais insignificante negociação. Não
sabendo nem ditar, nem escrever legivelmente, Monsieur de
Montaigu havia-se visto grandemente atrapalhado até eu che­
gar. Era-lhe bastante útil; ele sentia-o, e tratou-me bem. Outro
motivo ainda o levava a isso. O cônsul de França, Monsieur
Le Blond, tinha-se encarregado dos negócios da embaixada
desde que o predecessor do embaixador, Monsieur de Froulay,
enlouquecera, e continuou a tratar deles até pôr o embaixador
ao oorrente. Monsieur de Montaigu, com ciúmes por outrem
desempenhar o seu lugar, embora ele próprio disso fosse inca­
paz, ganhou azar ao cônsul, e logo que eu cheguei privou-o das
funções de secretário da embaixada para mas dar a mim. Estas
eram inseparáveis do titulo; Monsieur de Montaigu disse-me
que o tomasse. Enquanto permaneci junto dele, nunca me
enviou senão a mim com este titulo ao Senado e ao seu confe­
rente; e no fundo era muito natural que gostasse mais de ter
por secretário de embaixada um homem afecto a ele do que
um cônsul ou um funcionário de qualquer reparti!ção nomeado
pela corte.
Es·t a circunstância tornou a minha situação bastante agra­
dável, e impediu que os fidalgos do embaixador, que eram ita­
lianos, bem como os seus pajens e a maior parte da sua gente
me disputasse a primazia na casa. Servi-me com êxito da auto­
ridade, que dªi advinha, para conservar-lhe o direito de couto,
isto é, a imunidade do seu bairro, contra as tentativas várias
vezes feitas para a infringir, e a que os seus guardas venezianos
não cuidavam de resistir. Mas também nunca consenti que lá
se refugiassem bandidos, ainda que dai me pudessem advir van­
tagens de que Sua Excelência não desdenharia a sua parte.

290
Ousou mesmo reclamá-la sobre os direitos do secretariado
a que se chamava chancelaria. Estava-se em guerra; não dei­
xava de se fazer ali grande número de despachos de passapor­
tes. Cada um destes passaportes pagava um cequim ao secre­
tário que o despa<fuava e o referendava. Todos os meus
predecessores haviam recebido indistintamente este cequim,
tanto de franceses como de estrangeiros. Achei semelhante
costume injusto; e, sem ser francês, revoguei-o para os france­
ses; exigi, no entanto, o meu direito sobre qualquer outro com
tal rigor, que tendo-me o marquês Scotti, irmão do favorito da
rainha de Espanha, mandado pedir um passaporte sem me
enviar o cequim, mandei-lho pedir, atrevimento que o vindi­
cativo italiano não esqueceu. Logo que se soube da reforma por
mim feita na taxa dos passaportes, só passou a apresentar-se,
para os obter, uma multidão de pretensos franceses, que, nas
mais abomináveis algaravias, se diziam este provençal, aquele
picardo, aqueloutro burguinhão. Como tenho o ouvido bastante
apurado, não me deixei enganar, e duvido que um único italiano
me tenha comido o meu cequim e que um único francês o tenha
pago. Cometi a asneira de dizer a Monsieur de Montaigu, que
nada de nada sabia, o que tinha feito. A palavra cequim arre­
bitou as orelhas, e sem me dar a sua opinião a respeito da
supressão do dos franceses, exigiu que, pelo que tocava aos outros,
entrasse em contas com ele, prometendo-me vantagens equi­
valentes. Mais indignado com esta baixeza d o que alarmado
pelos meus próprios interesses, rejeitei altivamente a proposta;
ele insistiu, eu exaltei-me : Não senhor, disse-lhe eu, com bas­
tante veemência, guarde vossa Excelência o que é seu e deixe­
-me o que é meu; nunca vos entregarei nem um soldo. Vendo
que por este caminho nada ganhava, tomou outro, e não
teve vergonha de me dizer que, visto eu ter os lucros da sua
chancelaria, era justo que tivesse 1também as despesas. Não
quis discussões sobre tal artigo, e desde então forneci da minha
algibeira dinheiro para tinta, papel, lacre, vela, fita nonpareille,
e até o selo que mandei consertar, sem ele me ter nunca reembol­
sado de um real. Tal facto não me impediu de dar uma pequena
parte do produto dos passaportes ao abade De Binis, bom rapaz,
que estava bem longe de exigir semelhante coisa. Se era aten­
cioso comigo, eu não era menos correcto com ele, e vivemos
sempre bem um com o outro.
Com respeito à tarefa que eu tenteava, achei-a menos espi­
nhosa do que o receara para um homem sem experiência, junto
de um embaixador que não tinha mais, e cuja ignorância e tei-

291
mosia, ainda por cima, contrariavam parece que por prazer tudo
o que o bom senso e algumas luzes me inspiravam de acertado
para seu serviço e do rei. O que fez de mais razoável foi ligar-se
ao marquês de Mari, embaixador de Espanha, homem atilado e
fino que, se quisesse, lhe teria comido as papas na cabeça, mas
que, em vil'ltude da união de interesses das duas coroas, o acon­
selhava ordinàriamente muito bem, se o outro não houvesse
estragado os seus conselhos metendo sempre o bedelho na exe­
cução deles. A única coisa que tinham a fazer de concerto era
levar os venezianos a manterem a neutralidade. Estes não dei­
xavam de protestar a sua fidelidade na observância dela, ao
passo que publicamente iam fornecendo muntções às tropas
austríacas, e até recrutas, sob pretexto de deserção. Monsieur
de Montaigu, ,que, suponho e u , queria agradar à República, tam­
bém não deixava, apesar dos meus protestos, de me fazer asse­
verar em todos os ofícios que ela não infringiria nunca a neu­
tralidade. A teimosia e a estupidez deste pobre homem
faziam-me escrever e cometer constantemente disparates dos
quais me via bem forçado a ser o agente, visto que ele assim o
queria, mas que me tornavam por vezes o meu emprego insupor­
tável e até quase impraticável. Por exemplo, queria ele absoluta­
mente que a maior parte dos seus ofícios tanto para o rei como
para o ministro fossem cifrados, apesar de nem uns nem outros
conterem absolutamente nada que exigisse tal precaução. Fiz-lhe
ver que entre sexta-feira, dia em que chegavam os oficias da
corte, e sábado, dia em que os nossos partiam, não havia tempo
para tantas cifras e ainda para a enorme correspondência desti­
n::�,da ao mesmo correio de que estava encarregado. Para isso en­
controu um expediente admirável, que foi preparar na quinta­
-feira as respostas aos ofícios que deviam chegar no dia
seguinte. Esta ideia, apesar do que eu lhe pudesse dizer sobre
a impossibilidade, sobre a absurdidade da sua execução, pare­
ceu-lhe um achado tão feliz, que necessário foi acatá-la ; e em
todo o tempo que estive com ele, depois de haver tomado nota
de algumas palavras que me dizia à toa durante a semana, e de
algumas notas triviais que ia respigando aqui e ali, munido
apenas destes materiais, nunca deixava de lhe trazer na quinta­
-feira de manhã o rascunho dos ofícios que deviam partir no
sábado, salvo algumas adições ou correcções que fazia à pressa
de acordo com os que deviam chegar na sexta-feira, e aos quais
os nossos serviam de resposta. Tinha ele ainda uma mania
muito engraçada, que dava à sua correspondência um ridículo
difícil de imaginar. Era a de remeter cada noticia à sua fonte,

292
em vez de lhe fazer seguir o seu curso. Assinalava a Monsieur
Amelot as noticias da corte, a Monsieur de !Maurepas as de
Paris, a Monsieur de Havrincourt as da Suécia, a Monsieur de
La Chetardie as de Petersburgo, e por vezes a cada qual
as que provinham dele mesmo, e que eu vertia em termos um
pouco diferentes. Como de tudo que lhe trazia para assinar ele
só percorria com a vista os ofícios da corte e assinava os dos
outros embaixadores sem os ler, achava-me um pouco mais
senhor de compor estes últimos ao meu modo, e passei a subli­
nhar-lhes ao menos as notícias. Mas foi-me impossivel dar uma
forma razoável aos ofícios essenciais: por muito feliz me dava
quando ele se não lembrava de neles entremear de improviso
algumas palavras da sua lavra, o que me forçava a ter de voltar
a transcrever à pressa todo o ofício adornado com esta nova
imper·tinência, à qual era preciso dar as honras de uma cifra,
sem o que não o assinaria. Por amor da sua glória, vinte vezes
me senti tentado a cifrar uma coisa diferente do que ele havia
dito ; sentindo porém que nada me autorizava a semelhante
infidelidade, deixava-o delirar por sua conta e risco, contente
por lhe falar com franqueza, e por desempenhar por minha
os meus deveres j unto dele.
Foi o que fiz sempre com uma probidade , um zelo e uma
coragem •que mereciam da sua parte uma recompensa dife­
rente daquela que por fim recebi. Era já tempo de eu alguma
vez ser aquilo que o céu, que me dotara com um bom natural,
a educação que recebera da melhor das mulheres, assim como
a ·que a mim mesmo me dera, me haviam feito ser ; e fui-o.
Entregue apenas a mim m esmo, sem qualquer amigo, sem con­
selho, sem experiência, num país estrangeiro, servindo uma
nação estrangeira, no meio de uma caterva de gatunos, que,
tanto no seu interesse como para afastar o escândalo do bom
exemplo, me incitavam a imitá-los, longe de o fazer alguma vez,
servi bem a França, à qual nada devia, e ainda melhor o embai­
xador, como era justo, em tudo o que dependia de mim. Irre­
preensível num posto que dava bastante nas vistas, mereci,
obtive a estima da República, a de todos os embaixadores com
quem nos correspondíamos, e a afeição de todos os franceses
estabelecidos em Veneza, sem exceptuar o próprio cônsul, que
com pesar suplantava em funções que sabia serem-lhe devidas, e
que me causavam mais embaraço do que prazer.
Confiado sem reserva no marquês de Mari, que não entrava
em todos os pormenores dos seus deveres, Monsieur de Mon­
taigu descurava-os a tal ponto que, sem mim, os franceses que

293
estavam em Veneza não se teriam apercebido de que existia
ali um embaixador do seu pais. !Despedindo-os sempre sem
os querer ouvir, quando precisavam da sua protecção, des­
gostaram-se dele, e nenhum se via já nem no seu séquito
·
nem à sua mesa, para que nunca os convidara. Muitas vezes
fiz por minha alta recriação o que ele deveria ter feito :
prestei aos · franceses que recorriam a ele, ou a mim, todos
os serviços que estava em meu poder prestar. Em qualquer
outro país teria feito mais ; não podendo, contudo, deslo­
car-me para ver ninguém por causa do meu lugar, via-me
obrigado a recorrer frequentemente ao cônsul, e o cônsul, esta­
belecido nesse pais onde tinha a familia, tinha certas precau­
ções a observar que o impediam de fazer aquilo que desejaria
fazer. Algumas vezes, porém, vendo-o recuar e não se atrever
a falar, arriscava-me a diligências perigosas, algumas das ·quais
davam bom resultado. Lembro-me duma, cuja recordação ainda
hoje me faz rir. Ninguém acreditaria que foi a mim que os ama­
dores de teatro de Paris deveram Coralina e a irmã Camila : no
entanto, nada de mais verídico. O pai, Veroneso, tinha arran­
jado um contrato para ele e para as filhas na companhia ita­
liana ; e depois de haver recebido dois mil francos para a viagem,
em vez de partir, entrou tranquilamente para o teatro de
S. Lucas 1, de Veneza, onde Coralina, embora muito criança
ainda, atraia toda a gente. Na sua qualidade de primeiro fidalgo
da câmara, o duque de Gesvres escreveu ao embaixador recla-
. mando o pai e a filha. Ao entregar-me a carta, Monsieur de
Montaigu deu-me apenas esta instrução : Veja lá isso. Fui a
casa de Monsieur Le Blond para lhe pedir que falasse ao patrí­
cio a quem o teaJtro de S. Lucas pertencia, e que era, creio, um
tal Zustianini, a fim de que despedisse Veroneso, contratado
para o servtço do rei. Le Blond, que não fez muito caso da
incumbência, desempenhou-se mal dela. Zustianini disparatou,
e Veroneso não foi despedido. !Eu estava irritado. Era pelo Car­
naval. Envergando o dominó e a máscara, fiz-me conduzir ao
palácio Zustianini. Todos os que viram entrar a minha gôndola
com a criadagem do embaixador ficaram surpreendidos;
Veneza nuncai tinha visto semelhante coisa. Entro, faço-me
anunciar com o nome de una siora maschera 2• Logo que fui
introduzido, tiro a máscara e dou o meu nome. O senador empa-

1 Duvido se não seria o teatro de Saint-Samuel. Os nomes próprios


passam-me inteiramente. -Nota de J.-J. Rousseau.
2 Uma senhora mascarada. N. do T.
-

294
lidece e fica estupefacto. Senhor, disse-lhe eu em veneziano,
lamento que a minha visita venha importunar Vossa Exce­
lência, mas tendes no vosso teatro de S. Lucas um homem cha­
mado Veroneso, o qual se acha contratado para o serviço do rei,
e que em v ão vos foi exigido : venho reclamá-lo em nome de
Sua Majestade. A minha breve arenga produziu efeito. Mal
havia saido, correu o homem a pôr ao corrente da sua aven­
tura os inquisidores do Estado , ·que lhe ensaboaram o j uizo.
Veroneso foi despedido nesse mesmo dia. Mandei-lhe dizer que
se não partisse dentro de oito dias, o mandava prende r ; e
ele partiu.
Doutra ocasião, livrei de apuros sozinho e quase sem o
auxilio de ninguém um capitão da marinha mercante. Chama­
va-se capitão Olivet, de Marselha ; o nome do barco esqueci-o.
A sua tripulação tinha-se travado de razões com alguns escla­
vónios qÚe estavam ao serviço da República: tinham chegado
a vias de facto, e o barco havia sido apresado ·com tal rigor,
que ninguém, salvo o capitão, podia entrar ou sair de bordo
sem autorização. Este recorreu ao embaixador, que o mandou
passear ; dirigiu-se depois ao cônsul, e este disse-lhe que, visto
não se tratar de um assunto comercial, não podia intrometer-se
no caso ; sem saber que fazer, veio ter comigo. Expus a Mon­
sieur de Montaigu que devia autorizar-me a que enviasse ao
Senado uma memória sobre a questão ; não me recordo se obtive
a autorização e se apresentei a memória ; lembro-me no entanto
muito bem que, como as minhas diligências não davam r·e sultado
nenhum, e o embargo continuava sempre, tomei uma resolu­
ção que deu excelente resuLtado. Inseri o relato da questão num
oficio para Monsieur de Maurepas, e tive até bastante trabalho
para levar Monsieur de Montaigu a consentir que o artigo pas­
sasse. Sabia que não valia muito a pena abrir os nossos ofícios,
mas que em Veneza o faziam. Tinha disso a prova ao ver os
artigos palavra por palavra na gazeta : infidelidade de que inu­
tilmente havia procurado levar o embaixador a queixar-se.
O meu objectivo, ao falar de semelhante vexame no oficio, era
tirar par•tido da sua curiosidade para lhes meter medo e levá-los
a entregar o navio ; pois que se para tal fosse preciso esperar
a resposta da corte, antes que esta •chegasse estaria o capitão
arruinado. Levei comigo o abade Patizel, chanceler do consu­
lado, que só veio de contra vontade ; de tal maneira estes pobres
diabos receavam desagradar ao Senado. •Como por causa da
proibição nálo podia subir a bordo, fiquei na gôndola, e aquí
levantei o processo verbal, interrogando sucessivamente em voz

295
alta todos os homens da equipagem, e dirigindo as minhas per­
guntas de maneira a obter respostas que lhes fossem vanta ­
j osas. Quis levar Patizel a fazet ele mesmo o interrogatório e
o processo, o que com efeito lhe competia mais do que a mim.
Nunca quis consentir em tal, não disse uma só palavra, e a
custo assinou o processo depois de mim. Esta diligência um tanto
ou quanto atrevida foi no entanto bem sucedida, e o barco
achou-se llberto muito tempo antes da resposta do ministro.
O capitão quis presentear-me. Sem me zangar, disse-lhe, baten­
do-lhe no ombro : Capitão Olivet, j ulgas tu que quem não
recebe dos franceses um direito de passaporte que está estabe­
lecido, seja homem para lhes vender a protecção do rei? Quis
ao menos dar-me um jantar a bordo, o que aceitei, e ao qual
levei o secretário da embaixada de Espanha, chamado Carrio,
homem de espírito, muito amável, que vimos depois secretário
da embaixada e encarregado de negócios em Paris, e com o
qual, à semelhança dos nossos embaixadores respectivos, eu me
havia intimamente ligado.
Por muito feliz me daria eu se, depois de fazer com o mais
perfeito desinteresse todo o bem que podia, soubesse prestar
a todos aqueles ínfimos pormenores a ordem e a atenção neces­
sárias para não ser vitima deles e servir os outros à minha
custa ! Contudo, em lugares como o que ocupava e em que as
mais pequenas faltas não deixam de ter consequências, esgo­
tava toda a ateilJÇão para as não cometer contra o meu serviço ;
até ao fim observei a maior ordem e o maior rigor em tudo o
que dizia respeito aos meus deveres essenciais. Fora alguns erros
nas cifras cometidos por forçada precipitação, e de que os fun­
cionários de Monsieur Amelot se queixaram uma vez, nem o
embaixador nem quem quer que seja teve jamais que me cen­
surar uma só negligência em qual,quer das minhas funções, o
que é digno de nota num homem tão negligente e tão estouvado
como e u ; às vezes, porém, a memória e a atenção falhavam-me
nas questões particulares de que me encarregava, e o amor da
j ustiça levou-me sempre a sofrer deliberadamente o prejuízo
causado antes que alguém pensasse em queixar-se. Citarei ape­
nas um só episódio, que se relaciona com a minha partida de
Veneza, e de que depois vim a sentir as consequências em Paris.
O nosso cozinheiro, chamado Rousselot, tinha trazido de
França uma antiga letra de duzentos francos, passada por um
veneziano chamado Zanetto Nani a um cabeleireiro seu amigo,
por fornecimentos de cabeleiras. Rousselot mostrou-me a letra,
pedindo-me que procurasse por meio de um acordo sacar dela

296
qualquer coisa. Eu sabia, e ele sabia também, que os nobres vene­
zianos, uma vez de regresso à pátria, têm o costume inveterado
de não pagar as dividas que hajam contraído no estrangeiro ;
quando os querem forçar a isso, consomem com tantas delon­
gas e despesas o infeliz credor, que este se aborrece, e acaba
por abandonar tudo, ou acomodar-se com quase nada. Pedi a
Monsieur Le Blond que c onversasse com Zanetto ; este concor­
dou com a letra, mas não com o seu pagamento. A força de
batalhar, prometeu por fim três cequins. Quando Le Blond lhe
levou a letra, o s três cequins não se achavam aprestado s ; foi
preciso esperar. Enquanto esperávamos, sobreveio a minha
questão com o embaixador e a minha saida da embaixada. Dei­
xei os papéis da embaixada na melhor ordem , mas a letra de
Rousselot não se encontrou. Monsieur Le Blond afiançou haver­
-ma restituído ; tinha-o como suficientemente honesto para du­
vidar dele ; mas foi-me impossível lembrar-me o que havia sido
feito da letra. Como Zanetto tinha confessado a divida , pedi a
Monsieur Le Blond que tratasse de lhe extrair os três cequins
mediante recibo, ou então que o levasse a renovar a letra por
meio de um duplicado. Ao saber que a letra se havia perdido,
Zanetto não quis fazer nem uma coisa nem outra. Ofereci da
minha bolsa os três cequins a Rousselot como quitação da letra.
Este recusou-se, e disse-me que me pusesse de acordo em Paris
com o credor, cujo endereço me deu. Ao saber do que se passara,
o cabeleireiro quis a le·tra ou o dinheiro por inteiro. Na minha
indignação o que não teria eu dado para encontrar a maldita
letra! Paguei os duzentos francos, e isto nos maiores apuros !
E aqui está como o extravio da letra rendeu ao credor o paga­
mento por inteiro da sua importância, ao passo que se, por infe­
licidade dele, a letra houvesse aparecido, dificilmente teria tirado
dela os dez escudos �prometidos por Sua Excelência Zanetto
Nani.
O talento que julguei sentir para aquele lugar levou-me
a desempenhá-lo com gosto, e fora da sociedade do meu amigo
Carrio, da do virtuoso Altuna, de que em breve virei a falar,
fora das bem inocentes distracções da Praça de S. Marcos, do
teatro, e de algumas visitas que quase sempre fazíamos j untos,
os meus únicos prazeres eram os meus deveres. Posto que o
trabalho não fosse muito pesado, sobretudo com a ajuda do
abade De Binis, como a correspondência era bastante extensa,
e estávamos em tempo de guerra, não deixava de me encontrar
razoàvelmente ocupado. Todos os dias trabalhava durante uma
boa oarte da manhã, e nos dias de correio às vezes até à meia-

297
-noite. O resto do tempo consagrava-o a estudar a profissão
que principiava, e na qual, a j ulgar pelo êxito do começo, con­
tava deveras empregar-me depois com melhores vantagens.
Com efef,to, as vozes a meu respeito eram unânimes, a começar
pelo embaixador, que se felicitava altamente do meu serviço,
que nunca se queixou de mim, e que só depois se enfureceu a
valer pelo facto de, tendo-me eu próprio queixado em vão, me
querer por fim despedir.
Os embaixadores e ministros do rei, com os quais estávamos
em correspondência, dirigiam-lhe, a respeito do mérito do secre­
tário, cumprimentos que o deviam lisonjear, mas que. na sua
fraca cabeça, só produziram um efeito inteiramente oposto.
Recebeu um mormente numa circunstância importante, que
nunca me perdoou. Vale a pena explicar a coisa.
Monsieur de Montaigu incomodava-se tão pouco, que mesmo
aos sábados, dia de quase todos os correios, não podia esperar
que o trabalho estivesse pronto para sair : e apertando-me cons­
tantemente para expedir os ofícios do rei e dos ministros, assi­
nava-os à pressa, e corria depois não sei onde, deixando a maior
parte das outras cartas por assinar, o que me obrigava, quando
se tratava apenas de notícias, a transformá-las em boletins;
quando, porém, se tratava de assuntos que interessavam ao ser­
viço do rei, forçoso era que alguém assinasse, e eu assinava. Pro­
cedi assim com um aviso importante que acabávamos de receber
de iMonsieur Vincent, encarregado dos negócios do rei em Viena.
Era na altura em que o príncipe de Lobkowitz marchava sobre
Nápoles, e o conde de Gages operava aquela memorável reti­
rada, a mais bela manobra de guerra de todo o século, e da
qual a Europa falou muito pouco. O aviso indicava que partira
de Viena, devendo passar por Veneza, um homem cujos sinais
Monsieur Vincent nos dava, e o qual se dirigia furtivamente para
os Abruzos, encarregado de fazer um levantamento do povo à
aproximação dos austríacos. !Na ausência de Monsieur de Mon­
taigu, ,que não se interessava por nada, fui eu que fiz transmi­
tir este aviso ao marquês de l 'Hôpital tão a propósito, que talvez
seja a este pobre Jean Jacques tão escarnecido que a casa de
Bourbon deve o conservar o reino de Nápoles.
Ao agradecer, como era justo, ao seu colega, o marquês de
l'Hôpital falou-lhe do secretário e do serviço que este acabav�
de prestar à causa comum. O conde de Montaigu, que tinha de
que se acusar por negligência no dito serviço, j ulgou entrever
uma censura em semelhante cumprimento ; e falou-me do caso
com aspereza. Achei-me na circunstância de proceder com o

298
conde de Castellane, embaixador em Constantinopla, como pro­
cedera com o marquês de l'Hôpital, embora em assunto de
menos importância. Como para Constantinopla não havia outro
correio além do que o Senado enviava de tempos a tempos ao seu
maioral, avisavam o embaixador de França da partida deste cor­
reio, para que por esta via ele pudesse escrever ao seu colega, se
achava que isso vinha a propósito. O aviso era ordinàriamente
dado com um ou dois dias de antecedência : mas faziam :tão
pouco caso de Monsieur de Montaigu, que se contentavam com
mandar-lho a casa uma ou duas horas antes da partida do
correio como simples formalidade ; o que várias vezes me pôs
na necessidade de na sua ausência ter eu que fazer o oficio.
Ao r·esponder-me, Monsieur de Castellane mencionava-me em
·t ermos muito cortese s ; o mesmo fazia em Génova Monsieur de
Joinville ; mais novos agravos.
Confesso que não evitava as ocasiões de me tornar conhe­
cido, mas também as não procurava fora de propósito ; e, ser­
vindo bem, parecia-me j ustíssimo aspirar ao prémio natural dos
bons serviços, que é a estima daqueles que se acham em situação
de os j ulgar e recompensar. Não direi se o rigor com que desem­
penhava as minhas funções era da parte do embaixador motivo
legítimo de queixa, direi, contudo, que foi na verdade o único
que ele alegou até ao dia da nossa separação.
A sua c asa, que nunca tinha conseguido levantar lá muito
bem, enchia-se de canalha ; os franceses eram ai maltratados,
os italianos ganhavam ascendente ; e até, entre estes, todos os
bons servidores afectos há muito à embaixada foram desones­
tamente expulsos, entre os quais o primeiro fidalgo, que já o
havia sido do conde de Froulay, a quem chamavam, salvo erro,
conde Peati, ou outro nome muito parecido. O único fidalgo da
predilecção de Monsieur de Montaigu era um bandido de Pádua,
chama:do ;Domenico Vitali, a rquem o embaixador !Confiou o
governo da casa, e que, à custa de lábia e de sórdida mesqui­
nhice, obteve a confiança dele e se tornou o seu favorito, com
grande dano das poucas pessoas honestas que lá havia ainda,
e do secretário que estava à testa destas. O olhar integro de um
homem honrado é sempre inquietante para os velhacos. Não
teria sido preciso mais para que este me ganhasse ódio ; havia
ainda, contudo, outra razão para tal ódio que o tornava muito
mais cruel. Preciso referir esta razão, para que me condenem
se andava mal.

299
Segundo o costume, o embaixador tinha um camarote em
cada um dos cinco teatros. Todos os dias ao jantar indicava o
teatro onde queria ir ; depois dele escolhia eu, e os fidalgos dis­
punham dos outros camarotes. Quando saia, agarrava na chave
do camarote ·que tinha escolhido. Um dia, como Vitali não
estava, encarreguei o escudeiro que me servia de me trazer a
minha a uma casa que lhe indiquei. Em vez de me mandar a
chave, Vitali disse-me que havia disposto dela. Sentia-me tanto
mais vexado quanto o escudeiro me havia dado o recado diante
de toda a gente. A noite, VHali quis-me apresentar algum � s
palavras de desculpa que e u não aceite i : Virá apresentá-las,
senhor, amanhã a tal hora na casa onde me foi feita a afronta
e diante das pessoas que foram testemunhas dela ; ou então
depois de amanhã, suceda o que suceder, declaro-vos que ou
vós ou eu sairemos daqui. Este tom decidido impôs-lhe respeito.
Veio apresentar-me as suas desculpas públicas no lugar e hora
indicados com uma baixeza digna dele ; teve no entanto tempo
para tomar as suas medidas, e, enquanto me fazia grandes sala­
maleques, obrou de tal maneira à italiana que, não podendo
levar o embaixador a despedir-me, pôs-me a mim na necess!­
dade de o fazer.
Semelhante miserável não estava certamente à altura de
me conhecer ; conhecia no entanto de mim o que podia servir
aos seus desígnios. Sabia-me excessivamente bom e brando para
suportar as inj ustiças involuntárias, altivo e pouco •tolerante
com as ofensas premeditadas, prezando a decência e a dignidade
nas coisas honestas, e tão exigente na honra que me era devida
como solícito em prestar aos outros a que lhes era dada. 'Foi
por aqui que ele empreendeu e conseguiu aborrecer-me. Virou
a casa de baixo para cima; expulsou a regra, a subordinação, o
asseio, a ordem que eu nela havia procurado manter. Uma casa
sem mulher tem necessidade de uma disciplina um pouco severa
para nela reinar o decoro inseparável da dignidade. Em breve
fez da nossa um lugar de crápula e de licença, uma fortaleza d e
velhacos e de debochados. Em vez d o que havia feito expulsar,
deu a Sua Excelência como segundo fidalgo outro rufião como ele
que tinha um bordel público na Cruz-de-Malta ; e estes dois
patifes inteiramente de acordo eram de um indecoro igual a.
sua insolência. Afora a câmara do embaixador, que mesmo
assim não estava muito em regra, não havia na casa um único
canto sofrível para uma pessoa honesta .
Como Sua Excelência não ceava, os fidalgos e eu tinha­
mos, à noite, uma mesa particular, onde comiam também o

300
abade De Binis e os pajens. Na mais infame batuca servem-n os
com mais limpeza, com mais decência, uma toalha menos suja,
e come-se melhor. Davam-nos apenas uma velazita toda ene­
grecida, pratos de estanho, garfos de ferro. Omito ainda o que
se fazia em segredo ; a minha gôndola, porém, tiraram-ma; era
o único de todos os secretários de embaixada que se via forçado
a alugar uma, ou ir a pé, e só quando ia ao Senado era acom­
panhado pelos la·caios de Sua Excelência. Aliás, nada do que se
passava portas adentro era desconhecido na cidade. Todos os
oficiais do embaixador gritavam e m voz alta. Domenico, única
causa de tudo, era quem gritava mais alto, sabendo perfeita­
mente que mais do que a todos os outros me era sensível a mim
a indecência com que éramos tratados. Eu era a única pessoa
da casa que fora dela nada dizia, mas queixava-me vivamente
ao embaixador tanto de tudo o resto como dele próprio, que,
incitado secretamente pelo seu alma danada, todos dias me
fazia alguma nova afronta. Forçado a despender bastante para
me manter no mesmo nivel dos meus c amaradas, e decente­
mente no meu posto, não podia arrancar um soldo aos meus
vencimentos, e quando lhe pedia dinheiro, o embaixador fala­
va-me na sua estima e na sua confiança, como se esta pudesse
encher-me a bolsa e acudir a tudo.
Aqueles dois bandidos acabaram por •transtornar inteira­
mente o juizo ao patrão, que já não o tinha muito no seu lugar,
e arruinavam-no num alborque permanente, levando-o a negó­
cios de papalvo, e convencendo-o de que se tratava de negócios
de alicantineiro. Levaram-no a alugar na Brenta um palácio
pelo dobro do seu valor, dividindo o excedente pelo proprietáno.
Os aposentos tinham incrustações em mosaico e eram guarne­
cidos com colunas e pilastras de belissimos mármores à moda.
da região. Monsieur de Montaigu mandou soberbamente forrar
tudo aquilo com madeira de pinho, pela única razão de que as
casas de Paris são assim forradas. Por idêntica razão foi, de
todos os embaixadores que estavam em Veneza, o único que
retirou a espada aos seus pajens e o bastão aos escudeiros. Eis
como era o homem que, porventura sempre pela mesma razão,
me ganhou antipatia, apenas por eu o servir :fielmente.
Suportei-lhe com paciência os desdéns, os maus modos,
enquanto julgava ver neles apenas irritação e não ódio: mas
logo que vi o propósito feito de me privar da consideração mere­
cida pelos meus bons serviços, resolvi renunciar a estes. A pri­
meira prova que tive da sua má vontade foi por ocasião do
j antar que o embaixador devia oferecer ao Sr. Duque de

301
Modena e família, e no qual me deu a entender que não teria
lugar à sua mesa. Respondi-lhe magoado, mas sem me exaltar,
que tendo eu a honra de diàriamente me sentar a ela, se quando
o Sr. Duque de Modena viesse exigisse que disso me abstivesse,
competia à dignidade de Sua Excelência e ao meu dever não
consentir em tal. Como! , exclama ele com violência, então
o meu secretário, que nem sequer é fidalgo, pretende jantar
com um soberano, quando os meus próprios fidalgos o não
fazem? É verdade, senhor, repliquei eu, o posto que Vossa
Excelência me honrou enobrece-me a tal ponto, enquanto o
ocupar, que até tenho preferência aos vossos fidalgos, ou
pretensos fidalgos, e sou admitido onde eles o nã o podem
ser. Vossa Excelência não desconhece que, no dia em que houver
recepção pública, a etiqueta, e um costume imemorial, man­
dam que vos siga em traje de cerimónia e que convosco
tenha a honra de jantar no Palácio de S. Marcos ; e não vejo
porque é que um homem que pode e deve comer em público
com o doge e o Senado de Veneza não poderá comer em parti­
cular com o Sr. Duque de Modena. Apesar de não haver que
replicar ao argumento, o embaixador não se rendeu : todavia,
não tivemos ocasião de renovar a discussão, visto o Sr. Duque
de Modena não ter vindo jantar com ele.
Desde então não cessou de me dar dissabores, de me pre­
terir, esforçando-se por me retirar as pequenas prerrogativas
inerentes ao meu cargo para as transmitir ao seu caro Vitali; e
tenho a certeza de que se ousasse enviá-lo ao Senado em vez
de mim, tê-lo-ia feito. Ordinàriamente era o abade De Binis
quem ele encarregava de lhe escrever as cartas particulares n_o
seu gabinete: serviu-se deste para escrever a Monsieur de Mau­
repas um relato da questão do ·capitão Olivet, no qual, longe
de fazer qualquer menção a meu respeHo, que sozinho me havia
ocupado dela, retirava-me mesmo a honra do processo verbal,
do qual lhe enviava um duplicado, para atribui-la a Patizel,
que não havia dito uma só palavra. Queria humilhar-me e agra··
dar ao favorito; mas não desfazer-se de mim. Sentia que j a
lhe não seria tão fácil encontrar quem m e substituísse como
sucedera com Monsieur Follau, o qual lho houvera dado a per­
ceber. Precisava absolutamente de um secretário que soubesse
italiano por causa das respostas ao Senado ; que se encarregasse
de todos os ofícios, de todas as questões, sem que ele se me•tesse
em nada; que aliasse aos méritos de servi-lo bem a baixeza de
ser complacente para com os senhores mariolas dos seus fidal­
gos. Queria portanto reter-me e humilhar-me, conservando-me

302
longe do meu pais e do seu, sem dinheiro para ali regressar: e
talvez o tivesse conseguido, ,se houvesse procedido com ma!s
moderação : mas Vitali, que tinha outras intenções, e que que­
ria obrigar-me a tomar o meu partido, levou a sua avante.
Logo que vi que todas as minhas penas eram perdidas, que o
embaixador, em vez de me estar grato, transformava todos os
meus serviços em crimes, que dentro só tinha a esperar dele
desconsiderações, e fora injustiças, e que no descrédHo geral em
que havia caido, os seus maus ofícios podiam-me ser prejudi­
ciais sem que os bons me aproveitassem, tomei as minhas provi­
dências e despedi-me, dando-lhe tempo a que procurasse outro
secretário. Sem me dizer sim, nem não, continuou na mesma.
Vendo que coisa alguma ia melhor e que Monsieur de Montaigll
não diligenciava encontrar ninguém, e screvi ao irmão, e, por­
menorizando-lhe as minhas razões, rogava-lhe que obtivesse
do irmão a minha baixa de serviço, acrescentando que de qual­
quer maneira me era impossível continuar. Esperei muito tempo
sem obter resposta. Começava a sentir-me embaraçado, mas
o embaixador recebeu por fim uma carta do irmão. Devia ser
bastante violenta, pois que, embora fosse sujeito a cóleras fero­
císsimas, nunca o vi em semelhante estado. Depois de catadupas
de abomináveis injúrias, não sabendo já que dizer, acusou-me de
haver vendido as cifras. Desatei a rir, e perguntei-lhe em tom
escarninho se julgava haver em toda Veneza um homem sufi­
cientemente idiota para dar por elas um escudo. Esta resposta
fê-lo escumar de raiva. Fez menção de chamar o pessoal para,
dizia ele, ordenar que me atirassem pela janela. Até este
momento tinha-me conservado perfeitamente calmo ; mas
perante tal ameaça a cólera e a indignação arrebataram-me
por minha vez. Precipitei-me para a porta; e depois de correr
um botão que a fechava por dentro, disse-lhe, dirigindo-me
para ele num passo firme : Não, Sr. Conde, o seu pessoal não
se intrometerá nesta questão ; consinta que ela se passe entre
nós. O meu gesto, o meu aspecto, acalmaram-no imediata­
mente: a surpresa e o medo traduziam-se na sua atitude.
Quando vi que a fúria lhe tinha passado, fiz-lhe as minhas des­
pedidas em poucas palavras; depois, sem esperar resposta, abri
a porta, sai, e atravessei imponentemente a antecâmara por
meio do pessoal, que como de costume se levantou, e que,
segundo creio, ter-me-ia prestado auxilio a mim de preferência
a ele. Sem subir aos meus aposentos, desci logo a escada, e saí
do palácio imediatamente para nunca mais lá entrar.

303
Fui direito a casa de Monsieur Le Blond para lhe contar a
aventura. Surpreendeu-se pouc o ; conhecia o homem. Convi­
dou-me para j antar. O jantar, se bem que improvisado, foi brl­
lhante. Nele se achavam todos os franceses de consideração
que se encontravam em Veneza. O embaixador não teve absoluta­
mente ninguém por ele. O cônsul contou o meu caso à sociedade.
Só um grito respondeu ao relato, e não foi a favor de Sua Exce­
lência. Não tinha feito contas comigo, não me tinha dado sequer
um soldo, e reduzido como me achava a alguns luíses que
tinha comigo e que eram o meu único recurso, achava-me em
apuros quanto ao regresso. Todas as bolsas se me abriram. Tirei
uns vinte cequins da de Monsieur Le Blond, outro tanto da de
Monsieur de Saint-Cyr, com quem, depois daquele, me achava
melhor relacionado ; agradeci aos restantes, e enquanto esperava
a partida, fui hospedar-me em casa do chanceler do consulado,
para demonstrar bem ao público que a nação não era cúmplice
das injustiças do embaixador. Este, furioso por me ver festejado
no meu infortúnio, perdeu completamente a ·cabeça, e compor­
tou-se como um dementado. Esqueceu-se de si até ao ponto de
apresentar ao Senado uma memória para me mandar prender.
Quando o abade De Binis me avisou disso, fiquei ainda quinze
dias, em vez de partir dai a dois, como contara. Tinham visto
e aprovado a minha conduta; era universalmente estimado.
A signoria nem sequer se dignou responder à extravagante
memória do embaixador, e mandou-me dizer pelo cônsul que
podia ficar em Veneza enquanto me aprouvesse, sem me inquie­
tar com as diligências de um louco. Continuei a ver os meus
amigos: fui despedir-me do ·embaixador de Espanha, que me
recebeu muito bem, bem como do conde de Finichietti, ministro
de Nápoles, que não encontrei, mas a quem escrevi, e que me
respondeu com a mais amável carta do mundo. Por fim parti,
sem deixar, apesar das dificuldades, outras dividas além dos
empréstimos de que acabo de falar e uns cinquenta escudos a
um mercador chamado Morandi, que Carrio se encarregou de
pagar, e que nunca lhe restitui, embora depois nos tenhamos
tornado a ver frequentemente : no entanto, pelo que toca aos
dois empréstimos de que falei, reembolsei-os com toda a pontua­
lidade logo que tal se me tornou possível.
Não abandonemos Veneza sem dizermos uma palavra acerca
dos célebres folguedos des-ta cidade, ou ao menos daquela peque­
níssima parte que eu neles tomei durante a minha estada ali.
Viu-se durante o curso da minha mocidade quão pouco frequen­
tei os prazeres desta idade, ou ao menos aqueles que assim se

304
chamavam. Em Veneza não mudei de gosto: mas as minhas
ocupações, que aliás mos teriam impedido, tornaram mais vivas
as diversões simples que me permiti. A primeira e a mais doce
era a sociedade das pessoas de valor, Messieurs Le Blond, de
Saint-Cyr, Carrio, Altuna e um fidalgo do Friul, de cujo nome
me esqueci com grande pena, e cuja grata recordação guardo com
emoção: de todos os homens que conheci na minha vida, era
aquele cujo coração mais se assemelhava ao meu. Estávamos
também relacionados com dois ingleses cheios de espírito e de
conhecimentos, loucos por música como nós. Todos estes cava­
lheiros tinham as suas mulheres, as suas amigas, ou as suas
amantes, estas últimas, quase todas mulheres de talentos, em
casa de quem se fazia música ou se dançava. Também se jogava,
mas muito pouco ; o gosto apurado, os talentos, os espectáculos
tornavam-nos esta diversão insípida. O jogo é apenas o recurso
das pessoas aborrecidas. Eu tinha trazido de Paris o preconceito
que ali existe c ontra a música italiana; mas havia também rece­
bido da natureza aquela sensibilidade de tacto contra a qual não
há preconceitos. que resistam. Bem depressa senti por esta música
a paixão que ela inspira aos que são capazes de a julgar. Ao es­
cutar as barcarolas, achei que n ão tinha ouvido c antar até então,
e em breve me apaixonei de tal maneira pela ópera, que farto de
tagarelar, comer e jogar nos camarotes, quando só queria escutar,
furtava-me frequentemente ·à companhia para ir para outro
sitio. Aí, inteiramente só, entregava-me, apesar do tamanho do
espectáculo, ao prazer de o apreciar à minha vontade e até ao
fim. Um dia, no teatro de S. c'risóstomo, adormeci, muito mais
profundamente do que se estivesse na minha cama. As árias
ruidosas e brilhantes não conseguiram acordar-me. Mas quem
poderá exprimir a sensação deliciosa que fizeram em mim a doce
harmonia e os cantos angélicos da que me acordou? Que desper­
tar, que enlevo, que êxtase quando abri a um tempo os ouvidos
e os olhos! A minha primeira ideia foi julgar-me no paraíso.
o trecho encantador, de que ainda me lembro e que nunca esque­
cerei em vida minha, começava assim:

Conservamí la bella
Che st m'accend.e il cor.

Quis conhecê-lo: alcancei-o e conservei-o durante bastante


tempo ; não existia porém no papel como na minha memó­
ria. Eram na verdade as mesmas notas, mas não era a mesma
cois'a. !Nunca esta divina ária poderá ser executada senão na

20
305
minha cabeça, como o foi com efeito no dia em que me des- ·

pertou.
Uma música em meu entender muito superior à das óperas,
e que não tem equivalente nem na Itália nem no resto do mundo,
é a das scuole. As scuole são casas de caridade fundadas para
ministrar a educação a raparigas sem fortuna, as quais a repú­
blica dota depois, ·quer para o casamento, quer para o claustro.
Entre os talentos que cultivam nestas raparigas, a música ocupa
o primeiro lugar. Todos os domingos, na igrej a de cada uma
destas ·quatro scuole, ouvem-se durante vésperas motetes a
grande coro e a grande orquestra, compostos e dirigidos pelos
maiores mestres da Itália, executados nas tribunas gradeadas
Únicamente por raparigas das quais a mais velha não conta
vinte anos. Não tenho ideia de nada tão voluptuoso, tão enterne­
cedor como esta música: as riquezas da arte, o gosto delicado
dos cantos, a beleza das vozes, a precisão da execução, tudo nestes
deliciosos concertos concorre para produzir uma impressão que
não é certamente conforme ao lugar, mas de que duvido que
coração algum de homem possa estar ao abrigo. Carrio e eu
nunca faltávamos às vésperas dos Mendicanti, e não éramos os
únicos. A igreja achava-se sempre cheia de amadores : os pró­
prios actores da ópera vinham formar-se no verdadeiro gosto do
canto segundo estes excelentes modelos. O que desolava eram
aquelas malditas grades, que só deixavam passar os sons, e me
escondiam os anjos de beleza de que eles eram dignos. Não falava
noutra coisa. Um dia que em tal falava em casa de Monsi·eur Le
Blond, disse-me este : Se tem tanta curiosidade em ver as rapa­
riguinhas, é fácil satisfazê-la. Sou um dos administradores da
casa. Desejo •que vá lá merendar ·com ·elas. Não o deixei des­
cansar enquanto não cumpriu a sua palavra. Ao entrar no salão
que guardava estas tão cobiçadas belezas, senti um frémito de
amor que nunca experimentara. Monsieur Le Blond apr·e sentou­
-me umas após outras estas cantoras c élebres, cuja voz e nome
era tudo quanto conhecia.
Venha cá, Sofia . . . Era horrível. V·enha cá, Ca·t tina . . . Era
cega de um olho. Venha cá, Bettina . . . As bexigas tinham-na
desfigurado. Quase nenhuma deixava de ter qualquer defeito
notável. O carrasco ria da minha cruel surpresa. No entanto,
duas ou três pare·ceram-me sofríveis : só cantavam nos coros.
Estava desolado. Durante a merenda provocaram-nas : elas ale­
graram-se. A fealdade não exclui as graças: achei que elas as
possuíam. Dizia para comigo: Não se canta desta maneira sem
alma ; elas têm-na. Por fim, a minha maneira de considerá-las

306
mudou a tal ponto, que sai quase enamorado de todos aqueles
camafeus. Mal ousava voltar às vésperas. Tive com que :me tran­
quilizar. Continuei a achar deliciosos os seus cantos, e as suas
vozes dissimulavam tão bem: os seus rostos, que enquanto elas
cantavam eu teimava, a despeito dos meus olhos, em achá-las
belas.
A música em Itália custa .tão pouca coisa, que não vale a
pena privarmo-nos dela quando a amamos. Aluguei um cravo,
e por um escudozito tinha em minha casa quatro ou cinco sin­
fonistas, com os quais uma vez por semana me exercitava a
executar os trechos que na ópera mais me haviam agradado.
Experimentei igualmente algumas sinfonias das minhas Musas
galantes. Fosse porque agradassem, ou me quisessem lisonjear,
o mestre dos bailados de S. João Crisóstomo mandou-me pedir
duas, que tive o prazer de ouvir executar por aquela admirável
orquestra, e que foram dançadas por uma pequena Bettina,
bonita e sobretudo gentil rapariga, mantida por um espanhol
nosso amigo chamado Fagoaga, e em casa da qual íamos com
bastante frequência passar o serão.
Mas, a propósito de raparigas, não é numa cidade como
Veneza que nós nos abstemos delas; não tem nada, podiam per­
guntar-me, a confessar em tal artigo? Sim, com efeito, tenho
qualquer coisa a dizer, e vou proceder a esta confissão com a
mesma franqu�za que pus em todas· as outras.
As mulheres públicas repugnaram-me sempre, mas em
Veneza não tinha outra coisa ao meu alcance, visto que o meu
lugar me interditava a entrada na maioria das casas da terra.
As filhas de Monsieur Le Blond eram muito gentis, mas de acesso
difícil, e eu tinha pelo pai e pela mãe demasiada consideração
para pensar sequer em cobiçá-las. Teria maior prazer numa
jovem chamada Mademoiselle de Cataneo, filha do agente do rei
da Prússia; mas Carrio estava enamorado dela, e falava-se
mesmo em casamento. Vivia desafogado, e eu não tinha nada;
tinha cem luises de ordenado, e eu só tinha cem pistolas; e, além
de que não -queria atravessar-me no caminho de um amigo,
sabia que em toda a parte, e sobretudo em Veneza, com a bolsa
tão mal recheada ninguém se deve meter a galanteador. Não
tinha perdido o funesto hábito de iludir as minhas necessidades;
demasiado ocupado para sentir vivamente as que o clima r .

perta, vivi perto de um ano nesta cidade tão sensatamente como


o havia feito em Paris, e parti dali ao fim de dezoito meses sem
me haver aproximado das mulheres a não ser duas vezes, nas
singulares circunstâncias que vou relatar.

307
A primeira foi-me fornecida pelo honesto fidalgo Vitali,
algum tempo depois das desculpas completas em forma que o
obriguei a apresentar-me. Falava-se à mesa das distracções de
Veneza. Aqueles cavalheiros censuravam a minha indiferença
pela mais excitante de todas, louvando a gentileza das cortesãs
venezianas, e dizendo que não havia no mundo quem as valesse.
Domenico disse-me que eu precisava travar conhecimento com 2
mais gentil de todas ; que queria levar-me lá, e que ficaria con­
tente. Pus-me a rir deste amável oferecimento ; e o conde Piati,
homem já idoso e venerável, disse-me com mais franqueza do que
a que eu esperaria de um italiano que me supunha suficiente­
mente sensato para não me deixar conduzir a casa das moças
pelo meu inimigo. Oom efeito, não 1tinha nem a intenção nem
a tentação de fazer tal coisa, e, apesar disso, por uma destas
contradições que eu próprio dificilmente ,compreendo, acabei por
me deixar arrastar, contra o meu gosto, contra o meu coração,
a minha razão, a minha própria vontade, apenas por fraqueza,
por vergonha de mostrar desconfiança, e, como se diz naquela
terra, per non parer troppo coglione 1• A Padoana, a casa de quem
fomos, tinha uma figura bastante bonita, mesmo bela, mas não
de uma beleza que me agradasse. Domenico deixou-me; mandei
vir sorbetti, fi-la cantar, e ao fim de meia hora quis-me ir
embora, deixando em cima da mesa um ducado; ela porém teve
o singular escrúpulo de não ,querer o que não havia ganho, e
eu a singular �tolice de tirar-lhe o escrúpulo. Voltei ao palácio
tão convencido de que vinha contaminado, que, ao chegar, a
primeira coisa que fiz foi mandar à procura do cirurgião para
lhe pedir umas tisanas. Nada pode igualar o mal-estar de espi··
rito de que sofri durante três semanas, sem que incómodo algum
real, sintoma algum aparente o j ustificasse. Não podia conceber
que se pudesse sair impunemente dos braços da Padoana. O pró­
prio cirurgião teve a mais inacreditável dificuldade em :tranquili­
zar-me. Só o conseguiu convencendo-me de que eu era senhor �e
uma conformação particular, graças à qual não podia fàcilmente
ser infectado, e embora me haja exposto menos do que qualquer
outro homem a semelhante experiência, como a minha saúde
sob esse aspecto nunca foi atingida, será isso uma prova de que
o cirurgião tinha razão. Contudo, tal opinião nunca me tornou
temerário, e, se com efeito gozo desse privilégio da natureza,
posso dizer que nunca abusei dele.

1 Para não parecer demasiado tanso (trad. aproximada).

308
A minha outra aventura, e mbora com uma moça também,
foi de género inteiramente diferente, tanto na sua origem como
nas suas consequências. Já disse que o capitão Olivet me havia
oferecido de jantar a bordo, e que eu levara comigo o secretário
de Espanha. Esperava a salva do canhão. A tripulação abriu alas
para nos receber ; contudo, não se acendeu um só morrão, o que
me contristou bastante por 'causa de Carrio, que reparei ter
ficado sentido ; e o certo é que nos navios mercantes concediam
salvas de canhão a pessoas que valiam certamente menos do
que nós; aliás, julgava ter merecido uma certa distinção por
par>te do ca:pitão. Não pude disfarçar, ó que sempre me foi impos­
sível ; e se bem que o jantar fosse óptimo e Olivet lhe fizesse
excelentemente as honras, a verdade é que o comecei de mau
humor, comendo pouco e falando ainda menos. Esperava uma
salva ao menos à primeira saúde : nada. Carrio, que me lia na
alma, ria por me ver resmungar como uma criança. Ai a um
terço do jantar, vejo aproximar-se uma gôndola. Por minha fé,
senhor, disse-me o capitão, tome. sentido, vem ai o inimigo.
Pergunto-lhe que quer dizer na sua : o capitão responde gra­
cejando. A gôndola atraca, e vejo sair dela uma rapariga fasci­
nante, vestida com muita garridice e muito lépida, que em três
pulos se achava na câmara ; e vejo-a instalada ao meu lado antes
de haver reparado no talher que haviam posto. Era tão encanta­
dora como viva, uma trigueiri:ta de vinte anos quando muito. Só
falava italiano ; bastava o seu acento para me transtornar o
juízo. Enquanto ia comendo e conversando, olha para mim, fixa­
-me um instante, e grita em seguida : Santa Virgem! Ah, meu
querido Brémond, há que tempos que não te via! Lança-se-me
nos braços, cola a sua boca à minha, e aperta-me a pontos de
me sufocar. Os seus grandes olhos pretos à oriental despe­
diam-me ao coração frechas de fogo ; e, se bem que a surpresa
causasse de principio certa diversão, a volúpia conquistou-me
rapidissimamente, a um ponto tal que, apesar dos espectadores,
necessário foi que em breve a:quela beldade me contivesse ela
mesma; porque eu achava-me ébrio ou antes furioso. Quando
me viu no ponto em que queria, 'PÔS mais moderação nas suas
caricias, mas não na sua viva.cidade ; e quando lhe aprouve expli­
car-nos a razão verdadeira ou falsa de todo este atrevimento,
disse-nos que eu me parecia, a pontos de enganar qualquer, com
Monsieur Brémond, director das alfândegas da Toscana; que
tinha gostado doidamente do tal Monsieur Brémond; que ainda
gostava; que o tinha deixado porque era tola; que o substituía
por mim ; que queria amar-me porque lhe convinha ; que, por

309
idêntica razão, era necessário que eu a amasse enquanto isso
lhe conviesse a ela ; e que quando me abandonasse, tivesse
paciência como fizera o seu querido Brémond. Dito e feito
Apoderou-se de mim como de pessoa sua, deu-me a guardar as
luvas, o leque, a cinda, a coifa ; ordenou-me que fosse aqui ou
ali, que fizesse isto ou aquilo, e eu obedecia. Disse-me que fosse
mandar embora a sua gôndola, porque queria servir-se d.a
minha, e eu fui ; disse-me que saisse do meu lugar, e pedisse a
Carrio que o ocupasse, porque tinha que lhe falar, e eu fi-lo.
Falaram durante muito tempo e em voz baixa um com o outro,
e eu deixei. Chamou-me, eu voltei. Ouve, Zanetto, disse-me
ela, não quero ser amada 'à francesa, nem isso te daria bom
resultado. Ao primeiro momento de aborrecimento, vai-te ; mas
não fiques ora vou, ora não vou, previno-te. Depois de j antar
fomos ver a vidraria de Murano. Comprou inúmeras bugigangas,
que nos deixou pagar sem cerimónia ; dava, contudo, por toda a
parte gorjetas muito mais elevadas que 1tudo o que havíamos
despenÇI.ido. Pela indiferença com que deitava à rua o dinheiro
dela e nos deixava deitar o nosso, via-se bem que este não tinha
para ela valor algum. Quando se fazia pagar, julgo que era mais
por vaidade do que por avareza. Vangloriava-se do preço que
atribuíam aos seus favores.
A noite reconduzimo-la a casa. Enquanto conversávamos,
vi duas pistolas em cima do toucador. Ah ! Ah! , disse eu
agarrando numa, olha uma ·caixa de moscas de novo modelo:
pode-se saber para que serve? · Conheço-vos outras armas que
disparam melhor do que estas. Depois de algumas graças no
mesmo tom, diz-nos ela, com uma altivez ingénua que ainda a
tornava mais encantadora : Quando dispenso favores às pessoas
que não amo, faço-as pagar o aborrecimento que me dão; nada
mais justo: mas ao suportar-lhes as caricias, não quero supor­
tar-lhes os insultos, e não pouparei o primeiro que me não
poupar.
Ao deixá-la tomei nota da hora que me deu para o dia
seguinte. Não a fiz esperar. Encontrei-a in vestito de confi­
denza, num roupão mais que galante, que só se conhece nos
paises meridionais, e que eu não me entreterei a descrever, se
bem ·que me lembre muito bem dele. Direi apenas que as mangas
e a gola eram bordadas a fio de seda guarnecido ·com pompous
cor-de-rosa. Isto pareceu-me realçar bastante uma pele linda.
Vi depois que era moda em Veneza ; e o efeito era tão encanta­
dor, que me admiro que esta moda nunca tenha passado a
França. Não fazia ideia das voluptuosidades que me esperavam.

310
Tive ocasião de falar de Madame de Larnage, nos entusiasmos
que a sua recordação me traz por vezes ainda à memória; mas
como esta era velha, e feia, e fria ao pé da minha Zulietta! Não
experimenteis imaginar os encantos e as graças desta encanta­
dora rapariga; ficaríeis ainda muito longe da verdade. As vir­
gens dos claustros não são tão frescas, as beldades do serralho
não são tão vivas, as huris do paraíso não são tálo excitantes.
Nunca tão doces gozos se ofereceram ao coração e aos sentidos
de um mortal! Ah! se eu ao menos tivesse sabido gozá-la um
só momento plenamente, inteiramente! . . . Gozei-a, mas sem
embevecimento. Elmbotei-lhe todas as delícias, matei-as como
que por prazer. Não, a natureza não me fez para gozar. Pôs-me
na desgraçada ,cabeça o veneno daquela ventura inefável cujo
apetite me pôs no coração.
Se há circunstância na minha vida que pinte bem o meu
natural, é a que vou referir. A força com que neste momento
me lembro do objectivo do meu livro levar-me-á a desprezar
o falso decoro que me impediria agora de o realizar. Quem quer
que sejais, vós que quereis conhecer um homem, ousai ler as
duas ou três páginas seguintes: ides conhecer por inteiro J. J.
Rousseau.
Eu entrei no quarto de uma cortesã como num santuário
do amor e da beleza; julguei ver a sua divindade na pessoa dela.
Nunca teria acreditado que, sem respeito e sem estima, se
pudesse sentir algo parecido com o que ela me fez e:l'CPerimentar.
Mal conheci, nas primeiras familiaridades, o preço dos seus
encantos e das suas carícias, logo, com receio de o perder de
antemão, eu lhes quis colher apressadamente o fruto. De súbito,
no meio das chamas que me devoravam, sinto um frio mortal
percorrer-me as veias; as pernas tremem-me, e, a ponto de me
achar mal, assento-me, e choro como uma criança.
Quem poderia adivinhar a razão das minhas lágrimas, e o
que neste momento me passava pela cabeça? Dizia para comigo :
Este objecto de que disponho é a obra-prima da natureza e do
amor ; o espírito, o corpo, tudo nela é perfeito ; é tão boa e gene­
rosa como gentil e bela. Os grandes, os príncipes, deveriam ser
seus escravos; os ceptros deviam estar a seus pés. No entanto,
ei-la aqui, miserável prostituta, à mercê do público ; um capitão
da marinha mercante dispõe da sua pessoa ; meteu-se-me à cara,
a mim que ela sabe nada possuir, a mim cujo mérito, que não
pode conhecer, deve ser nulo aos seus olhos. Há nisto qualquer
coisa de inconcebível. Ou o meu coração se engana, fascina os
meus sentidos e os torna vitima de uma indigna maratona, ou

311
então deve haver qualquer imperfeição secreta que ignoro a
destruir o efeito dos seus encantos, tornando-a odiosa àqueles
que a deveriam disputar entre si. Pus-me a procurar tal imper­
feição numa contenção de espírito singular, e nem sequer me
ocorreu que ela pudesse residir no venéreo. A frescura das suas
carnes, o brilho da sua tez, a brancura dos seus dentes, a doçura
do seu hálito, o ar de asseio espalhado por toda a sua pessoa,
arredavam tão completamente de mim semelhante ideia, que
duvidando ainda do meu estado depois da Padoana, assalta­
vam-me pelo contrário escrúpulos de não ser suficientemente
são para ela, e estou convencidíssimo de que nisto a minha con­
fiança me não enganava.
Tais r·eflexões, .tão a propósito, agitaram-me a ponto de
desatar a chorar. Zulietta, para quem nestas circunstâncias isto
era certamente um espectáculo inteiramente novo, ficou u;w.
momento perplexa. Tendo no entanto dado uma volta ao quarto
e passado diante do ·espelho, compreendeu, e os meus olhos
certificaram-na de que a repugnância não influía nada na
minha maluquice. Não lhe foi difícil curar-me dela e fazer desa­
parecer esta pequena vergonha. Mas, no momento em que ia
desmaiar sobre um colo que parecia tolerar pela primeira vez
a boca e a mão de um homem, notei ·que ela tinha um seio sem
bico. Impressiono-me, examino, julgo perceber que este seio não
tem a forma do outro. E aí estou eu magicando como é que se
pode ter um seio sem bico; e, convencido de que tal coisa resi­
dia em qualquer notável vicio natural, à força de dar e tor­
nar a dar voltas à minha ideia, vi tão c laro como o dia que na
mais encantadora c riatura que poderia imaginar só tinha nos
braços uma espécie de monstro, o rebotalho da natureza, dos
homens e do amor. Levei a estupidez até falar-lhe do seio sem
bico. De principio tomou a coisa gracejando, e, com o seu feitio
folgazão, disse e fez coisas de me fazerem morrer de amor. Mas
como no fundo me conservava inquieto ·e não pude esconder-lho,
vi-a por fim corar, compor-se, levantar-se, e, sem dizer sequer
uma palavra, dirigir-se para a janela. Quis ir para o lado dela:
saiu dali, foi sentar-se num sofá, levantou-se dai a bocado, e
passeando e abanando-se através do quarto, disse-me com um
tom frio e desdenhoso: Zanetto, lascia le donne, e studia la
matematica 1•
Antes de a deixar, pedi-lhe outro encontro para o dia
seguinte, que ela transferiu para dai a três dias, acrescentando,

1 zanetto, deixa as mulheres, e estuda matemática.

312
com um sorriso irónico, que eu devia precisar descansar. Passei
todo _este tempo desassossegado, com o coração cheio dos seus
encantos e das suas graças, sentindo a minha extravagância,
exprobrando-ma, lamentando os momentos tão mal aproveitados,
que só de mim •teria dependido transformar nos mais doces da
minha vida, esperando com a mais viva impaciência aquele em
que repararia a sua perda, e contudo inquieto ainda, apesar
dessa impaciência, por conciliar as perfeições da;quela adorável
rapariga com a indignida;de do seu estado. A hora marcada,
corri, voei a casa dela. Não sei se o seu temperamento ardente
ficaria mais contente com esta visita ; o seu orgulho ao menos
ficá-lo-ia, e ·eu gozava de antemão as delícias de lhe mostrar
de todas as formas como sabia reparar os' meus erros. Ela
poupou-me a semelhante prova. O gondoleiro, que ao atracar
mandei a sua casa, veio dizer-me que Zulietta havia partido na
véspera para Florença. Se ao possui-la não tinha sentido todo
o meu amor, senti-o bem cruelmente ao perdê:..l a. O meu insen­
sato desgosto não me abandonou. Por muito gentil, por muito
encantadora que ela fosse a meus olhos, podia-me consolar de
a ter perdido ; mas do que não pude consolar-me, confesso-o,
foi de que ela não houvesse levado de mim mais do que uma
recordação desprezível.
Eis as minhas duas histórias. Os dezoito meses que passei
em Veneza nada mais me forneceram para dizer além de um
simples projecto quanto muito. Carrio era galanteador. Aborre­
cido de ir sempre só a casa de moças comprometidas com outros
teve a fantasia de também por seu turno arranjar uma; e, como
éramos inseparáveis, propôs-me a combinação, nada rara em
Veneza, de arranjarmos uma para os dois. Consenti. Tratava-se
de encontrar uma moça segura. Procurou tanto que desencantou
uma rapariguinha de onze a doze anos, que uma indigna mãe
procurava vender. Fomos vê-la juntos. O coração enterneceu­
-se-me ao ver a •Criança. Era loura e doce como um cordeiro:
nunca se poderia imaginar que fosse italiana. Em Veneza vive-se
com pouquíssimo. Demos algum dinheiro à mãe, e provemos à
manutenção da filha. Esta tinha voz: com o fim de lhe arranjar
um talento com recursos, demos-lhe uma espineta e um mestre
de canto. Tudo isto mal custava a cada um dois cequins por mês,
e poupava-nos mais noutras despesas ; mas como se tornava
necessário esperar que ela se achasse madura, era semear muito
antes de colher. No entretanto, contentando-nos em lá ir passar
o serão, falar e brincar inocentissimamente com aquela criança,
diver•tiamo-nos porventura mais agradàvelmente do que se a

313
possuíssemos: tão verdade é que o que. mais nos prende às
mulheres não é tanto o de,boche como um ·certo prazer de viver
junto delas! O meu coração afeiçoava-se insensivelmente à
pequena Anzoletta, mas com uma afeição paternal, na qual os
sentidos contavam tão pouco que à maneira que essa afeição
aumentava tanto menos possível me seria inclui-los nela ; e
sentia que me horrorizaria aproximar-me desta rapariga feita
núbil como de um incesto abominável. Via os sentimentos do
bom Carrio tomarem, sem ele dar por isso, a mesma feição. Sem
em tal pensarmos, reservávamo-nos prazeres que não sendo
menos doces eram contudo muito diferentes daqueles que a prin­
cípio tínhamos em mente ; e estou convencido de que, por muito
formosa que esta pobre criança pudesse vir a ser, longe de al­
guma vez sermos os corruptores da sua inocência, seríamos antes
os seus protectores. A minha catástrofe, sobrevinda pouco depois,
não me deu tempo a tomar parte nesta boa obra; e eu nesta
questão não tinha senão que louvar a inclinação do meu cora­
ção. Voltemos à minha viagem.
O meu primeiro projecto ao sair de casa de Monsieur de
Montaigu era retirar-me a Genebra, na expecta•tiva de que uma
melhor sorte, afastando os obstáculos, pudesse reunir-me à
minha pobre Mamã ; a retumbância que a nossa questão tinha
tido, e a tolice que o embaixador cometera escrevendo para a
corte a tal respeito, fez-me porém tomar a decisão de para aqui
me dirigir ·com o fim de prestar ·contas do meu procedimento,
e queixar-me do de um louco. Expus de Veneza a minha reso­
lução a Monsieur du Theil, interinamente encarregado dos negó­
cios estrangeiros desde a morte de Monsieur Amelot. Parti ao
mesmo tempo que a ·carta : fiz viagem por Bérgamo, Cômo e
Domo d 'Ossola; atravessei o Simplon. Em Sion, Monsieur de
Chaignon, encarregado dos negócios da França, recebeu-me cor­
dialmente ; outro tanto sucedeu em Genebra com Monsieur de la
Closure. Aqui, reatei relações com lMonsieur de Gauffecourt, de
quem tinha algum dinheiro a receber. Havia a•travessado Nyon
sem ver meu pai ; não que isso me não tivesse custado extrema­
mente, mas não tinha podido resolver-me a aparecer a minha
madrasta depois do desastre, convencido de que ela me julgaria
sem querer escutar-me. O livreiro Duvillard, antigo amigo de
meu pai, censurou-me vivamente esta falta. Expus-lhe a razão ;
e, para a reparar sem me expor a ver minha madrasta, tomei
uma liteira, e fomos ambos apear-nos em Nyon, no botequim.
Duvillard foi em busca de meu pobre pai, que veio logo a correr
para me beijar. Ceámos juntos, e, depois de haver passado um

314
serão bem doce ao meu coração, voHei no dia seguinte de
manhã para Genebra com Duvillard, a quem fiquei sempre
reconhecido pelo bem que nessa ocasião fez por mim.
O c aminho mais curto não era por Lyon ; quis no entanto
passar por ali para verificar uma gatunice bastante baixa de
Monsieur de Montaigu. Eu tinha mandado vir de !Paris uma pe­
quena mala contendo uma jaqueta bordada a ouro, alguns pares
de punhos e seis pares de meias brancas de seda ; nada mais. Por
proposta que ele próprio me fez, mandei juntar a mala, ou antes
a caixa, à sua bagagem. Na memória de sovina que Monsieur
de Montaigu quis dar-me em paga dos meus vencimentos, escrita
por seu próprio punho, dizia que esta ·caixa, a que ele chamava
um fardo, pesava onze quintais, e tinha-me levado um preço
elevadíssimo pelo seu porte. Graças aos cuidados de Monsieur
Boy de la Tour, a quem fora recomendado por Monsieur Roguin,
seu tio, verificou-se pelos registos das alfândegas de Lyon e de
Marselha que o dito fardo apenas pesava quarenta e cinco libras,
e que o custo do seu porte tinha sido à razão deste peso. Juntei
esta cópia autêntica à memória de Monsieur de Montaigu ; e,
munido destas pegas e de várias outras da mesma força, diri­
gi-me para Paris, impacientíssimo por exibi-las. Durante tod<l
esta longa viagem, sucederam-me pequenas aventuras em Cômo,
no Valais e alhures. Vi muitas coisas, entre as quais as ilhas
Borromeias, que mereciam ser descritas. Mas falta-me o tempo,
os espiões perseguem-me ; sou forçado a fazer à pressa e mal
um trabalho que exigiria o vagar e a tranquilidade que não
tenho. Se alguma vez a Providência, dirigindo sobre mim o seu
olhar, me conceder por fim dias calmos, destino-os a refundir,
se puder, esta obra, ou dotá-la pelo menos com um suplemen.to
que sinto fazer-:-lhe muita falta 1•
O rumor da minha história havia-me precedido, e ao che­
gar vi que tanto nas repartições como entre o público toda a
gente estava encolerizada com as loucuras do embaixador. Ape­
sar disso, apesar da voz pública de Veneza, apesar das provas
irrespondiveis que exibia, não pude obter sombra de j ustiça.
Longe de alcançar qualquer satisfação ou repara.ção, deixa­
ram-me mesmo à discrição do embaixador quanto aos meus ven­
cimentos, e isto apenas pela razão de que, não sendo francês,
não tinha direito à protecção nacional, e que se tratava de uma
questão particular entre mim e ele. Toda a gente estava de
acordo comigo em que eu me achava ofendido, lesado , desgra-

1 Renunciei a este projecto. - Nota de J.-J. Rousseau.

315
çado ; que o embaiXador era um insensato cruel, iníquo, e que
toda esta questão o desonrava para sempre. Mas quê! Era o em­
baixador ; eu, eu era apenas o secretário. A boa ordem, ou o que
assim se intitula, exigia que se me não fizesse j ustiça alguma, e
de facto não ma fizeram. Imaginava eu que à força de gritar e
de publicamente tratar aquele doido como ele merecia, me man­
dariam por fim calar ; e era isso que eu esperava, firmemente
resolvido a não obedecer senão depois de o haverem pronunciado.
Não havia contudo então ministro dos negócios estrangeiros.
DeiXaram-me dar à língua, incitaram-me, faziam chorus; mas a
questão nunca passou daJqui, até que, cansado de ter sempre por
mim a razão e nunca a j ustiça, perdi por fim a coragem, e aban­
donei tudo.
A única pessoa que me recebeu mal, e de ,quem menos espe­
raria tal injustiça, foi Madame de Beuzenval. Muito impante
com as prerrogativas de categoria e de nobreza, nunca lhe pôde
entrar na cabeça que um embaixador pudesse andar mal com o
secretário. A recepção que me fez estava de acordo com tal pre­
conceito. Senti-me tanto, que depois de sair de casa dela lhe es­
crevi uma das mais fortes e violentas cartas que acaso ainda es­
crevi, e nunca mais lá voltei. O padré Castel recebeu-me melho r ;
contudo, através d a lábia j esuítica, vi-o seguir com bastante
fidelidade uma das grandes máximas da sociedade, qual é a de
imolar sempre o mais fraco ao mais forte. O vivo sentimento da
j ustiça da minha causa e o meu orgulho natural não me deixa­
ram suportar com paciência tal parcialidade. Deixei de ver o
padre Castel, e por isso de ir aos j esuítas, onde apenas o conhecia
a ele. Aliás, o espírito tirânico e intriguista dos seus confrades,
tão diferente da bonomia do padre Hemet, afastavam-me tanto
do seu comércio, que desde então não voltei a ver mais nenhum,
a não ser o padre Berthier, que avistei duas ou três vezes em
casa de Monsieur Dupin, com o qual trabalhava coraj osamente
na refutação de Montesquieu.
Acabemos, para não mais voltar ao assunto, com o que me
resta dizer de Monsieur de Montaigu. Nas nossas discussões eu
tinha-lhe dito ,que o que ele precisava não era de um secretário,
mas de um ajudante de procurador. Seguiu o conselho e deu-me
realmente por sucessor um verdadeiro procurador, que em menos
de um ano lhe roubou vinte ou trinta mil libras. Expulsou-o,
meteu-o na prisão, expulsou os seus fidalgos com cenas e escân­
dalo ; em 'toda a parte armou questões, recebeu afrontas que
um lacaio não toleraria e, à força de loucuras, acabou por fazer
com que o chamassem e o mandassem plantar as suas couves.

316
Entre as reprimendas que recebeu na corte, a sua questão comigo
não foi aparentemente esquecida. :Pelo menos, pouco tempo
depois de regressar, mandou-me o seu mordomo para saldar as
nossas contas e dar-me o meu dinheiro. Nessa altura, tinha falta
dele; as minhas dividas de Veneza, dívidas de honra como as
que o são, pesavam-me na consciência. Aproveitei a ocasião que
se me apresentava de as liquidar, assim como a letra de Zanetto
Nani. A•ceUei o que quiseram dar-me; paguei todas as minhas
dividas, e fiquei sem um soldo, como dantes, mas aliviado de um
peso que me era insuportável. Desde então, nunca mais ouvi
falar de Monsieur de Montaigu senão quando morreu, o que
soube pela voz pública. Que Deus tenha em paz aquele pobre ho­
mem! Estava tão indicado para embaixador como eu em rapaz
para beleguim. Contudo, teria dependido apenas dele aguentar-se
honrosamente graças aos meus serviços, e fazer-me ràpidamente
progredir a mim na carreira para a ·qual o conde de Gouvon
me havia destinado em rapaz, carreira em que, graças a mim
só, tinha revelado capacidades numa idade mais avançada.
A justiça e a inutilidade das minhas queixas deixaram-me
na alma um fermento de indignação contra as nossas estúpidas
instituições civis, onde o verdadeiro bem público e a verdadeira
justiça são sempre sacrificados a não sei que ordem aparente,
destruidora na realidade de toda ordem, e a qual não faz senão
acrescentar a sanção da autoridade pública à opressM do fraco
e à iniquidade do forte. Duas coisas obstaram a que este fer­
mento se desenvolvesse então como veio a desenvolver-se depois:
uma, era que nesta questão se tratava de mim, e o interesse par­
ticular, que nunca produziu nada de grande e de nobre, não
poderia arrancar do meu coração os divinos transportes que só
ao mais puro amor do justo e do belo compete nele despertar.
A outra, foi a sedução da amizade, que temperava e acalmava
a minha cólera com o ascendente de um sentimento mais doce.
Tinha conhecido em Veneza um biscainho, amigo do meu amigo
Carrio, e digno de o ser de todo homem de bem. Este amável
mancebo, nascido para todos os talentos e para todas as virtu­
des, acabava de dar uma volta pela Itália para adquirir o gosto
das belas-artes; e, não vendo mais nada que adquirir, queria
voltar direioto à pátria. Disse-lhe eu que as artes não eram senão
o desenfado de um génio próprio como o dele para o cultivo das
ciências; e aconseihei-lhe, para lhes tomar gosto, uma viagem
e uma estadia de seis meses em Paris. Acreditou-me, e partiu
parà Paris. Aqui se achava e me esperava quando eu cheguei.
Como a sua habitação era grande de mais para ele, ofereceu-me

317
metade ; aceitei. Encontrei-o no fervor dos altos conhecimentos.
Nada havia acima do seu alcance ; devorava e digeria tudo com
uma prodigiosa rapidez. Como me agradeceu o haver-lhe eu
proporcionado tal alimento ao seu espírito, que a necessidade
de saber atormentava, sem que ele próprio se inteirasse disso!
Que tesouros de luzes e de virtudes eu encontrava nesta alma
forte ! Senti que era o amigo de que tinha necessidade: torná­
mo-nos íntimos. Os nossos gostos não eram os mesmos ; dis­
cutíamos sempre. Ambos teimosos, nunca nos achávamos de
acordo em nada. Com isso não nos podíamos deixar ; e, ao mesmo
tempo que nos c ontrariávamos incessantemente, nenhum de nós
quereria 'que o outro fosse diferente.
Inácio Emanuel de IA.ltuna era um destes homens raros que
só a Espanha produz, e que muito pouco produz para sua glória.
Não possuía aquelas violentas paixões nacionais, comuns no seu
país. A ideia de vingança não podia entrar mais no seu espírito
do que o desejo no seu peito. Era demasiado altivo para ser vin­
dicativo, e muitas vezes lhe ouvi dizer ·c om enorme sangue-frio
que um mortal não podia ofender a sua alma. Era galanteador
sem ser terno. Brincava com as mulheres como com lindas crian­
ças. Comprazia-se com as amantes dos amigos ; mas nunca lhe
vi nenhuma, nem desejo de as possuir. As chamas da virtude
que lhe devoravam o coração nunca permitiram nascessem nele
as dos sentidos. Depois das viagens, c asou-se ; morreu novo ; dei­
xou filhos, e estou convencido, como da minha existência, de
que a mulher foi a primeira e a única que lhe deu a conhecer
os prazeres do amor. Exteriormente era devoto como um espa­
nhol, mas no interior existia a piedade de um anJo. Depois de
mim, a tolerância só a vi nele desde que existo. Nunca inquiriu
de um homem o que este pensava em matéria de religião. Pouco
lhe importava que um amigo fosse judeu, protestante, turco,
beato, ateu, desde que fosse um homem de bem. Obstinado, tei­
moso 8/té com respeito a opiniões indiferentes , logo que se tra­
tava de religião, mesmo de moral, recolhia-se , calava-se, ou dizia
simplesmente: Só de mim tenho encargo. É inacreditável como
se pode associar tanta elevação de alma com um espírito de
pormenor levado até à minudência. Dividia e fixava antecipa­
damente o emprego do seu dia em horas, quartos de hora e
minutos, e seguia tal distribuição ·com tanto escrúpulo, que se
soasse a hora enquanto lia uma frase, fecharia o livro sem a
terminar. De �todas estas precauções tão sagazes a respeito do
tempo, havia horas para tal estudo, havia-as para tal outro ;
havia-as para a reflexão, para a conversação, para a missa, para

318
Locke, para o rosano, para as visitas, para a música, para a
pintura ; não havia nem prazer, nem tentação, nem satisfação
que pudesse interverter esta ordem. Só o poderia qualquer dever
a cumprir. Quando me mostrava a lista da repartição do seu
tempo, para que eu me conformasse ,com ela, começava por rir
e acabava por chorar de admiração. Nunca incomodava nin­
guém, nem admHia que o incomodassem a ele ; tratava àspera­
mente as pessoas que, por amabilidade, queriam incomodá-lo.
Era violento sem amuar ; vi-o várias vezes encolerizado, mas
nunca o vi arrufado. Não havia ninguém com um feitio mais
alegre ; sabia galhofar e gostava da galhofa. Brilhava mesmo
nesta matéria, e possuía bossa para o epigrama. Quando o exci­
tavam, era ruidoso ,e barulhento nas palavras, e a sua voz
ouvia-se ao longe. No entanto, enquanto gritava, viam-no sorrir,
e mesmo através dos seus arrebatamentos vinha-lhe por vezes
um bom dito que fazia rebentar toda a gente. Nem a sua tez
nem a sua fleuma eram de um espanhol. Tinha a pele branca,
faces vermelhas, o cabelo de um castanho quase louro. Era alto
e bem feito. O seu ,corpo havia sido formado para albergar a sua
alma.
Este indivíduo, tão circunspecto de coração como de cabeça,
era um conhecedor em matéria de homens, e tinha-me como
amigo. É a minha única resposta a quem que r que o não é.
Ligámo-nos tão bem que fizemos o projecto de passar os nossos
dias j untos. Dentro de alguns anos, eu devia partir para Ascoy,tia,
para viver com ele na sua terra. Na véspera da sua partida,
combinámos todos os lados deste projecto. Só lhe faltou aquilo
que não depende dos homens nos mais bem concertados pro­
je,ctos. Os acontecimentos posteriores, os meus desastres, o seu
casamento, a sua morte, por fim, separaram-nos para sempre.
Dir-se-á que só as tenebrosas conspirações dos maus vão avante;
os inocentes projectos dos bons quase nunca se realizam.
Havendo sentido os inconvenientes da dependência, pro­
meti a mim mesmo nunca mais me expor a eles. Havendo visto
desmoronarem-se à nascença os projectos ambiciosos que a
ocasião me tinha levado a formar, desiludido de entrar na car­
reira tão bem come1çada, e da qual não obstante acabava de ser
expulso, resolvi não mais me ligar a ninguém, e ficar indepen­
dente tirando partido dos meus talentos, cujo alcance começava
enfim a medir, e nos quais havia até ,então pensado com dema­
siada modéstia. Retomei a composição da minha ópera, que
havia interrompido ao partir para Veneza ; e para me entregar
a ela com mais sossego, voltei, depois da partida de Altuna, para

319
o meu antigo hotel de Saint-Quentin, o qual, situado num bairro
solitário e pouco distante do Luxemburgo, me era mais cómodo
para trabalhar à vontade do que a ruidosa rua de Saint-Honoré.
Aqui me esperava a única consolação real que na minha miséria
o céu me fez gozar, e a única que ma torna suportável. Não se
trata de uma relação passageira ; devo dar alguns pormenores
a r,espeito da maneira como a fiz.
Tínhamos uma nova hospedeira, que era de Orléans. Para
tomar conta da roupa branca mandou vir da sua terra uma
rapariga, de vinte e dois a vinte e três anos aproximadamente,
que comia connosco, assim como a patroa. Esta rapariga, cha­
mada Teresa Le Vasseur, era de boa família ; o pai era funcioná­
rio da Moeda de Orléans ; a mãe negociava. Tinham muitos
filhos. Como a Moeda de Orléans deixou de funcionar, o pai
achou-se sem emprego ; a mãe, tendo sofrido alguns desastres
financeiros, dirigiu mal os seus negócios, abandonou o comércio,
e veio para Paris com o marido e a filha, .que com o seu trabalho
sustentava os três.
A primeira vez que vi aparecer a rapariga à mesa, fiquei
impressionado com o seu porte modesto, e ainda mais com o seu
olhar vivo e doce, que para mim nunca teve igual. Além de
Monsieur de Bonnefond, a mesa compunha-se de vários abades
irlandeses, chalaceadores, e outras pessoas da mesma estofa.
A própria patroa dera em droga: ali era eu o único que falava e
me comportava decentemente. Provocavam a pequen a ; eu tomei
a sua defesa. Imediatamente caíram em cima de mim os dicho­
tes. Ainda que não sentisse naturalmente nenhuma atracção
pela pobre rapariga, por compaixão, por contradição, tê-la-ia
ganho. Gostei sempre da honestidade nas maneiras e nas falas,
sobretudo com as mulheres. Tornei-me abertamente o seu cam­
peão. Vi-a sensível às minhas atenções, e os seus olhares, ani­
mados pelo reconhecimento que não ousava exprimir pela boca,
tornavam-se por isso mais penetrantes.
Era muito tímida ; eu também. Apesar de semelhante dis­
posição comum parecer afastar a nossa ligação, esta fez-se con­
tudo ràpidamente. A patroa, percebendo-o, enfureceu-se, mas
as suas brutalidades apressaram ainda mais as minhas relações
com a pequena, que, não tendo outro apoio na casa, via-me sair
com mágoa e suspirava pelo regresso do seu protector. A afini­
dade dos nossos corações, o concurso das nossas disposições em
breve produziu o costumado efeito. Ela j ulgou ver em mim um
homem honesto ; não se enganou. Eu j ulguei ver nela uma rapa­
riga sensível, simples, sem tafulice ; e também me não enganava.

320
Declarei-lhe de antemão que nunca a abandonaria nem a des­
posaria. O amor, a estima, a sinceridade ingénua, foram os minis­
tros do meu triunfo ; e porque o seu coração era terno e honesto,
eu fui feliz sem ser atrevido.
O receio que ela tinha de que eu me desgostasse por não
encontrar nela o que ela julgava ·que eu procurava retardou
a minha felicidade mais do ,que nada. Vi-a interdita e confusa
antes de se entregar, ,querendo fazer-se entender sem ousar
explicar-se. Longe de imaginar a verdadeira causa da sua atra­
palhação, imaginei outra inteiramente falsa e inteiramente
insultuosa para os seus costumes, e julgando ·que ela me queria
advertir de que a minha saúde corria riscos, cai em perplexidades
que me não retiveram, mas que envenenaram a minha felicidade
durante vários dias. Como nos não entendíamos um ao outro, as
nossas conversas a este respeito eram outros tantos enigmas e
anfiguris mais que risíveis. ,Ela esteve a ponto de me julgar
inteiramente doido; eu estive a ponto de já não saber que pensar
dela. Por fim, explicámo-nos : chorando, confessou-me uma só
falta cometida ao sair da infância, fruto da sua ignorância e da
habilidade de um sedutor. Mal a ·compreendi , larguei um grito de
alegria: Virgindade ! , exclamei eu, bem a podemos nós procuràr
em Paris, bem a podemos nós procurar aos vinte anos ! Ah! minha
Teresa, sou suficientemente feliz por te possuir ajuizada e sã, e
não ·encontrar o que não procurava.
A principio só buscava uma distracção. Vi que havia feito
mais do ·que isso, e que tinha arranjado uma companheira. Um
pouco de hábito com aquela ·excelente rapariga, um pouco de
reflexão a respeilto da minha situação, fizeram-me compreender
que pensando apenas nos meus prazeres havia feito muito pela
minha felicidade. No lugar da ambição extinta, precisava de um
sentimento vivo que enchesse o meu coração. Para tudo dizer,
predsava de dar uma sucessora a Mamã: visto que não viveria
mais com ela, precisava de alguém que vivesse com o seu discí­
pulo, e em quem eu encontrasse a simplicidade, a docilidade de
coração que ela havia encontrado em mim. Precisava que a
doçura da vida privada e doméstica me indemnizasse da sorte
brilhante a que renunciava. Quando me encontrava absoluta­
mente só, o meu coração encontrava-s� vazio ; mas bastava
outro para mo encher. A sorte tinha-me tirado, .tinha alheado
de mi:m, ao menos em parte, aquele para quem a natureza me
havia criado. Desde então achava-me só; porque para mim
nunca houve meio termo entre tudo e nada. Encontrava em
Teresa o suprimento de que tinha necessidade; graças a ela,

321
vivi feliz tanto quanto podia sê-lo de acordo com o curso dos
acontecimentos.
Primeiro, quis formar o seu espírito. P·ena inútil. O seu espí­
rito é o que a natureza o fez ; a ctütura e os desvelos não pegam
nele. Não coro ao confessar que Teresa nunca soube ler bem,
embora escreva razoàv·e lmente. Quando fui morar para a rua
Neuve-des-Petits-Oha:mps, havia em frente das j anelas, no pala­
cete de Pontchartrain, um quadrante no qual durante mais de
um mês me esforcei por lhe ensinar a conhecer as horas. Hoje
ainda mal as conhece. Nunca pôde seguir a ordem dos doze meses
do ano, e não conhece um só algarismo, apesar de todos os cui­
dados que tive para lhos fazer compreender. Não sabe nem con­
tar o dinheiro, nem o preço de coisa alguma. Ao falar, a palavra
que lhe ocorre é muitas vezes o contrário daquilo que quer dizer.
Em tempos fiz um dicionário das suas frases para diveil"tir
Madame de Luxemburgo, ·e os seus quiproquós <tornaram-se céle­
bres nas sociedades onde vivi. !Mas esta criatura tão limitada e,
se quiser·em, tão estúpida, é de um excelente conselho nas oca­
siões difíceis. Na Suíça, na Inglaterra, em França, nas catás­
trofes que caíram sobre mim, muitas vezes viu ·ela o que eu
próprio não via ; fez-me seguir os melhores conselhos ; .tirou-me
dos perigos onde cegamente me precipitava ; e diante das damas
da mais alta situação, diante dos grandes e dos príncipes, os
seus sentimentos, o seu bom senso, as suas respostas e a sua
conduta valeram-lhe a estima universal, e a mim, a respeito do
seu mérito, cumprimentos cuja sinceridade sentia.
Junto das pessoas que amamos, o sentimento alimenta o
espírito assim ·como o coração, e pouca necessidade há de bus­
carmos alhures as ideias. Vivia tão agradàvelmente com a minha
Teresa como com o mais belo génio do universo. A mãe, orgu­
lhosa de t er sido outrora educada ao pé da marquesa de Mon­
pipeau, fazia alarde de espírito, queria dirigir o dela, e, com a
sua astúcia, estragava a simplicidade do nosso comércio. O tédio
desta importunidade fez-me venc·er um pouco a tola vergonha
de não ousar mostrar-me em público com Teresa, e sozinhos
dávamos pequenos passeios campestres e fazíamos pequenas
merendas com que me deliciava. Via que ela me amava sincera­
mente, e isso redobrava a minha ternura. Esta doce intimidade
compensava tudo para mim ; o futuro já não me interessava, ou
só me interessava como sendo o presente prolongado: nada dese­
java senão garantir-lhe a duração.
Semelhante afeição tornou-me ·qualquer outra distracção
supérflua e insípida. Jlá não saía senão para ir a casa de Teresa;

322
a sua habitação tornou-se quase a minha. Esta vida retirada foi
de tal vantagem para o meu trabalho, que em menos de 'três
meses a minha ópera inteira, letra e música, estava terminada.
Faltava apenas fazer alguns acompanhamentos e partes inter­
mediárias. Este trabalho de artífice aborrecia-me bastante.
Propus a Philidor encarregar-se dele, dando-lhe parte no lucro.
Philidor apareceu duas vezes, escreveu algumas partes inter­
mediárias no acto de Ovídio, mas este trabalho continuo com
vista a um proveito longínquo não o seduziu. Não voltou mais,
e eu próprio acabei a tarefa.
Terminada a ópera 1 , tratava-se de tirar partido dela : era
uma outra ópera bem mais difícil. Em Paris, quando se vive
isolado, não se consegue nada. Pensei em romper wtravés Mon­
sieur de la Popliniêre, em casa de quem Gauffecourt, tendo
regressado de Genebra, me havia introduzido. Monsieur de la
Popliniêre era o mecenas de Rameau ; Madame de la Popliniêre
era a aluna humilima deste. Rameau punha e dispunha naquela
casa. Pensando ·que protegeria com prazer a obra de um dos seus
discípulos, quis mostrar-lhe a minha. Recusou-se a vê-la, dizendo
que não podia ler as partituras, que isso o fatigava muito. La
Popliniêre alegou que podíamos fazer-lha ouvir, e ofereceu-se
para reunir os músicos necessários �à execução de alguns trechos ;
eu já não pedia mais nada. Rameau acedeu resmungando, e repe­
tindo constantemente que devia ser bonita coisa essa compo­
sição de um rapaz a quem não haviam nascido os dentes no
oficio, e que havia aprendido música sozinho. Dei-me pressa em
tirar as partes de cinco ou seis trechos escolhidos. Arranja­
ram-me uns dez sinfonistas, e, como cantores, Albert, Bérard,
e Mademoiselle Boubonnais. Logo na abertura começou Rameau
a dar a entender ,com os seus desmedidos elogios que ela não
podia ser minha. Não deixou passar nenhum trecho sem mos­
trar sinais de impaciência ; quando chegou porém uma ária de
tenor, cuj a melodia era enérgica e sonora e o acompanha­
mento brilhantíssimo, não pôde conter-se mais tempo ; apostro­
fou-me com uma brutalidade que escandalizou toda a gente,
afirmando que uma par•te do que acabava de ouvir era de um
homem consumado na arte, e o resto de um ignorante que nem
sequer sabia música ; e é certo que o meu trabalho, desigual e
fora de regras, era ora sublime ora insignificantíssimo, como
é forçoso que aconteça com quem quer que sobe apenas graças
a alguns arranques de génio, e que não é amparado pela ciên-

1 As musas galantes. - N. do T.

323
' cia. Rameau não quis ver em mim mais do que um plagiadorzito
sem talento e sem gosto. Os assistentes, e sobretudo o dono da
c asa, não pensaram o mesmo. Monsieur de Richelieu, que nessa
altura visitava bastante Monsieur e, como se sabe, Madame de
la Popliniêre, ouviu •falar da minha obra, e quis escutâ-la por
inteiro, projectando dâ-la na corte se ela lhe agradasse. Esta
executou-se com um grande coro e uma grande orquestra, em
casa de Monsieur de Bonneval, intendente dos «menus» I, a
expensas do rei. Francreur dirigia a execução. O efeito foi sur­
preendente. O Sr. Duque não cessava de gritar e de aplaudir,
e no fim de um coro, no acto do Tasso, dirigiu-se-me, e apertan­
do-me a mão, disse-me : Monsieur Rousseau, ora aí estâ uma
harmonia que arrebata. Nunca ouvi nada mais belo : quero levar
a sua obra em Versalhes. Madame de la Popliniêre, que estava
presente, não disse palavra. Apesar de convidado, Rameau não
quisera vir. No dia seguinte, à �toilette» , Madame de la Popli­
niêre recebeu-me àsperamente, fez gala em rebaixar a minha
peça, e disse-me que, embora um pouco de ouropel houvesse a
principio deslumbrado Monsieur de Richelieu, este tinha mudado
inteiramente de opinião, e que ela me aconselhava a não contar
com a ópera. Pouco depois chegou o Sr. Duque, que me falou
de outra maneira; disse-me coisas elogiosas a respeito dos meus
talentos, e pareceu-me disposto a levar a peça na presença do
rei. Só o acto do Tasso é que não p ode ser levado na corte,
disse-me ele ; necessârio se torna escrever outro. A esta simples
palavra, corri a fechar-me em casa, e em três semanas fiz em
lugar do Tasso um outro acto cujo assunto era Hesíodo inspirado
pelas musas. Encontrei o segredo de meter neste acto uma parte
da história dos meus talentos, e do ciúme com que Rameau que­
ria verdadeiramente honrá-los. Havia no novo acto uma sublimi­
dade menos gigantesca e mais elevada que a do Tasso. A música
também era mais nobre e mais bem f·eita, e se os dois outros
actos valessem este, toda a peça teria aguentado com vanta­
gem a representação : enquanto porém acabava de a pôr em con­
dições, um outro cometimento suspendeu a execução daquele.
No Inverno que se seguiu à batalha de Fontenay, houve
muitas festas em Versalhes, entre as quais vârias óperas no
teatro das Petites-Jí.:curies. Ao número destas pertencia o drama
de Voltaire intitulado A Princesa de Mavarra, para o qual
Rameau havia escrito a música, e que acabava de ser alte­
rado e reformado sob o nome de Festas de Ramiro. o novo

I Despesas da coroa destinadas a festas e divertimentos. - N. do T.

324
assunto exigia várias alterações nos «divertimentos» do antigo,
tanto nos versos como na música. Como Voltaire, nessa altura na
Lorena, e Rameau se achavam então ocupados ambos com a
ópera O templo da glória, e não podiam dispensar os seus
cuidados, tratava-se de arranjar alguém que se pudesse encarre­
gar daquele duplo objectivo. Monsieur de Richelieu pensou em
mim, mandou-me propor que me encarregasse da coisa, e para
que eu pudesse encaminhar melhor o que havia de fazer, enviou­
-me em separado o poema �e a música. Antes de mais nada, não
quis tocar na letra senão com o consentimento do autor ; e a
este respeito escrevi-lhe uma carta muito cortês, mesmo res­
peitosa, como convinha. Eis a resposta, cujo original se encon­
tra no maço A, n.o 1 .

1 5 de Dezembro de 1 745

Vós rewnis, Senhor, dois talentos que até agora têm andado
separados. Eis já duas boas razões para que eu vos estime e pro­
cure amar-vos. Pesa-me por vós terdes de empregar estes dois
talentos numa obra que não é muito digna (disso. Há alguns
meses o Sr. Duque de Richelieu ordenou-me categoricamente que
fizesse num abrir e fechar de olhos um pequeno e péssimo
esboço de algumas �cenas insípidas e truncadas, as quais deviam
acrescentar-se a <<divertimentos» que não foram jeitos para
elas. Obedeci com a maior pontualidade; trabalhei muito
depressa e muito mal. JEnviei o deplorável bosquejo ao Sr. Duque
de Richelieu, esperando que não servisse, ou que viria a corri­
gi-lo. Felizmente, acha-se nas vossas mãos, sois senhor absoluto
dele; perdi tudo isso absolutamente de vista. Não duvido cte
que tenhais corrigido todos os erros que necessàriamente esca­
param na composição tão rápida de um simples esboço, d e
que tenhais suprido a tudo.
Lembro-me de que entre outras estupidezas, não se diz,
nas cenas que ligam os «divertimentos», como é que a princesa
Granadina passa de súbito de uma prisão para um jardim en­
cantado ou para um palácio. Como não é um mágico, mas sim
um senhor espanhol quem a festeja, pare,ce-me que nada se
deve t�azer por via de encantamentos. Peço-vos, Senhor, que
queirais rever este passo, de que só tenho confusa ideia. Vede se
é necessário que a prisão se abra, jazendo p assar a nossa prin­
cesa desta prisão para um belo palácio doirado e brilhante,
para ela preparado. Sei muito bem que tudo isto é muitíssimo
deplorável, e que está abaixo de um ser .pensante procurar fazer

325
algo sério destas bagatelas; mas enfim, visto que se trata de
desagradar o menos possível, necessário é entrar com o máximo
de razão que se possa, mesmo num péssimo «divertimentO» de
ópera. Conf�o-me de tudo em vós e em Monsieur Ballod, e
espero ter em breve a honra de vos agradecer, e de vos afirmar,
Senhor, a que ponto tenho a de ser, ete.

!Não se admirem da grande delicadeza desta carta, compa­


rada com as outras semi-insolentes que mais .tarde me escreveu.
Julgou-me em grande favor junto de 'Monsieur de Richelieu, e
a sua conhecida flexibilidade cortesã obrigava-o a ser bastante
atencioso para com um récem-vindo, até que conhecesse melhor
os limites dos créditos deste.
Autorizado por Monsieur de Voltaire e dispensado de todas
as atenções para com Rameau, que só procurava prejudicar-me,
pus-me ao 1trabalho, e em menos de dois meses tinha a tarefa
terminada. Quanto aos versos, esta limitou-se a pouca coisa.
Procurei apenas que se não notasse muito a difer·ença dos estilos,
e tenho a presunção de julgar havê-lo conseguido. O trabalho
da música foi mais longo e mais penoso. Além de ter que escre­
ver vários trechos de aparato, entre os quais a abertura, todo o
recitativo de que ·estava encarr·e gado revelou-se de uma difi­
culdade e�trema, assim como as ligações que era preciso fazer,
fre•quentemente em poucos versos e por meio de modulações
muito rápidas, entre sinfonias e coros em tons excessivamente
afastados ; pois que, para que Rameau não me acusasse de haver
desfigurado as suas árias, não quis alterar nem transpor
nenhuma. Saí-me bem do recitativo. Era bem acentuado, cheio
de energia, e sobretudo excelentemente modulado. A ideia dos
dois homens superiores aos quais se haviam dignado associar-me
tinha-me feito subir o génio, e posso dizer que neste ingrato e
inglório trabalho, de que o público nem sequer podia ser infor­
mado, conservei-me quase sempre a par dos meus modelos.
A peça, tal como eu a a,varelhara , foi ensaiada no grande
Teatro da ópera. Dos três autores, só eu me encontrava. Voltaire
achava-se ausente, e Rameau não apareceu, ou escondeu-se.
A letra do primeiro monólogo era bastante lúgubre. Começa
assim :

Oh morte ! vem findar da vida minha as desgraças.

Tinha sido absolutamente necessário escrever para ela uma


música apropriada. Foi todavia sobre isto que Madame de la

326
Popliniêre fundou as suas censuras, acusando-me, com bastante
acrimónia, de haver escrito uma música de enterro. Monsieur
de Richelieu começou judiciosamente por se informar de quem
eram o.s versos do monólogo. Apresentei-lhe o manuscrito que
me havia enviado, e que testemunhava serem os versos de Vol­
taire. Nesse caso, disse ele, é só Voltaire que tem a culpa.
Durante o ensaio, tudo o que era meu foi sucessivamente desa­
provado por Madame de la Popliniêre, e justificado por Mon­
sieur de Richelieu. Mas enfim, eu tinha que me haver contra
uma parte bastante forte, e foi-me declarado que havia várias
coisas a refazer no meu trabalho, a respeito das quais era neces­
sário consultar Monsieur Rameau. Magoado com semelhante
conclusão, em vez dos elogios esperados, e que certamente mere­
cia, voltei para casa, com a morte na alma. Caí doente , esgotado
pela fadiga, devorado pelo desgosto, e durante seis semanas não
estive em estado de sair.
Rameau, encarregado das alterações indicadas por Madame
de la Popliniére, mandou-me pedir a abertura da minha grande
ópera para a substituir pela que escrevera ultimamente. Feliz­
mente percebi o ardil, e recusei-a. Como faltavam apenas cinco
ou seis dias para a representação, não teve tempo para escrever
outra, e foi preciso deixar ficar a minha. Era à italiana, e num
estilo então inteiramente novo em França. No entanto, foi apre­
ciada, e eu soube por Monsieur de Valmalette, mordomo do rei
e genro de Monsieur Mussard, meu par,ente e meu amigo, que
os amadores tinham ficado muito contentes com a minha obra,
e que o público não a havia distinguido da de Rameau. Este,
porém, de concerto com Madame de la Popliniêre, tomou as suas
medidas para que nem sequer se soubesse que eu havia traba­
lhado nela. Nos libretos que se distribuem aos espectadores, e nos
quais se mencionam sempre os autores, só figurava Voltaire, e
Rameau preferiu que o seu nome fosse suprimido a vê-lo asso­
ciado ao meu.
Logo que me achei em estado de sair, quis ir a casa de Mon­
sieur de Richelieu. Era tarde. Acabava de partir para Dunquer­
que, onde devia comandar o desembarque destinado à Escócia.
Quando voltou, eu, para desculpar a minha preguiça, disse co­
migo que já era tarde. Como desde então não ,tornei a vê-lo, perdi
as honras que a minha obra merecia, os honorários que me havia
de render, e o meu tempo, o meu trabalho, as minhas arrelias, a
minha doença e o dinheiro que com esta despendi, tudo isso foi
à minha custa, sem me trazer um soldo de lucro, ou antes de
indemnização. Sempre me pareceu todavia que Monsieur de

327
Richelieu tinha uma natural inclinação por mim e ajuizava favo­
ràvelmente dos meus talentos. A minha infelicidade e Madame
de la Popliniêre obstaram porém a .toda e qualquer consequência
da sua boa vontade.
Nada podia compreender da aversão desta mulher, a quem
me ·esforçara por agradar e a quem fazia a corte bastante regu­
larmente. Gauffecourt explicou-me os motivos. Primeiro, disse­
-me este, a sua amizade por Rameau, de quem é a elogia­
dora encartada e que não quer tolerar nenhum concorrente ; e
em seguida um pecado original que vos condena aos seus olhos, e
que nunca vos perdoará, que é o serdes genebrino. A este res­
peito, explicou-me que o abade Aubert, que .também era gene­
brino, sincero amigo de Monsieur de la Popliniêre, tinha feito
todos os esforços para o impedir de casar com esta mulher que
ele conhecia bem, e que depois do casamento ela lhe havia votado
um ódio implacável, como a todos os genebrinos. Se bem que
La Popliniêre, acrescentou ele, vos tenha amizade, em meu
entender não podeis contar com o seu apoio. Gosta da mulher ;
esta odeia-vos ; é má, e é esperta ; nunca conseguireis nada nesta
casa. Tenho-o como di:to.
Este mesmo Gauffecourt prestou-me pouco mais ou menos
pela mesma altura um serviço de que eu .tinha grande necessi­
dade. Acabava de perder o meu virtuoso pai, na idade aproxi­
mada de sessenta anos. Semelhante perda sentia-a menos do que
em qualquer outra ocasião em que me achasse menos ocupado
com as dificuldades da minha situação. Enquanto fora vivo, não
tinha eu querido reclamar o que restava da herança de minha
- mãe, e de que ele tirava um pe1queno rendimento. Depois da sua
morte, não tive a tal respeito mais escrúpulos. A falta de prova
j urídica da morte de meu irmão levantava porém uma dificul­
dade, que Gauffecourt se encanegou de remover, e que levou a
efeito graças aos bons ofícios do advogado De Lolme. Como tinha
grande necessidade desta pequena soma, e o êxito era duvidoso,
esperava a nova definitiva na mais viva impaciência. Uma noite,
ao ·entrar em casa, encontro a carta que devia conter a dita nova,
e a:garrei-a para a abrir num tremor de impaciência de que no
meu intimo tive v·e rgonha. Pois quê, disse comigo desdenho­
samente, deixar-se-á Jean Jlacques subjugar a este ponto pelo
interesse e pela curiosidade? Imediatamente repus a carta em
cima do fogão. Despi-me, deitei-me tranquilamente, dormi me­
lhor que de costume, e levantei-me no dia seguinte bastante
tarde, sem pensar mais na carta. Ao vestir-me, reparei nela ;
abri-a sem pressas ; dentro estava uma letra de câmbio. Senti a

328
um tempo várias satisfações, mas posso jurar que a mais forte foi
a de haver sabido dominar-me. Haveria vinte factos semelhantes
a ·Citar na minha vida, mas tenho demasiada pressa para poder
contar tudo. Enviei uma pequena parte do dinheiro à minha
pobre Mamã, lamentando com lágrimas o feliz tempo em que
o teria deposto todo a seus pés. Todas as suas cartas deixavam
transparecer o infortúnio. Mandou-me uma 'quantidade de recei­
tas e de segredos que pretendia poderem fazer a minha fortuna
e a sua. O sentimento da miséria já lhe apertava o coração e
deprimia o espírito. O pouco que lhe enviei foi presa dos gatunos
que a não largavam. Não se a:proveitou de nada. Desgostou-me
isto de dividir o que me fazia arranjo com aqueles miseráveis,
mormente depois da inútil tentativa que fiz de lha arrancar das
mãos, como mais tarde terei ocasião de referir.
O ·tempo fugia e o dinheiro com ele. Éramos dois, mesmo
quatro, ou, para melhor dizer, éramos sete ou oito. Porque, se
Teresa era de um desinteresse de que há poucos exemplos, a
mãe não era como ela. Logo que esta, graças aos meus cuidados,
se viu um pouco r·e stabelecida, mandou vir toda a familia para
com ela partilhar os frutos. Irmãs, filhos, filhas, noras, tudo
veio, fora a filha mais velha, casada com o director dos coches
de Angers. Tudo o que fazia por Teresa desviava-o a mãe em
benefício destes esfomeados. Como não tinha que me haver com
uma pessoa ávida, e como me não achava dominado por uma
paixão louca, não fazia loucuras. Contente por conservar hones­
tamente, mas sem luxo, Teresa ao abrigo de necessidades urgen­
tes, consentia que o que ela ganhava graças ao seu trabalho
revertesse inteiramente em proveito da mãe, e não me limitava
a isso. Mas, graças a uma fatalidade que me perseguia, enquanto
Mamã era vitima dos farroupilhas; Teresa era vítima da famí­
lia, e eu de lado nenhum podia fazer algo que aproveitasse à
pessoa que tinha em vista. Era singular que a filha mais nova de
Madame Le Vasseur, a única ,que não havia sido dotada, fosse
a única a alimentar o pai e a mãe, e que depois de durante tanto
tempo ter sofrido os maus tratos dos irmãos, das irmãs, e até
das sobrinhas, a pobre rapariga fosse agora saqueada por eles,
sem poder defender-se melhor dos seus roubos do ·que das suas
pancadas. Apenas uma das sobrinhas, chamada Goton Leduc,
era bastante amável e com um carácter bastante doce, posto
que estragada pelo exemplo e as lições das outras. Como as via
frequentemente j untas, dava-lhes o nome que ·elas se davam uma
à outra ; chamava à sobrinha, minha sobrinha, e à tia, minha
tia. Ambas me chamavam tio. Daqui o nome de tia, por uue

329
continuei a tratar Teresa, e que os meus amigos repetiam às
vezes por graça.
Já se vê que, em semelhante situação, não tinha um
momento a perder para procurar safar-me dela. Na suposição de
que Monsieur de Richelieu me havia esquecido, e nada mais es­
perando por parte da corte, fiz algumas tentativas para montar
em Paris a minha ópera ; experimentei porém dificuldades que
exigiam bastante tempo para ser vencidas, e de dia para dia
me achava mais em apertos. Lembrei-me de apresentar a minha
comêdiazita Narciso nos Italianos ; foi aceita, e eu obtive as
entradas do costume, que me causaram grande prazer. Nada
mais, porém. Nunca consegui fazer representar a peça ; e farto
de fazer a corte a comediantes, disse-lhes adeus. Recorri por
fim ao último expediente que me restava, o único por que deve­
ria ter optado. Para frequentar a casa de Monsieur de la Popli­
niêre havia-me afastado da de Monsieur Dupin. As duas senho­
ras, embora parentes, não se davam nem se visitavam. Não havia
quaisquer relações entre as duas casas, e só Thieriot vivia numa
e noutra. Este foi encarregado de tratar de fazer-me voltar a
casa de Monsieur Dupin. Monsieur de Francueil ocupava-se então
com a história natural e com a química, e estava montando um
gabinete. Creio que aspirava à Academia das Ci<ências ; para
isso queria escrever um livro, e supunha que eu podia ser-lhe
útil em tal trabalho. Madame Dupin, que, por seu turno, medi­
tava também num outro livro, alimentav� a meu respeito inten­
ções mais ou menos parecidas. Quereriam ter-me em comum
como uma espécie de secr·etário, e era este o objectivo das pro­
postas de Thieriot. Exigi previamente que Monsieur de Francueil
utilizasse os seus créditos com os de Jelyote 1 , para conseguirem'
que a minha obra fosse ensaiada na ópera, no que ele consentiu.
As musas galantes foram ensaiadas várias vezes, primeiro nas
arrecadações, e depois no teatro grande. Assistia muita gente ao
ensaio geral, e vários trechos foram bastante aplaudidos. No
entanto, eu próprio compreendi durante a execução, muHo mal
dirigida por Rebel, que a peça não seria montada, e até que não
estava em condições de aparecer sem grandes correcções. Assim,
retirei-a sem dizer nada e sem me expor a que fosse recusad'l ;
mas vários indícios me deram a entender que, mesm o que fosse
perfeita, a obra não seria montada ; Francueil tinha-me na ver­
dade prometido fazê-la ensaiar, mas não fazê-la aceitar. Cum­
priu rigorosamente a sua palavra. Nessa ocasião, como em tant·as

1 Célebre tenor da ópera. - N. do T.

330
outras, pareceu-me sempr·e que nem ele nem Madame Dupln
se ralavam muito em proporcionar-me uma certa reputação na
sociedade, com medo talvez que, ao verem-lhe os livros, se supu­
sesse que haviam enxertado os seus talentos no meus. Contudo,
como Madame Dupin supôs sempre serem os meus bastante
medíocres, e como nunca se serviu de mim senão para escrever
o que me ditava ou para investigações de pura erudição, tal
censura, sobretudo a seu respeito, teria sido inteiramente injusta.
Este último insucesso acabou de me desiludir. Abandonei
todo e qualquer projecto de subir e de alcançar glória ; e, sem
pensar mais nos talentos verdadeiros ou vãos que tão pouco me
fariam prosperar, consagrei o meu tempo e os meus cuidados à
busca da minha subsistência e da da minha Teresa, como quer
que aprouvesse :àqueles que se encarregassem de a ela prover.
Dediquei-me pois completamente a Madame Dupin e a Monsie ur
de Francueil. O que me não lançou em grande opulência ; pois,
com os oitocentos ou novecentos francos a mais que ganhei nos
dois primeiros anos, mal tinha com que suprir às minhas pri­
meiras necessidades, obrigado como era a morar na vizinhança,
em quarto mobilado, num .bairro bastante caro, e a pagar ao
mesmo tempo outro aluguer nos extremos de Paris, mesmo 1.0
cimo da rua de Saint-Jacques, onde, fizesse o tempo que fizesse,
ia quase todas as noites cear. Em breve adquiri o hábito e o
gosto das minhas novas ocupações. Interessei-me pela química.
Segui vários cursos com Monsieur Rouelle, em companhia de
Monsieur de Francueil, e pusemo-nos a rabiscar como pudemos
umas coisas sobre a ciência de que apenas conhecíamos os rudi­
mentos. Fomos passar o Outono de 1747 na Touraine, no castelo
de Chenonceaux, mansão real nas margens do Cher, construída
por Henrique II para Diana de Poitiers, de quem se viam ainda
as iniciais, e presentemente propriedade de Monsier Dupin, rece­
bedor-geral dos impostos. Divertimo-nos muito neste belo sítio ;
comia-se lá muito bem ; engordei como um frade. Fazíamos
muita música. Compus bastantes trios vocais, cheios de uma har­
monia muito forte, e dos quais talvez volte a falar no suple­
mento, se alguma vez o vier a escrever. Representavam-se comé­
dias. Escrevi em quinze dias uma, intitulada O compromisso
temerário \ que se há-de encontrar entre os meus papéis, e
que •tem apenas o mérito de ser bastante alegre. Compus outras
obrazitas, entre as quais uma peça em verso intitulada A ala-

I L'engagement téméraire.

331
meda de Sílvia \ que tirava o tnome de uma alameda do parque
que contornava o Cher, e tudo isto se fez sem suspender os meus
trabalhos de •química, e os que me ocupavam junto de Madame
Dupin.
Enquanto eu engordava em Chenonceaux, a minha pobre
Teresa engordava em Paris doutra maneira, e , quando voltei,
achei a obra que havia posto no tear mais adiantada do que jul­
gava. Dada a minha situação, tal coisa ter-me-ia lançado em
extremos apuros, se alguns camaradas de mesa me não
tivessem fornecido o único remédio que delas me pod�a tirar.
É uma destas histórias importantes que só posso contar com
toda a simplicidade, visto que, se a comentasse, necessário seria
desculpar-me ou acusar-me, e eu não devo fazer aqui nem uma
coisa nem outra.
Durante a permanência de Altuna em Paris, eu e ele, em
vez de irmos comer a uma casa de pasto, comíamos ordinária­
mente pePto do local onde morávamos, quase ·em frente do beco
da ópera, em casa de uma tal >Madame La Selle, mulher de
um alfaiate, que servia muito mal, mas cuja mesa não deixava
de ser fre·quentada, por causa da boa e segura companhia que
a ela se encontrava; pois que desconhecido algum ali era rece­
bido, sendo necessário ser-se apresentado por alguma das pes­
soas •que lá comiam ordinàriamente. O comendador de Graville ,
velho pândego, cheio d e amabilidade e d e espírito, mas licen­
cioso, habitava lá, e atraía à casa uma louca e brilhante moci­
dade de oficiais da guarda e mosqueteiros. O comendador de
Nonant, paladino de todas as raparigas da ópera, lá levava dià­
riamente todas as noticias daquele coio de intrigas. Monsieur
du Plessis, tenente-coronel reformado, bom e sensato velhinho,
Ancelet 2, oficial de mosqueteiros, mantinham uma certa ordem
entre aqueles moços. Apareciam lá .também comerciantes, finan-

1 L'allée de SylVie.
2 Foi a Monsieur Ancelet que dei uma comediazita da minha lavra,
intitulada Os Prisioneiros de guerra, escrita depois dos desastres dos fran­
ceses na Baviera e na Boémia, e a qual nunca me atrevi a confessar nem
a mostrar, e isto pela singular razão de que nunca, porventura, nem o rei,
nem a França, nem os franceses foram mais alta nem mais cordialmente
louvados do que nesta peça, e ainda porque, tituiarmente republicano e
partidário da Fronda, não ousava confessar-me panegirista de uma nação
cujas máximas eram todas contrárias às minhas. Mais incomodado com os
desastres da França do que os próprios franceses, receava que acoimassem
de lisonja e de cobardia as demonstrações de uma sincera estima, cuja
época e causa assinalei na primeira parte, e que eu tinha vergonha de
mostrar. - Nota de J.-J. Rousseau.

332
c·eiros, fornecedores, gente educada, no entanto, honesta e pre­
zada no seu oficio ; Monsieur de Besse, Monsieur de Forcade, e
outros de cujos nomes me esqueço. Enfim, gente de todas as
posições, excepto padres e magistrados que nunca ali vi ; e havia­
-se convencionado nunca lá os apresentar. Esta mesa, bastante
numerosa, era alegre sem ser barulhenta, e a ela se gracejava a
valer sem grossaria. O velho comendador, com todas as suas his­
tórias livres, quanto à essência, nunca perdia a civilidade da
velha corte, e nunca da boca lhe saia um palavrão sem que a sua
graça lho não fizesse perdoar até pelas mulheres. O seu tom era
a regra de toda a mesa: todos .aqueles rapazes contavam as suas
aventuras galantes tão livre quão graciosamente, e as histórias
de raparigas abundavam tanto mais quanto o seu armazém se
achava ali à porta ; porque a passagem que dava ·entrada para
casa de Madame La Selle era a mesma para onde dava a loja
da Ducha:pt, •célebre modista, que tinha à época lindíssimas rapa­
rigas com quem os nossos cavalheiros iam conversar antes ou
depois do jantar. Ter-me-ia divertido com elas tal como os outros
se fosse mais atrevido. Bastava entrar como eles; nunca me atre­
via a fazê-lo. Quanto a lMadame La SeUe, continuei a ir lá comer
com bastante frequência depois da partida de Altuna. Lá apren­
dia uma quantidade de anedotas engraçadíssimas, e a pouco e
pouco lá aprendi também, nunca, graças a Deus, os costumes,
mas as máximas que ali via implantadas. Pessoas honradas desa­
creditadas, maridos ·enganados, mulheres seduzidas, partos clan­
destinos, tal era o teor mais vulgar das conversas, e a que melhor
povoasse a Roda era sempre a mais aplaudida. Fui conquistado;
conformei a minha maneira de pensar à que via reinar entre
pessoas amabilissimas, e no fundo honestissimas pessoas, dizendo
comigo : Visto que é o uso da terra, como nela vivemos, pode ­
mos segui-lo. Eis o expediente que buscava. Decidi-me sem
cerimónia e sem o menor escrúpulo, e o único que tive de vencer
foi o de Teresa, a quem foi extremamente difícil fazer adoptar
aquele único processo de salvar a sua honra. Como a mãe, que
além disso reeeava uma nova complicação de meninos, tinha
vindo ao meu encontro, Ter·esa deixou-se convencer. Escolheu-se
uma parteira prudente e segura, chamada Mademoiselle Gouin,
que vivia à ponta de Saint-Eustache, para lhe confiar o depó­
sito, e, na altura devida, Teresa foi levada pela mãe para casa
da Gouin para ai ter o seu parto. Fui lá vê-la várias vezes, e
levei-lhe um monograma que tinha mandado fazer em duplicado
em dois eartões, pondo-se um nas faixas da criança, e esta foi
depositada pela parteira na Roda, na forma do costume. No

333
ano seguinte, mesmo inconveniente e mesmo expediente, salvo o
monograma, que se descurou. Nem mais reflexão da minha parte,
nem mais aprovação da parte da mãe : esta obedecia gemendo.
Ver-se-ão gradualmente todas as vicissitudes que este fatal pro­
cedimento provocou na minha maneira de pensar, bem como
no meu destino. Quanto ao presente, fiquemo-nos nesta primeira
época. As suas consequências, tão c ruéis como imprevistas, por
de mais me forçarão a voltar ao assunto.
Assinalo aqui o primeiro contacto que tive com Madame
d'Épinay, cuj o nome ocorrerá frequentemente nestas Memórias.
Chamava-se Mademoiselle d'lEsclavelles, e acabava de casar com
Monsieur d'Épinay, filho de Monsieur de Lalive de Bellegarde,
recebedor-geral dos impostos. O marido era músico, como Mon­
sieur de Francueil. Ela também era música, e a paixão por tal
arte estabeleceu entre estas três pessoas uma grande intimi­
dade. Monsieur de Francueil apresentou-me em casa de Madame
d'Épinay ; ceava lá algumas vezes com ele. Madame d'Épinay era
amável, tinha espírito, talentos ; era seguramente uma boa rela­
ção a cultivar. Tinha porém uma amiga, chamada Mademoisen e
d'Ette, que passava por má, e .que vivia com o cavaleiro de Valory,
que não passava por bom. Creio que o comércio destas duas pes­
soas fez mal a Madame d'Épinay, a ·quem a natureza havia dado,
com um temperamento exigentíssimo, excelentes qualidades
para lhe moderar ou remir os erros. Monsieur de Francueil comu­
nicou-lhe uma parte da amizade que tinha por mim, e confes­
sou-me as relações que entre os dois havia, relações que, por esta
razão, eu não revelaria aqui se elas se não tivessem tornado
públicas a ponto de nem sequer as ocultarem de Monsieur
d'Épinay. Monsieur de Francueil fez-me até a respeito desta
dama confidências bem singulares, confidências que ela própria
nunca me fez, e de que nunca me j ulgou ao c orrente ; porque de
minha vida não abri nem abrirei a boca a este respeito, nem com
ela nem com quem quer que seja. Semelhante confiança de
ambos os lados tornaria a minha situação extremamente difícil,
sobretudo para com Madame de Francueil, que me conhecia sufi­
cientemente para não desconfiar de mim, apesar de relacionado
com a sua rival. Eu consolava o melhor que podia esta pobre
mulher, a quem o marido não retribuía •certamente o amor que
por ele tinha. Escutava estas três pessoas separadamente ; guar­
dava-lhes os segredos com a maior fidelidade, sem que nenhuma
delas conseguisse j amais arrancar-me os de qualquer das outras
duas, e sem dissimular a nenhuma das duas mulheres a minha
afeição pela rival. Madame de Francueil, que queria servir-se

334
de mim para várias coisas, ouviu da minha boca recusas formaic; ;
e como Madame d'Épinay me houvesse encarregado certa vez de
uma carta para Monsieur de Francueil, não só ouviu outra recusa
parecida, mas ainda uma declaração bem clara de que, se qui­
sesse afastar-me para sempre da sua casa, não tinha mais que
fazer-me segunda vez semelhante proposta. Deve-se prestar
justiça a Madame d'Épinay : longe de parecer desagradar-me,
falou elogiosamente do meu procedimento a Monsieur de Fran­
cueil, e nem por isso passou a receber-me menos bem. Foi assim
que, no meio das relações borrascosas existentes entre estas três
pessoas, as quais tinha que evitar ofender, das quais até certo
ponto dependia, e por 'quem sentia afeição, conservei até ao fim
a sua amizade, a sua estima, a sua confiança, conduzindo-me
com doçura e condescendência, mas sempre com probidade e
firmeza. Apesar da minha estupidez e do meu desaj eitamento,
Madame d 'Épinay quis incluir-me nas diversões de La Chevrette,
castelo perto de Saint-Denis, que pertencia a Monsieur de Belle­
garde. Havia nele um teatro onde se faziam frequentes repre­
sentações de peças. Encarregaram-me de um papel que estudei
durante seis meses consecutivos, e que foi preciso apontarem-me
do princípio ao fim da representação. Depois desta experiência,
não me propuseram mais nenhum papel.
Quando vim a conhecer Madame d'Épinay, conheci igual­
mente a cunhada, Mademoiselle de Bellegarde, que em breve
devia ser a condessa d'Houdetot. A primeira vez que a vi, acha­
va-se ela em vésperas de casar ; conversou bastante comigo com
aquela encantadora familiaridade que lhe é natural. Achei-a
amabilíssima ; mas estava muito longe de prever que aquela
rapariga faria um dia o destino da minha vida, e me arrastaria,
ainda que inocentissimamente, ao abismo onde hoje me acho.
Se bem que depois de haver regressado de Veneza não tenha
falado de Diderot, tão-pouco do meu amigo Monsieur Roguin,
não me esquecera contudo nem dum nem doutro, e tinha-me
sobretudo de dia para dia ligado mais intimamente com o pri­
meiro. ·Ele tinha uma !Nanette , como eu tinha uma Teresa; era
mais uma afinidade entre nós. A diferença porém era que a
minha Teresa, de tão boa presença como a sua Nanette, possuía
um feitio meigo e um �carácter gentil, fi:üto para prender um
homem de bem ; ao passo que a dele, rabugenta e regateira, nada
mostrava aos olhos dos outros que pudesse resgatar a sua má
educação. Contudo, casou com ela ; foi muito bem feito, se lho
havia prometido. Por mim, que nada parecido havia prometido,
não me apressei a imitá-lo.

335
Tinha-me •também r·e lacionado com o abade de Condillac,
que, tanto como eu, nada era na literatura, mas que havia nas­
cido para vir a ser o que hoje é. Fui eu talvez o primeiro que
descobri o seu valor, e o apreciei como ele merecia. Parecia tam­
bém gostar de mim ; e enquanto eu, fechado no meu quarto da
rua Jean-Saint-Denis, perto da ópera, escrevia o acto de
Hesíodo, vinha ele algumas vezes j antar a sós comigo, trazendo
a sua parte. Trabalhava então no Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos 1 , que é a sua primeira obra. Quando a
acabou, a dificuldade foi encontrar um livreiro que quisesse
tomá-la à sua conta. Os livreiros de Paris são arrogantes e duros
para qualquer homem que começa, e a metafisica, então muito
pouco em moda, não oferecia um assunto muito sedutor. Falei a
Diderot de Condillac e da sua obra; apresentei-os um ao outro.
Tinham nascido para se entenderem ; entenderam-se. Diderot
convenceu o livreiro Durand a aceitar o manuscrito do abade,
e este grande metafísico recebeu pelo seu primeiro livro, e quase
por favor, cem e scudos, •que porventura não obteria sem mim.
Como morávamos em bairros muito afastados uns dos outros,
reuníamo-nos três vezes por semana no Falais-Royal, e íamos
j antar juntos ao hotel do Panier-Fleuri. Tais j antares hebdoma­
dários deveriam agradar sobretudo a Diderot, pois que ele, que
faltava a quase todos os encontros, nunca faltou a nenhum des­
tes. Ali c·oncebi o projecto de uma folha periódica, intitulada
O Trocista 2 , que nós, Diderot e eu, devíamos escrever alternada­
mente. Esbocei a primeira folha, o que me valeu conhecer
D'Alembevt, a quem Diderot havia falado no assunto. Aconte­
cimentos imprevistos fizeram-nos obstrução, e o projecto ficou
por ali.
Estes dois autores acabavam de iniciar o Dicionário Enci­
clopédico, •que de princípio não devia ser mais que uma espécie de
tradução do Chambers, parecida pouco mais ou menos com a
do Dicionário de Medicina, de James, que Diderot acabava de
terminar. Diderot quis dar-me alguma coisa a fazer nesta
segunda entrepresa, e propôs-me a parte musical, que aceitei ,
e que executei muito à pressa e muito mal, nos três meses
que me havia dado, assim como a •todos os autores que deviam
concorrer para a dita entrepresa ; eu porém fui o único que
me achei pronto no termo prescrito. Entreguei-lhe o manus­
crito, que tinha mandado copiar a limpo por um lacaio de Mon-

1 Essai sur l'origine des connaissances humatines.


2 Le Persi!leur.

336
sieur de Francueil, chamado Dupont, o qual escrevia muito bem,
e a quem paguei dez escudos da minha algibeira, de que nunca
fui reembolsado. Diderot tinha-me prometido, da parte dos livrei­
ros, uma retribuição de que nunca me falou, nem eu a ele.
A entrepresa da Enciclopédia foi interrompida pela sua prisão.
Os Pensamentos filosóficos 1 haviam-lhe valido alguns desgos­
tos sem consequências. O mesmo não aconteceu com a Carta
sobre os cegos 2, que nada de repreensível continha, a não ser
certos passos pessoais, que chocaram Madame Dupré de Saint­
-Maur e Madame de Réaumur, e graças aos quais o meteram na
Torre de Vincennes. Nada poderá j amais descrever as angústias
que me causou a desgraça do meu amigo. A minha funesta ima­
ginação, que exagera sempre o mal, exasperou-se. Julguei que
ele ficaria lá para o resto da vida. Andei por perder o j uizo.
Escrevi a Madame de Pompadour, conjurando-a a que o man­
dasse soltar, ou conseguir que me encarcerassem com ele.
A minha carta não obteve resposta alguma ; era muito pouco
razoável para ser eficaz, e não me gabo de que ela houvesse
contribuído para a suavização operada algum tempo depois no
cativeiro do pobre Diderot. Se porém o rigor deste tivesse durado
mais algum tempo, creio que ·teria morrido de desespero ao pé
daquela funesta torre. De resto, se a minha carta produziu pouco
efeito, eu também por meu lado, nunca me gloriei muito
de a haver escrito ; pois que só a raríssimas pessoas falei dela,
e nunca ao próprio Diderot.

1 Pensées philosophiques.
2 Lettre sur les aveugles à l'usage àe ceux qui voient.

337
22
LIVRO O I TAV O

o fim do livro precedente tive de fazer uma pausa.

N Com este' começa, na sua primeira origem, a com­


prida cadeia das minhas desgraças.
Apesar do meu fraco jeito, não tinha deixado de arranjar
alguns conhecimentos nas duas mais brilhantes casas de Paris
onde havia vivido. Entre outras pessoas, havia conhecido em
casa de Madame Dupin o j ovem príncipe herdeiro de Saxe­
-Gota, e o barão de Thun, seu preceptor. Em casa de Monsieur
de la Popliniêre havia conhecido Monsieur Segui, amigo do barão
de Thun, e conhecido no meio literário pela sua bela edição
de Rousseau. O barão convidou-nos, a Monsieur Segui e a mim,
para irmos passar um dia ou dois em Fontenay-sous-1Bois, onde
o príncipe tinha uma casa. Ao passar em frente de Vincennes,
senti, à vista da Torre, uma dor no coração, cujo efeito o prín­
cipe me notou na cara. À ceia, o príncipe falou-me na prisão
de Diderot. Para me obrigar a falar, o barão acusou o prisio­
neiro de imprudência : imprudente fui eu na maneira impetuosa
como o defendi. Tal excesso de zelo, inspirado pela desgraça
de um amigp, foi perdoado, e falou-se noutra coisa. Estavam
presentes dois alemães familiares do príncipe. Um, chamado
Monsieur Klupffel, homem de muito espírito, era o seu capelão,
e foi em seguida o seu preceptor, depois de haver suplantado
o barão. O outro, era um rapaz novo, chamado Monsieur Grimm,
que desempenhava as funções de lei•tor, enquanto esperava
encontrar •qualquer lugar, de que precisava urgentemente, a
julgar pela míngua da sua indumentária. A partir dessa mesma
noite, Klupffel e eu encetámos relações que em breve se trans­
formaram em amizade. Com Monsieur Grimm a coisa não mar­
chou tão ràpidamente. Não se evidenciava muito, distantissimo
daquele tom superior que a prosperidade lbe veio a dar depois.
No dia seguinte, ao jantar, falou-se de música : Grimm fê-lo
com conhecimento de causa. Entusiasmei-me ao saber que acom­
panhava ao cravo. Depois do jantar, mandou-se vir música.

339
Todo o dia fizemos música no cravo do príncipe, e assim come­
çou uma amizade que tão doce me foi a principio, mas por fim
tão funesta, e de que tanto terei que falar daqui por diante.
Ao regressar a Paris, tive a boa nova de que Diderot havia
saído da Torre, e que, sob sua palavra, lhe tinham dado como
prisão o castelo e o parque de Vincennes, com autorização para
ver os amigos. Quanto me custou não poder ali correr imedia­
tamente ! Retido, porém, dois ou três dias em casa de Madame
Dupin em virtude de quefazeres indispensáveis, voei para os
braços do meu amigo após três ou quatro séculos de impaciên­
cia. Momento inexprimível ! Não estava só. D'Alembert e o tesou,­
reiro da Sainte-Chapelle encontravam-se com ele. Ao entrar, só
o vi a ele ; dei apenas um salto, um grito , encostei a minha
cara à sua, abracei-o com força sem nada lhe dizer a não ser
por intermédio das lágrimas e dos soluços ; a ternura e a alegria
asfixiavam-me. Ao desprender-se de mim, o primeiro movimento
de Diderot foi voltar-se para o eclesiástico, para lhe dize r :
Veja, monsenhor, como o s meus amigos me amam. Comple­
tamente entregue à minha emoção, não reflecti de momento
nesta maneira de se servirem dela. Mais tarde, porém, medi­
tando algumas vezes no caso, pensei sempre que, no lugar de
Diderot, não teria sido aquela a primeira ideia que me ocorreria.
Achei-o muito transtornado pela prisão. A Torre havia-lhe
feito uma impressão terrível, e se bem que no castelo estivesse
com muito agrado, senhor de passear num parque que nem sequer
é ·cercado por muros, 'tinha necessidade da sociedade dos ami­
gos para se não abandonar a profunda melancolia. Como era
eu certamente o que mais me condoia do seu desgosto, j ulgando
ser igualmente aquele cuja visita lhe seria mais reconfortante,
apesar das minhas ocupações bastante absorventes, ia, de dois
em dois dias o mais tardar, só, ou na companhia da mulher,

passar as tardes com ele.


O V·erão de 1749 foi eX)cessivamente quente. De Paris a Vin­
cennes vão duas léguas. Como não estava em condições de
pagar um fiacre, fazia o trajecto a pé pelas duas horas da
tarde se ia só, andando depressa para chegar ma�s cedo. As
árvores da estrada, sempre podadas, à moda da terra, quase
não davam sombra, e, muitas vezes, extenuado pelo calor e
pelo cansaço, deitava-me no chão sem poder mais. Para moderar
o •passo, l·embrei-me de levar um livro qualquer. Agarrei no
Mercúrio de França, e , de caminho, enquanto o ia folheando,
dei com este tema proposto pela Academia de Dijon para o
prémio do próximo ano, a saber : Se o progresso das cMncias

340
e das artes tem contribuído para corromper ou purificar os
costumes. Logo que tal li, vi outro universo, e transformei-me
noutro homem. Posto que guarde viva recordação da impressão
recebida, os pormenores escapam-me desde que os confiei a uma
das quatro cartas escritas a Monsieur de Malesherbes. É uma
das singularidades da minha memória que merece ser contada.
Só me serve na medida em que nela descansei; mas logo que
lhe confio o conteúdo ao papel, abandona-me; e uma vez a
coisa escrita, nunca mais me lembro absolutamente de nada.
Tal singularidade estende-se mesmo à música. Antes de a apren­
der, sabia de cor uma quantidade de canções: logo que aprendi
a cantar melodias escritas, nunca mais pude fixar nenhuma;
e duvido que possa hoje repetir por inteiro uma só das que
mais amei.
Do que me lembro perfeitissimamente é que, nessa ocasião,
ao chegar a Vincennes, me achava numa agitação que confinava
comJ o delírio. D�derot !reparou nisso: disse-lhe o motivo, e
li-lhe a prosopopeia de Fabricius, 'que escrevera a lápis debaixo
de um carvalho. Aconselhou-me ele a que desse seguimento às
minhas ideias, e que concorresse ao prémio. Todo o res.to da
minha vida e das minha desgraças não foi mais que a con­
sequência inevitável deste instante de ·exa1tação.
Com a mais inconcebível rapidez, os meus sentimentos puse­
ram-se em uníssono com as minhas ideias. Todas as minhas
pequenas paixões foram abafadas pelo entusiasmo da verdade,
da liberdade, da virtude, e o que é mais espantoso é que, durante
mais de quatro ou cinco anos, tal exaltação se manteve no meu
coração num grau tão elevado como porventura jamais suce­
deu com qualquer outro homem.
Trabalhei o discurso de uma maneira bastante singular,
que quase sempre segui nas minhas outras obras. Consagrei­
-lhe as insónias das minhas noites. Na cama, meditava de olhos
fechados, e com incríveis dificuldades moia e remoía na cabeça
os meus períodos; depois, quando conseguia achar-me satisfeito
com eles, alojava-os na memória até que pudesse trasladá-los
ao papel: mas enquanto me levantava e me vestia, esquecia
tudo, e quando me achava em frente do papel, quase nada me
ocorria do que havia composto. Lembrei-me de fazer de Madame
Le Vasseur minha secretária. Tinha-a instalado com a filha e
o marido mais perto de mim, e, para poupar um criado, era
ela que todas as manhãs me vinha acender o lume e fazer os
pequenos serviços. Quando chegava, ditava-lhe da cama o tra-

341
balho nocturno, e esta prática, seguida durante bastante tempo,
livrou-me de muitos esquecimentos.
Quando o discurso se achou escrito, mostrei-o a Diderot,
que ficou contente com ele, e me apontou algumas correcções.
A esta obra, cheia de calor e de força, falta porém em abso­
luto lógica e ordem; de 1todas as que me saíram da pena, é
a de mais fraco discernimento e a mais pobre em número e
harmonia; contudo, por mais talento com que se nasça, a arte
de escrever não se aprende de golpe.
Enviei a pe:ça sem falar dela a ninguém, a não ser, penso
eu, a Grimm, com o �qual começara a viver na maior intimidade,
desde que entrara ao serviço do conde de Friêse. Tinha ele
um cravo que nos servia de ponto de reunião, e em volta do qual
passava na sua companhia todos os momentos livres de que
dispunha, cantando sem descanso árias italianas e barcarolas
de manhã à noite, ou antes, desde a noite até de manhã, e
logo que me não encontrassem em casa de Madame Dupin,
podiam ter a certeza d:e me encontrar em casa de Monsieur
Grimm, ou ao menos na sua companhia, �quer passeando, quer
no teatro. Deixei de ir à Comédia Italiana, onde tinha entrada,
mas de que Grimm não gostava, para passar a ir com ele,
pagando, à Comédia Francesa, que o entusiasmava. Enfim, uma
forte simpatia ligava-me de tal maneira a este rapaz, e tinha-me
dele tornado tão inseparável, que até a pobre tia1 descurava
por sua causa; quer dizer que a via menos, pois nunca na
minha vida a minha afeição por ela diminuiu um só momento.
Esta impossibilidade de dividir pelas minhas inclinações
o pouco tempo de que dispunha renovou em mim �com mais
for:ça do que nunca o desejo 'que de longe tinha de constituir
com Teresa apenas um lar: o estorvo da sua enorme familia,
e sobretudo a falta de dinheiro para comprar os móveis,
tinham-me até então contido. Apresentou-se-me ocasião de
fazer um sacrifício, e aproveitei-a. Monsieur de Francueil 6
Madame Dupin, vendo bem que oHocentos a novecentos francos
por ano não me podiam chegar, subiram por sua própria inicia­
tiva o meu ordenado anual para cinquenta luíses, e, além disso,
Madame Dupin, ao saber que eu procurava mobilar casa, deu-me
algumas facilidades para tal. Com os móveis que Teresa já tinha,
juntámos tudo, e depois de havermos alugado uma pequena
parte do palacete de Languedoc, à rua de Grenelle-Saint­
-Honoré, em casa de muito boas pessoas, ali nos instalámos como

I Refere-se a Teresa Le Vasseur. - N. do T.

342
pudemos; e aí morámos tranquila e agradàvelmente durante sete
anos, até que me mudei para a 'Hermitage.
o pai de Teresa era um velho simplório, bonachão, que
tinha um grande medo da mulher, e que por isso lhe havia
posto a alcunha de ,tenente-facínora, que Grimm, por graça,
transferiu depois à filha. Madame Le Vasseur não era falta de
espírito, quer diz·er, de esperteza, gabava-se até de civilidade
e de ter as maneiras da alta sociedade. Tinha porém uma lábia
misteriosa que me era insuportável, dando muito maus con­
selhos à filha, procurando torná-la fingida comigo, e adulando
individualmente os meus amigos à custa uns dos outros e à
minha; de resto, muito boa mãe, porque lhe dava a conta, e
escondendo as faltas da filha, porque tinha interesse nisso. Esta
mulher, que eu cumulava de atenções, de cuidados, de pequenos
presentes, e de quem desejava extremamente fazer-me amar,
era, graças à impossibilidade que experimentava em consegui-lo,
o único motivo de desgosto •que surgia em minha casa, e de
resto posso diz·er que, durante seis ou sete anos, gozei a mais
perfeita felicidade doméstica 1que a fraqueza humana pode com­
portar. A minha Teresa tinha um coração de anjo: a nossa
afetção aumentava com a nossa intimidade, e de dia para dia
sentíamos mais que havíamos nascido um para o outro. Se os
nossos prazeres se pudessem descrever, fariam rir pela sua sim­
plicidade: os nossos passeios a sós fora da cidade, em que eu
gastava magnificamente em qualquer taberna oito ou dez soldos;
as nossas ceiazitas sentados em frente um do outro à minha
janela, ·com as cadeiras em cima de uma mala que ocupava
todo o vão. Em tal situação, a janela servia-nos de mesa, res­
pirávamos o ar, podíamos ver as vizinhanças, os transeuntes,
e, embora num quarto andar, mergulhar a vista na rua enquanto
comíamos. Quem há-de descrever, quem há-de sentir o encanto
destas refeições, cujas únicas iguarias eram um quarto de pão
escuro, algumas cerejas, um bocadito de queijo e meia canada
de vinho que bebíamos entre os dois? Amizade, confiança, inti­
midade, doçura de alma, como é delicioso o vosso adubo! Algu­
mas vezes ali ficávamos até à meia-noite sem dar por isso, e sem
desconfiarmos que horas eram, se a velha mamã no-las não
lembrasse. Deixemos porém estes pormenores que hão-de pare­
cer insípidos ou ridículos. Sempre o disse e pensei: os verda­
deiros prazeres não se descrevem.
Tive pouco mais ou menos na mesma altura um bem mais
grosseiro, o último deste género que tenho a exprobrar-me. Já
disse que o pastor Klupffel era uma pessoa amável: as minhas

343
relações com ele não eram de maneira nenhuma menos estreitas
do que com Grimm, e tornaram-se �gualmente familiares; os
dois comiam frequentemente em minha casa. Estas refeições,
pouco mais do que simples, eram animadas pelas finas e loucas
traquinices de Klupffel, e pelos divertidos germanismos de
Grimm, que ainda se não havia tornado purista. A sensualidade
não presidia às nossas pequenas orgias, mas a alegria com­
pensava-a, e encontrâvamo-nos tão bem na companhia uns
dos outros, que não podíamos deixar-nos. Klupffel tinha metido
de portas adentro uma rapariguita, que não deixava de ser de
todos, pelo simples facto de que ele sôzinho a não podia man­
ter. Uma noite, ao entrarmos no café, saia Klupffel para ir cear
com ela. Troçâmos dele; vingou-se galantemente convidando-nos
para cear também, troçando depois por sua vez de nós. A cria­
turinha pareceu-nos muito boa de seu natural, muito meiga,
e pouco afeita ao seu mester, no qual uma bruxa que estava
com ela a industriava o melhor que podia. A conversa e o vinho
alegraram-nos a ponto de nos esquecermos de nós. o bom
Klupffel não queria fazer-nos só metade das honras, e os três
passâmos sucessivamente ao quavto vizinho com a pobre pe­
quena, que não sabia -se havia de rir se chorar. Grimm afirmou
sempre não lhe ter tocado: era portanto para se divertir com
a nossa impaciência que ficou tanto tempo com ela, e se a
evitou, não foi certamente por escrúpulo, pois que, antes de
entrar para casa do conde de Friêse, habitava com moças, no
mesmo bairro de Saint-Roch.
Sai da rua dos Moineaux, onde mox:.ava a rapariga, tão
envergonhado como Saint-Preux ao sair da casa onde o haviam
embriagado, e lembrei-me perfeitamente da minha história �o
escrever a sua. Teresa percebeu, por qualquer indicio, e sobre­
tudo pelo meu ar perturbado, que eu tinha qualquer coisa a
exprobrar-me; aliviei a consciência confessando-lhe franca e
imediatamente tudo. Fiz bem; porque logo no dia seguinte
Grimm apareceu triunfante a contar-lhe, agravando-o, o meu
crime, e desde então nunca mais deixou de maldosamente lho
recordar, sendo tanto mais censurâvel o seu procedimento
quanto era certo que eu, havendo-o livre e voluntàriamente
feito meu confidente, estava no direito de esperar dele que não
me fizesse arrepender de tal. Nunca como nesta ocasião apre­
ciei melhor a bondade de coração de Teresa; porque, mais do
que ofendida com a minha infidelidade, ficou chocada com o
procedimento de Grimm, e eu da parte dela só lhe ouvi censu-

344
ras comovidas e ternas, nas quais nunca descobri a menor som­
bra de despeito.
A simplicidade de espírito desta excelente rapariga igualava
a bondade do seu corS!ção, o que é djzer tudo; um exemplo que
se apresenta merece todavial ser acrescentado. Eu havia-lhe
dito que Klupffel era ;pastor e capelão do príncipe de Saxe­
-Gota. Para ela, um ministro era um homem tão singular, que,
confundindo comicamente as ideias mais contraditórias, se
lembrou de tomar Klupffel pelo papa; a primeira vez que, ao
entrar, ela me diz que o papa me tinha vindo visitar, julguei-a
doida. Obriguei-a a explicar-se, e nada mais urgente achei do
que ir contar a história a Grimm e a Klupffel, que ficou entre
nós com o nome de papa. A rapariga da rua dos Moineaux
demos o nome de papisa Joana. Era uma risota interminável;
sufocávamos. A,queles ,que, numa carta que lhes aprouve atri­
buir-me, me fizeram dizer que eu só me havia rido duas vezes
na vida, não me conheceram naqueles tempos, nem na minha
mocidade, de ,contrário nunca tal ideia teria podido acudir-lhes.
No ano seguinte, 1750, ,quando já não pensava no meu
Discurso, soube que tinha ganho o prémio em Dijon. Seme­
lhante noticia acordou todas as ideias que mo haviam ditado,
animou-as de uma nova força, e acabou por fazer fermentar
no meu coração aquele primeiro germe de heroismo e de vir­
tude ,que, na minha infáncia, meu pai e a minha pátria, e
Plutarco, nele haviam depositado. Nada me pareceu maior _e
mais belo do que ser livre e virtuoso, acima da fortuna e da
opinião, e bastarmo-nos a nós mesmos. Apesar da estúpida ver­
gonha e do temor de ser apupado me impedirem no começo
de me conduzir segundo estes princípios e de romper brusca­
mente com as máximas do meu século, achei-me desde então
com decidida vontade de o fazer, e só demorei a sua execução
o tempo necessário para que as contradições a exasperassem
e a fizessem triunfar.
Enquanto filosofava sobre os deveres do homem, surgiu um
acontecimento que me levou a reflectir melhor sobre os meus.
Teresa apareceu grávida pela terceira vez. Demasiado sincero
comigo mesmo, demasiado altivo interiormente para querer
desmentir com as minhas obras os meus princípios, pus-me a
ponderar o destino dos meus filhos, e as minhas relações com
a mãe, as leis da natureza, da justiça e da razão, as daquela
re
, ligião pura, santa, eterna como o seu autor, que os homens
mancharam fingindo querer purificá-la, e de que apenas fize­
ram, com as suas fórmulas, uma religião de palavras, visto que

345
pouco custa prescrever o impossível quando nos dispensamos
de o praticar.
Ainda que me enganasse nos resultados, nada mais sur­
preendente do que a firmeza de alma que neles punha. Se eu
pertencesse ao número dos homens pouco dotados, surdos à
voz da natureza, no íntimo dos quais nunca germina nenhum
verdadeiro sentimento de justiça e de humanidade, tal insen­
sibilidade seria muito simples. Mas este calor do coração, esta
tão viva sensibilidade, esta facilidade em ganhar afeições, a
força com que estas me subjugam, as dores cruéis quando é
preciso despedaçá-Ias, esta benevolência inata para com os meus
semelhantes, este ardente amor do grande, do verdadeiro, do
belo, do justo, este horror de toda a espécie de mal, esta impos­
sibilidade de odiar, de prejudi,car, e até de desejar fazê-lo, esta
ternura, esta viva e doce emoção que experimento em presença
de tudo quanto é virtuoso, generoso, amável: poderá tudo isto
narmonizar-se alguma vez na mesma alma com a depravação
que faz calcar a pés, sem escrúpulo, o mais suave dos deveres?
Não; sinto, e digo claramente que isso não é possível. Nunca
um momento só que fosse em toda a sua vida pôde J. J.
ser um homem sem sentimentos, um homem sem entranhas,
um pai desnaturado. Poder-me-ei ter enganado, mas não empe­
dernir-me. Se contasse as minhas razões, teria muito que con­
tar. Como me seduziram a mim, poderiam seduzir muitos outros:
não quero expor a gente nova que acaso me leia a deixar-se
iludir pelo mesmo erro. Contentar-me-ei em diz.er que ele foi
de tal ordem, que ao entregar os meus filhos à educação pública,
por não poder educá-los ·eu próprio, ao destiná-los a serem ope­
rários ou •camponeses, de preferência a serem aventureiros e
caçadores de fortunas, julgava praticar um acto de cidadão e
de pai; e considerava-me como um membro da república de
Platão. De então para cá, os remorsos do coração mais de uma
vez me ensinaram que me havia enganado; no entanto, longe
de receber da razão o mesmo aviso, frequentemente abençoei
o céu por, graças a isso, os haver preservado da sorte do pai,
e da que os esperaria quando me visse obrigado a abandoná-los.
Se os tivesse deixado a Madame d'Êpinay ou a Madame de
Luxemburgo, que, já por amizade, já por generosidade, já por
qual>quer outro motivo, quiseram depois tomar conta deles,
teriam eles sido mais felizes, teriam sido ao menos educados
como pessoas de bem? Ignoro-o; mas estou convencido de que
os haveriam levado a odiar, quiçá a •trair os pais: vale mil vezes
mais que os não tenham conhecido.

346
O meu terceiro filho foi posto pois na Roda, como os pri-,
meiros, e o mesmo sucedeu com os dois seguintes; porque ao
todo tive cinco. Tal solução pareceu-me tão boa, tão sensata, tão
legítima, que, se não me gabava francamente dela, era apenas
em atenção à mãe; comuniquei-a porém a todos a quem havia
revelado as nossas relações; comuniquei-a a Diderot, a Grimm;
dei-a depois a conhecer a Madame d'Épinay, e depois ainda a
Madame de Luxemburgo, e fi-lo livremente, francamente, sem
qualquer espécie de necessidade, e podendo fàcilmente escon­
dê-lo de toda a gente; porque a Gouin era uma mulher hon­
rada, muito discreta, e com a qual podia contar perfeitamente.
O úni·co amigo com quem tive algum interesse em abrir-me
foi o médico Thierry, que tratou a pobre tia num dos partos
em que se sentiu muito mal. Numa palavra, não fiz mistério
nenhum do meu procedimento, não só porque nunca soube
esconder nada aos meus amigos, como porque na realidade
nenhum mal via nisso. Tudo bem pesado, escolhi para os meus
filhos o melhor, ou o que julgava sê-lo. Teria desejado, dese­
·
jaria ainda haver sido criado e alimentado como eles o foram.
Ao passo que eu fazia deste modo as minhas confidências,
Madame Le Vasseur fazia-as também por seu •turno, mas com
vistas menos desinteressadas. Tinha-as eu apresentado, a ela
e à filha, em casa de Madame Dupin, que, por amizade para
comigo, as recebia com mil atenções. Boa e generosa, Madame
Dupin, a quem Madame Le Vasseur não dizia como -eu, apesar
dos meus fracos recursos, me esforçava por prover a tudo, auxi­
liava-nos por seu lado com uma liberalidade, que, por ordem da
mãe, a filha me escondeu enquanto morei em Paris, e que só
me confessou na Hermitage, depois de vários outros desabafos
do coração. Como nunca, nem de leve, me deu a entender nada,
ignorava que Madame Dupin estivesse tão bem informada;
ignoro ainda se a cunhada, Madame de Chenonceaux, também
o estava; mas a enteada, Madame de Francueil, sabia tudo, e
não pôde calar-se. Falou-me no caso um ano depois, quando eu
já havia saído lá de casa. Tal facto levou-me a escrever-lhe
sobre o assunto uma cal'ta que encontrarão nos ditos maços , e
na qual lhe exponho aquelas das razões que podia relatar sem
comprometer Madame Le Vasseur e a família; porque as mais
decisivas provinham deles, e eu calei-as.
Confio na discrição de IMadame Dupin e na amizade de
Madame de Chenonceaux; confiava também na de Madame
de Francueil, que aliás morreu muito antes do meu segredo se
achar divulgado. Nunca ele o poderia ter sido senão pelas pró-

347
prias pessoas a quem eu o havia confiado, e com efeito só o
foi depois de haver rompido com elas. Basta isto para as julgar:
sem querer absolver-me da censura que mere.ço, prefiro arrostar
com ela a arrostar com a ·que merece a maldade dessas pes­
soas. A minha falta é grande, mas é um erro; descurei os meus
dever·es, mas o desejo de prejudicar nunca me entrou no cora­
ção, além de que os sentimentos de um pai para com filhos que
nunca viu não poderiam falar com muita força; mas trair a
confiança da amizade, violar o mais santo de todos os pactos,
tornar públicos os segredos vertidos no nosso seio, desonrar T)Or
prazer o amigo que se enganou, e que ao abandonar-nos ainda
nos respeita, isso não são faltas, são baixezas de alma e infâ­
mias.
Prometi fazer as minhas •confissões, não apresentar justi­
ficações; assim, sobre este ponto, detenho-me aqui. Compete-me
a mim ser verdadeiro, compete ao leitor ser justo. Nunca lhe.
pedirei mais do que isso.
O casamento de Monsieur de Chenonceaux tornou-me a
casa da mãe ainda mais agradável, graças ao valor e ao espírito
da recém-casada, jovem amabilissima e que pareceu distin­
guir-me entre os escribas de Monsieur Dupin. Era filha única
da Sr: Viscondessa de R ochechouart, grande amiga do conde
de Friêse, e por rechaço de Grimm, que lhe era afeiçoado. Fui
eu todavia que o apresentei em casa da filha: como porém os
seus feitios se não harmonizavam, tal ligação não teve conse­
quências, e Grimm, que nessa altura tinha em vista coisas sóli­
das, preferiu a mãe, mulher da alta sociedade, à filha, que dese­
java amigos seguros e que lhe conviessem, sem se meter em
intrigas, nem procurar granjear crédito junto dos grandes.
Como Madame Dupin não achasse Madame de Chenonceaux
tão dócil como esperava, tornou-lhe a própria casa triste, e
Madame de Chenonceaux, orgulhosa do seu valor, quiçá do seu
merecimento, preferiu renunciar aos prazeres da sociedade, e
permanecer quase sozinha em sua casa, a suportar um jugo
para que sentia não ter nascido. Esta espécie de exílio aumen­
tou a minha afeição por ela, graças ·àquela tendência natural
que me atrai para os desgraçados. Achei-a de espírito metafi­
sico e meditativo, posto que por vezes um pouco sofista. As suas
conversas, que não eram de maneira nenhuma as de uma rapa­
riga que acaba de sair do convento, eram para mim extr.emamente
cativantes. Contudo, não tinha ainda vinte anos. A sua tez era de
uma alvura deslumbrante; o busto seria grande e belo se ela
se arranjasse melhor; os cabelos, de um louro cendrado e de

348
uma beleza invulgar, lembravam-me os da pobre Mamã na. sua
juventude, e agitavam-me vivamente o coração. Contudo, os
princípios severos que acabava de adoptar, e que estava resol­
vido a seguir a todo o custo, protegiam-me dela e dos seus
encantos. Durante um Verão inteiro, passei três ou quatro horas
por dia a sós com ela, ensinando-lhe gravemente a aritmética,
aborrecendo-a com os meus eternos algarismos, sem lhe dirigir
uma só palavra galante nem lhe lançar um olhar. Cinco ou seis
anos mais tarde não teria sido tão ajuizado ou tão louco; mas
estava escrito que só devia amar de amor uma vez na vida, e
que outra sem ser ela teria os primeiros e os últimos suspiros
do meu coração.
Desde que vivia em casa de Madame Dupin, havia-me sem­
pre contentado com a minha sorte, sem trair desejo algum de
a. ver melhorar. O aumento nos meus honorários que, conjunta­
mente com Monsieur de Francueil, ela me havia fei·to, tinha sido
de sua própria iniciativa. Nesse ano, Monsieur de Francueil, que
de dia para dia me ganhava mais amizade, pensou em proporcio­
nar-me maior largueza e uma situação menos precária. Era rece­
bedor-geral das finanças. O caixa, Monsieur Dudoyer, era velho,
rico, e queria aposentar-se. Monsieur de Francueil oferec·eu-me o
seu lugar, e eu, para me pôr em condições de o desempenhar,
fui durante algumas semanas a casa de Monsieur Dudoyer rece­
ber as instruções necessárias. Todavia, quer porque mostrasse
pouco talento para tal emprego, quer porque Monsieur Dudoyer,
que me parecia querer arranjar outro sucessor, me não ins­
truísse de boa fé, só lenta e pessimamente é que adquiri os
conhecimentos de que precisava, e nunca consegui meter bem
na cabeça toda aquela série de contas propositadamente embru­
lhadas. ·Contudo, sem haver aprendido o termo da profissão,
não deixei de apanhar-lhe os trâmites correntes o bastante para
poder exercê-la com certo expediente. Comecei mesmo a desem­
penhar as minhas funções; fazia os acentos e tomava conta da
caixa; pagava e recebia dinheiro, guias, e ainda que tivesse
tão pouco gosto como talento para tal profissão, como o ama­
durecimento dos anos começava a tornar-me prudente, estava
decidido a vencer a minha repugnância para me entregar intei­
ramente ao emprego. Infelizmente, quando começava a sen­
tir-me à vontade nele, Monsieur de Francueil empreendeu uma
pequena viagem, durante a qual me confiou a caixa, onde no
entanto só havia naquele momento de vinte e cinco a trinta mil
francos. Os cuidados, a inquietação de espírito que tal depósito
me deu fizeram-me sentir que não havia nascido para caixa,

349
e não duvido de que as ralações que tive todo o tempo que
Monsieur de Francueil esteve fora contribuíram para que tivesse
caído doente depois do seu regresso.
Disse eu na primeira parte que havia nascido quase morto.
Um defeito de conformação da bexiga fez-me, durante os pri­
meiros anos, sofrer de uma retenção das urinas quase perma­
nente, e minha tia Suson, que tomou conta de mim, teve
inacreditável dificuldade em me fazer vingar. 1No entanto, con­
seguiu-o; a minha ·robusta constituição venceu por fim, e a
minha saúde fortaleceu-se de tal maneira enquanto rapaz, que,
com excepção do esgotamento cuja história contei, e de uma
frequente vontade de urinar, que me incomodava constante­
mente à menor excitação, cheguei à idade de trinta anos sem
quase me ressentir da minha primeira enfermidade. O primeiro
rebate que tive foi ao chegar a 'Veneza. O cansaço da viagem
e os terríveis calores que sofri deram-me um ardor de bexiga
e males de rins que conservei até entrar o Inverno. Depois de
ter estado com a Padoana, julguei-me mol'to, e não voltei a
ter a menor incomodidade. Depois de me haver esgotado mais
em imaginação do que corporalmente com a minha Zulietta, pas­
sei melhor do que nunca. Só depois da prisão de Diderot é que
a insolação apanhada nas minhas corridas a Vincennes, durante
o terrível calor que então fazia, me provocou uma violenta
nefrite, depois da qual nunca mais recuperei a saúde de outrora.
Na época a que me reporto, talvez porque me houvesse fati­
gado um pouco com o enfadonho !trabalho daquela ·maldita
caixa, cai mais do que das outras vezes, e fiquei cinco semanas
de cama, no estado mais lastimável que imaginar se possa.
Madame Dupin mandou-me o célebre Morand, que, apesar da
sua habilidade e subtileza de mão, me fez sofrer incrivelmente,
sem nunca conseguir sondar-me. Aconselhou-me que recorresse
a !Daran, cujas algálias mais flexíveis conseguiram com efeito
penetrar; contudo, ao comunicar a Madame Dupin o meu
estado, Morand declarou-lhe que dentro de seis meses morreria.
Tal 1conversa, que me chegou aos ouvidos, levou-me a fazer
sérias reflexões acerca do meu estado, e da tolice de sacrificar
o repouso e o prazer dos poucos dias que me restavam de vida
à escravização de um emprego pelo ·qual só sentia aversão. Aliás,
como conciliar os severos princípios que acabara de perfilhar
com uma situação que com eles se relaeionava tão pouco? e não
me ficaria mal a mim, caixa de um recebedor-geral das finan­
ças, pregar o desinteresse e a pobreza? Com a febr·e, estas ideias
fermentaram-me de tal maneira na cabeça, combinaram-se

350
nela com tanta força, que .desde então nada as pôde dali arran­
car, e durante a convalescença ratifiquei a sangue-frio as reso­
luções que tinha tomado em delírio. Renunciei para sempre a
todo e qualquer projecto de fortuna e de melhoria. Resolvido a
passar independente e pobre o pouco tempo que me restava de
vida, empreguei todas as forças da minha alma em quebrar as
algemas da opinião, e em fazer corajosamente tudo o que melhor
me parecia, sem me importar de forma alguma com o juízo dos
homens. É inacreditável os obstáculos que .tive de combater, e
os esforços que fiz para triunfar deles. Consegui-o .tanto quanto
era possível, e mais ainda do que ·eu próprio havia esperado.
Se tivesse sacudido o jugo da amizade tão bem como sacudira
o da o pinião, teria alcançado o meu desígnio, o maior, porven­
tura, ou ao menos o mais útil à virtude, que jamais mortal
algum concebeu; no entanto, ao passo que calcava a pés os
juízos insensatos da turba vulgar dos pretensamente grandes
e dos pretensamente sábios, deixei-me subjugar e levar como
uma criança pelos pretensamente amigos, que, ciosos por me ve­
rem caminhar sozinho pela minha nova estrada, ao mesmo tempo
que pareciam muito empenhados em tornar-me feliz, só se ocupa­
vam com efeito em tornar-me ridículo, e começaram a traba­
lhar por me degradarem, para conseguirem depois difamar-me.
Não foi tanto a minha, rápida celebridade literária como a
minha reforma pessoal, cuja data assinalo aqui, que me valeu
os seus ciúmes: talvez me houvessem perdoado que brilhasse
na arte de escrever, mas o que não podiam perdoar-me é que
lhes desse com o meu comportamento um exemplo que pare­
cia incomodá-los. Eu tinha nascido para a amizade; o meu
feitio fácil e doce alimentava-a sem custo. Enquanto vivi igno­
rado do público, todos os 1que me conheceram me amaram, e não
tive um só inimigo. Mas logo que ganhei nome, não tive mais
amigos. Foi uma grande desgraça; maior ainda foi a de me achar
rodeado de pessoas que se agarraram a este nome, e que só se
serviram dos direitos que ele lhes dava para me arrastarem à
perdição. A continuação destas Memórias desfiará esta odiosa
trama; aqui só aponto a sua origem: em breve se verá formar-se
o primeiro nó.
No entanto, na independência em que queria viver, neces­
sário era subsistir. Para isso, imaginei um meio muito simples:
foi copiar música a tanto por página. Se qualquer outra ocupa­
ção mais sólida tivesse preenchido o mesmo fim, ter-me-ia
agarrado a ela; mas como este talento ·era ao meu gosto, e o
úni:co que, sem sujeição pessoal, me podia dar o pão de cada dia,

351
fiquei-me por aqut. Julgando não mais ter necessidade de ser
previdente, e fazendo calar a vaidade, de caixa de um financeiro
fiz-me copista de música. Julguei ter ganhado bastante com a
escolha, e arrependi-me tão pouco dela, que só forçadamente
abandonei semelhante profissão, para voltar a ela logo que
pudesse. O êxito do meu primeiro discurso tornou mais fácil a
execução do meu intento. Quando recebi o prémio, Diderot
encarregou-se de mandar imprimir o trabalho. Quando me
achava de cama, escreveu-me ele um bilhete para me comuni­
car a sua publicação e o efeito produzido. Foi tudo às nuvens,
acentuava ele; não há exemplo de um tal êxito. Semelhante
favor do público, de maneira nenhuma obtido artificiosamente,
e logo para com um autor desconhecido, deu-me pela primeira
vez a verdadeira garantia do meu talento, de que até então
duvidara sempre, mau grado certo sentimento intimo. Com­
preendi toda a vantagem que para a decisão que acabara de
tomar poderia dele tirar, e pensei que, segundo todas as probabi­
lidades, não haveria de faltar trabalho a um copista de tal ou
qual ,celebridade nas letras.
Logo que me achei bem assente e confirmado na minha
resolução, escrevi um bilhete a Monsieur de Francueil para lha
comunicar, e para lhe agradecer, assim como a Madame Dupin,
todas as suas amabilidades, pedindo-lhes ao mesmo tempo que
me arranjassem clientes. Nada compreendendo de semelhante
bilhete, e julgando-me ainda delirando com a febre, Francueil
correu a minha casa; mas achou-me tão decidido na minha
resolução, que não conseguiu abalar-me. Foi dizer a Madame
Dupin e a toda a gente que eu tinha endoidecido. Deixei-o falar,
e continuei na minha. Comecei a minha reforma pelos atavios:
larguei os dourados e as meias brancas, pus uma peruca
redonda, depus a espada, vendi o relógio, dizendo para comigo
com inacreditável alegria: Graças ao céu, nunca mais terei
necessidade de saber que horas são. Monsieur de Francueil teve
a col"tesia de esperar ainda certo tempo antes de dispor do lugar
de caixa. Por fim, vendo-me absolutamente decidido, deu-o a
Monsieur de Alibard, outrora preceptor do jovem Chenonceaux
e conhecido na botânica pela sua Flora parisiensis 1•

1 Não duvido que tudo isto seja agora contado de maneira muito
diferente por Francueil e seus confrades; mas eu refiro-me tão-só ao que
ele então disse, e continuou a dizer por muito tempo 81 toda a gente, até à
formação da conspiração, 'e que todas as pessoas de bom senso e de boa
fé devem ter retido na sua memória. -Nota de J.-J. Rousseau.

352
Por muito austera que fosse a minha reforma sumptuária,
não a estendi de principio à roupa branca, bela e em quanti­
dade, resto do meu enxoval de Veneza, e à qual tinha particular
amor. A força de fazer dela um objecto de asseio, tinha-a trans­
formado num objecto de luxo, que não deixava de me ficar caro.
Alguém me prestou o grande serviço de me libertar desta escra­
vidão. Na véspera do !Natal, enquanto as amas assistiam ao
ofício de vésperas e eu me achava no Concerto espiritual, arrom­
baram a porta de um sótão onde haviam estendido toda a nossa
roupa, após uma barrela que lhe acabavam de fazer. Roubaram
tudo, ·e, entre outras coisas, quarenta e duas camisas minhas, de
belíssimo pano, que constituíam o fundo da minha provisão de
roupa branca. Pela maneira como os vizinhos nos descreveram
um homem 'que a essa hora haviam visto sair do palacete com
uns embrulhos, Teresa e eu desconfiámos do irmão, que era
conheddo como má rês. A mãe repeliu vivamente tal suspeita;
contudo, tantos indícios a confirmaram que, apesar dela, ficá­
mos na nossa. Não ousei fazer indagações precisas, ·com medo
de descobrir mais do que desejaria. Esse tal irmão nunca mais
veio a minha casa, e por fim desapareceu inteiramente. Lamen­
tei a sorte de Teresa e a minha por ·estarmos ligados a uma
família tão mesclada, e mais do que nunca a aconselhei a sacudir
um jugo de tal maneira perigoso. Esta aventura curou-me da
mania da boa roupa branca, e a partir desse momento passei
a usar só roupa ordinária, mais de harmonia com o resto da
minha indumentária.
Tendo desta maneira ·Completado a minha reforma, só
pensei torná-la sólida e duradoira, trabalhando rpor arrancar
do coração tudo o que ainda nele se agarrava ao juízo dos
homens, tudo o que por temor da crítica me podia desviar do
que era bom e razoável em si. O brado que a minha obra estava
dando associou-se ao da minha resolução, o que me atraiu os
clientes; de sorte que comecei o meu mester com bastante
êxito. Várias causas no entanto me impediram de triunfar como
noutras circunstâncias me poderia suceder. Primeiro, a minha
má saúde. o ataque que me acometera ultimamente teve conse­
quências que nunca mais me deixaram passar tão bem como
dantes; e julgo que os médicos a quem me entreguei me fizeram
na verdade tanto mal como a doença. Consultei sucessivamente
Morand, Daran, Helvétius, Malouin, Thierry, todos muito sábios,
todos meus amigos, mas que me tratavam cada qual à sua moda,
sem me aliviarem, e enfraquecendo-me consideràvelmente.
Quanto mais me submetia às suas lndicações, mais amarelo,

353
magro e fraco me via. A minha imaginação, por eles excitada,
avaliando do meu estado pelo efeito das suas drogas, apenas
me fazia ver antes de morrer uma série de retenções, a areia,
a pedra. Tudo o rque aliviava os outros, as tisanas, os banhos,
as sangrias, reforçava os meus males. Como notasse que as
algálias de Daran, as únicas que produziam algum efeito, e sem
as quais julgava não poder mais viver, só me davam no entanto
um alívio momentâneo, deswto a gastar um ror de dinheiro em
grandes provisões de algálias, de modo a poder usá-las toda
a vida, mesmo no caso de Daran me vir a faltar. Servi-me tan­
tas V·ezes delas durante oito ou dez anos, que, com a quantidade
que ainda me resta, devia ter comprado obra de cinquenta luises
de algálias. Já se deixa ver que um tratamento tão custoso, tão
doloroso, tão molesto, não me permitia .trabalhar sem me fazer
desviar a atenção, além de que um moribundo não despende
uma energia por ai além para ganhar o pão quotidiano.
As ocupa-ções literárias distraíram-me de uma forma não
menos nociva do meu trabalho diário. Mal o meu discurso havia
aparecido, caíram os defensores das letras em cima de mim
como rque de concerto. .Indignado por ver .tantos Jossezinhos 1,
que nem sequer ·compreendiam a questão, quererem resolvê-la
como se fossem mestres, agarrei na pena, e tratei alguns deles de
forma a não permitir que se rissem à minha custa. O pri­
meiro que me caiu debaixo da pena, um tal Monsieur Gautier,
de Nancy, foi valentemente sovado numa carta a Grimm.
o segundo foi o próprio rei Estanislau, que não se dedignou
entrar em liça comigo. A honra que me ,concedeu obrigou-me
a mudar de tom para lhe responder; adoptei outro mais grave,
mas não menos forte; e, sem quebra de respeito pelo autor,
refutei-lhe totalmente a obra. Sabia ·que nela havia o dedo de
um jesuíta, o padre Manou. Confiei no meu tacto para des­
trinçar o :que era do príncipe do que era do padre; re, caindo
a fundo sobre todas as frases jesuíticas, notei, de passo, um ana­
cronismo, que julguei só poder partir do reverendo. Esta peça,
que, não sei porquê, fez menos barulho que os meus restantes es­
critos, é até ao presente uma obra única no seu género. Aproveitei
nela a ocasião que se me oferecia para ensinar ao público como
um particular podia defender a causa da verdade até contra
um soberano. Ê difícil encontrar ao mesmo tempo um tom mais
altaneiro e mais respeitoso do que o que eu empreguei para lhe
responder. Tinha a felicidade de me haver com um adversário ao

1 Alusão a um personagem, Joss, de uma comédia de Moliêre.-N. do T.

354
qual, sem adulação, podia testemunhar toda a estima que por
ele nutria; foi o que fiz com bastante êxito, mas sempre com
dignidade. Receosos' por mim,. os meus amigos julgavam já
ver-me na Bastilha. Nem um só momento temi .tal coisa, e
tinha razão. O excelente príncipe, depois de ter visto a minha
resposta, disse: Tenho a minha conta; não me meto mais 7Ja
questão. A partir desse momento, recebi dele várias provas de
e&tima e consideração, de que hei-de citar algumas, e o meu
escrito pôde correr tranquilamente a França e a Europa, sem
que ninguém encontrasse nele algo que censurar. Pouco tempo
depois saiu-me a terreiro outro adversário, que não esperava;
aquele mesmo Monsieur Bordes, de Lyon, que dez anos antes se
havia mostrado muito meu amigo e me havia prestado vários
serviços. Não me tinha esquecido dele, mas apenas descurado,
por preguiça; e só por falta de ocasião apropriada lhe não havia
enviado os meus escritos. Tinha, pois, procedido mal; ele ata­
cou-me cortêsmente, porém, e eu respondi-lhe da mesma forma.
Ripostou num 1tom mais decidido, o que deu lugar à m�nha
última resposta, depois do que não voltou a dizer mais nada;
converteu-se, porém, no meu mais feroz inimigo, aproveitou a
ocasião das minhas desgraças para dirigir contra mim terríveis
libelos, e fez uma viagem a Londres de propósito para me pre­
judicar.
Toda esta polémica me absorveu bastante, causando-me
uma grande perda de tempo nas minhas ocupações de copista,
pouco progresso para a verdade, e pouco proveito para a bolsa,
visto que Pissot, então meu ed�tor, continuava a dar-me muito
pouco pelas minhas brochuras, às vezes mesmo absolutamente
nada, •como por e�emplo com o meu primeiro Discurso, de que
não recebi um r·eal; Diderot deu-lho de graça. Era preciso espe­
rar muito tempo, e arrancar-lhe soldo por soldo o pouco que
me dava. No entanto, a cópia não progredia. Era homem de dois
ofídos: maneira de desempenhar mal um e outro.
Estavam estes ainda em oposição por outra forma, em vir­
tude das diferentes maneiras de viver que me impunham. O êxito
dos meus primeiros escritos havia-me lançado na moda. O estado
que tinha adoptado excitava a ·curiosidade; queriam conhecer
este homem extravagante, que não pretendia nada de ninguém,
e só se preocupava com viver livre e feliz à sua maneira: era
o bastante para que o não pudesse ser. Não me desamparavam
o quarto as pessoas que, sob vários pretextos, vinham roubar-me
o meu tempo. As mulheres empregavam mil ardis para me ter
a jantar. Quanto mais eu trartava àsperamente as pessoas, mais

355
elas teimavam. Não podia afastar toda a gente. Apesar das
minhas recusas me valerem mil inimigos, era constantemente
dominado pela minha complacência, e de qualquer maneira
que procedesse não tinha por dia uma hora disponível.
Vi então que nem sempre é tão fácil como imaginamos ser
pobre e independente. Queria viver da minha profissão, o público
não me deixava. Imaginavam mil pequenos meios de me indem­
nizarem do tempo que me faziam perder. Em breve seria
necessário mostrarem-me, como Polichinelo, a tanto por pes­
soa. Não ·Conheço dependência mais vil e mais cruel do que
esta. Não tive outro remédio senão recusar presentes grandes
e pequenos, sem ex·ceptuar quem quer que fosse. Tudo. isto
apenas fez acorrer os doadores, os quais queriam ter a glória de
vencer a minha resistência, e forçar-me a mostrar-me obri­
gado mau grado meu. Havia tal que se eu lhe tivesse pedido
um escudo mo não daria, mas que não cessava de me importu­
nar com as suas ofertas, e, para se vingar de as ver rejeitadas,
classificava a minha recusa de arrogância e de ostentação.
Calcula-se perfeitamente que tanto a decisão que tomara,
como o sistema que queria seguir, não eram do agrado de
Madame Le Vasseur. A filha, apesar de todo o seu desinteresse,
não se furtava a seguir as indicações da mã·e, ·e as amas, como
lhes chamava Gauffecourt, nem sempre se mostravam tão fir­
mes como eu nas recusas. Se bem que me ocultassem muitas
coisas, vi o suficiente para pensar que não via tudo, o que me
atormentava, não tanto pela acusação de conivência que me era
fácil prever, como pela ideia cruel de nunca poder ser senhor
de mim nem da minha própria casa. Pedi, roguei, zanguei-me,
sempre em vão; a mamã fazia-me passar por um eterno res­
mungão, por uma pessoa ríspida. Era um cochichar permanente
com os amigos; no meu lar, tudo eram mistérios e segredos para
mim, e para me não expor a contínuas tempestades, já não
ousava informar-me do •que ali se passava. Para sair de toda
aquela barafunda teria sido preciso uma energia de que eu não
era capaz. Sabia gritar, mas não agir; deixavam-me .falar, e
continuavam na sua.
Estes conflitos contínuos, bem como as maçadas diárias a
que estava sujeito, tornaram-me por fim intoleráveis a minha
habitação e a minha permanência em Paris. Quando os meus
sofrimentos me permitiam sair, e eu não me deixava arrastar
aqui e ali pelos conhecidos, ia passear sôzinho; meditava no meu
grande sistema, tomava um ou outro apontamento, servindo-me
de um caderno branco e de um lápis que trazia sempre na

356
algibeira. Aqui está como os impr·evistos inconvenientes de um
estado ·que havia escolhido me lançaram como diversão com­
pletamente na literatura, e aqui está ainda a razão por que
levei para as minhas primeiras obras toda a bílis e o humor
que eram a •causa delas.
Outra coisa ainda contribuía para tal. Atirado mau grado
meu para a sociedade sem possuir o tom desta, sem me achar
em estado de o adquirir e sem me poder sujei,tar a ele, lem­
brei-me de forjar para mim um que me dispensasse do outro.
Como a minha tola e sensaborona timidez, que me era impos­
sível vencer, tinha por causa o receio de faltar às conveniên­
cias, tomei, para me afoitar, a resolução de as calcar aos pés.
Fiz-me cinico e cáustico por vergonha; fingi desprezar a civi­
lidade que não sabia praticar. E: certo que esta rudeza, con­
forme aos meus novos princípios, enobrecia-se-me na alma,
ganhava nela a intrepidez da virtude, e foi, atrevo-me a dizê-lo,
sobre esta augusta base ,que ela se manteve melhor e m':lis
tempo do que seria para esperar de um esforço de tal maneira
contrário ao meu natural. No entanto, apesar da reputação de
misantropia que o meu exterior e algumas palavras felizes
me granjearam na sociedade, o certo é que, na vida particular,
aguentei sempre mal a minha personagem; que os meus amigos
e conhecidos levavam como um ·cordeiro este urso tão feroz, e
que, limitando os meus sarcasmos a verdades duras, sim, mas
gerais, nunca soube dirigir uma palavra de descortesia a quem
quer que fosse.
O Bruxo da aldeia 1 acabou por me fazer andar tna berra, e
em breve não houve em Paris homem mais requestado do que eu.
A história desta peça, que marca uma época, relaciona-se com
a das relações que eu então mantinha. Para inteligência do
que vai seguir-se, convém ·que entre neste pormenor.
Eu tinha um grande número de conhecidos, mas só dois ami­
gos escolhidos, Diderot e Grimm. Por virtude do desejo que
tenho de congregar tudo o que me é caro, era por de mais
amigo de ambos para que eles o não fossem em breve um do
outro. Apresentei-os, simpatizaram um com o outro, e liga­
ram-se ainda mais intimamente do que ·comigo. Diderot tinha
um sem-número de conhecimentos; mas Grimm, estrangeiro
e adventício, tinha ne•cessidade de os arranjar. Eu não dese­
java outra coisa. Tinha-lhe apresentado Diderot, e apresen­
tei-lhe Gauffecourt. Levei-o a casa de Madame de Chenon-

1 Le Devin du village, ópera de J. J. Rousseau. - N. do T.

357
ceaux, a casa de Madame d'Epinay, a casa do barão d'Holbach,
com o qual me achava relacionado quase mau grado meu. Todos
os meus amigos vieram a ser amigos dele, o que era muito natu­
ral: mas nenhum dos amigos dele veio a ser meu amigo, o que já
não era tão natural. Enquanto IGrimm morava em casa do conde
de Friêse, dava-nos frequentemente de jantar; no entanto, nunca
recebi nenhuma prova de amizade nem de amabilidade do conde
de Friêse, nem do conde de Schomberg, seu parente, muito íntimo
de Grimm, nem de nenhuma das pessoas, homens ou mulheres,
com quem Grimm entrou em relações graças a eles. Ressalvo
apenas o abade Raynal, que, embora seu amigo, se revelou tam­
bém meu, e que nessa ocasião me ofereceu a bolsa com uma
generosidade pouco vulgar. Contudo, eu conhecia o abade Ray­
nal mui,to antes do próprio Grimm o haver conhecido, e tinha­
-lhe ficado sempre afetçoado depois de haver procedido para
comigo de uma forma cheia de delicadeza e de cortesia numa
ocasião bastante leviana, mas que nunca esqueci.
!Este abade Raynal ·era certamente um amigo caloroso. Tive
disso a prova pouco mais ou menos na época a que me refiro,
a respeito do mesmo Grimm, com quem se achava intimamente
relacionado. Depois de durante •certo tempo ter olhado para
Mademoiselle Fel1 apenas com olhos de bom amigo, Grimm lem­
brou-se de repente de se apaixonar por ela, e querer suplantar
Cahusac. A beldade, jactando-se de ·constante, desembaraçou-c;;e
do novo pretendente. Este levou a coisa ao trágico, e lembrou-se
de querer morrer. Caiu repentinamente doente, com a mais
estranha doença de que porventura se ouviu ainda falar. Pas­
sava os dias e as noites em completa letargia, os olhos bem
abertos, o pulso perfeitamente normal, mas sem falar, sem
comer, sem se mexer, parecendo por vezes ouvir, mas não res­
pondendo nunca, nem sequer por sinais, e aliás sem agitação,
sem febre, permanecendo para ali como se estivesse morto.
O abade Raynal e eu revezámo-nos à sua cabeceira: o abade,
mais robusto e com melhor saúde, passava lá as noites, eu os
dias, sem o abandonarmos; nunca um ·partia sem o outro ter
chegado. Alarmado, o ·conde de Friêse levou-lhe Senac, que,
depois de observar bem, disse que não havia de ser nada, e nada
receitou. o terror em que me achava pelo meu amigo levou-me
a observar cautelosamente a atitude do médico, e vi-o sorrir
quando saía. o doente no entanto ficou vários dias imóvel, não
tomando nem caldos, nem o quer que fosse, a não ser umas

1 Célebre cantora do tempo. - N. do T.

358
cerejas de compota que eu de vez em quando lhe punha na
língua, e que ele engolia muito bem. Uma bela manhã levan­
tou-se, vestiu-se, e retomou o seu modo de vida ordinário, sem
que nunca mais, que eu saiba, tivesse vol1tado a falar ao abade
Raynal ou a qualquer outra pessoa naquela singular letargia,
nem nos cuidados de •que nós o havíamos rodeado enquanto
ela durou.
Esta aventura não dei:x:ou de dar brado, e teria sido na
realidade uma anedota maravilhosa, isto de um homem morrer
de desespero por causa da crueldade de uma pequena da ópera.
Esta bela paixão lançou Grimm na moda; em breve passou por
um prodígio de amor, de amizade, de .toda a espécie de dedi­
cação. Tal opinião tornou-o requestado e festejado na alta­
-roda, levando-o a afastar-se de mim, ·que nunca havia sido
para ele mais do que um recurso extremo. Vi-o prestes a
fugir-me completamente, povque todos os sentimentos vivos
que ostentava eram os que com menos alarde ·eu nutria por
ele. Alegrava-me bastante por o ver triunfar na sociedade, mas
não desejaria que o fizesse esquecendo o amigo. Disse-lhe um
dia: Grimm, olvidais-me; perdoo-vos. Quando cessar o efeito
da primeira embriaguez dos triunfos ·estrondosos, e lhes sentirdes
o vazio, espero que volteis para mim, e encontrar-me-eis sem­
pre. Quanto ao presente, não vos preocupeis; deixo-vos livre,
e espero-vos. Grimm disse-me que eu tinha razão, pelo que
nessa conformidade se .arranjou tanto a seu talante que nunca
mais o vi senão na companhia dos nossos amigos comuns.
O nosso principal ponto de reunião, antes de ele se •tornar
tão íntimo de Madame d'Élpinay como veio a sê-lo depois, era
em casa do barão d'Holbach. Este dito barão era ;filho de
um homem que havia trepado, e gozava de uma enorme fortuna,
de que dispunha nobremente, recebendo em sua casa gente de
letras e de merecimento, de que não desdizia graças ao seu
saber e às suas :11uzes. /Relacionado há muito com Diderot,
tinha-me procurado por intermédio deste, mesmo antes do meu
nome se tornar conhecido. Uma repugnância natural impe­
diu-me durante bastante tempo de corresponder ás suas pro­
postas. Um dia em que ele me perguntava a razão da minha
atitude, respondi-lhe: Sois rico de mais. Ele teimou, e por
fim venceu. A minha maior desgra:ça foi sempre não poder
resistir a afagos. Nunca me deu bom resultado ter-lhes cedido.
Monsieur Duelos foi outro conhecimento, que se transfor­
mou em amizade, logo que os meus títulos a isso me autoriza­
ram. Tinha-o visto pela primeira vez, há uns anos atrás, na

359
Chevrette, em casa de Madame d'Épinay, com quem estava
muito beni relacionado. Apenas jantámos juntos; ele partiu
no mesmo dia. Conversámos no entanto alguns momentos
depois do jantar. i.Madame d'Épinay havia-lhe falado de mim
e da minha ópera As musas galantes. Dotado de altíssimos
talentos para deixar de amar os que os possuíam, Duelos
tinha-se agradado de mim, e tinha-me convidado a ir visitá-lo.
Posto que a minha antiga simpatia por ele se houvesse refor­
çado com o conhecimento, a minha timidez, a minha pregulça
retiveram-me enquanto não tive junto dele outra credencial
além da sua amabilidade; no entanto, encorajado pelo meu
primeiro triunfo e pelos elogios da sua parte que me chegaram
aos ouvidos, fui visitá-lo, ele veio visitar-me, e assim começa­
ram entre nós as relações 'QUe sempre mo hão-de tornar caro,
e às quais, além do testemunho do meu próprio coração, eu devo
o saber .que a rectidão e a probidade podem por vezes associar-se
com o ·cultivo das letras.
Como consequência dos meus primeiros triunfos, travei
muitas outras relaJções menos sólidas, que não menciono aqui,
e que só duraram enquanto a curiosidade não se achou satis­
feita. Eu era um homem que, mal havia sido visto, nada de
novo apresentava para ver no dia seguinte. Contudo, uma -
mulher que nessa altura me procurou conservou-se mais firme
do 'QUe todas as outras: foi a marquesa de Créqui, sobrinha do
bailio de Froulay, embaixador em Malta, cujo irmão havia pre­
cedido Monsieur de Montaigu na embaixada de Veneza, e que
eu tinha ido visitar •quando regressara dali. Madame de Créqui
escreveu-me; fui a casa dela: ficou minha amiga. Jantava com
ela algumas vezes; em sua casa vi vários homens de letras,
entre os quais Monsieur Saurin, autor do Spartacus, de Bar­
nevelt, etc., que depois veio a ser meu crudelíssimo inimigo,
sem que eu para isso possa imaginar outra razão além da de
usar o nome de um homem que seu pai havia miseràvelmente
perseguido.
Já se deixa ver que para um copista, que de manhã à noite
se devia achar preso pelo oficio, as minhas numerosas distrac­
ções não me tornavam o dia muito lucrativo, além de que me
tmpediam de ligar ao que fazia a atenção necessária para o
fazer bem; desta maneira perdia a apagar ou a raspar os erros
que cometia, ou a recomeçar nova folha, mais de metade do
tempo que me deixavam. Tal inconveniente tornava-me Paris
de dia para dia mais insuportável, e obrigava-me a demandar
vivamente o campo. Ia muitas vezes passar alguns dias a Mar-

360
coussis, cujo vigário era conhecido de Madame Le Vasseur, e em
casa do qual nós nos acomodávamos todos de maneira que ele se
não achasse mal. Grimm foi lá uma vez connosco 1• O vigário
tinha voz, cantava bem, e posto que não soubesse música, apren­
dia a parte dele com muita facilidade e correcção. Passávamos o
tempo cantando os meus trios de Chenonceaux. Compus dois
ou três novos, sobre letra que Grimm e o vigário alinhavaram
como puderam. Não posso deixar de chorar estes trios escritos
e cantados em momentos de puríssima alegria, e que deixei em
Wooton com toda a minha música. É provável que Mademoiselle
Davenport já tenha feito com eles papelotes, mas mereciam ser
conservados, e são em grande parte em excelente contraponto.
Foi depois de qualquer destas viagenzitas, e m que tinha o prazer
de ver a tia à vontade, muito contente, e nos quais também eu
me divertia bastante, que escrevi ao vigário, muito ràpidamente
e muito mal, uma epístola que se há-de encontrar entre os meus
papéis.
Mais perto de Paris tinha eu outra estância muito do meu
agrado em casa de Monsieur Mussard, meu compatriota, meu
parente e meu amigo, o qual havia arranjado em Passy um retiro
encantador, onde passei momentos de grande tranquilidade.
Monsieur Mussard era joalheiro; homem muito sensato, depois
de haver adquirido no seu comércio uma modesta fortuna, e de
haver casado a filha única com Monsieur de Valmalette, filho
de um corretor de c:âmbios e mordomo do rei, tomou o sábio
partido de abandonar o negócio na velhice, e de interpor um
intervalo de descanso e de gozo entre a balbúrdia da vida e a
morte. O bom do Mussard, verdadeiro filósofo prático, vivia sem
cuidados, numa casa agradabilíssima que mandara construir,
e num lindíssimo jardim que tinha plantado por suas mãos.
Ao fazer umas escavações assaz fundas no terreiro do jardim,
encontrou umas conchas fósseis, e em tão grande quantidade que
a sua imaginação exaltada só passou a ver conchas na natureza,
acreditando por fim sinceramente que o universo não era senão
conchas, fragmentos de conchas, e que a terra inteira não era
mais que grés de conchas. Sempre absorvido com semelhante
objecto e com as suas singulares descobertas, entusiasmou-se

1 Visto que me esqueci de contar aqui uma pequena, mas memo­


rável anedota que ali me aconteceu com o dito senhor Grimm, numa
manhã em que devíamos ir jantar à fonte de Saint-vandrille, não voltarei
ao assunto; mas tornando a pensar em tal depois, vim a concluir que ele
já então chocava no fundo do coração a conspiração que depois executou
COIL um tão prodigioso êxito.- Nota de J.-J. Rousseau.

361
tanto por tais ideias, que estas ter-lhe-iam por fim desandado na
cabeça em sistema, isto é, em loucura, se felicissimamente para a
sua razão, bem infelizmente para os seus amigos que o adoravam,
e que encontravam em sua casa o mais agradável asilo, a morte
não viesse roubar-lho, graças à mais estranha e cruel doença.
Tratava-se de um tumor no esrtômago, que ia sempre aumen­
tando, impedindo-o de comer, sem que durante muito tempo se
descobrisse a razão, e acabando, após vários anos de sofrimen­
tos, por fazê-lo morrer de fome. Não posso lembrar-me, sem que
o coração se me aperte, dos últimos momentos deste pobre e
digno homem, que estava reduzido, embora recebendo-nos ainda
com tanto prazer, a Lenieps e a mim, os únicos amigos a quem o
espectáculo dos males que o faziam sofrer não afastou dele
até à sua última hora, estava reduzido, digo, a devorar com os
olhos a refeição que nos mandava servir, sem mesmo quase poder
sorver algumas gotas de um chá fraquíssimo, que um ins.tante
depois tinha de lançar fora. Antes porém destes momentos
dolorosos, quantos outros mais agradáveis não passei eu em sua
casa, na companhia dos amigos e scolhidos que ele havia gran­
j eado! A cabeça 'destes coloco o abade Prévost, homem de uma
grande amabilidade e de uma grande simplicidade, cujos escritos
eram vivificados pelo coração, digno da imortalidade, e que nem
no feitio nem no trato tinha nada do sombrio colorido que dava
às suas obras ; o médico Procope, pequeno Esopo galanteador ;
Boulanger, o célebre autor póstumo do Despotismo oriental, e
que, segundo julgo, ampliava os sistemas de IM:ussard sobre a
duração do mundo. Entre as mulheres, Madame Denis, sobrinha
de Voltaire, a qual, não passando então de uma boa mulher, não
tomava ainda ares de espirituosa ; Madame Vanloo, certamente
nada bonita, mas encantadora, e que cantava como um anj o ;
a própria Madame Valmalette, que também cantava, e que,
embora muito magra, seria gentilíssima se tivesse menos preten­
são de o ser. Tal era pouco mais ou menos a sociedade de Mon­
sieur Mussard, a qual me teria agradado bastante se os coló­
quios conquiliómanos com este me não houvessem agradado
mais, e posso dizer que durante mais de seis meses trabalhei no
seu gabinete com o mesmo prazer que ele.
Pretendia ·ele há muito tempo que as águas de Passy seriam
salutares ao meu estado, e aconselhava-me a que viesse tomá­
-las a sua ·casa. Para sair um pouco da balbúrdia urbana, resol­
vi-me por fim, e fui passar oito ou dez dias a Passy, o que me
fez melhor por me achar no campo do que pelas águas que ali
tomava. Mussard tocava violoncelo, e gostava loucamente da

362
mus1ca italiana. Uma noite, antes de nos deitarmos, falámos
muito desta, e mormente das opere buffe, que um e outro havía­
mos visto etn Itália, e que nos entusiasmavam a ambos. De
noite, ,como não podia dormir, meditei na maneira eomo se
poderia conseguir dar em França a ideia de um drama deste
género ; porque os Amores de Ragundo 1 não se pareciam nada
com isto. De manhã, enquanto passeava e tomava as águas,
escrevi uma espécie de versos muito à pressa, e adaptei-lhes
as melodias que me vieram ao fazê-los. Gatafunhei tudo numa
espécie de sala abobadada que existia ao cimo do j ardim ; e
ao chá não pude deixar de mostrar as árias a Mussard e a
Mademoiselle Duvernois, sua governanta, que na verdade era
uma excelente e gentil rapariga. Os três trechos que esbocei
eram o primeiro monólogo, Perdi o meu servidor 2, a ária do
Bruxo, O amor aumenta se se atormenta 3, e o último duo,
Para sempre, IColin, exorto-te 4, etc. Calculava tanto que valesse
a pena continuar isto, que, se não fossem os aplausos e os ineita­
mentos de um e outro, ia atirar ao fogo eom as minhas ninha­
rias sem pensar mais nelas, como tantas vezes fiz com coisas
pelo menos tão boas: eles contudo animaram-me tanto, que
em seis dias o meu drama ficou oescrito, com excepção de
alguns versos, e toda a música esboçada ; de modo que em
Paris não tive senão que fazer uns quantos recita>tivos e as
partes intermediárias todas, acabando tudo com tal rapidez,
que em três semanas as cenas se achavam escritas a limpo
e em estado de serem representadas. Faltava apenas o «diver­
timento», que só foi escrito muito mais tarde.
Entusiasmado com a composição desta obra, encontrava-me
ansiosíssimo por ouvi-la, ,e daria tudo no mundo para a ver repre­
sentada segundo a minha fantasia, à porta fechada, como se
diz ter sucedido certa vez com Lulli, que rez representar só para
ele a Armida. 'Como não me era possível ter semelhante prazer
sem público, tornava-se absolutamente forçoso, para gozar a
minha peça, dá-la na ópera. Infelizmente era num género abso­
lutamente novo, a que os ouvidos ainda não estavam acostu­
mados, e, aliás, o nenhum êxito das Musas galantes fazia-me
prever o do Bruxo, se o apresentasse sob o meu nome. Duelos
tirou-me de apuros, e encarregou-se de ,conseguir que se en-

1 Les Amours de Ragonde, comédia de Néricault-Destouches, com


música de Mouret.- N. do T.
2 J'ai perdu mon serviteur.
3 L'Amour croit s'il s'inquiete.
4 A jamais, colin, je t'engage.

363
saiasse a obra sem se dar a �conhecer o autor. Para não me denun­
ciar, não me achei presente a este ensaio; e os próprios petits
violons 1, que a dirigiram, só souberam quem era o :autor depois
de. uma aclamação geral ter atestado a excelência da obra.
Tod{)s os que a ouviram estavam encantados, a ponto de no
dia seguinte não se falar noutra coisa em todas as reuniões.
Monsieur de Cury, intendente dos «Menus>>, que tinha assis•tido
ao ensaio, pediu a obra para a dar na corte. Duelos, que conhe­
cia as minhas intenções, pensando que na corte eu seria menos
senhor da pe.ça do que em Paris, recusou-a. Cury reclamou-a
à força; Duelos manteve-se na sua, e a discussão entre os dois
tornou-se tão violenta, que um dia na ópera iam para sair
juntos se os não tivessem separado. Quiseram dirigir-se a mim:
entreguei a decisão da coisa a Monsieur Duelos. Mister foi
\rem ter de novo com ele. O Sr. Duque d'Aumont meteu-se no
assunto. Duelos julgou enfim dever ceder à autoridade, e con­
sentiu que a peça fosse representada em Fontainebleau.
A parte a que mais atenção prestara, e onde mais me havia
afastado da senda habitual, era o recitativo. O meu era ritmado
de uma maneira inteiramente nova, e acompanhava o movi­
mento da palavra. \Não se atreveram a conservar esta horrível
inovação, temendo que ela revolt
1 asse os ouvidos rotineiros.
Consenti que Francueil e Jelyotte escrevessem outro recitativo,
mas não quis meter-me nisso.
Logo que tudo se achou pronto e o dia da representação
fixado, propuseram-me fazer uma viagem até Fontainebleau,
para assistir ao menos ao último ensaio. Parti numa carruagem
da corte, com Mademoiselle Fel, Grimm, e julgo que o Abade
Raynal. O ensaio foi sofrível; fiquei mais satisfeit
• o do que espe­
rava. A orquestra era avultada, composta. dos da ópera e da
música do rei. Jelyotte fazia de Colin; Mademoiselle Fel, de
Colette; Cuvilier, de Bruxo; os coros era:m os da ópera. Pouco
disse: Jelyotte era quem tudo havia dirigido; não quis criticar
o que ele tinha feito, e apesar do meu tom romano, sentia-me
envergonhado como um colegial no meio de toda aquela gente.
No dia seguinte, que era o da representação, fui almoçar
ao café do Grand-Commun. Havia muita gente. Falava-se do
ensaio da véspera, e da dificuldade que tinha havido para entrar.
Um oficial que ali se encontrava disse ter entrado sem difi-

1 Era assim que chamavam a Rebel e Francoeur, que desde a moci­


dade se tinham feito conhecer, indo tocar sempre juntos a diversas casas.
-Nota de J.-J. Rousseau.

364
culdade, contou largamente tudo o que se havia passado, des­
creveu o autor, referiu o que este tinha feito, o que tinha dito;
-o que me espantou porém em todo o seu comprido discurso,
feito com tanta segurança como simplicidade, era que nele
não havia uma única palavra de verdade. Era para mim evi­
dentíssimo •que 'quem falava tão doutamente do ensaio não
havia lá estado, pois que tinha em frente dos olhos, sem o reco­
nhecer, o tal autor que dizia haver tão bem visto. O mais sin­
gular da cena foi o efeito que ela teve em mim. Tratava-se de
um homem de certa idade; nem o seu ar nem o seu tom eram
de um presumido, de um suficiente; a sua fisionomia revelava
um homem de valor, a cruz de S. Luis revelava um antigo
oficial. Interessava-me, mau grado a sua impudência e mau
grado meu; enquanto ele impingia as suas patranhas, eu corava,
baixava os olhos, estava sobre brasas; por vezes procurava em
mim próprio se não haveria meio de o julgar em erro e de boa
fé. Por fim, receando que alguém me reconhecesse e o fizesse
envergonhar, dei-me pressa em acabar o meu chocolate sem
nada dizer, e passando diante dele de cabeça baixa, saí logo
que me foi possível, enquanto os assistentes peroravam a res­
pei!to do seu relato. Na rua reparei que estava em suores, e estou
convencido de que se alguém me houvesse reconhecido e
nomeado antes de ter saído, teriam visto em mim a vergonha
e a confusão de um culpado, devido apenas ao sentimento de
aflição que aquele pobre homem havia de sofrer se a sua men­
tira fosse descoberta.
Sou chegado a um daqueles momentos críticos da minha
vida em que me é difícil fazer algo mais do que narrar, visto
ser quase impossível não levar a própria narração qualquer
estigma c rítico ou apologética. Tentarei todavia contar como
e baseado em que motivos eu me conduzi, sem lhe acrescentar
nem louvor nem censura.
N?-quele dia tinha eu a mesma apresentação descuidada
que me era habitual; a barba crescida e a cabeleira mal pen­
teada. Tomando esta falta de decência por um acto de cora­
gem, entrei desta forma na mesma sala onde deviam dai a
pouco chegar o rei, a rainha, a .família real e toda a corte.
Fui-me instalar no camarote onde Monsieur de Cury me con­
duziu, e ·que era o seu. Era um camarote grande dominando o
teatro, em face de um camarote pequeno mais elevado, onde
o rei tomou lugar com Madame de Pompadour. Rodeado de
damas, e sendo o único homem que se achava à frente do cama­
rote, não podia duvidar que me tivessem ali posto precisamente

365
para dar nas vistas. Ao alumiarem a sala, e ao ver-me nesta
indumentária, no meio de pessoas todas muitíssimo bem traja­
das, comecei a sentir-me pouco à vontade: perguntava de mim
para mim se estava no meu lugar, se me achava conveniente­
mente vestido, e depois de alguns minutos de inquietação, res­
pondi: Estou, com uma intrepidez que vinha porventura mais da
impossibilidade de me desmentir do que da força das minhas
razões. Disse de mim para mim: Estou no meu lugar, visto
que quero ver representar a minha 1peça, que fui convidado,
que só a escrevi para isso, e que no fim de contas ninguém mais
do que eu 1tem o direito de gozar do fruto do meu trabalho e
dos meus talentos. Estou vestido como de costume, nem melhor
nem pior. Se recomeço no 'quer que seja a sujeitar-me à opinião,
em breve me acho de novo a ela sujeito �em .todas as coisas.
Para ser sempre eu próprio, não devo corar de me achar ves­
tido em qualquer lugar que seja segundo o estado que escolhi :
o meu exterior é simples e descurado, mas não sujo e enxova­
lhado ; em si mesma, a barba também não o é, visto que é a
natureza que no-la dá, e que, segundo os tempos e as modas,
ela é por vezes um atavio. Achar-me-ão ridículo, impertinente;
então! que me importa! Devo saber suportar o ridículo e a
reprovação, contanto �que não sejam merecidos. Após este
pequeno solilóquio, achei-me tão forte , que houvera sido intré­
pido se disso tivesse tido necessidade. Contudo, quer em razão
da presença do rei, quer por disposição natural dos 'ânimos,
nada vi na curiosidade de que era objecto que não fosse aten­
cioso e cortês. O facto comoveu-me até que comecei de novo
a inquietar-me a r·espeito de mim próprio e da sorte da minha
peça, temendo desfazer tão favoráveis disposições de ânimo,
que não pareciam senão procurar aplaudir-me. Estava armado
eontra a troça; mas o ar acolhedor, com que não contava,
subjugou-me a tal ponto, ·que tremia �como uma criança
quando se começou.
Em breve tive motivos para serenar. A peça foi muito
mal representada, quanto aos actores, mas bem cantada e
bem executada, quanto à música. Logq à primeira cena,
que era de uma ingenuidade verdadeiramente comovente,
ouvi levantar-se nos ·camarotes um murmúrio de surpresa e
de aplauso, a1té então desconhecido neste género de peças. A exal­
tação cresceu em breve até ao ponto de se tornar sensível em
toda a assembleia e, para falar à Montesquieu, aumentou o seu
efeito graças ao seu próprio ·efeito. Na cena das duas criaturinhas,
tal efeito subiu ao auge. Não se aplaude na presença do rei : o que

366
deu em resultado poder-se ouvir tudo : a peça e o autor ganha­
ram com isso. Ouvi à minha volta mulheres, que me pareciam
belas •como anjos, ·cüchicharem e dizerem entre si a meia-voz:
F. encantador, é maravilhoso ; não há um só som que não fale
ao coração. O prazer de haver comovido tanta gente amável
comoveu-me a mim próprio até às lágrimas ; e no primeiro duo,
ao observar que não era o único a chorar, não pude contê-las.
Recuei um momento no meu intimo, lembrando-me do concerto
de Monsieur de Treytorens. Esta reminiscência fez-me o efeito
do escravo que mantinha a coroa sobre a cabeça dos triunfa­
dores; foi porém rápida, e em breve me entreguei completa­
mente ao prazer de saborear a minha glória. Tenho todavia a
c·e rteza de 'que neste momento a volúpia do elemento feminino
contava muito mais do que a vaidade de autor ; e se só houvesse
homens presentes, com certeza não me acharia como me achei
constantemente devorado pelo desejo de recolher nos meus lábios
as deliciosas lágrimas que fazia verter. Vi peças excitarem mais
vivos raptos de admiração, mas nunca vi durante um espectá­
culo int·eiro reinar mais completo, mais doce, mais enternecedor
enlevo, e sobretudo na corte, num dia de primeira representação.
Os que tal viram devem estar lembrados; porque o efeito foi
único.
Na mesma noite, o Sr. Duque d'Aumont mandou-me dizer
que me encontrasse no castelo no dia seguinte, pelas onze horas,
que me apresentaria ao rei. Monsieur de Cury, que me comuni­
cou a mensagem, acrescentou que julgava tratar-se de uma
pensão, e que o próprio rei ma queria anunciar.
Acreditais que a noite que se seguiu a 1tão brilhante jornada
foi para mim uma noite de angústia e de perplexidade?
A minha primeira ideia, depois da da representação, incidiu
sobre uma frequente necessidade de sair, que muito me havia
feito sofrer na própria noite do espectáculo, e que podia ator­
mentar-me no dia seguinte, quando me achasse na galeria ou
nos :aposentos do rei, entre todos aqueles grandes, esperando
a passagem de Sua Majestade. Esta enfermidade era a razão
principal :por que eu me conservava afastado dos pontos 1e
reunião, e me impedia de ir fechar-me em casa de senhoras. Só
a ideia do estado em 1que semelhante necessidade me poderia
pôr seria capaz de mo :provocar, a ponto de me achar mal, a
menos que sobreviesse um escândalo, ao qual preferiria a morte.
Só as pessoas que conhecem tal estado podem julgar do terror
de correr-lhe o risco.

367
Imaginava-me depois diante do rei, apresentado a Sua
Majestade, que se dignava parar e dirigir-me a palavra. Era
em tal ocasião que seria preciso acerto e presença de espírito
para responder. A minha mald�ta timidez, que me perturba
diante do mais vulgar desconhecido, abandonar-me-ia diante
do rei de França, ou permitir-me-ia escolher bem em seme­
lhante momento o que era preciso dizer? íSem abandonar o
ar e o tom severo que tinha adoptado, queria mostrar-me sen­
sível à honra que me dispensava tão grande monarca. Era neces­
sário dissimular qualquer grande e útil verdade num belo e
merecido louvor. Para preparar de antemão uma resposta feliz,
teria sido necessário prever precisamente o que o rei me poderia
dizer; e eu tinha a certeza de em seguida não encontrar na sua
presença uma palavra do que havia meditado. Que seria de mim
em tal momento, com toda a corte presente, se na minha pertur­
bação me ia escapar alguma das minhas costumadas inconve­
niências? Tal perigo alarmou-me, aterrorizou-me, fez-me tre­
mer, a ponto de resolver, sob todos os riscos, não me expor a ele.
É verdade que perdia a pensão que de certo modo me era
oferecida ; mas também me isentava do jugo que esta me impo:­
ria. Adeus verdade, liberdade, coragem! Como ousaria eu para
o futuro falar de independência e de desinteresse ? Aceitando
a pensão, só me r·estava a adulação ou o silêncio : e mesmo assim,
quem me garantia que ela me seria paga? Quantas passadas a
dar, quanta gente a requestar! Custar-me-ia mais e mais desa­
gradáveis cuidados o conservá:..la, do que dela prescindir. Julguei
pois, renunciando à pensão, tomar uma decisão perfeitamente
consequente com os meus princípios, e sacrificar a aparência à
realidade. Comuniquei a minha resolução a Grimm, que nada
lhe opôs. Aos outros aleguei a minha saúde, e parti nessa mesma
manhã.
A minha partida deu que falar, e foi em geral censurada.
Nem toda a gente podia compreender as minhas razões. Acusa­
rem-me de um fátuo orgulho era bem mais expedi�to, e satisfa­
zia melhor a inveja de quem quer que em si mesmo sentia que
não teria procedido da mesma maneira. No dia seguinte, Jelyotte
escreveu-me um bilhete, em que me contava por miúdo o êxito
da minha peça e o entusiasmo que o próprio rei manifestava por
ela. Sua Majestade, frisava ele , não pára em todo o dia
de cantar com a mais desafinada voz do seu reino : Perdi o meu
servidor; perdi toda a ventura 1 • Acrescentava que, dentro de

1 «J'ai perdu mon serviteur; j'ai perdu tout mon bonheur.»

368
quinze dias, devia fazer-se segunda representação do Bruxo.
que comprovaria aos olhos de todo o público o êxi:to completo
da primeira.
Dois dias depois, quando pelas nove da noite eu ia a entrar
em casa de Madame d'Épinay, onde ceava, um fiacre atraves­
sou-se-me à porta. Alguém que se achava neste fiacre fez-me
sinal para subir; subo: era Diderot. Falou-me da pensão com
um entusiasmo que em tal matéria não seria de esperar de um
filósofo. Não me censurou por eu não ter querido ser -apresen­
tado ao rei ; mas a minha indiferença pela pensão é que lhe
pareceu um crime terrível. Disse-me 1que, se por mim era desin­
teressado, não me era permitido sê-lo a respeito de Madame Le
Vasseur e da filha ; que por amor delas não devia desprezar
nenhum meio possível e honesto de lhes dar pão, e como, afinal
de contas, não se podia dizer que eu houvesse recusado tal
pensão, sustentou que, visto parecerem dispostos a concede­
rem-ma, eu devia, fosse como fosse, solicitá-la e consegui-la.
Posto ,que o seu zelo me �comovesse, as suas máximas não me
agradaram, e travámos sobre o assunto uma violentíssima d�s­
cussão, a primeira que tivemos ; e nunca as tivemos senão desta
natureza, ele porque me prescrevia o que entendia que eu devia
fazer, eu porque me furtava a isso, pensando que não devia tal.
Era tarde quando nos separámos. Quis levá-lo a cear a casa
de iMadame d'Épinay ; não acedeu de modo nenhum, e por mais
esforços que o meu desejo de congraçar todos os que amo me
levasse constantemente a fazer para o convencer a visitá-la,
indo mesmo ao ponto de a levar até à porta de sua casa, que
ele nos conservou fechada, Diderot furtou-se sempre a isso, ape­
nas falando dela em termos bastante depreciativos. Só depois
de me haver malquistado com uma e com outro é que se torna­
ram amigos, começando Diderot então a referir-se honrado às
suas relações.
Foi desde então que Diderot e Grimm pareceram tomar a
peito afastarem de mim as «amas», dando-lhe a entender que
se não viviam mais à larga, era por má vontade da minha
parte, e que comigo nunca haviam de chegar a nada. Trataram
de as convencer a abandonarem-me, prometendo-lhes um arma­
zém de sal e um estanco, graças ao crédito de Madame d'Épinay.
Quiseram mesmo arrastar para a sua liga Duelos, assim como
d'Holbach, mas o primeiro recusou-se sempre a fazê-lo. Tive
na altura uns zunzuns de .toda esta intrigalhada; mas só muito
depois é que vim a conhecê-la perfeitamente, e muitas vezes fui
levado a deplorar o zelo cego e pouco discreto dos meus amigos,

24 369
que procurando, incomodado como me achava, reduzir-me à
mais triste solidão, trabalhavam na sua ideia por me tornar
feliz, empregando na realidade os meios mais próprios para me
tornarem desgraçado.
No Carnaval seguinte, 1753, O Bruxo foi representado em
Paris, tendo eu tempo, no entrementes, de escrever a abertura
e o <<divertimento». Este «divertimento», tal como se acha gra­
vado, devia ter uma acção do princípio ao fim, com um assunto
seguido, o qual, em meu entender, fornecia uma série de quadros
muito agradáveis. •Quando porém propus a ideia à ópera, nem
sequer me ouviram, e tive de enfiar o.s ;cantos e as danças uns
nos outros como de costume : o que fez com que o «divertimento»,
embora cheio de ideias encantadoras, que não desguarneciam as
cenas, tivesse um fraquíssimo êxito. Tirei o recitativo de Jelyotte,
e repus o meu, tal como o havia composto primeiramente e como
se a·cha gravado; e tal recitativo, embora, confesso-o, um pouco
afrancesado, isto é , arrastado pelos actores, longe de chocar
alguém, não teve menos êxito que as árias, e, mesmo ao público,
pareceu-lhe pelo menos 1tão bem feito como estas. Dediquei a
minha peça a Monsieur Duelos, que a havia protegido, e decla­
rei que seria a minha única dedicatória. Fiz todavia outra com
o seu consentimento ; mas ele devia sentir-se ainda mais honrado
com esta excepção, do que se eu não houvesse feito nenhuma.
Há muitas anedotas a respeito desta peça, mas as coisas
mais importantes que tenho para contar não me deixam vagar
para aqui me alargar referindo-me a elas ; talvez que um dia o
venha a fazer no suplemento. Não deverei todavia omitir uma:
que pode relacionar-se com tudo o que se segue. Um dia exami­
nava eu na bibliote·ca do barão d'Holbach a sua colecção musi­
cal ; depois de haver percorrido bastantes espécies, diz-me ele,
mostrando-me um caderno de peças de cravo : Tenho aqui
umas peças que foram compostas para mim: são de muito gosto,
muito cantantes ; ninguém a não ser eu as conhece nem as verá.
Deveríeis escolher uma delas para a inserir no vosso «diverti­
mento». Como tinha na cabeça muito mais temas de árias e de
sinfonias do que os que podia empregar, importava-me pouquís­
simo com os dele. No entanto, d'Holbach insistiu tanto, que por
comprazimento escolhi uma pastoral que encurtei, e que arranjei
em trio para a entrada das ·companheiras de Colette. Alguns
meses depois, quando se representava O Bruxo, ao entrar um
dia em casa de Grimm vejo gente em volta do cravo, e este
levantar-se bruscamente dali mal eu chego. Olhando maqui­
nalmente para a ·estante, apercebo aquele mesmo caderno do

370
barão d'Holbach, aberto precisamente naquela mesma peça que
ele havia insistido em que , e u aproveitasse, garantindo-me que
nunca sairia das suas mãos. Tempos depois, dou igualmente
com o mesmo caderno aberto em cima do cravo de Monsieur
d'I!:pinay, num dia em que se fazia música em sua casa. Nem
Grimm nem ninguém me falou alguma vez de semelhante ária,
e eu próprio falo aqui dela apenas porque algum tempo depois
se espalhou o boato de que eu não era o autor do Bruxo da
aldeia. Como nunca fui um grande solfista, estou convenc�do
de que, se não fora o meu Dicionário de Música, acabariam por
dizer que eu não a sabia 1•
Algum tempo antes de se dar O Bruxo da aldeia, haviam
chegado a Paris os boujjons 2 italianos, que foram autorizados
a representar no teatro da ópera, sem se prever o resultado que
tal coisa aí ia dar. Embora fossem detestáveis, e a orquestra,
então bastante inepta, estropiasse como que por gosto as peças
que representavam, o certo é que estas não deixaram de causar
à ópera francesa um dano de que ela nunca se refez. A compa­
ração das duas espécies de música, ouvidas no mesmo dia, no
mesmo teatro, desobstruiu os ouvidos franceses. Não houve
nenhum que pudesse suportar o arrastado da sua música, depois
do ritmo vivo e acentuado da italiana. Logo que os «bouffons»
acabavam, tudo se ia embora. Viram-se obrigados a interverter
a ordem, pondo os «bouffons» no fim. Representava-se Eglé,
Pigmalião, o ,Siljo; nada se aguentava. Só O Bruxo da aldeia
resistiu à comparação, agradando mesmo depois da Serva
pad!rona 3 • Quando compus o meu intermédio, tinha o espírito
cheio daqueles ; deles me veio a ideia, e estava bem longe de
prever que os haviam de vir a cotejar com o meu. Se eu fosse um
plagiário, quantos roubos se tornariam então patentes, e como
teriam tido cuidado em os denunciar! Mas nada : por muito que
fizessem, não se encontrou na minha música a mais pequena
reminiscência de qualquer outra; e todas as minhas melodias,
comparadas com as supostamente originais, foram consideradas
tão novas como o carácter da música por mim criado. Se tives­
sem sujeitado Mondonville ou Rameau a semelhante prova, te­
riam dela saído em frangalhos.

1 De maneira nenhuma previa então que por fim o viriam a dizer,


apesar do Dicionário.- Nota de J.-J. Rousseau.
2 cantores de ópera bufa, cujas representações levantaram em Paris
uma série de polémicas pró e contra, que ficaram conhecidas na história
da música francesa por «guerre des bouffons».
- N. do T.
3 Célebre ópera bufa de Pergolesi. - N. do T.

371
Os «bouffons» ganharam à musiCa italiana apaixonadís­
simos adeptos. Paris inteiro dividiu-se em dois partidos mais
aguerridos do que se se tratasse de uma questão de estado ou
de religião. Um, o mais forte, o mais numeroso, composto dos
grandes, dos ricos e das mulheres, apoiava a música francesa ;
outro, o mais vivo, o mais ufano, o mais entusiasta, era com­
posto dos verdadeiros entendidos, das pessoas de talento, dos
homens de génio. O seu pequeno pelotão reunia-se na ópera,
debaixo do camarote da rainha. O outro partido enchia todo
o resto da plateia e da sala ; mas a sua sede principal era debaixo
do camarote do rei. É daqui que vêm os nomes dos partidos céle­
bres daquele tempo: os da «banda do rei», e os da «banda da
rainha» 1• A discussão, inflamando-se, suscitou folhetos. Os da
«banda do rei» quiseram divertir-se; foram troçados no Prote­
tazinho 2: quiseram meter-se a discorrer ; foram esmagados
pela Carta sobre a música francesa 3• Estes dois escritozinhos,
um de Grimm, outro meu, são os únicos que sobrevivem da
querela ; todos os restantes estão já mortos.
Contudo, o Protetazinho, que durante muito tempo teima­
ram mau grado meu em me atribuir, foi considerado uma brin­
cadeira, e não trouxe o menor desgosto ao seu autor ; ao passo
que ·a Carta sobre a música foi tomada a sério, e levantou
contra mim toda a nação, que se julgou ofendida na sua música.
A descrição do inacreditável efeito deste folheto seria digna da
pena de Tácito. Estava-se na ·época da grande questão entre
o Parlamento e o Clero. O Parlamento acabava de ser banido ;
a efervescência atingia o auge ; tudo ameaçava um próximo
levantamento. O folheto apareceu ; imediatamente todas as
outras questões foram esquecidas; só se pensou no perigo da
música francesa, e o levantamento fez-se apenas contra mim.
Foi de tal ordem que a nação nunca mais voltou a si comple­
tamente. Na corte apenas se hesitava entr·e a Bastilha e o exí­
lio, e a carta de prego teria seguido se Monsieur de Voyer não
houvesse feito sentir o ridí·culo da coisa. Quando descobrirdes
que o folheto •talvez tenha evitado uma revolução no estado,
julgareis sonhar. É todavia uma verdade bem real, que Paris
inteiro pode ainda atestar, visto que não haverá mais de quinze
anos que esta singular anedota ocorreu.

1 «Coin àu R oi» e «Coin àe la Reine».


2 «Le petit Prophéte.»
3 «Lettre sur la musique jrançaise.»

372
Se não atentaram contra a minha liberdade, não me pou­
param ao menos os insultos; a minha própria vida esteve em
perigo. A orquestra da ópera tramou uma honesta conspiração
para me assassinarem ,quando eu fosse a sair; por isso mesmo
me tornei mais assíduo na ópera ; e só muito tempo depois é
que soube ,que Monsieur Ancelet, oficial de mosqueteiros, que
era meu amigo, tinha desviado o efeito da conspiração, fazen­
do-me escoltar à saída do espectáculo sem eu o saber. A cidade
acabava de obter a direcção da ópera. O primeiro feito do pre­
sidente dCJ município foi retirar-me as entradas, e da mais
desonesta maneira possível, isto é, ordenando que mas recusas­
sem publicamente à minha passagem; de maneira que fui obri­
gado a comprar um bilhete de galeria, para não sofrer a afronta
de nesse dia voltar para trás. A injustiça era tanto mais revol­
tante quanto era certo que o preço que havia estipulado à mj.nha
peça, cedendo-a, era o das minhas entradas perpétuas; por­
quanto, embora tal ,c oisa constituísse um direito de todos os auto­
res, e que tal direito me coubesse a duplo título, não deixara de
o estipular expressamente na presença de Monsieur Duelos.
É certo que me enviaram, pelo caixa da ópera, cinquenta luíses
de honorários que não tinha pedido ; contudo, além de que estes
cinquenta luíses nem sequer perfaziam a soma que regularmente
me cabia, tal pagamento nada tinha de comum com o direito de
entrada, formalmente estipulado, e que dele era completamente
independente. Havia em semelhante procedimento um tal com­
plexo de iniquidade e de brutalidade, que não deixou de chocar
unànimemente o público, então na sua máxima animosidade con­
tra mim ; e tal espectador, que na véspera me havia insultado,
gritava bem alto no dia seguinte na sala que era uma vergonha
tirarem assim as entradas a um autor que bem as tinha mere­
cido, e que até as poderia reclamar para dois. De tal maneira
é verdadeiro o provérbio italiano de que ogn'un am,a la giustizia
in casa d' altruil.
Só tinha um caminho a seguir : era reclamar a minha obra,
visto que lhe retiravam a importância convencionada. Escrevi
para esse efeito a Monsieur d 'Argenson que se achava à frente da
administração da ópera, juntando à ,carta uma memória que
não sofria réplica, e que ficou sem resposta e sem efeito, do
mesmo modo que a carta. O silêncio deste homem injusto agas­
tou-me, e não contribuiu para aumentar a fraquíssima consi­
deração que sempre tive pelo seu carácter e pelos seus talentos.

1 «Cada qual gosta da justiça em casa dos outros.»

373
Desta maneira retiveram a minha peça na ópera, defraudan­
do-me da importância por que a havia cedido. Do fraco ao forte,
isto seria roubar ; do forte ao fraco, era apenas apropriar-se do
bem alheio.
Quanto ao produto pecuniário da obra, se bem que não
me tenha rendido a quarta parte do que teria rendido nas mãos
de outro, não deixou de ser suficientemente grande para me
pôr em condições de subsistir bastantes anos, ajudando a cópia,
que continuava a ir bastante mal. Recebi cem luíses do rei,
cinquenta de Madame de Pompadour pela representação de
Bellevue, em �que ela própria desempenhou o papel de Colin;
cinquenta da ópera, e quinhentos francos de Pissot, pela gra­
vura ; de sorte que o intermédio, ,que nunca me custou mais do
que cinco ou seis semanas de •trabalho, rendeu-me, apesar .da
minha desgraça e da minha e stupidez, quase tanto como mais
tarde me rendeu o Emílio, que me havia custado vinte anos de
meditação e três de trabalho. :Contudo, paguei a abastança
pecuniária que me proporcionou a peça com os desgostos infi­
nitos que ela me causou. Foi o embrião das invejas secretas
que só muito mais tarde estalaram. Depois do seu triunfo, não
vol'tei a notar nem em Grimm, nem em Diderot, nem em quase
nenhum dos homens de letras meus conhecidos, aquela cor­
dialidade, aquela franqueza, aquele prazer de me verem, que
até então julgava achar neles. Logo que apareCia em casa do
barão, a conversa deixava de ser geral. Reuniam-se em peque­
nos grupos, cochichavam ao ouvido, e eu ficava sàzinho sem
saber ·com ·quem falar. Suportei bastante tempo este afrontoso
abandono, e ao ver que Madame d'Holbach, indulgente e amá­
vel, me recebia sempre bem, suportei as indelicadezas do marido,
enquanto estas me pareceram suportáveis. Um dia, porém, sem
motivo, sem pretexto, e com tal brutalidade me atormentou
diante de Diderot, que não disse uma palavra, e diante de Mar­
gency, que muitas vezes me disse depois ter admirado a bran­
dura e a moderação das minhas respostas, que eu enfim expulso
de sua casa graças a este tratamento indigno, saí resolvido a
nunca mais nela entrar. Tal coisa não me impediu de falar
sempre dele e de sua casa com toda a deferência ; ao passo que
ele nunca se referia a mim senão em termos ultraj antes, de
desprezo, não me tratando senão por petit cuistre 1, mas sem
poder acusar-me de haver cometido para com ele, ou para com
alguém por ·quem ele se interessasse, falta alguma de qualquer

1 Pedantezito.

374
espécie. E aqui está como d 'Holbach acabou por confirmar os
meus vaticínios e os meus receios. Por mim, creio que os meus
ditos amigos me perdoariam que escrevesse livros, e livros exce­
lentes, porque tal glória não lhes era estranha ; mas o que não
puderam perdoar-me foi haver eu escrito uma ópera, nem o
triunfo brilhante que esta obra alcançou, porque nenhum deles
se achava nem em ,condições de percorrer a mesma carreira,
nem de aspirar às mesmas honras. O único acima de tal inveja
era Duelos, que até pareceu aumentar a sua estima por mim,
e me apresentou em ,casa de Mademoiselle Quinault, onde tantas
atenções, favores e carinhos encontrei, coisas que bem pouco
achara em casa de Monsieur d'Holbach.
Enquanto na ópera se apresentava o Bruxo da aldeia,
era o seu autor também discutido na Comédia Francesa,
mas um pouco menos afortunadamente. Como ·em sete ou oito
anos não havia podido fazer representar o meu Narciso nos
Italianos, tinha-me aborrecido deste teatro, em virtude do mau
desempenho dos actor·es no francês, e desejaria muito mais
dar a peça nos Franceses do que neles. Comuniquei o meu desejo
ao comediante La Noue, com quem tinha travado relações, e
que era, ·como se sabe, um homem de mer·ecimento, além de
autor. Narciso agradou-lhe, encarregou-se de o fazer represen­
tar sob anonimato, e entrementes arranjou-me entradas, ·que
me deram grande prazer, (pois que sempre preferi o Teatro
Francês aos outros dois. A peça foi recebida com aplauso, e
representada sem que se rev·elasse o autor ; tenho todavia
razões para crer que os .c.omediantes e muitas outras pessoas
não o ignoravam. Mademoiselle Gaussin e Mademoiselle Grand­
val desempenhavam os papéis de amorosas; e embora, em meu
entender, a compreensão do conjunto houvesse falhado, não
se pode dizer que a peça tivesse sido absolutamente mal repre­
sentada. !No entanto, fiquei ,surpreendido e comovido com a
indulgência do público, que teve a paciência de a ouvir calma­
mente de uma ponta à outra, e de suportar mesmo uma segunda
representação, sem trair o menor sinal de impaciência. Por
mim, aboneci-me tanto na primeira, que não pude permane­
cer até ao fim, e, saindo do teatro, entrei no café de Procópio,
onde encontrei IB:oissy e alguns outros, que provàvelmente se
haviam aborrecido como eu. Ali, fiz em voz alta o meu peccavi,
confessando-me humildemente ou altivamente o autor da peça,
e dizendo dela o que toda a gente dela pensava. Tal confissão
pública do autor de uma peça má que cai por terra foi muito
admirada, e pareceu-me muito pouço penosa. Achei até uma

375
compensação ao meu amor-próprio na coragem com que fiz
a confissão, e creio que nesta ocasião o orgulho de falar foi
maior do que teria sido a tola vergonha de me calar. Contudo.
como tinha a certeza de que a peça, embora gélida na repre­
sentação, se aguentava à leitura, mandei-a imprimir, e no
prefácio, que é um dos meus bons escritos, comecei a pôr os
meus princípios um pouco mais a descoberto do que o havia.
feito até então.
Em breve tive ocasião de os desenvolver por inteiro numa
obra de maior importância ; porque, penso eu, foi neste ano
ue 1753 que apareceu o prospecto da Academia de Dijon sobre
a Origem da desigualdade entre os homens 1• Impressionado
com esta grande questão, fiquei surpreendido que aquela Aca­
demia tivesse ousado propô-lo ; vis.to porém que tinha t�do
tal coragem, podia eu muito bem ter a de o tratar, e pus-me
ao trabalho.
Para meditar à minha vontade neste grande tema, fiz uma
viagem de sete ou oito dias a Saint-Germain, com Teresa, a
nossa hospedeira, que era uma excelente mulher, e uma sua
amiga. Considero este passeio um dos mais agradáveis da minha
vida. O tempo estava muito bonito ; aquelas excelentes criatu­
ras encarregaram-se de todos os precisos e da despesa; Teresa
distraía-se na sua companhia; e eu, sem me preocupar com
coisa alguma, aparecia às horas das refeições, divertindo-me
sem peias. Durante todo o resto do dia, embrenhado na
floresta, aí procurava, aí achava a imagem dos primeiros tem­
pos, cuja história orgulhosamente traçava ; abatia as pequenas
mentiras dos homens; ousava pôr a nu a sua natureza, seguir o
progresso dos tempos e das coisas que o desfiguraram, e compa­
rando o homem do homem com o homem natural, ousava mos­
trar-lhe no seu pretenso aperfeiçoamento a verdadeira origem
das suas misérias. A minha alma, na exaltação destas sublimes
contemplações, elevava-se até j unto da Divindade, e vendo dai
os meus semelhantes seguirem, na cega estrada dos seus precon­
ceitos, a dos seus erros, das suas desgraças, dos seus crimes,
gritava-lhes com uma voz fraca que eles não podiam ouvir :
Insensatos, que vos queixais permanentemente da natureza,
sabei que todos os vossos mal·es provêm de vós mesmos.
Destas meditações nasceu o Dis.curso sobre a Desigualdade 2,
obra que Diderot apreciou mais do que todos os meus outros

1 Origine de l'inégalité parmi les hommas.


2 Discours sur l'Inégalité.

376
escritos, e para a qual me deu conselhos que me foram muito
úteis\ mas que em toda a Europa só encontrou ;raros leitores
que a houvessem ·compreendido, e nenhum dos quais quis falar
dela. Tinha-a escrito para concorrer ao prémio, enviei-a por con­
seguinte, certo porém de antemão de que não o obteria, e saben­
do muito bem ·que não é para obras deste jaez que se fundam os
prémios académicos.
O passeio e a ocupação fizeram-me bem ao humor e à saúde.
Há muitos anos já que, atormentado pela minha retenção, eu me
havia confiado inteiramente aos médicos, os quais, sem me ali­
viarem do mal, tinham-me esgotado de forças e destruido o meu
temperamento. No regresso de Saint-Germain , achei-me com
mais forças e senti-me muito melhor. Segul esta indicação, e
resolvido a curar-me ou a morrer sem médicos e sem remédios,
disse-lhes adeus para sempre, e pus-me a viver o meu dia-a-dia,
permanecendo quieto quando não podia mexer-me, e andando
mal me achava com .forças para isso. A vida em Paris entre
pessoas pretensiosas era tão pouco do meu agrado; as cabalas
das pessoas de letras, as suas vergonhosas disputas, a sua pouca
boa fé nos livros, os seus modos categóricos na sociedade
eram-me ,tão odiosos ; achava tão pouca doçura, tão (Pouca
generosidade, tão pouca franqueza no próprio comércio dos
meus amigos, que, desgostoso com esta vida tumultuosa, come­
cei a desejar ardentemente ir instalar-me no campo, e como
visse que o meu mester me não permitia fazê-lo, aí corria a
passar ao menos as horas ;livres de que dispunha. Durante
vários meses, a princípio depois do jantar, ia passear sozinho
para o Bosque de Bolonha, meditando em temas de obras. e só
voltava à noite.
Como Gauffecourt, com quem me achava então extrema­
mente relacionado, tinha necessidade de ir a Genebra por causa
do emprego, propôs-me dar este passeio ; e eu acedi. Não me
achava muito bem para poder dispensar os cuidados da ama:

1 Na altura em que isto escrevia, nada suspeitava ainda da cons­


piração de Diderot e de Grimm, sem o que fàcilmente teria descoberto
como o primeiro abusava da minha confiança, para dar aos meus escritos
aquele tom duro e aquele ar sombrio que nunca mais tiveram quando ele
deixou de me dominar. O trecho do filósofo, que arranja argumentos
tapando os ouvidos para se tornar insensível às lamentações de um infeliz,
é da sua lavra, havendo-me ele fornecido outros ainda mais fortes, que
não pude resolver-me a utilizar. Atribuindo contudo este humor sombrio
ao que a Torre de Vincennes lhe havia causado, e que se revela em tão forte
dose no seu Clairval, nunca me veio à ideia supor nele a menor maldade.
- -
N. de J.-J. Rousseau.

377
decidiu-se que esta iria também no passeio, que a mãe guar­
daria a casa, e arranjadas todas as nossas coisas, partimos
todos os três de companhia ;no primeiro de Junho de 1754.
Devo assinalar esta viagem como a época da primeira expe­
riência que, até :à idade de quarenta e dois anos, que eu então
tinha, vibrou um golpe ao natural inteiramente confiante com
que nascera, e ao qual me havia sempre entregue sem
reserva e sem inconveniente. Tínhamos um coche vulgar, que
nos levava em pequeníssimas j ornadas, sempre com os mesmos
cavalos. Muitas vezes des'Cia e ia a pé. Mal tínhamos feito
metade do caminho, começou Teresa a manifestar a mais viva
repulsa em ficar só no coche com Gauffecourt, e quando eu,
apesar dos seus rogos, queria apear-me, ela apeava-se tam­
bém e caminhava a meu lado. Censurei-lhe durante bastante
tempo o capricho, e opunha-me mesmo completamente a ele,
até que Teresa se viu por fim obrigada a revelar-me a razão.
Julgava sonhar, caí das nuvens, quando sorube que o meu
amigo Gauffecourt, com mais de sessenta anos de idade,
podagro, impotente, gasto pelos prazeres e pelos gozos, diligen­
ciava desde que partíramos corromper uma pessoa que já não
era bonita nem nova, que era pertença do seu amigo, e isso
graças aos mais baixos e aos mais vergonhosos meios, até ao
ponto de lhe oferecer a bolsa, até ao ponto de a excitar com
a leitura de um livro adominável, e de lhe mostrar as infames
figuras de que este estava ·cheio. Teresa, indignada, atirou-lhe
de uma vez com o indecoroso livro pela porta fora, e eu soube
que no primeiro dia em que uma violenta enxaqueca me havia
obrigado a ir deitar-me sem cear, .tinha ele levado ,todo o
tempo em que se encontraram a sós com tentativas e mano­
bras mais dignas de um sátiro e de um bode do que de um,
homem honesto, a quem eu havia confiado a minha compa­
nheira e a minha própria pessoa. Que surpresa! que angústia
totalmente nova para mim! Eu, que até então havia julgado
a amizade inseparável de todos os isentimentos delicados e
nobres que faz·em todo o seu encanto, pela primeira vez na
vida me vi obrigado a associá-Ia ao desdém, e a retirar a minha
confiança e a minha amizade a um homem que estimo e de
quem me j ulgo estimado! O miserável escondia-me a sua tor­
peza. Para não expor Teresa, vi-me obrigado a poupá-lo ao
meu desprezo, e a recalcar no fundo do coração os sentimen­
tos 'que ele não devia conhecer. Doce e santa ilusão da ami­
zade! Gauffecourt foi o primeiro que levantou aos meus olhos

378
o teu véu. Quantas mãos cruéis o impediram depois disso de
voltar a descer!
Em Lyon, deixei Gauffecourt para tomar o caminho da
Sabóia, visto não poder resolver-me a passar novamente tão
perto de Mamã sem a rever. Revi-a ... Em que estado, meu
Deus! Que degradação! Que lhe restava da virtude primeira?
Era esta a mesma Madame de Warens, tão brilhante outrora,
a quem o cura de Pontverre me havia recomendado? Como
senti pungir-me o coração! Não lhe via outro remédio senão
mudar de país. !Reiterei-lhe vivamente, mas em vão, o empe­
nho que várias vezes lhe tinha mostrado nas minhas cartas,
de que ela viesse viver ·em paz comigo, que .queria consagrar
os meus dias e os de Teresa a fazer felizes os ,c;eus. Presa à
pensão de que nada tirava há muito tempo, embora lhe fosse
pontualmente paga, não me escutou. Presenteei-a ainda com
uma pequena parte da minha bolsa, bem menos do que deve­
ria, bem menos do que o teria feito se não e stivesse plena­
mente convencido de que ela não utilizaria um só soldo em
seu proveito. Durante a minha estada em Genebra, Mamã fez
uma viagem a Chablais, e veio ver-me a Grange-Canal. Fal­
tava-lhe o dinheiro para acabar a viagem; eu não tinha
comigo o que seria necessário; mandei-lho uma hora depois
por Teresa. Pobre Mamã! Devo ref·erir ainda este rasgo do seu
coração. Como última jóia só lhe restava um pequeno anel.
Tirou-o do dedo para o enfiar no de Teresa, que imediatamente
o devolveu ao dela, beijando aquela nobre mão que banhou
de lágrimas. Ah! era então a altura de pagar a minha dívida!
Devia abandonar tudo para a seguir, dedicar-me até à sua última
hora, e compartilhar da sua sorte, fosse ela qual fosse. Nada
disto fiz; distraído por outra afeição, senti afrouxar a que
tinha por ela, desesperançado de poder utilizá-la em seu benefí­
cio. !Chorei-a, e não a segui. Foi este o mais vivo e o mais cons­
tante dos remorsos •que senti em toda a minha vida. Mereci
por isso os terríveis castigos .que desde então não deixaram
de me acabrunhar; possam eles haver resgatado a minha ingra­
tidão! Tive-a na minha atitude; mas dilacerou-me suficien­
temente o coração para que alguma vez · e ste coração tenha
sido o de um ingrato.
Antes de partir de Paris, havia e,sboçado a dedicatória
do meu Discurso sobre a desigualdade. Terminei-a em Cham­
béri, e datei-a do mesmo sítio, pensando que, para evitar toda
e qualquer chicana, seria melhor não a datar de França, nem
de Genebra. Chegando a esta cidade, entreguei-me ao entu-

379
siasmo republicano que ali me havia levado. O acolhimento
que me fizeram aumentou este entusiasmo. Festejado, acari­
nhado em todos os estados, entreguei-me inteiramente ao zelo
patriótico, e, envergonhado de me achar excluído dos meus
direitos de cidadão em virtude da profissão de um culto dife­
rente da de meus pais, resolvi retomar abertamente este último.
Pensava que sendo o Evangelho o mesmo para todos os cris­
tãos, e o fundo do dogma só dUeren.te porque se metiam a expli­
car o que não se podia compreender, competia apenas ao sobe­
rano de cada pais fixar tanto o culto como este dogma ininteligí­
vel, e que por conseguinte era um dever do cidadão admitir o
dogma e seguir o culto prescrito pela lei. A convivência com;
os IEnciclopedistas, longe de abalar a minha convicção, havia-a
fortalecido, graças à minha aversão pelas discussões e pelos
partidos. O estudo do homem e do universo por .toda a parte
me havia mostrado as causas finais e a inteligência que as
dirigia. A leitura da Bíblia, e sobr·etudo a do Evangelho, a que
me dedicava há alguns anos, havia-me levado a desprezar as
vulgares e tolas interpretações .que a Jesus Cristo davam as
pessoas menos dignas de o compr·eender. Numa palavra , a filo­
sofia, ligando-me ao essencial da religião, havia-me libertado
daquela moxinifada de fórmulazinhas com que os homens a
têm obscurecido. Pensando que para um homem razoável não
havia duas maneiras de ser cristão, pensava igualmente que
tudo o que respeita à ordem e à disciplina era em cada país
da alçada das leis. Deste princípio tão sensato, tão social, tão
pacífico, e que tão cruéis perseguições me valeu, concluía-se
que, querendo eu ser ·cidadão, devia ser protestante, e regressar
ao culto instaurado no meu pais. A isso me resolvi; submeti-me
mesmo às instruções do pastor da paróquia onde morava, a
·qual era fora de portas. tApenas desejei não ser obrigado a
comparecer no consistório. Contudo, o édito e clesiástico era
formal a este respeito ; bem o quiseram derrogar a meu favor,
nomeando uma comissão de cinco ou seis membros para rece­
ber particularmente a minha profissão de fé. Infelizmente, o
ministro Perdriau, homem amável e bom, com o qual estava
relacionado, lembrou-se de me dizer que muito estimaria
ouvir-me falar nesta pequena assembleia. Tal expectativa ater­
rorizou-me tanto, que tendo estudado dia e noite, durante três
semanas, um pequeno discurso que havia preparado, quando
foi preciso recitá-lo atrapalhei-me ao ponto de não conseguir
dizer uma só palavra, fazendo figura do mais idiota colegial
na conferência. Os comissários falavam por mim, e e u resnon-

380
dia estupidamente sim e não; fui em seguida admitido à comu­
nhão, e reintegrado nos meus direitos de cidadão: como tal
fui inscrito · na lista dos guardas que são pagos apenas pelos
cidadãos e burgueses, e assisti a um conselho geral extraor­
dinário, para me submeter ao juramento do síndico Mussard.
Fiquei de tal maneira comovido com as bondades que o conse­
lho e o consistório me testemunharam nessa ocasião, asslm
como com o procedimento atencioso e cortês de todos os magis­
trados, ministros· e cidadãos, que apertado pelo bom Deluc,
que constantemente me assediava, e ainda mais pela minha
própria inclinação, só pensei em voltar a Paris para desfazer
o meu lar, regular os meus pequenos negócios, arrumar
Madame Le Vasseur e o marido, ou providenciar à sua subsis­
tência, ·e regressar com Teresa a Genebra e aqui me instalar
para o resto dos meus dias.
Tomada esta resolução, dei trégua às ocupações sérias para
me distrair com os meus amigos até ao momento de partir.
De todas estas distracções a que maior prazer me deu foi um
passeio de barco là roda do lago, na companhia de Deluc pai, a
nora, os dois filhos, e a minha Teresa. Gastámos sete dias na
volta, pelo mais lindo tempo do mundo. Oonservei viva a recor­
dação dos sítios que me haviam impressionado na outra mar­
gem do lago� e cuja descrição fiz, alguns anos mais tarde ,
na Nova Heloísa.
As principais pessoas com quem em Genebra entrei em
relações foram, além dos Deluc, de quem j á falei, o jovem
ministro Vernes, que já havia -conhecido em Paris, e a respeito
do qual fiz melhores vaticínios do que os que ele veio depois
a merecer; Monsieur Perdriau, então pastor de aldeia, hoje
professor de belas-artes, cuja sociedade, cheia de doçura e
amenidade, me será sempre agradável, embora ele .tenha jul­
gado de bom tom afastar-se de mim; Monsieur Jalabert, então
professor de física, depois conselheiro e síndico, a quem li o meu
Discurso sobre a desigualdade (mas não a dedicatória), e que
pareceu ficar entusiasmado com ele; o professor Lullin, com
quem mantive correspondência até ele morrer, e que me tinha
mesmo carregado de embrulhos de livros para a biblioteca; o
professor Vernet, que, como toda a gente, me voltou costas,
depois de lhe haver dado provas de dedicação e de confiança
que o deveriam impressionar, se esse teólogo se pudesse impres­
sionar -com qualquer coisa ; !Chappuis, empregado e sucessor
de Gauffecourt; Marcet de Mezieres, antigo amigo de meu pai,
e que se mostrou também meu amigo, mas que havendo anterior-

381
mente bem merecido da páttria, ao fazer-se autor dramático,
e pretendente aos Duzentos, mudou de princípios, e caiu no
ridículo antes de morrer. Mas de todos eles, aquele de quem
mais esperei foi Moulton, moço de grandíssimas esperanças,
graças aos seus talentos, ao seu ·espírito cheio -de fogo, que'
sempre amei, embora a sua conduta para comigo tenha sido
fre,quentemente equívoca, e tivesse relações com os meus
maiores inimigos, mas que, com tudo isso, não posso deixar de
olhar ainda como alguém ,que há-de um dia ser chamado a
defender a memória do seu amigo.
No meio destas distmcções, não perdi nem o goS'to nem
o hábito dos meus passeios solitários, e frequentemente dava
grandíssimas voltas pelas margens do lago, durante as quais
a minha cabeça, habituada ao trabalho, não permanecia ociosa.
Dirigia o plano já formado das minhas Instituições políticas,
de que em breve falarei ; meditava numa História do Valais,
num plano de tragédia em prosa, CUJO assunto, nem mais nem
menos o de Lucrécia, não me tirava a esperança de deitar por
terra os maldizentes, embora ousasse fazer aparecer ainda
esta infovtunada quando tal coisa já não é possível em teatro
algum francês. Ao mesmo tempo exercitava-me com o Tácito,
e traduzi-lhe o primeiro livro da história, que se encontrará
entre os meus papéis.
Depois de permanecer quatro meses em Genebra, regres­
sei a Paris no mês de Outubro, evitando passar por Lyon, para
me não encontrar no caminho com Gauffecourt. Como, segundo
os meus planos, só devia voltar para Genebra na Primavera
seguinte, .:retomei durante o Inverno os meus hábitos e as
minhas ocupações, a principal das quais foi rever as provas
do Discurso sobre a desigualdade, que estava a imprimir na
Holanda por conta do livreiro Rey, com quem acabara de tra­
var conhecimento em Genebra. Como a obra era dedicada à
República, e como a dedicatória podia não agradar ao Conselho,
resolvi esperar o efeito que ele faria ·em Genebra, antes daqui
volver. Tal efeito não me foi favorável, e a dedicatória, que
havia sido ditada pelo mais puro patriotismo, só me valeu ini­
migos no Conselho, é invejosos na burguesia. Monsieur Chouet,
então primeiro síndico, escreveu-me uma carta correcta, mas
fria, que se encontra nas minhas compilações, Maço A, n_.o 3.
Dos particulares, entre os quais Deluc e J<alabert, recebi
alguns cumprimentos ; e foi tudo: não notei que nenhum gene­
brino me ncasse reconhecido pelo zelo de coração que se sentia
nesta obra. Tal indiferença. escandalizou todos quantos nela

382
repararam. Lembro-me de ,que j antando um dia em Clichy,
em casa de Madame Dupin, com Grommelin, r·esidente da
República, e com Monsieur de Miron, este, em pleno jantar,
disse que o Conselho me era devedor de um presente pela obra,
e �que ficaria desonrado se o não fiz�esse. Grommelin, que era
um homenzinho sombrio, sordidamente mau, nada se atreveu
a responder na minha presença, mas teve uma horrivel careta
que fez sorrir Madame Dupin. A única vantagem que a obra me
trou�e. além da de haver satisfeito o meu coração, foi o titulo
de 'Cidadão, �que me foi dado pelos meus amigos, e depois, à sua
imitação, pelo público, e que posteriormente vim a perder por
de mais o haver merecido.
Tal insucesso não me haveria todavia dissuadido de exe­
cutar o projecto de retirar-me para Genebra, se motivos mais
fortes ao meu coração não tivessem concorrido para isso.
Madame d'Êpinay queria acrescentar ao castelo da Chevret!te
uma ala que lhe faltava, e fazia grandes despesas para a ter­
minar. Indo eu um dia com Madame d'Êpinay visitar as obras,
prolongámos o nosso passeio um quarto de légua mais longe,
até ao reservatório das águas do parque que confinava com a
floresta de Montmorency, e onde havia um lindo vergel, coin
uma cabana bastante desmantelada, a que chamavam a Hermi­
tage. Este local solitário e tão agradável já me havia i;mpres­
sionado, quando pela primeira vez o vira, antes da minha
viagem a Genebra. No meu entusiasmo escaparam-me estas
palavras: Oh! Madame, que deliciosa habitação! Aqui está um
asilo absolutamente indicado para mim. Madame d'Êpinay
não deu muita atenção às minha� palavras ; nesta segunda
viagem porém fiquei muito surpreendido vendo no lugar do
velho casebre uma casinha quase inteiramente nova, muito
bem dividida, e perfeitamente habitável para uma família de
três pessoas. Madame d'Êpinay tinha mandado fazer as obras
em segredo e com pouca despesa, desviando alguns materiais
e alguns operários das do castelo. Na segunda viagem, ao ver
a minha surpresa, disse-me : Meu urso, aqui tendes o vosso
asilo; fostes vós ·que o escolhestes, é a amizade que vo-lo ofe­
rece; espero que ele expulse de vós a cruel ideia de vos afas­
tardes de mim. Não creio que em meus dias me houv�esse sen­
tido mais vivamente, mais ;deliciosamente �comovido: reguei
com lágrimas a mão benfeitora da minha amiga, e se a partir
desse momento não fiquei vencido, fiquei extremamente aba­
lado. Madame d'Êpinay, que não queria ficar desiludida, instou
tanto, empregou tantos meios, 'tantas pessoas para me acos-

383
sarem, até ao ponto de para tal conquistar Madame Le Vasseur
e a filha, que por fim triunfou das minhas resoluções. Renun­
ciando a instalar-me na minha pátria, resolvi, prometi vir morar
para a Hermitage ; e enquanto esperávamos que a casa secasse,
teve Madame d'Épinay o cuidado de preparar os móveis, de modo
que tudo se achava p ronto para nela nos instalarmos na Prima­
vera seguinte.
Uma coisa que contribuiu grandemente para me decidir
foi o facto de Voltaire se achar instalado perto de Genebra.
Compreendi que semelhante homem irja ali revolucionar tudo ;
na minha pátria iria encontrar o tom, os modos, os costumes
que me faziam fugir de Paris, e os quais seria forçado a com­
bater incessantemente, não me restando senão escolher entre
tornar-me um insuportável pedante ou um cobarde e ,mau
cidadão. A carta que Voltaire me escreveu a respeito da minha
última obra deu-me azo a que insinuasse os meus receios na
resposta ; o efeito :que esta produziu confirmou-os. Desde então
considerei Genebra perdida, e não me enganava. Talvez devesse
ter ido fazer frente à tempestade, se me sentisse com talento
para isso. Mas que faria eu, só, tímido e falando muito mal,
contra um homem arrogante, opulento, apoiado pela conside­
ração dos grandes, de uma facúndia brilhante, e já então o
ídolo das mulheres e da mocidade ? Receei expor inutilmente
a minha coragem ao perigo ; escutei apenas o meu natural
pacífico, o meu amor ao repouso, o qual, se me enganou, ainda
hoje me engana no mesmo capítulo. Retirando-me para Genebra,
1teria podido evitar grandes desgraças a mim próprio ; mas
duvido que com todo o meu zelo ardente e patriótico houvesse
feito algo grande e útil ao meu país.
Tronchin, :que, pouco mais ou menos na mesma altura, se
estabelecera em Genebra, apareceu alg,um tempo depois em
Paris com as suas charlatanices, e levou daqui uma fortuna.
Quando chegou, veio visitar-me na companhia do cavaleiro
de Jaucourt. Madame d'Épinay desejava muito consultá-lo �m
particular, mas não era fácil furar através da multidão. Recorreu
a mim. Convenci Tronchin a ir visitá-la. Sob os meus auspícios,
encetaram assim relações que foram depois estreitando à minha
custa. Foi sempre este o meu destino : logo que aproximei um
do outro dois amigos que tinha em separado, nunca estes dei­
xaram de se unir contra mim. Se bem que na conspiração que
os Tronchin formavam então para dominar o seu pais todos
devessem odiar-me mortalmente, o doutor continuou todavia
a mostrar-se durante bastante tempo benevolente para comigo.

384
Escreveu-me mesmo depois de regressar a Genebra, propondo­
-me o lugar de bibliotecário honorário. A minha decisão porém
estava tomada, e o seu oferecimento não me abalou.
!Nessa ocasião voltei a casa de,. Monsieur d 'Holbach. O mot�vo
fora a morte da mulher, sobrevinda, assim como a de Madame
de Francueil, enquanto me achava em Genebra. Diderot, comu­
nicando-ma, falou-me da profunda aflição do marido. A sua
dor abalou-me o coração. Eu próprio lamentei vivamente a
amável senhora. Escrevi a este propósito a Monsieur d'Holbach.
Este 1triste acontecimento fez-me esquecer todas as suas ofen­
sas, e quando regressei de Genebra, e que ele próprio regressou
de uma viagem que, com Grimm e outros amigos, fizera pela
França para se distrair, fui visitá-lo, e continuei a fazê-lo até
partir para a Hermitage. !Quando na sua roda se soube que
Madame d'Êpinay, que ele ainda não visitava, ali me prepa­
rava um habitação, os sarcasmos choveram sobre mim como
saraiva, baseados ·em que, necessitando eu do incenso e das
diversões da cidade, não aguentaria. a solidão sequer quinze
dias. Sabendo do meu íntimo, deixei-os falar, e continuei na
minha. Monsieur d'Holbach não deixou de me ser útil 1 para
arrumar o velhote Le Vasseur, que tinha mais de oitenta anos, e
cuja mulher, sentindo-o pesar-lhe, não cessava de me pedir que
a desembaraçasse dele. Metemo-lo numa casa de caridade, onde
a idade e o desgosto de se ver longe da família o atiraram para
o túmulo mal havia lá chegado. A mulher e os outros filhos pouco
o choraram. Mas Teresa, que o amava ternamente, nunca pôde
consolar-se de o perder, e de ter consentido em que, tão perto
do fim, ele tivesse ido acabar longe dela os seus dias.
Pouco mais ou menos por esta altura recebi uma visita
que não esperava lá muito, se bem que se tratasse de um conhe­
cimento bastante velho. Refiro-me ao meu amigo Venture,
que me apareceu de surpresa uma bela manhã, quando eu
menos pensava em tal. Vinha com ele outro homem. Como
me pareceu mudado! Em vez das antigas graças, achei-lhe
um ar de crápula que me impediu de me abrir com ele. Ou os
meus olhos já não eram os mesmos, ou a devassidão havia-lhe

1 Aqui está um dos exemplos das partidas que a minha memória me


prega. Muito tempo depois de isto haver escrito, vim a saber, conversando
com a minha mulher acerca do velhote do pai, que não fora Monsieur
d'Holbach, mas sim Monsieur de ·Chenonceaux, então um dos administra­
dores do Hôtel-Dieu, quem o alojara. o facto havia-me tão completamente
passado da ideia, e a de Monsieur d'Holbach estava-me tão presente, que
·

eu iria jurar por este último.


- Nota de J.-J. Rousseau.

25
385
embrutecido o espírito, ou então todo o seu antigo brilho era
o da mocidade, que já perdera. Vi-o quase com indiferença, e
separámo-nos assaz friamente� Quando ele porém partiu, a
recordação das nossas antigas relações trom;;e -me tão viva­
mente à memória a dos meus verdes anos, tão docemente, tão
sensatamente consagrados àquela angélica mulher que não
estava agora nada menos mudada do que ele, as pequenas ane­
dotas daquele ditoso tempo, a romanesca jornada de Toup,,e ,
passada com tanta inocência e gosto entre aquelas duas encan­
tadoras raparigas, cujo único favor fora um beijo na mão, e
que, apesar disso, me havia deixado tão vivas, tão como­
ventes, tão duradoiras saudade s ; todos aqueles arrebatadores
delírios de um coração j ovem, que havia então sen:tido em toda
a sua força, e cujo tempo ereio ido para sempre ; todas aque­
las reminiscências me fizeram verter lágrimas sobre a minha
mocidade ·extinta, e sobre os seus entusiasmos doravante per­
didos para mim. Ah ! rquantas eu não teria vertido sobre o seu
serôdio e 'funesto renovo, se tivesse previsto os males que ele
me ia custar !
No Inverno que precedeu o meu afastamento, tive, antes
de deixar Paris, um prazer inteiramente a contento do meu
coração, e que eu gozei em toda a sua pureza. Palissot, aca­
démico de Nancy, conhecido graças a alguns dramas, acabava
de dar um em Lunéville, em presença do rei da Polónia. Apa­
rentemente, j ulgou agradar-lhe, representando, neste drama,
um homem que, de pena em punho, ousara medir-se com o rei.
Estanislau, que era generoso e não gostava da sátira, indig­
nou-se por assim ousarem ridicularizar alguém em sua pre­
sença. Por ordem do príncipe, o conde de Tressan escreveu a
D'Alembert, assim como a mim, para me informar de que a
intenção de Sua Majesrtade era que Monsieur Palissot fosse
expulso da sua Academia. A minha resposta foi pedir viva­
mente a IMonsieur de Tressan rque intercedesse junto do rei
da Polónia para obter o perdão de Monsieur Palissot. O perdão
foi concedido, e Monsieur de Tressan, ao comuntcar-mo em
nome do rei, aerescentava rque este facto ficaria inscrito nos
registos da Academia. Repliquei que tal coisa seria não tanto
conceder uma graça como perpetuar um castigo. A força de
insistir, ,consegui por fim que nada fosse mencionado nos regis­
tos, e que nenhum vestígio 'público subsistiria desta questão.
Tanto o rei como Monsieur de Tressan acompanharam tudo
isto de provas de estima e de consideração que me lisonjearam
extremamente, e eu senti nesta ocasião que a estima dos

386
homens que dela são propriamente dignos produz na alma um
sentimento bem mais doce e mais nobre do que o da vaidade.
Transcrevi na compilação as cartas de Monsieur de Tressan
com as minhas respostas, cujos originais se encontram no
Maço A, números 9, 10 e 11.
Sinto perfeitamente que se estas Memórias chegam um dia
a ver a luz do dia, sou eu o próprio que perpetuo aqui a memó­
ria de um caso, ,cujos vestígios queria apagar ; contudo, muitos
outros transmito mau grado meu. O grande objectivo do meu
cometimento, sempre presente aos meus olhos, o indispensá­
vel dever de o executar em toda a sua extensão, não me deixa­
rão desviar-me dele em virtude de fracas considerações' que
me afastariam do meu fim. Na estranha, na única situação em
que me encontro, sou por de mais devedor à verdade para além
dela dever o quer que seja a outrem. Para bem me conhe�er,
preciso conhecer-me sob todos os meus aspectos, bons e maus.
As minhas confissões estão necessàriamente associadas com as
de muitas pessoas : faço umas e outras com a mesma fran­
queza em tudo o que me diz respeito, sem j ulgar dever ter para
com quem quer que seja mais cautelas do que tenho para
comigo próprio, querendo contudo ter muito mais. Quero ser
sempre j usto e verdadeiro, dizer bem doutrem enquanto me for
possível, nunca dizer senão o mal que me concerne, e só
enquanto a isso for forçado. No estado em que me puseram,
quem é que tem o direito de exigir de mim mais? Não faço as
minhas ,confissões para que apareçam enquanto eu, ou qual­
quer das pessoas interessadas, formos vivos. Se eu fosse senhor
do meu destino e do deste escrito, ele só veria a luz do dia
muito tempo depois da minha morte e da da,quelas. Contudo,
os esforços que o terror da verdade leva os meus poderosos
opressores a fazerem para lhe apagarem os vestígios for­
çam-me, para as conservar, o fazer tudo o que o mais exacto
dever e a mais severa j ustiça me permitem. Se a minha memó­
ria devesse perecer comigo, preferia sofrer sem murmurar um
opróbrio injusto e passageiro, a comprometer alguém ; mas
visto ,que enfim o meu nome deve viver, devo procurar trans­
mitir com ele a memória do homem desditoso que o usou, tal
como ele realmente foi, e não como injustos inimigos se esfor­
çaram sem descanso por o pintar.

387
LIVRO NONO

impaci<ência de ir habitar na Hermitage não me con-


A
·

sentiu esperar pelo Verão ; e, logo que a casa se achou


pronta, dei-me pressa em partir, no meio da assuada
da panelinha holbáchica, que abertamente predizia que eu não
suportaria três meses de solidão, e que em breve me veriam
voltar, com a minha humilhação, para c ontinuar a viver com
eles em Paris. Por mim, que, fora do meu elemento há quinze
anos, me via prestes a reentrar nele, nem sequer prestava
atenção às suas chalaças. Desde que, mau grado meu, me havia
lançado na sociedade, nunca deiXara de ter saudades das
minhas queridas Charmettes, e da doce vida que ali levara.
Sentia ter nascido para o isolamento e para o campo ; era-me
impossível viver feliz alhures. [Em Veneza, na azáfama dos negó­
cios públicos, na dignidade de uma espécie de representação,
no orgulho dos projectos de subir ; em Paris, no ·turbilhão da
grande sociedade, na sensualidade das ceias, no brilho dos
espectáculos, nos fumos da gloriola, sempre a recordação dos
meus bosquezinhos, dos meus regatos, dos meus passeios soli­
tários me vinha distrair, contristar-me, arrancar suspiros e
desejos. Todos os trabalhos a ·que havia podido sujeitar-me, todos
os projectos de ambição, que, por acessos, haviam animado o
meu zelo, não tinham outro fim que não fosse o de um dia
obter os ditosos ócios campestres que, neste momento, me
gabava de alcançar. Sem conseguir a honesta abastança que
julgava a única maneira possível de mos proporcionar, pen­
sava, graças à minha situação particular, encontrar-me em
estado d e a dispensar, e poder chegar a o mesmo fim p or um
caminho totalmente oposto. Não tinha um soldo de rendi­
mento ; mas tinha um nome, talentos ; era sóbrio, e .tinha aca­
bado com as necessidades mais dispendiosas, todas as que
eram da opinião. Além disso, posto que preguiçoso, era no
entanto 1trabalhador quando queria sê-lo, e a minha preguiça
não era tanto a de um mandrião como a de um homem inde-

389
pendente, que só gosta de trabalhar quando lhe apetece.
A minha profissão de copista de .música não era brilhante nem
lucrativa ; mas era certa. Na sociedade olhavam com bons olhos
a coragem que tivera de escolhê-la. Podia contar com que o
trabalho não me faltasse, e trabalhando bem podia-me chegar
para viver. Dois mil francos que me sobravam do Bruxo da
aldeia e dos meus outros escritos eram um adiantamento para
me não achar em apertos, e várias outras obras que tinha na
forja prometiam-me, sem espoliar os livreiros, ajudas bastantes
para trabalhar à minha vontade, sem me fatigar muito, e até
aproveitando os lazeres dos passeios. O meu pequeno lar, com­
posto de três pessoas, todas ocupando-se proveitosamente, não
custava muito a sustentar. Enfim, os meus recursos, proporcio­
nados às minhas necessidades e aos meus desejos, podiam
razoàvelmente permitir-me viver uma vida feliz e perdurável,
entregue à que a minha inclinação me tinha feito escolher.
Podia ter-me lançado completamente do lado mais lucra­
tivo, e, em vez de sujeitar a minha pena à ·Cópia, consagrá-la
inteiramente a escritos �que, com o treino que havia adquirido
e que me sentia em estado de manter, podiam fazer-me viver
na abundância e até na opulência, por pouco que quisesse
associar .tramóias de autor à preocupação de publicar bons
livros. Compreendi no entanto que escrever para ter pão em
breve asfixiaria o meu génio e mataria o meu talento, que
existia menos na minha pena do que no meu coração, e que
havia nascido de uma maneira de pensar elevada e altaneira, a
única que podia alimentá-lo. Nada de vigoroso, nada de grande
pode sair de uma pena inteiramente venal. A necessidade, a
cobiça far-me-iam porventura trabalhar mais depressa do que
bem. Se a necessidade do êxi,to me não fizesse mergulhar nas
cabalas, ter-me-ia levado a dizer menos coisas úteis e verda­
deiras do que c oisas que agradassem à multidão, e podendo
ser um autor distinto, só viria a ser um escrevinhador. Não,
não : senti sempre que o estado de autor não era, não podia
ser ilustre e respeitável senão sob condição de não ser uma
profissão. É dificílimo pensar com nobreza quando se pensa
só para viver. Para se poder, para se ousar dizer grandes verda­
des, é preciso não depender do êxito próprio. Lançava os meus
livros em público com a certeza de haver falado por amor do
bem comum, sem me preocupar com o resto. Se a obra desa­
gradasse, tanto pior para aqueles que não queriam aproveitar
dela : por mim, não precisava da sua aprovação para viver. Se os

390
meus livros se não vendessem, a minha profissão podia alimen­
tar-me ; e era precisamente isso que os fazia vender.
Foi a 9 de Abril de 1756 que abandonei a cidade para
nunca mais nela habitar ; porque não considero habitação
algumas pequenas estadias ,que fiz depois em Paris, Londres
e outras cidades, mas sempre de passagem, ou sempre mau
grado meu. Madame d'Épinay veio esperar-nos aos três no seu
coche ; o ,caseiro carregou a minha pequena bagagem, e no
mesmo dia me instalei. Encontrei o meu pequeno retiro arran­
jado e mobilado com simplicidade, mas com asseio, e até com
gosto. A mão que havia emprestado os seus cuidados ao mobi­
liário tornava-o aos meus olhos de um preço inestimável, e eu
achava delicioso ser hóspede da minha amiga, numa casa esco­
lhida por ela, que ela mandara construir de propósito para mim.
Embora fizesse frio, e houvesse mesmo ainda neve, a terra
começava a reverdecer; viam-se violetas e primaveras ; as
árvores começavam a rebentar, e a própria noite em que che­
guei foi assinalada pelo primeiro canto do rouxinol, que se
ouvia quase ao pé da minha janela, numa mata pegada à casa.
Esque,cendo ao acordar, depois de um leve sono, a minha trans­
plantação, julgava-me ainda na rua de Grenelle, quando de
súbito aquele gorjeio me fez estremecer, e no meu entusiasmo
grito : Enfim, todos os meus votos se cumpriram ! A minha
primeira ocupação foi entregar-me à ;impressão dos objectos
campestres. Em vez de começar a aprestar os meus aposen­
tos, comecei a aprestar-me para os meus passeios, e não houve
em volta da casa um atalho, uma clareira, um bosquete, um
retiro que eu não começasse a percorrer logo no dia seguinte.
Quanto mais examinava este encantador refúgio, mais o sentia
feito para mim. Mais solitário do que selvagem, o lugar trans­
portava-me em pensamento ao fim do mundo. Havia ali daque­
las belezas impressionantes que não se encontram muito perto
da cidades ; e, ao vermo-nos ali transportados de súbito, não
nos julgaríamos a quatro léguas de Paris.
Após quatro dias entregues ao delírio campestre, pensei
em arrumar a papelada e regular as minhas ocupações. Como
sempre fizera, destinei as manhãs à cópia, e as tardes aos pas­
seios, munido do meu caderninho branco e do competente
lápis : pois que nunca tendo podido escrever e pensar à minha
vontade senão sub dio, não me seduzia mudar de método, e
_

contava verdadeiramente que a floresta de Montmorency,


quase à minha porta, seria doravante o meu gabinete de tra­
balho. Tinha começado vários escritos ; passei-lhes revista. Os

391
projectos eram magníficos ; na balbúrdia da cidade, porém, a
sua execução tinha até então sido muito lenta. Esperava ser
um pouco mais diligente quando me achasse menos distraído.
Julgo haver correspondido assaz bem a esta esperança, e para
um homem frequentemente doente, frequentemente na Che­
vre:tte, em Épinay, em Eaubone, no castelo de Montmorency,
frequentemente importunado em sua própria casa por curio­
sos sem nada que fazer, e sempre com metade do seu dia ocupado
a copiar, se se contarem e apreciarem os escritos levados a cabo
nos seis anos que passei tanto na Hermitage como em Mont­
morency, tenho para mim que se achará que se perdi o meu
tempo neste lapso não o foi ao menos na ociosidade.

Das várias obras que tinha na forj a , aquela em que ,há


mais tempo meditava, em que me ocupava corri mais prazer,
aquela em que queria trabalhar toda a vida, e que, em meu
entender, devia firmar a minha reputação, eram as Insti tui­
ções políticas. A primeira ideia tinha-a concebido havia uns
treze ou .catorze anos, quando em Veneza tivera tal ou qual
oportunidade de notar os defeitos do seu tão elogiado governo.
Desde então as minhas ideias tinham-se alargado bastante
graças ao estudo histórico da moral. Vira que tudo se prendia
radicalmente com a poUtica, e que, de qualquer forma que se
procedesse, nunca povo algum seria senão aquilo que a natu­
reza do seu governo o faria ser ; eis porque esta grande ques­
tão do melhor governo possível me parecia reduzir-se a esta
outra : Qual é a natureza do governo capaz de fazer de um
povo o mais virtuoso, o mais esclarecido, o mais sábio, o melhor
dps povos, enfim, tomando esta palavra no seu mais vasto sen­
tido? Julgava perceber que semelhante questão se relacionava
de muito perto com esta outra, se é que mesmo era dela dife­
rente : Qual é o governo que, por sua natureza, se conserva
sempre mais perto da lei? Daqui, o ·que é a lei ? e uma série de
interrogações da mesma importância. Via que .tudo isto me
levava a grandes verdades, úteis à felicidade do género humano,
mas sobretudo à da minha pátria, na qual, durante a viagem
que ai acabava de fazer, não encontrara as noções das leis e
da liberdade suficientemente justas, nem suficientemente
claras segundo os meus votos ; e julgara que esta maneira indi­
recta de lhas dar seria a mais própria a não magoar o amor­
-próprio dos seus membros, e levá-los a perdoarem-me o ter
eu podido a tal respeito ver um pouco mais longe do que eles.

392
Embora trabalhasse nela há já cinco ou seis anos, a obra
não se achava muito adiantada. Os livros desta ordem reque­
rem meditação, vagar, tranquilidade . Além disso escrevia-o;
como se diz, sem dar cavaco, e não quisera comunicar o
meu projecto a ninguém, nem sequer a Diderot. Receava
que parecesse demasiado atrevido para o século e para o pais
em ,que o escrevia, e que o terror dos meus amigos 1 me dificul­
tasse a sua execução. Ignorava ainda se o terminaria a tempo
e de maneira a poder aparecer ainda em minha vida. Queria,
sem constrangimento, poder dar ao meu tema tudo o que ele
me pedia ; inteiramente convencido de que, não possuindo eu o
humor satírico e não querendo nunca procurar aplicá-lo, seria
sempre irrepreensível em inteira equidade. Sem dúvida que
queria servir-me plenamente do direito de pensar, que me �cou­
bera por nascimento, respeitando contudo sempre o governo sob
o qual vivia, sem nunca desobedecer às suas leis, e por muito
cuidado que tivesse em não violar o direito das gentes, também
não queria por temor renunciar às suas regalias.
!Confesso mesmo que como estrangeiro, e vivendo em
França, achava a minha posição bastante favorável para ousar
dizer a verdade ; pois que sabia bem que, continuando, como
tencionava, a nada imprimir no �Estado sem autorização, não
tinha que dar contas a ninguém das minhas máximas e da sua
publicação em qualquer outra parte. Teria sido menos livre em
Genebra mesmo, onde o magistrado tinha o direito de censu­
rar o conteúdo dos meus livros, fossem eles onde fossem publi­
cados. Esta consideração tinha contribuído grandemente para
ceder às instâncias de Madame d'Épinay, e renunciar ao pro­
jecto de ir estabeler-me em Genebra. Como disse no Emílio,
sentia rque, a menos de se ser homem de tricas, quando quere­
mos rconsagrar livros ao verdadeiro be:mi da pátria, não os
devemos escrever na nossa.
O que me fazia considerar a minha posição mais feliz era
a persuasão em que estava de que o governo francês, embora
talvez me não olhasse com muito bons olhos, se sentiria hon-

1 Era sobretudo a prudente severidade de Duelos que me inspirava


tal recei o : porquanto, pelo que respeita a Diderot, não sei como é que todas
as minhas entrevistas com ele tendiam sempre a fazer-me mais satírico e
mordaz do que o meu natural me inclinava a sê-lo. Foi isto que me levou
a evitar consultá-lo sobre um cometimento em que queria pôr unicamente
toda a força do raciocínio, sem vestígio algum de humor e parcialidade.
Pode-se avaliar do tom com que eu havia tratado a obra pelo do contra'to
social, que dela foi tirado.- Nota de J.-J. Rousseau.

393
rado, se não em proteger-me, ao menos em me deixar tran­
quilo. Parecia-me que seria um rasgo político muito simples,
e contudo muito atilado, arrogar a si o mérito de tolerar o que
não se podia evitar ; pois que se me expulsassem de França, e
isto era tudo quanto tinham o direito de me fazer, nem por
isso eu deixaria de escrever os meus livros, e quiçá com menos
moderação ; ao passo que deixando-me sossegado conservariam
o autor como caução das suas obras, e mais do que isso, desfa­
ziam prejuízos bem enraizados no resto da Europa, abo­
nando-se com a reputação de terem um respeito esclareddo
pelo direito das gentes.
Os que de acordo com os acontecimentos julgarem que a
minha �confiança me enganou poderiam muito bem enganar-se
igualmente. !Na tempestade que me submergiu, os meus livros
foram um pre,texto, mas quem pretendiam atacar era a minha
pessoa. Preocupavam-se pouquíssimo com o autor, mas que­
riam perder Jean Jacques, e a pior coisa que nos meus escritos
acharam foi a honra que eles me podiam acarretar. Não preci­
pitemos o futuro. Ignoro se o que é para mim ainda um mis­
tério se tornará posteriormente clàro aos olhos do leitor. Sei
apenas que, se os meus princípios deviam valer-me os tratos
que sofri, escusaria de ser tão tarde vitima deles, porquanto
de todos os meus e scritos, aquele em que tais princípios são
mais ousados, mais audaciosamente expressos, já tinha apa­
recido, já tinha produzido os seus efeitos mesmo antes de me
ter retirado para a Hermitage, sem que ninguém houvesse pen­
sado não digo e m provocar-me, mas e m impedir só que fosse
a publicação da obra em França, onde ela se vendia tão publi­
camente como na Holanda. Depois disso, apareceu ainda a
Nova Heloísa com a mesma facilidade, ouso dizer com o mesmo
aplauso, e o que parece quase inacreditável, a profissão de fé
desta mesma Heloísa agonizante é exactamente a mesma do
Vigário saboiano. Tudo o que há de ousado no Contrato social
existia anteriormente no Discurso sobre a desigualdade; tudo
o �que há de ousado no Emílio existia anteriormente na Júlia.
Ora, estas coisas ousadas nenhum alarido levantaram contra
as duas primeiras obras ; não foram elas portanto que o levan­
taram contra as últimas.
Outro cometimento pouco mais ou menos do mesmo género,
mas cujo projecto era mais recente, tinha-me neste momento
mais ocupado : era o resumo da obra do abade de Saint-Pierre,
do qual não pude falar até aqui, por me achar arrastado pelo
fio da minha narração. A ideia fora-me sugerida, no meu

394
regresso de Genebra, pelo abade de Mably, não directamente,
mas por intermédio de Madame Dupin, que tinha um tal ou qual
interesse em mo fazer perfilhar. Madame Dupin havia sido uma
das três ou quatro lindas mulheres de Paris de quem o abade
de Saint-Pierre fora o menino bonito, e se não tinha tido a sua
preferência, tinha-a ao menos compartilhado com Madame
d'Áiguillon. Conservava um respeito e uma afeição pela memó­
ria do bom abade que os honrava a ambos, e o seu amor-próprio
sentir-se-ia lisonjeado se visse ressuscitar, graças ao secretário,
as obras malogradas do seu amigo. Tais obras não deixavam de
�onter coisas excelentes, mas tão mal ditas que era difícil aguen­
tar a sua leitura, e é surpreendente que o abade de Saint-Pierre,
que considerava os seus leitores como umas crianças grandes,
lhes falasse no entanto como se fossem homens, em virtude do
pouco cuidado que punha em fazer-se escutar por eles. Era por
isso que me haviam proposto semelhante trabalho, como sendo
útil em si mesmo e como convindo a um homem trabalhador
enquanto artífice, mas preguiçoso como autor, e o qual, achando
muito fatigante a tarefa de trabalhar, preferia, nas coisas de
seu gosto, esclarecer e desenvolver as ideias de outrem a criá-las.
Aliás, como me não limi:tava à função de tradutor, não me era
defeso pensar algumas vezes por mim mesmo, e podia dar uma
forma tal à minha obra, que muitas ideias importantes nela
passassem ainda com mais felicidade sob a capa do abade de
Saint-Pierre do que sob a minha. A empresa, de resto, não era
leve ; tratava-se nada menos do que ler , meditar, resumir vinte
e três volumes, difusos, confusos, cheios de superfluidades, de
repetições, de vistazinhas estreitas ou falsas, entre as quais era
preciso pescar algumas grandes, belas, e que davam coragem
para suportar o penoso trabalho. Eu próprio o teria muitas vezes
abandona do , se pudesse honestamente dar o dito por não dito ;
ao receber porém os manuscritos do abade, que, solicitado por
Saint-Lambert, o sobrinho daquele, o ,conde de Saint-Pierre, me
havia entregue, tinha-me de certo modo comprometido a utili­
zá-los, e seria necessário ou restitui-los, ou •t ratar de tirar partido
deles. Nesta última intenção havia trazido os manuscritos para
a Hermitage, contando ser a primeira obra em que emp_regaria
os meus vagares.
Meditava numa terceira, cuja ideia devia a certas observa­
ções feitas sobre mim próprio, e sentia-me com tanto mais cora­
gem para a começar quanto era certo ter razão para esperar
escrever um livro verdadeiramente útil aos homens, e até um
dos mais úteis que lhe poderiam oferecer, se a sua ex,e cução

395
correspondesse ao plano que havia traçado. Tem-se notado que
no decurso da sua vida a maioria dos homens são disseme­
lhantes por vezes deles próprios, e parecem transformar-se em
homens inteiramente diferentes. Não era para assentar numa
coisa tão conhecida que eu queria fazer um livro: tinha um
objectivo menos gasto e mesmo mais impor•tante; era.procurar
as causas de tais variações, e de me interessar por aquelas que
dependem de nós, para mostrar coJ;Uo elas podem ser dirigidas
por nós próprios, de maneira a tornarmo-nos melhores e mais
confiantes em nós. Porque, sem dúvida, é mais difícil ao homem
de bem resistir aos desejos completamente formados que deve
vencer, do que prevenir, mudar ou modificar esses mesmos dese­
jos na sua origem se estiver em estado de a ela remontar.
Um homem tentado resiste uma vez porque é forte, e sucumbe
uma outra vez porque é fraco; se fosse o mesmo que dantes
não teria sucumbido.
Sondando-me a mim mesmo, e procurando nos outros a
que eram devidas estas diferentes maneiras de ser, achei que
dependiam ·em grande parte da impressão anterior dos objectos
exteriores, e que, modificados constantemente pelos nossos sen­
tidos e pelos nossos órgãos, trazíamos, sem em tal reparar, o
efeito dessas modificações nas nossas ideias, nos nossos senti­
mentos, nas nossas próprias acções. As numerosas e impressio­
nantes observações que havia recolhido estavam acima de toda
e qualquer discussão, e, graças aos seus princípios físicos, pare­
ciam-me indicadas para fornecer um regime exterior, que,
variando segundo as circunstâncias, podiam pôr ou manter a
alma no estado mais favorável à virtude. De quantos desvios
salvaríamos a razão, quantos vícios impediríamos de nascer se
soubéssemos forçar a economia animal a favorecer a ordem
moral que ela com tanta frequência perturba! Os climas, as
estações, os sons, as cores, a obscuridade, a luz, os elemen�os,
os alimentos, o barulho, o silêncio, o movimento, o repouso,
tudo age sobre a nossa máJquina, e por conseguinte sobre a nossa
alma; tudo nos oferece mil ensejos quase garantidos para
em sua origem governarmos os sentimentos por que nos deixa­
mos dominar. Tal era a ideia fundamental cujo esboço já havia
lançado ao papel, e da qual esperava um efeito tanto mais
seguro para as pessoas de bem, que, amando sinceramente a
virtude, desconfiam da sua fraqueza, quanto era certo me
parecer fácil escrever um livro agradável de ler, como o era de
compor. No entanto trabalhei muito pouco nesta obra, cujo
título era a Moral sensitiva, ou o Materialismo do sages. Distrac-

396
· ções, cuja causa se conhecerá dentro em pouco, impediram-me
de me ocupar dela, e saber-se-à também qual foi a sorte do meu
rascunho, que se liga com a minha mais do que poderia parecer.
Além de tudo isto, meditava há já algum tempo num sis­
tema de educação, de que a pedido de Madame de Chenon­
ceaux, a quem a que o marido dava ao filho aterrorizava, me
incumbira. A autoridade da amizade fazia com que tal objecto,
embora em si mesmo menos de meu gosto, me interessasse mais
que todos os restantes. Eis porque, de todos os temas de que
acabo de falar, este é o único que levei até ao fim. O que tinha
em vista trabalhando nele, parecia merecer ao autor outro des­
tino. Não nos antecipemos porém a este respei>to. No prosse­
guimento deste escrito não pouco serei forçado a falar nele.
·Estes diversos projectos ofereciam-me todos assunto de
meditação para os meus passeios: porque como creio havê-lo
dito, só caminhando posso meditar; logo que paro, deixo de
pensar, e a minha cabeça só me anda para a frente com os
pés. No entanto, tivera a precaução de me munir também
de um trabalho de gabinete para os dias de chuva. E.ra o
Dicionário de música, cujos materiais dispersos, mutilados,
informes tornavam necessário r-efazer a obra quase de novo.
Trouxera alguns livros de que para isso precisava; tinha passado
dois meses a tirar notas de muitos outros que na Biblioteca Real
me haviam emprestado, alguns dos quais me autorizaram
mesmo a trazer para a Hermitage. ffi:is as provisões para com­
pilar em casa, quando o tempo não me permitisse sair, e me
aborrecesse de copiar. Este plano convinha-me tanto que dele
aproveitei, tanto na Hermitage como em IMontmorency, e até
depois em Motiers, onde terminei aquele trabalho ao mesmo
tempo que trabalhava noutros, achando sempre que um câm­
bio de obras é um verdadeiro repouso.

Durante algum tempo segui com bastante exactidão a dis­


·tribuição que havia prescrito a mim mesmo, e dei-me muito
bem; quando porém o Verão trouxe com ·mais frequência
Madame d'Épinay a Épinay, ou à Chevrette, achei que as aten­
ções que a princípio nada me custavam, ;mas com as quais eu não
entrara em linha de conta, transtornavam bastante os ;meus
outros projectos. Já disse que Madame d'Épinay tinha amabil1s­
simas qualidades; amava bastante os amigos, servia-os com todo
o desvelo, e não poupando por amor deles nem o seu tempo ne;m
os seus cuidados, merecia bem com toda a certeza que em com­
pensação eles fossem atenciosos para com ela. Eu tinha cum-

397
prido até então este dever sem dar por ele ; mas por fim
compreendi que carregava uma cadeia cujo peso só a amizade
me impedia de sentir : tinha agravado tal peso com a minha
repugnância pelas reuniões numerosas. :Madame d'Épinay
valeu-se dela para me fazer uma proposta que parecia con­
vir-me, mas que lhe convinha mais a ela. Era mandar-me avi­
sar sempre que se �encontrasse só, ou quase. Concordei, sem ver
com o que me comprometia. Daqui resultou que passei a visi­
tá-la não às minhas horas, mas às dela, e que nunca mais tive
a cer�teza de poder dispor de mim um úntco dia. Tal embaraço
modificou bastante o prazer que até ali tinha em ir visitá-la.
Achei 'QUe aquela liberdade que Madame d'Épinay tanto me
havia prometido só me era concedida sob condição de nunca
dela me aproveitar, e uma ou duas vezes que tentei fazê-lo,
tantos r�e cados, tantos bilhetes, tantos alarmes houve a res­
peito da minha saúde, que vi bem que só a desculpa de estar
a valer de cama podia dispensar-me de acorrer à primeira pala­
vra sua. Forçoso era sujeitar-me a semelhante jugo : fi-lo, e
até de muito boamente para um tão grande inimigo da depen­
dência como eu era, visto que a afeição sincera que por Madame
d'Épinay tinha me impedia em grande parte de sentir o grilhão
que se lhe juntava. Madame d'Épinay preenchia também como
podia as lacunas que a ausência da sua corte ordinária provo­
cava nas suas distracções. Era para ela um fraquíssimo remé­
dio, mas que ainda assim valia mais do que uma solidão abso­
luta, a qual não podia suportar. No entanto, 'tinha com que a
encher bem mais fàcilmente, desde que quisera tentar a lite­
ratura 'e que se lhe tinha metido na cabeça escrever à força
romances, cartas, comédias, contos e outras frioleiras que tais.
Mas o que a divertia não era tanto escrevê-las como lê-las ; e
se lhe acontecia gatafunhar a seguir duas ou três páginas, pre­
cisava, ao fim deste enorme trabalho, contar ao menos com
dois ou três auditores benévolos. Só graças ao favor de qualquer
outro �eu tinha a honra de ser incluído no número dos eleitos.
Só, quase nunca contava coisa nenhuma no quer que fosse ; e
isto não somente na sociedade de Madame d'Épinay, como na
de Monsieur d'Holbach, e onde quer que Monsieur Grimm desse
o tom. A minha insignificância convinha-me perfeitamente em:
tudo o que não fosse conversas a sós, nas quais não sabia que
atitude tomar, pois que não ousava falar de uteratura, da qual
me não competia julgar, nem de galantaria, visto ser muito
tímido e mais do que a morte recear o ridículo de fazer de velho
galante ; além de que tal ideia nunca me ocorreria junto de Ma-

398
dame d'Épinay e nem talvez uma só vez me ocorresse em toda
a vida, ainda quando a passasse inteiramente a seu lado: não
que sentisse qualquer espécie de repugnância pela sua pessoa;
pelo ·contrário, amava-a porventura /demasiado. <Como amigo,
para poder amá-la como amante. Sentia prazer em vê-la, em
conversar com ela. A sua conv·ersa, ainda que muito agradável
em sociedade, era árida na intimidade; a minha, que não era
mais brilhante, não lhe trazia grande ajuda. Envergonhado com
um silêncio tão prolongado, esforçava-me por animar a conver­
sação; e ·embora esta muitas vezes me fatigasse, nunca me abor­
recia. Comprazia-me imenso em tributar-lhe pequenas aten­
ções, em dar-lhe pequenos beijos muito fraternos, que quanto
a ela me não pareciam mais sensuais : era tudo. Madame d'Épi­
nay era muito magra, muito branca, o peito raso como a palma
da mão. Bastaria este defeito para me gelar: nunca o meu
coração nem os meus sentidos conseguiram ver uma mulher
em alguém que não tivesse seios, e outras coisas que será inútil
relatar sempre me fizeram esquecer junto dela o seu sexo.
Tendo assentado na minha resolução acerca de uma sujei­
ção necessária, entreguei-me a esta sem resistência e, pelo
menos durante o primeiro ano, achei-a menos onerosa do que
havia esperado. Madame d'Épinay, que de ordinário passava
quase todo o Verão no campo, só aqui passou uma parte deste,
quer porque os seus negócios a retivessem mais em Paris, quer
porque a ausência de Grimm lhe iornasse menos agradável a
estadia na Chevrette. Aproveitei os momentos em que ela se
achava fora, ou aqueles em que havia muita gente, para gozar
da minha solidão com Teresa e a mãe, de maneira a sentir-lhe
bem o preço. 'Embora há já alguns anos costumasse ir com bas­
tante frequência para o -campo, quase que o não gozava, e tais
passeios, sempre na companhia de gente pre_tensiosa , sempre
estragados pelo pouco à-vontade, não faziam mais que excitar
em mim o gosto dos prazeres rústicos, cuja imagem entrevia
mais de perto apenas para melhor sentir como deles me achava
privado. Estava tão farto de salões, de repuxos, de bosquezi­
nhos, de canteiros, assim como das mais aborrecidas pessoas
que mostram tudo isto; estava tão cansado· de folhetos, de
cravos, de «tris» 1, de nôzinhos, de tolos ditos de espirita, de
insulsas denguices, de pequenas frioleiras e de grandes ceias,
que quando deitava o rabo do olho para uma simples e pobre
moita de espinheiros, uma sebe, uma granja, um prado; quando,

1 Jogo de cartas para homens. - N. do T.

399
ao atravessar um povoado, aspirava os vapores de uma boa
omeleta ·com c·erefólio ; quando ouvia ao longe o rústico refrão
da canção das rendeiras, mandava ao diabo o vermelhão, e os
folhos, e o âmbar, e chorando o jantar caseiro e o vinho da
região, de boa vontade teria ido ao focinho do Sr. Chefe e do
Sr. Mordomo que me faziam jantar às horas a que ceio, cear
às horas a que quero dormir ; mas sobretudo ao dos Srs. Cria­
dos, que ·com os olhos devoravam o que tinha no prato, e, sob
pena de morrerem de sede, me vendiam o vinho avariado dos
patrões dez vezes mais caro que o melhor que poderia pagar
na taberna.
Eis-me por fim, pois, em minha casa, num asilo agradável
e solítário, senhor de aí passar os meus dias naquela indepen­
dência de vida igual e tranquila, para a qual sentia .ter nascido.
Antes de contar o e feito que este estado, tão novo para mim, teve
sobre o meu coração, convém que recapitulemos as suas afei­
ções íntimas, para ·que melhor se possa seguir nas suas causas
o progresso destas recentes modificações.

Considerei sempre o dia em que me uni à minha Teresa


como aquele que fixou o meu ser moral. Tinha necessidade de
uma afeição, visto que enfim aquela que deveria bastar-me
tinha sido tão cruelmente quebrada. A sede de felicidade não
se extingue no coração do homem. Mamã envelhecia e envi­
lecia-se. Estava provado que já não poderia ser feliz cá na terra.
Restava procurar uma felicidade que me estivesse indicada,
visto ter perdido toda e qualquer esperança de jamais compar­
tilhar da sua. Durante algum tempo errei de ideia em ideia e
de pro}ecto ·em projecto. A minha viagem a Veneza ter-me-la
lançado nos negócios públicos, se o homem com quem ia meter­
-me possuísse o senso comum. Desanimo fàcilmente, mo rmente
nas empresas difíceis ·e de largo fôlego. O insucesso desta des­
gostou-me de qualquer outra, e encarando, segundo a minha
velha máxima, os objectos longinquos como engodos de papalvo,
resolvi passar a viver doravante o meu dia-a-dia, nada mais
vendo na vida que pudesse tentar-me a fazer qualquer esforço.
Foi precisamente nessa altura que nos conhecemos. O carác­
ter brando desta boa rapariga pareceu-me convir tanto ao meu,
que me uni a ·ela por uma af·eição à prova do tempo e dos
erros, e tudo o que teria podido quebrá-Ia não fez mais que
aumentá-la. Ver-se-á a força de semelhante afeição mais para
diante, quando ·eu revelar as feridas, os dilaceramentos com
que ela me pungiu o coração no ponto culminante das minhas

400
misérias, sem que nunca, até à altura em que isto escrevo, me
tenha escapado com quem quer que seja uma só palavra de
mágoa.
Quando se souber que depois de haver tudo feito, tudo
afrontado para me não separar dela, que, depois de vinte e cinco
anos passados na sua companhia, acabei em idade avançada,
a despeito da sorte e dos homens, por desposá-la sem ela o
esperar nem o solicitar, sem compromisso nem promessa alguma
da minha parte, acreditarão que um furioso amor, havendo-me
transtornado a cabeça desde o primeiro dia, não fez mais que
levar-me gradualmente (à <última extravagância, e acreditá­
-lo-ão tanto mais ainda, quando se conhecerem as razões par­
ticulares e fortes que deveriam impedir-me de alguma vez a tal
chegar. Que pensará pois o leitor quando, em toda a verdade,
que ele agora deve conhecer em mim, eu lhe disser que, desde
o primeiro momento em ,que a vi até ao dia de hoje, nunca
senti a menor centelha de amor por ela, que nunca senti mais
desejo de a possuir do que possuir Madame de Warens, e que
as necessidades dos sentidos, que junto dela satisfiz, foram para
mim unicamente as do sexo, sem nada terem de especial para
o indivíduo? Julgará que constituído de maneira diferente de
qualquer outro homem, fui incapaz de sentir o amor, pois que
nunca este entrou nos sentimentos que me uniam às mulhe­
res que me foram mais queridas. Paciência, leitor meu ! apro­
xima-se o momento fatal em que não tereis poucas razões para
vos sentirdes desiludido.
Já sabem que eu me repito_ ; é preciso. A primeira, a maior,
a mais forte, a mais inextinguível das minhas necessidades con­
tinuava a existir inteira no meu coração ; era a necessidade de
uma companhia íntima, tã:o íntima quanto fosse possível ; era
sobretudo por isto que me era necessário um mulher de prefe­
rência a um homem, uma amiga de preferência a um amigo.
Esta singular necessidade era de tal ordem, que a mais estreita
união dos corpos ainda lhe não bastava: ser-me-ia necessário
duas almas no mesmo corpo ; sem isso sentia um vazio. Jul­
guei-me chegado ao momento de nunca mais o sentir. Esta
rapariga, amável, graças a mil eX!celentes qualidades, e então
graças mesmo à sua figura, sem sombra de al"tiHcio, nem de
coqueteria, teria limitado a ela só a minha existência, se eu
houvesse podido limitar a sua a mim, como o esperava. Nada
tinha a recear por parte dos homens; tenho a certe za de ser
o único que ela verdadeiramente amava, e os seus calmos sen­
tidos não lhe pediram de maneira nenhuma outros homens,


401
mesmo quando sob este aspecto eu deixel de o ser para ela. Eu
não tinha família ; ela tinha, e a sua família, na qual todos
os feitios diferiam demasiado do seu, não se revelou de molde
a eu dela poder fazer a minha família. Nisto residiu a primeira
causa da minha infelicidade. O que não teria eu dado para me
sentir filho da mãe de Teresa ! Fiz tudo para o conseguir, e não
pude levá-lo a cabo. /Bem diligenciei eu unir todos os nossos
interesses ; tal coisa foi-me impossível. ':Madame Le Vasseur
arranjava sempre outros interesses diferentes dos meus, con­
trários aos meus, e até aos da filha, que já dos meus se não
achava separada. Ela, os outros filhos e os netos transforma­
ram-se noutras tantas sanguessugas, e o menor mal que faziam
a Teresa era roubá-la. Acostumada a ceder, mesmo às sobri­
nhas, a pobre rapariga deixava-se espoliar e dominar sem dizer
palavra ; e eu via �com mágoa que exaurindo a minha bolsa
e as minhas lições, nada fazia por ela que lhe pudesse apro­
vettar. Tentei separá-la da mãe ; opôs-se sempre. Respeitei a
sua oposição, e mais a amava por o fa�er; mas a sua negativa
nem por isso redundava menos em seu prejuízo e no meu. Entre­
gue à mãe e aos seus, era mais deles do que de mim, mais do
que dela própria. A avidez dos seus não lhe foi tão ruidosa quão
perniciosos lhe foram os seus conselhos. Se, enfim, graças ao
seu amor por mim, se, graças ao seu bom natural, ela não foi
inteiramente subjugada, foi-o ao menos o bastante para, em
grande parte, impedir o efeito das boas máximas que eu me
esforçava por lhe inspirar; foi-o o bastante para que, de qual­
quer modo que eu me tivesse havido, nós continuássemos a ser
sempre dois.
Eis a razão por que, numa afeição sincera e reciproca, na
qual eu havia posto toda a ternura do meu coração, o vazio
deste coração nunca se achou 'todavia perfeitamente cumulado.
Os filhos, graças aos quais o poderia ter sido, vieram ; o que
foi pior ainda. Tremi de os confiar a �esta familia mal educada,
para por ela serem ainda mais mal educados. Os riscos da
educação das crianças da Roda eram muito menores. Seme­
lhante razão da decisão 'QUe tomei, mais forte que todas as
outras que enunciava na minha carta a Madame de Francueil,
foi todavia a única que não ousei dizer-lhe. Preferia que a
minha tão grava falta fosse menos desculpada, e poupar a
família de uma pessoa que amava. Pelos costumes do desgra­
çado irmão, pode-se porém considerar se, apesar do que se
disse, eu devia alguma vez expor os meus filhos a receberem uma
educação semelhante à dele.

402
Como não podia fruir em toda a sua plenitude esta íntima
sociedade de que necessitava, buscava-lhe sucedâneos que lhe
não preenchiam o vazio, mas que rrio faziam sentir menos. ;Na
falta de um amigo que sé. me desse inteiramente, eram-me
necessários amigos cujo estimulo vencesse a minha inércia: foi
assim que cultiv·ei, que estreitei as minhas relações com Diderot,
com o abade de Gondilla;c, que travei novas, e ainda mais estrei­
tas, com Grimm, que, enfim, graças àquele deplorável discurso,
cuja história ,contei, me achei, sem em tal pensar, novamente
atirado para a literatura, de que me julgava liberto para sempre.
A minha estreia conduziu-me por uma nova estrada a um
outro mundo intelectual, cuja simples e soberba economia não
pude ·considerar sem entusiasmo. Em breve, à força de me
absorver nele, não vi mais que ·erro e loucura na doutrina dos
nossos sábios, opressão · e miséria na nossa ordem social. Na
ilusão do meu tolo orgulho, julguei-me destinado a fazer desa­
parecer todos estes prestígios; e supondo que, para me fazer
ouvir, era necessário pôr a minha conduta de acordo com os
meus princípios, adoptei os modos singulares que não me con­
sentiram seguir, cujo exemplo os meus pretensos amigos não
me puderam perdoar, ·que a princípio me tornaram ridículo, e
que por fim me teriam tornado respeitável, se me tiv·esse sido
possível persistir neles.
Até ·esta altura eu tinha sido bom: desta altura por diante
tornei-me virtuoso, ou ao menos um apaixonado da vir,tude.
Tal paixão tinha-me começado pela cabeça, mas havia-me pas­
sado ao coração. O mais nobre orgulho nele germinou sobre
os destroços da vaidade arrancada. Não representava: tornei-me
com efeito tal como pare,cia, e durante quatro anos pelo menos
que esta exaltação durou em toda a sua força, nada de grande
e de belo pode entrar num coração de homem de que eu não
fosse capaz de mím para ·com o céu. Eis donde nasc·eu a minha
súbita eloquência ; eis donde se espalhava nos meus primeiros
livros aquele fogo verdadeiramente celeste que me abrasava, e
de ,que durante quar·enta anos não havia chispado a menor
centelha, porque ainda se não tinha ateado.
Eu achava-me v·erdadeiramente transformado ; os meus
amigos, os meus conhecidos não me reconheciam. Deixara de
ser aquele homem tímido, mais envergonhado que modesto, que
não se atrevia a aparecer nem a falar ; a quem um gracejo
desconcertava, a quem um olhar de mulher fazia corar. Auda­
cioso, altivo, intrépido, por toda a parte ostentava uma con­
fiança tanto mais !firme quanto ·era certo ,esta ser simples e

403
residir mais na minha alma do que no meu exterior. O desprezo
que as minhas profundas meditações me haviam inspirado pelos
costumes, pelas máximas e os preconceitos do meu século, torna­
vam-me insensível ao escárnio daqueles que os possuíam, e es­
magava com as minhas sentenças os seus ditinhos espirituosos
como esmagaria um insecto entre os dedos. ,Que mudança ! Paris
inteiro repetia os ásperos e mordentes sarcasmos daquele mes­
mo homem que, dois anos antes e dez anos depois, nunca soube
achar a coisa que tinha a dizer, nem a palavra que devia em­
pregar. Procure-se qual seria o estado do mundo mais contrário
ao meu natural, e achar-se-á que era este. Recorde-se um
daqueles curtos momentos da minha vida, em que me transfor­
mava noutra pessoa e deixava de ser eu mesmo ; na altura a
que me refiro tais momentos existiam ainda: em vez porém
de durar seis dias, seis semanas, este durou perto de seis anos,
e duraria porventura ainda, não fora as circunstâncias parti­
culares que o fizeram cessar e me re�tituíram à natureza,
acima da qual me havia querido elevar.
Tal mudança começou logo que deixei Paris, e o espectáculo
dos vícios da grande cidade deixou de alimentar a indignação
que me havia inspirado. Quando deixei de ver os homens, deixei
de os desprezar ; quando deixei de ver os maus, deixei de os
odiar. Pouco feito para o ódio, o meu coração não fez mais que
deplorar a sua miséria, sem distinguir a sua maldade. Tal
estado mais brando, mas muito menos sublime, em breve afrou­
xou o ardente entusiasmo que durante tanto tempo me havia
arrebatado ; e sem se dar por isso, nem eu próprio quase dar
por isso, tornei-me novamente receoso, complacente, tímido,
numa palavra, o mesmo Jean Jacques que dantes era.
Se a revolução não tivesse feito mais do que restituir-me
a mim mesmo, e se ficasse por aí, bem ia tudo; infelizmente,
porém, foi mais longe, e ràpidamente me arrastou para o outro
extremo. Desde então a minha alma abalada não fez mais que
passar pela linha de repouso, e as suas oscilações constante­
mente renovadas nunca lhe permitiram ali parar. Entremos
no pormenor desta segunda revolução: época terrível e fatal
de um destino que não tem exemplo entre os mortais.

Como éramos apenas três no nosso retiro, o descanso e a


solidão deviam naturalmente estreitar a nossa amizade. Foi o
que se passou entre Teresa e mim. Debaixo das sombras passá­
vamos a sós horas encantadoras, cuja doçura nunca tanto
havia apreciado. Também ela me pareceu apreciá-la ainda mais

404
do que o havia mostrado até então. Abriu-me o coração sem
reserva, e contou-me sobre a mãe e a família coisas que durante
muito tempo tinha 1tido a força de me ocultar. Uma e outra
haviam recebido de Madame Dupin numerosos presentes feitos
em minha intenção, mas que a velha finória, para eu me não
zangar, tinha usurpado em seu proveito e dos outros filhos,
sem nada deixar a T·eresa, e proibindo-a severamente de me
falar em tal, ordem que a pobre rapariga tinha acatado com
incrível obediência.
O que me surpreendeu porém muito mais foi saber que
além das práticas particulares que Diderot e Grimm haviam
tido frequentemente com uma e com outra para as afastarem
de mim, e que, graças à resistência de Teresa, não tinham dado
resultado, ambos tinham tido depois frequentes e secretos coló­
quios com a mãe, sem que aquela nada pudesse saber do que
eles tramavam entre si. Sabia somente que aos colóquios se
haviam juntado os presentinhos, e que havia pequenas idas e
vindas que procuravam conservar o mistério, e cujo motivo ela
absolutamente desconhecida. Quando partimos de Paris, havia já
mui:to tempo que Madame Le Vasseur se tinha habituado a ir.
duas ou três vezes por mês visitar Monsieur Grimm, passando
com ele algumas horas em tão secreta conversação, que até o
criado de Grimm era sempre afastado.
Pensei que tal motivo não era senão aquele mesmo pro­
jecto em que tinham procurado meter a filha, prometendo
arranjar-lhes, graças a Madame d'Épinay, um armazém de sal
e um estanco, e tentando-as, numa palavra, com o engodo do
ganho. Tinham-lhes dado a entender que como eu não me
achava em situação de fazer coisa alguma por elas, nem sequer
podia, por sua causa, fazer algo por mim. Como em tudo isto
só via boas intenções, não lho levava absolutamente a mal. Só
o mistério me revoltava, mormente da parte da velha, que,
além disso, se tornava de dia para dia mais aduladora e hipó­
crita comigo: o que não a impedia de constantemente censurar
a filha por me amar de mais, por me dizer tudo, e que não
passava de uma idiota, que disso havia de receber o pago.
Esta mulher possuía em supremo grau a arte de meter uma
no papo, outra no saco, de esconder àquele o que recebia deste, e
a mim o que recebia de todos. Ter-lhe-ia podido perdoar a avi­
dez, mas não podia perdoar-lhe a dissimulação. Que tinha ela
que me esconder, a mim, cuja felicidade ela sabia perfeitamente
consistir quase que exclusivamente na da filha e dela própria?
O qu e tinha feito pela filha, tinha-o feito por mim ; mas o que

405
fizera por ela devia merecer da parte da mãe um certo reco­
nhecimento; devia estar grata ao menos à filha, e amar-me
por amor dela, que me amava a mim. Tinha-a tirado da mais
negra miséria; de mim recebia a sua subsistência, e devia-me
todos os conhecimentos de que tão bom partido .tirava. Durante
muito tempo tinha-a Teresa sustentado com o seu trabalho,
agora sustentava-a com o meu pão. Tinha tudo desta rapariga,
por quem nada havia feito; os outros filhos que havia dotado
e pelos quais se arruinara, longe de a ajudarem a viver, ajuda
por cima lhe devoravam a sua subsistê�cia e a minha. Em seme­
lhante situação achava eu que ela devia considerar-me como
o seu único amigo, o seu mais seguro protector, e e;r:n vez de
rodear de mistério os meus próprios negócios, em vez de cons­
pirar contra mim na minha própria casa, prevenir-me fielmente
de tudo o que podia interessar-me, quando o vinha a saber mais
cedo do que eu. Com que olhos podia eu pois ver a sua conduta
falsa e misteriosa? Que devia eu sobretudo pensar dos senti­
mentos que ela se esforçava por inculcar na filha? Que mons­
truosa ingratidão devia ser a sua quando procurava inspirá-la
a esta!
Todas ·estas r-eflexões tornaram por fim o meu coração hos­
til a semelhante mulher, a ponto de passar a não a poder ver
sem desprezo. No entanto, nunca deixava de tratar com respeito
a mãe da minha companheira, e de em :tudo lhe testemunhar
quase as deferências e a consideração d-e um filho; mas a ver­
dade é que não gostava nada de permanecer muito tempo com
ela, e não está muito no meu feitio saber constranger-me.
Ainda mais uma vez foi este um dos breves momentos da
minha vida em que vi a felicidade de perto, sem poder alcan­
çá-la, e sem que tivesse sido eu o culpado de a deixar escapar.
Se esta mulher possuísse um bom carácter, seríamos os três
felizes até ao fim dos nossos dias; e só o último a sobreviver_
seria digno de dó. Em vez disso, ides ver a marcha das coisas,
e decidireis se eu podia alterá-la.
Vendo Madame Le Vasseur que eu havia ganho terreno
no coração da filha, tendo-o ela perdido, esforçou-se· por con­
quistá-lo, e, em vez de voltar a mim através dela, procurou
alhear-ma completamente. Um dos meios que empregou foi'
chamar a familia em seu auxilio. Eu tinha pedido a Teresa que
não convidasse ninguém para a Hermitage; ela tinha-mo pro­
metido. Na minha ausência, e sem a consultar, a mãe convi­
dou-os, e ·em seguida obrigou-a a prometer que nada me diria.
Dado o primeiro passo, tudo o resto foi fácil; quando uma vez

406
se teve para com alguém que se am� um segredo qualquer, em
breve se não têm muitos escrúpulos em tê-los a respeito de'
tudo. Assim que eu me encontrava na Chevrette, enchia-se a
Hermitage de gente que se divertia à grande. Uma mãe tem
sempre muita força sobr.e uma rapariga com um natural bom;
no entanto, por mais que a velha tivesse feito, nunca conseguiu
que Teresa se associasse aos seus planos, nem levá-la a ligar-se
contra mim. Quanto a ela, decidiu-se para sempre: e vendo-me
de um lado a mim e à filha, em casa de quem se podia viver,
mas que era afinal tudo; e do outro, Diderot, Grimm, d'Holbach,,
Madame d'Épinay, que prometiam muito e davam qualquer
coisa, pensou que no partido da mulher de um recebedor-geral
dos impostos e de um barão jamais se poderia proceder mal.
Se eu tivesse melhores olhos, teria visto logo que alimentava no
meu seio uma serpente; a minha cega confiança, que nada até
então havia alterado, era porém de tal ordem, que nem sequer
imaginava que se pudesse quer.er fazer mal a uma pessoa que
se devia amar; vendo urdirem-se à minha volta mil teias, só
sabia lamentar-me da tirania da.queles a quell1 chamava meus
amigos, e que, em meu entender, queriam forçar-me a ser feliz
mais à sua maneira do que à minha.
Se bem que Teresa recusasse coligar-se com a mãe, guardou
de novo segredo: o motivo era louvável; não direi se fez bem
ou mal. Duas mulheres que têm. segredos gostam de palrar
juntas: isso as aproximava, e Teresa, dividindo-se, fazia-me
por vezes sentir que me achava só, visto que já não podia con­
siderar como sociedade a que os trê_s formávamos. Foi então
que percebi quanto andara mal, durante as nossas primeiras
ligações, em não aprov·eitar a docilidade que lhe dava o amor,
para a dotar de talentos e conhecimentos, os quajs, mantendo­
-nos mais próximos um do outro no nosso retiro, teriall1 agradà­
velmente ocupado o seu tempo e o meu, sem nunca nos permitir
sentir o enfado de nos acharmos sós. Não era que nos faltasse
a conversa, ou ·que ela demonstrasse aborrecer-se nos nossos
passeios; mas enfim, não tínhamos ideias comuns em número
suficiente para faz·ermos uma grande provisão delas: não podia­
mos falar constantemente dos nossos projectos, limitados dora­
vante ao de gozar. Os objectos que se apresentavalll inspira­
vam-me reflexões que não estavam ao seu alcance. Uma afeição
de doze anos já não tinha necessidade de palavras; conhecia­
mo-nos o suficiente para nada mais termos a saber um do outro.
Restava o recurso dos calhandreiros, maldizer, e gracejar.
É sobretudo na solidão que se sente a vantagem de viver com

407
alguém que sabe pensar. Eu não tinha necessidade de seme­
lhante recurso para que a sua companhia me agradasse ; Teresa
porém teria dele n ecessidade para que a minha lhe agradasse
sempre. O pior era que se tornava necessário arranjarmos os
nossos colóquios como calhava: a mãe, que se me tinha tornado
importuna, obrigava-me a espreitar as ocasiões. Para tudo
dizer, achava-me contrafeito em minha casa ; a atmosfera do
amor estragava a boa amizade. Mantínhamos um comércio
íntimo, sem vivermos na intimidade.
Logo que me 'quis parecer que Teresa procurava por vezes
pretextos para se esquivar aos passeios que eu lhe propunha,
deixei de lhos propor, sem lhe querer mal por eles lhe não agra­
darem tanto como a mim. O prazer não é uma coisa que
dependa da vontade. Confiava no seu coração, era o bastante.
Enquanto os meus prazeres eram os seus, fruía-os com ela;
quando tal não sucedia, preferia o seu contentamento ao meu.
Eis porque, meio enganado na minha expectativa, e apesar
de levar uma vida a meu gosto, numa residência à minha von­
tade, com uma pessoa que estimava, cheguei todavia quase a
sentir-me isolado. O que me faltava impedia-me de apreciar o
que possuía. Em matéria de felicidade ou de gozos, queria tudo
ou nada. Ver-se-á porque me pareceu necessário entrar neste
pormenor. Retomo agora o fio da minha narração.

Julgava ter 'tesouros nos manuscritos que o conde de


Saint-Pierre me havia dado. Ao examiná-los verifiquei tra­
tar-se quase exclusivamente da colecção das obras impressas
do tio, anotadas e corrigidas pelo seu próprio punho, de mis­
tura com algumas outras pequenas peças que não tinham vindo
a lume. Os seus escritos morais confirmaram em mi,m a ideia,
inferida das cartas que Madame de Créqui me havia mostrado,
de que o abade de Saint-Pierre tinha muito mais espírito do
que eu havia julgado: o exame a fundo das suas obras políticas
só me revelou porém vistas superficiais, projectos úteis, mas
impraticáveis, graças :à ideia, que o autor nunca pôde arredar
de si, de que os homens se conduzem mais pelas suas luzes que
pelas suas paixões. A muita conta em que tinha os conhecimen­
tos modernos levou-o a adoptar aquele falso princípio da razão
aperfeiçoada, base de toda$ as instituições que propunha, e
fonte de todos os seus sofismas políticos. Este homem raro, honra
do seu século e da sua espécie, e talvez o único que, desde que
o género humano existe, não teve outra paixão além da razão,
não fez entretanto mais que caminhar de erro para erro em

408
todos os sistemas, em virtude de haver querido tornar os homens
semelhantes a si próprio, em vez de os considerar tais como são,
e como continuarão a sê-lo. Pensando trabalhar para os seus
contemporâneos, só trabalhou afinal para seres imaginários.
Tomando tudo isto em conta, achei-me um tanto ou quanto
embaraçado a respeito da forma a dar à minha obra. Perdoar
ao autor as suas visões, era o mesmo que nada de útil fazer ;
refutá-las era em rigor fazer uma coisa desonesta, visto que
tendo aceite, e mesmo pedido, o depósito dos seus manuscritos,
impunha-se-me a obrigação de tratar decentemente o seu autor.
Tomei por fim a resolução que me pareceu mais conveniente,
mais judiciosa e mais útil. Era apresentar em separado as
ideias do autor e as minhas, e, para isso, entrar nos seus pontos
de vista, esclarecê-los, alargá-los, nada poupando para lhes
realçar todo o valor.
A minha obra devia pois compor-se de duas partes abso­
lutamente distintas: uma, destinada a expor da forma por que
acabo d e dizer os vários projectos do autor ; na outra, que só
devia aparecer depois da primeira haver produzido os seus efei­
tos, faria incidir o meu juízo sobre tais projectos : o que, confes­
so-o, poderia expô-los por vezes :à sorte do soneto do Misantropo.
À cabeça da obra devia figurar uma vida do autor, para a qual
havia reunido óptimos materiais, que me gabava de não estra­
gar ao e mpregá-los. Havia entrevisto o abade de Saint-Pierre
já velho, e a veneração que tinha pela sua memória era para
mim uma garantia de que afinal de contas o conde não ficaria
muito descontente com a maneira por que eu trataria o seu
parente.
Escrevi o meu ensaio sobre a Paz perpétua, a mais consi­
derável e a mais acabada de todas as obras que compunham a
colectânea, e antes de me entregar às minhas reflexões, tive
a coragem de ler absolutamente tudo o que o bom abade havia
escrito sobre tão belo tema, sem nunca me enfadar com os seus
e stiramentos e as suas repetições. O público viu o meu extracto,
de maneira que nada tenho a dizer a seu respeito. Quanto ao
juízo que sobre ele fiz, não foi impresso, e ignoro se alguma vez
o será ; foi contudo escrito ao mesmo tempo que o resumo. Daqui
passei à Polisinódia, ou pluralidade dos conselhos, obra escrHa
no tempo do Regente para favorecer a administração que este
tinha escolhido, e que provocou a expulsão do abade de Saint­
-'Pierre da Academia Francesa, por conter certas críticas :à
administração precedente, o que irritou a duquesa do Maine e
o cardeal de Polignac. Acabei o trabalho como o pre,cedente,

409
assim o parecer como o extraeto: mas fiquei por aqui, sem
querer continuar a empresa, a qual não devia ter começado.
A reflexão que me levou a desistir dela apr·esenta-se natu­
ralmente, e surpreende como não me ocorreu mais cedo. A maior
parte dos e scritos do abade de Saint-Pierre eram ou consistiam
em observações críticas a respeito de certos aspectos do governo
francês, e havia-as a tal ponto livres, que tinha sido uma feli­
cidade para ele havê-las feito impunemente. Nos ministérios
haviam contudo considerado o abade de Saint-Pierre mais como
uma espécie de pregador do que como um verdadeiro político,
e deixavam-lhe à vontade dizer tudo, porque viam bem que'
ninguém o escutava. Se eu conseguisse fazer com que ele fosse
escutado, o caso teria sido diferente. Ele era francês, eu não; e
lembrando-me, embora sob o nome dele, de repetir as suas cen­
suras, expunha-me a que me perguntassem um pouco dura­
mente, mas não injustamente, para que me metia eu em tal.
Antes de continuar, vi felizmente que ia oferecer o flanco, e
retirei-me a toda a pressa. Sabia que vivendo no meio de
homens, e homens todos mais poderosos que eu, nunca poderia,
andasse por onde andasse, pôr-me ao abrigo do mal que qui­
sessem fazer-me. Em tudo isto só havia uma coisa que dependia
de mim, e era proceder ao menos de maneira que, quando mo
quisessem fazer, só o pudessem fazer injustamente. Esta máxima,
que me levou a abandonar o abade de Saint-Pierre, levou-me
fre,quentemente a abandonar projectos que me eram bem mais
caros. Aquelas pessoas sempre prontas a considerarem a adver­
sidade como um crime, ficariam bastante admiradas se conhe­
cessem todos os cuidados que em toda a minha vida eu tive para
que nunca no meio dos meus infortúnios me pudessem dizer
com verdade: Bem os mereceste.
O abandono da obra deixou-me durante algum tempo na
incerteza sobre qual lhe havia de fazer seguir, e este período
de inacção perdeu-me, pois que, na falta de Õbjecto exterior que
me ocupasse, fui levado a dirigir as minhas reflexões sobre
mim mesmo. Não tinha projec,to algum futuro que pudesse
entreter-me a imaginação; nem sequer me era possível fazer
um qualquer, visto que a situação em que me encontrava era
precisamente aquela em que todos os meus desejos se haviam
reunido: não tinha mais nenhum a formular, e sentia ainda o
coração vazio. Tal estado era tanto mais cruel quanto eu não
via outro que pudesse preferir-lhe. As minhas mais ternas afei­
ções tinha-as concentrado numa pessoa ao meu gosto, que mas
retribuía. Vivia sem constrangimento com ela, e por assim dizer

410
à vontade. 1No entanto, uma íntima angústia não me abando­
nava nem perto nem longe dela. Quando a possuía, sentia que
me faltava ainda, e só a ideia de que eu não era tudo para ela
fazia com 'que ela não fosse quase nada para mim.
Tinha amigos dos dois sexos, aos quais me ligava a mais
pura amizade, a mais perfeita estima; contava com a mais ver­
dadeira reciprocidade da parte deles, e nem sequer me tinha
ocorrido uma só vez ao espírito duvidar da sua sinceridade.
No entanto, tal amizade era para mim mais torturante que
doce, em virtude da sua obstinação, da sua aplicação até, em
contrariar todos os meus gostos, as minhas inclinações, a minha
maneira de viver; a tal ponto que bastava que eu mostrasse
desejar uma coisa que só a mim me interessava, e que não
dependia deles, para no mesmo instante os ver a todos coligados
com o propósito de me obrigarem a renunciar a ela. Tal obsti­
nação em vigiarem tudo o que nas minhas fantasias havia,
tanto mais injustificada quanto, longe de vigiar as suas, eu
nem sequer me informava delas, tornou-se-me tão cruelmente
pesada, que por fim não recebia uma só carta sua sem sentir,
ao abri-la, um certo terror que a leitura não deixava perfeita­
mente de justificar. Para pessoas todas mais novas do que eu
e talvez necessitando todas grandemente das lições que �comigo
esbanjavam, achava que também era de mais tratarem-me
como uma criança. Amai-me, dizia-lhes eu, como eu vos
amo; e quanto ao resto, não queirais intrometer-vos mais nos
meus negócios do que eu me i�trometo nos vossos : eis tudo o
que vos peço. ISe me concederam uma destas duas coisas, não
foi ao menos a última.
Possuía uma habitação isolada, numa solidão encantadora;
senhor em minha casa, podia nela viver à minha modà, sem
que ninguém tivesse que ir aí vigiar-me. Esta habitação impu­
nha-me contudo deveres suaves a cumprir, mas indispensáveis.
Toda a minha liberdade não era senão precária; mais do que
obrigado por ordens, devia está-lo pela minha vontade. Não
tinha um único dia em que ao levantar-me pudesse dizer : .Este
dia empregá-lo-ei como me apetecer. Mais ainda, além da
dependência em que me achav a das combinações de Madame
d'.Épinay, havia outra muito mais importuna por parte do
público e dos que chegavam inesperadamente. A distância a
que me encontrava de Paris não impedia que diàriamente m e
aparecesse uma quantidade d e ociosos que, sem saber que fazer
do seu tempo, desperdiçavam o meu sem escrúpulo algum.
Quando menos o esperava, era impiedosamente assaltado, e

411
raro fiz um belo proj ecto de j ornada que o não visse transtor­
nado por qualquer visitante.
Em suma : como no meio dos bens que mais havia ambi­
cionado não achava um prazer puro, tinha raptos em que regres­
sava aos dias serenos da mocidade, e algumas vezes exclamava
suspirando : Ah ! isto não são ainda as Gharmettes !
A recordação das várias épocas da minha vida levaram-me
a reflectir sobre o ponto onde havia chegado, e vi-me já no
declínio da idade, vítima de males dolorosos, e supondo-me
próximo do termo da minha carreira, sem quase haver fruído
na sua plenitude nenhum dos prazeres de que o meu coração
estava ávido, sem haver dado voo aos vivos sentimentos que
nele sentia acumulados, sem haver saboreado, sem ao menos
haver roçado por aquela embriagadora volúpia que sentia em
potência na alma, e a qual, por falta de objecto, nela se encon­
trava sempre comprimida, não podendo exalar-se senão por
meio de suspiros.
Como é que com uma alma naturalmente expansiva, para
a qual viver era amar, não havia eu encontrado até então um
amigo inteiramente meu, um verdadeiro amigo, eu ·que me sen­
tia tão bem fadado para o ser. ! Como é que com uns sentidos
tão inflamáveis, com um coração inteiramente modelado em
amor, eu não me havia ao menos uma vez incendiado com a
sua chama por um objecto determinado? Devorado pela neces­
sidade de amar, sem nunca ter podido satisfaz.ê -la completa­
mente, via-me chegar :às portas da velhice, e morrer sem haver
vivido.
Estas tristes, mas comoventes reflexões, faziam dobrar-me
sobre mim mesmo com uma pena que não era isenta de doçura.
Parecia-me que o destino me devia algo que me não havia dado.
Para quê me haver dotado ao nascer de faculdades delicadas,
se as deixava até ao fim sem aplicação? o sentimento do meu
valor intimo, dando-me o desta injustiça, compensava-me de
certo modo dela, e fazia-me verter lágrimas que me aprazia
deixar correr.
Fazia estas meditações na mais bela estação do ano, no
mês de Junho, sob os arvoredos viridentes, ao canto do rouxinol,
ao chilreio das aves. Tudo concorria para voltar a mergulhar
naquela moleza por de mais sedutora, para a qual havia nas­
cido, mas que o tom duro e severo, a que uma longa exaltação
acabara de me levar, me deveria ter libertado para sempre.
Ia infelizmente recordar-me do j antar no castelo de Toune,
e do meu encontro com aquelas duas encantadoras raparigas,

412
na mesma estação e em lugares pouco mais ou menos idênticos
àqueles em que neste momento me encontrava. Tal recordação,
cuja inocência que com ela se associava ma tornava ainda mais
doce, fez-me lembrar outras da mesma espécie. Em breve vi
reunidos à minha volta todos os objectos que na minha moci­
dade me haviam emocionado. Mademoiselle Galley, Mademoi­
selle de Graffenried, Mademoiselle de Breil, Madame Basile,
Madame de Larnage, as minhas lindas alunas, e até a excitante
Zulietta, que o meu coração não pode esquecer. Vi-me rodeado
de um serralho de huris, das minhas antigas relações, e o
mais vivo gosto que por elas tinha não era para mim um sen­
timento novo. o sangue inflama-se-me e crepita, a cabeça
anda-me à roda, apesar dos cabelos já grisalhos, e eis o grave
cidadão de Genebra, eis o austero Jean Jacques a 'fazer nova­
mente, perto dos quarenta e cinco anos, de zagal sem juízo.
Embora tão viva e tão louca, a embriaguez que de mim se apo­
derou foi tão duradoira e tão forte que, para me curar dela,
nada menos foi preciso do que a imprevista e terrível crise em
que ela me precipitou. Por muito longe que tivesse ido, tal
embriaguez não me levou todavia até ao ponto de me fazer
esquecer a minha idade e a minha situação, até ao ponto de
poder gabar-me de inspirar ainda amor, até ao ponto, enfim,
ele tentar comunicar aquele fogo devorador, mas estéril, que
desde a inf:ância em vão sentia consumir-me o coração. Não o
esperava, não o desejava sequer. Sabia que a época de amar
tinha passado, via bem o ridlculo dos galanteadores serôdios
para nele cair igualmente, e não era homem para na deca­
dência me tornar presunçoso e confiante, quando na minha
mocidade o havia sido tão pouco. Aliás, amigo da paz, teria
receado as tempestades domésticas, e amava com bastante sin­
ceridade a minha Teresa para a expor ao desgosto de ver-me
endereçar a outra sentimentos mais fortes que os que ela me
inspirava.
Que fiz eu em semelhante conjuntura? O meu leitor já o
adivinhou, por pouco que me haja seguido até aqui. A impos­
sibilidade de alcançar seres reais lançou-me no país das qui­
meras, e como nada existente visse digno do meu delírio, ali­
mentei-o num mundo ideal, que a minha imaginação criadora
em breve povoou de seres a meu contento. !Nunca tal recurso
veio mais a propósito, e se revelou tão fecundo. Nos meus con­
tínuos êxtases, embriagava-me a jorros com os mais deliciosos
sentimentos que ainda entraram num coração de homem.
Esquecendo completamente a raça humana, arranjei sociedades

413
de criaturas perfeitas, tão celestiais na virtude como na beleza,
de amigos seguros, ternos, fiéis, como nunca encontrei cá na
terra. Habituei-me de tal maneira a vogar assim no empíreo,
no meio dos objectos encantadores de que me havia rodeado,
que nisso passava horas e dias sem conto; e perdendo a memó­
ria de toda e qualquer outra coisa, mal havia engolido o bocado
à pressa, j á eu morria por fugir e correr ao encontro dos meus
bosquezinhos. Quando, prestes a partir para o mundo encan­
dado, via chegar os míseros mortais que vinham reter-me sobre
a terra, não podia moderar nem esconder o meu despeito, e
sem já ser senhor de mim, fazia-lhes uma recepção tão brusca,
que podia receber o nome de brutal. Tal coisa não fez mais
que aumentar a minha reputação de misantropia, graças a
tudo o que me granjearia outra inteiramente contrária, se
lessem melhor no meu coração.
No auge da exaltação, puxaram-me de repente a guita
como a um p apagaio, e eu !fui reposto no meu lugar pela natu­
reza, com a ajuda de um ataque bastante forte do meu mal.
Utilizei o único remédio que podia aliviar-me, isto é, as sondas,
o que deu tréguas aos meus angélicas amores: pois que, além
de não nos sentirmos enamorados quando estamos doentes, a
minha imaginação, que no campo e sob as árvores se inflama,
definha e morre num quarto e sob as traves de um sobrado.
Frequentes vezes lamentei que não houvesse driades; teria sido
entre elas que infalivelmente fixaria a minha afeição.
Outros aborrecimentos domésticos vieram ao mesmo tempo
aumentar os meus desgostos. iMadame Le Vasseur, enquanto me
Í9. endereçando os mais lindos cumprimentos do mundo, afas­
tava de mim tanto quanto podia a filha. Recebi dos meus anti­
gos vizinhos cartas, que me revelaram ter a boa da velha sem
eu o saber contraído certas dividas em nome de Teresa, que
conhecia o facto e nada me havia dito. Irritava-me muito
menos ter que pagar as dívidas do que haverem-mas mantido
em segredo. Ai ! Como poderia aquela para quem eu nunca tive
segredos tê-los para comigo? Pode-se acaso esconder algo às
pessoas que se amam? :A panelinha holbachiana, que não me
via fazer viagem alguma a Paris, começava a recear verda­
deiramente que eu me desse bem no campo e fosse suficiente­
mente louco para aqui :ficar. E aí começaram os enredos, gra­
ças aos quais procuravam chamar-me indirectamente à cidade.
Diderot, que não queria propriamente mostrar-se logo, começou
por destacar Deleyre, que o tinha conhecido por meu inter­
médio, e que eu recebi, transmitindo-me ele as impressões que

414
Diderot lhe queria dar, sem que ele, Deleyre, visse qual era o seu
verdadeiro escopo.
Tudo parecia concorrer para me arrancar à minha doce
e louca quimera. Ainda não me achava curado do meu ataque,
quando recebo um exemplar do poema sobre a catástrofe de
Lisboa 1, que supus enviado pelo autor. Tal facto impôs-me a
obrigação de lhe escrever, e de lhe falar do seu escrito. Fi-lo
por meio de uma carta que, sem o meu consentimento, foi
publicada muito mais tarde, como passo a referir:
Impressionado por ver este pobre homem, acabrunhado,
por assim dizer, pela prosperidade e pela glória, declamar toda­
via amargamente contra as misérias desta vida e achar
sempre que tudo ia mal, concebi o insensato projecto de
o fazer regressar a si mesmo, e de lhe provar que tudo
ia bem. Embora parecendo acreditar sempre em Deus, Voltaire
nunca acreditou realmente senão no Diabo, visto que o seu
pretenso Deus não é mais que um ser malfeitor que, segundo
ele, só tem prazer em fazer mal. O absurdo desta doutrina,
que salta aos olhos, é sobretudo revoltante num homem
cumulado de bens de toda a ordem, que, do seio da felicidade,
procura desesperar os seus semelhantes com a terrível e cruel
imagem de todas as calamidades de que se encontra isento.
Com mais autoridade do que ele para contar e pesar os males
da vida humana, fiz o exame equitativo destes, e provei-lhe
que não havia um só de todos estes males que se não pudesse
desculpar à Providência, e que não tivesse a sua origem mais
no abuso que o homem fez das suas faculdades do que na pró­
pria natureza. Tratei-o nesta carta com todas as atenções, toda
a consideração, todo o cuidado, e posso dizer com todo o respeito
possíveis. No entanto, como conhecia o seu amor-próprio extre­
mamente irritável, não lhe enviei a carta directamente, mas
sim ao doutor Tronchin, seu médico e seu amigo, com plenos
poderes de lha entregar ou de a suprimir, segundo o que achasse
mais conveniente. 'Tronchin entregou-lha. Voltaire respon­
deu-me em poucas linhas que, achando-se doente e ele próprio
enfermeiro, guardava para outra altura a resposta, e não disse
palavra sobre a questão. Ao enviar-me esta carta, Tronchin
j untou-lhe uma outra em que manifestava pouca estima por
quem lha havia entregue.

1 O terramoto de 1755, que inspirou a Voltaire o Poeme sur le


àésastre de Lisbonne, escrito em 1756-N. do T.

415
Nunca publiquei nem sequer mostrei as duas cartas, visto
não gostar de exibir pequenos triunfos desta espé,cie ; os origi­
nais, contudo, acham-se nas minhas complicações ( Maço A,
n.os 20 e 21) . Depois disto, Voltaire publicou a resposta que me
havia prometido, mas que nunca me enviou. É nada mais nada
menos o romance de Cândido, do qual não posso falar, porque
nunca o li.
Todas estas distracções deveriam ter-me radicalmente
curado dos meus fantásticos amores, e eram porventura um
meio que o céu me oferecia para evitar-lhes as consequências
funestas : a minh-a má estrela foi contudo mais forte, e mal
eu recomeçava a sair, logo o meu coração, a minha cabeça e
os meus pés retomaram os mesmos caminhos. Digo os mesmos,
sob certo ponto de vista ; porque as minhas ideias, menos exal­
tadas, ficaram desta vez cá pela terra, com uma preferência
tão delicada, no entanto, por tudo o que de amável em todos
os géneros nela podia encontrar-se, que tal escol não era de
maneira nenhuma menos quimérico que o mundo imaginário
que havia abandonado.
Representava para mim o amor, a amizade, os dois ídolos
do meu coração, sob as mais arrebatadoras imagens. Deleitei-me
a embelezá-los com todos os encantos do sexo que sempre tinha
adorado. Imaginava de preferência duas amigas a dois amigos,
porque se o exemplo é mais raro, é também mais amável. Dota­
va-as com dois caracteres diferentes; de duas fisionomias não
perfeitas, mas a meu gosto, e animadas pela benevolência e
pela sensibilidade. Imaginei uma morena, a outra loura, uma
viva, a outra doce, uma discreta, a outra fraca ; de uma tão
tocante fraqueza, todavia, que até a virtude parecia ficar a
ganhar. Dei a uma delas um amante de quem a outra fosse
uma amiga terna, e até qualquer coisa mais; não admiti, porém,
nem rivalidades, nem querelas, nem ciúmes, porque me custa
imaginar todo e qualquer sentimento penoso, e porque não que­
ria manchar este risonho quadro com qualquer coisa que degra­
dasse a natureza. Enamorado dos meus dois encantadores mode­
los, identifiquei-me o melhor possível com o amante e o amigo;
fi-lo no entanto amável e jovem, dando-lhe de resto as vir­
tudes e os defeitos que sentia em mim.
Para colocar as minhas personagens numa estância con­
veniente, revi sucessivamente os mais belos lugares que nas
minhas viagens havia visto, mas não achei arvoredo suficiente­
mente fresco, paisagem suficientemente tocante para o meu
gosto. Talvez os vales da Tessália me houvessem satisfeito, se

416
os tivesse visto; fatigada de inventar, a minha imaginação
queria porém qualquer lugar real que lhe pudesse servir de
ponto de apoio, iludindo-me quanto à realidade dos habitantes
que nela queria instalar. Durante muito tempo pensei nas ilhas
Borromeias, cujo aspecto delicioso me havia entusiasmado ;
achava nelas contudo decoração e arte em demasia para as
minhas personagens. Necessitava todavia de um lago, e acabei
por escolher aquele em volta do qual o meu coração nunca
deixou de errar. Resolvi-me por aquela parte das margens do
lago na qual desde há muito os meus votos colocaram, na feli­
cidade imaginária a que a sorte me limitou, a minha residência.
A terra natal da minha pobre Mamã tinha ainda para mim
uma sedução predilecta. O contraste das situações, a riqueza e
a variedade dos sítios, a magnificência, a majestade do con­
junto, que deslumbra os sentidos, comove o coração, eleva a
alma, acabaram por me decidir, e instalei as minhas jovens
pupilas em Vevay. Aqui está o que imaginei de pronto; o resto
só posteriormente foi acrescentado.
Durante muito tempo limitei-me a um plano tão vago, por­
que este bastava para me encher a imaginação de objectos
agradáveis, e o coração de sentimentos de que este gosta de
se alimentar. A força de reaparecerem, tais ficções ganharam
por fim mais consistência, e fixaram-se-me no cérebro sob
determinada forma. Foi então que me deu na fantasia expri­
mir no papel algumas das situações que elas me ofereciam, e,
recordando-me de tudo o que havia sentido na mocidade, dar
por esta forma expansão ao desejo de amar, que não havia
podido satisfazer e que sentia devorar-me.
Lancei primeiro ao papel algumas cartas dispersas, sem
continuidade, e sem ligação, e quando me lembrei de as cerzir,
vi-me por vezes verdadeiramente atrapalhado. O que é menos
crível, mas todavia verdadeiro, é que as duas primeiras partes
foram quase por inteiro escritas desta forma, sem plano algum
determinado, e até sem prever que um dia me tentaria trans­
formá-Ias numa obra em termos. Por isso se vê que estas duas
partes, formadas mais tarde de materiais que não haviam sido
aparelhados para o lugar que ocupam, se acham cheias de um
entulho de palavras, que se não encontra nas outras.
No momento culminante dos meus devaneios, recebo a
visita de Madame d'Houdetot, a primeira que na vida me fazia,
mas que infelizmente não foi a última, como se verá em seguida.
A condessa d'Houdetot era filha do falecido DMonsieur de Belle­
garde, recebedor-geral das finanças, irmão de Monsieur d'J!lpi-

27 417
nay, assim como de Monsieur de Lalive e de Monsieur de La
Briche, ambos mais tarde apresentadores dos embaixadores.
Já referi tê-la conhecido era ela ainda solteira. Depois que
casara, só a vi nas festas da Ghevrette, em casa de Madame
d'.Épinay, sua cunhada. Tendo frequentemente passado vários
dias na sua companhia, tanto na Chevrette, como em Épinay,
achei-a sempre não só muito amável, como me pareceu ver
também nela uma certa benevolência a meu respeito. Gostava
muito de passear comigo; um e outro éramos andarilhos, e a
conversa entre nós não se esgotava. Eu porém em Paris nunca a
ia visitar, embora ela várias vezes me houvesse pedido e até
insistido comigo para que o fizesse. As suas relações com Mon­
sieur de Saint-Lambert, com quem eu começava também a
relacionar-me, ainda ma tornavam mais simpática, e era para
me dar notícias deste amigo, então segundo creio em Mahon,
que ela veio visitar-me à Hermitage.
Semelhante visita teve vagamente o ar de um começo de
romance. Madame d'Houdetot perdeu-se no caminho. O cocheiro,
deixando a estrada que dava a volta, quis cortar a direito, do
caminho de tClairvaux à Hermitage : o coche atolou-se no fundo
do val e ; ela quis descer e fazer o resto do caminho a pé. Em
breve os gentis sapatos se lhe romperam; atascou-se na lama ;
o seu pessoal teve um trabalhão para a arrancar de lá, e chegou
em botas à Hermitage, fazendo vibrar o ar com as suas garga­
lhadas, às quais eu juntei as minhas vendo-a aparecer. Foi
preciso mudar completamente de roupa; Teresa acudiu-lhe, e
eu convenci-a a esquecer a dignidade para fazer uma colação
rústica que lhe agradou sobremaneira. !Era tarde, e por isso
ficou pouco tempo ; mas a entrevista foi tão alegre que ela
tomou-lhe o gosto, e pareceu disposta a voltar. Todavia só
levou a efeito o proj ecto no ano seguinte; mas, ai ! tal atraso
não me salvou de nada.
o Outono passei-o ocupado numa coisa que a ninguém
ocorreria: a guardar a fruta de IMonsieur d'Épinay. A Hermi­
tage era o reservatório das águas do parque da Chevrette. Nele
havia um pomar murado, provido de espaldeiras e de outras
árvores, ,que forneciam a IMonsieur d'.Épinay mais fruta do que
a horta da Chevrette, apesar de lhe roubarem três quartas
partes dela. Para não ser um hóspede absolutamente inútil,
encarreguei-me da direcção do pomar e de vigiar o hortelão.
Tudo correu bem até à estação da fruta; contudo, à medida
que esta ia amadurecendo, ia-a eu vendo desaparecer, sem
saber o que era feito dela. O hortelão afirmava que eram os

418
arganazes que comiam tudo. Declarei guerra aos arganazes,
destrui muitos, e nem por isso a fruta deixava de desaparecer.
Espreitei tão bem, que por fim descobri que o maior arganaz
era o próprio hortelão. Morava em !Montmorency, e dali vinha
de noite, com a mulher e os filhos, levantar os montes de
fruta que havia feito durante o dia, e que depois mandava
vender ao mercado de Paris tão às claras como se tivesse um
pomar dele mesmo. Este miserável, a quem eu fazia tanto bem,
cujos filhos Teresa vestia, e cujo pai mendigo quase alimentava,
roubava-nos tão fácil como descaradamente, pois que nenhum
de nós três era assaz vigilante para pôr cobro àquilo ; numa
só noite conseguiu despejar-me o celeiro, onde nada encontrei
no dia seguinte. Enquanto me p areceu que só eu era atingido,
aguentei tudo ; querendo porém prestar contas da fruta, tive
que denunciar o gatuno. 'Madame d'.Épinay pediu-me que lhe
pagasse, que o despedisse, e que procurasse outro, o que fiz.
Como o grande velhaco irondava todas noites a Hermitage,
armado de um grande cajado ferrado que tinha todo o aspecto
de uma clava, e acompanhado de outros velhacos da sua laia,
para ,tranquilizar as «amas», que tinham um medo terrível do
homem, decidi que o seu sucessor dormisse todas as noites na
Hermitage, e como isto ainda as não tranquilizava, mandei
pedir a Madame d'Épinay uma espingarda, que conservei no
quarto do hortelão, encarregando-o de só se servir dela em caso
de necessidade, se tentassem arrombar a porta ou escalar ao
pomar, e de só fazer fogo com pólvora, para atemorizar os
gatunos. Para a segurança comum, era certamente a menor
precaução que podia tomar um homem incomodado, tendo que
passar o Inverno no meio da floresta, sozinho com duas mulhe­
res tímidas. Por fim, adquiri um cãozito para servir de senti­
nela. Por essa altura, Deleyre veio visitar-me; eu contei-lhe o
caso, e ambos nos rimos dos meus aprestos militares.
De regresso a Paris, quis por sua vez divertir Diderot con­
tando-lhe a coisa, e eis como a panelinha holbachiana soube
que eu queria verdadeiramente passar o Inverno na Hermitage.
Esta constância, que estavam longe de imaginar, desorientou-os,
e enquanto se puseram a imaginar qualquer outra intriga para
me desgostarem da minha estadia na Hermitage 1, destacaram,

1 Admiro neste momento a minha estupidez por não ter visto,


quando escrevia estas palavras, que o despeito com que os holbachianos
me viram partir e ficar no campo dizia principalmente respeito a Madame
Le Vasseur, que já não tinham à mão para os guiar por meio de pontos

419
por intermédio de Diderot, o mesmo Deleyre, que, tendo come­
çado por achar as minhas precauções muito naturais, acabou
por achá-las contraditórias com os meus princípios, e mais que
ridículas, nas cartas em que me crivava de chalaças amargas, e
suficientemente mordazes para me ofender, se eu estivesse para
ai voltado. Saturado porém então de sentimentos afectuosos e
ternos, pouco propenso a qualquer outro, nos seus amargos
sarcasmos eu só via o gracejo, e ·achava-o apenas folgazão
quando qualquer outro o teria achado desassisado.
A força de vigilância e de cuidados, consegui guardar tão
bem o pomar que, apesar de a colheita da fruta ter sido quase
nul a nesse ano, o seu resultado foi triplo do dos precedentes,
e a verdade é que eu não me poupei para a defender, indo até
ao ponto de escoltar as remessas para a Chevrette e para
Épinay, até eu próprio transportar os cestos, e recordo-me de
termos levado, a tia e eu, um tão pesado, que, prestes a vergar
sob o peso, fomos forçados a descansar de dez em dez passos,
e chegámos alagados em suor.
Quando o mau tempo veio e me obrigou a ficar em casa,
quis retomar as minhas ocupações caseiras; foi-me impossível
fazê-lo. Por toda a parte só via as duas encantadoras amigas,
o seu amigo, as suas cercanias, a região que habitavam, os
objectos que a minha imaginação havia criado ou embelezado
para elas. Nem um instante estava em mim mesmo, o delírio
não me abandonava. Depois de bastantes e inúteis esforços
para afastar de mim estas ficções, achei-me por fim inteira­
mente seduzido por elas, e não me preocupei mais senão em
procurar dar-lhes certa ordem e certa continuidade, para fazer
tmla espécie de romance.
-Uno meu grande embaraço era a vergonha de tão claramente
e tl� abertamente me desmentir desta forma a mim mesmo.
Depois dos severos princípios que com tanto estrondo acabava
àeo2.doptar, depois das máximas austeras que tão veemente­
m.únte rihavia pregado, depois de tantas invectivas mordazes
�ane>s1Iivros efeminados que respiravam o amor e a fraqueza,
jíf.OdB'tiJ$IDJia imaginar algo mais inesperado, mais chocante, do
queqae�*the de repente inscrito por meu próprio punho entre
OS!Jlall1ll!tllesbãaqueles livros que tão àsperamente havia censú-

jji;i;Ug de::�teniPO !!'1�e lugares nos seus sistemas de impostura. Esta ideia,
!'pRI!ltltm::d:iodrr!Na ;tãp tarde, elucida perfeitamente o extravagante da sua
Bllilill.Iüt\ .'in�IteãvetLpor meio de qualquer outra suposição. - NOta de
<NAo�008seb.tm 1oq

420
rado? Sentia com toda a força tal contradição, censurava-me
por ela, corava com ela, sentia-me humilhado por causa dela:
nada disto conseguiu chamar-me à razão. Completamente sub­
jugado, tive a todo o risco que submeter-me, e resolver-me a
afrontar as murmurações, salvo deliberar depois se havia de
mostrar ou não a minha obra: porque eu ainda não calculava
se viria a publicá-la.
Tomada tal resolução, atirei-me a fundo às minhas diva­
gações, e a poder de as volver e revolver na cabeça, acabo por
formar aquela espécie de plano cuja execução se viu. Era cer­
tamente o melhor partido que se poderia tirar das minhas
extravagâncias: o amor do bem, que nunca me havia aban­
donado o coração, dirigiu-as para objectos úteis, e dos quais
a moral poderia aproveitar. Os meus quadros voluptuosos teriam
perdido todas as suas graças, se lhes houvesse faltado o doce
colorido da inocência. Uma rapariga fraca é um objecto de
piedade, que o amor pode tornar interessante, e que nem por
isso é muitas vezes menos amável: mas quem pode tolerar
sem indignação o espectáculo dos costumes na moda? e há
alguma coisa mais revoltante que o orgulho de uma mulher
infiel, a qual, calcando abertamente a pés tQdos os seus deveres,
pretende que o marido se ache cheio de reconhecimento pela
graça que ela lhe concede em não querer deixar-se apanhar
em flagrante? Os seres perfeitos estão fora da natureza, e as suas
lições não estão lá muito ao nosso alcance. Mas que uma jovem
criatura, dotada com um coração tão terno quanto honesto, se
deixe, em rapariga, vencer pelo amor, e, em mulher, recobre
forças para por sua vez o vencer, recuperando a virtude, quem
vos disser que este quadro é na sua totalidade escandaloso e
para nada serve, é um mentiroso e um hipócrita; não o escuteis.
Além do objectivo dos costumes e da honestidade conjugal,
que se prende radicalmente com toda a ordem social, formei
para mim outro mais intimo de concórdia e paz pública; objec­
tivo mais vasto, mais importante porventura em si mesmo, pelo
menos para o momento em que se estava. Longe de serenar, a
tempestade suscitada pela !Enciclopédia estava então no seu auge.
Desencadeados um contra o outro com a última das sanhas, os
dois partidos pareciam mais lobos enraivecidos, encarniçados em
esfarraparem-se entre si, que cristãos e filósofos que reciproca­
mente querem instruir-se, convencer-se, e chamarem-se à via
da verdade. 'A um e a outro só faltavam porventura chefes tur­
bulentos com prestigio, para degenerar em guerra civil, e Deus
sabe o que viria a resultar de uma guerra civil religiosa, em
,

421
que no fundo a mais cruel intolerància religiosa era a mesma
dos dois lados. Inimigo nato de todo e qualquer espírito de
partido, tinha francamente dito a uns e outros duras verdades
que eles não haviam escutado. Lembrei-me de outro expediente,
que, na minha simplicidade, me pareceu admirável: era ate­
nuar o seu ódio recíproco, destruindo os seu preconceitos, e
mostrar a cada partido o mérito e a virtude do outro, e como
dignos da estima pública e da consideração de todos os mor­
tais. Este pouco sensato projecto, que supunha boa fé por
parte dos homens, e graças ao qual caí no erro que censurava
no abade de Saint-Pierre, teve o êxito que devia ter ; só para me
humilharem consegui aproximar, reunir os partidos. Enquanto
esperava que a experiência me fizesse sentir . a minha loucura,
entreguei-me a ela, ouso dizê-lo, com um entusiasmo digno do
motivo que ma inspirava, e tracei os dois caracteres de Wolmar
e de Júlia, num arroubamento que me dava a esperança de con­
seguir torná-los a ambos amáveis, e, o que é mais, graças um
ao outro.
Satisfeito por ter esboçado por alto o meu plano, regressei
às situações de pormenor que havia traçado ; e do arranj o que
lhes dei resultaram as duas primeiras partes de Júlia, que
escrevi e passei a limpo com um prazer indizível nesse Inverno,
utilizando para tal o mais belo papel doirado, areia azul pra­
teada para secar a tinta, fitilha azul para coser os cadernos,
nada achando, enfim, suficientemente gracioso, suficientemente
mimoso para as donzelas por que me apaixonara qual outro
Pigmalião. Todas as noites lia, ao canto do lume, estas duas
partes às amas. A filha, sem nada dizer, soluçava comigo de
comoção; a mãe, como não via naquilo sombra de cumprimento,
nada compreendia, permanecia calma, contentando-se com
repetir constantemente nos intervalos : Sim, senhor, isso é muito
bonito.
Inquieta por me saber só em pleno Inverno, no meio dos
bosques, numa casa isolada, Madame d'Épinay mandava fre­
quentemente saber notícias minhas. Nunca tive tão sinceras
provas da sua amizade por mim, e nunca eu lha retribuí tão
vivamente com a minha. Entre estas provas, andaria mal se
não referisse que ela me enviara o seu retrato, e que me pedia
informações para obter o meu, pintado por La Tour, que havia
estado exposto no Salon. Não devo igualmente esquecer outra
das suas atenções, que parecerá ridícula, mas que, graças à
impressão que me fez, fornece um traço à história do meu
carácter. Ao abrir, num dia em que se gelava de frio, um pacote

422
enviado por ela, encontro uma saínha de baixo de flanela inglesa,
que ela me indicava ter usado, e da qual queria que eu fizesse
um colete. O bilhete que me escrevia era encantador, cheio de
carinho e de ingenuidade. Como se ela se houvesse despido
para me vestir, esta atenção, mais do que amiga, pareceu-me
tão enternecedora, que na minha emoção beijei a chorar vinte
vezes o bilhete e a saia. Teresa supunha que eu tinha endoi­
decido. rDe todas as provas de amizade que Madame d'Épinay
me dispensou, é curioso como nunca nenhuma me sensibilizou
tanto como esta, e como, mesmo depois da nossa ruptura,
nunca nela pensei sem me enternecer. Conservei durante muito
tempo o bilhetinho, e devo tê-lo ainda, se é que ele não sofreu
a sorte das restantes cartas da mesma época.
Posto que as minhas retenções me não deixassem então
alivio durante o Inverno, e parte deste me achasse reduzido
ao uso das sondas, contudo foi esta, afinal de contas, a estação
mais doce e tranquila que passei desde que me fixara em França.
Durante os quatro ou cinco meses em que o mau tempo m e
conservou mais a o abrigo dos visitantes, saboreei, como o não
fiz nunca, antes e depois, aquela vida independente, igual e
simples, cuja fruição só fazia a meus olhos aumentar-lhe o
preço, sem mais companhia além da das duas amas na reali­
dade e a das duas primas em pensamento. Foi sobretudo então
que eu cada dia mais me felicitava pela decisão que havia tido o
bom senso de tomar, sem consideração nenhuma pelos clamores
dos meus amigos, irritados por me verem liberto do jugo da sua
tirania ; e quando soube do atentado de um furioso, quando
Deleyre e Madame d':Épinay me falavam nas suas cartas da
inquietação e da agitação que reinavam em iParis, como eu agra­
deci ao céu haver-me afastado destes espectáculos de horrores
e de crimes, que só teriam feito aumentar, exasperar o humor
bilioso que o aspecto das desordens públicas me havia dado ;
ao passo que não vendo à volta do meu retiro senão objectos
risonhos e doces, o meu coração apenas se entregava a senti­
mentos amáveis. Relato aqui com satisfação o curso dos últi­
mos momentos serenos que me consentiram. ,A Primavera que
se seguiu a este Inverno tão calmo viu desabrochar o germe
das desgraças que me restam a relatar, e na trama das quais
nunca mais se verá um período idêntico, em que tenha tido
ocasião para respirar.
Julgo todavia recordar-me de que durante este período de
paz, e até no fundo da minha solidão, não permaneci inteira­
mente tranquilo por parte dos holbachianos. Diderot causou-me

423
certo aborrecimento, e ou eu me engano muito, ou foi durante
este Inverno que apareceu O filho natural, de que eu breve terei
que falar. Além de que, devido a causas que a seguir se conhe­
cerão, poucos documentos seguros desta época conservei, aque­
les mesmos que me deixaram são muito incertos quanto às
datas. !Diderot nunca datava as suas cartas. Madame d'Épinay,
Madame d'Houdetot, só datavam as suas pelo dia da semana,
e Deleyre fazia como elas a maior parte das vezes. Quando
quis arrumar estas cartas pela sua ordem, tive que, tenteando,
arranjar umas datas incertas, nas quais não podia fazer fé.
Não podendo desta maneira fixar com precisão o inicio destas
discórdias, prefiro contar a seguir, num único artigo, tudo o
que delas possa recordar-me.
O regresso da Primavera tinha renovado o meu lânguido
delirio, e nos meus eróticos arrebatamentos havia composto
para as últimas partes de Júlia várias cartas que se ressentem
do arroubo com que as escrevi. Entre outras, posso citar as do
Eliseu e do passeio no lago, as quais, se bem me recordo, figu­
ram no fim da quarta parte. Quem quer que, ao ler estas cartas,
não sinta embrandecer e fundir-se-lhe o coração na ternura que
mas ditou, deve fechar o livro: não nasceu para julgar das
coisas do sentimento.
Precisamente na mesma altura, Madame d'Houdetot fez-me
segunda visita imprevista. Na ausência do marido, que era capi­
tão de gendarmes, e do amante, que também se achava no ser­
viço militar, viera para !Eaubonne, no meio do vale de Montmo­
rency, onde havia alugado uma casa lindíssima. Veio daqui em
nova excursão à Hermitage. 1Fez a viagem a cavalo e vestida
à homem. Apesar de não gostar nada destas espécies de masca­
radas, o ar romanesco daquela impressionou-me, e, desta feita,
senti o amor. Como foi o primeiro e o único em toda a minha
vida, e como as suas consequências mo tornarão para sempre
memorável e terrível à lembrança, seja-me permitido entrar
em alguns pormenores neste artigo.
A condessa d'Houdetot tinha perto de trinta anos, e não
era formosa; o rosto mostrava sinais de bexigas; à sua te�
faltava delicadeza, tinha a vista curta e os olhos um pouco esbu­
galhados: com tudo isso, tinha porém um ar jovem, e a sua fisio­
nomia, a um tempo viva e doce, era carinhosa. Tinha uma
grande floresta de cabelos pretos, naturalmente anelados, que
lhe desciam até aos jarretes; o busto era pequenino, e todos os
seus movimentos eram a um tempo desajeitados e graciosos.
O seu espírito era muito natural e muito agradável; nele se

424
casavam com felieidade a alegria, a travessura e a ingenuidade :
era abundante em saídas encantadoras que não rebuscava e
que lhe saíam por vezes mau grado seu. Possuía bastantes pren­
das agradáveis, tocava cravo, dançava bem, fazia versos muito
bonitos. Quanto_ ao carácter, era angélico ; a doçura de alma
constituía o seu fundo; fora a prudência e a força, reunia
porém todas as virtudes. iEra sobretudo de uma tal firmeza no
comércio, de uma tal fidelidade na sociedade, que os próprios
inimigos não tinham necessidade de se ocultar dela. Por seus
inimigos entendo sobretudo os ou as que a odiavam; pois que,
quanto a ela, o seu coração não podia albergar ódio, e creio que
tal conformidade contribuiu bastante para que me apaixonasse
por ela. Nas confidências feitas na mais íntima amizade, nunca
lhe ouvi dizer mal dos ausentes, nem sequer da cunhada. Não
podia esconder a ninguém o que pensava, nem mesmo vio­
lentar os seus sentimentos, e estou convencido que falava ao
marido do amante, como dele falava aos amigos, aos conhe ­
cidos, e a toda a gente indiferentemente. Enfim, o que sem
contestação prova a pureza e a sinceridade do seu excelente
natural, é o facto de que embora sujeita a grandíssimas dis­
tracções e às mais flagrantes leviandades, e cometendo-as por
vezes imprudentíssimas a seu próprio respeito, nunca lhe suce­
deu ofender com · elas quem quer que fosse.
Tinham-na casado muito nov a e contra vontade com o
conde d'Houdetot, homem de condição, bom militar, mas joga­
dor, intriguista, muito pouco amável, e a quem a mulher nunca
amou. Em Monsieur de Saint-Lambert encontrou ela todos os
méritos do marido, com qualidades mais agradáveis, assim como
espírito, virtudes, talentos. Se alguma coisa se deve perdoar aos
costumes do século, é sem dúvida uma afeição depurada pelo
tempo que durou, respeitável pelos seus efeitos, e que só se
cimentou graças a uma estima recíproca.
Era um pouco por gosto, segundo julgo, mas sobretudo para
agradar a Saint-Lambert, que Madame d'Houdetot me vinha
visitar. Fora ele que a incitara a :fa:zJê-lo, e tinha razão para
acreditar que a amizade que começara a surgir entre nós tor­
naria esta sociedade agradável aos três. !Ela sabia que eu me
achava ao corrente das suas relações, e como me podia falar dele
sem constrangimento, era natural que a minha companhia lhe
agradasse. Apareceu; eu vi-a; estava ébrio de amor sem objecto ;
esta ebriedade fascinou-me os olhos, esse objecto :fixou-se nela ;
vi a minha Júlia em Madame d'Houdetot, revestida porém de
todas as perfeições com que acabava de embelezar o ídolo do

42 5
meu coração. Deu-me o golpe de misericórdia, falando-me de
:Saint-Lambert num tom de amante apaixonada. Força conta­
giosa do amor ! ao escutá-la, ao sentar-me ao pé dela, estava
preso de um frémito delicioso, que nunca havia experimentado
junto de ninguém. Ela falava, e eu sentia-me comovido ; j ul­
gava interessar-me apenas pelos seus sentimentos, quando afinal
os contraia semelhantes ; absorvia a grandes tragos a taça
envenenada, de que apenas sentia por enquanto a doçura.
Enfim, sem que nem eu nem ela déssemos por isso, Madame
d'Houdetot inspirou-me por ela própria tudo o que ela exprimia
pelo amante. Ai, foi começar muito tarde, e bem cruelmente,
a consumir-me numa paixão tão viva quanto desgraçada por
uma mulher cujo coração transbordava de outro amor.
Apesar das emoções extraordinárias que junto dela havia
experimentado, não me apercebi logo do que me tinha sucedido :
só após a sua partida, é que, querendo pensar em Júlia, fiquei
admirado de j á não poder pensar senão em Madame d'Houdetot.
Foi então que os meus olhos se abriram ; percebi a minha des­
graça, lamentei-me, mas não lhe previ as consequências.
Durante muito tempo estive hesitante quanto à maneira
como me havia de conduzir com ela, como se o verdadeiro amor
concedesse suficiente razão para levarmos avante as nossas
deliberações. Ainda me não havia decidido, quando ela voltou
e me apanhou de surpresa. Então estava j á ciente. Diante dela,
a, vergonha, companheira do mal, tornou-me mudo, trémulo;

não me atrevia a abrir a boca nem a levantar os olhos ; era


impossível que ela não visse o estado de perturbação inexpri­
mível em que eu me encontrava. Decidi confessar-lho, deixan­
do-lhe adivinhar qual seria a sua causa : era o mesmo que dizer­
-lha clarissimamente.
:Se eu fosse novo e amável, e que depois disso Madame
d'Houdetot se houvesse mostrado fraca, censuraria neste ponto
a sua conduta : mas como nada disso se deu, só posso aplaudi-la e
admirá-la. O partido que segui foi igualmente o da generosidade
e da prudência. Não podia afastar-se bruscamente de mim sem
dizer porquê a Saint-Lambert, que havia sido o próprio que a
induzira a visitar-me ; era expor dois amigos a uma rotura, e
quiçá a um escândalo, que ela queria evitar. Tinha por mim
estima e b enevolência. Teve dó da minha loucura ; sem a afagar,
lamentou-a e procurou curar-me de ia. Tinha bastante prazer
em conservar ao amante uma amizade que a ela mesma lhe
era cara : de nada m e falava com tanta satisfação como da
intima e doce sociedade que nós todos três podíamos formar,

426
quando eu entrasse em mim ; nem sempre se limitava a estas
exortações amigáveis, e, quando era necessário, não me pou­
pava as censuras mais severas que bem merecera.
Muito menos eu as poupava a mim mesmo. Logo que m e
achei só, voltei a mim ; sentia-me mais calmo depois d e haver
falado: o amor, quando aquela que o inspira tem dele conhe­
cimento, torna-se mais suportável. A força com que a mim
próprio me acusava do meu ter-me-ia curado, se tal coisa fosse
possível. Que poderosas razões não chamei eu em meu auxilio
para o fazer calar? Os meus costumes, os meus sentimentos,
os meus princípios, a vergonha, a infidelidade, o crime, o abuso
de um depósito confiado pela amizade : o ridículo, enfim, por
na minha idade me achar dominado pela mais extravagante
paixão por um objecto cujo coração inteiramente absorvido não
podia dar-me compensação alguma, nem deixar-me nenhuma
esperança : paixão além disso, que, longe de nada ganhar com
a constância, de dia para dia se tornava menos suportável.
·Quem acreditaria que esta última consideração, que devia
dar mais força a todas as outras, foi a que as iludiu? Que escrú­
pulos, pensava, podia eu sentir a respeito de uma loucura que
só a mim me prejudicava ? Sou eu então algum jovem cavaleiro
de quem haja que recear muito por Madame d'Houdetot? De
acordo com os meus presunçosos remorsos, não irão dizer que
a minha galantaria, o meu ar, a minha indumentária vão
seduzi-la? Oh ! pobre Jean Jacques, ama à tua vontade, com
a consciência tranquila, e não receies que os teus suspiros
prejudiquem Saint-Lambert.
Já se viu que nunca, nem mesmo na mocidade, eu fui
presunçoso. Tal maneira de pensar estava na maneira de ser
do meu espírito, lisonjeava a minha paixão ; foi o bastante para
a ela me entregar sem reserva, e para me rir mesmo dos imper­
tinentes escrúpulos que, graças mais à vaidade do que à razão,
eu julgava sentir. Grande lição para as almas honestas, as
quais nunca o vicio ataca a descoberto, mas que acha meio de
surpreender, mascarando-se sempre com qualquer sofisma, e
às vezes com qualquer virtude.
:Culpado sem remorsos, em breve o fui sem circunspecção, e,
por favor, vejam como a minha paixão seguiu o rasto do meu
natural, para enfim me arrastar ao abismo. Tomou primeiro um
ar humilde para me tranquilizar, e, para me tornar atrevido,
levou esta humildade até à desconfiança. Sem deixar de me cha­
mar ao meu dever, à razão, sem um só momento afagar a
minha loucura, llVIadame d'Houdetot tratava-me de resto com

427
a maior doçura, e tomou comigo o tom da mais terna amizade.
Se a houvesse julgado sincera, garanto que esta amizade m e
teria bastado ; mas achando-a demasiado viva para ser verda­
deira, não se me iria meter na cabeça que o amor, daqui em
diante tão pouco próprio para a minha idade e para a minha
compostura, me havia envilecido aos olhos de 'Madame d'Hou­
detot;· que esta pequena brincalhona o que queria era apenas
troçar de mim e das minhas serôdias meiguices ; que as tinha
revelado a Saint-Lambert, e que como a indignação da minha
infidelidade havia feito entrar o amante nos planos dela, eles
se entendiam os dois para acabarem de me endoidecer e zom­
barem de mim? Tal idioti·c e, que ao� vinte e seis anos me havia
feito despropositar junto de Madame de Larnage, que eu não
conhecia, ser-me-ia perdoável aos quarenta e seis, junto de
Madame d'Houdetot, se desconhecesse que tanto ela como o
amante eram por de mais pessoas de bem para procurarem
tão bárbaro divertimento.
Madame d'Houdetot continuou a fazer-me visitas que eu
não tardei em pagar-lhe. Gostava de caminhar como eu ; fazia­
mos longos passeios através de uma região encantada. Contente
por amar e por ousar dizrê-lo, achar-me-ia na mais doce situa­
ção, se o meu despropósito não lhe tivesse destruído todo o
encanto. A princípio, ela nada compreendeu do humor com
que eu recebia os seus carinhos : o meu coração, contudo, inca­
paz toda a sua vida de saber esconder fosse o que fosse do que
nele se passa, não a deixou muito tempo na ignorância das
minhas suspeitas ; quis rir-se delas ; tal expediente não surtiu
efeito ; a sua consequência teria sido um ataque de raiva : mudou
de tom. A sua condoída doçura foi invencível ; dirigiu-me censu­
I as que me comoveram ; a respeito dos meus temores, teste­
munhou-me cuidados de que eu abusei. Viu que não havia
outro meio de me tranquilizar. Insisti ; o lance era delicado.
É admirável, é talvez único que tendo uma mulher podido che­
gar ao ponto de entrar em negociações, se tenha saído delas
por tão baixo preço. Nada me recusou do que a mais terna
amizade podia conceder. Nada me concedeu do que pudesse
fazê-la infiel, e tive a humilhação de ver que o ardor que os
seus mais leves favores comunicavam aos meus sentidos nunca
nos seus alumiou a menor centelha.
Disse algures que nada devemos conceder aos sentidos,
quando lhes queremos recusar algo. Para ver como tal máxima
era falsa com respeito a iMadame d'Houdetot, e como esta tinha
razão em contar com ela, necessário seria entrar em todos os

428
pormenores das nossas longas e frequentes práticas, seguindo-as
em toda a sua vivacidade durante quatro meses que passámos
juntos numa intimidade quase sem exemplo entre dois amigos
de sexo diferente, os quais se encerram nos limites de que
nunca nós saímos. 'iü ! se eu tanto tinha tardado em sentir o
verdadeiro amor, como o meu coração e os meus sentidos lhe
pagaram então bem o atraso : e como não serão os arroubos que
se devem experimentar junto de um objecto amado que nos
ama, quando até um amor não correspondido pode despertar
semelhantes ?
Faço mal por·ém em Ifalar em amor não '�orrespondido ; o
meu era-o de certo modo ; era o mesmo de ambos os lados,
embora não fosse recíproco. Um e outro estávamos ébrios de
amor, ela pelo amante, eu por ela ; os nossos suspiros, as nossas
deliciosas lágrimas confundiam-se. Ternos confidentes um do
outro, os nossos sentimentos tinham tantas relações, que impos­
sível era que eles em alguma coisa se não misturassem ; e con­
tudo, no meio desta perigosa embriaguez, nunca ela se esque­
ceu de si um instante ; e eu, eu protesto, juro que se, transviado
algumas vezes pelos sentidos, tentei levá-la a ser infiel, nunca
verdadeiramente a desejei. A própria violência da minha paixão
ma fazia conter. O dever das privações havia exaltado a minha
alma. O brilho de todas as virtudes embelezava aos meus olhos
o ídolo do meu coração ; conspurcar a sua divina imagem teria
sido antquilá-la. Teria podido cometer tal crime ; mil vezes o
cometi dentro do coração ; mas envilecer a minha Sofia? 'iü !
poderia isso dar-se alguma vez? Não, não ; disse-lho a ela mesmo
mil vezes: fosse eu senhor de me satisfazer, pusesse-se ela à
minha discrição por sua própria vontade, recusaria, fora alguns
curtos momentos de delírio, ser feliz por tal preço. Amava-a
demasiado para desejar possui-la.
Da Hermitage a Eaubonne vai perto de uma légua ; nas
minhas frequentes viagens, sucedeu-me aqui dormir algumas
vezes ; uma noite, depois de havermos ceado sozinhos, fomos
passear para o jardim por um belissimo luar. No fundo do
jardim havia uma mata razoàvelmente grande, através da qual
fomos em demanda de um lindo bosquezito ornamentado com
uma cascata, cuja ideia eu lhe dera, e que ela havia mandado
executar. Imortal recordação de inocência e de prazer ! Foi neste
bosquezinho, que, sentado a seu lado num banco de relva,
debaixo de uma acácia carregadinha de flores, eu encontrei,
para exprimir os movimentos do meu coração, uma linguagem
verdadeiramente digna deles. Foi a primeira e única vez na

429
minha vida ; fui porém sublime, se assim se pode chamar a
tudo o que o mais terno e o mais ardente amor pode ter de
amável e de cativante num coração de homem. Que deliciosas
lágrimas eu derramei a seus pés ! Quantas lhe fiz derramar,
mau grado seu ! 1Por fim, ela exclamou, num transporte involun­
tário: Não, nunca homem algum foi tão amável, e nunca
amante algum amou como vós amais ! Todavia, o vosso amigo
Saint-Lambert escuta-nos, e o meu coração não poderia amar
duas vezes. Calei-me, suspirando ; 'beijei- a : que beijo ! Mais
nada, porém. Há seis meses que vivia só, isto é, longe do amante
e do marido ; há três que a via quase todos os dias, e sempre
o amor como um terceiro entre ela e mim. Tínhamos ceado
sozinhos, estávamos sós, num pequeno bosque ao luar, e após
duas horas na mais viva e terna conversa, saiu a meio da noite
do pequeno bosque e dos braços do amigo tão intacta, tão pura
de corpo e de coração como para lá havia entrado. Leitores,
pesai todas estas circunstâncias ; eu nada mais acrescentarei.
E não se vá imaginar que neste caso os meus sentidos
me deixavam tranquilo, como junto de Mamã e de Teresa.
Já o disse, desta vez tratava-se verdadeiramente de amor, e de
amor em toda a sua energia e com todas as suas fúrias. Não
descreverei nem as agitações, nem os frémitos, nem os desfale­
cimentos do coração que continuamente experimentav a ; poder­
-se-ão avaliar pelo efeito que a sua simples imaginação provo­
cava em mim. Já disse que a distância da Hermitage a Eaubonne
era grande : eu cortava pelos outeiros d'Andilly, que são encan­
tadores. Pelo caminho sonhava com aquela que ia ver, com o
acolhimento carinhoso que ela me iria dispensar, com o beijo
que me esperava à chegada. Antes mesmo de o receber, este
único beijo, este beijo funesto abrasava-me o sangue a um tal
ponto, que a cabeça se me punha à roda, um deslumbramento
me cegava, e os meus joelhos trémulos não podiam susten­
tar-me de pé ; via-me forçado a parar, a sentar-me ; a minha
máquina inteira achava-se numa confusão inconcebível: estava
prestes a desmaiar. Ciente do perigo, tratava, ao partir, de me
distrair e pensar noutra coisa. !Mal havia dado vinte passos, vol­
tavam as mesmas recordações com todos os acidentes que eram
a sua consequência a assaltar-me sem que me fosse possível
libertar-me deles, e de qualquer forma que procedesse, creio que
nunca me sucedeu fazer impunemente só este trajecto. Chegava
e Eaubonne fraco, esgotado, estafado, mal me podendo ter de
pé. Logo que a via, tudo se restaurava, ao pé dela não sentia
mais que a importunação de um vigor inesgotável e sempre

430
inútil. Havia no -caminho, à vista de Eaubonne, um agradável
terrapleno, chamado monte Olimpo, onde às vezes nos dirigia­
mos, cada qual do seu lado. Eu chegava primeiro ; estava habi­
tuado a esperá-la ; mas como me custava esperar ! Para me
distrair, diligenciava escrever a lápis bilhetes que poderia escre­
ver com o mais puro do meu sangue: nunca pude acabar um
só que fosse legível. Quando ela encontrava algum no escon­
derijo que havíamos combinado, nada podia ver nele além ao
estado deplorável em que eu me achava ao escrevê-lo. Seme­
lhante estado, e sobretudo a sua duração durante três meses
de irritação continua e de privação, lançou-me num esgota­
mento de que não me pude livrar durante muitos anos, e acabou
por me provocar uma quebradura, que levarei ou me levará a
mim para o túmulo. Tal foi o único prazer amoroso do homem
com o mais combustível, mas ao mesmo tempo mais tímido tem­
peramento que talvez a natureza haja criado. Tais foram os
últimos dias felizes que me foram concedidos na terra: aqui
começa a longa trama das desgraças de minha vida, em que
poucas interrupções se verão.
Durante toda a minha vida, viram como o meu coração,
transparente como o cristal, não soube nunca esconder pelo
espaço inteiro de um minuto um sentimento um poueo vivo
que nele se tivesse refugiado. Imagine-se se me teria sido pos­
sível esconder muito tempo o meu amor por Madame d'Houdetot.
A nossa intimidade dava nos ,olhos de toda a gente, não
fazíamos segredo nem mistério dela. Não era de natureza a
ne-cessitá-lo, e como Madame d'Houdetot nutria por mim a
mais terna amizade, de que não tinha que se acusar, e como eu
nutria por ela uma estima de que ninguém melhor do que eu
conhecia a inteira justiça ; ela, franca, distraída, irreflectida ;
eu, verdadeiro, desastrado, altivo, impaciente, violento, expú­
nhamo-nos ainda muito mais, na nossa enganosa confiança,
do que aconteceria se fôssemos culpados. Ambos iamos à Che­
vrette, encontrávamo-nos lá frequentemente, algumas vezes
mesmo de combinação. Ai vivíamos como de ordinário, pas­
seando sôzinhos todos os dias, no parque, e falando dos nossos
amores, dos nossos deveres, do nosso amigo, dos nossos inocen­
tes projectos, defronte dos aposentos de Madame d'Épinay, sob
as suas j anelas, donde ela, sem cessar de nos observar, e j ul­
gando-se afrontada, cevava o coração, por meio dos olhos, de
raiva e de indignação.
Todas as mulheres têm arte de esconder o seu furor, sobre­
tudo quando este é vivo; IMadame d'Épinay, violenta, mas

431
reflectida, possui esta arte eminentemente acima de tudo. Fingiu
nada ver, de nada desconfiar, e enquanto redobrava de atenções,
de cuidados, quase de negaças comigo, fazia gala em humilhar
a cunhada pelos processos mais indignos e com as demonstra­
ções de um desprezo que parecia querer comunicar-me. Já se
deixa ver que não o conseguiu ; eu, contudo, achava-me num
verdadeiro suplício. Dilacerado por sentimentos opostos, en­
quanto os seus carinhos me sensibilizavam, mal podia conter
a cólera quando a via faltar ao respeito a Madame d'Houdetot.
A doçura angélica desta levava-a a sofrer tudo sem se queixar,
e até sem lhe querer por isso mais mal. Aliás, encontrava-se
frequentemente tão distraída, e era sempre tão pouco sensível
a estas coisas, que a maior parte do tempo nem sequer nelas
reparava.
A minha paixão absorvia-me tanto, que nada mais vendo
além de Sofia ( era este um dos nomes de iMadame d'Houdetot) ,
nem sequer reparava em que me tinha tornado a fábula de toda
a casa e dos visitantes. Entre os ultimos, contava-se o barão
d'Holbach, o qual, que eu saiba, nunca tinha vindo à Chevrette.
Se eu fosse tão desconfiado como me tornei depois, suspeitaria
com razão que IMadame d'Épinay tinha arranjado semelhante
viagem para lhe oferecer o engraçado presente de ver o Cidadão
enamorado. Mas era então tão idiota, que nem sequer via o
que se metia pelos olhos dentro de toda a gente. Toda a minha
estupidez não me impediu todavia de achar o barão com um
ar mais contente, mais jovial que de costume. Em vez de me
olhar furibundo, como sucedia habitualmente, crivava-me de
ditos trocistas, de que eu nada percebia. Abria muito os olhos,
sem nada responde r : Madame d'Épinay estalava de riso : não
sabia que mosca lhes havia mordido. Como nada disto passava
ainda as marcas da chalaça, o melhor que eu teria a fazer, se
o percebesse, era prestar-me ao jogo. iMas a verdade é que
através da escarninha satisfação do barão, via-se-lhe brilhar
nos olhos uma maligna alegria, que talvez me houvesse inquie­
tado, se então tivesse reparado nela tão bem como mais tarde
me veio à memória.
Um dia em que, num dos seus regressos de Paris, fui visitar
Madame d'Houdetot a Eaubonne, encontrei-a triste, e vi que
tinha chorado. Tive que me constranger, visto que estav!l com
ela Madame de Blainville, irmã do marido ; logo porém que
pude achar ocasião favorável, dei-lhe a notar a minha inquieta­
ção. Ai ! disse-me ela suspirando, temo muito que as vossas lou­
curas me não custem o descanso dos meus dias. Saint-Lambert

432
está ao facto e deu-mo a conhecer. Presta-me justiça, mas
está aborrecido e, o que é pior, esconde-me parte do seu
aborrecimento. Felizmente nada lhe ocultei das nossas rela­
ções, que foram iniciadas sob os seus auspícios. As minhas
cartas estavam cheias de vós, assim como o meu coração : ape­
nas lhe encobri o vosso amor insensato, de que esperava curar­
-vos, e pelo qual, sem disso me falar, vejo que me acusa.
Fizeram-nos mal ; prejudicaram-me ; mas não importa. Ou rom­
pamos por completo, ou sede aquilo que deveis ser. Nada mais
quero ter que ocultar ao meu amante.
Foi o primeiro momento em que, graças ao sentimento da
minha culpa, fui sensível à vergonha de me ver humilhado
diante de uma mulher nova, cujas justas censuras sentia e
de quem deveria ser o mentor. A indignação que contra mim
próprio senti talvez tivesse sido suficiente para dominar a minha
fraqueza, se a terna compaixão que me inspirava a vítima não
me houvesse ainda comovido o coração. Ai de mim ! era acaso
esse o momento de o tornar insensível, quando se achava ala­
gado nas lágrimas que de todos os lados o repassavam ? Em
breve, semelhante enternecimento se me transformõu em cólera
contra os vis delactores que só haviam visto o lado mau de um
sentimento criminoso, sim, mas involuntário, sem acreditar,
sem imaginarem sequer a sincera honestidade de coração que
0 resgatava. Não ficámos muito tempo na dúvida a respeito da
mão que havia desferido o golpe.
Ambos sabíamos que Madame d'Épinay mantinha comércio
com Saint-Lambert. Não era a primeira tempestade que ela
havia desencadeado contra Madame d'Houdetot, tendo feito
mil esforços para o afastar desta, e tremendo pelas consequên­
cias que podiam advir do êxito de alguns desses esforços. Aliás
Grimm, que, ao que me parece, havia seguido Monsieur de
Castries no serviço militar, achava-se em Vestefália, assim como
Saint-Lambert; viam-se por vezes. Grimm tinha feito junto de
Madame d'Houdetot algumas tentativas que não haviam dado
resultado. Ofendidissimo, Grimm tiriha deixado inteiramente
de a ver. Com a modéstia que se lhe conhece, calcule-se com
que sangue-frio ele não havia de sofrer as preferências dela por
um homem mais velho do que ele, e ao qual ele, Grimm, desde
que se dava com os grandes, só se referia como se fora seu
protegido.
As minhas suspeitas a respeito de Madame d'.Épinay trans­
formaram-se em certeza, quando soube o que se passara em
minha casa. Quando me encontrava na Chevrette, Teresa vinha

23
433
ali frequentemente, quer para me trazer as minhas cartas, quer
para me dispensar os cuidados indispensáveis à minha péssima
saúde. 'Madame d'Épinay tinha-lhe perguntado se nós, Madame
d'Houdetot e eu, nos não escrevíamos. Como ela o confessasse,
Madame d'Épinay insistiu para que ela lhe entregasse as cartas
de Madame d'Houdetot, garantindo-lhe que as tornaria a fechar
tão bem que nada se notaria. !Sem dar a conhecer como seme­
lhante proposta a escandalizava e sem sequer me prevenir,
Teresa contentou-se em esconder melhor as cartas que me tra­
zia, p11ecaução acertadissima, pois que 'Madame d'Épinay man­
dava-a espreitar quando ela chegava, e, esperando-a no cami­
nho, levou por vezes a sua audácia até ao ponto de lhe esqua­
drinhar o peitilho do avental. Fez mais: um dia, fazendo-se pela
primeira vez desde que eu habitava na Hermitage convidada
para aqui vir jantar com Monsieur de a.vrargency, aproveitou o
momento em que eu passeava no jardim com Margency, para
entrar no meu gabinete com a mãe e a filha, e instar com elas
para que 'lhe mostrassem as cartas de Madame d'Houdetot. Se a
mãe soubesse onde elas se encontravam, as cartas teriam sido
entregues ; felizmente, porém, só a filha o sabia, e negou que eu
houvesse conservado alguma. !Mentira certamente cheia de
honestidade, de fidelidade, de generosidade, enquanto a verdade
não teria sido mais do que uma perfidia. Vendo que não podia
seduzi-la, Madame d'Épinay esforçou-se por irritá-la por meio
do ciúme, censurando-lhe a sua facilidade e a sua cegueira. Pois
então não vedes que eles mantêm entre si um comércio crimi­
noso? Se, apesar do que se mete pelos olhos dentro, necessitais
de outras provas, prestai-vos nesse caso ao que se torna mister
fazer para as obter : dizeis que ele rasga as cartas de Madame
d'Houdetot mal as lê. Muito bem ! Juntai cuidadosamente os
pedaços, e entregai-mos ; encarrego-me de os juntar. Tais
eram as lições que a minha amiga dava à minha companheira.
Teresa teve durante muito tempo a discrição de não me
falar em todas estas tentativas ; vendo-me porém perplexo,
julgou-se no dever de me confiar tudo, a fim de que eu, sabendo
com quem tinha de haver-me, tomasse as minhas providências
para pôr-me ao abrigo das traições que me preparavam.
A minha indignação, a minha cólera não se podem descrever.
Em vez de, a exemplo de !lVfadame d'Épinay, empregar a dissi­
mulação e de me servir de contra-estratagemas, entreguei-me
sem peias :à impetuosidade do meu natural, e com a minha
irreflexão habitual, explodi com toda a franqueza. Pode-se
avaliar da minha imprudência pelas cartas seguintes, as quais

434
mostram suficientemente a maneira de proceder de um e de
outro nesta ocasião.

M i ssiva de Madame d ' tpinay


(Maço A, n.0 44)

Porque não vos ponho eu a vista em cima, meu caro amigo?


Estou inquieta por vós. Havíeis-me prometido tanto ir e vir só da
Hermitage aqui! A este respeito dei-vos liberdade; e nada, dei­
xais passar oito dias. Se não me tivessem dito que vos encontrais
de perfeita saúde, julgar-vos-ia doente. Esperava-vos anteontem
ou ontem, e não vos vejo aparecer! Meu Deus! que tendes vós?
Não tendes quejazeres; não tendes também arrelias, porque
gabo-me que nesse caso viríeis imediatam;e121te confiM-mas.
Estais então doente? Tirai-me de cuidados bem depressa, peço­
-vos. Adeus meu caro amigo; que este adeus me traga os bons
dias da vossa parte.

Resposta

Hoje, quarta-feira de manhã

Nada vos posso dizer por ora. Espero poder estar melhor
informado, e cedo ou tarde o estarei. No entretanto, tende a
certeza de que a inocência acusada encontrará um defensor
suficientemente ardente para levar algum arrependimento aos
caluniadores, quem quer que estes sejam.

Segunda missiva ,:la mesma

( Maço A, n.0 45)

Sabeis que a vossa carta me aterroriza? Que quer ela dizer ?


Li-a mais de vinte e cinco vezes. Na verdade, nada compreendo
dela. Vejo apenas que vos encontrais inquieto e atormentado,
e que esperais deixar de o estar para me falardes no que vos
inquieta e atormenta. Meu caro amigo, foi isso o que nós com­
binámos? Que foi jeito então dessa amizade, dessa confiança ?
E como a perdi eu? É contra mim, ou por minha causa, que
vos achais zangado ? Seja como for, vinde logo à tarde, peço-vos:
recordai-vos que, ainda não há oito dias, me prometestes nada

435
reservar no peito sem me talardes imediatamente. Meu caro
amigo, vivo nesta conjiamça... Olhai, acabo de ler novamente a
vossa carta: nada mais imagino, mas e�a jaz-me tremer. Pare­
ce-me que estais .cruelmente perturbado. Desejaria sossegar-vos;
no entanto, como desconheço a razão das vossas inquietações, não
sei que dizer-vos, a não ser que. me acho tão infeliz como vós
até que vos não veja. Se aqui não estais hoje às seis horas da
tarde, parto amanhã para a Hermitage, esteja o tempo que
estiver, e como quer que me ache; porque não poderei perma- ·

necer neste estado de inquietação. Adeus, meu caro e bom


amigo. Pelo sim, pelo não, atrevo-me a dizer-vos, sem saber se
disso tendes ou não .necessidade, que trateis de tomar cuidado
e de sustar os progressos que na vossa solidão o desassossego
taz. Uma mosca transforma-se num monstro. Frequentes vezes
,
o experimentei.

Resposta

Hoje, quarta-feira à tarde

Não posso ir visitar-vos, nem receber-vos, enquanto durar


a inquietação em que me acho. A confiança em que falais já
não existe, nem vos será fácil recobrá-la. Na vossa solicitude
só vejo neste momento· o desejo de extrair das confissões de
outrem as vantagens que convêm aos nossos desígnios; e o meu
coração, tão pronto a desafogar num coração que se abre para
o receber, fecha-se à astúcia e à manha. Na dificuldade que
achais em compreender o meu bilhete reconheço a vossa habili­
dade do costume. Julgais-me assaz ingénuo para pensar que
não o haveis ·compreendido? NãJo; mas eu saberei à torça de
franqueza vencer as vossas subtilezas. Vou explicar-me mais
claramente, a fim de que me entendais ainda menos.
Dois amantes muito unidos e dignos de se amarem são-me
queridos; espero de verdade que não calculeis a quem me quero
referir, a menos que eu vo-'bos não nomeie. Presumo que quise­
r-am separá-los, e que foi de mim que se serviram para des­
pertar ciúmes a um dos dois. A escolha não é muito acertada,
mas pareceu cómoda à maldade, e esta maldade desconfio eu
que parte de vós. Calculo que isto se torna mais claro.
Assim pois a mulher que eu mais estimo teria, com o meu
conhecimento, a infdmia de dividir o seu coração e a sua pessoa
por dois amantes, e eu a de ser um destes dois infames? Se sou-

436
besse que um só momento da vossa vida ttnheis pensado tal
coisa dela e de mim, odiar-vos-ia até à morte. É porém de o
haverdes dito, e não de o haverdes acreditado, que eu vos acuso.
Não compreendo, em semelhante caso, a qual dos três quisestes
jazer mal; mas se amais o repouso, temei se tivestes a felici­
dade de vos saírdes bem. Não escondi nem dela nem de vós
quanto mal penso de certas ligações; quero porém que elas
acabem graças a um meio tão honesto como a sua causa, e que
um .amor ilegítimo se transforme numa eterna amizade. Eu, que
nunca fiz mal a ninguém, serviria inocentemente para jazê-lo
a os meus amigos? Não, nunca vo-lo perdoaria; tornar-me-ia
vosso inimigo irrecorwiliável. Apenas os vossos segredos seriam
respeitados, porque nunca serei um homem perjuro.
Imagino que as perplexidades em que me vejo não possam
durar muito tempo. Não tardará que saiba se me enganei. Terei
então grandes erros a reparar, e nada na minha vida terei
jeito de melhor vontade. Sabeis vós todavia como eu resgatarei
as minhas faltas durante o po11;Co tempo que me resta a passar
junto de vós? Fazendo o que ninguém além de mim faria;
dizendo-vos francamente o que pensam de vós na sociedade,
assim como as brechas que tereis de reparar na vossa reputação
Apesar de todos os pretensos amigos que vos rodeiam, podeis
dizer adeus à verdade, quando me virdes partir; não encontra­
reis mais ninguém que vo-la diga.

Terceira missiva da mesma

(Maço A, n.
0
46)

Não compreendia a vossa carta desta manhã: disse-va-lo,


porque assim era. A da tarde compreendo-a; não deveis recear
que alguma vez lhe responda: estou ansiosíssima por esquecê-la,
e se bem que me causeis dó, não pude evitar que ela me enchesse
o coração de amargura. Eu! usar de astúcia, de manha para
convosco; eu! acusada da mais vil das injtimias! Adeus;
lamento que tenhais a ... Adeus: não sei o que digo ... Adeus:
anseio por poder em breve perdoar-vos. Vireis quando vos
aprouver! sereis melhor recebido do que aquilo que as vossas
suspeitas o ordenariam. Podeis contudo dispensar-vos de vos
incomodardes por amor da minha reputação. Pouco me importa
a que me criam. De resto, ignorava em absoluto o que aconteceu
às duas pessoas que me são tão queridas a mim como a vós.

437
Esta terceira carta tirou-me de uma terrível confusão, mas
precipitou-me noutra que de maneira nenhuma era menor.
Embora todas as cartas e respostas se tivessem trocado no
espaço de um dia, com extrema rapidez, semelhante intervalo
tinha bastado para interpor um lapso entre os meus ataques
de cólera, permitindo-me reflectir sobre a enormidade da minha
imprudência. Madame d'Houdetot nada me havia recomendado
tanto como manter-me calmo, deixando-lhe o cuidado de solu­
cionar sozinha a situação e de evitar, sobretudo neste momento,
qualquer ruptura, qualquer escândalo, e eu, graças aos mais
francos e aos mais atrozes insultos, ia acabar de levar a raiva
ao coração de uma mulher que a ela jâ se não achava senão
grandemente disposta. Naturalmente, não devia esperar da sua
parte senão uma resposta a tal ponto altiva, a tal ponto desde­
nhosa, a tal ponto desprezadora, que, sem a mais indigna cobar­
dia, não poderia furtar-me a abandonar a casa imediatamente.
Felizmente, como a sua sagacidade ainda era maior do que
a minha violência, evitou, graças à habilidade da resposta,
levar-me a este extremo. Era necessário, contudo, ou sair, ou
ir vê-la imediatamente ; a alternativa era inevitável. Tomei o
último partido, muito preocupado com a minha presença de
espírito na explicação que previa. Gomo sair-me dela sem com­
prometer nem IMadame d'Houdetot, nem Teresa? Desgraçada
daquela que eu nomeasse ! Não havia nada que não temesse da
vingança de uma mulher implacável e intriguista para com
aquela que dela fosse objecto. Fora para prevenir esta desgraça
que eu nas minhas cartas só havia falado de suspeitas, a fim
de me achar dispensado de fornecer provas. :É certo que assim
tornava os meus arrebatamentos menos desculpáveis, pois que
suspeitas algumas me autorizavam a tratar uma mulher, e
sobretudo uma amiga, como eu acabava de tratar Madame
d'Épinay. Aqui começa porém a grande e nobre tarefa que digna­
mente cumpri, de expiar as minhas faltas e as minhas fraque­
zas ocultas, acusando-me de faltas mais graves, de que era
incapaz, e que nunca cometi.
Não tive que aguentar a altercação que temera e não ganhei
para o susto. Logo que cheguei, iMadame d'Épinay caiu-me nos
braços, desfeita em lágrimas. Esta recepção inesperada, e da
parte de uma velha amiga, comoveu-me extremamente ; tam­
bém eu desatei a chorar abundantemente. !Disse-lhe algumas
palavras que não faziam grande sentido ; ela disse-me também
algumas que o não faziam muito mais, e tudo ficou por aqui.
Tinham servido a ceia; fomos para a mesa, e aqui, na expec-

438
tativa da explicação, que julgava transferida para depois da
refeição, pus-me carrancudo, pois que a menor inquietação que ·
me preocupa subjuga-me de tal maneira, que a não posso escon­
der aos menos clarividentes. O meu ar comprometido devia
encorajá-la ; ela contudo não se afoitou: a explicação deu-se
tanto depois da ceia como antes. No dia seguinte a mesma
coisa, e as nossas silenciosas entrevistas apenas foram preen­
chidas com coisas sem importância, ou com algumas palavras
corteses da minha parte, graças às quais, ao mesmo tempo que
lhe demonstrava nada poder ainda pronunciar quanto ao fun­
damento das minhas suspeitas, lhe protestava com inteira ver­
dade que, se estas não tivessem fundamento, toda a minha
vida a consagraria a reparar a injustiça causada por elas.
Madame d'Épinay não mostrou a menor curiosidade em saber
em que consistiam precisamente essas suspeitas, nem como me
tinham chegado aos ouvidos, e toda a nossa reconciliação, tanto
da parte dela como da minha, consistiu no abraço do primeiro
instante. Como era ela a ofendida, ao menos segundo as apa­
rências, pareceu-me que não me competia a mim buscar uma
explicação que ela própria não buscava, e p arti conforme tinha
vindo. De resto, continuando a viver com ela como dantes, esqueci
quase completamente a questão, e tolamente supunha que
ela mesma a havia esquecido, porque parecia não mais se lem­
brar do assunto.
Como se verá em breve, não foi este o único desgosto que
a minha fraqueza me valeu ; tinha porém outros não menos
sensíveis, que não havia chamado sobre mim, e cuja causa era
apenas o desejo de me arrancarem da minha solidão 1 , à força
de nela me atormentarem. Tais desgostos provinham-me de
Diderot e dos holbachianos. Desde que me havia instalado na
Hermitage, Diderot não tinha deixado de ali me importunar,
quer ele próprio, quer por intermédio de Deleyre, e, através dos
dichotes deste a propósito das minhas surtidas silvestres, em
breve descobri o prazer com que eles haviam mascarado o
eremita em galanteador zagal. Nas minhas rixas com Diderot
não se tratava porém de semelhante coisa; as suas causas eram
mais graves. Após a publicação do Filho natural, tinha-me ele
mandado um exemplar, que eu lera com o interesse e a atenção

1 Quer dizer, de arrancarem dela a velha, de que tinham necessi­


dade para tramarem a conspiração. IÉ pasmoso como, durante toda esta
tempestade, a minha estúpida confiança me impediu de compreender que
não era a mim, mas a ela, que queriam tornar a ver em Paris.- N. de
J.-J. Rousseau.

439
que se presta às obras de um amigo. Ao ler a espécie de poética
dialogada que se lhe encontra junta, fiquei surpreendido, e
mesmo um pouco contristado, por nela encontrar, entre várias
coisas descorteses mas toleráveis contra os solitários, esta
acerba e dura sentença, sem nenhuma espécie de contemplação :
só o mau vive em solitude. Semelhante sentença é equívoca, e,
ao que me parece, apresenta dois sentidos : um, inteiramente
verdadeiro, o outro inteiramente falso ; pois que nem sequer
é possível que um homem que é, e quer ser só, possa e queira
fazer mal a alguém, e ,que por consegÚinte sej a um mau. A sen­
tença exigia pois em si mesma uma interpretação ; exigia-a
tanto mais quanto partia de um autor que na altura em que
a imprimia tinha um amigo retirado na solidão. Parecia-me
afrontoso e desonesto, já ter, ao publicá-la, esquecido este
amigo solitário, j á, se acaso se havia lembrado dele, não haver,
ao menos em máxima geral, aberto a honrosa e j usta excepção
que era devida não só a esse amigo, mas a tantos sábios res­
peitados, que em todos os tempos procuraram no isolamento o
sossego e a paz, e dos quais, pela primeira vez desde que o
mundo existe, um escritor se havia lembrado de fazer indis­
tintamente, apenas com uma simples penada, outros tantos
celerados.
Eu amava afectuosamente Diderot ; estimava-o sincera­
mente, e contava com os mesmos sentimentos por parte dele.
Cansado porém da sua infatigável teimosia em contrariar-me
eternamente os meus gostos, as minhas inclinações, a minha
maneira de viver, em tudo quanto só a mim interessava; revol­
tado por ver um homem mais novo do que eu querer mandar
em mim como se eu fora uma criança ; desgostado da facilidade
com que prometia e da negligência com que faltava ; aborrecido
com tantos encontros que combinava e a que faltava, e com
a sua fantasia em combinar sempre novos para de novo faltar ;
mortificado por esperá-lo em vão três ou quatro vezes por mês,
em dias marcados por ele mesmo, e de j antar sozinho à tarde,
depois de haver ido ao seu encontro até S aint-Denis, e de todo
o dia o haver esperado, estava já farto das suas múltiplas
faltas. Esta última foi a que me pareceu mais grave, e a que
mais me magoou. Escrevi-lhe, queixando-me, com uma doçura
e uma ternura, no entanto, que me fez inundar o papel de
lágrimas ; sendo a carta suficientemente comovente para igual­
mente dever arrancar-lhas a ele. Nunca se poderia adivinhar
qual foi a sua resposta neste artigo ; ei-la aqui, palavra por
palavra (Maço A, n.o 33) :

440
Alegra-me bastante que a minha obra vos tenha agradado.
Não sois do meu parecer a respeito dos eremitas; dizei deles
todo o bem que vos aprouver, sereis o único no mundo de quem
eu o pensarei: ainda a1sstm haveria muito que dizer sobre isso,
se fosse possível falar-vos sem vos irritar. Uma mulher de
oitenta anos! etc. Tive conhecimento de uma frase de uma
carta de Madame d'Épinay, que muito vos deve ter jeito sofrer,
ou eu conheço mal o fundo da vossa alma.

É preciso explicar as duas últimas frases desta carta.


No começo da minha estadia na Hermitage, Madame Le
Vasseur pareceu não gostar de aqui estar e achar a casa muito
só. CO!l!O as suas conversas a tal respeito me haviam chegado
aos ouvidos, ofereci-lhe mandá-la de novo para Paris, se gos­
tava mais de para lá voltar, pagando-lhe eu o aluguer da casa,
tomando à mesma conta dela como se ela continuasse comigo.
Rejeitou o meu oferecimento, afiançando-me que gostava muito
de estar na Hermitage, que o ar do campo lhe fazia bem; e
isso via-se que era verdade, porque recomeçava, por assim dizer,
a rejuvenescer, e passava muito melhor do que em Paris. A filha
garantiu-me mesmo que ela ficaria no fundo zangadíssima se
abandonássemos a Hermitage, que era na verdade uma habita­
ção encantadora, e onde ela se comprazia bastante na lidazita
do pomar e da fruta, em que superintendia; mas que tinha dito
o que a haviam feito dizer, para tratar de me induzir a regres­
sar a Paris.
Como semelhante tentativa não havia dado resultado, tra­
taram por meio do escrúpulo de obter o efeito que a com­
placência não tinha produzido, e consideraram criminoso con­
servar eu ali a velhota, afastada dos socorros de que poderia
necessitar na idade em que se achava; sem pensarem que
tanto ela como muitas outras pessoas idosas, cuja vida o exce­
lente ar de campo prolonga, podiam encontrar tais socorros
em Montmorency, que lficava ali mesmo à porta; e como se
só houvesse velhas em Paris, e em qualquer outra parte elas não
se achassem em condições de viver. Madame Le Vasseur, que
comia muito, e com extrema voracidade, era atreita a derrama­
mentos de bílis e a grandes diarreias, que lhe duravam vários
dias, e que lhe serviam de remédio. Em Paris, nada fazia, e dei­
xava agir a natureza. Na Hermitage, procedeu da mesma forma,
sabendo bem que era o melhor que tinha a fazer. Que importa:
lá porque não havia médicos e boticários no campo, deixá-Ia

441
aqui era o mesmo que querer matá-la, embora ela se desse
perfeitamente. <Diderot deveria ter estabelecido em que idade
não é permitido, sob pena de homicídio, deixar viver as pessoas
idosas fora de Paris.
Era esta uma das suas acusações atrozes para as quais ele
não abria excepção na sua sentença de que só o mau vive em
solitude; e era o que significava a sua patética exclamação, com
o et ccetera que lhe havia benignamente acrescentado: Uma
mulher de oitenta anos! etc.
Julguei que não podia responder melhor a tal censura do
que reportando-me à própria !Madame Le Vasseur. Roguei-lhe
que comunicasse naturalmente os seus sentimentos a Madame
d'Épinay. Para a pôr mais à vontade, não quis ver a carta, e
mostrei-lhe a que vou trasladar, escrita a Madame d'Épinay,
a respeito de uma resposta que queria dar a uma carta de Dide­
rot, e que ela me havia impedido de enviar.

Hoje, quinta-feira

Madame Le Vasseur deve escrever-vos, minha boa amiga;


pedi-lhe que vos dissesse sinceramente o que pensa. Para a p6r
inteiramente à vontade, disse-lhe que não queria ver a carta, e
peço-vos para me não dizerdes nada do que esta contém.
Não mandarei a minha, visto que a isso vos opondes; con­
tudo, sentindo-me gravissimamente ofendido, haveria, a convir­
-se que ando mal, uma baixeza e uma falsidade que não poderia
permitir-me. É verdade que o Evangelho ordena àquele que
recebeu uma bofetada que ofereça a outra face, mas não ordena
que se peça perdão. Recordai-vos daquele homem de comédia
que grita que o matam dando pauladas? Eis o (papel do filósofo.
Não vos vanglorieis de impedir que . ele apareça por este
ruim tempo. A cólera lhe dará o tempo e as torças que a
amizade lhe recusa, e será a primeira vez na sua vida que
aparecerá no dia prometido. Extenuar-se-á para me vir repetir
por sua própria boca as injúrias que me dirige por correspon­
dência; suportá-las-ei com toda a paciência. Voltará para Paris
doente; e eu, eu serei, como de costume, um homem odiosíssimo.
Que jazer? É preciso sofrer.
Não admirais todavia a sensatez deste homem, que queria
vir buscar-me de jiacre a Saint-Denis, aqui jantar, reconduzir­
-me . em jiacre, e a quem, oito dias depois, a fortuna não lhe
permite que vá à Hermitage a não ser a pé? Não é absoluta-

442
mente impossível, para empregar o seu estilo, que seja esse o
tom da boa fé; neste caso, porém, necessário é que em oito dias
a sua fortuna tenha sofrido estranhos reveses.
Compartilho da aflição que vos causa a doença da senhora
vossa mãe; mas vedes bem que o vosso desgosto não chega ao
meu. Sofre-se ainda menos vendo as pessoas que amamos doen­
tes, do que injustas e cruéis.
Adeus, minha boa amiga; é esta a última vez que vos
falarei desta triste questão. Falais-me de ir a Paris, com uma
presença de espírito que outrora me alegraria.

Comuniquei a Diderot o que, sob proposta da própria


Madame d'Épinay, havia feito a respeito de Madame Le Vasseur;
e, como IM:adame Le Vasseur, como bem se pode acreditar, havia
optado por ficar na Hermitage, onde se dava muito bem, onde
se achava sempre acompanhada, e onde vivia agradabillssima­
mente, Diderot, sem saber já de que me acusar, acusou-me de
tal precaução da minha parte, e não deixou de me acusar
igualmente da continuação da permanência de Madame Le Vas­
seur na Hermitage, posto que esta mesma o houvesse escolhido,
e posto que só dela dependesse, como sempre dependeu, voltar
a viver em !Paris, com os mesmos cuidados, por minha parte,
de que gozava ao pé de mim.
É esta a explicação da primeira censura da carta de Diderot,
n.o 33. ,A da segunda acha-se na carta n.o 34.

O Letrado (era o nome que Grimm dava por graça ao


filho de Madame d'Épinay), o Letrado deve ter-vos escrito,
dizendo-vos que havia ao longo das muralhas vinte pobres que
morriam de tome e de trio, esperando o real que lhes dáveis.
É uma amostra da nossa tagareli!ce . . . e se ouvísseis o resto,
divertir-vos-ia como tudo.

Eis a minha resposta ao terrível argumento, de que Diderot


parecia tão orgulhoso :

Julgo ter respondido ao letrado, isto é, ao filho de um


recebedor-geral, ,que não havia lamentar os pobres que ele vira
ao longo das muralhas, à espera do meu real; que aparente­
mente ele os havia largamente ,compensado; que o nomeava meu
substituto; que os pobres de Paris não tinham que se queixar
desta substituição; que não arranjaria jàcilmente um tão bom
substituto aos pobres de Montmorency, que dele tinham muito

443
mais necessidade. Há aqui um respeitável velhinho que, depois
de haver passado a vida a trabalhar, já não pode mais, e morre
de tome chegadxJ aos seus últimos dias. A minha consciência
acha-se mais satisfeita com os dois soldos que todas as segun­
das-feiras lhe dou do que com os cem reais que distribuiria a
todos os marotos das muralhas.
Sois divertidos, vós ·outros, os filósofos, quando considerais
todos os habitantes das cidades como os únicos homens aos
quais os vossos deveres vos ligam. É no campo que se aprende
a. amar e a servir a humanidade; nas cidades só se aprende a
desprezá-la.

Eram estes os singulares escrúpulos a respeito dos quais


um homem de espírito tinha a imbecilidade de considerar
sêriamente um crime o meu afastamento de Paris, preten­
dendo, pelo meu próprio exemplo, provar-me que se não podia
viver fora da capital sem se ser um malvado. Hoje não com­
preendo como é que cometi a tolice de lhe responder e de me
irritar, em vez de, por única resposta, lhe ter rido na cara.
No entanto, as decisões de Madame d'Épinay e os clamores do
bando holbachiano tinham de tal maneira fascinado os espí­
ritos a favor de Diderot, que geralmente se considerava que
a razão não estava do meu lado nesta questão, querendo a
própria Madame d'Houdetout, grande entusiasta de Diderot,
que eu fosse vê-lo a Paris e desse os primeiros passos para uma
reconciliação, que, por muito sincera e total que fosse da minha
parte, se revelou todavia pouco duradoura. O argumento vito­
rioso de que, para o meu coração, ela se serviu foi o de que
neste momento Diderot se encontrava em desgraça. Além da
tormenta desencadeada contra a Enciclopédia, experimentava
ao mesmo tempo uma outra violentíssima a respeito da sua
peça, que lhe acusavam de ter copiado inteiramente de Goldoni,
apesar da histôriazita de que a havia precedido. Ainda mais
sensível às críticas do que Voltaire, Diderot achava-se então
acabrunhado com a acusação. Madame de Graffigny tinha tido
mesmo a maldade de espalhar o boato de que eu nessa ocasião
havia rompido com ele. Achei que era uma coisa justa e gene­
rosa provar publicamente o contrário, e fui passar dois dias
não com ele, mas em sua própria casa. Foi esta a minha segunda
viagem a Paris, desde que me havia estabelecido na Hermitage.
O primeiro passo tinha-o dado para correr junto do pobre
Gauffecourt, que teve um ataque de apoplexia de que nu:p.ca

444
mais se curou completamente, e durante o qual, e enquanto se
não achou fora de perigo, lhe não abandonei a cabeceira.
Diderot recebeu-me bem. Que culpas o abraço de um amigo
pode desfazer ! !Depois disto, que ressentimento pode ficar no
coração? Trocámos poucas explicações. Não há necessidade delas
para nos dirigirmos recíprocas invectivas. Uma coisa apenas há
a fazer, e é esquecê-las. Não tinha havido processos subterrâneos,
ao menos que eu soubesse: não era como com Madame d'Épinay.
Diderot mostrou-me o plano do Rai de família. Ora aqui está,
disse-lhe eu, a melhor defesa do Filho natural. Conservai-vos
calado, trabalhai a peça com cuidado, e depois como única
resposta atirai com ela de súbito à cara dos vossos inimigos.
Foi o que ele fez, e deu-se bem com o processo. Há perto de
seis meses que eu lhe havia enviado as duas primeiras partes
de Júlia, para que me desse a sua opinião. Ainda as não tinha
lido. Lemos juntos um caderno. Achou tudo isto repolhudo, foi
a sua expressão; isto é, sobrecarregado de palavras e redun­
dante. Eu próprio me havia já apercebido disso perfeitamente:
era contudo a verbosidade da febre; nunca pude corrigi-la. As
últimas partes não são assim. IA quarta sobretudo, e a sexta,
são obras-primas de estilo.
Dois dias depois de ter chegado, !Diderot quis absolutamente
levar-me a cear a casa de Monsieur d'Holbach. Estávamos longe
de nos entendermos; pois que eu até queria quebrar a combi­
nação a respeito do manuscrito de química, de que me indig­
nava de ser devedor a semelhante homem. [)iderot venceu todos
os meus escrúpulos. Jurou-me que Monsieur d'Holbach me
amava de todo o coração; que era necessário perdoar-lhe aquele
tom que tomava com toda a gente, e que mais do que ninguém
os seus amigos tinham que sofrer. Fez-me ver que recusar o
produto de tal manuscrito, após havê , -lo aceite dois anos atrás,
era uma afronta ao doador, que este não merecera, e que
semelhante recusa podia ser mal interpretada, como uma
secreta censura por ele tanto tempo ter esperado para concluir
o negócio. Vejo d'Holbach todos os dias, acrescentou Diderot;
conheço melhor do que vós o seu estado de espírito. Se não
houvesse possibilidade de 1ficardes satisfeito, julgais o vosso
amigo capaz de vos aconselhar semelhante baixeza? Numa
palavra, com a minha fraqueza habitual, deixei-me subjugar, e
fomos cear a casa do barão, que me recebeu como de costume.
A mulher contudo recebeu-me friamente, e quase com descor­
tesia. Não reconhecia aquela amável Carolina que em rapariga
mostrava ter por mim tanta benevolência. Há muito tempo que

445
julgava perceber que, desde que Grimm frequentava a casa
de Aine, não me viam já com tão bons olhos.
Enquanto me achava em Paris, chegou Saint-Lambert do
e�ército. Como de nada sabia, só o vi depois de haver regressado
ao campo, primeiro na Chevrette, depois na Hermitage, onde
apareceu com iM:adame d'Houdetot para me pedir de jantar.
Calcule-se com que prazer os recebi ! Mas tive muito mais ainda
ao vê-los de perfeita inteligência. Contente por não ter per­
turbado a sua felicidade, eu próprio me sentia feliz: e posso
jurar que durante toda a minha louca paixão, e sobretudo
neste momento, em que podia roubar-lhe Madame d'Houdetot,
não o teria querido fazer, e nem sequer teria sido tentado a
faz.ê-lo. Achava-a tão amável, amando Saint-Lambert, que
dificilmente imaginava pudesse sê-lo no mesmo grau aman­
do-me a mim; e sem querer perturbar a sua união, tudo o que
no meu delírio com mais verdade desejei dela foi que ela se
deixasse amar. Enfim, por mais violenta que fosse a paixão que
me consumia por ela, achava tão doce ser o confidente como o
objecto dos seu amores, e nunca por um momento considerei o
seu amante como meu rival, mas sempre como meu amigo.
Dir-se-á que ainda não era o amor desta feita : de acordo, mas
nesse caso era mais do que o amor.
Pelo que toca a Saint-Lambert, comportava-se como um
homem de bem e judicioso: como era eu o único culpado, fui
o único castigado, e até com indulgência. Tratou-me dura mas
amiglàvelmente, e verilfiquei que havia perdido algo na sua
estima, mas nada na sua amizade. Consolava-me de tal, sabendo
que me seria bem mais fácil recuperar uma do que a outra, e
que Saint-Lambert era suficientemente sensato para não con­
fundir uma franqueza involuntária e passageira com um vicio de
carácter. !Se eu tinha alguma culpa em tudo o que se havia
passado, era bem pouca. Fora eu ,quem lhe havia requestado a
amante? Não fora ele quem ma havia 'enviado? Não fora ela
que me havia procurado? Podia eu acaso negar-me a recebê-Ia?
Que podia eu fazer? Eles e só eles haviam feito o mal, e era
eu que o pagava. Saint-Lambert, no meu lugar, teria feito o
mesmo que eu, ou talvez pior; porque, enfim, por muito fiel,
por muito estimável que Madame d'IHoudetot fosse, sempre
era mulher; ele estava ausente ; as ocasiões eram frequentes,
as tentações eram vivas, e a ela ter-lhe-ia sido bem difícil
defender-se sempre com o mesmo ,êxito contra um homem mais
atiradiço. Em semelhante situação, era certamente muito para
ela e para mim havermos podido estabelecer limites que nunca

446
nos permitíssemos transpor. Embora no fundo do coração eu
fizesse honrosamente a mim próprio justiça, as aparências eram
de tal maneira contra mim, que a vergonha invencível que sem­
pre me dominou dava-me diante dele o perfeito ar de um cul­
pado, do que ele abusava para me humilhar. Basta um só
episódio para pintar esta posição recíproca. Depois do jantar,
lia-lhe eu a carta que no ano anterior havia escrito a Voltaire,
carta em que ele, Saint-Lambert, tinha ouvido falar. Durante a
leitura, adormeceu, e eu, outrora tão altivo, e presentemente tão
tolo, não ousei interromper a leitura, e continuei a ler enquanto
ele continuava a ressonar. Tais eram as minhas indignidades, e
tais eram as suas vinganças; a sua generosidade nunca lhe
permitiu, porém, exercê-las senão entre nós os três.
Depois de Saint-Lambert ter partido, achei Madame d'Hou­
detot muito mudada a meu respeito. Fiquei surpreendido, como
se não devesse esperá-lo; impressionei-me mais que de razão,
o que me fez muito mal. Parecia que tudo aquilo de que espe­
rava a minha cura não fez mais que enterrar-me ainda mais
no coração o dardo que, por fim, mais do que arrancar, tive
que quebrar.
Estava absolutamente resolvido a vencer-me, e a nada .
poupar para transformar a minha louca paixão numa amizade
pura e duradoira. Tinha feito para isso os mais belos projectos
do mundo, para a execução dos quais necessitava da colaboração
de Madame d'Houdetot. Quando quis falar-lhe, achei-a distraída,
perturbada; percebi que havia deixado de se sentir bem na
minha companhia, e vi perfeitamente que se havia passado algo
que ela me não queria dizer, e que eu nunca vim a saber. Tal
mudança, cuja explicação me foi impossível obter, contris­
tou-me. Pediu-me as cartas dela; restitui-lhas todas com uma
fidelidade de que ela durante um momento me fez a injúria
de duvidar. Semelhante dúvida foi ainda um golpe inesperado
para o meu coração, que ela devia tão bem conhecer. Fez-me
justiça, mas não imediatamente; compreendi que ao examinar
o pacote que lhe tinha entregue havia verificado que procedera
mal: percebi mesmo que se acusava disso, o que me permitiu
recuperar qualquer coisa. Madame d'Houdetot não podia reaver
as suas cartas sem me restituir as minhas. Disse-me que as
tinha queimado; permiti-me duvidar por minha vez, e confesso
que ainda duvido. Não, não se atira ao lume com semelhantes
cartas. As da Júlia acharam-nas ardentes. Deus ! o que não
diriam então destas ! Não, não, nunca aquela que pode inspirar
semelhante paixão terá a coragem de queimar as provas desta.

447
Por outro lado, não temo que tenha abusado delas: não a julgo
capaz de semelhante coisa; além disso, eu tinha-as em boa
ordem. O receio idiota mas vivo de ser troçado havia-me feito
começar esta correspondência num tom que pôs as minhas cartas
ao abrigo de comunicações. A familiaridade que punha na minha
embriaguez levei-a até a tratar por tu: mas de que maneira o
fazia ! Ela certamente não se devia ofender com semelhante
coisa. No entanto, queixou-se muitas vezes, mas sem êxito:
as suas queixas não faziam mais do que excitar o meu receio,
e aliás eu não podia resolver-me a fazer marcha atrás. Se estas
cartas existem ainda, e se algum dia lhes põem a vista em cima,
verificar-se-á como eu a amei.
A dor que me causou o esfriamento de 'Madame d'Houdetot,
e a certeza de não lho haver merecido, levaram-me a tomar a
singular decisão de me queixar ao próprio Saint-Lambert.
Enquanto esperava o efeito da carta que lhe escrevi a este pro­
pósito, lancei-me nas distracções que mais cedo devia ter pro­
curado. Deram-se na Chevrette uma festas para as quais com­
pus a música. O prazer de alcançar junto de Madame d'Houdetot
honras, graças a um talento que ela prezava, excitou-me o
estro, aMm de que havia ainda outro objecto que contribuía
para o animar: o desejo de provar que o autor do Bruxo da
aldeia sabia música, pois que há muito me apercebia de que
alguém manobrava em segredo para sobre isso lançar dúvidas,
pelo menos quanto à composição. A minha estreia em Paris, as
provas a que por diversas vezes tinha sido sujeito, tanto em casa
de !Monsieur [)upin como em casa de Monsieur de la Popliniêre,
a quantidade de música que durante catorze anos tinha com­
posto no meio dos mais célebres artistas, e à vista destes, a
ópera As musas galantes, enfim, e mesmo a do Bruxo, um
motete composto para IMademoiselle ,Fel, que ela havia cantado
no Concerto espiritual, tantas conferências que tinha tido a
respeito desta bela arte com os maiores mestres, tudo isto
parecia dever prevenir ou dissipar semelhantes dúvidas. Estas
existiam, contudo, e até na própria Chevrette, e eu verificava
que nem IMonsieur d'Épinay delas estava isento. Sem parecer
dar por isso, encarreguei-me de lhe compor um motete para
a consagração da capela da Chevrette, e pedi-lhe que me for­
necesse um texto da sua escolha. IMonsieur d'll':pinay encarregou
Linant, aio do lfilho, de o escrever. Linant arranjou a letra
apropriada ao assunto, e oito dias depois desta me ter sido
entregue, achava-se o motete terminado. Desta feita o despeito
foi o meu Apolo, e nunca música alguma de melhor qualidade

448
me saiu das mãos. o texto começava por estas palavras: Ecce
sedes hic tonamtis 1• O fausto do inicio correspondia às pala­
vras, e todo o resto do motete é de uma beleza melódica que
impressionou toda a gente. A obra era trabalhada para grande
orquestra. D'lí:pinay juntou os melhores sinfonistas. Madame
Bruna, cantora italiana, cantou o motete, tendo sido bem acom­
panhada. O motete teve um êxito tão grande que depois disto
foi dado no Concerto espiritual, onde, apesar das surdas cabalas
f' da indignidade da execução, obteve o dobro dos aplausos.
Para o aniversário de !M:onsieur d'Épinay tive a ideia de uma
espécie de peça, meio drama meio pantomima, que Madame
d'Épinay escreveu, e para a qual compus a música. Ao chegar,
Grimm ouviu falar dos meus triunfos harmónicos. Uma hora
depois já não se falava em tal: mas ao menos nunca mais,
que eu saiba, houve discussões sobre se eu sabia ou não com­
posição.
Mal Grimm chegou à IChevrette, onde já me não achava
muito bem, logo acabou por me tornar a minha permanência
aqui insuportável, graças a certos ares que nunca vi a ninguém,
e de que nem sequer suspeitava. iNa véspera de chegar, desa­
lojaram-me do quarto especial que ·ocupava, contíguo ao de
Madame d'Épinay ; arranjaram-no para Monsieur Grimm, e
deram-me outro mais afastado. Ora af está, disse eu rindo a
Madame d'lí:pinay, como os adventícios removem os antigos.
Pareceu ficar confusa. Logo nessa noite ·compreendi melhor
a razão de tal procedimento, ao saber que entre o quarto dela
e aquele que eu acabava de abandonar existia uma porta de
comunicação disfarçada, que Madame d'ÉPinay julgara inútil
mostrar-me. As suas relações com Grimm não eram desconhe­
cidas de ninguém, nem em sua casa, nem em publico, nem do
próprio marido: contudo, longe de se abrir comigo, confidente
de segredos muito mais importantes, e em quem ela confiava
plenamente, defendeu-se sempre :fortemente de tal coisa. Per­
cebi que semelhante reserva partia de Grimm, o qual, deposi­
tário de todos os meus segredos, não quis que eu o fosse de
nenhum dos seus.
Por mais que os meus antigos sentimentos, longe de se
acharem extintos, assim como o real valor deste homem me
dispusessem a seu favor, a minha atitude não pôde man­
ter-se em face das diligências que ele fazia para a destruir.

1 Soube depois que estas palavras eram de santeuil, e que Monsieur


de Linant se havia à sorrelfa apropriado delas. N. de J.-J. Rousseau.
-

29 449
O seu acolhimento foi como o do conde de Tuffiêre; mal se
dignou corresponder ao meu cumprimento; nem uma só vez me
dirigiu a palavra, e, como me não respondia absolutamente
nada, em breve me dispensou de lha dirigir a ele. Era o pri­
meiro em toda a parte, em toda a parte ocupava o primeiro
lugar, nunca me dispensando a menor atenção. Se nisto não
houvesse posto certa afectação insultante, vamos: um só epi­
sódio entre mil permitirá, porém, avaliar-se o seu procedimento.
Como Madame d'Epinay certa noite se encontrava um pouco
indisposta, disse que lhe levassem qualquer coisa de comer ao
quarto, e subiu para ir cear ao pé do lume. Convidou-me para
subir com ela; o que fiz. Grimm apareceu em seguida. A mesi­
nha já se achava posta; só havia dois talheres. Serviram:
Madame d'Epinay toma lugar a um dos cantos do lume; Mon­
sieur Grimm puxa uma poltrona, instala-se no outro canto,
puxa a mesinha para entre os dois, desdobra o guardanapo e
prepara-se para cear, sem me dizer uma só palavra. Madame
d'Epinay cora, e, para o levar a corrigir a indelicadeza, ofere­
ceu-me o seu próprio lugar. Grimm nada disse e nem para mim
olhou. Como me não podia aproximar do lume, decidi passear-me
através do quarto, esperando que me trouxessem um talher.
Deixou-me cear no extremo da mesa, longe do lume, sem ter
a menor cortesia por mim, por mim que estava incomodado, que
era mais velho do que ele em idade e na casa onde o havia
apresentado, e a quem até, na minha qualidade de favorito da
dona desta, ele devia prestar as suas homenagens. Todo o seu
procedimento comigo correspondia exactamente a esta amostra.
Não me tratava precisamente como seu inferior; considerava-me
nulo. Mal podia reconhecer neste homem o antigo pedante que,
em casa do príncipe de Saxe-Gota, se achava honrado com os
meus olhares. Mais difícil ainda me era conciliar este profundo
silêncio, esta arrogância insolente, com a terna amizade que
ele se gabava de ter por mim, junto de todos aqueles mesmos
que sabia terem-na de facto. E certo que só a testemunhava
para me lastimar da minha fortuna, da qual eu próprio me
não lastimava, para se compadecer da minha sorte, com a qual
eu me achava contente, e para se lamentar de ver-me recusar
com dureza os cuidados benévolos que dizia querer prestar-me.
Era com tal arte que fazia com que lhe admirassem a terna
generosidade, lamentassem a minha ingrata misantropia, acos­
tumando assim insensivelmente toda a gente a não imaginar
entre um protector como ele e um desgraçado como eu outras
relações além de benefícios de um lado, e obrigações do outro,

450
sem suporem, mesmo nos possíveis, uma amizade de igual para
igual. Por mim, procurei em vão em que é que podia estar
obrigado a este novo patrão. Tinha-lhe emprestado dinheiro,
ele nunca mo emprestou; tinha-o assistido na sua doença, ele
mal me vinha visitar nas minhas ; tinha-lhe dado todos os meus
amigos, ele nunca me deu nenhum dos seus; tinha-o enaltecido
com toda a minha força, ele ... Ele, se alguma vez me enalteceu,
foi menos publicamente, foi de outra maneira. Nunca me pres­
tou nem me ofereceu serviço algum de qualquer espécie. Como
é que ele era então o meu !Mecenas? Como é que eu era o seu
protegido? Não o compreendia, e não o compreendo ainda.
Ê certo que, do mais alto ao mais baixo, era arrogante
com toda a gente, mas com ninguém mais brutalmente do que
comigo. Lembro-me de que uma vez Saint-Lambert esteve a
pique de lhe atirar com o guardanapo à cara, em virtude de
uma espécie de desmentido que, em plena mesa, Grimm lhe
dirigiu, dizendo grosseiramente: Isso não é verdade. Ao seu
tom naturalmente categórico, acrescia a suficiência de um
arrivista, e, 1à força de impertinência, tornou-se mesmo ridículo.
O comércio com os grandes tinha-o seduzido, a ponto de se dar
a si mesmo ares que só se descobrem nos menos sensatos dentre
eles. Nunca chamava o lacaio senão por Eh!, como se, dentre
todo o seu numeroso pessoal, ISua ExceMncia não soubesse qual
estava de serviço. Quando o mandava a qualquer recado, atira­
va-lhe com o dinheiro ao chão, em vez de lho dar à mão.
Enfim, esquecendo-se inteiramente de que lidava com um
homem, tratava-o com um tão afrontoso desprezo, com uma
altivez tão dura em tudo, que o pobre rapaz, excelente criatura
que Madame d'Épinay lhe havia dado, abandonou o serviço, sem
outro agravo além da impossibilidade de suportar tal trata­
mento: era o La Fleur deste novo Glorieux '.
Tão fátuo quanto vaidoso; com os seus grandes olhos baços
e a sua figura desajeitada, tinha pretensões com as mulheres,
e depois da 'farsa com Mademoiselle Fel, passava junto de mui­
tas dentre elas por homem de grandes sentimentos. Tal coisa
lançara-o na berra, e dera-lhe o gosto da elegância femi­
nina: deu-lhe para parecer bonito; o seu amanho passou a ser
uma questão importante ; toda a gente sabia que ele punha
creme, e eu, que não acreditava em nada disso, comecei a acre­
ditá-lo, não só pelo embelezamento da sua tez, e por lhe haver

1 Personagens de uma comédia de Destouches. - N. do T.

451
encontrado umas taças de creme em cima do toucador, mas pelo
facto de, ao entrar-lhe uma manhã no quarto, o encontrar a
escovar as unhas com uma escovinha apropriada; ocupação que
continuou intrepidamente na minha presença. Pensei que um
homem que todas as manhãs passa duas horas a escovar as
unhas, pode bem passar alguns instantes a encher de creme as
rugas da pele. O simplório do Gauffecourt, que não tinha malí­
cia nenhuma, havia-o alcunhado com muita graça de Tyran-le­
Blanc 1•

Tudo isto eram apenas ridículos, bastante antipáticos, no


entanto, para o meu carácter, e que acabaram por me tornar
suspeito o dele. Custa-me a acreditar que um homem com a
cabeça assim transtornada possa conservar o coração no seu
devido lugar. Não havia nada de que ele mais se gabasse do que
possuir sensibilidade de alma e energia de sentimento. Como se
harmonizava tal coisa com os defeitos pró , prios das almas mes­
quinhas? Como podem os vivos e permanentes entusiasmos que
um coração sensível tem para além de si mesmo permitir-lhe
que se ocupe constantemente com uma quantidade de pequenos
cuidados a respeito da sua insignificante pessoa? Oh, meu Deus!,
aquele que sente abrasar-se-lhe o coração com semelhante fogo
celeste procura exalá-lo, e quer mostrar o seu intimo. Desejaria
trazer o coração no rosto; nunca conceberá pintura diferente.
Lembrei-me do resumo da sua moral, que Madame d'Épinay
me tinha comunicado, e que ele havia adoptado. Tal resumo
consistia apenas num artigo, a saber, que o único dever do
homem é o de em tudo seguir as inclinações do seu coração.
Quando dela tomei conhecimento, semelhante moral deu-me
terrivelmente que pensar, embora eu então a tomasse apenas
por um jogo de espírito. Em breve vi porém que esse principio
era realmente a sua regra de conduta, e posteriormente não
poucas provas dela tive à minha custa. É a doutrina interior de
que Diderot tanto me falou, mas que nunca me explicou.
Lembrei-me das frequentes prevenções que há muitos anos
me haviam feito, de que este homem era falso, que simulava
sentimento, e sobretudo que me não amava. Lembrei-me de
algumas pequenas anedotas que a este respeito me haviam con­
tado Monsieur de Francueil e Madame de Chenonceaux; nem
um nem outro o estimava, e deviam.,.no conhecer, visto que
Madame de Chenonceaux era filha de Madame de Rochechouart,

I Isto é: Tirano-o-Branco. A assonância só na língua original con­


serva o sabor. - N. do T.

452
amiga intima do falecido conde de Friêse, e visto que Monsieur
de Francueil, então muito íntimo do visconde de Polignac, tinha
vivido bastante no Palais-Royal, precisamente quando Grimm
'
aqui começou a introduzir-se. P aris inteiro teve conhecimento
do seu desespero depois da morte do conde de Friêse. Tratava-se
de manter a reputação que tinha conseguido depois dos rigores
de Mademoiselle Fel, e cuja fanfarrice melhor que ninguém eu
teria percebido, se fosse então menos cego. Foi preciso arrastá-lo
ao palacete de Castries, onde representou dignamente o seu
papel, abandonado à mais mortal aflição. Todas as manhãs ali
ia chorar à sua vontade para o jardim, conservando nos olhos o
lenço encharcado em lágrimas, enquanto estava à vista do pala­
cete; contudo, ao voltar certa álea, umas pessoas em que não
reparava viram-no meter imediatamente o lenço na algibeira e
puxar por um livro. Semelhante observação, repetida, foi em
breve notória em todo Paris, e quase imediatamente esquecida.
Eu próprio me havia esquecido dela; um facto que me dizia res­
peito fez com que a recordasse. Achava-me de cama, no último
extremo, na rua de Grenelle: Grimm achava-se no campo; uma
manhã, veio ver-me todo esfalfado, dizendo-me que acabava de
chegar naquele mesmo instante; um momento depois soube que
tinha chegado na véspera, e que no mesmo dia o haviam visto
no teatro.
Recordo-me de mil factos desta natureza; contudo, uma
observação que me admirei de fazer tão tarde impressionou-me
mais do que tudo isto. Eu havia dado a Grimm todos os meus
amigos sem excepção, e estes tinham-se todos tornado seus
amigos. Podia tão pouco separar-me dele, que mal desejaria
entrar numa casa onde ele não tivesse igualmente entrada.
S,ó 'Madame de Créqui recusou recebê-lo, e eu também quase
deixei de a visitar dessa altura em diante. Por seu lado, Grimm
ganhou outros amigos, tanto da sua estirpe, como da do conde
de Friêse. De todos estes amigos, nunca um só se ligou comigo;
nunca ele me disse uma palavra para me levar ao menos a
travar conhecimento com eles, e de todos os que algumas vezes
encontrei em sua casa, nunca nem um só me testemunhou a
menor benevolência, nem sequer o conde de Friêse, em casa
de quem Grimm habitava, e com o qual, por conseguinte, me
teria sido agradável manter quaisquer relações, nem com o
conde de Schomberg, seu parente, com quem Grimm tinha mais
intimidade.
Ainda mais: os meus próprios amigos, que eu fiz seus, e que
antes de o conhecerem me eram todos ternamente afeiçoados,

453
mudaram insensivelmente para comigo quando tal se deu.
Grimm nunca me deu nenhum dos dele; eu dei-lhe todos os
meus, e ele acabou por mos roubar todos. 'Se são estes os efeitos
da amizade, quais serão os do ódio? O próprio Diderot me
advertiu várias vezes, de começo, que Grimm, em quem eu tanto
confiava, não era meu amigo. Posteriormente, alterou a sua
maneira de se exprimir, quando ele próprio deixou de ser meu
amigo.
A maneira como eu havia disposto dos meus filhos não
necessitava do auxilio de ninguém. No entanto, dei parte do
facto aos meus amigos, unicamente para os tornar cientes dele
e para não parecer aos seus olhos melhor do que era. Estes
amigos eram em número de três: Diderot, Grimm, !Madame
d'Épinay; Duelos, o mais digno da minha confiança, foi o
único a quem a não dispensei. Soube, no entanto, do caso; por
quem? Ignoro-o. Não é de maneira nenhuma provável que
semelhante inconfidência tenha partido de Madame d'Épinay,
a qual sabia que imitando-a, se 'de tal fosse capaz, tinha com
que me vingar cruelmente dela. Restam Grimm e Diderot, uni­
dos então em tantas coisas, sobretudo contra mim, que é mais
do que provável que tal crime lhes caiba em comum. Apostaria
que Duelos, a quem não confiara o meu segredo, e que, por
conseguinte, era senhor dele, foi o único que mo guardou.
No seu projecto para me tirarem as amas, Grimm e
Diderot haviam-se esforçado por associá-lo às suas intenções:
a isso se recusou Duelos sempre com desprezo. Só mais tarde
soube por este tudo o que a semelhante respeito se tinha passado
entre eles, mas desde então soube por Teresa o bastante para
ver que em tudo isto havia um móbil secreto, e que queriam
dispor de mim, senão contra a minha vontade, ao menos sem
eu o saber, ou então que queriam fazer com que estas duas
pessoas servissem de instrumento para qualquer desígnio oculto.
Nada disto era certamente muito correcto. A oposição de Duelos
prova-o sem contestação. Quem quiser que acredite que se
tratava de amizade.
Esta pretensa amizade era-me tão fatal dentro como fora.
Os longos e frequentes conciliábulos com IMadame Le Vasseur há
vários anos que haviam sensivelmente alterado .esta mulher a
meu respeito, e tal alteração não me era certamente favorável.
De que tratavam eles nestas singulares práticas a sós? Porquê
este profundo mistério? Era então a conversa desta velha assim
tão agradável para a obterem à socapa, .e assim tão importante
para a transformarem num segredo? Tais colóquios, que dura-

454
vam há três ou quatro anos, pareciam-m€ ridículos: voltando
a pensar neles então, comecei por me admirar do facto. Seme­
lhante admiração teria ido até à inquietação, se soubesse logo
o que esta mulher me pr€parava.
Apesar do pretenso zelo comigo de que exteriormente Grimm
se gabava, difícil de conciliar com o tom que tomava na minha
própria presença, de lado nenhum me vinha algo qu€ fosse a
meu favor, e a comiseração que ele fingia ter por mim tendia
muito menos a servir-me do que a envilecer-me. Tanto quanto
isso dependia dele, até me ti,rava o recurso do oficio que
havia escolhido, desacreditando-me como mau copista, e nisso
convenho que dizia a verdade; mas não lhe competia a ele
dizê-la. Provava que não se tratava de um gracejo, servindo-se
de outro copista, e não me deixando nenhum dos clientes que
podia tirar-me. Dir-se-ia que o seu projecto era fazer depen­
der-me dele e do seu crédito, pelo que toca à minha subsistên­
cia, estancando a fonte desta até que a isso me visse reduzido.
Tudo isto bem pesado, a minha ·razão fez calar a minha
antiga disposição a seu favor, que falava ainda: considerei o seu
carácter pelo menos muito suspeito, e quanto à sua ami�ade,
decretei-a falsa. Em seguida, resolvido a não voltar a vê-lo,
avisei disso Madame d'Épinay, escorando a minha resolução
com vários factos irrespondiveis, que não me ocorrem agora.
Esta combateu veementemente tal resolução, sem saber
muito bem como responder às razões em que ela se apoiava.
Não se tinha ainda concertado com Grimm. No dia seguinte,
contudo, em vez de se explicar verbalmente comigo, enviou-me
uma carta muito hábil, preparada pelos dois, e na qual, sem
entrar em nenhum pormenor relativo aos factos, Madame
d'Épinay o justificava pelo seu carácter fechado, e, censuran­
do-me por julgá-lo pérfido para com o amigo, exortava-me a
que me reconciliasse com ele. Esta carta, que se encontra no
Maço A, n.o 48, abalou-me. Numa conversa que a seguir tivemos,
e na qual a encontrei mais bem preparada do que da primeira
vez, acabei por me deixar vencer: cheguei a acreditar que podia
muito bem ter pensado mal, e que neste caso tinha realmente
cometido, para com um amigo, faltas graves que devia reparar.
Numa palavra, como havia já sucedido com Diderot, com o barão
d'Holbach, em parte por vontade minha, em parte por fra­
queza, fui eu quem deu todos os passos que estava no direito
de exigir; fui, qual outro Jorge Dandin 1, a casa de Monsieur

1 Personagem da comédia de MolH:re do mesmo nome. - N. do T.

455
Grimm para lhe apresentar desculpas pelas ofensas que dele
recebera, levado sempre por uma errónea persuasão que na
vida me fez cometer mil baixezas junto dos meus falsos amigos,
qual é a de não existir ódio que se não desarme à força de doçura
e de bons métodos, quando pelo contrário o ódio dos maus se
torna ainda mais vivo graças à impossibilidade de encontrar
algo sobre que se apoie, e quando o sentimento da sua própria
injustiça não é senão um agravo contra a-quele que dela é
objecto. !Sem sair da minha própria história, tenho uma prova
fortíssima desta máxima nas pessoas de Grimm e Tronchin, que,
por gosto, por prazer, por fantasia, se tornaram os meus dois
mais implacáveis inimigos, sem poderem alegar ofensa alguma
de qualquer espécie que eu haja alguma vez cometido para
com nenhum deles r, e cuja raiva cresce, como a dos tigres, de
dia para dia, graças à facilidade que têm em cevá-la.
Esperava que Grimm, confundido pela minha condescen­
dência e por ir ao encontro dele, me recebesse de braços abertos,
com a mais terna amizade. Recebeu-me como um imperador
romano, com uma soberba que nunca havia visto em ninguém.
Não me achava de maneira nenhuma preparado para seme­
lhante recepção. Quando, na atrapalhação de um papel tão
pouco a meu jeito, satisfiz, em poucas palavras, e com um ar
tímido, o objecto que me havia trazido junto dele, Grimm,
antes de me conceder a sua graça, pronunciou, com toda a
majestade, uma comprida arenga que havia preparado, a qual
continha a dilatada enumeração das suas raras virtudes, sobre­
tudo na amizade. Insistiu durante bastante tempo numa coisa
que a princípio muito me impressionou, qual era a de que
sempre lhe viam conservar os mesmos amigos. Enquanto ele
ia falando, eu dizia baixinho para comigo que seria bem cruel
para mim constituir a única excepção a esta regra. Voltou
tantas vezes à mesma, e com tal afectação, que me levou a pen­
sar que se nisso não fazia senão seguir os sentimentos do seu
coração, impressionar-se-ia menos com tal máxima, e que dela
fazia uma arte útil aos seus desígnios nos meios de subir. Eu até
então tinha estado nos mesmos casos, havia conservado sempre
os meus amigos; desde a minha mais tenra infância não havia

1 Posteriormente, só dei ao último a alcunha de Jongleur muito


tempo depois da sua declarada inimizade, e das atrozes perseguições que
contra mim havia movido em Genebra e alhures. Até suprimi mesmo
em breve tal nome, ao sentir-me inteiramente sua vítima. As baixas vin­
ganças são indignas do meu coração, e o ódio nunca nele se instala. -

N. àe J.-J. Rousseau.

456
perdido um só, a não ser por morte, e contudo não havia até
então reflectido nisso; não era uma máxima que a mim próprio
houvesse prescrito. Visto tratar-se nesse caso de uma superiori­
dade comum a um e a outro, porque se vangloriava ele então
dela particularmente, senão porque pensava de antemão ti­
rar-ma? Obstinou-se em seguida em humilhar-me, provando-me
a preferência que os nossos amigos comuns tinham por ele.
Conhecia tão bem como ele tal prefevência; a questão era saber
a que título a havia obtido; se era à força de mérito ou de habili­
dade, engrandecendo-se ele próprio ou procurando rebaixar-me.
Quando, por fim, pôs a seu contento entre ele e mim toda a
distância que podia dar valor à graça que ia dispensar-me,
concedeu-me o beijo de paz num breve amplexo que se asseme­
lhava à acolada que o rei \dá aos novéis cavaleiros. Eu caía
das nuvens, estava estupefacto, não sabia que dizer, não
achava uma palavra. Toda esta cena tinha o ar de uma
descompostura que um preceptor dá ao discípulo, perdoando­
-lhe o chicote. Nunca em tal penso sem sentir como são enga­
nosos os juizos fundados nas aparências, aos quais o vulgo
dá tanto peso, e como tantas vezes a audácia e a arrogáncia
estão do lado do culpado, a vergonha e a confusão do lado do
inocente.
Estávamos reconciliados; tal coisa era sempre um alivio
para o meu coração, que qualquer questão lança em angústias
mortais. Presume-se perfeitamente que semelhante reconci­
liação não alterou as maneiras de Grimm; apenas me retirou o
direito de me queixar delas. Tomei por conseguinte o partido
de suportar tudo, e de nada mais dizer.
Tantos desgostos uns após outros lançaram-me num abati­
mento que não me deixava de maneira nenhuma forças para
retomar o domínio de mim próprio. Sem resposta de Saint­
-Lambert, desprezado por Madame d'Houdetot, sem ousar já
abrir-me com ninguém, comecei a temer que tendo feito da
amizade o ídolo do meu coração não houvesse senão dedicado
a minha vida a sacrificar a quimeras. Tirada a prova, de todas
as minhas relações apenas me restavam dois homens que haviam
conservado toda a minha estima, e a quem o meu coração
podia dar a sua confiança: Duelos, que depois de me haver
retirado à Hermitage tinha perdido de vista, e Saint-Lambert.
Pensei que não podia reparar melhor as minhas faltas para com
este último do que abrindo-lhe sem reservas o meu coração,
e resolvi fazer-lhe abertamente as minhas confissões em tudo
o que não comprometesse a amante. Duvido que tal escolha não

457
fosse ainda um ardil da minha pa1xao para me conservar
mais perto dela; mas o certo é que me teria colocado inteira­
mente debaixo da sua direcção e que teria levado a franqueza
tão longe quanto possível. Preparava-me para lhe escrever
segunda carta, à qual tenho a certeza responderia, quando soube
a triste causa do seu silêncio a respeito da primeira. Não havia
podido aguentar até ao fim as fadigas desta campanha. Madame
d'Epinay comunicou-me que o nosso amigo acabava de ter um
ataque de paralisia, e IMadame d'Houdetot, que na sua aflição
acabou também por cair doente, e que ficou impossibilitada
de me escrever imediatamente, noticiou-me dois ou três dias
depois, de Paris, onde então se achava, que Saint-Lambert
partira para os banhos de Aix-la-Chapelle. Não digo que esta
triste nova me afligisse como a ela; mas duvido que a angústia
que senti me custasse menos do que a sua dor e as suas lágrimas.
O desgosto por sabê-lo em semelhante estado, acrescido do receio
de que a inquietação houvesse contribuído para lho causar,
atingiu-me mais do que tudo o que até então me havia acon­
tecido, e senti cruelmente que, na minha própria estima, me
faltava a força de que necessitava para suportar tanto des­
gosto. Felizmente, o meu generoso amigo não me deixou muito
tempo em semelhante abatimento; apesar do ataque, não me
esqueceu, e não tardou que por ele próprio viesse a saber que
havia julgado muito mal dos seus sentimentos e do seu estado.
li:, porém, o momento de chegarmos à grande revelação do meu
destino, à catástrofe que separou a minha vida em duas partes
tão diferentes, e que duma causa tão superficial originou tão
terríveis consequências.
Um dia, quando menos em tal pensava, Madame d'.Epinay
mandou-me chamar. Ao entrar, percebi nos seus olhos e em
toda a sua atitude um ar de perturbação que me impressionou
tanto mais quanto semelhante ar não era vulgar nela, pois
não havia ninguém no mundo que melhor soubesse dominar o
seu rosto e os seus movimentos. Meu amigo, disse-me ela, parto
para Genebra; tenho o peito em mau estado, a minha saúde
arruína-se a um ponto tal que, pondo tudo de lado, forçoso me
é ir ver e consultar Tronchin. Tal resolução, tomada tão repen­
tinamente no começo do Inverno, admirou-me tanto mais ,quanto
era certo eu tê-la deixado há trinta e seis horas sem que se
falasse no assunto. Perguntei-lhe quem levaria na sua com­
panhia. Respondeu-me que levaria o filho com Monsieur Linant,
e em seguida acrescentou negligentemente: E vós, meu urso,
não vireis também? Como imaginei que ela não falasse a sério,

458
visto saber que na estação em que entrávamos mal podia sair
do meu quarto, disse umas graças sobre a utilidade do acompa­
nhamento de um doente por outro doente; ela própria pareceu
não haver feito a proposta a valer, e não se tocou mais na
·questão. Não voltámos a falar senão nos preparativos para a
viagem, de que Madame d'Epinay se ocupava com extrema viva­
cidade, resolvida como estava a partir dentro de quinze dias.
Não precisava de muita penetração para compreender que
a viagem tinha um motivo secreto que me ocultavam. Seme­
lhante segredo, que em toda a casa só para mim o era, foi
descoberto logo no dia imediato por Teresa, a quem Teissier, o
mordomo, que o havia sabido pela criada de quarto, o revelou.
Ainda que não deva tal segredo a Madame d'Epinay, visto que
não o soube por ela, acha-se demasiado ligado àqueles a quem
quero, para que possa separá-lo deles; assim, calar-me-ei neste
artigo. Tais segredos, que nunca saíram, nem sairão da minha
boca, nem da minha pena, vieram, contudo, ao conhecimento
de suficientes pessoas para poderem ser ignorados em toda
a roda de lMadame d'Epinay.
Sabedor do verdadeiro motivo da viagem, teria reconhecido
a secreta impulsão de uma mão inimiga, na tentativa de nela
fazer de barnabé de IMadame d'Epinay; ela, porém, havia insis­
tido tão pouco, que persisti em não tomar a sério tal tentativa,
e apenas me ri do lindo papel que desempenharia, se caisse na
tolice de me encarregar dele. Aliás, !Madame d'Epinay ganhou
muito com a minha recusa, porque conseguiu fazer com que
o próprio marido a acompanhasse.
Alguns dias depois, recebi de IDiderot o bilhete que trans­
crevo. Tal bilhete, dobrado apenas em dois, de maneira que tudo
o que dentro vinha se pudesse ler sem dificudade, foi-me diri­
gido para casa de lMadame d':Epinay, e reéomendado a Monsieur
áe Linant, preceptor do filho e confidente da mãe.

Bilhete de Diderot

(Maço A, n.0 52)

Nasci para vos amar e para vos dar desgostos. Sei que
Madame d'Épinay vai a Genebra, e não ouço dizer que a acom­
panhais. Meu amigo, de bem com Madame d'Épinay, é mister
partir .com ela: de mal, mister é partir ainda mais depressa.
Achai-vos sobrecarreuado com o peso das obriuacões que lhe

459
deveis? eis uma ocasião de vos desobrigardes em parte e de vos
aliviardes. Achareis na vida outra ocasião para lhe provardes
o vosso reconhecimento? Madame d'Épinay parte para uma
ter,ra onde se achará como que caida das nuvens. Encontra-se
doente: necessitará de divertimento e de distracção. O Inverno!
vede meu amigo. O estorvo da vossa saúde poderá ser mais
tarte do que eu julgo. Estais porém hoje mais mal do que há
um mês, ou do que o estareis no começo da Primavera? Dentro
de três meses tareis a viagem mais comd o amente do que hoje?
Por mim, confesso-vos que se não pudesse suportar a oadeirinha,
agarraria num cajado e se,gui-la-ia. E depois, não temeis que
interpretem mal o vosso procedimentd? Desconifiarão ou de
ingratidão, ou de qualquer outro motivo secreto. Sei bem que,
no quer que façais, tereis sempre por vós o testemunho da vossa
consciência, mas bastará apenas este testemunho, e será lícito
desprezàr até certo ponto o dos outros homens? De resto, meu
amigo, é para me desobrigar convosco e comigo que vos es,crevo
este bilhete. Se vos desagradar, lançai-o ao togo, e que se não
volte a talar nele, como se nunca houvesse sido escrito. Saúdo­
-vos, amo-vos e abraço-vos.

O estremecimento de cólera, o assombro que se apoderaram


de mim ao ler este bilhete, e que mal me permitiram terminá-lo,
não me impediram de notar a habilidade com que Diderot nele
ostentava um tom mais doce, mais carinhoso, mais cortês do
que em todas as suas outras cartas, nas quais quanto muito
me tratava por meu caro, sem se dignar dar-me o nome de
amigo. Fàcilmente percebi por que maneira indirecta chegava
até mim o bilhete, cuja assinatura, cuja forma e cuja marcha
traíam até bastante desastradamente o rodeio que tomara:
porque nós escrevíamo-nos de ordinário pelo correio ou pelo
recoveiro de Montmorency, e esta foi a primeira e única vez
que Diderot se serviu de semelhante via.
Quando o primeiro arrebatamento da indignação me permi­
tiu escrever, rascunhei precipitadamente a seguinte resposta,
que da Hermitage, onde então me encontrava, levei imediata­
mente à Chevrette, para a mostrar a Madame d'l!:pinay, a
quem, na minha cega cólera, eu próprio a quis ler, bem como
o bilhete de Diderot.

Meu caro amigo, não podeis saber nem a torça das obri­
gações que posso ter para ,com Madame d'Épinay, nem a que
ponto estas me t�m sujeito, nem se ela tem realmente necessi··

460
dade de mim na sua viagem, nem se desej,a que a acompanhe,
nem se me é possível fazê-lo, nem as razões que posso ter para
me abster. Não me furto a discutir convosco todos estes pontos;
no entrementes, heis-de convir porém que prescrever-me tão
afirmativamente o que devo fazer, sem vos haverdes colocado
no estado de julgar de tal coisa, é, meu caro filósofo, opinar de
uma forma francamente leviana. O que há de pior em tudo
isto é que o vosso conselho não parte de vós. Além ·de que não
tenho muito feitio para me deixar levar em vosso nome por
um terceiro ou um quarto, acho nestes r�cochetes certos rodeios
que não são próprios da vossa franqueza, e de que, por vós e
por mim, tareis bem em abster-vos doravante.
Receais que interpretem mal o meu procedimento; eu porém
desafio um coração como o vosso a que ouse pensar mal do
meu. Talvez que outros falassem melhor de mim se eu me
parecesse mais com eles. Deus me livre de merecer a sua apro­
vação! Que os maus me espiem e interpretem: Rousseau não
nasceu para os temer, nem Diderot para os escutar.
Quereis, se o vosso bilhete me desagradou, que o lance ao
togo, e que não se volte a talar nele! Julgais que se esquece
assim o que vem de vós? Meu caro, ligais tanta importância
às minhas lágrimas, nos desgostos que me dais, como à minha
vida e à minha saúde nos cuidados que me exortais a tomar.
Se pudésseis disto corrigir-vos, a vossa amizade ser-me ia mais
doce, e eu tornar-me-ia menos digno de dó.

Ao entrar no quarto de Madame d'Épinay, encontrei Grimm


na sua companhia, e fiquei encantado. Li-lhes alto e bom som
as duas cartas, com uma coragem de que me não julgaria capaz,
e, para terminar, acrescentei-lhes algumas falas que a não
desmentiam. Vi-os aterrados, estupefactos um e outro, sem nada
responderem, ante a audácia inesperada de um homem ordi­
nàriamente tímido; vi sobretudo aquele arrogante homem baixar
os olhos ao chão, sem ousar aguentar as chispas do meu olhar;
no mesmo instante, porém, jurava, no fundo do seu coração,
a minha perda, e tenho a certeza de que a combinaram antes
de se separarem.
Foi pouco mais ou menos nessa altura que, por intermédio
de Madame d'Houdetot, recebi finalmente de Saint-Lambert,
datada ainda de Wolfenbutel, poucos dias antes do acidente,
a resposta (Maço A, n.o 57) à minha carta que havia demorado
tanto tempo na viagem. Esta carta, cheia de demonstrações de
estima e amizade, trouxe-me as consolações de que em tal

461
momento tanta necessidade tinha, e que me deram a coragem
e a força para as merecer. A partir deste momento, cumpri o
meu dever; é no entanto fora de dúvida que se Saint-Lambert
se houvesse mostrado menos sensato, menos generoso, menos
homem de bem, eu estaria irremediàvelmente perdido.
O tempo piorava, e começava a retirada do campo. Madame
d'Houdetot comunicou-me o dia em que tencionava fazer as
suas despedidas ao vale, e marcou-me um encontro em Eau­
bonne. Por acaso, este dia era o mesmo em que iMadame d'Épinay
abandonava a Chevrette para partir para Paris, a ultimar os
preparativos da viagem. Felizmente, partiu de manhã, e eu
ainda tive tempo, ao deixá-la, de ir jantar com a cunhada.
Tinha na algibeira a carta de Saint-Lambert; reli-a várias
vezes de caminho. Esta carta serviu-me de escudo contra a
minha fraqueza. Tomei e cumpri a resolução de não voltar
a ver em iMadame d'Houdetot mais do que uma amiga minha
e a amante de um amigo meu, e passei sozinho com ela quatro
ou cinco hor , as numa tranquilidade deliciosa, infinitamente
preferível, mesmo pelo que toca ao prazer, àqueles acessos de
febre ardente que até então tinha tido junto dela. Como Madame
d'Houdetot sabia por de mais que o meu coração não tinha
mudado, ficou sensibilizada com os esforços que eu fizera para
me dominar; estimou-me mais por isso, e tive o prazer de ver
que a sua amizade por mim não se achava extinta. Anunciou-me
para breve o regresso de Saint-Lambert, que, embora consi­
deràvelmente melhor do ataque, se não achava em estado de
continuar a sofrer as fadigas da guerra, e abandonava o serviço
militar para vir viver tranquilamente ao pé dela. Delineámos o
encantador projecto de uma estreita sociedade entre os três,
e podíamos esperar que a execução de semelhante projecto seria
duradoira, visto que tinha por base todos os sentimentos que
podiam unir os corações sensíveis e rectos, e dado que reunia­
mos os três suficientes talentos e conhecimentos para nos poder­
mos bastar a nós próprios, sem ter necessidade de qualquer
complemento estranho. :Ai de mim! ao entregar-me à espe­
rança de uma tão doce vida, não imaginava de maneira
nenhuma o que me esperava.
Falámos em seguida da minha situação presente com
Madame d'l!:pinay. Mostrei-lhe a carta de Diderot com a minha
resposta: contei-lhe pormenorizadamente tudo o que se havia
passado a este respeito, e transmiti-lhe a minha resolução de
abandonar a Hermitage. Madame d'Houdetot opôs-se a isso
vivamente, com razões fortemente poderosas para o meu cora-

462
ção. Manifestou-me o seu grande desejo de que eu tivesse feito
a viagem a Genebra, prevendo que não deixariam de a compro­
meter a ela com a minha recusa: o que a carta de Diderot pare­
cia anunciar antecipadamente. No entanto, como conhecia tão
bem como eu as minhas razões, não insistiu neste artigo; supli­
cou-me, porém, que evitasse a todo o custo qualquer escândalo,
e que atenuasse a minha recusa com razões suficientemente
plausíveis para afastar a injusta desconfiança de haver con­
tribuído para ela. Disse-lhe que a tarefa que me impunha não
era fácil; mas que, resolvido a expiar as minhas faltas mesmo
à custa da minha reputação, queria dar a preferência à dela,
em tudo o que a honra me permitisse sofrer. Em breve se verá
se soube cumprir o meu compromisso.
A minha paixão estava longe de haver perdido algo da
sua força, e eu posso jurar que nunca amei a minha Sofia
mais vivamente do .que naquele dia. A impressão que me fez
a carta de Saint-Lambert, o sentimento do dever e o horror
da perfídia foi porém tal que, durante toda a entrevista, os
meus sentidos me deixaram completamente em paz junto dela.,
e nem sequer me tentei a beijar-lhe a mão. Ao partir, beijou-me
diante do pessoal. Este beijo, tão diferente dos que lhe havia
algumas vezes roubado sob a folhagem, foi para mim uma
garantia de que havia recobrado o domínio sobre mim mesmo:
tenho quase a certeza de que se o meu coração tivesse tido
tempo para se fortalecer em paz, não me seriam precisos três
meses para me curar radicalmente.
Aqui terminam as minhas relações pessoais com Madame
d'Houdetot. Relações que cada qual, segundo as disposições do
seu próprio coração, pôde julgar pelas aparências, mas nas quais
a paixão que esta gentil mulher me inspirou, a mais viva por­
ventura que ainda homem algum sentiu, se honrará sempre,
de nós para com o céu, com os raros e penosos sacrifícios feitos
por ambos ao dever, à honra, ao amor e à amizade. Tínhamo­
-nos elevado demasiado aos olhos um do outro para fàcilmente
podermos aviltar-nos. Era mister ser-se indigno de toda e qual­
quer estima para nos resolvermos a perder uma de tão alto
preço, e a própria energia dos sentimentos que nos podiam
tornar culpados foi o que nos impediu de o virmos a ser.
Foi assim que depois de uma tão longa amizade por uma
destas mulheres, e de um tão ardente amor pela outra, eu
lhes fiz separadamente as minhas despedidas no mesmo dia:
a uma para nunca mais na minha vida a tornar a ver, 'à outra

463
para só tornar a vê-la por duas vezes, em ocasiões que relatarei
a seguir.
Após a sua partida, achei-me grandemente embaraçado
para dar cumprimento a tantos e tão instantes e contraditórios
deveres que as minhas imprudências me haviam acarretado.
Se me achasse no meu estado normal, depois da proposta e da
recusa de ir a Genebra não tinha mais que ficar quedo, e tudo
estava dito. Havia, porém, dado idiotamente um passo, que não
podia ficar por ali, e só abandonando a Hermitage é que eu me
podia dispensar de toda e qualquer explicação ulterior; coisa
que acabava de prometer a IMadame d'Houdetot não fazer, pelo
menos por enquanto. Aiém disso, tinha exigido que eu apre­
sentasse aos meus pretensos amigos desculpas por me haver
subtraído à viagem, para que lhe não imputassem a ela a minha
negativa. No entanto, não podia alegar a razão verdadeira sem
ultrajar Madame d'Êpinay, a quem estava certamente reconhe­
cido, depois de tudo o que ela havia feito por mim. :Sem vistas
as coisas, encontrei-me na dura, mas necessária alternativa
de desrespeitar a IMadame d'.Épinay, ou a Madame d'Houdetot,
ou a mim próprio, e tomei o último partido. Tomei-o aberta­
mente, inteiramente, sem tergiversar, e com uma generosidade
certamente digna de lavar as faltas que me haviam reduzido
a estes extremos. Tal sacrifício, que os meus inimigos souberam
aproveitar, e que talvez esperassem, arruinou a minha repu­
tação, e graças aos seus cuidados, alienou-me a estima pública;
restituiu-me porém a minha, e consolou-me nas minhas desdi­
tas. Não foi, como se verá, a última vez que fiz semelhantes
sacrifícios, nem a última igualmente que se valeram deles para
me abaterem.
Grimm era o único que parecia não ter tido intervenção
nenhuma na questão; foi a ele que resolvi dirigir-me. Escrevi­
-lhe uma grande carta, em que lhe expunha o ridículo de querer
impor-me como um dever a viagem a Genebra, a inutilidade,
o estorvo mesmo que eu representava para !Madame d'Épinay,
assim como os inconvenientes que dela resultariam para mim
próprio. Não resisti à tentação de lhe dar a perceber na carta
que me achava ao facto do que se passava, e que me parecia
singular pretenderem que era a mim que competia f:azer a
viagem, ao passo que ele próprio a ela se furtava, não se alu­
dindo sequer à sua pessoa. Como não podia explicar claramente
as minhas razões e me vi frequentemente forçado a divagar,
esta carta poderia assacar-me aos olhos do público inúmeras
faltas; era, contudo, um exemplo de continência e de discrição

464
para as pessoas que, como Grimm, estavam ao corrente das
coisas que eu nela calava, e que justificavam perfeitamente o
meu procedimento. Não receei mesmo introduzir nela um pre­
juízo a mais contra mim, atribuindo o conselho de Diderot aos
meus outros amigos para insinuar que iMadame d'Houdetot havia
pensado a mesma coisa, o que era verdade, e ocultando que,
em vista das minhas razões, havia mudado de opinião. Não
podia justificá-Ia melhor da suspeita de conivência comigo
do que dando a entender que, neste ponto, estava descontente
com ela.
A carta terminava por um gesto de confiança que sensi­
bilizaria qualquer outro homem; pois que, suplicando a Grimm
que pesasse as minhas razões e que me desse depois a sua
opinião, dei-lhe a entender que, fosse esta qual fosse, seria
seguida, e tal era a minha intenção, mesmo que ele se pronun­
ciasse pela partida; pois que, visto Monsieur d'Épinay acompa­
nhar a mulher na viagem, a minha companhia tomava então
uma feição completamente diferente : ao passo que tinha sido
eu primeiramente quem ha!Viam querido encarregar de tal
ocupação, nele só se pensou depois da minha resposta negativa.
A resposta de Grimm foi demorada ; e era singular. Vou
transcrevê-la. (Vide maço A, n.o 59. )

A partida de Madame d'Épinay foi adiada; o filho encõn­


tra-se doente, é necessário esperar que se ache melhor. Pensarei
na vossa carta. Conservai-vos sossegado na vossa Hermitage.
Comunicar-vos-ei a minha opinião em seu devido tempo. Como
Madame d'Épinay não partirá certamente dentro de dilas, nada
nos obriga a pressas. Se o julgardes oportuno, podeis jazer-lhe,
no entrementes, as vossas propostas, embora tal coisa me pareça
ainda perfeitamente indiferente; pois que, conhecendo tão bem
como vós a vossa posição, não duvido que Madame d'Épinay
responda como deve às vossas propostas, e tudo o que em meu
entender se ganha com isso é poderdes dizer às pessoas que vos
empurram que se não tostes mais diligente não foi por não
vos haverdes oferecido. Aliás, não vejo porque é que quereis
absolutamente que o filósofo seja o porta-voz de toda a gente, e .
l á porque a sua opinião é que partais, porque é que imaginais
que todos os vossos amigos pretendem a mesma coisa. Se escre­
veis a Madame d'Épinay, a sua resposta pode servir-vos de
resposta a todos esses amigos, visto que jazeis tanto empenho

31)
465
em responder-lhes. Adeus: as minhas saudações a Madame
Le Vasseur e ao Facínora 1 •
Perplexo, procurava com inquietação, ao ler a carta, o que
esta queria dizer, e nada achava. Como ! em vez de responder
com simplicidade à minha, gasta o tempo a fantasiar, como
se o que já havia gasto não lhe tivesse chegado ! Previne-me
mesmo do interregno em que quer manter-me, como se se tra­
tasse de um profundo problema a resolver, ou como se conviesse
às suas intenções tirar-me todo e qualquer meio de penetrar
OF. seus sentimentos, até ao momento em que quiser esclare­
cer-me. Pois que significam estas precauções, estas demoras,
estes mistérios ? l!i desta maneira que se corresponde à nossa con­
fiança? l!i assim que se procede com rectidão e boa fé? Procurava
em vão qualquer explicação favorável a semelhante procedi­
mento, mas nada via. Fosse qual fosse a sua intenção, se era
contra mim, a sua posição facilitar-lhe-ia levá-la a cabo, sem
que eu, na minha, tivesse possibilidade de a entravar. Gozando
de favores em casa de um grande príncipe, conhecido na socie­
dade, dando tom em todas as rodas comuns aos dois, e dos
quais era o oráculo, podia, com a sua costumada habilidade,
dispor à vontade todas as suas máquinas; e eu, sõzinho na
Hermitage, longe de tudo, sem conselho de ninguém, sem qual­
quer comunicação, eu não tinha mais nada a fazer senão
esperar e conservar-me em paz. Escrevi apenas a Madame
d'l!ipinay uma carta tão cortês quanto possível a respeito da
doença do filho, mas na qual não caia na ratoeira de me
oferecer para partir com ela.
Depois de esperar séculos, na cruel incerteza em que aquele
bárbaro me tinha mergulhado, soube ao fim de oito ou dez
dias que /Madame d'Épinay havia partido, e recebi dele uma
segunda carta. Continha apenas sete ou oito linhas, que não
acabei de ler . . . Era a romper, mas em termos que só podem
ser ditados pelo mais infernal ódio, e que até se tornavam
estúpidos à força de quererem ofender. Proibia-me que apare­
cesse na sua presença, como me teria proibido entrar nos seus
Est ados. A sua carta, para fazer rir, só necessitava ser lida com
mais presença de espírito. Sem a transcrever, sem mesmo a
acabar de ler, reenviei-lha imediatamente com esta outra:

1 Monsieur Le Vasseur chamava à mulher, que o tratava com um


bocado d e rudeza, o Tenente Facínora. Grimm dava o mesmo nome à filha
por brincadeira : e, para abreviar, deu-lhe para suprimir a primeira pala­
vra.- Nota ãe J.-J. Rousseau.

466
Resistia à minha justa desconfiança: acabo de vos conhecer
demasiado tarde.
Eis aqui a carta que tivestes a paciência de meditar. Reen­
vio-va-la, não é para mim. Podeis mostrar a minha a toda a
terra, e odiar-me abertamente; será da vossa parte uma falsi­
dade a menos.

O que eu lhe dizia, a respeito de poder mostrar a minha


carta anterior a toda a gente, referia-se a um artigo da sua
graça, pelo qual se pode avaliar a profunda habilidade que
Grimm despendeu em toda esta questão.
Já disse que para as pessoas que não se achavam ao facto
do que se passava, a minha carta podia oferecer bastantes
argumentos contra mim. Grimm viu-o com jubilo; mas como
prevalecer-se de semelhante partido sem se comprometer? Se
mostrasse a carta, expunha-se a que o censurassem por abusar
da confiança do amigo.
Para sair de tal embaraço, pensou romper comigo, da
maneira mais mordaz que fosse possível, e encarecer na sua
carta a graça que me concedia em não mostrar a minha. Tinha
a absoluta certeza de que, na minha colérica indignação, não
aceitaria a sua fingida discrição, e lhe permitiria que mostrasse
a carta a toda a gente: era precisamente o que ele queria, e
tudo aconteceu como o havia disposto. Fez correr a minha carta
Paris inteiro, com comentários da sua lavra, que não tiveram
todavia o êxito que ele esperava. Ninguém achou que a auto­
rização, que soubera extorquir-me, de mostrar a minha carta
o livrava de o censurarem por me haver pegado tão leviana­
mente na palavra para me prejudicar. Perguntavam sempre
quais eram as minhas ofensas pessoais para com ele que auto­
rizavam um ódio tão violento. Achavam, enfim, que mesmo que
as minhas ofensas fossem tais que o houvessem obrigado a
romper, a amizade, mesmo extinta, tinha ainda os seus direitos
que ele deveria ter respeitado. Infelizmente, porém, Paris é frí­
volo; tais observações de momento esquecem, o infortunado
ausente é posto à margem; a presença do homem que prospera
impõe respeito ; o jogo da intriga e da maldade mantém-se,
renova-se, e o seu efeito, renascendo, constantemente eclipsa
tudo o que o precedeu.
Aqui está como este homem, depois de me haver tantg
tempo enganado, largou por fim a máscara que usava para
eomigo, convencido de que, no estado em ,que conseguira pOr
as coisas, já não precisava dela. Oito dias depois de receber

467
a sua carta, recebi, datada de Genebra, a resposta de Madame
d'Épinay à minha anterior (!Maço B, n.o 10 ) . Pelo tom que pela
primeira vez na sua vida ela empregava, compreendi que, con­
tando com o êxito das suas medidas, ambos procediam de
concerto, e que, considerando-me um homem irremediàvel­
mente perdido, se entregavam doravante sem risco ao prazer
de acabar a minha ruína.
Com efeito, o meu estado era dos mais deploráveis. Via
afastarem-se de mim todos os meus amigos, sem que eu sou­
besse como, nem porquê. Diderot, que se gabava de me perma­
necer fiel, de ser o único que me permanecia fiel, e que há
três meses me prometia uma visita, não aparecia. O Inverno
começava a fazer-se sentir, e com ele os ataques dos meus
habituais males. Embora vigoroso, o meu temperamento não
havia podido resistir aos embates de tantas paixões contrárias.
Achava-me num estado de abatimento que me não deixava
nem força nem coragem para resistir a nada. Ainda que os
meus compromissos, ainda que os constantes protestos de
Diderot e de Madame d'Houdetot me houvessem permitido
abandonar a Hermitage neste momento, não sabia onde ir,
nem como arrastar-me. Permanecia imóvel e estúpido, sem
poder agir nem pensar. Estremecia apenas à ideia de ter que
dar um passo, de ter que escrever uma carta, de ter que dizer
uma palavra. Não podia contudo deixar de responder 'à carta
de Madame d'Épinay, a menos de me confessar digno dos tor­
mentos que ela e o seu amigo me infligiam. Tomei o partido
de lhe notificar os meus sentimentos e as minhas decisões, sem
duvidar um momento de que, por humanidade, por generosi­
dade, por decoro, e graças aos bons sentimentos que, apesar dos
maus, julgara existirem nela, Madame d'Épinay não tardaria
em dar-lhe o seu assentimento. Eis a minha carta :

Hermitage, 23 de Novembro de 1 757

Se se morresse de dor, eu não estaria com vida. Mas, enfim


tomei o meu partido. A amizade entre nós está extinta, senhora;
a que já não existe conserva no entanto direitos que eu sei res­
peitar. Não esqueci as bondades que houvestes para comigo e
podeis contar por minha parte com todo o reconhecimento que
se pode ter por alguém a quem se não deve mais amar. Qualquer
outra explicação seria inútil : tenho por mim a consciência, e
remeto-vos à vossa.

468
Quis e devia abandonar a Hermitage. Querem no entanto
que eu aqui permaneça até à Primavera; e visto que os meus
amigos o querem, ficarei até à Primavera, se o permitis.

Escrita e despachada a carta, não pensei em mais nada


senão em sossegar na Hermitage, tratando da minha saúde,
procurando recobrar forças, e tomando providências para partir
na Primavera, sem escândalo e sem alardear uma ruptura. Tal
não era porém o cálculo de Monsieur Grimm e de Madame
d'Épinay, como se verá num instante.
Alguns dias depois, tive enfim o prazer de receber de Diderot
a visita que tantas vezes me prometera e a que sempre faltara.
Não podia chegar mais a propósito; era o meu mais antigo
amigo, era quase o único que me restava; calcule-se o prazer
que em semelhantes circunstâncias tive ao vê-lo. o coração
transbordava-me; desafoguei-o no dele. Elucidei-o de muitos
factos que lhe haviam ocultado, falseado ou sofismado. Contei­
-lhe tudo o que se havia passado, tudo o que me era permitido
dizer-lhe. Não presumi ocultar-lhe o que ele sabia muito bem,
e vinha a ser que um amor tão infeliz quanto insensato havia
sido o instrumento da minha perdição ; mas nunca lhe confessei
que Madame d'Houdetot estivesse ao facto dele, ou ao menos
que eu lho houvesse declarado. Falei-lhe das indignas manobras
de Madame d'Épinay para interceptar as inocentissimas cartas
que a cunhada me escrevia. Quis que ele ouvisse estes porme­
nores da própria boca das pessoas que ela havia tentado subor­
nar. Teresa f,ê-lo exactamente: mas que foi de mim, quando
chegou a vez da mãe, e eu a ouvi dizer e sustentar que nada
disso era do seu conhecimento ! Foram as suas palavras, e
nunca se desviou delas. Ainda não há quatro dias que me havia
repetido a mim mesmo a história, e desmente-me na minha
cara, diante do meu amigo. Semelhante acto pareceu-me deci­
sivo, e nesse momento senti vivamente a imprudência que
cometera conservando tal mulher tanto tempo junto de mim.
Não perdi tempo a invectivá-la; mal me dignei dirigir-lhe algu­
mas palavras de desprezo. Senti o que devia à filha, cuja ina­
balável rectidão contrastava com a indigna cobardia da mãe.
O meu propósito com respeito là velha ficou assente a partir
'
desse momento, e só esperei a ocasião para o executar.
Tal ocasião chegou mais cedo do que eu esperava. A 10 de
Dezembro recebi de Madame d'.Êpinay a sua resposta à minha
anterior carta. Eis o seu conteúdo :

469
Genebra, 1 de Dezembro de 1757
(Maço B, n.o 11)

Depois de durante tantos anos vos ter dado todas as provas


possíveis de amizade e de interesse, só me resta lamentar-vos.
Sois bem infeliz. Desejo que a vossa consciência se encontre
tão tranquila como a minha. Tal coisa poderá ser necessária
ao repouso da vossa vida.
Visto que queríeis e deveríeis abandonar a Hermitage,
espanta-me que os vossos amigos vos tenham retido. Por mim,
não consulto nunca os meus amigos a respeito dos meus deveres,
e nada mais vos tenho a dizer a respeito dos vossos.

O facto de ser despedido de uma maneira tão imprevista,


mas tão claramente formulada, não me deixou um instante
de hesitação. Era necessário sair imediatamente, fizesse o
tempo que fizesse, fosse qual fosse o estado em que me encon­
trasse, ainda que tivesse que dormir nos bosques e sobre a
neve, que então cobria a terra, e dissesse e fizesse IMadame
d'Houdetot o que lhe aprouvesse; porque eu bem queria ser-lhe
agradável em tudo, mas não ir até à infámia.
Achei-me na mais terrível confusão de toda a minha vida;
no entanto, a minha resolução estava tomada: acontecesse o
que acontecesse, jurei já não dormir na Hermitage dentro de
oito dias. Considerei um dever retirar as minhas coisas, disposto
8. deixá-Ias em pleno campo, de preferência a não entregar as
chaves dentro do prazo de oito dias ; porque eu queria sobretudo
que tudo estivesse pronto antes de se poder escrever para Gene­
bra e obter resposta. Achava-me com uma coragem que nunca
tinha sentido : todas as minhas forças me haviam voltado.
A honra e a indignação restituíram-me aquelas com que
Madame d'Épinay não havia contado. A fortuna auxiliou a
minha audácia. !M:onsieur Mathas, procurador fiscal do prín­
cipe de Condé, ouviu falar nos meus apuros. Mandou-me ofere­
cer uma casita que tinha no seu horto de :Mont-Louis, em
Montmorency. Aceitei com prontidão e reconhecimento. O negó­
cio em breve estava concluído; mandei à pressa comprar alguns
móveis, com os que tinha já, para nos deitarmos, Teresa e eu.
O transporte das minhas coisas foi feito com grande dificuldade
e despesa : apesar do gelo e da neve, mudei-me em dois dias,
e a 15 de Dezembro entreguei as chaves da Hermitage, depois
de haver pago a soldada do hortelão, visto não poder pagar o
aluguel da casa.

470
Quanto a IMadame Le Vasseur, declarei-lhe que era neces­
sário separarmo-nos: a filha quis demover-me ; fui inflexível.
Mandei-a partir para :Paris, no carro do recoveiro, com todas
as coisas e móveis que a filha e ela possuíam em comum.
Dei-lhe algum dinheiro, e comprometi-me a pagar-lhe a estada
em casa dos filhos ou em qualquer outro sítio, a garantir-lhe
o sustento tanto quanto me fosse possível, e a nunca a deixar
sem pão, enquanto eu próprio o tivesse.
Enfim, no dia imediato à minha chegada a Mont-Louis,
escrevi a Madame d'Épinay a seguinte carta:

Montmorency, 17 de Dezembro de 1757.

Nada é tão simples e ne,cessário, senhora, como abandonar


a vossa casa, quando não estais de acordo que eu nela perma­
neça. Em vista da vossa negativa em consentirdes que eu pas­
sasse ,o resto do Inverno na Hermitage, deixei-a no dia 15 de
Dezembro. Queria o meu destino que eu nela entrasse mau grado
meu, e que dela saísse nas mesmas circunstâncias. Agradeço-vos
a permanência que ali me levastes a jazer, e agradecê-la-ia
mais se a houvera pago por menor preço. Aliás, tendes razão
em me julgar infeliz; ninguém no mundo sabe melhor do que
vós como devo sê-lo. Se é uma infelicidade enganarmo-nos na
escolha dos nossos amigos, infelicidade não menos cruel é reco­
nhecer-se tão doce erro.

Tal é o relato fiel da minha estadia na Hermitage, e das


razões que me levaram a abandoná-la. Devo interromper este
relato, quando importava continuá-lo com o maior rigor, visto
tratar-se de uma época da minha vida que teve sobre mim
uma influência que se prolongará até ao meu último dia.

471
LIVRO DÉCIMO

força extraordinária que uma exaltação passageira me

A havia dado para deixar a Hiermitage abandonou-me


assim que me apanhei fora dali. Mal me achava insta­
lado na minha nova habitação, começaram os meus vivos e
frequentes ataques de retenção a complicar-se com o novo
achaque de uma quebradura que há muito tempo me atormen­
tava, sem que eu soubesse do que se tratava. Em breve me suce­
deram os mais cruéis acidentes. O médico Thyeri, meu velho
amigo, veio visitar-me e esclareceu-me a respeito do meu antigo
estado. As sondas, as algálias, as ligaduras, todo o aparelho das
doenças da idade agrupado à minha volta, fizeram-me sentir que
já não conservamos impunemente o coração moço quando o
corpo deixou de o ser. A Primavera não me restituiu as forças, e
passei todo o ano de 1758 num quebramento que me fez supor
tocar o fim da minha carreira. Via aproximar-se-lhe o termo
com uma espécie de impaciência. Emendado das quimeras da
amizade, despegado de tudo o que me havia feito amar a vida,
nada mais nela via que ma pudesse tornar agradável: já nela
não via mais que males e misérias que me impediam de gozar
de mim. Ambicionava o momento de me achar livre e de esca­
par aos meus inimigos. Retomemos no entanto o fio dos acon­
tecimentos.
Parece que a minha retirada para IMontmorency desconcer­
tou Madame d'Épinay; pelos vistos, não contava com isso. O meu
triste estado, o rigor da estação, o abandono geral em que me
achava, tudo os levava a acreditar, a IGrimm e a ela, que impe­
lindo-me ao último extremo, me obrigariam a pedir perdão,
e a envilecer-me até às últimas baixezas, para que me dei­
xassem ficar no asilo donde a honra me mandava sair. !Mudei-me
tão ràpidamente que não tiveram tempo de prevenir o lance,
e só lhes restou o recurso de arriscar tudo, acabando de per­
der-me ou procurando congraçar-me de novo com eles. Grimm
tomou o primeiro partido, mas eu creio que Madame d'Épinay

473
teria preferido o outro, a avaliar pela sua resposta à minha
última carta, na qual adoçou o tom que tinha tomado nas
outras, e parecia abrir a porta a uma reconeiliação. A grande
demora da resposta, pela qual esperei um mês inteiro, revela
suficientemente o embaraço em que ela se encontrava para lhe
dar uma forma conveniente, assim como as deliberações de
que a fez preceder. Não podia ir mais longe sem se compro­
meter: todavia, depois das cartas anteriores, e depois da minha
brusca partida de sua casa, ninguém podia deixar de ficar
impressionado com as cautelas tomadas nesta earta para nela
não deixar escapar uma só palavra ofensiva. Vou transcrevê-la
por inteiro para poderem apreciar a sua atitude (Maço B, n.o 23).

Genebra, 17 de Janeiro de 1758

Só ontem, senhor, recebi a vossa última carta. Envia­


ram-ma numa caixa cheia de várias coisas, que viajou durante
todo este tempo. Só responderei à apostila: quanto à carta.
não a compreendo bem, e se estivéssemos em condições de
nos explicarmos, desejaria levar tudo o que se passou à conta
de um mal-entendido. Volto à apostila. Deveis, senhor, �embrar­
-vos de que havíamos combinado que a soldada do hortelão da
Hermitage passaria peZas vossas mãos, para que ele melhor
sentisse que dependia de vós, e para vos evitar cenas tão ridí­
culas e 'indecentes. como as que fizera o seu predecessor. A prova
disso está em que os primeiros trimestres da soldada vos foram
entregues, e em que eu, poucos dias antes de partir, havia com­
binado convosco reembolsar-vos dos vossos adiantamentos. Sei
que fizestes a princípio objecção; no entanto, tais adiantamen­
tos havia-vos eu pedido que os fizésseis; era-me fácil pagar, e
sobre isso ficámos de acordo. Cahoúet assinalou-me que não
havíeis querido receber esse dinheiro. Há aqui certamente um
quiproquó. Dou ordens para que vo-lo entreguem, e não vejo
por que razão haveis de querer pagar o meu hortelão, apesar do
que estipuláramos, e ainda para além do termo em que habi­
tastes na Hermitage. Espero pois, senhor, que vos recordeis de
tudo o que tenho a honra de vos dizer, e que não recusareis
ser reembolsado dos adiantamentos que tivestes a amabilidade
de fazer por mim.

Depois de tudo o que se havia passado, não podendo mais


depositar confiança em il\fudame d',É'pinay, não quis reatar

474
relações com ela ; não respondi a esta carta, e a nossa corres­
pondência terminou aqui. Vendo o partido que eu tomava,
tomou ela o seu, e aderindo então a todos os intentos de Grimm
e da doutrina holbachiana, juntou os seus esforços aos deles
para me afundar completamente. Enquanto estes trabalhavam
em Paris, trabalhava ela em Genebra. Grimm, que posterior­
mente se lhe foi juntar, acabou o que ela havia começado.
Tronchin, que não tiveram dificuldade em conquistar, secun­
dou-os fortemente, e tornou-se o meu mais furioso perseguidor,
sem que nem ele nem Grimm tivessem tido alguma vez de mim a
menor razão de queixa. De acordo todos três, semearam sur­
damente em Genebra a semente que quatro anos mais tarde
se viu desabrochar.
Encontraram mais dificuldades em Paris, onde eu era mais
conhecido, e onde os corações, menos dispostos ao ódio, não
receberam tão fàcilmente as suas impressões. Para dirigirem
os seus golpes com mais certeza, começaram por espalhar que
era eu quem os havia deixado. (Veja-se a carta de Deleyre,
Maço B, n.o 30.) Dai, fingindo ser sempre meus amigos, semea­
vam hàbilmente as suas acusações maldosas, como queixas da
injustiça do seu amigo. Daqui resultava que, menos precavidas,
as pessoas estavam mais dispostas a escutá-los e a censurar-me.
As surdas acusações de perfídia e de ingratidão eram espalha­
das com mais precaução, e por isso mesmo tendo mais efeito.
Soube que me imputavam infâmias atrozes, sem nunca vir a
saber em que as faziam consistir. Tudo o que pude deduzir da
voz publica foi que ela se reduzia a estes crimes capitais: 1.0, o
meu refúgio no campo; 2.0, o meu amor por Madame d'Houdetot;
3.0, a recusa de acompanhar Madame d'Épinay a Genebra; 4.0, a
saída da Hermitage. Se acrescentaram outros agravos, tomaram
tão bem as suas medidas, que me foi perfeitamente impossível
saber alguma vez em que consistiam.
.E a partir deste momento que creio poder fixar o estabe­
lecimento de um sistema adoptado depois por aqueles que dis­
põem de mim, com um progresso e um êxito tão rápidos,
que teria algo de prodigioso para quem não soubesse como
tudo o que favorece a malvadez dos homens tem facilidade em
ganhar raízes. E mister tentar explicar em poucas palavras
o que este obscuro e profundo sistema apresenta de visível aos
meus olhos.
Com o nome já célebre e conhecido em toda a Europa,
eu havia conservado a simplicidade dos meus primeiros gostos.
A minha mortal aversão por tudo o que se chamava partido,

475
facção, cabala havia-me mantido livre, independente, sem
outras algemas além das afeições do meu coração. :Só, estran­
geiro, isolado, sem apoio, sem família, prezando apenas os
meus princípios e os meus deveres, seguia intrêpidamente as
vias da probidade, nunca adulando, nunca poupando ninguém
à custa da justiça e da verdade. Além disso, retirado há dois
anos na solidão, sem comunicação de notícias, sem relatos dos
negócios do mundo, sem conhecimento nem curiosidade de
nada, vivia a ,quatro léguas de Paris, tão separado, pela minha
incúria, desta capital, como se fora pelos mares da ilha de
Tinian.
Grimm, Diderot, d'Holbach, pelo contrário, no centro do
turbilhão, viviam relacionados na mais alta sociedade, e desta
partilhavam quase entre eles todas as suas esferas. Grandes,
homens de talento, pessoas de letras, magistrados, mulheres,
por toda a parte podiam de concerto fazer-se escutar. Deve
já ver-se a vantagem que semelhante posição dá a três homens,
perfeitamente unidos contra um terceiro, naquela em que eu
me encontrava. É certo que Diderot e d'Holbach não eram (pelo
menos não posso crê-lo) pessoas para tramarem conspirações
muito odiosas ; um, não tinha para isso maldade, como o outro
não tinha habilidade : mas era por isto mesmo que o grupo se
achava melhor unido. :Só Grimm formava na sua cabeça o
plano, e só mostrava aos outros dois o que estes tinham neces­
sidade de ver para concorrerem para a sua execução. O ascen­
dente que havia adquirido sobre eles tornava tal concurso fácil,
I' o efeito do todo correspondia à superioridade do seu talento.
Foi com este talento superior que, sentindo o partido que
podia tirar das nossas posições respectivas, Grimm formou o
proj ecto de derrubar por completo a minha reputação, para,
sem se comprometer, criar-me outra inteiramente oposta,
começando por erigir à minha volta um edifício de trevas que
me fosse impossível atravessar, para desvendar as suas mano­
bras, e para o desmascarar.
:Semelhante empresa era difícil, pelo que se referia rà neces­
sidade de atenuar a sua iniquidade aos olhos daqueles que
para ela deviam concorrer. 1Era necessário enganar as pessoas de
b em ; era necessário afastar de mim toda a gente, não me deixar
um só amigo, quer pequeno, quer grande. Que digo eu! era
necessário nem uma só palavra verdadeira deixar chegar até
mim. !Se um só homem generoso que fosse viesse dizer-m e :
Fazeis d e virtuoso, no entanto aqui está como vos tratam, e
aqui está pelo que vos j ulgam : que tendes a responder? a ver-

476
dade triunfava, e Grimm estava perdido. Este sabia-o, mas
sondou o seu próprio coração, e só deu aos homens o preço
que eles valem. Para a honra da humanidaQ.e, tenho pena que
tenha calculado tão bem.
Ao marchar nestes subterrâneos, os seus passos, para serem
firmes, deviam ser lentos. Há doze anos que segue o seu plano,
e o mais difícil está ainda por fazer: iludir o público inteiro.
Há entre este olhos que o seguiram mais de perto que o que
ele pensa. Receia-o, e não se atreve ainda a expor à luz do dia
a sua urdidura 1• Encontrou porém o pouco difícil meio de nela
meter o poder, e este poder dispõe de mim. Amparado desta
maneira, avança com menos risco. Como os satélites do poder
se prezam ordinàriamente pouco de direiteza, e muito menos de
franqueza, não tem de maneira nenhuma a temer agora a indis­
crição de qualquer homem de bem; porque Grimm tem sobre­
tudo necessidade que eu esteja cercado de trevas impenetráveis,
e que a sua conspiração me seja sempre desconhecida, visto
saber bem que, seja qual for a arte com que tenha urdido a sua
trama, nunca ela aguentaria os meus olhares. A sua grande
habilidade está em difamar-me parecendo poupar-me, e em dar
ainda à sua perfídia um ar de generosidade.
Senti os primeiros efeitos deste sistema graças às surdas
aeusações da panelinha holbachiana, sem que me fosse possível
saber nem sequer conjecturar em que consistiam tais acusações.
Nas suas cartas, Deleyre dizia-me que me imputavam infâmias.
Mais misteriosamente, Diderot. dizia-me a mesma coisa, e,
quando eu entrava em explicações com um e com outro, tudo
Re reduzia aos artigos acusatórios atrás citados. Percebi nas
cartas de Madame d'Houdetot um resfriamento gradual. Não
podia atribuir tal resfriamento a Saint-Lambert, que continuava
a escrever-me com a mesma amizade, e que veio mesmo visí­
tar-me depois de regressar. Não podia igualmente atribuir a
culpa a mim próprio, visto que nos havíamos separado muito
a bem, e que, desde então, nada da minha parte se havia
passado, a não ser a minha partida da Hermitage, necessidade
que ela própria havia sentido. Não sabendo pois a que atribuir
tal resfriamento, que ela não confessava, mas sobre o qual o
meu coração não se enganava, inquietava-me com tudo. Sabia
que poupava em extremo a cunhada e Grimm, por causa das

1 Após haver eu escrito isto, deu Grimrr. o passo com o mais ina­
creditável êxito. creio que foi Tronchin quem para tal lhe forneceu a cora­
gem e os meios. - N. de J.-J. Rousseau.

477
relações destes com Saint-Lambert ; eu receava as suas obras.
Esta agitação reabriu as minhas feridas e tornou a minha
corresp ondência tumultuosa, a ponto de a desgostar inteira­
mente. Entrevia milhentas coisas cruéis, sem nada ver dis­
tintamente. Achava-me na mais insuportável posição para um
homem cuja imaginação se inflama fàcilmente. Se tivesse estado
inteiramente isolado, se nada absolutamente houvesse sabido,
sossegaria mais depressa; mas o meu coração conservava ainda
laços, graças aos quais os meus amigos tinham mil maneiras de
me pegar, e os fracos raios que penetravam até ao meu asilo
só serviam para me deixar ver a infâmia dos mistérios que
escondiam de mim.
Sucumbiria, não o duvido, a este tormento, demasiado
cruel, demasiado insuportável para o meu natural aberto e
franco, e que, graças à impossibilidade de esconder os meus
sentimentos, me leva a tudo recear dos que a mim me escondem,
se feliclssimamente não surgissem objectos assaz interessantes
ao meu coração para provocarem uma diversão salutar aos que
mau grado meu me preocupavam. Na última visita que fizera
à Hermitage, !Diderot falara-me do artigo Genebra que d'Alem­
bert havia escrito na Enciclopédia; tinha-me ele comunicado
que esse artigo tinha por fim, de acordo com genebrinos alta­
mente colocados, restaurar a comédia de Genebra ; que conse­
quentemente medidas estavam tomadas, e que tal restauração
não tardaria a verificar-se. Gomo Diderot parecia achar tudo isto
muito bem, como não duvidava do êxito, e como eu tinha com ele
muitas outras coisas a tratar para ainda por cima discutir o
artigo, nada lhe disse ; indignado, porém, com toda esta intriga
de sedução na minha pátria, esperava impacientemente o
volume da Enciclopédia que trazia o artigo, para ver se não
haveria qualquer meio de lhe dar uma resposta que pudesse
remediar a este funesto golpe. Recebi o volume pouco depois
de me instalar em Mont-Louis, e vi que o artigo era feito com
muita habilidade e arte, e digno da pena donde tinha partido.
Tal circunstância não me desviou contudo da vontade de lhe
responder, e apesar do abatimento em que me achava, apesar
dos meus desgostos e dos meus males, do rigor da estação e do
desconforto da minha nova habitação, na qual ainda não tinha
tido tempo para me acomodar, deitei-me ao trabalho com um
entusiasmo que venceu tudo.
Durante um Inverno bastante duro, no mês de Fevereiro,
e no estado que atrás descrevi, ia passar duas horas todas as
manhãs, e outras tantas depois do jantar, num torreão comple-

478
tamente aberto que havia ao fundo do horto onde se encontrava
a minha habitação. O torreão, que se achava no fim de uma ala­
meda em terraço,.dava para o vale assim como para a lagoa de
Montmorency, e oferecia-me, como termo do ponto de vista,
n simples, mas respeitável castelo de \São Graciano, refúgio do

velho Catinat. Foi em tal lugar, então gelado, que sem abrigo
algum contra o vento e a neve, e sem outro lume além do do
meu coração, eu compus, no espaço de três semanas, a Carta
a d'Alembert sobre os Espedáculos 1• É este (porque a Júlia
não ia ainda em meio) o primeiro dos meus escritos em que
encontrei as seduções do trabalho. Até então, a indignação da
virtude havia-se em mim substituído a Apolo; desta vez, a
ternura e a doçura de alma tiveram o seu lugar. As injustiças
de que apenas havia sido espectador tinham-me irritado; aque­
las de que tinha sido objecto entristeceram-me, e esta tristeza
sem fel era apenas a de um coração demasiado amante, dema­
siado terno, que enganado por aqueles que havia julgado da
sua têmpera, era forçado a fechar-se dentro de si mesmo.
Repleto de tudo o que acabava de me suceder, emocionado ainda
com tantos e tão violentos movimentos, o meu misturava o sen­
timento das suas penas às ideias que a meditação do meu tema
havia feito nascer em mim; o meu trabalho ressentia-se desta
mistura. Sem dar por isso, descrevia nele a minha situação
actual, pintava nele a Grimm, a !Madame d'Épinay, a Madame
d'Houdetot, a 'Saint-Lambert, a mim próprio. Ao escrevê-lo,
derramava copiosas lágrimas. Ai de mim! sente-se por de mais
que nele o amor, este fatal amor de que me esforçava por
curar-me, não me tinha ainda abandonado o coração. A tudo
isto se associava uma certa ternura por mim mesmo, por mim,
que me sentia moribundo, e julgava fazer o meu último adeus
a o público. Longe de temer a morte, via-a aproximar-se com
alegria, mas tinha pena de abandonar os meus semelhantes,
sem que eles sentissem tudo o que eu valia, sem que soubessem
quanto eu havia merecido ser deles amado, se me houvessem
conhecido melhor. Eis aqui as causas secretas do singular tom
que reina nesta obra, e que contrasta tão prodigiosamente com
a da anterior 2•
Corrigia e punha a limpo a carta, e dispunha-me a man­
dá-la imprimir, quando depois de um comprido silêncio recebi
outra de Madame d'Houdetot, que me precipitou em nova afli-

1 Lettre à à'Alembert sur les Spectacles.


2 O Discurso sobre a Desigualàaàe. - Nota de J.-J. Rousseau.

479
ção, a mais sensível que ainda havia experimentado. Nela me
dizia que a minha paixão por ela era conhecida em todo Paris ;
que eu a tinha contado a pessoas que a haviam tornado pública ;
que tais rumores, chegando aos ouvidos do amante, tinham
estado prestes a custar-lhe a vida ; que por fim ele lhe fizera
justiça, e que haviam feito as pazes ; mas que lhe era devedora,
assim como a ela própria e em atenção à sua reputação, de
cortar comigo todo e qualquer comércio : garantindo-me, aliás,
que tanto um como outro nunca deixariam de se interessar por
mim, que me defenderiam em público, e que ela mandaria de
vez em quando saber notícias minhas.
Também tu, Diderot! exclamei eu. Indigno amigo!. . . Não
pude contudo decidir-me a julgá-lo ainda. A minha fraqueza
era conhecida por outras pessoas, que podiam tê-lo feito falar.
Quis duvidar . . . mas em breve me foi impossível fazê-lo. Pouco
depois, !Saint-Lambert praticou um acto digno da sua genero­
sidade. Como conhecia bem a minha alma, calculava em que
estado eu devia estar, traído por uma parte dos amigos, e aban­
donado pelos outros. Veio visitar-me. Da primeira vez tinha
pouco tempo para me consagrar. Voltou. Infelizmente, como
não o esperava, não me encontrava em casa. Teresa, que estava
presente, teve com ele uma conversa de mais de duas horas,
em que contaram um ao outro muitos factos, dos quais me
convinha a mim que tanto ele como eu tivéssemos conheci­
mento. A surpresa que tive ao saber por ele que ninguém na
sociedade duvidava de que eu houvesse vivido com Madame
d':Épinay, tal como Grimm vivia presentemente, só pode ser
igualada pela que ele próprio teve, ao saber que semelhante
boato era falso. Com grande desgosto da dama, Saint-Lambert
estava nos mesmos casos que eu, e todos os esclarecimentos que
resultaram desta conversa acabaram por extinguir em mim todo
e qual,quer remorso por haver rompido sem remissão com ela.
Com respeito a Madame d'Houdetot, contou pormenorizada­
mente a Teresa várias circunstâncias que não eram do conheci­
mento desta, nem de Madame d'Houdetot, que só eu sabia,
que só a Diderot havia dito, debaixo do sigilo da amizade, e
fora precisamente Saint-Lambert que este escolhera para as
confiar. Este último episódio decidiu-me, e, resolvido a romper
com Diderot para sempre, só tratei de achar a maneira de o
fazer: porque eu havia compreendido que as rupturas secretas
redundavam em meu prejuízo, no sentido de que deixavam a
máscara da amizade aos meus mais cruéis inimigos.

480
Neste artigo, as regras de decoro estabelecidas na socie­
dade parecem ditadas pelo espírito de mentira e de traição.
Dar a impressão de que se é ainda amigo de um homem de
quem se deixou de o ser, é reservar para si próprio meios de
lhe fazer mal, surpreendendo as pessoas de bem. Recordo-me
que, quando o ilustre Montesquieu cortou relações com o P.e de
Tournemine, apressou-se a declarar abertamente, dizendo-o a
toda a gente : !Não deis ouvidos nem ao P.e de Tournemine,
nem a mim, quando falarmos um do outro ; porque deixámos
de ser amigos. Semelhante procedimento foi muito aplaudido,
e todos lhe louvaram a franqueza e a generosidade. Resolvi
seguir com Diderot o mesmo exemplo ; como proceder, porém,
para do meu retiro publicar esta ruptura autênticamente, e
todavia sem escândalo ? Lembrei-me de inserir na minha obra,
em forma de nota, um passo do Livro do Eclesiástico, que reve­
lava tal ruptura, e até o motivo dela, suficientemente clara
para quem quer que dela estivesse ao facto, e nada significava
para o resto das pessoas ; tendo o cuidado, aliás, de me não
referir .na obra ao nome do amigo a quem renunciava, senão
com as honras que sempre devem prestar-se mesmo à amizade
extinta. Pode-se ver tudo isto na própria obra.
Neste mundo tudo depende do acaso, e parece que todo
e qualquer acto de coragem deva na adversidade ser um crime.
O mesmo acto que havia merecido a M ! ontesquieu tanta admi­
ração só me valeu a mim censura e exprobração. Logo que a
obra se achou impressa, e eu pude obter alguns exemplares,
enviei um a Saint-Lambert, que, na própria véspera, me havia
escrito, em nome de I.M:adame d'Houdetot e no seu próprio, um
bilhete cheio da mais terna amizade. (!Maço B, n.o 37.) Eis a
carta que me escreveu, devolvendo-me o exemplar (Maço B,
n.• 38) :

Eaubonne, 10 de Outubro de 1758

Em verdade, senhor, não posso aceitar o presente que aca­


bais de me fazer. No ponto do prefácio em que, por causa de
Diderot, citais um passo do E!Clesiastes (eng.ana-se, é do Ecle­
siástico), o livro caiu...,me das mãos. Depois das conversas deste
Verão, parecia-me que vos acháveis convencido da inocência de
Diderot nas pretensas indiscrições que lhe imputáveis. Talvez
tenhais agravos da sua parte: ignoro-o; mas sei bem que estes
vos não dão o direito de o insultares publicamente. Não ignorais
as perseguições que ele sotre, e ides misturar a voz de um amigo

31
481
velho aos clamores da inveja. Não posso ocultar-vos, senhor,
como semelhante atrocidade me revolta. Não convivo com Dide­
rot, mas prezo-o, e sinto verdadeiramente o desgosto que dais
a um homem a quem, ao menos na minha presença, nunca cen­
surastes senão por um pouco de fraqueza. Senhor, há entre nós
demasiada diferença de princípios para que alguma vez possa­
mos entender-nos. Esquecei que existo; tal coisa não deve ser
difícil. Nunca fiz aos homens nem o bem nem o mal que durante
muito tempo se recorda. Por mim, prometo-vos, senhor, esque­
cer-me da vossa pessoa, para só me lembrar dos vossos
talentos.

Esta carta não me dilacerou menos do que me indignou,


e no excesso da minha miséria, recobrando enfim o meu orgu­
lho, mandei-lhe como resposta o bilhete seguinte :

Montmorency, 11 de Outubro de 1758

Ao ler a vossa carta, senhor, dei-vos a honra de ficar sur­


preendido, e tive a idiotice de ficar comovido; achei-a todavia
indigna de resposta.
Não quero continuar com as cópias de Madame d'Houdetot.
Se não lhe convém guardar a que tem, pode reenviar-ma, que
eu lhe restituirei o seu dinheiro. Se a quer guardar, sempre
será necessário mandar buscar· o resto do papel e do dinheiro.
Rogo-lhe queira devolver-me ao mesmo tempo o prospecto de
que é depositária. Adeus, senhor.

A coragem no infortúnio irrita os corações cobardes, mas


agrada aos corações generosos. Parece que o meu bilhete fez
cair Saint-Lambert em si, e que se arrependeu do que havia
feito ; contudo, demasiado orgulhoso por sua vez para reconhe­
cer abertamente o seu erro, aproveitou, preparou porventura
processo de atenuar o golpe que me havia infligido. Quinze
dias depois, recebi de M. d'Épinay a seguinte carta (Maço B,
n.o 10):

Quinta-feira, 26

Recebi, senhor, o livro que tivestes a bondàde de me


enviar; leio-o com o maior prazer. É o sentimento que sempre

482
experimentei ao ler todas as obras que saíram da vossa pena.
Recebei todos os meus agradecimentos. Teria ido eu próprio
apresentar-vo-los, se os meus quefazeres me houvessem permi­
tido permanecer algum tempo na vossa vizinhança; contudo,
este ano estive muito pouco na Chevrette. Monsieur e Madame
Dupin acabam de me pedir que vá lá jantar no próximo domingo.
Conto que Monsieur de Saint-Lambert, Monsieur de Francueil
e Madame d'Houdetot estejam presentes; dar-me-eis um grande
prazer, senhor, se quisésseis ser dos nossos. Todas as pessoas
que terei em casa vos esperam, e ficarão encantadas de partilhar
comigo o prazer de passar convosco parte do dia.
Tenho a honra de ser, com a mais perfeita consideração, etc.

Esta carta provocou-me horríveis palpitações de coração.


Depois de constituir há já um ano a fábula de Paris, a ideia
de me exibir diante de !M:adame d'Houdetot fazia-me tremer,
e difi{!ilmente encontrava a coragem suficiente para suportar
semelhante prova. !No entanto, visto que ela e Saint-Lambert
o queriam de verdade, visto que d'Épinay falava em nome de
todos os convidados, não apontando nenhum que me não desse
prazer ver, não me pareceu, afinal de contas, que me compro­
metia, aceitando um jantar para o qual estava de certo modo
convidado por toda a gente. Prometi, por conseguinte. No do­
mingo fazia mau tempo. Monsieur d'Épinay enviou-me o seu
coche, e fui.
A minha chegada causou sensação. Nunca tive acolhimento
mais afável. Dir-se-ia que toda a companhia sentia quanto eu
necessitava ser tranquilizado. Só os corações fran{!eses conhe­
cem esta sorte de delicadezas. Encontrei porém mais gente do
que esperava. Entre outros, vi o conde d'Houdetot, que não
conhecia, e a cunhada, !lVIadame de Blainville, que dispensaria
perfeitamente. Viera bastantes vezes no ano anterior a Eau­
bonne, e, nos nossos passeios solitários, a cunhada havia-a fre­
quentemente feito prender a burra, deixando-a sozinha. Por
isso me havia ganhado uma animosidade que durante o jan­
tar satisfez perfeitamente a seu contento ; percebe-se bem que
a presença do conde d'Houdetot e de Saint-Lambert não era de
molde a ganhar-me os favores da companhia, e que um homem,
que nas mais simples conversas se sente confuso, não brilharia
muito nesta. Nunca sofri tanto, nunca fiz pior figura, nem recebi
golpes mais imprevistos. Quando, por fim, nos levantámos da
mesa, afastei-me de semelhante megera ; tive o prazer de ver
Saint-Lambert e Madame d'Houdetot aproximarem-se de mim,

483
e, durante parte da tarde, conversámos os tvês sobre coisas na
verdade indiferentes, mas com a mesma familiaridade do que
antes do meu desvario. No meu coração, este processo não foi
perdido, e se Saint-Lambert nele pudesse ler, teria decerto ficado
contente. Ainda que quando cheguei o coração me palpitasse até
o ponto de me sentir desfalecer ao avistar Madame d'Houdetot,
posso jurar que ao regressar j á quase não pensava nela : só me
achei absorvido por Saint-Lambert.
Apesar dos maliciosos sarcasmos de IMadame de Blainville,
este j antar fez-me muito bem, e eu felicitei-me grandemente
por não o haver recusado. Não só reconheci que as intrigas
de Grimm e dos holbachianos não tinham afastado de mim
os meus antigos conhecimentos I, como verifiquei que os sen­
timentos de Madame d'Houdetot e de Saint-Lambert haviam
mudado menos do que eu julgara, o que ainda me deu mais
satisfação ; e compreendi por fim que era mais por ciúme do
que por desestima que este a conservava afastada de mim. Tal
coisa consolou-me e tranquilizou-me. Convencido de que não
era objecto de desprezo por parte daqueles a quem estimava,
pus-me a emendar o meu próprio coração com mais coragem
e êxito. Se não consegui extinguir nele uma paixão culposa e
funesta, moderei ao menos tão bem os seus vestígios, que desde
então nunca estes me fizeram cometer uma só falta. As cópias
de Madame d'Houdetot, que esta me convenceu a retomar, as
obras que continuei a enviar-lhe quando saíam, valeram-me
da sua parte ainda, de vez em quando, alguns recados e bilhetes
sem importância, mas atenciosos. Fez ainda mais, como se verá
a seguir, e a conduta recíproca dos três, quando o nosso comér­
cio cessou, pode servir de exemplo da forma como as pessoas de
bem se separam, quando não lhes convém voltarem a ver-se.
Outra vantagem que este j antar me proporcionou foi
falar-se dele em Paris, servindo assim de refutação irrespon­
dível aos boatos que os meus inimigos espalhavam por toda a
parte de que eu estava mortalmente malquistado com todos
os que ali se encontravam, sobretudo com Monsieur d'Épinay.
Ao abandonar a Hermitage, havia-lhe escrito uma carta de
agradecimentos muito correcta, à qual ele respondeu não menos
correctamente, não tendo cessado as nossas mútuas atenções,
tanto para com ele, como para com IMonsieur de Lalive, seu
irmão, que veio mesmo visitar-me a Montmorency, e me enviou

1 Eis no que eu, na simplicidade do meu coração, ainda acreditava


ao escrever as minhas confissões.- Nota de J.-J. Rousseau.

484
as suas gravuras. A não ser com as duas cunhadas de Madame
d'Houdetot, nunca estive mal com ninguém da sua familia.
A minha Carta a d'Alembert alcançou um grande êxito.
Todas as minhas obras o haviam tido; este, porém, foi-me
mais favorável. Ensinou o publico a desconfiar das insinuações
da panelinha holbachiana. Esta, quando eu fui para a Hermi­
tage, predissera que não me aguentaria ali três meses. Quando
viu que me aguentava vinte, e que, forçado a sair, me fixava
ainda no campo, sustentou que isto era pura teimosia minha;
que eu morria de aborrecimento no meu retiro, mas que, roído
de orgulho, preferia morrer ali vítima da minha teimosia, a
desdizer-me e voltar para Paris. A Carta a d'Alembert respirava
uma doçura de alma que se percebia não ser fingida. Se eu no
meu retiro me achasse roído pelo mau humor, o meu tom disso
se havia de sentir. Em todos os escritos de Paris é que ele rei­
nava; no primeiro que provinha do campo já não. Para os que
sabem observar, tal reparo era decisivo. Via-se que eu havia
regressado ao meu elemento.
No entanto, esta mesma obra, apesar de cheia de doçura,
valeu-me ainda, graças à minha estupidez e à minha má sorte
do costume, um novo inimigo entre os homens de letras. Em casa
de Monsieur de la Popliniêre havia travado relações com Mar­
montei, e estas relações tinham-se mantido em casa do b arão.
Marmontel dirigia então o Meumrio de França. Como me orgu­
lhava de não enviar as minhas obras aos periodistas, mas
queria porém mandar-lhe esta, sem que ele supusesse que era
a esse título, nem também para que falasse dela no Mercúrio,
escrevi no exemplar que este não era para o autor do Mercúrio,
mas sim para iMonsieur Marmontel. Julguei que lhe fazia um
belíssimo cumprimento; •Marmontel j ulgou ver nisto uma c ruel
ofensa, e tornou-se um irreconciliável inimigo meu. Disse mal
desta mesma Carta com elegância, mas com um fel que fàcil­
mente se percebe, e desde então não perdeu ocasião alguma de
me agravar na sociedade, e de indirectamente me maltratar
nas suas obras: de tal maneira é difícil não beliscar o irritabi­
líssimo amor-próprio dos homens de letras, e tal é o cuidado que
se deve ter, nos cumprimentos que se lhes fazem, em nada
deixar que possa sequer ter a menor aparência de equívoco.
Achando-me sossegado de todas as bandas, aproveitei o ócio
e a independência em que me encontrava para voltar ao meus
trabalhos com mais continuidade. Nesse Inverno acabei a Júlia,
e enviei-a a Rey, que a fez imprimir no ano seguinte. Este tra­
balho foi todavia interrompido por uma diversão, aliás bastante

485
desagradável. Soube que se preparava na ópera uma nova repo- ,
sição do Bruxo da aldeia. Aborrecido por ver essa gente dispor
arrogantemente do que era meu, agarrei de novo na memória
que enviara a Monsieur d'IA.rgenson, e que havia ficado sem
resposta, e, depois de a retocar, mandei-a entregar por Monsieur
Sellon, residente de Genebra, acompanhada de uma carta, de
que ele teve a amabilidade de se encarregar, dirigida ao conde
de Saint-Florentin, o qual havia substituído Monsieur d'Argen­
son no departamento da ópera. Monsieur de Saint-Florentin
prometeu responder-me, mas não o fez. Duelos, a quem comu­
niquei o que havia feito, falou do caso aos petits violons, que se
ofereceram para me restituir não a minha ópera, mas as minhas
entradas, que já não podia utilizar. Como visse que de lado
nenhum podia esperar qualquer espécie de justiça, abandonei
a questão, e a direcção da ópera, sem responder às minhas
razões, nem as ouvir, continuou a dispor como de coisa sua e
a tirar rendimento do Bruxo da aldeia, que sem sombra de
contestação só a mim me pertencia 1•
Desde que havia sacudido o jugo dos meus tiranos, levava
uma vida bastante igual e calm a ; privado do feitiço das afeições
demasiado vivas, achava-me também liberto das suas cadeias.
Fatigado de amigos protectores que queriam absolutamente
dispor do meu destino e, mau grado meu, sujeitar-me aos seus
pretensos benefícios, estava resolvido doravante a conservar
apenas as relações de simples cordialidade, as quais, sem entra­
var a liberdade, constituem o encanto da vida, assentes no
mesmo pé de igualdade. Relações desta espécie tinha-as quanto
me bastava para gozar as doçuras da liberdade, sem lhes sofrer
a dependência, e, mal experimentei este género de vida, senti
que era o que na minha idade me convinha, para acabar os
meus dias em paz, longe da tempestade, das discórdias e das
intrigas, nas quais acabava de estar meio submergido.
Durante a minha permanência na Hermitage, e desde que
me estabelecera em Montmorency, tinha feito na vizinhança
alguns conhecimentos que me agradavam, e que a nada me sujei­
tavam. A frente deles achava-se o jovem Loyseau de Mauléon,
que à data se estreava no foro, e ignorava ainda qual viria a ser o
seu lugar nele. Por mim, não tive dúvidas a este respeito. Em
breve lhe assinalei a carreira ilustre que hoje o vemos percorrer.
Predisse-lhe que, se se mostrasse severo na escolha das causas,

1 Desde então pertence-lhe, graças a um acordo que fez comigo muito


recentemente.- Nota de J.-J. Rousseau.

486
e fosse sempre apenas o defensor da justiça e da virtude, o seu
génio, exaltado por este sentimento sublime, igualaria o dos
grandes oradores. Ele seguiu o meu conselho, e sentiu-lhe os
efeitos. A defesa de Monsieur de Portes é digna de Demóstenes.
Todos os anos vinha passar as férias a tSaint-Brice, a um
quarto de légua da Hermitage, no feudo de Mauléon, que per­
tencia à mãe, e onde outrora havia habitado o grande Bossuet.
Aqui está um feudo de uma nobreza dificil de manter, em vir­
tude de uma tal sucessão de senhores.
Havia, nessa mesma vila de Saint-Brice, o livreiro Guérin,
homem de espirita, letrado, amável, e de altos voos para a sua
condição. Proporcionou-me também travar conhecimento com
Jean Néaulme, livreiro de Amsterdão, seu correspondente e seu
amigo, que depois veio a imprimir o Emílio.
!Mais perto ainda que Saint-Brice, havia Monsenhor Maltor,
cura de Groslay, que nascera mais para ser homem de
Estado e ministro do que cura de aldeia, e a quem deviam ter
dado pelo menos o governo de uma diocese, se os talentos deci­
dissem dos lugares. Tinha sido secretário do conde de Luc, e
tinha conhecido muito intimamente Jean Baptiste Rousseau.
Prezando tanto a memória deste ilustre proscrito como detes­
tando a do miserável Saurin, sabia a respeito de um e outro
numerosas anedotas curiosas, que Ségui não havia incluido na
vida do primeiro, ainda manuscrita, e garantia-me que, longe
de ter tido alguma vez razão de queixa dele, o conde de Luc
lhe havia sempre dispensado até ao fim da sua vida a mais
ardente amizade. Monsieur Maltor, a quem, depois da morte
do patrão, Monsieur de Vintimille havia presenteado com este
assaz bom retiro, tinha estado outrora empregado em muitos
negócios, que, embora velho, conservava ainda presentes na
memória, e sobre os quais discorria muito bem. As sua práticas,
tão instrutivas como divertidas, não cheiravam nada a cura
de aldeia: Monsieur Maltor aliava ao tom de um homem de
sociedade os conhecimentos de um homem de gabinete. De todos
os meus vizinhos permanentes era aquele cuja sociedade me era
mais agradável, e que mais pena tive de deixar.
Havia em Montmorency os oratorianos, entre eles o P.'.!
Berthier, professor de fisica, a quem me afeiçoara, graças
a certo ar de bonomia que lhe achava, e apesar do seu leve
verniz de pedantismo. Era-me contudo dificil conciliar esta
grande simplicidade com o desejo e a arte que ele tinha de se
meter em toda a parte, em casa dos grandes, em casa das
mulheres, em casa dos devotos. em casa dos filósofos; era pau

487
para toda a obra. Divertia-me muito com ele. Falava dele a
toda a gente. Segundo todas as aparências, chegou-lhe aos ouvi­
dos o que eu dizia a seu respeito. Agradeceu-me um dia, grace­
jando, havê-lo achado um simplório. Achei no seu sorriso não
sei quê de sardónico, que aos meus olhos lhe alterou totalmente
a fisionomia, e que depois me veio frequentemente à memória.
Não posso fazer melhor comparação do seu sorriso do que com o
de Panurgo, ao comprar os carneiros de Dindenaut. As nossas
relações tinham principiado pouco tempo depois de eu haver
chegado à Hermitage, onde o P.e Berthier me vinha visitar
frequentemente. Já me achava instalado em Montmorency,
quando ele dali partiu para ir de novo habitar em Paris. Aqui
visitava frequentemente Madame Le Vasseur. Um dia, quando
menos o esperava, escreveu-me ele da parte dessa mulher, para
me informar de que Monsieur Grimm se encarregava da sua
manutenção, e para me pedir autorização de aceitar tal ofere­
cimento. Soube que este consistia numa pensão de trezentas
libras, e que Madame Le Vasseur devia vir morar para Deuil,
entre a Ghevrette e Montmorency. Não descreverei a impres­
são que me fez semelhante notícia, a qual surpreenderia menos
se Grimm tivesse dez mil libras de renda, ou ,qualquer relação
com essa mulher mais fácil de compreender, e não me houves­
sem acusado de ter cometido um tão grande crime ao havê-la
trazido para o campo, onde no entanto lhe aprazia a ele insta­
lá-la novamente, como se ela houvesse remoçado desde então.
Percebi que a velhota só me pedia tal autorização, que podia
perfeitamente dispensar, caso eu lha recusasse, com o fim de
se não arriscar a perder o que por meu lado eu lhe dava. Posto
que tal caridade me parecesse verdadeiramente extraordinária,
não me impressionou então tanto, como veio a impressionar-me
mais tarde. Ainda que porém tivesse sabido tudo quanto depois
vim a descobrir, nem por isso teria deixado de dar o meu con­
sentimento, como dei, e como era obrigado a dá-lo, a não ser
que oferecesse mais do que Monsieur Grimm. Desde então, o
P.e Berthier curou-me um pouco da imputação de bonomia,
que lhe havia parecido tão divertida, e que eu tão irreflectida­
mente havia lançado sobre ele.
Este mesmo P.e 'Berthier mantinha relações com dois
homens, que procuraram também conhecer-me, não sei porquê,
visto haver seguramente poucas afinidades entre os seus gostos
e os meus. Eram uns filhos de Melquisedech 1, de quem não se

1 Personagem bíblico, considerado sem ascendência. - N. do T.

488
conhecia nem a terra, nem a família, nem proVIàvelmente o
verdadeiro nome. Eram j ansenistas, e passavam por padres dis­
farçados, talvez por causa da maneira ridícula como usavam
os espadagões a que estavam vinculados. o prodigioso mistério
de que rodeavam todas as suas passadas dava-lhes um ar de
chefes de partido, e nunca duvidei que fossem eles quem redigia
a Gazeta Eclesiástica. Um, grande, afável, finório, chamava-se
Monsieur Ferrand; o outro, pequeno, atarracado, trocista, todo
pontinhos, chamava-se Monsieur Minard. Tratavam-se por pri­
mos. Em Paris, habitavam com d'Alembert, em casa da ama
deste, que se chamava Madame Rousseau, e tinham alugado
uma pequena parte de casa em Montmorency, para aqui pas­
sarem o Verão. Sem criado nem moço de recados, eles próprios
governavam a casa. Cada um deles ia alternadamente às com­
pras, cozinhava e varria a casa durante uma semana. Porta­
vam-se aliás muito bem ; comíamos por vezes em casa uns dos
outros. Não sei porque faziam tanto caso da minha pessoa ;
por mim, só me interessavam por saberem jogar o xadrez ; e,
para conseguir uma miserável partidazita, suportava quatro
horas de aborrecimento. Como se introduziam em toda a parte
e em tudo se intrometiam, Teresa chamava-lhes as Comadres,
nome que lhes ficou em Montmorency.
Tais eram, com Monsieur Mathas, o meu excelente hospe­
deiro, as minhas principais relações no campo. Em Paris ainda
me restavam bastantes, para, quando quisesse, ali viver apra­
zivelmente, fora da esfera dos homens de letras, onde contava
apenas Duelos por amigo, visto 1Deleyre ser ainda muito novo ;
e se bem que depois de ter visto as manobras da súcia filosófica
a meu respeito, se tivesse dela afastado completamente (pelo
menos eu assim o supunha) , eu não pUdera ainda esquecer a
facilidade com que ele se prestara a fazer j unto de mim de
porta-voz de toda essa gente.
iEm primeiro lugar, tinha ali o meu velho e respeitável amigo
Monsieur Roguin. Era um amigo dos bons tempos, que eu não
devia aos meus escritos, mas a mim próprio, e que por tal razão
sempre conservei. Tinha o bom ILenieps, meu conterrâneo, assim
como a filha, Madame Lambert, então ainda viva. Tinha um
moço genebrino, chamado Coindet, bom rapaz ao que me pare­
cia, cuidadoso, prestável, diligente, mas ignorante, confiado,
guloso, presunçoso, o qual tinha vindo visitar-me logo que me
fixara na Hermitage, e, sem ninguém que o apresentasse além
dele mesmo, em breve se instalara em minha casa, mau grado
meu_ Possuía certo gosto para o desenho, e conhecia os artistas.

489
Foi-me útil nas estampas de Júlia; encarregou-se da direcção
dos desenhos e das lâminas, e desempenhou-se bem do encargo.
Tinha a casa de Monsieur Dupin, a qual, se bem que menos
brilhante que na mocidade de Madame Dupin, não deixava de
ser ainda, graças ao mérito dos donos e à escolhida sociedade
que nela se reunia, uma das melhores casas de Paris. Como não
os havia trocado por ninguém, como não os havia abandonado
senão para viver livremente, não tinham cessado de me ver
com amizade, e tinha a certeza de em qualquer altura ser bem
recebido de Madame Dupin. Podia mesmo considerá-la uma
das minhas vizinhas de campo, desde que tinham vindo
residir para Clichy, onde eu ia passar um ou dois dias de vez
em quando, e onde iria mais vezes, se Madame Dupin e Madame
de Chenonceaux vivessem em melhor inteligência. Contudo, a
dificuldade de na mesma casa nos dividirmos entre duas mulhe­
res que não simpatizam uma com a outra, tornava-me Clichy
bastante molesto. Ligado a Madame de Chenonceaux por uma
amizade mais igual e mais familiar, tinha o prazer de a ver
mais à vontade em Deuil, quase à minha porta, onde ela havia
alugado uma casita, e até em minha casa, onde vinha visitar-me
muitas vezes.
Tinha Madame de Créqui, que, havendo-se lançado na devo­
ção elegante deixara de ver os d' Alembert, os Marmontel, assim
como a maior parte dos homens de letras, com excepção, creio
eu, do abade Trublet, então uma espécie de meio-beato, de quem
ela estava mesmo bastante fatigada. Por mim, cuja amizade
Madame Créqui havia procurado, não perdi a sua afabilidade,
nem ela deixou de se cartear comigo. Pela altura das amên­
doas, mandou-me uma frangas de Mans, e tínhamos com­
binado que viria visitar-me no ano seguinte, quando uma
viagem de Madame de Luxemburgo se cruzou com a sua. Devo­
-lhe aqui um lugar à parte; nas minhas recordações, terá sem­
pre um especial.
Havia um homem que, com excepção de Roguin, deveria
pôr à frente de todos: o meu velho camarada e amigo Carrio,
antigo secretário titular da embaixada espanhola em Veneza,
depois na Suécia, onde esteve como encarregado dos negócios
da corte, e, por fim, nomeado realmente secretário de embai­
xada em Paris. Quando menos o esperava, apareceu-me de sur­
presa em Montmorency. Tinha uma condecoração de uma ordem
espanhola, cujo nome esqueci, com uma linda cruz de pedraria.
Nas suas credenciais, havia sido obrigado a juntar uma letra ao
nome de Carrio, e usava o de cavaleiro de Carrion_ Achei-o na

490
mesma de sempre, com o mesmo excelente coração, o espirita
cada vez mais amável. Teria reatado com ele a mesma intimi­
dade de outrora, se Coindet, interpondo-se como de costume
entre nós, se não tivesse aproveitado do meu afastamento para
no meu lugar e em meu nome se insinuar na sua confiança, e
suplantar-me, à força de se mostrar zeloso em servir-me.
A memória de Carrio recorda-me a de um dos meus vizi­
nhos do campo, a respeito do qual o meu silêncio seria um
agravo, tanto maior quanto é certo ter eu que confessar um
bem pouco desculpável cometido para com ele. Trata-se do hon­
rado Monsieur Le Blond, ·que em Veneza me havia sido pres­
tável, e que tendo vindo com a familia de viagem até França,
·
havia alugado uma casa de campo em La Briche, perto de
Montmorency 1• Logo que soube que ele era meu vizinho, o
coração aleg�ou-se-me, e considerei mais uma festa que um
dever ir visitá-lo. Nessa intenção parti logo no dia seguinte.
Encontrei-me com pessoas que vinham visitar-me a mim, e com
as quais tive que voltar para trás. Dois dias depois, parto nova­
mente; Le Blond tinha jantado em Paris com toda a familia.
A terceira vez, estava em casa: ouvi vozes de mulher, e vejo
à porta um coche que me aterrorizou. Pela primeira vez, queria
ao menos vê-lo à vontade, e conversar com ele sobre as nossas
antigas relações. Enfim, protelei de tal maneira a minha visita
de dia para dia, que a vergonha de cumprir tão tarde seme­
lhante dever fez com que nunca mais o cumprisse: depois de
haver ousado esperar tanto, já não ousava aparecer. Tal negli­
gência, com a qual Monsieur Le Blond não pôde justamente
deixar de se indignar, conferiu aos seus olhos um ar de ingra­
tidão à minha preguiça ; e, no entanto, eu sentia o meu coração
tão pouco culpado, que se houvesse podido dar a Monsieur Le
Blond qualquer prazer, mesmo sem ele o saber, estou inteira­
mente convencido de que ele não me teria achado preguiçoso.
A indolência, a negligência, e as delongas em cumprir os peque­
nos deveres fizeram-me, porém, mais mal que grandes vícios.
As minhas piores faltas foram omissões : raramente fiz o que
cumpria não fazer, e mais raramente ainda, infelizmente, fiz
o que cumpria.
Visto que torno às pessoas com quem travei conhecimento
em Veneza, não devo omitir uma que se prende com a minha

1 Quando isto escrevia, estava bem longe de imaginar, na minha


antiga e cega confiança, o verdadeiro motivo e consequências de tal
viagem. - Nota ào J.-J. Rousseau.

491
estadia ali, e cujas relações havia interrompido, como as outras,
mas há muito menos tempo. É Monsieur de Joinville, que, depois
de haver regressado de Génova, tinha continuado a dispensar­
-me muitas atenções. Gostava muito de me ver e de conversar
comigo acerca dos assuntos de Itália, assim como das loucuras
dE:: Monsieur de Montaigu, de quem, por seu lado, sabia muitos
casos, graças às repartições dos negócios estrangeiros, onde
tinha muitas relações. Em sua casa tive também o prazer de vol­
tar a ver o meu antigo camarada Dupont, que na sua província
havia comprado um lugar, e cujos negócios o traziam por vezes
a Paris. A pouco e pouco iMonsieur de Joinville instava tanto
por me ter em sua casa, que se tornou mesmo importuno, e,
posto que morássemos em bairros muito afastados, logo entre
nós havia coisa se eu passava oito dias sem ir jantar com ele.
Quando ia a Joinville, queria sempre levar-me na sua compa­
nhia ; tendo porém lá ido passar uma vez oito dias, que me pare­
ceram bastante compridos, nunca mais lá quis voltar. Monsieur
de Joinville era sem dúvida um homem de bem, cortês, e até
amável, sob certos aspectos ; tinha contudo pouco espírito, era
formoso, um tanto ou quanto Narciso, e razoàvelmente aborre­
cido. Tinha uma singular colecção, talvez única no mundo, com
a qual se ocupava bastante, ocupando também os hóspedes, que
por vezes se divertiam menos do que ele. Era uma colectânea
completíssima de todas as cançonetas da corte e de Paris, de há
cinquenta anos para cá, e entre as quais se contavam muitaS"
anedotas que em vão se procurariam alhures. Aqui estão umas
Memórias para a história da França, de que de maneira
nenhuma se lembrariam em qualquer outra nação.
,Certo dia, no auge do nosso perfeito entendimento, rece­
beu-me tão friamente, tão glacialmente, tão fora do seu tom
usual, que depois de lhe haver proporcionado a ocasião para se
explicar, e até de lhe haver pedido que o fizesse, saí de sua casa
resolvido a nunca mais lá voltar a pôr os pés, o que cumpri ; pois
casa onde uma vez me recebem mal, de maneira nenhuma lá
me voltam a ver, e desta feita IMonsieur de Joinville não tinha
por advogado um Diderot. Em vão parafusei para descobrir
que mal lhe havia feito: nada achei. Tinha a certeza de
nunca ter falado dele e dos seus senão da maneira mais digna,
pois que lhe tinha sincera afeição, e além de que dele só tinha a
dizer bem, a minha mais inviolável máxima foi sempre a de
nunca falar senão com a maior dignidade das casas que fre­
quentava.

492
Por fim, à força de ruminar, eis o que conjecturei. A última
vez que nos havíamos visto, levara-me ele a cear em casa de
umas moças suas conhecidas, na companhia de dois ou três
funcionários dos negócios estrangeiros, pessoas gentilíssimas, e
que de maneira nenhuma aparentavam de devassos, e, por meu
lado, posso jurar ·que passei a noite a meditar com bastante
tristeza na sorte infeliz destas criaturas. Não paguei a minha
quota-parte, visto ser Monsieur de Joinville quem nos ofere­
cia de cear, e nada dei às raparigas, pois que não lhes fiz
ganhar, como à Padoana, o pago que teria podido oferecer-lhes.
Saímos todos bastante alegres e em perfeitíssima inteligência.
Sem ter voltado a casa das raparigas, fui jantar três ou quatro
dias depois com IMonsieur de Joinville, que não havia tornado
a ver desde então, e que me dispensou o acolhimento a que me
referi. Gomo não podia imaginar nenhuma outra razão além de
qualquer mal-entendido acerca da ·ceia, e como visse que ele não
queria explicar-se, tomei o meu partido e deixei de o ver ; conti­
nuei no entanto a enviar-lhe as minhas obras: mandou-me fre­
quentemente cumprimentos, e tendo-o certo dia en.contrado n a
estufa d a Comédia, censurou-me obsequiosamente por não ter
voltado a visitá-lo, o que aliás não me fez voltar a sua casa. Esta
questão tinha assim mais ar de uma desavença do que de uma
ruptura. Contudo, como não tinha tornado a vê-lo, nem a ouvir
falar dele desde então, voltar lá ao fim de uma interrupção
de alguns anos seria muito tarde. Eis a razão por que Monsieur
de Joinville não entra nesta lista, embora durante muito tempo
tivesse frequentado a sua casa.
Não aumentarei a dita lista com tantos outros conheci­
mentos menos familiares, ou que, devido à minha ausência,
tinham deixado de o ser, e que eu não deixei de ver por vezes
no campo, quer em minha casa, quer na vizinhança, como,
por exemplo, o abade de Condillac, o abade de Mably, !Monsieur
de !Mairan, !Monsieur de Lalive, !Monsieur de Boisgelou, Mon­
sieur Watelet, Monsieur Ancelet, e outros, que seria longo enu­
merar. Passarei também de raspão por Monsieur de Mar­
gency, fidalgo ordinário do rei, antigo membro da panelinha
holbachiana, que havia como eu abandonado, e ainda velho
amigo de Madame d'Épinay, de quem como eu se havia afastado ;
bem como pelo amigo deste, Desmahis, autor célebre, mas
efémero, da comédia O impertinente. O primeiro era meu
vizinho no campo, pois que a sua propriedade de 1Margency
ficava perto de Montmorency. Éramos antigos conhecidos ; mas
a vizinhança e uma certa conformidade de experiência aproxi-

493
maram-nos ainda mais. O segundo morreu pouco depois. Pos­
suía mérito e espírito : era, porém, um pouco o original da
sua comédia, um pouco fátuo com as mulheres, e não foi extre­
mamente chorado.
Não posso todavia omitir um novo correspondente dessa
época, o qual influiu por de mais no resto da minha vida, para
que eu me descure em assinalar-lhe o inicio. Trata-se de Mon­
sieur de Lamoignon de Malesherbes, primeiro presidente do Tri­
bunal dos Subsídios, então à testa da livraria, que dirigia com
uma inteligência que igualava a sua doçura, e com grande satis­
fação dos homens de letras. Em Paris, não o tinha ido visitar
uma só vez; no entanto, tinha sempre obtido da sua parte as
mais penhorantes facilidades, quanto à censura, e sabia que por
mais de uma vez havia maltratado a valer aqueles que contra
mim escreviam. Tive, a respeito da impressão de Júlia, novos
testemunhos das suas bondades; pois como era muito dispendioso
mandar vir de Amsterdão, pelo correio, as provas de uma obra
tão grande, Monsieur de Malesherbes autorizou, visto os portes
para ele serem francos, que elas lhe fossem enviadas, mandan­
do-mas a mim também francas de porte, referendadas pelo
senhor Chanceler, seu pai. Quando a obra se achou impressa,
só permitiu a sua venda no reino depois de uma edição que,
mau grado meu, mandou fazer para mim: como o lucro que
dela me adviria teria sido da minha parte um roubo feito a
Rey, a quem havia vendido o manuscrito, não só não quis aceitar
o presente que me era destinado sem o seu consentimento, que
Rey generosissimamente concedeu, como quis dividir com ele as
cem pistolas em que importava semelhante presente, o que
recusou. Por estas cem pistolas tive o dissabor, do qual Mon­
sieur de Malesherbes me não havia prevenido, de ver mutilar
horrivelmente a minha obra e de impedirem que a boa edição
fosse vendida antes da má se achar esgotada.
Considerei sempre Monsieur de Malesherbes como um
homem de uma rectidão a toda a prova. Nada do que me
sucedeu me fez j amais duvidar da sua probidade : tão fraco
no entanto como honesto, prejudica algumas vezes as pessoas
pelas quais se interessa, à força de as querer acautelar. Não só
fez suprimir mais de cem páginas na edição de Paris, como
fez um corte que podia ter o nome de infidelidade na edição
boa que mandou a Madame de Pompadour. Em certo sitio da
obra diz-se que a mulher de um carvoeiro é mais digna de
respeito que a amante de um príncipe. Semelhante frase
tinha-me ocorrido no calor da composição, sem nenhuma apli-

494
cação, juro-o. Ao reler a obra, vi que aplicariam a frase. No
entanto, graças à imprudentfssima máxima de nada suprimir,
em atenção às aplicações que dela poderiam fazer, quando
tinha o testemunho da minha consciência de que ao escrevê-la
eu próprio as não havia feito, não quis suprimir a frase, e con­
tentei-me em substituir a palavra príncipe à palavra rei; que
primeiramente havia escrito. Esta atenuação não pareceu sufi­
ciente a Monsieur de IMalesherbes : recortou a frase inteira para
uma folha adicional que mandou expressamente imprimir e
colar com toda a limpeza possível no exemplar de Madame de
Pompadour. A escamoteação não ficou desconhecida dela. Almas
caridosas a informaram. Por mim, só tive dela conhecimento
-
muito mais tarde, quando lhe comecei a sentir as consequências.
Não reside ainda aqui a primeira origem do ódio dissimu­
lado, mas implacável, de uma outra dama, que se achava em
idêntica situação, sem que eu de nada soubesse, nem sequer a
conhecesse, quando escrevi o dito passo ? Quando se publicou
o livro, tínhamos travado conhecimento, e fiquei bastante
inquieto. Comuniquei a minha inquietação ao cavaleirto de
Lorenzy, que se riu de mim, e me garantiu que a tal dama
estava tão ofendida que nem sequer tinha reparado no caso.
Acreditei-o talvez um pouco levianamente, e tranquilizei-me
bastante fora de propósito.
No começo do Inverno, recebi uma nova prova das bon­
dades de Monsieur de Malesherbes, que muito me sensibilizou,
embora não julgasse oportuno utilizar-me dela. Havia um lugar
vago no Journal des Savants. Margency escreveu-me a pro­
por-mo, como se a coisa partisse dele. Foi-me porém fácil com­
preender, pelo tom da sua carta {IMaço C, n.o 33), que tinha ins­
truções e estava autorizado, e ele próprio me comunicou poste­
riormente (Maço C, n.o 47 ) que tinha sido encarregado de me
fazer este oferecimento. O trabalho do lugar era de pouca monta.
Tratava-se apenas de dois extractos por mês, para o que me
trariam os livros, sem que eu fosse obrigado alguma vez a ter
que fazer alguma viagem a Paris, nem sequer para uma visita de
agradecimento ao magistrado. Graças a isto, entrei numa socie­
dade de homens de letras de sobressaliente mérito: Monsieur
de Mairan, Monsieur de Clairaut, Monsieur de Guignes, e o
abade Barthélemy; o conhecimento com os dois primeiros estava
já feito, e com os outros dois era muito bom de fazer. Enfim ,
por um trabalho tão pouco custoso, e de que eu me podia
encarregar tão comodamente, estava atribuído ao lugar um
ordenado de oitocentos francos. Pensei algumas horas antes

495
de me resolver, e posso jurar que a única coisa que me fez
hesitar foi apenas o receio de melindrar IMargency e de desagra­
dar a Monsieur de IMalesherbes. Mas enfim, o tormento insupor­
tável de não poder trabalhar às minhas horas e de ser coman­
dado pelo tempo ; e ainda mais a certeza de me desempenhar
mal das funções de que era mister encarregar-me, acabaram
por vencer tudo, levando-me a recusar um lugar para o qual não
servia. Eu sabia que todo o meu talento provinha apenas de
um certo calor da alma a respeito das matérias que tinha de
tratar, e que só o amor do grande, do verdadeiro, do belo podia
animar o meu génio. Que me importavam os assuntos da maior
parte dos livros que devia resumir, e até os próprios livros?
A minha indiferença pela coisa gelaria a minha pena e estu­
pidificar-me-ia o espírito. Imaginavam que eu podia escrever
por profissão, como todos os outros homens de letras, ao passo
que nunca soube escrever senão por paixão. Não era disto cer­
tamente que o Journal des Savants necessitava. Escrevi pois a
Margency uma carta de agradecimento redigida com toda a
cortesia possível, e na qual lhe pormenorizava tão bem as
minhas razões, que não é crível que nem ele nem Monsieur
de Malesherbes houvessem julgado que era o humor ou o
orgulho que me ditavam a minha recusa. Por isso tanto um
como o outro a aprovaram sem se mostrarem zangados, e o
sigilo sobre este assunto foi tão bem guardado que nunca o
público dele teve a menor notícia.
O momento não era favorável para eu aceitar a proposta ,
pois h á algum tempo j á que fazia tenção d e abandonar comple­
tamente a literatura e, sobretudo, a profissão de autor. Tudo
o que me havia acontecido me desgostara absolutamente dos
literatos, verificando eu que me era impossível levar a mesma
carreira sem ter com eles quaisquer relações. Não me desgostara
menos das pessoas da sociedade, e em geral da vida mista que
havia levado, metade consagrada a mim próprio, e metade a
convivências para que não tinha nascido. Graças a uma cons­
tante experiência, sentia mais do que nunca que toda e qual­
quer associação desigual é sempre desvantajosa para a parte
fraca. Vivendo entre pessoas opulentas, e de uma condição
diferente daquela que havia escolhido, não mantendo como elas
casa, era obrigado a imitá-las em muitas coisas, e as despesas
miúdas, que para elas nada eram, eram para mim tão ruinosas
quanto indispensáveis. Qualquer outro homem que vá para uma
casa de campo, tem o seu la,caio para o servir, tanto à mesa
como nos seus aposentos ; manda-o buscar tudo quanto precisa :

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como nada tem que ver directamente com o pessoal da casa, e
nem sequer o vê, só o presenteia quando e como lhe apraz ; eu
porém, só, sem criado, estava rà mercê dos da casa, cujas boas
graças, para não ter que padecer muito, era absolutamente
necessário captar, e, tratado da mesma maneira que o próprio
patrão, necessário era também tratar os criados como tal, e
até mesmo fazer por eles mais do que qualquer outro, visto que,
na realidade, deles tinha muito mais necessidade. Vamos indo,
quando há poucos criados : contudo, nas casas que frequentava
havia bastantes, e todos muito arr�antes, muito velhacos,
muito espertos, quanto aos seus interesses, já se vê, arranj an­
do-se os marotos de tal maneira que eu tinha sucessivamente
necessidade de todos. As mulheres de Paris, que têm tanto
espírito, são totalmente desprovidas de ideias justas sobre este
artigo, e à força de me quererem economizar a bolsa, arrui­
navam-me. Se ceava fora, um pouco longe do local onde habi­
tava, a dona da casa, em vez de tolerar que eu mandasse buscar
um fiacre, mandava atrelar para me reconduzir ; ficava muito
satisfeita por me poupar os vinte e quatro soldos do fiacre ;
quanto ao escudo que eu dava ao lacaio e ao cocheiro, não
pensava nisso. Se uma mulher me escrevia de Paris para a
Hermitage ou para Montmorency, com pena dos quatro soldos
que o porte da carta me custaria, enviava-ma por um dos seus
criados, que chegava a pé, todo alagado em suor, e a quem eu
dava de j antar e um escudo que ele havia certamente bem
ganho. Se me propunha ir passar oito ou quinze dias com ela
na sua casa de campo, dizia para consigo mesmo : sempre será
uma economia para o pobre rapaz ; durante este tempo a sua
alimentação nada lhe custará. Não pensava que, durante esse
tempo, também não trabalhava ; que nem por isso deixava de
ter que contar com a minha casa, e com o aluguer de.sta, e
com a minha roupa, e com os meus fatos ; que pagava o dobro
ao barbeiro, e que, em sua casa, este não deixaria de me custar
mais do que me custaria na minha. Apesar de limitar as minhas
módicas larguezas apenas às casas em que de ordinário habi­
tava, não deixavam elas de me ser ruinosas. Posso garantir
que despendi bem vinte e cinco escudos em casa de Madame
d'Houdetot, em iEaubonne, onde só dormi quatro ou cinco vezes,
e mais de cem pistolas, tanto em :Épinay, como na Chevrette,
durante os cinco ou seis anos em que lá fui com mais assidui­
dade. Para um homem do meu feitio, que não .sabe providenciar
a nada, que não tem expediente para coisa nenhuma, nem
pode suportar ver um criado resmungão e que nos serve de mau

497
modo, tais despesas são inevitáveis. Mesmo em casa de Madame
Dupin, onde era como que da família e prestava mil serviços
aos criados, nun<!a estes me dispensaram os seus senão a poder
de dinheiro. Posteriormente, foi..!me necessário renunciar intei­
ramente a estas pequenas liberalidades, que a minha situação
não mais me permitiu ter, e foi então que me fizeram sentir
ainda com muito mais dureza os inconvenientes de visitar pes­
soas duma condição diferente da minha.
Ainda se tal vida me agradasse, consolar-me-ia da despesa
onerosa que consagrava aos meus prazeres: mas arruinar-me
para me aborrecer era por de mais intolerável; e eu havia sen­
tido tão bem o peso desta maneira de viver que, aproveitando o
interregno de liberdade de que então gozava, estava decidido
a perpetuá-lo, a renunciar inteiramente à sociedade, a compor
livros, a todo e qualquer comércio literário, limitando-me, para
o resto dos meus dias, à estreita e tranquila esfera para a qual
sentia ter nascido.
O produto da Carta a d'Alembert e da Nova Heloísa tinha-me
restabelecido um pouco de finanças, que na Hermitage se
haviam desfalcado bastante. Via na minha frente cerca de mil
escudos. O Emílio, a que me tinha atirado a valer depois de
terminar Heloísa, estava muito adiantado, e o seu lucro devia
duplicar pelo menos aquela quantia. Projectava colocar estes
fundos, de maneira a obter uma rendazita vitalícia, e com. ela
e as cópias poder manter-me sem voltar a escrever. Tinha
ainda duas obras na forja. A primeira, eram as Instituições polt­
ticas. Examinei o estado deste livro, e achei que exigia ainda
muitos anos de trabàlho. Não tive coragem para o continuar
f' esperar que estivesse concluído para exe<!utar a minha reso­
lução. Deste modo, renunciando a semelhante obra, resolvi
extrair dela o que pudesse ser isolado, queimando em seguida
o resto; e atirando-me com ardor ao trabalho, sem interromper
o Emílio, em menos de dois anos dei a últirn,a demão no Con­
trato social.
Restava o Dicionário de música. Era um trabalho de artífice,
que em qualquer altura podia ser feito, e que só tinha em
vista um lucro pecuniário. Decidi para comigo mesmo abando­
ná-lo, ou terminá-lo à minha vontade, consoante os meus outros
recursos juntos me tornassem ne<!essário ou supérfluo aquele.
Com respeito à Moral sensitiva, cujo cometimento ficara apenas
em esboço, abandonei-a totalmente.
o meu último projecto, no caso de poder viver inteira­
mente da cópia, era afastar-me de Paris, onde a afluência das

498
pessoas com que não contava me tornava a subsistência custosa,
e me tirava o tempo de a ela prover; contudo, para evitar no
meu retiro o aborrecimento em que, segundo dizem, caem os
escritores quando abandonam a pena, destinei a mim próprio
uma ocupação que pudesse encher o vazio da minha solidão,
sem me tentar a nada mais mandar imprimir enquanto vivo
fosse. Não sei por que fantasia 'Rey insistia há tanto tempo
comigo para que eu escrevesse as memórias da minha vida.
Embora· estas não fossem até este momento mnito interessantes
quanto a factos, senti que o poderiam vir a ser em virtude da
franqueza que eu nelas era capaz de pôr, e resolvi escrever
uma obra única, graças a uma veracidade sem exemplo, a fim
de que ao menos uma vez se pudesse ver um homem tal como
ele era por dentro. Sempre me havia rido da falsa inocência
de Montaigne, que, fingindo confessar os seus defeitos, tão
grande cuidado tem em não atribuir a si senão defeitos amá­
veis; ao passo que eu, que, em suma, sempre me julguei, e me
jnlgo ainda, o melhor dos homens, senti que não há interior
humano que, por muito puro que possa ser, não oculte qualquer
vício odioso. Sabia que publicamente me pintavam com traços
tão pouco parecidos com os meus, e por vezes tão disformes,
que, apesar do mal, de que nada queria calar, só podia ganhar
mesmo assim mostrando-me tal qual era. Aliás, como tal coisa
não podia ser feita sem mostrar igualmente outras pessoas tal
como eram, e como por consequência esta obra só poderia apa­
recer depois de eu e muitas outras dessas pessoas haverem mor­
rido, isso animava-me ainda mais a fazer as minhas confissões,
das quais não teria que corar diante de ninguém. !Resolvi, pois,
consagrar os meus ócios à execução cabal desta empresa, e
pôr-me a recolher as cartas e os papéis que poderiam guiar ou
reavivar a minha memória, lastimando grandemente tudo o
que até então havia rasgado, queimado ou perdido.
Este projecto de retirada absoluta, um dos mais sensatos
que jamais fiz, tinha-se-me fortemente gravado no espírito, e
já eu trabalhava na sua execução, quando o céu, que me prepa­
rava um destino diferente, me lançou num novo turbilhão.
Montmorency, o antigo e belo património da ilustre casa
deste nome, já lhe não pertencia desde a sua confiscação. Pas­
sou, através da irmã do duque Henrique, à casa de Condé, que
mudou o nome de Montmorency no de Enghien, e o ducado tem
por castelo apenas uma velha torre, onde se conservam os
arquivos, e onde se recebem as homenagens dos vassalos. Em
Montmorency, ou Enghien, vê-se porém uma casa particular,

499
construída por JCroisat, por alcunha o pobre, a qual, possuindo
a magnificência dos mais soberbos castelos, disso merece e tem
o nome. O aspecto imponente deste belo edifício, o terrado
sobre o qual está construído, a sua vista, talvez única no
mundo, o seu vasto salão, pintado por excelentes mãos, o seu
j ardim, delineado pelo célebre Le Nôtre, tudo isto forma um
conjunto cuja impressionante maj estade tem todavia não sei
quê de simples, que ajuda e alimenta a admiração. o Marechal
duque de Luxemburgo, que então ocupava a casa, vinha todos
os anos à região, de que outrora seus pais eram os senhores,
passar por duas vezes cinco ou seis semanas, como simples
habitante, mas com um fausto que não desmerecia do antigo
esplendor da sua casa. Na primeira viagem que fizeram depois
dl" eu me haver instalado em Montmorency, o senhor Marechal e
a senhora IMarechala mandaram um criado grave cumprimen­
tar-me da sua parte, e convidar-me para cear em sua casa, sem­
pre que isso me desse prazer. De cada vez que voltaram, não
deixaram de reiterar os mesmos cumprimentos e o mesmo con­
vite. Isto trouxe-me à memória Madame de Beuzenval mandan­
do-me comer na copa. Os tempos tinham mudado ; mas eu per­
manecera o mesmo. Não queria que me mandassem j antar na
copa, e pouco me importava com a mesa dos grandes. Gostaria
mais que me deixassem ser o que era, sem me festejarem e sem
me rebaixarem. Respondi cortês e respeitosamente às amabili­
dades de IM:onsieur e Madame de Luxemburgo ; mas não aceitei
o seu oferecimento, e como tanto os meus achaques como o
meu feitio tímido e o meu embaraço em falar me faziam
estremecer só com a ideia de me apresentar numa reunião de
gente da corte, nem sequer fui ao castelo fazer uma visita de
agradecimento, embora compreendesse perfeitamente que era
isso que queriam, e que toda esta solicitude era mais uma
questão de curiosidade que de afabilidade.
No entanto, as propostas prosseguiram, tendo mesmo au­
mentado. Como a senhora condessa de Boufflers, que era
muito íntima da senhora lMarechala, tivesse vindo a Mont­
morency, mandou saber de mim, propondo-me que a fosse
visitar. IRespondi como devia, mas não desisti da minha. Na
viagem de Páscoa do ano seguinte, 1759, o cavaleiro de Lorenzy,
que pertencia à corte do príncipe de Conti e à sociedade de
Madame de Luxemburgo, veio visitar-me várias vezes : travámos
relações ; ele instou para que eu fosse ao castelo : não fui.
Enfim, uma tarde em que menos o esperava, vejo aparecer
o senhor Marechal de Luxemburgo, seguido de cinco ou seis

500
pessoas. Não houve então meio de me escusar, e, sob pena de
me mostrar arrogante e malcriado, não pude evitar de lhe retri­
buir a visita, e de ir cortejar a senhora Marechala, da parte
de quem ele me havia cumulado das mais obsequiosas atenções.
Assim começaram, sob funestos auspícios, as relações que não
pude por mais tempo evitar, mas que um pressentimento por
de mais bem fundado me fez recear até ao momento de nelas
me achar empenhado.
Eu tinha um grande medo de IMadame de Luxemburgo.
Sabia que era uma pessoa amável. Ainda duquesa de Boufflers,
e no viço da sua primeira beleza, tinha-a visto algumas vezes,
há dez ou doze anos, no teatro e em casa de Madame Dupin.
Passava contudo por má, e em tão grande dama tal reputação
fazia-me tremer. Mal a vi, fiquei subjugado. Achei-a encanta­
dora, daqueles encantos à prova do tempo, que são os mais pró­
prios a agirem sobre o meu coração. Esperava que a sua conversa
fosse mordaz e cheia de ironia. Nada disso: era muito melhor.
A conversa de Madame de Luxemburgo não é esfuziante de
E:spírito. Não tem subtilezas, nem propriamente agudeza: mas é
de uma delicadeza fina, que nunca choca, e agrada sempre. Os
seus encómios são tanto mais deliciosos quanto sucedem ser sim­
ples; dir-se-ia que lhe escapam sem que ela neles pense, e que o
coração se lhe abre, apenas por estar cheio de mais. Logo na
minha primeira visita, quis-me parecer que, apesar do meu ar
acanhado e das minhas frases desengraçadas, não lhe desa­
gradava. Com verdade ou mentira, todas as mulheres da corte
sabem, quando querem, levar-nos a acreditar em tal; mas nem
todas sabem, como Madame de Luxemburgo, persuadir-nos com
tal doçura, que a gente nem sequer se torna a lembrar de pôr
em dúvida o seu interesse. A minha confiança nela teria sido,
a partir do primeiro dia, tão completa como não tardou em sê-lo,
se a senhora duquesa de fM:ontmorency, sua nora, rapariga
doida, bastante maliciosa, e, penso eu, um pouco enredadora,
se não houvesse lembrado de me atormentar e, mesmo através
dos muitos elogios da mamã, e de fingidos afagos por sua
própria conta, me não fizesse desconfiar se não estaria a
zombar de mim.
Dificilmente haveria porventura calmado os meus receios
a respeito das duas damas, se não tivesse obtido a confirmação
de que as extremas bondades do senhor Marechal eram sérias.
Dado o meu carácter timido, não era para admirar a extrema
prontidão como o tomei à letra, no mesmo pé de igualdade
de que ele quis usar para comigo, a não ser talvez aquela com

501
que ele próprio me tomou também à letra, a respeito da mdeJ
pendência em que eu queria viver; Ambos convencidos de que
eu tinha razão em estar contente com o meu estado e em não
querer alterá-lo, nem ele nem Madame de Luxemburgo parece­
ram querer ocupar-se um insta:p.te com a minha bolsa ou com
a minha fortuna; embora eu não pudesse duvidar do interesse
generoso que ambos mostravam por mim, nunca no entanto
me propuseram qualquer lugar nem me ofereceram o f;eu
crédito, salvo uma vez em que me pareceu desejar Madame
de Luxemburgo que eu desse entrada na Academia Francesa.
Aleguei a minha religião: disse-me ela que isso não era um
obstáculo, ou que se comprometia a removê-lo. Respondi-lhe
que, por muito honrado que me sentisse em ser membro dei
um tão ilustre corpo, como já havia recusado a Monsieur de
Tressan, e, de certo modo, ao Rei da Polónia, entrar para a
Academia de Nancy, não me ficaria bem entrar para qualquer
outra. Madame de Luxemburgo não insistiu, e nunca mais se
falou em tal. Esta simplicidade de comércio com tão altos
senhores, os quais tudo podiam a meu favor (Monsieur de
Luxemburgo era e merecia bem ser amigo particular do Rei),
contrasta de uma maneira bastante singular com os constantes
cuidados, tão importunos quão obsequiosos, dos amigos pro­
tectores de que acabara de me desligar, os quais procuravam
menos servir-me que rebaixar-me.
Quando o senhor Marechal me viera visitar a Mont-Louis,
tinha-o recebido constrangido, a ele e à sua comitiva, no meu
quarto único, não porque me visse obrigado a fazê-lo sentar
no meio dos pratos sujos e das panelas rachadas, mas porque
o sobrado podre caia em ruinas, e eu temia que o peso da comi­
tiva o fizesse ir abaixo completamente. Preocupado menos com
o meu próprio perigo do que com o que a afabilidade do bom
senhor o fazia correr, dei-me pressa em tirá-lo dali, e, apesar
do frio que ainda fazia, levei-o ao meu Torreão, inteiramente
escancarado e sem fogão. Quando aqui nos achámos, contei-lhe
a razão que ali me havia obrigado a tra�-lo: o senhor Marechal
transmitiu-a à senhora iMarechala, e ambos instaram comigo
para que, enquanto concertavam o meu sobrado, aceitasse um
alojamento no castelo, ou, se o preferisse, num edificio isolado
que se achava no meio do parque, a que chamavam o Petit­
-Château. Vale a pena falar desta habitação encantadora.
O parque de Montmorency não é plano, como o da Che­
vrette. 'É desigual, montuoso, uma amálgama de colinas e de
depressões, das quais o hábil artista tirou partido para obter

502
variedade em matéria de moitas, embelezamentos, águas, pontos
de vista, e, por assim dizer, multiplicar, à força de arte e de
génio, um espaço em si mesmo bastante apertado. Em cima,
f> o parque coroado pelo terrado e pelo castelo; em baixo, forma
uma garganta que se abre e alarga em direcção ao vale, e
cujo ângulo é preenchido com um grande lago. O Petit­
-Château, de que falei, fica entre o laranjal que ocupa a aber­
tura, e o lago, que se acha rodeado de encostas bem guarne­
cidas de moitas e de árvores. o edifício, assim como o terreno
que o· cerca, pertenceram outrora ao célebre Le Brun, que se
comprouve em construi-lo e decorá-lo com aquele fino gosto
ornamental e arquitectónico de que o grande pintor se havia
alimentado. Depois disso, foi o castelo vá.rias vezes recons­
truído, mas seguindo-se sempre o traço do primitivo proprie­
tário. É pequeno, simples, mas elegante. Como está situado
em baixo, entre o tanque do laranjal e o lago grande, sujeito,
por conseguinte, à humidade, abriram-lhe no meio um peristilo
descoberto entre dois andares de colunas, graças ao qual o ar,
percorrendo todo o edifício, o mantém seco, apesar da sua situa­
ção. Quando da eminência oposta que lhe serve de perspectiva
se olha a construção, esta parece inteiramente cercada de
água, e afigura-se-nos que avistamos uma ilha encantada, ou
·a mais bonita das três ilhas Borromeias, chamada Isola Bella,
no lago Maior.
Foi neste edifício solitário que me deram a escolher um
dentre os quatro aposentos eompletos que ele contém, além
do rés-do-chão, composto de uma sala de baile, de uma sala
de bilhar, e de unia cozinha, que também ocupei. Era de uma
elegância encantadora; a mobilia era azul e branca. Foi
nesta profunda e delieiosa solidão, no meio dos bosques e das
águas, ouvindo um concerto de aves de todas as espécies, que
eu compus em continuo êxtase o quinto livro do Emílio, eujo
fresco colorido devo, em grande parte, à viva impressão do
local onde o escrevi.
Com que alvoroço todas as manhãs, ao nascer do sol, eu
corria ao peristilo para respirar o ar embalsamado! Que bom
café com leite eu ai tomava a sós com a minha Teresa! A minha
gata e o meu cão faziam-nos companhia. Este cortejo me bas­
taria toda a vida, sem experimentar um só momento de aborre­
cimento. Achava-me ali no Paraiso terreal; ali vivia com a
mesma inocência, ali gozava a mesma felicidade.
Na viagem de Julho, Monsieur e Madame de Luxemburgo
testemunharam-me tantas atenções, e demonstraram-me um

503
tal afecto que, instalado em sua casa e cumulado das suas
bondades, não tive outro remédio senão corresponder-lhes,
visitando-os assiduamente. Quase não os largava: de manhã,
ia cortejar a senhora Marechala; com ela jantava; à tarde, ia
passear com o senhor Marechal; mas não ceava, por causa de
tanta gente, e porque ceavam tarde de mais para mim. Tudo
até aqui estava dentro das conveniências, e nenhum mal havia
ainda, se eu tivesse sabido ficar-me por ali. Nunca soube, porém,
nas minhas afeições, conservar o justo meio, cumprindo sim­
plesmente os deveres de sociedade. Sempre quis ou tudo, ou
nada; em breve quis tudo, e, vendo-me festejado, amimado por
pessoas de tal consideração, ultrapassei o limites, e ganhei­
-lhes uma amizade que só aos da sua igualha é permitido ter.
Pus nas minhas maneiras toda a familiaridade, ao passo que eles
nunca abandonaram nas suas toda a civilidade a que me haviam
habituado. Todavia, nunca me achei inteiramente à vontade
com a senhora Marechala. Embora não estivesse perfeitamente
tranquilizado a respeito do seu carácter, temia-o menos do que
o seu espírito. Era sobr·etudo graças a este que ela me impunha
respeito. Sabia que era difícil nas conversas, e que tinha direito
a sê·-lo. Eu sabia que as mulheres, e sobretudo as grandes
damas, querem absolutamente que as divirtam, que será preferí­
vel ofendê-las a aborrecê-las, e, através dos seus comentários
sobre o que haviam dito as pessoas que acabavam de partir,
calculava o que devia pensar das minhas grosserias. Lembrei-me
de um expediente, para me livrar, junto dela, do embaraço de
falar: foi ler. iMadame de Montmorency tinha ouvido falar de
Júlia; sabia que estavam a imprimir o livro; mostrou-se solí­
/
cita em ver a obra; ofereci-me para lha ler; ela aceitou. Todas
as manhãs, pelas dez horas, me dirigia aos seus aposentos;
Monsieur de Luxemburgo vinha também; fechava-se a porta.
Punha-me a ler ao lado do leito, e lia tão compassadamente
que, ainda que as suas visitas fossem ininterruptas, teria leitura
para todo o tempo 1• o ê·xito de tal expediente ultrapassou a
minha expectativa. Madame de Luxemburgo apaixonou-se por
Júlia e pelo seu autor; só falava de mim, só se preocupava
comigo, todo o dia me dirigia palavrinhas doces, dez vezes por
dia me beijava. Queria que o meu lugar fosse sempre ao lado
dela, e quando um outro cavalheiro se queria sentar neste

1 A perda de uma grande batalha, que muito afligiu o Rei, obrigou


Monsieur de Luxemburgo a partir precipitadamente para a corte.- Nota
de J.-J. Rousseau.

504
lugar, ela dizia-lhe que era o meu, e mandava-o para outro
lado. Pode-se avaliar que impressão estes encantadores modos
me faziam, a mim, que fico subjugado com as mais pequenas
mostras de estima. Afeiçoei-me realmente a ela, na proporção
da afeição que ela me testemunhava. 8ó o que temia, ao ver
semelhante entusiasmo, e sentindo o meu espírito com tão
poucos atractivos para o sustentar, era que ele se não trans­
formasse em aversão, e, infelizmente para mim, tal receio mos­
trou-se por de mais bem fundado.
Mister era que houvesse uma oposição natural entre a
forma do seu espírito e a do meu, visto que, independentemente
da quantidade de disparates que, em conversa, e até nas cartas,
constantemente me escapavam, eoisas havia, mesmo quando
estávamos de melhor entendimento, que lhe desagradavam,
sem que eu pudesse imaginar porquê. Citarei apenas um exem­
plo, podendo embora citar vinte. IMadame de Montmorency soube
que eu estava fazendo uma cópia de Heloísa para Madame
d'Houdetot, a tanto por página. Quis também uma nas mesmas
condições. Prometi-lha, e considerando-a por essa razão no
número dos meus clientes, escrevi-lhe a este respeito qualquer
coisa atenciosa e cortês; era esta, pelo menos, a minha intenção.
Eis a sua resposta, que me fez cair das nuvens (Maço C, n.o 43):

Versalhes, terça-feira

Estou encantada, estou satisfeita; a vossa carta deu-me


um prazer infinito, e apresso-me a participar-va-lo e a agra­
decer-va-lo.
Eis os próprios termos da vossa carta: Embora sejais cer­
tamente uma boa cliente, custa-me um tanto ou quanto receber
o vosso dinheiro: normalmente, competir-me-ia a mim pagar
o prazer que tenho em trabalhar para vós. Nada mais vos digo.
Lamento que nunca me faleis da vossa saúde. Nada me inte­
ressa mais do que ela. Amo-vos com todo o meu coração; e,
garanto-o, é com bastante tristeza que vo-lo comunico, pois que
teria muito prazer em va-lo dizer pessoalmente. Monsieur de
de Luxemburgo ama-vos e abraça-vos com toda a cordialidade.

Ao receber esta carta, dei-me pressa em responder-lhe,


esperando entrementes fazer um mais amplo exame, para pro­
testar contra qualquer interpretação incivil, e, depois de durante
alguns dias me absorver em tal exame, com a inquietação que

505
se pode calcular, e continuando sempre sem nada perceber do
que se passava, eis qual foi a minha última resposta sobre o
assunto:

Montmorency, 8 de Dezembro de 1759

Depois da minha última carta, examinei e tornei a exami­


nar centos de vezes o passo em questão. Considerei-o no seu
sentido próprio e natural; considerei-o em todos os sentidos
que se lhe podem dar, e confesso-vos, senhora Marechala, que
já não sei se sou eu que devo apresentar-vos as minhas descul­
pas, se sois vós que mas deveis apresentar a mim.

Faz agora dez anos que estas cartas foram escritas. Muitas
vezes voltei nelas a pensar desde então, e ainda hoje a minha
estupidez sobre este artigo é tal, que não cheguei ainda a com­
preender o que teria ela- encontrado em semelhante passo,
não digo já ofensivo, mas que pudesse simplesmente desagra­
dar-lhe.
A propósito do exemplar manuscrito de Heloísa que Madame
de Luxemburgo queria obter, devo referir aqui o que imaginei
para lhe dar uma superioridade nitida que o distinguisse de
qualquer outro. Tinha escrito separadamente As aventuras de
Mylord Édouard, e durante muito tempo hesitara sobre se
havia de inseri-las, quer por inteiro, quer em resumo, na obra,
onde me parecia fazerem falta. Por fim, resolvi-me a cortá-las
inteiramente, visto não se acharem no tom de todo o assunto
restante, e por isso lhe estragarem a tocante simplicidade.
Tive ainda uma outra razão mais forte, ao conhecer Madame
de Luxemburgo: era que havia nessas aventuras uma mar­
quesa romana de um carácter desagradabilíssimo, alguns traços
da qual, sem lhe serem aplicáveis, o poderiam ser por aqueles
que só de reputação a conheciam. F1elicitei-me pois bastante
pela decisão tomada, e persisti nela. No ardente desejo, porém,
de enriquecer o seu exemplar com qualquer coisa que não figu­
rasse em nenhum outro, não fui eu lembrar-me destas funestas
aventuras, e conceber o projecto de as extractar para lhas
ajuntar? Projecto insensato, cuja extravagância só se pode
explicar pela cega fatalidade que me arrastava à minha perda!

Quos vult perdere Juppiter dementat 1

1 «Júpiter tira a razão àqueles a quem quer perder.» - versão latina


de uma frase célebre de Eurípides.- N. do T.

506
Cometi a estupidez de fazer o extracto com todo o cuidado,
com todo o trabalho, e de lhe enviar o trecho como sendo a
mais bela coisa do mundo, prevenindo-a, todavia, de que havia
queimado o original, o que era verdade, de que o extracto era
apenas para ela, e nunca seria visto por ninguém, a não ser
que ela própria o mostrasse; o que, longe de lhe provar a minha
prudência e a minha discrição, tal como julgava fazê-lo, era
apenas adverti-la do juizo que eu próprio fazia a respeito da
aplicação dos traços com que ela poderia ofender-se. Foi tal a
minha imbecilidade, que não duvidei de que ela ficasse encan­
tada com o meu procedimento. Não me fez a este respeito os
grandes cumprimentos que esperava, e, com grande surpresa
minha, nunca me falou no caderno que eu lhe havia enviado.
Por mim, encantado sempre com a minha conduta nesta questão,
só muito tempo depois é que, por outros indícios, pude avaliar
do efeito que ela havia produzido.
Por amor do seu manuscrito, tive ainda outra ideia mais
razoável, mas que, graças a efeitos mais longínquos, não me
foi de maneira nenhuma menos prejudicial: a tal ponto tudo
concorre para a obra do destino, quando esta atrai um homem
para a desgraça! Pensei em ornar o manuscrito com os dese­
nhos das estampas de Júlia, os quais sucedia serem do mesmo
formato do manuscrito. Pedi a Coindet os desenhos, que a
todos os títulos me pertenciam, tanto mais que lhe tinha cedido
o produto das lâminas,as quais tiveram grande venda. Coindet
é tão manhoso quanto eu o sou pouco. A força de me obrigar a
pedir os desenhos, conseguiu saber para que eu os queria. Então,
sob pretexto de lhes acrescentar quaisquer ornamentos, fez
com que eu lhos deixasse, e acabou ele próprio por os apresentar.

Ego versiculos teci, tulit alter lwnores 1

Isso o acabou de introduzir com certo à-vontade no palá­


cio Luxemburgo. Desde que me instalara no Petit-Chãteau,
vinha ele aqui visitar-me fre,quentemente, e sempre de manhã,
sobretudo quando Monsieur e Madame de Luxemburgo estavam
em Montmorency. Daqui resultava que, para passar o dia com
ele, eu não ia ao castelo. Censuravam-me as minhas ausências;
contei-lhes a razão delas. Instaram para que levasse Monsieur
Coindet: o que fiz. Era o que o patusco pretendia. Desta maneira,
graças às bondades que tinham :para comigo, um empregado de

1 «Eu fiz versos, outrem lhes recolhe os louvores.» - Virgílio.

507
Monsieur Thelusson, que se dignava sentá-lo algumas vezes à
sua mesa, quando não tinha ninguém a jantar, se achou repen­
tinamente admitido à de um marechal de França, com os prínci­
pes, as duquesas, e tudo o que na corte havia de grande. Nunca
me esquecerei de que certo dia em que era obrigado a voltar cedo
para Paris, o senhor Marechal disse depois do jantar à compa­
nhia: vamos dar um passeio pela estrada de Saint-Denis; acom­
panharemos Monsieur Coindet. O pobre rapaz não se conteve;
perdeu inteiramente a cabeça. Por mim, comoveu-se-me tanto
o coração, que não pude dizer palavra. Seguia atrás, chorando
como uma criança, morto por beijar as passadas daquele bom
Marechal. A continuação da história desta cópia fez-me preci­
pitar os sucessos. Retomemo-los por sua ordem, tanto quanto
a minha memória mo permitir.
Logo que a casita de Mont-Louis se achou pronta, mandei-a
mobilar decentemente, com simplicidade, e voltei a instalar-me
nela, pois não podia renunciar àquela lei que, depois de haver
deixado a Hermitage, a mim próprio me impusera de ter sempre
uma casa minha; mas também me não pude resolver a deixar
o aposento do Petit-Chàteau. Guardei a chave deste, e, como
gostava muito dos belos almoços no peristilo, ia ali frequen­
temente dormir, e algumas vezes lá passava dois e três dias,
como se fora numa casa de campo. Era porventura então o
melhor e o mais agradàvelmente instalado dos particulares da
Europa. O meu hospedeiro, :l'vionsieur Mathas, que era o melhor
homem do mundo, tinha-me absolutamente deixado a direcção
das obras de Mont-Louis, e quis que eu dispusesse dos seus operá­
rios, sem ele sequer se intrometer no assunto. Achei pois meio
de fazer, de um quarto único no primeiro andar, um aposento
completo, composto de um quarto, uma antecâmara e um rou­
peiro. No rés-do-chão ficavam a cozinha e o quarto de Teresa.
O torreão servia-me de escritório, graças a um bom tabique
envidraçado e a um fogão que ali se mandou fazer. Quanto ali
me achei, entretive-me a decorar o terrado, já ensombrado por
duas filas de tílias novas; acrescentei-lhes mais duas, para
obter um gabinete de verdura; mandei lá colocar uma mesa
e dois bancos de pedra: cerquei-o de lilases, de seringa e de
madressilva; mandei construir uma plc,tibanda de flores para­
lela aos dois renques de árvores; assim o terrado, mais elevado
do que o do castelo, com uma vista pelo menos tão bonita como
o deste, e ao qual eu havia familiarizado uma quantidade de
aves, servia-me de sala de estar para receber Monsieur e
Madame de Luxemburgo, o senhor duque de Ville,.roy, o senhor

508
príncipe de Tingry, o senhor marquês d'Armentiêres, a senhora
duquesa de Montmorency, a senhora duquesa de Boufflers, a
senhora condessa de Valentinois, a senhora condessa de Bouf­
flers, e outras pessoas da mesma categoria, que, do castelo, não
se dedignavam subir uma subida bastante fatigante, para vir
em peregrinação até Mont-Louis. Era à benevolência de Mon­
sieur e de Madame de Luxemburgo que eu devia todas estas
visitas; compreendia-o, e por elas lhes rendia grande preito.
Foi num destes transportes de ternura que certo dia disse a
Monsieur de Luxemburgo, abraçando-o: Ah! senhor Marechal,
eu odiava os grandes antes de vos conhecer, e ainda mais os
odeio desde que vós me fizestes tão bem compreender como
lhes seria fáç:il levarem as pessoas a adorá-los.
De resto, intimo todos os que durante esta época me viram
a que digam se alguma vez notaram haver-me tal esplendor
deslumbrado um instante que fosse, haver-me subido rà cabeça
o vapor de semelhante incenso; se me viram menos firme no
meu comportamento, menos simples nas minhas maneiras,
menos afável com o povo, menos familiar com os meus vizinhos,
menos diligente em prestar serviço a toda a gente, quando o
pude fazer, e sem jamais me aborrecer com os inúmeros, e por
vezes despropositados, dissabores que permanentemente me
contristavam. Se a minha sincera afeição pelos senhores de
Montmorency chamava ao castelo o meu coração, também este
me levava para junto dos meus vizinhos, entre os ,quais gozava
as doçuras daquela vida igual e simples, fora da qual não existe
para mim felicidade. Teresa tinha arranjado por amiga a filha
de um pedreiro meu vizinho, chamado Pilleu; também eu me
tornei amigo do pai, e, depois de haver, embora constrangido,
jantado de manhã no castelo, para agradar à senhora Mare­
chala, com que alvoroço regressava à noite, para cear com o
simplório do Pilleu e a família, ora em sua casa, ora na minha.
Além destas duas habitações, em breve tive uma terceira,
no paládo Luxemburgo, cujos donos instaram tanto comigo para
que lá fosse visitá-los de vez em quando, que acedi, apesar da
minha aversão por Paris, onde, depois de me haver recolhido à
Hermitage, só havia ido das duas vezes que mencionei. Ainda
assim, só lá ia em dias combinados, apenas para cear e voltar
no dia seguinte de manhã. Entrava e saía pelo jardim que dava
para a avenida; de maneira que podia dizer, com toda a verdade,
que não tinha posto o pé em Paris.
No seio de toda esta prosperidade passageira, vinha de
longe preparando-se a catástrofe que lhe devia dar remate.

509
Pouco daopois de ter regressado a Mont-Louis, fiz, mau grado
meu, como de costume, novo conhecimento, que outra vez marca
uma data na minha história. li: a senhora marquesa de Verdelin,
minha vizinha, cujo marido acabava de comprar uma casa de
campo em Soisy, perto de Montmorency. Mademoiselle d'Ars,
filha do conde d'Ars, homem de condição, mas pobre, tinha
desposado Monsieur de Verdelin, um velho feio, surdo, duro,
brutal, ciumento, cheio de cicatrizes, zarolho, boa pessoa, de
resto, quando o sabiam levar, e senhor de quinze a vinte mil
libras de renda, com as quais a casaram. Praguejando, gritando,
resmungando, esbravejando e fazendo chorar a mulher todo o
dia, acabava este amor de homem por fazer sempre o que ela
queria, e isto para a enfurecer, visto ela saber convencê-lo de
que era ele que tudo queria, e não ela. Monsieur de Margency,
a quem já me referi, era amigo de Madame, e em breve o veio
a ser de Monsieur de Verdelin. Há alguns anos já que lhes havia
alugado o 1 seu castelo de Margency, perto de Eaubonne e de
Andilly, encontrando-se eles ali precisamente quando eu me
havia tomado de amores por Madame d'Houdetot. Madame
d'Houdetot e Madame de Verdelin conheciam-se por intermédio
de Madame d'Aubeterre, sua amiga comum, e como o jardim
de Margency se achava no caminho que Madame d'Houdetot
tomava para ir ao Monte Olimpo, seu passeio favorito, Madame
de Verdelin dava-lhe a chave para que ela o atravessasse.
Graças a esta chave, atravessava-o frequentemente com ela;
mas os encontros de surpresa não eram do meu agrado, e quando
por acaso Madame de Verdelin se encontrava no nosso cami­
nho, deixava-as a ambas, sem nada lhe dizer, e continuava
sempre para a frente. Este pouco amável procedimento não
devia contribuir para ela fazer um bom conceito da minha
pessoa. No entanto, quando se instalou em Soisy, não deixou
de me procurar. Veio visitar-me algumas vezes a Mont-Louis,
sem me encontrar, e, lembrou-se, para me forçar a fazê-lo, de
me enviar alguns vasos de flores para o meu terrado. Força
me foi ir agradecer-lhe: foi o bastante. Ai nos achámos nós
ligados.
Tal ligação começou por ser borrascosa, como todas as que,
mau grado meu, fazia. Nem nunca nela reinou sequer uma
verdadeira calma. O feitio de espírito de Madame de Verdelin
era por de mais antipático ao meu. Os rasgos de malícia e os
epigramas saem dela com tanta simplicidade, que necessário
se torna uma atenção permanente, e para mim muito fati­
gante, para percebermos quando está a caçoar connosco. Recor-

510
do-me de uma ninharia que é suficiente para o apreciar.
o irmão de Madame de Verdelin acabava de ser nomeado
comandante de uma fragata que ia em expedição contra os
ingleses. Eu conversava acerca da maneira de armar tal fragata
sem prejuízo da sua ligeireza. Sim, diz ela, num tom muito
singelo, só se carrega o número de canhões suficiente para se
batalhar. Raramente a ouvi falar a bem de qualquer dos seus
amigos ausentes, sem insinuar uma palavra de agravo para
eles. o que não via maldosamente, via-o ridiculamente, e nem
o seu amigo Margency escapava. O que outrossim achava nela
insuportável era a mortificação permanente dos seus recadinhos,
dos seus presentinhos, dos seus bilhetinhos, cuja resposta me
fazia deitar os bofes pela boca, causando-me sempre novos
embaraços, quer para os agradecer, quer para os rejeitar. A força
de a ver, acabei, no entanto, por lhe ganhar afeição. Tinha,
como eu, os seus desgostos. As confidências reciprocas tornaram
as nossas práticas a sós interessantes. Nada une tanto os cora­
ções como a doçura de chorar de companhia. Procurávamo-nos
para nos consolarmos, e tal necessidade levou-me muitas vezes
8. não reparar em muitas coisas. Tinha usado de tanta dureza
na minha franqueza para com ela, que após haver mostrado
algumas vezes tão pouca estima pelo seu carácter, necessário
era ter realmente bastante, para julgar que ela me poderia sin­
ce.::amente perdoar. Dou aqui uma amostra das cartas que por
vezes lhe escrevia, e a respeito das quais nunca ela, em nenhuma
das suas respostas, pareceu de maneira nenhuma ficar melin­
drada.
Montmorency, 5 de Novembro de 1760

Dizeis-me, Senhora, que vos não explicastes bem, para me


dar a entender que eu me explico mal. Falais-me da vossa pre­
tensa necedade, para me jazer sentir a minha. Gabais-vos de
não passar de uma pobre mulher, como se receásseis que vos
tomassem à letra, e apresentais-me as vossas desculpas para
me ensinar que vo-las devo. Sim, Senhora, eu bem sei que sou
eu que sou um nés-cio, um pobre homem, e ainda pior, se é possí­
vel; sou eu que escolho mal os termos, no consenso de uma bela
dama francesa, que às palavras presta tanta atenção e fala tão
bem como vós. Considerai, porém, que eu as tomo no sentido
comum da língua, sem estar ao corrente ou em cuidados acerca
das acepções corteses que nas virtuosas sociedades de Paris lhes
dão. Se as minhas expressões são por vezes equivocas, diligen­
cio que a minha conduta lhes determine o sentido, etc.

511
O resto da carta é pouco mais ou menos no mesmo tom.
Veja-se a resposta (Maço D,n.o 41),e avalie-se a inacreditável
moderação de um coração de mulher,que de semelhante carta
pode não guardar mais ressentimento que o que a sua resposta
deixa transparecer, e que o que alguma vez me testemunhou.
Atrevido com as mulheres,ousado até ao descaramento,Coindet,
que estava sempre à espreita de todos os meus amigos, não
tardou em introduzir-se em meu nome em casa de Madame de
Verdelin, e, sem eu o saber, dentro em pouco nela se tornou
mais familiar que eu próprio. Era um bom ponto,este Coindet.
Apresentava-se da minha parte em casa de todos os meus
conhecimentos,ali se instalava,ali comia sem cerimónia. De um
zelo fervoroso em me servir, nunca falava de mim senão com
as lágrimas nos olhos: no entanto, quando vinha visitar-me,
guardava o mais profundo silêncio sobre todas essas relações,
assim como sobre tudo o que sabia dever interessar-me. De
Paris,nunca sabia nada,a não ser o que eu lhe contava: enfim,
posto que toda a gente me falasse dele,nunca ele me falava de
ninguém: só tinha segredos e mistérios para o seu amigo. Dei­
xemos, porém,quanto ao presente,Goindet e Madame de Ver­
delin. Lá voltaremos mais tarde.
Algum tempo depois de voltar para Mont-Louis, La Tour,
o pintor, veio aqui visitar-me, e trouxe-me o meu retrato a
pastel, que havia exposto há alguns anos atrás no Salon. Tinha
querido dar-me o retrato, o que eu não aceitara. Contudo,
Madame d'l!:pinay, que me havia dado o seu e queria aquele,
tinha feito com que eu voltasse a pedir-lho. La Tour tinha
levado algum tempo a retocá-lo. Entrementes, surgiu a minha
ruptura com Madame d'Epinay; restituí-lhe o retrato dela, e
como já não havia motivo para lhe dar o meu, pu-lo no meu
quarto do Petit-Ch:âteau. Monsieur de Luxemburgo viu-o e
agradou-se dele; ofereci-lho, e ele aceitou-o, depois do que
lho mandei. Tanto ele como a senhora Marechala compreen­
deram que eu teria muito prazer em possuir os deles. Manda­
ram-nos fazer em miniatura, por um hábil artista, encaixi­
lharam-nos numa caixa de bombons,de cristal de rocha,mon­
tada em oiro,e ofereceram-me o presente duma maneira muito
gentil, que me encantou. Madame de Luxemburgo nunca con­
sentiu que o seu retrato ficasse na parte de cima da caixa.
Várias vezes me havia exprobrado gostar eu mais de Monsieur de
Luxemburgo do que dela,coisa contra a qual eu não protestava
de forma nenhuma, pois que era a verdade. Pela forma como

512
queria o seu retrato colocado na caixa, mostrou-me, com grande
gentileza, mas bem claramente, que não esquecia tal preferência.
Pouco mais ou menos por esta altura, cometi uma tolice,
que não contribuiu para me conservar as suas boas graças.
Embora não conhecesse de todo Monsieur de Silhouette, e pen­
desse pouco a gostar dele, tinha em grande conta a sua admi­
nistração. Quando este começou a carregar a mão nas finanças,
vi que não encetava a operação em ocasião favorável; nem por
isso fiz votos menos ardentes pelo seu ,êxito, e, na minha intré­
pida irreflexão, quando soube que ele havia sido destituído,
enviei-lhe a seguinte carta, que de certeza não pretendo jus­
tificar:

Montmorency, 2 de Dezembro de 1759

Dignai-vos, Senhor, aceitar as homenagens de um solitário


que não conheceis, mas que vos estima, graças aos vossos talen­
tos, vos respeita, graças à vossa administração, e que vos deu
a honra de crer que esta não estaria muito tempo nas vossas
mãos. Só podendo salvar o Estado à custa do capital que o
perdeu, afrontastes os gritos dos que ganham dinheiro. Ao ver­
-vos esmagar semelhantes miseráveis, invejava-vos o vosso
lugar; ao ver que o abandonáveis sem vos trairdes, admiro-vos.
Ficai satisfeito convosco mesmo, Senhor, tal lugar contere-vos
uma honra de que gozareis por muito tempo sem outro concor­
rente. As maldições dos velhacos são a glória do homem justo.

Madame de Luxemburgo, que sabia que eu havia escrito


esta carta, falou-me dela na sua viagem de Páscoa; mostrei­
-lha; desejou ela ter uma cópia, e eu dei-lha: mas, ao dar-lha,
ignorava que ela era uma destas pessoas que ganhavam dinheiro
com as sublocações e que haviam levado Silhouette a demitir-se.
Com todas as minhas leviandades, dir-se-ia que estava excitando
por prazer o ódio de uma mulher amável e poderosa, à qual,
a falar verdade, de dia para dia mais me ia afeiçoando, e cujo
desfavor estava bem longe de querer atrair, embora, à força
de imprudências, fizesse tudo o que para isso era necessário.
Creio absolutamente indispensável prevenir que é a ela que se
refere a história do opiato, que contei na primeira parte destas
confissões: a outra senhora era Madame de Mirepoix. Nunca
mais me voltaram a falar no caso, nem nenhuma delas deu a
menor mostra de dele se lembrar; mas o que me parece bem
difícil é supor que �adame de Luxemburgo tenha podido esque-

33
513
cer-se realmente dele, ainda que nada se soubesse dos acon­
tecimentos subsequentes. Por mim, espantava-me com o efeito
das minhas asneiras, em vista da consciência que tinha de não
haver cometido nenhuma com a intenção expressa de a ofender:
como se uma mulher pudesse alguma vez perdoar asneiras seme­
lhantes, mesmo com a mais completa certeza de que a vontade
nelas nada contara.
No entanto, embora Madame de Luxemburgo nada pare­
cesse ver, nada parecesse compreender, e embora eu não
achasse que a sua solicitude diminuía, nem que as suas maneiras
houvessem mudado,tanto a continuação, como até o acréscimo
de um pressentimento por de mais bem fundado, constante­
mente me faziam temer que a este entusiasmo sucedesse em
breve o aborrecimento. Poderia eu esperar de tão grande dama
uma constância 'à prova do meu fraco jeito em sustentá-la?
Nem sequer sabia esconder dela este pressentimento surdo que
me inquietava, e que só concorria para me tornar mais aborre­
cido. Avaliar-se-á do meu estado pela carta seguinte, que con­
tém uma predição bem singular.

N. B.- Esta carta, que no meu rascunho não tem data, é, o mais
tardar, do mês de Outubro de 1760.

Como as vossas bondades me são cruéis! Porque per­


turbar a paz de um solitário que renunciara aos prazeres da
vida para lhes não sentir os contratempos? Em vão passei os
meus dias em busca de afeições sólidas. Não as pude formar
nas esferas onde as podia alcançar; é na vossa que eu as devo
procurar? Nem a ambição nem o interesse me tentam; sou
pouco presumido, pouco temeroso; posso resistir a tudo, excepto
aos afagos. Porque me atacais vós os dois por um fraco que
é preciso vencer, visto que, na distltncia que nos separa, os
desafogos dos corações sensíveis não devem aproximar o meu
dos vossos? Bastará o reconhecimento a um coração que não
conhece duas maneiras de se dar, e só se sente capaz de ami­
zade? De amizade, senhora Marechala! Ai, eis aqui a minha
desgraça! É bonito em vós, no senhor Marechal, empregardes
este termo: mas eu sou um louco em vos tomar à letra. Vós
brincais comigo, eu afeiçoo-me, e ao cabo a brincadeira reser­
va-me novas penas. Como odeio todos os vossos títulos, e como
vos lamento por os usardes! Porque não habitais em Clarens?
Iria aí buscar a felicidade da minha vida: mas no castelo de
Montmorency, no palácio de Luxemburgo! É aqui que Jean

514
Jacques deve ser visto? É aqui que um amigo da igualdade
deve levar as afeições de um coração sensível, o qual, pagando
desta maneira a estima que lhe testemunham, julga restituir
tanto quanto recebe? Também vós sois boa e senstvel, sei-o,
vi-o; lamento não haver podido acreditá-lo mais cedo: contudo,
no meio em que vos achais, na vossa maneira de viver, nada
pode provocar uma impressão duradoira, e são tantos os objectos
novos que mutuamente se destroem, que não há nenhum que
permaneça. Esquecer-me-eis, Senhora, depois de me haverdes
tornado incapaz de vos imitar. Tereis jeito o bastante para me
tornardes desgraçado, e sem desculpa.

Associei-lhe iMonsieur de Luxemburgo, para tornar o cum­


primento menos duro para ela; porque, de resto, tinha tanta
confiança nele, que nem sequer me tinha acudido ao espírito
nem uma só dúvida a respeito da duração da sua amizade. Nem
um só momento coisa alguma do que me intimidava por parte
da senhora Marechala se estendeu a ele. Nunca tive a menor
desconfiança a respeito do seu carácter,o qual sabia fraco,mas
seguro. Da sua parte,temia tanto um resfriamento como espe­
rava uma dedicação heróica. A simplicidade, a familiaridade
das maneiras de que usávamos um para com o outro,indicava
quanto contávamos reciprocamente connosco. Ambos tínhamos
razão: honrarei, prezarei, enquanto vivo for, a memória deste
digno fidalgo, e, embora tivessem feito tudo para o afastar de
mim, estou tão certo de que morreu meu amigo, como se lhe
houvesse recebido o último suspiro.
Como,na segunda viagem a Montmorency do ano de 1760,
tinha acabado a leitura de Júlia, recorri à do Emtlio, para me
aguentar junto de Madame de Luxemburgo; tal coisa não deu
porém o mesmo resultado, quer porque a matéria não fosse
tanto do seu agrado,quer porque,ao fim,tanta leitura a enfa­
dasse. No entanto,como me censurava por eu me deixar enga­
nar pelos meus editores, quis tomar a seu cargo a edição da
obra, com o fim de dela tirar melhor partido. Acedi, sob con­
dição expressa de não se imprimir em França, e foi a este
respeito que nós tivemos uma longa discussão,eu,porque susten­
tava que era impossível obter, e até imprudente pedir, a auto­
rização tácita, e porque doutra maneira não queria permitir
a impressão no reino; ela, porque sustentava que, no sistema
que o governo adoptara, tal coisa nem sequer constituía uma
dificuldade para a censura. Madame de Luxemburgo achou
meio de pôr de acordo com ela Monsieur de Malesherbes,

515
o qual a este respeito me escreveu uma grande carta, inteira­
mente de seu punho, para me provar que a Profissão de fé do
Vigário saboiano era precisamente uma obra que fora escrita
para obter por toda a parte a aprovação do género humano, e,
nesta ocorrência, a da corte. Surpreendeu-me ver este magis­
trado, sempre tão temeroso, de uma tal indulgência nesta ques­
tão. ·Como bastava a sua aprovação para tornar legal a impres­
são de um livro, mais nenhuma objecção tinha a fazer contra a
desta obra. Contudo, por um escrúpulo extraordinário, conti­
nuei a exigir que a obra se imprimisse na Holanda, e até por
intermédio do editor Néaulme, o qual não me contentei em
indicar, mas que até preveni; consentindo, aliás, que a edição
se fizesse em benefício de um editor francês, e que, logo que
se achasse impressa, a vendessem em Paris, ou onde quisessem,
visto que tal venda me não dizia respeito. Foi exactamente isto
que ficou assente entre IM:adame de Luxemburgo e mim, depois
do que lhe confiei o manuscrito.
Tinha ela trazido consigo nesta viagem a neta, Mademoi­
selle de Boufflers, hoje condessa de Lauzun. Chamava-se
Amélia. Era uma criatura encantadora. Tinha uma figura, uma
doçura, uma timidez verdadeiramente virginais. Não havia
figura mais amável e mais interessante do que a sua, nem sen­
timentos mais ternos e mais castos do que os que ela inspirava.
Era, aliás, uma criança; ainda não tinha onze anos. A senhora
Marechala, que a achava demasiado tímida, fazia todos os esfor­
ços para a espevitar. Permitiu-me várias vezes que a beijasse;
o que fiz com o meu desajeitamento do costume. Em vez das
amabilidades que outro qualquer no meu lugar diria, para ali
fiquei calado, interdito, e não sei qual dos dois, se a pobre
menina, se eu, estava mais envergonhado. Um dia, encontrei-a
sozinha na escada do Petit-Château: vinha de visitar Teresa,
com quem a aia se encontrava ainda. Como não sabia o que
lhe havia de dizer, propus-lhe um beijo, que, na inocência do
seu coração, ela não recusou, visto naquela própria manhã ter
recebido um, por ordem da avó, que se achava presente. No dia
seguinte, ao ler o Emtlio à cabeceira da senhora Marechala,
topei precisamente com o passo em que, com razão, censuro
o que havia feito na véspera. A senhora Marechala achou a
reflexão justíssima, e disse-me a propósito qualquer coisa muito
razoável, que me fez corar. Como maldisse da minha inacre­
ditável inépcia, que frequentemente me fez parecer vil e culpado,
quando apenas me sentia idiota e confuso! Inépcia que até
tomam por uma falsa escusa num homem que sabem não ser

516
desprovido de espírito. Posso jurar que neste tão repreensível
beijo,bem como nos seguintes,o coração e os sentidos de Made­
moiselle Amélia não eram mais puros do que os meus,e posso
jurar ainda que se,em tal momento,pudesse evitar encontrá-la,
tê-lo-ia feito; não porque não tivesse grande prazer em vê-la,
mas devido à dificuldade em achar qualquer palavra gentil para
lhe dizer ao passar por ela. Como é que uma criança em pessoa
intimida um homem a quem não atemorizou o poder dos reis?
Que partido tomar? Como me conduzir,inteiramente destituído
de espírito improvisador? Se me esforço por falar às pessoas
que encontro,digo infalivelmente uma grassaria; se nada digo,
sou um misantropo, um animal selvagem, um urso. Ser-me-ia
muito favorável uma total imbecilidade: os talentos que me
faltaram na sociedade fizeram porém dos talentos que achava
em mim mesmo os instrumentos da minha perda.
Ao cabo desta segunda viagem, Madame de Luxemburgo
praticou uma boa acção,para a qual contribui em parte. Como
Diderot houvesse ofendido imprudentlssimamente a senhora
princesa de Robeck,filha de Monsieur de Luxemburgo,Palissot,
seu protegido,vingou-a com a comédia Os filósofos, na qual me
metia a ridículo, e maltratava grandemente Diderot. O autor
poupou-me mais, não tanto, penso eu, por se achar obrigado
para comigo,como por temer desagradar ao pai da sua protec­
tora,que sabia gostar de mim. O livreiro Duchesne,que eu então
não conhecia, enviou-me a peça quando esta se achou impressa,
e suponho que o fez por ordem de Palissot, porque talvez este
julgasse que eu veria com prazer denegrir um homem com o qual
havia cortado relações. Enganou-se deveras. Ao cortar com Dide­
rot,o qual considerava não tanto mau como indiscreto e fraco,
conservei sempre uma afeição de alma por ele, e até estima,
assim corno respeito pela nossa antiga amizade,que sei ter sido
durante bastante tempo tão sincera da sua parte como da minha.
O caso é inteiramente diferente com Grimm,homem de carácter
falso,que nunca me amou,que nem sequer é capaz de amar,e
que,espontâneamente,sem nenhuma razão de queixa,mas ape­
nas para contentar o seu atroz ciúme,se transformou,salvando
as aparências,no meu mais cruel caluniador. Este já nada é para
mim: o outro será sempre um antigo amigo. O meu intimo
revoltou-se ao ver a odiosa peça; não pude suportar a sua
leitura,e,sem a acabar, reenviei-a a Duchesne,com a seguinte
carta:

517
Montmorency, 21 de Maio de 1760

Senhor, percorrendo a peça que me haveis enviado, estre­


med por nela me ver elogiado. Não aceito este horrível presente.
Estou convencido de que ao enviar-ma não haveis querido inju­
riar-me; mas ignorais ou haveis-vos esquecido de que tenho
a honra de ser amigo de um homem respeitável, indignamente
denegrido e caluniado neste libelo.

Duchesne exibiu a carta. Diderot, a quem ela deveria


comover, ficou desorãentado. O seu amor-próprio não me pôde
perdoar a superioridade de um procedimento generoso, e eu
vim a saber que a mulher por toda a parte barafustava contra
mim, com uma acrimónia que pouco me afligia, visto saber que
toda a gente a conhecia como uma regateira.
Por sua vez, Diderot encontrou quem o vingasse ntl. pessoa
do abade Morellet, que publicou contra Palissot um pequeno
escrito, imitado qo Protetazinho, e o qual intitulou A visão.
Nele ofendia imprudentissimamente IMadame de Robeck, e os
amigos desta meteram-no na Bastilha; quanto a Madame de
Robeck, naturalmente pouco vindicativa, e nessa altura agoni­
zante, estou convencido de que se não meteu nisso.
D'Alembert, que era muito intimo do abade Morellet, escre­
veu-me para me levar a pedir a IMadame de Luxemburgo que
solicitasse a sua libertação, prometendo-lhe, como gratidão,
fazer-lhe o seu elogio na Enciclopédia 1•

Eis a minha resposta:

Senhor, não esperei a vossa carta para mostrar a Madame


de Luxemburgo quanto me penalizava a deternção do abade
Morellet. Sabe ela o interesse que tenho por ele, saberá que
também vós vos interessais, e, para que ela própria se interesse
pelo caso, bastaria saber que se trata de um homem de mérito.
De resto, embora ela e o senhor Marechal me honrem com uma
benevolência que é a consolação da minha vida, e embora o
nome do vosso amigo seja junto deles uma recomendação para
o abade Morellet, ignoro até que ponto lhes convém empregar
nesta ocasião o crédito inerente à sua posição e à consideração

1 Esta carta, assim corr.o várias outras, desapareceu do palácio


Luxemburgo, na altura em que os meus papéis ai se achavam deposi­
tados.- Nota de J.-J. Rousseau.

518
devida às suas pessoas. Não estou sequer persuadido de que a
vingança em questão concerna a senhora princesa de Robeck
tanto quanto vos parece, e ainda que assim tosse, não devemos
esperar que o prazer da vingança pertença exclusivamente aos
filósofos, nem que quando estes quiserem ser mulheres, estas
serão filósofos.
Comunicar-vos-ei o que Madame de Luxemburgo me disser
quando lhe mostrar a vossa carta. Entretanto, julgo conhecê-la
suficientemente para de antemão vos poder afirmar que, ainda
que tivesse prazer em contribuir para a libertação do abade
Morellet, não aceitaria o tributo de gratidão que lhe prometeis
na Enciclopédia, embora se sentisse honrada com ele, porquanto
Madame de Luxemburgo não pratica o bem para ser louvada,
mas sim para contentar o seu bom coração.

A nada me poupei par.a excitar o zelo e a comiseração de


Madame de Luxemburgo a favor do pobre cativo, e fui bem
sucedido. Fez ela uma viagem a Versalhes, expressamente para
ver o senhor conde de Saint-Florentin, e tal viagem abreviou a
de Montmorency, que o senhor Marechal foi obrigado a abando­
nar ao mesmo tempo, para se transferir a Ruão, onde o Rei
o mandava como Governàdor da Normandia, a propósito de
alguns movimentos do Parlamento que era necessário refrear.
Eis a carta que Madame de Luxemburgo me escreveu, dois
dias depois de partir:

Versalhes, quarta-feira
(Maço D, n.o 23.)

Monsieur de Luxemburgo partiu ontem às seis horas da


manhã. Não sei se partirei também. Espero notícias suas, porque
. ele próprio não sabe quanto tempo ali permanecerá. Vi Monsieur
de Saint-Florentin, que está na melhor disposição a respeito do
abade Morellet; há porém obstáculos de que espera triunfar
na sua primeira conferência com o Rei, que terá lugar na pró­
xima semana. Pedi também que lhe fizessem a graça de o não
exilarem, pois que se talava nisso; queriam .mandá-lo para
Nancy. Aqui está, senhor, o que pude obter; prometo-vos no
entanto que não deixarei Monsieur de Saint-Florentin descan­
sar enquanto a questão não estiver resolvida consoante o vosso
desejo. Quero dizer-vos agora quanto me penalizou abandonar­
-vos tão cedo; lisonjeia-me no entanto saber que não duvidais
de tal. Amo-vos de todo o coração e para toda a vida.

519
Alguns dias depois recebi este bilhete de D'Alembert, o
qual me causou verdadeira alegria.

1." de Agosto
(Maço D, n.o 26.)

Graças aos vossos cuidados, meu caro filósofo, o abade saiu


da Bastilha, e a sua detenção não terá outras consequências.
Parte ele para o campo, e envia-vos, assim como eu, mil agra­
decimentos e saudações. Vale et me ama.

Também o abade me escreveu, alguns dias depois, uma


carta de agradecimentos (Maço D, n.o 29),que não me parecia
respirar uma certa efusão do coração, e na qual se me afigu­
rava que atenuava de certo modo o serviço que eu lhe prestara,
e, pouco tempo depois, verifiquei que ele e D'Alembert me
haviam de certo modo não digo suplantado,mas sucedido junto
de Madame de Luxemburgo, e que eu havia perdido no seu
espírito tanto quanto eles haviam ganho. Estou no entanto
muito longe de desconfiar que o abade Morellet haja contri­
buído para o meu desvalimento; prezo-o de mais para isso.
Quanto a Monsieur d'Alembert, nada digo aqui: falarei do
caso mais tarde.
Tive na mesma altura uma outra questão, a qual motivou
a última carta que escrevi a Monsieur de Voltaire: carta de
que este se queixou amargamente, como se fora um insulto
abominável, mas que não mostrou a ninguém. Suprirei aqui
àquilo que ele não quis fazer.
O abade Trublet,que conhecia vagamente,mas que poucas
vezes vira,escreveu-me a 13 de Junho de 1760 (Maço D,n.o 11),
para me prevenir de que o seu amigo e correspondente, Mon­
sieur Formey, tinha estampado no seu jornal a minha carta
a Monsieur de Voltaire a respeito do desastre de Lisboa. O abade
Trublet queria saber como se havia podido fazer a impressão,
e, com o seu feitio de espírito astuto e jesuítico, pedia-me a
minha opinião a respeito da reimpressão desta carta,sem .que­
rer comunicar-me a sua. Como detesto solenemente os matrei­
ros desta espécie,agradeci-lhe como devia,mas fi-lo num tom
duro, que ele percebeu, o que não o impediu de me engranzar
ainda em duas ou três cartas,até que soube tudo o que queria
saber.
Dissesse Trublet o que dissesse, percebi perfeitamente que
Formey não havia encontrado a carta !Jnpressa, e que a pri-

520
meira impressão desta provinha dele. Sabia-o um desavergo­
nhado plagiário, que, sem rebuço, tir,ava proventos das obras
dos outros, embora não tivesse levado ainda a sua inacreditá­
vel impudência até ao ponto de suprimir de um livro já publi­
cado o nome do autor,subsistindo-o pelo seu,e vendendo-o em
seu proveito 1• Como lhe havia porém este manuscrito chegado
às mãos? Era esta a questão,a qual não era difícil de resolver,
mas que na minha simplicidade me embaraçou. Embora essa
carta fosse excessivamente honrosa para Voltaire,como enfim,
apesar dos seus desonestos processos, ele teria razão de queixa
se eu a mandasse imprimir sem o seu consentimento, tomei a
decisão de lhe escrever a este respeito. Eis aqui essa segunda
carta, à qual não deu resposta, e sobre a qual, para melhor
dar largas à sua brutalidade,fingiu estar furiosamente irritado:

Montmorency, 17 de Junho de 1760

Não pensava, Senhor, que viria a reatar correspondência


convosco. Sabendo, contudo, que a carta que vos escrevi em
1786 foi impressa em Berlim, devo prestar-vos contas da minha
conduta a este respeito, e cumprirei tal dever com verdade e
simplicidade.
Esta carta, tendo-vos sido realmente dirigida, não era des­
tinada a ser impressa. Comuniquei-a, sob condição, a três pes­
soas às quais os direitos de amizade não me permitiam recusar
semelhante coisa, e às quais os mesmos direitos ainda menos
permitiam que abusassem do que eu lhes havia confiado, vio­
lando a sua promessa. Essas três pessoas são: Madame de Che­
nonceaux, nora de Madame Dupin, a senhora condessa d'Hou­
detot, e um alemão, chamado Monsieur Grimm. Madame de
Chenonceaux desejava que a carta tosse estampada, para o que
me pediu o meu consentimento. Respondi-lhe que este dependia
do vosso. Pediram-va-lo, vós recusaste-lo, e não se falou mais
no caso.
No entanto, o senhor abade Trublet, com quem não tenho
espécie alguma de relações, acaba de me escrever, graças a uma
atenção cheia de probidade, comunicando-me que, havendo rece­
bido as folhas dum jornal de Monsieur Formey, nelas tinha
lido essa mesma carta, com uma advertência do editor, datada

1 Foi desta maneira que, posteriormente, se apropriou do Emílio


- Nota de J.-J. Rousseau.

521
de 23 de Outubro de 1759, na qual este diz havé·-la encontrado,
há algumas semanas, nos livreiros de Berlim, e que, visto tra­
tar-se de uma destas folhas volantes que em breve desapare­
cem para sempre, julgou dever dar-lhe um lugar no seu jornal.
· Eis, Senhor, tudo o que sei a este respeito. É mais que certo
que até ·esta data nem sequer se tinha ouvido falar desta carta
em Paris. É mais que certo que o exemplar, quer manuscrito,
quer impresso, que caiu nas mãos de Monsieur Formey, só de
vós poderia ter vindo, o que não é verosímil, ou então de uma
das três pessoas que acabo de mencionar. É mais que certo,
enfim, que as duas damas são incapazes de semelhante infi­
delidade. No meu retiro, nada mais posso saber. Vós mantendes
correspondências várias por meio das quais vos seria fácil, se
a coisa valesse a pena, remontar à origem e verificar o jacto.
O senhor abade Trublet assinala-me, na mesma carta, que
guardou a folha, e só a emprestará com o meu consentimento,
que eu certamente não darei. Contudo, pode ser que não seja
este o único exemplar que existe em Paris. Desejo, Senhor, que
esta carta não seja impressa ali, e tarei o que puder para isso;
no entanto, se não pudesse evitar tal coisa, e fosse avisado a
tempo para poder ter a preferência, então não hesitaria em
mandá-la eu próprio imprimir, o que me parece justo e natural.
Quanto à vossa resposta à dita carta, não foi comunicada
a ninguém, e podeis ter a certeza de que não será dada à
estampa sem o vosso consentimento, que indubitàvelmente não
cometerei a indiscrição de vos pedir, pois que sei bem que o
que um homem escreve a outro não o escreveu para o público.
Contudo, se quiserdes escrever uma para ser publicada, diri­
gindo-ma, prometo-vos juntá-la fielmente à minha carta, sem
lhe replicar uma só palavra.
Não vos amo, Senhor; fizeste-me, a mim, vosso discípulo
e vosso entusiasta, os males que mais sensíveis me poderiam
ser. Perdestes Genebra em paga do asilo que ali haveis recebido;
alienastes de mim os meus concidadãos em paga dos aplausos
que vos prodigalizei entre eles: sois vós que me tornais insu­
portável a permanência na minha terra; sois vós que me fareis
morrer em terra estrangeira, privado de todas as consolações
dos moribundos, e, como única honra, atirado para o monturo,
ao passo que todas as honras que um homem pode esperar vos
acompanharão na minha pátria. Odeio-vos, enfim, porque assim
o quisestes; mas odeio-vos como homem ainda mais digno de
vos amar, se o tivésseis querido. De todos os sentimentos de que
o meu coração se achava penetrado a vosso respeito, só resta

522
nele a admiração que se não pode recusar ao vosso tormo&o
génio, e o amor pelos vossos escritos. Se em vós só posso honrar
os vossos talentos, a culpa não é minha. Nunca faltarei ao res­
peito que lhes é devido, n�m aos processos que tal respeito exige.
Adeus, Senhor.

No meio de todas estas intrigazinhas literárias, que cada


vez me confirmavam mais na minha resolução, recebi a maior
honra que as letras me v,aleram, e a que mais sensível fui, com
a visita que o senhor príncipe de Conti se dignou fazer-me por
duas vezes, uma ao Petit-Château, outra a Saint-Louis. Escolheu
mesmo das duas vezes a ocasião em que !Madame de Luxem­
burgo se não achava em 1Montmorency, para tornar mais
evidente que não vinha senão por mim. Nunca duvidei que
devesse as primeiras bondades do príncipe a !M.adame de Luxem­
burgo e a Madame de Boufflers; mas também não duvido que
deva aos seus próprios sentimentos e a mim mesmo as que
. desde então não deixou de honrosamente me conceder 1•
1Como o meu aposento de iMont-Louis era pequeníssimo,
e como a situação do torreão era encantadora, levei lá o príncipe
que, para cúmulo de favor, quis que eu tivesse a honra de jogar
com ele o xadrez. Sabia que ele batia o cavaleiro de Lorenzy,
que era mais forte que eu. No entanto, apesar dos sinais e das
caretas do cavaleiro e dos assistentes, que fingi não ver, ganhei
as duas partidas que jogámos. Ao terminarmos, disse-lhe num
tom respeitoso, mas grave: Senhor, prezo de mais Vossa Alteza
Sereníssima para lhe não ganhar sempre ao xadrez. Este grande
príncipe, cheio de espírito e de luzes, e tão digno de não ser
adulado, percebeu, com efeito, ao menos eu assim o penso, que
ali só eu o tratava como homem, e tenho todas as razões para
crer que verdadeiramente me ficou agradecido.
Ainda que o não tivesse ficado, não me censuraria por
não haver querido enganá-lo em coisa nenhuma, e também
não tenho certamente de que me censurar por haver corres­
pondido mal em meu coração às suas bondades, mas sim de
lhes haver correspondido por vezes de má vontade, quando ele
mesmo punha um garbo infinito na maneira de mas teste­
munhar. Poucos dias depois, mandou-me um cesto de caça,
que eu recebi como devia. Algum tempo depois, mandou-me

1 Notai a persistência nesta cega e estúpida confiança, no meio de


todos os tratamentos que dela mais me deviam desiludir. Só cessou depois
do meu regresso a Paris, em 1770.
- Nota de J.-J. Rousseau.

523
outro, e um dos seus oficiais da caça escreveu a seu mandado
que era caça de Sua Altez.a, e morta por sua própria mão. Rece­
bi-a ainda; mas escrevi a Madame de Boufflers, dizendo-lhe
que não aceitaria mais. Esta carta foi em geral censurada, e
merecia-o. Recusar presentes de caça a um príncipe de sangue,
que além disso põe tanta cortesia na remessa, é menos uma
delicadeza de homem altivo que quer conservar a sua indepen­
dência, do que uma grassaria de malcriado que não se conhece.
Nunca reli na minha compilação esta carta sem corar dela e
sem me exprobrar havê-la escrito. Mas, enfim, eu não empreendi
as minhas confissões para omitir as minhas tolices, e aquela
revolta-me a mim mesmo por de mais, para que me seja per­
mitido dissimulá-la.
Se não cometi a de me tornar seu rival, pouco faltou:
porque nessa altura Madame de Boufflers era ainda sua amante.
e eu nada sabia. Vinha esta visitar-me frequentemente com o
cavaleiro de Lorenzy. Era ainda formosa e nova; contrafazia
o espírito romano, e, por mim, o meu foi sempre romanesco;
as coisas tocav·am-se. Estive a pontos de me apaixonar; creio
que ela o percebeu: o cavaleiro percebeu-o igualmente; pelo
menos, falou-me nisso, e de maneira a não me desanimar. Mas
desta teita fui prudente, e era bem tempo de o ser, aos cin­
quenta anos. Penetl'ado da lição que.na minha Carta a d'Alern­
bert acabava de dar aos velhos tontos, tive vergonha de eu
próprio a aproveitar tão mal; aliás, vindo ao conhecimento do
que ignorava, era preciso ter perdido o juízo para dirigir tão
alto a minha concorrência. Enfim, mal refeito ainda da minha
paixão por Madame d'Houdetot, compreendi que já não havia
nada que a pudesse substituir no meu coração, e fiz as minhas
despedidas ao amor para o resto da minha vida. No momento
que isto escrevo, ac·abo de receber de uma mulher nova, que
tinha as suas intenções, provocações bem perigosas, com olhares
bem inquietantes; todavia, se ela fingiu esquecer os meus doze
lustros, eu por mim, lembrei-me deles. Depois de haver saído
deste passo, já não receio as quedas, e respondo por mim para
o resto dos meus dias.
Tendo percebido a emoção que havia despertado em mim,
Madame de Bçmfflers pôde também perceber que eu havia
dela triunfado. Não sou nem suficientemente tolo nem sufi­
cientemente pretensioso para julgar haver podido inspirar-lhe
qualquer preferência na minha idade; contudo, a julg·ar por
algumas conversas que ela teve com Teresa, julguei haver-lhe
inspirado curiosidade; se assim é, e se ela me não perdoasse

5:14
esta curiosidade frustrada, deve-se reconhecer que eu em ver­
dade havia nascido para ser vítima das minhas fraquezas, visto
que o amor vencedor me foi tão funesto, e o amor vencido
ainda mo foi mais.
Termina ·aqui a compilação das cartas que me serviram
de guia nestes dois livros. Daqui por diante só sobre os vestígios
das minhas recordações caminharei; nesta época cruel elas
são no entanto tais, e a sua forte impressão gravou-se em mim
de tal maneira, que, perdido no mar imenso das minhas des­
ditas, não pude esquecer os pormenores do meu primeiro nau­
frágio, se bem que as suas consequências apenas me ofereçam
recordações confusas. [)esta maneira, posso ainda, no livro
seguinte, caminhar com bastante confiança. Se avanço mais,
será apenas palpando o terreno.

525
LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO

MBORA
E
Júlia, há muito tempo no prelo, não tivesse ainda
aparecido em fins de 1760, começava já a dar grande
brado. Madame de Luxemburgo havi·a falado dela na
corte, Madame d'Houdetot em Paris. Por intermédio de Saint­
-Lambert, esta última tinha obtido de mim autorização para
dar a ler o manuscrito ao Rei da Polónia, que ficara encantado
com a obra. !Duelos, a quem eu também a havia dado a ler,
tinha dela falado à Academia. Paris inteiro estava impaciente
por ver o romance: os livreiros da rua de Saint-Jacques e o do
Falais-Royal eram assediados por pessoas que pediam notícias.
A obra por fim apareceu, e, contra o costume, o seu êxito corres­
pondeu ao entusiasmo com que era esperada. A Senhora Delfina,
que tinha sido das primeiras pessoas a lê-la, falou do romance
a Monsieur de Luxemburgo, como sendo uma obra sedutora.
Entre os homens de letras, os sentimentos acharam-se divididos:
na sociedade, porém, houve apenas uma opinião, e as mulheres
sobretudo apaixonar·am-se tanto pelo livro como pelo autor, a
ponto de nas altas esferas poucas haver cuja conquista eu não
conseguisse, se a tivesse empreendido. Tenho disso provas que
não quero relatar, e as quais, sem terem necessitado .a expe­
riência, autorizam a minha opinião. É singular ter o livro alcan­
çado maior triunfo em França do que no resto da Europa,
embora os franceses, homens e mulheres, não sejam nele muito
bem tratados. Muito ao contrário do que esperava, o seu mais
fraco êxito foi na Suiça, e o mais forte em Paris. Reinam
pois a amizade, o amor, a virtude mais em Paris do que em
qualquer outra parte? Não, sem dúvida; mas reina ali ainda
aquele sentido delicado que transporta o coração à sua imagem,
e que nos faz amar nos outros os sentimentos puros, ternos,
honestos, que nós já não temos. Hoje em dia a corrupção é
por toda a parte a mesma: já não existem nem costumes, nem
virtudes na Europa, mas se ainda existe por estas algum amor,
é em Paris que ele se deve procurar.

527
Através de tantos prejuízos e paixões facticias, mister se
torna saber analisar devidamente o coração humano para nele
destrinçar os verdadeiros sentimentos da natureza. É mister
uma grande delicadeza de tacto, que só se adquire na educação
da alta sociedade, para sentir, se assim ouso dizer, as subti­
lezas de coração de que esta obra se acha repleta. Ponho sem
receio a quarta parte ao lado da Princesa de eleves 1, e afirmo
que se estes dois trechos só na província fossem lidos, nunca
todo o seu valor teria sido devidamente apreciado. Não é por­
tanto de estranhar que o maior êxito da obra tenha sido
alcançado na corte. Abundam nela os traços vivos, mas velados,
que ali devem agradar, visto que estão mais acostumados a
descortiná-los. Há no entanto ainda aqui que distinguir. A sua
leitura não é decerto própria para aquela espécie de pessoas
de espírito que só manha têm, que só para apreender o mal
são espertos, e que absolutamente nada vêem onde só bem há
a ver. Se, por exemplo, Júlia tivesse aparecido em certo pais
que eu cá sei, tenho a certeza de que ninguém a acabaria de
ler, e que a obra teria morrido à nascença.
Juntei num maço que se encontra na posse de Madame de
Nadaillac a maioria das cartas que me foram escritas a propó­
sito dela. Se esta colectânea aparecer alguma vez, ver-se-ão
coisas bem singulares, assim como uma oposição de critérios
que mostra o que é termos que nos haver com o público. O que
em Júlia menos se viu, e o que dela fará sempre uma obra única,
é a simplicidade do tema e o encadeamento do interesse que,
concentrado em três pessoas, se mantém durante seis volumes,
sem episódios, sem aventuras romanescas, sem maldade de
espécie nenhuma, nem nos personagens, nem nas acções. Dide­
rot teceu grandes elogios a Richardson 2 a respeito da prodi­
giosa variedade dos seus quadros e sobre a multidão dos seus
personagens. Com efeito, Richardson possui o mérito de os
haver caracterizado bem a todos: mas, quanto ao seu número,
tem de comum com os mais insípidos romancistas o suprir à
esterilidade das ideias com uma abundância de personagens e
de aventuras. É fácil excitar a atenção, apresentando constan­
temente ora acontecimentos inauditos ora fisionomias novas,
que passam como figuras de lanterna mágica: mas manter

1 Romance de Madame de La Fayette. - N. do T.


2 Romancista inglês do século XVIII, autor de Clarisse Harlowe,
Pamela e outras obras, que se consideram como fundando o romance
inglês moderno.- N. do T.

528
sempre essa atenção sobre os mesmos objectos, sem aventuras
maravilhosas, isso é que é certamente mais difícil; e se, em
igualdade de circunstâncias, a simplicidade do tema aumenta
a beleza da obra, os romances de Richardson, superiores em
tantos outros aspectos, não poderão, neste artigo, entrar em
paralelo com o meu. No entanto, está morto, bem o sei, sabendo
também porquê; mas ressuscitará.
Todo o meu receio era que, à força de simplicidade, a minha
acção se tornasse aborrecida, e eu não pudesse alimentar sufi­
cientemente o interesse para o aguentar até ao fim. Tranquili­
zou-me um facto que, só por si, me lisonjeou mais do que todos
os cumprimentos que a obra me pôde valer.
Esta apareceu no começo do Carnaval. O vendedor levou-a
à senhora princesa de Talmont 1, num dia em que havia baile
na ópera. Depois da ceia, foi-se ela vestir para ir ao baile, e,
enquanto esperava que fossem horas, entreteve-se a ler o novo
romance. A meia-noite, mandou atrelar os cavalos, e continuou
a ler. Vieram dizer-lhe que os cavalos estavam atrelados; nada
respondeu. Como visse que ela se esquecia, o seu pessoal veio
adverti-la de que eram duas horas. Não há que ter pressa ainda,
respondeu ela, continuando a ler. Pouco depois, como o relógio
lhe tivesse parado, tocou para saber que horas eram. Disse­
ram-lhe que eram quatro horas. Como assim, respondeu ela,
já é muito tarde para ir ao baile; desatrelem os cavalos. Des­
piu-se, e passou o resto da noite a ler.
Desde que me contaram o episódio, desejei sempre ver
Madame de Talmont, não só para saber dela própria se ele
era exacto e verdadeiro, como porque julguei sempre que nin­
guém se poderia interessar tão vivamente por Heloísa sem
possuir aquele sexto sentido, aquele sentido moral, de que tão
poucos corações são dotados, e sem o qual ninguém poderia
compreender o meu.
O que me tornou as mulheres tão favoráveis foi a per­
suasão em que estavam de que eu havia escrito a minha própria
história, e que eu mesmo era o herói do romance. Era uma
crença tão arraigada nelas, que Madame de Polignac escreveu
a Madame de Verdelin para lhe pedir que me levasse a deixar­
-lhe ver o retrato de Júlia. Toda a gente estava convencida de
que não se podiam exprimir tão ao vivo sentimentos que se não
haviam experimentado, nem pintar desta maneira os arrou-

1 Não foi a esta, mas 'sim a outra dama cujo nome ignoro. - Nota
de J.-J. Rousseau.

34
529
bos do amor, sem ser através do próprio coração. Nisso tinham
razão, e o certo é que eu escrevera o romance nos mais ardentes
êxtases; mas enganavam-se quando pensavam que haviam sido
necessários objectos reais para os despertar; estavam longe
de imaginar a que ponto eu sou capaz de me inflamar por
seres imaginários. Sem algumas reminiscências da mocidade
e Madame d'Houdetot, os amores que senti e descrevi só teriam
sido com silfides. Não quis nem confirmar nem destruir um
erro que me era vantajoso. No prefácio dialogado, que imprimi
à parte, pode-se ver como a este respeito deixei o público em
suspenso. Os rigoristas dizem que eu devia declarar a verdade
pronta e francamente. Por mim, não vejo o que poderia obri­
gar-me a fazê-lo, e creio que tal declaração feita sem neces­
sidade teria sido mais tola do que franca.
Pouco mais ou menos pela mesma altura apareceu A Paz
perpétua, cujo manuscrito eu havia cedido no ano anterior a
um tal Monsieur Bastide, autor de um jornal chamado O mundo,
no qual queria, de qualquer maneira, encaixar todos os meus
manuscritos. Era conhecido de Monsieur Duelos, e veio em seu
nome instar comigo para que o ajudasse a encher O mundo.
Tinha ouvido falar de Júlia, e queria que eu a publicasse no seu
jornal; queria que publicasse o Emilio; teria querido que lá
publicasse O contrato social, se tivesse suspeitado da sua exis­
tência. Enfim, fatigadfssimo das suas importunidades, tomei o
partido de lhe ceder por doze lufses o meu Extracto da paz
perpétua. Tínhamos acordado em que ele se imprimiria no seu
jornal, mas, logo que se achou de posse do manuscrito, julgou
apropositado mandá-lo imprimir à parte, com alguns cortes
exigidos pelo censor. Que teria sido, se eu lhe houvesse jun­
tado o meu parecer sobre a obra, do qual, felizmente, não falei
a Monsieur Bastide, e que não entrou no nosso negócio? Este
parecer acha-se ainda em manuscrito entre os meus papéis.
Se alguma vez vier à luz, ver-se-á como os gracejos e o tom
suficiente de Monsieur de Voltaire a este propósito me deviam
ter feito rir, a mim que tão bem via a força do pobre homem
nas matérias politicas em que se intrometia.
No meio dos meus triunfos públicos, e do favor das damas.
sentia crescer o meu desvalimento no palácio Luxemburgo, não
junto do senhor !Marechal, que cada dia parecia mesmo redo­
brar de bondades e de amizades para comigo, mas junto da
senhora Marechala. Desde que não tinha nada para lhe ler,
os seus aposentos abriam-se-me menos, e durante as suas via­
gens a Montmorency já não a via senão à mesa, embora eu

530
me apresentasse com bastante pontualidade. O meu lugar nem
sequer se achava já marcado ao lado do seu. Como já mo não
oferecia, como me falava pouco, e eu também já não tinha
muito que lhe dizer, preferia tomar outro lugar, onde me achava
mais à vontade, mormente à noite, porque eu a pouco e pouco
ganhava maquinalmente o hábito de me instalar mais perto
do senhor !Marechal.
A propósito de noite, recordo-me haver dito que não ceava
no castelo, o que era verdadeiro no começo das nossas relações ;
contudo, como Monsieur de Luxemburgo não jantava, e nem
sequer se sentava à mesa, sucedeu que ao fim de alguns meses,
já muito familiar da casa, ainda não havia vez nenhuma comido
na sua companhia. Teve ele a amabilidade de o notar, o que me
resolveu a cear lá uma vez por outra, quando havia pouca gente,
o que me agradou muito, visto que se jantava quase ao ar livre,
e. como se diz, de rabo alçado: ao passo que a ceia demorava
muito, pois que servia de gostoso descanso na volta de um longo
passeio, sendo excelente porque Monsieur de Luxemburgo era
lambareiro, e agradabilissima porque 1Madame de Luxemburgo
lhe fazia as honras de uma maneira encantadora. Sem esta
explicação, dificilmente se compreenderia o fim de uma carta de
Monsieur de Luxemburgo (Maço C, n.o 36), onde me diz que se
lembra deliciado dos nossos passeios, sobretudo, acrescenta ele,
quando ao entrar à noite no pátio não encontrávamos vestígio
do rodar dos coches ; é que, como todas as manhãs passavam
o ancinho pelo saibro do pátio para lhe apagar os trilhos dos
carros, eu, pelo número dos rastos, conjecturava da gente que
tinha vindo durante a tarde.
O ano de 1761 levou ao cúmulo as perdas contínuas que
este bom fidalgo sofreu desde que tinha a honra de o visitar;
como se os males que o destino me preparava devessem come­
çar pelo homem por quem mais afeição tinha e que mais digno
dela era. No primeiro ano, perdeu a irmã, a senhora duquesa
de Villeroy ; no segundo, perdeu a filha, a senhora princesa de
Robeck; no terceiro, perdeu com o duque de Montmorency,
seu filho único, e com o conde de Luxemburgo, seu neto, os
únicos e últimos sustentáculos do seu ramo e do seu nome.
Suportou todas estas perdas com uma coragem aparente; mas,
por dentro, o coração não cessou de lhe sangrar para todo o
resto da vida, e a sua saúde não fez mais que declinar. A morte
imprevista e trágica do filho devia-lhe ser tanto mais sensivel,
quanto sucedia precisamente no momento em que o rei acabava
de lhe conceder para aquele, e de prometer para o neto, a con-

531
tinuação do seu cargo de capitão da guarda-real. Teve a dor
de ver expirar a pouco e pouco este último, rapaz de muitas
esperanças, e isto por cega confiança da mãe no médico, que
fez perecer de inanição a criança, com medicamentos por único
alimento. Ai! se tivessem acreditado em mim, pai e filho esta­
riam ainda os dois vivos. O que não disse eu, o que não escrevi
eu ao senhor Marechal, quantas advertências não fiz eu a
Madame de Montmorency, a respeito do regime mais que aus­
tero que, fiada no médico, ela fazia observar ao filho ! Madame
de Luxemburgo, que pensava como eu, não queria usurpar a
autoridade da mãe ; Monsieur de Luxemburgo, homem brando
e fraco, não gostava de contrariar. Madame de Montmorency
tinha em Bordeu uma fé de que o filho acabou por ser vitima.
Como a pobre criança ficava contente quando podia obter auto­
rização para vir a Mont-Louis com Madame de Boufflers, pedir
de lanchar a Teresa, e meter algum alimento no estômago
esfomeado! Como eu deplorava comigo mesmo as misérias da
grandeza, quando via o herdeiro de tão grandes bens, de tão
grande nome, de tão grandes títulos e digniQ.ades, devorar com
a avidez de um mendigo um miserável bocadito de pão! Enfim,
bem disse e bem fiz eu, o médico triunfou, e a criança morreu
de fome.
A mesma confiança nos charlatães que fez perecer o neto
cavou o túmulo ao avô, e a isso se juntou ainda a pusilanimi­
dade de querer dissimular para consigo mesmo as enfermidades
da idade. Monsieur de Luxemburgo tinha de vez em quando uma
dor no dedo grande do pé; teve um ataque em Montmorency
que lhe provocou insónias e um pouco de febre. Eu ousei pro­
nunciar o nome de gota ; Madame de Luxemburgo repreen­
deu-me. O criado de quarto, cirurgião do senhor Marechal,
afirmou que não era gota, e pôs-se a aplicar na parte dorida
pensos de bálsamo tranquilo. Infelizmente, a dor acalmou, e,
quando voltou, não deixaram de empregar o mesmo remédio
que a tinha acalmado ; a constituição alterou-se, os males
aumentaram, e os remédios na mesma proporção. Madame de
Luxemburgo, que por fim viu tratar-se de gota, opôs-se a este
insensato tratamento. Esconderam-se dela, e Monsieur de
Luxemburgo pere<:eu por culpa sua ao fim de alguns anos, por
ter teimado em curar-se. Mas não nos antecipemos tanto com
as desgraças ; quantas outras tenho a narrar antes desta!
:É singular a fatalidade com que tudo o que eu podia dizer
e fazer parecia feito para desagradar a Madame de Luxem­
burgo, ainda mesmo quando eu mais me esforçava por con-

532
servar a sua afabilidade. As aflições que Monsieur de Luxem­
burgo experimentava umas após outras só faziam ligar-me
mais a ele, e, por conseguinte, a iMadame de Luxemburgo : por­
que eles pareceram-me sempre tão sinceramente unidos, que os
sentimentos que tínhamos por um se estendiam necessària­
mente ao outro. O senhor Marechal envelhecia. A sua assi­
duidade na corte, os cuidados que esta acarretava, as caçadas
contínuas, sobretudo a fadiga quando fazia o seu quartel de
serviço, deveriam exigir o vigor de um mancebo, e eu nada via
que lhe pudesse sustentar o dele nesta carreira. Visto que as
suas dignidades deviam disseminar-se, e o seu nome extin­
guir-se após ele, pouco lhe importava continuar uma vida
laboriosa, cujo principal objecto era proporcionar aos filhos
o favor do príncipe. Um dia achávamo-nos sós os três, e quei­
xando-se ele das fadigas da corte, como homem a quem as
perdas sofridas haviam tirado a coragem, ousei falar-lhe da
reforma, e dar-lhe o conselho que Cíneas dera a Pirro ; suspirou,
e não me respondeu decisivamente. Contudo, na primeira oca­
sião em que me achei em particular com Madame de Luxem­
burgo, esta exprobrou-me vivamente o conselho, que me pareceu
tê-la alarmado. Acrescentou uma coisa, cuja j usteza compreendi,
e que me levou a renunciar para sempre a voltar a tocar. n a
mesma corda: vinha a ser que o hábito de viver na corte se
tornava uma verdadeira necessidade, que neste momento era
mesmo uma distracção para Monsieur de Luxemburgo, e que a
reforma que eu lhe aconselhava seria para ele menos um des­
canso do que um exílio, no qual a ociosidade, o aborrecimento,
a tristeza acabariam em breve por consumi-lo. Embora devesse
ter visto que me havia convencido, embora devesse fiar-se n a
promessa que lhe fiz e que cumpri, nunca me pareceu absolu­
tamente tranquila a este respeito, e eu lembro-me que desde
então as minhas práticas com o senhor Marechal foram mais
raras e quase sempre interrompidas.
Enquanto a minha estupidez e o meu azar de concerto me
prejudicavam assim junto dela, as pessoas que ela via e mais
amava não me prestavam auxilio. O abade de Boufflers, sobre­
tudo, moço tão brilhante quanto era possível sê-lo, nunca m e
pareceu bem disposto a meu respeito, e é não só o único da
sociedade da senhora Mar.echala que nunca me dispensou a
menor atenção, como pareceu notar que em todas as viagens
que fez a Montmorency eu perdia sempre qualquer coisa junto
dela, e o certo é que, sem ele mesmo o querer, bastava para
isso a sua presença: de tal maneira a graça e o sal das suas

533
gentilezas tornavam ainda mais pesados os meus spropositi 1•
Durante os dois primeiros anos quase não veio a Montmorency,
e, graças à indulgência da senhora rM:arechala, eu tinha-me
r.azoàvelmente aguentado: logo porém que ele apareceu com
mais assiduidade, achei-me aniquilado sem remissão. Quereria
refugiar-me sob a sua protecção, e fazer com que ele me ga­
nhasse amizade ; contudo, a mesma falta de graça que me levava
à necessidade de lhe agradar me impediu de o conseguir, e o que
desastradamente fiz para tal acabou de me perder j unto da
senhora !Marechala, sem me ser útil j unto dele. Com tanto
espírito, poderia ter triunfado em tudo: todavia, a impossibili­
dade de se aplicar e o gosto de folgar só lhe permitiram adquirir
um conh�cimento imperfeito de todas as coisas. Em compensa­
ção, tem muitos talentos, e isso é tudo quanto é preciso na alta
sociedade onde quer brilhar. Faz muito bem uns versinhos,
escreve muito bem umas cartinhas, vai arranhando um bocado
de sistro e borrando um bocado de pintura a pastel. Lembrou­
-se ele de fazer o retrato de Madame de Luxemburgo: era hor­
rível. Ela pretendia que não estava nada parecida, o que era
verdade. O pérfido do abade consultou-me, e eu, como um
idiota e como um mentiroso, disse-lhe que o retrato estava
parecido. Queria lisonjear o abade ; mas não era lisonjeiro para
Madame de Luxemburgo, que relatou este episódio nos seus
cadernos, e o abade, tendo pregado a sua partida, troçou de
mim. Graças ao êxito desta minha serôdia tentativa, aprendi
a nunca mais me lembrar de querer lisonjear e adular a des­
peito de Minerva.
o meu talento era dizer aos homens verdades úteis, mas
duras, com bastante energia e coragem ; devia ficar-me por aqui.
Não havia nascido, não digo para adular, mas para louvar.
A inépcia dos louvores que quis dispensar fez-me mais mal do
que a rudeza das minhas censuras. Disso tenho um exemplo
tão terrível a citar aqui, que as suas consequências determi­
naram não só o meu destino para o resto da minha vida, como
decidiram porventura da minha reputação para toda a poste­
ridade.
Durante as visitas a Montmorency, Monsieur de Choiseul
vinha algumas vezes cear ao castelo. Veio aqui um dia em que
eu ia a sair. Falou-se de mim. Monsieur de Luxemburgo con­
tou-lhe a minha história de Veneza com Monsieur de Montaigu.
Monsieur de Choiseul disse que era pena ter eu abandonado

1 Despropósitos.

534
esta carreira, e que se quisesse reentrar nela, ele muito esti­
maria ocupar-me. Monsieur de Luxemburgo contou-me isto;
fiquei tanto mais sensibilizado quanto era certo não estar
acostumado a ser acarinhado pelos ministros, e, apesar das
minhas determinações, não é certo que se a minha saúde me
permitisse pensar em tal, eu evitasse cometer de novo a mesma
loucura. A ambição nunca pôde em mim mais que os breves
intervalos em que qualquer outra paixão me deixava livre,
mas um destes intervalos teria bastado para me tornar a com­
prometer. Esta boa intenção de IMonsieur de Choiseul, afeiçoan­
do-me à sua pessoa, aumentou a estima que, graças a algumas
operações do seu ministério, eu havia concebido pelos seus
talentos, e o Pacto de família, em particular, parecia-me anun:..
ciar um homem de estado de primeir,a ordem. Ganhava ainda
no meu espírito pelo pouco caso que eu fazia dos seus prede­
cessores, sem exceptuar Madame de Pompadour, que conside­
rava como uma espécie de primeiro-ministro, e quando correu
o boato de que, ou ela ou ele, um dos dois expulsaria o outro, jul­
guei fazer votos pel a glória da França, fazendo-os para que
Monsieur de Choiseul triunfasse. Sempre sentira antipatia por
Madame de Pompadour, mesmo quando, antes da sua fortuna,
eu a vira em casa de Madame de la Popliniêre, usando ainda o
nome de Madame d'Étioles. Desde então tinha ficado descon­
tente com ela por causa do seu silêncio a respeito de Diderot,
P de todo o seu procedimento para comigo, tanto a respeito das
Festas de Ramiro e das Musas galantes, como a respeito do
Bruxo da aldeia, que nunca me valera vantagens de qualquer
sorte proporcionais aos seus triunfos, e, em todas as circuns­
tâncias, tinha-a sempre visto muito pouco disposta a obse­
quiar-me, o que não impediu que o cavaleiro de Lorenzy me
propusesse fazer algo em honra desta dama, dando-me a enten­
der que tal coisa me poderia ser útil. Semelhante proposta
indignou-me, tanto mais percebendo perfeitamente que ele o
não fazia por sua iniciativa, pois sabia que este homem, nulo
por si mesmo, não pensa e não age senão movido por outrem.
Sei muito mal constranger-me para poder ter-lhe escondi do a
ele o meu desprezo pela sua proposta, nem a ninguém a minha
pouca inclinação pela favorita; ela sabia-o, estou certo, e tudo
isto misturava o meu interesse próprio à minha inclinação
natural, nos votos que formulava por Monsieur de Choiseul.
Predisposta a minha estima a favor dos seus talentos, que
eram tudo o que conhecia dele, cheio 9-e reconhecimento pela
sua boa vontade, ignorando aliás totalmente no meu retiro os

535
seus gostos e a sua maneira de viver, considerava-o de ante­
mão como o vingador do público e o meu, e dando então a
última demão no Contrato social, nele assinalei, numa só
penada, o que pensava dos ministérios anteriores, e do que
começava a eclipsá-los. Faltei, nesta ocasião, à minha mais
constante máxima, e, além disso, não pensei que, quando no
mesmo artigo se pretende louvar ou censurar fortemente sem
mencionar as pessoas, é preciso de tal maneira apropriar o
louvor àqueles a quem este diz respeito, que o mais suspicaz
amor-próprio nele não possa encontrar qualquer quiproquó. Era
a este respeito tão tolamente confiante, que nem sequer me
veio ao espírito que alguém se pudesse enganar. Ver-se-á em
breve se tive razão.
Um dos meus azares era ter sempre entre os meus conhe­
cimentos escritores. Julgava, ao menos, poder evitar entre os
grandes este azar. Isso sim : seguiu-me ainda aqui. Todavia,
Madame de Luxemburgo nunca foi, que eu saiba, atingida por
esta mania; mas a senhora condessa de Boufflers foi-o. Escre­
veu uma tragédia em prosa, que foi primeiramente lida, pas­
seada e exaltada na sociedade do senhor príncipe de Conti, e
a respeito da qual, não contente com tantos elogios, quis ainda
consultar-me, para obter o meu. Houve-o, mas moderado, como
a obra o merecia. Julguei, além disso, dever adverti-la de que a
su a peça, intitulada o escravo generoso,. tinha grande analogia
com uma peça inglesa pouco conhecida, mas que todavia se
·
achava traduzida, intitulada Oroonoko. !Madame de Boufflers
agradeceu-me a informação, garantindo-me contudo qúe a sua
peça não se parecia de maneira nenhuma com a outra. Nunca
falei deste plagiato a ninguém no mundo, a não ser a ela, e isto
para cumprir um dever que ela me havia imposto; o que me
não impediu de me recor.dar depois disso da sorte do que
Gil Blas cumpriu j unto do Bispo pregador.
Além do abade de Boufflers, que não gostava de mim, além
de Madame de Boufflers, para com a qual tinha culpas que
nunca as mulheres nem os autores perdoam, todos os restantes
amigos da senhora Marechala me pareceram sempre um pouco
dispostos a ser.em meus amigos, e, entre outros, o senhor pre­
sidente Hénault, o qual, alistado entre os autores, não estava
isento dos defeitos destes; entre outros, também Madame du
Deffand e Mademoiselle de Lespinasse, ambas muito familiares
de Voltaire e amigas intimas de D'-Alembert, com o qual a
última acabou mesmo por viver, bem entendido com toda a.
decência e com toda a honra, e nem sequer se pode a coisa

536
entender de outra maneira. A principio, começara por me inte­
ressar muito por iMadame du Deffand, a quem a perda dos olhos
a tornava aos meus um objecto de comiseração ; contudo, a sua
maneira de viver, tão contrária à minha, que a hora de um se
levantar, era a do outro se deitar; a sua paixão sem limites pelos
pequenos pedantes, a importância que dava, para bem ou para
mal, aos mais insignificantes papeluchos que apareciam ; o
despotismo e o arrebatamento dos seus oráculos, a sua exage­
rada admiração pró ou contra todas as coisas, que lhe não
permitia falar de nada senão em convulsões; os seus inacredi­
táveis preconceitos, a sua invencível obstinação, o entusiasmo
disparatado a que a levava a teimosia dos seus juizos apaixo­
nados: tudo isto me desgostou em br.eve dos cuidados que que­
ria prestar-lhe ; descurei - a ; ela percebeu-o ; foi o bastante para
a fazer enfurecer, e embora eu percebesse bem quanto uma
mulher com tal carácter era para recear, preferi ainda assim
expor-me ao flagelo do seu ódio ao da sua amizade.
Já chegava ter tão poucos amigos na sociedade de Madame
de Luxemburgo, para ter ainda inimigos na sua família. Só tive
um, mas que, em vista da posição em que hoje me,encontro,
vale por cem. Não era certamente o irmão, o senhor duque d e
Villeroy ; porquanto não só me tinha vindo ver, como me havia
muitas vezes convidado para ir a Villeroy, e como eu houvesse
respondido ao seu convite com tanto respeito e correcção quanto
me havia sido possível, ele, partindo da minha resposta vaga
como se fora um consentimento, combinara com Monsieur e
Madame de Luxemburgo uma viagem de uns quinze dias, pro­
pondo-me que tomasse parte nela. Como os cuidados exigidos
pela minha saúde não me permitiam então que me deslocasse,
roguei a IMonsieur de Luxemburgo o favor de me dispensar. Pela
sua resposta (Maço D, n.o 3) se pode ver que a coisa foi feita nos
melhores termos do mundo, e o senhor duque de Villeroy nem
por isso me testemunhou menos atenções do que anteriormente.
O sobrinho e herdeiro, o j ovem marquês de Villeroy, não par­
ticipou da afabilidade com que o tio me honrava, nem também,
confesso-o, do respeito que eu tinha por ele. Os seus modos
estouvados tornaram-mo insuportável, e o meu ar gelado
valeu-me a sua aversão. Uma noite, à mesa, teve mesmo um
destempero, de que eu me saí mal, porque sou par,vo, sem a
menor presença de espírito e porque a cólera, em vez de afinar
o pouco que tenho, mo tira. Tinha eu um cão que me haviam
dado muito novinho, quase à minha chegada à Hermitage, e
ao qual havia dado o nome de Duque. O cão, que não era bonito,

537
mas de uma espeCie rara, e que eu fizera meu companheiro,
meu amigo, e que certamente merecia mais este titulo do que
a maioria dos que o tomaram, tinha-se tornado célebre no
castelo de Montmorency, graças ao seu natural afável, sensível,
e à dedicação que nós tínhamos um pelo outro; contudo, devido
a uma pusilanimidade inteiramente idiota, eu havia-lhe mudado
o nome para o de Turco, como se não houvesse uma quantidade
de cães que se chamam Marquês, sem que nenhum marquês se
zangue com isso. O marquês de Villeroy, que teve conhecimento
desta mudança de nome, acossou-se tanto a este respeito, que
fui obrigado a contar em plena mesa o que tinha feito. O que
nesta história havia de gravoso para o nome do duque, não
era tanto o tê-lo dado ao cão como haver-lho tirado. O pior
foi que se achavam presentes bastantes duques; Monsieur de
Luxemburgo era-o, o filho era-o. O marquês de Villeroy, nas­
cido para o vir a ser, e que hoje o é, divertiu-se com cruel
alegria com a atrapalhação em que me havia lançado, assim
como com o efeito provocado pela minha atrapalhação. Afirma­
ram-me no dia seguinte que a tia o tinha repreendido viva­
mente por isso, e podem imaginar se a reprimenda, dado que
fosse real, se prestou a concertar-me com ele.
Para me escudar contra tudo isto, só tinha, tanto no palá­
cio Luxemburgo, como no Templo, o cavaleiro de Lorenzy, que
se declarava meu amigo; mas era-o ainda mais de D'Alembert,
à sombra do qual passava em casa das mulheres por grande
geómetra. Era, aliás, o chichisbéu, ou antes o adulador servil
da senhora condessa de Boufflers, também muito amiga de
D'Alembert, e o cavaleiro de Lorenzy só através dela existia e
pensava. Desta maneira, longe de ter exteriormente qualquer
contrapartida à minha inépcia para me aguentar junto de
Madame de Luxemburgo, todos os que se aproximavam dela
pareciam concorrer para me prejudicarem no seu espírito. No
entanto, além do Emílio, de que se quisera encarregar, deu-me
ela na mesma altura outra prova de interesse e de estima,
que me levou a acreditar que, mesmo aborrecendo-se comigo,
mantinha e conservaria para sempre a amizade que tantas
vezes me havia prometido para toda a vida.
Logo que julgara poder contar com este sentimento da
parte dela, começara por descarregar na sua presença o meu
coração com a confissão de todas as minhas faltas, visto que,
com os meus amigos, tinha a máxim a inviolável de me mostrar
aos seus olhos exactamente tal como sou, nem melhor, nem
pior. Tinha-lhe revelado as minhas relações com Teresa, e tudo

538
o que destas resultara, sem omitir a maneira como havia dis­
posto dos filhos. Madame de Luxemburgo tinha recebido as
minhas confissões muito bem, até bem de mais, poupando-me
as censuras que eu merecia, e o que sobretudo me comoveu pro­
fundamente foi ver as bondades que ela prodigalizou a Teresa,
oferecendo-lhe pequenos presentes, mandando-a chamar, pe­
dindo-lhe que viesse vê-la, recebendo-a muito carinhosamente,
e beijando- a frequentissimamente diante de toda a gente. A
pobre rapariga achava-se arrebatadà de alegria e de reconhe­
cimento, do que eu compartilhava verdadeiramente ; as ami­
zades com que Monsieur e iMadame de Luxemburgo me cumu­
lavam através dela sensibilizavam-me muito mais vivamente
ainda do que as que me dispensavam directamente. Durante
muito tempo as coisas ficaram neste pé; mas, por fim, a senhora
Marechala levou a sua bondade até ao ponto de querer recolher
um dos meus filhos. Sabia que eu havia mandado pôr uma
marca nas roupas do mais velho; pediu-me o duplicado e eu
dei-lho. Utilizou na busca La Roche, seu criado de quarto e
homem da sua confiança, que fez inúteis pesquisas, e nada
encontrou, embora, ao fim de doze ou catorze anos apenas,
não devesse ser difícil encontrar a marca, se os registos da
Roda estivessem em ordem, ou as pesquisas houvessem sido bem
feitas. Fosse como fosse, desgostei-me menos com o insucesso, do
que me teria sucedido se houvesse seguido a criança desde que
nascera. Se com a ajuda da informação me tivessem apresentado
qualquer criança como sendo o meu filho, a dúvida em que
ficaria sobre se com efeito se trataria n a verdade do meu, se
o não teriam substituído por outro, ter-me-ia angustiado na sua
incerteza, e eu não teria gozado em todo o seu encanto o ver­
dadeiro sentimento da natureza: para se sustentar, este tem
necessidade, ao menos durante a infância, de ser apoiado pelo
hábito. A longa ausência de uma criança que ainda se não
conhece enfraquece, aniquila por fim os sentimentos paternos
e maternos, e nunca a que foi confiada a uma ama será amada
como a que foi criada debaixo dos nossos olhos. A reflexão que
aqui faço pode diminuir as minhas culpas nos seus efeitos, mas
só à custa de as agravar na sua origem.
Não é talvez inútil notar que, por intermédio de Teresa,
este mesmo La Roche travou conhecimento com Madame Le
Vasseur, que Grimm continuava a manter em Deuil, às portas
da Chevrette, e muito perto de !Montmorency. Quando parti,
foi por Monsieur la Roche que c ontinuei a remeter a esta
mulher o dinheiro que não cessei de lhe enviar, e creio que ele

539
lhe levava também frequentes presentes da parte da senhora
Marechala; desta maneira, não tinha de que se queixar, embora
se queixasse sempre. Com respeito a Grimm, como não gosto
de falar das pessoas que devo odiar, nunca falei dele a Madame
de Luxemburgo senão mau grado meu: ela, porém, levou-me
muitas vezes para este capítulo, sem me dizer o que pensava
dele, e sem nunca me deixar apurar se esse homem era seu
conhecido ou não. Como as reservas para com as pessoas a
quem amamos, e que não as têm para connosco, não é coisa de
que goste, sobretudo no que lhes diz respeito a elas, várias vezes
depois disso pensei na reserva de Madame de Luxemburgo;
apenas porém quando outros acontecimentos tornaram tal
reflexã o natural.
Tendo estado há muito tempo sem ouvir falar no Emílio,
desde que o entregara a Madame de Luxemburgo, soube por
fim que o negócio havia sido concluído em Paris com o livreiro
Duchesne, e, graças a este, com o livreiro Néaulme, de Amster­
dão. Madame de Luxemburgo enviou-me os dois duplicados do
meu contrato com Duchesne para eu os assinar. Reconheci que
a letra era da mesma mão das cartas de Monsieur de Malesher­
bes, que ele me não escrevia por sua própria mão. A certeza de
que o meu contrato se fazia com o conhecimento e à vista do
magistrado, levou-me a assiná-lo com confiança. Duchesne
dava-me por este manuscrito seis mil francos, sendo a metade
de c ontado, e, creio, cem ou duzentos exemplares. Depois de
haver assinado os dois duplicados, enviei-os ambos a Madame
de Luxemburgo, que assim o tinha desejado: esta entregou um
a Duchesne; guardou o outro, em vez de mo reenviar, e eu nunca
mais o tornei a ver.
As relações com Monsieur e Madame de Luxemburgo,
embora trouxessem uma diversão ao meu projecto de afasta­
mento, não me tinham feito r enunciar a ele. Mesmo no período
do meu máximo favor j unto da senhora Marechala, eu tinha
sempre sentido que só a minha sincera afeição para com o
senhor Marechal e para com ela me podia tornar suportáveis
as pessoas que os rodeavam, e toda a minha dificuldade era
conciliar esta mesma afeição com um género de vida mais
conforme ao meu gosto e menos contrário à minha saúde, que
este constrangimento e estas ceias traziam constantemente
alterada, apesar de todos os cuidados que empregavam para
me não exporem a estragá-la; porquanto neste ponto, como em
qualquer outro, levaram as atenções tão longe quanto era pos­
sível, e, por exemplo, todas as noites, depois da ceia, o senhor

540
Marechal, que se deitava cedo, não deixava nunca de, quer
quisessem quer não, me levar para me ir deitar também. Só
algum tempo antes da minh a catástrofe é que, não sei porquê,
ele deixou de ter esta atenção.
Mesmo antes de perceber o resfriamento da senhora Mare­
chala, desejava eu, para me não expor a tal, executar o meu
velho projecto ; mas como me faltavam os meios para isso,
fui obrigado a esperar a conclusão do contrato do Emilio, e, no
entrementes, dava a última demão no Contrato social, envian­
do-o a Rey e fixando o preço do manuscrito em mil francos,
que este me deu. Talvez não deva omitir um factozito que diz
respeito ao dito manuscrito. Entreguei-o bem lacrado a Duvoi­
sin, pastor da região de Vaud e capelão da embaixada da
Holanda, o qual algumas vezes me vinha visitar, e que se
encarregou de o enviar a Rey, com quem estava relacionado.
O manuscrito, escrito numa letra miúda, era pequeníssimo, e
nem lhe enchia a algibeira. Contudo, ao passar as barreiras,
o pacote caiu, não sei como, entre as mãos dos empregados,
que o abriram, o examinaram, e em seguida lho restituíram,
quando ele o reclamou em nome do embaixador ; o que lhe
permitiu lê-lo ele próprio, como ingênuamente me comunicou
haver feito, sem uma palavra de critica nem de censura, guar­
dando-se sem dúvida para ser o vingador do cristianismo
quando a obra aparecesse. Tornou a lacrar o manuscrito, e
enviou-o a Rey. Tal foi em substância a exposição que ele me
fez na carta em que me prestava contas deste negócio, e é
tudo quanto eu dele soube.
Além destes dois livros e do Dicionário de música, no qual
trabalhava de vez em quando, tinha alguns outros escritos de
menos importância, todos em estado de aparecer, e que tencio­
nava ainda dar, quer em separado, quer na minha compilação
geral, se alguma vez a empreendesse. Destes escritos, na sua
maior parte ainda nas mãos de Du Peyrou, o principal era um
Ensaio sobre a origem das línguas, que dei a ler a Monsieur de
Malesherbes e ao cavaleiro de Lorenzy, que mo gabou. Contava
que todas estas produções juntas me valessem, feitas todas as
despesas, um capital de oito a dez mil francos pelo menos, que
eu queria transformar numa renda vitalícia, tanto no meu nome
como no de Teresa ; após o que iríamos, como disse, viver
j untos enterrados em qualquer província, sem eu próprio me
ocupar com outra coisa que não fosse acabar tranquilamente
a minha carreira, continuando a fazer à minha volta todo o

541
bem que pudesse, e a escrever descansadamente as memórias
em que meditava.
Tal era o meu projecto, cuja execução uma generosidade
de 'Rey, que não devo encobrir, veio ainda facilitar. Este livreiro,
de quem tanto mal me diziam em Paris, e, no entanto, de todos
aqueles com que lidei, o único de que sempre tive que me feli­
citar 1• Na verdade estávamos frequentemente em discussão a
respeito da execução das minhas obras ; ele era leviano, eu
exaltado. Mas em matéria de interesse e de processos com elas
relacionados, se bem que nunca tivesse feito com ele nenhum
contrato em forma, achei-o sempre cheio de exactidão e de
probidade. É até o único que francamente me confessou fazer
bons negócios comigo, e muitas vezes me disse que me devia
a sua fortuna, oferecendo-me parte dela. Não podendo mos­
trar-me directamente a sua gratidão, quis ao menos testemu­
nhar-ma na pessoa da minha governanta, à qual instituiu uma
pensão vitalícia de trezentos francos, exarando na acta que
o fazia como reconhecimento das vantagens que eu lhe havia
proporcionado. Fez a coisa entre nós ambos, sem ostentação,
sem bazófia, sem barulho, e, não fosse eu o primeiro a con­
tá-lo a toda a gente, ninguém saberia de nada. O seu proce­
dimento comoveu-me tanto que depois disso me afeiçoei a Rey
por uma amizade verdadeira. Algum tempo depois desejou ele
que eu fosse padrinho de um dos seus filhos, consenti, e um
dos meus desgostos na situação a que me reduziram é que me
tenham tirado todo e qualquer meio de tornar doravante a
minha afeição útil à minha afilhada e aos pais. Tão sensível
à modesta generosidade deste livreiro, porque o sou eu tão pouco
aos espectaculosos desvelos de tantas pessoas de alta jerarquia,
que pomposamente enchem o universo com o bem que dizem
haver querido fazer-me, e de que eu nada senti? É deles a culpa,
é minha ? São eles apenas fátuos, sou eu apenas ingrato ? Leitor
avisado, pensai, decidi ; por mim, calo-me.
Esta pensão foi de um grande socorro para a sustentação
de Teresa, e um grande alívio para mim. Aliás, eu estava muito
longe de tirar dela qualquer proveito directo para mim, do
mesmo modo que de todos os presentes que lhe faziam. Ela
própria dispôs sempre de tudo. Quando eu guardava o seu

1 Quando isto escrevia, estava muito longe de imaginar, de con­


ceber e de acreditar nas fraudes que depois vim a descobrir na impressão
dos meus escritos, e com as quais ele foi forçado a concordar.
- Nota de
J.-J. Rousseau.

542
dinheiro, prestava-lhe sempre contas fiéis, sem nunca distrair
um real que fosse para a nossa despesa comum, ainda quando ela
estava mais rica do que eu. O que é meu é nosso, e o que é teu é
teu, dizia-lhe eu. Nunca deixei de proceder para com ela de
acordo com esta máxima, que frequentemente lhe repetia. Aque­
les que tiveram a baixeza de me acusar de receber das mãos dela
o que recusava receber nas minhas j ulgavam sem dúvida o meu
coração pelo deles, e conheciam-me muito mal. De boa vontade
comeria com ela o pão que ela houvesse ganho, nunca o que
ela houvesse recebido. Tomo-a a ela por testemunha neste
ponto, desde já, e quando, segundo o curso da natureza, ela
sobreviver a mim. Infelizmente, Teresa é pouco entendida em
qualquer género de economia, pouco cuidadosa e muito gasta­
dora, não por vaidade nem por gula, mas apenas por negligên­
cia. Cá na terra ninguém é perfeito, e, pois que é necessário
que as suas excelentes qualidades sejam resgatadas, prefiro
que ela tenha defeitos a vícios, posto que estes defeitos nos
façam porventura ainda mais mal a ambos. Não se pode ima­
ginar os cuidados que eu tive por ela, como outrora por Mamã,
a fim de j untar alguns adiantamentos que um dia lhe pudessem
servir de socorro: foram sempre no entanto penas perdidas.
Nunca elas, nem uma nem outra, contaram consigo mesmas,
e, apesar de todos os meus esforços, tudo ia partindo à medida
que chegava. Por muito simplesmente que Teresa se vista,
nunca a pensão de Rey lhe chegou para os trapos, sem que
eu não tivesse que lhe suprir aind a cada ano com a minha
bolsa. Nem ela nem eu nascemos para ser alguma vez ricos,
e eu de certeza não conto isto entre as nossas desgraças.
O Contrato social estava-se imprimindo com bastante rapi­
dez. O mesmo sucedia com o Emílio, cuja publicação esperava
para executar o afastamento em que meditava. De tempos a
tempos, Duchesne enviava-me modelos de impressão para eu
escolher; quando os havia escolhido, enviava-me outros, em
vez de começar. Quando por fim assentámos bem no formato,
no tipo, e ele tinha já várias folhas impressas, recomeçou tudo,
em virtude de uma ligeira alteração que eu fiz numa prova, e
ao fim de seis meses achávamo-nos menos adiantados do que
no primeiro dia. Durante estas experiências vi perfeitamente
que a obra se estava imprimindo em França, bem como na
Holanda, fazendo-se ao mesmo tempo duas edições. Que podia
eu fazer? Já não era senhor do meu manuscrito. Longe de
cooperar na edição francesa, tinha-me sempre oposto a ela ;
mas, enfim , visto que tal edição se fazia bom grado mau grado

543
meu, e visto que servia de modelo à outra, necessário se tornava
lançar-lhe os olhos e ver as provas, para não deixar estropiar
e desfigurar o meu livro. A obra, aliás, imprimia-se a tal ponto
com o conhecimento do magistrado, que era ele que de certo
modo dirigia o empreendimento, escrevendo-me muitas vezes,
e vindo mesmo ver-me a este propósito, numa ocasião de que
a seguir vou falar.
Enquanto Duchesne avançava a passo de tartaruga,
Néaulme, sopeado por ele, avançava ainda mais lentamente.
As folhas não lhe eram enviadas fielmente à medida que se
iam imprimindo. Julgou ver má fé na manobra de Duchesne,
isto é, de Guy, que agia por ele, e, vendo que não executavam
o contrato, escrevia-me cartas sobre cartas, cheias de queixas
e de gravames, aos quais ainda menos do que aos que tinha por
minha conta podia dar remédio. O seu amigo Guérin, que então
me via frequentemente, falava-me constantemente do livro,
mas sempre com a maior reserva. Sabia e não sabia que o
imprimiam em França, sabia e não sabia que o magistrado
estava metido no assunto: falando-me das complicações que
o livro me ia valer, parecia acusar-me de imprudência, sem
nunca me querer dizer em que consistia esta ; torcia e tergiver­
sava continuamente ; parecia falar apenas para me fazer falar.
A minha segurança era então tão completa, que me ria do tom
circunspecto e misterioso de que ele rodeava o negócio, como
se se tratasse de um tique contraído com os ministros e os
magistrados, cujas repartições frequentava assiduamente. Con­
victo de a todos os respeitos me achar em regra pelo que tocava
à obra, fortemente persuadido de que ela tinha não só a auto­
rização e a protecção do magistrado, como até merecia e tinha
o favor do ministério, felicitava-me pela minha coragem em tra­
balhar bem, e ria-me _dos meus pusilânimes amigos, que pare­
ciam inquietar-se por mim. Entre estes contava-se Duelos, e
confesso que a minha confiança na sua rectidão e nas suas luzes
poderia, a exemplo dele, alarmar-me, se tivesse menos na utili­
dade da obra e na probidade dos seus protectores. Veio ele visi­
tar-me, achando-se em casa de Monsieur Baille, ao tempo em
que o Emilio estava no prelo ; falou-me dele: eu li-lhe a Pro­
fissão de fé do Vigário saboiano. Escutou-a com toda a tranqui­
lidade, e, ao que me pareceu, com grande prazer. Quando ,acabei,
disse-me : O quê, cidadão, isso faz parte de um livro que se
imprime em Paris? Faz, respondi-lhe eu, e deviam imprimi-lo
no Louvre, por ordem do Rei. De acordo, disse-me ele; mas
fazei-me o favor de não dizer a ninguém que me haveis lido

544
este trecho. Esta estranha maneira de se exprimir surpreen­
deu-me sem me atemorizar. Sabia que Duelos via com fre­
quência Monsieur de !Malesherbes. Tive dificuldade em com­
preender como é que, sobre o mesmo assunto, pensava de uma
maneira tão diferente da deste.
Há mais de quatro anos que vivia em Montmorency, sem
que a minha saúde fosse um s6 dia boa. Posto que o ar seja
excelente, as águas são más, o que pode muito bem ser uma
das causas que contribuíram para agravar os meus males habi­
tuais. Pelos fins do Outono de 1761, caí completamente doente ,
� passei todo o Inverno sofrendo quase sem descansar. o mal
físico, acrescido por mil inquietações, tornou-me o meu sofri­
mento também mais sensível. Surdos e tristes pressentimentos
me perturbavam há algum tempo, sem eu saber a que pro­
pósito. Recebia c artas anónimas bastante singulares, e até
cartas assinadas que não o eram menos. Recebi uma de um
Conselheiro do Parlamento de Paris, que, descontente com o
actual estado de coisas, e não augurando nada bem das suas
consequências, me consultava a respeito de um asilo na Suíça,
para ali se retirar com a família. Recebi outra de Monsieur de ... ,
Presidente <<là mortier» do Parlamento de . ..,, que me propunha
redigisse eu para este Parlamento, então de mal com a corte,
memórias e advertências, para as quais se propunha oferecer-me
todos os documentos e materiais de que eu tivesse necessidade.
Quando sofro, sou sujeito a impacientar-me. Impacientei-me
ao receber as cartas, e impacientei-me nas respostas que lhes
dei, recusando formalmente o que me pediam: tal recusa não
é certamente nada de que eu tenha que me censurar, visto as
cartas poderem ser ciladas dos meus inimigos 1, e o que se me
pedia ser contrário aos meus princípios, dos quais, menos do
que nunca, me queria afastar. No entanto, podendo opor uma
recusa amena, fi-lo com dureza, e eis aí onde procedi mal.
As duas cartas de que acabo de falar encontram-se entre
o.� meus papéis. A do Conselheiro não me surpreendeu em
absoluto, porquanto eu próprio pensava, como ele e como tantos
outros, que a constituição decadente ameaçava a França de
uma próxima ruína. Os desastres de uma guerra infeliz 2, todos
por culpa do Governo ; a inacreditável desorganização das
finanças, as continuas dificuldades da administração, até então

1 Sabia, por exemplo, que o Presidente de... mantinha grandes rela­


ções com os Enciclopedistas e com os holbachianos.- Nota de J...J. Rousseau.
2 A Guerra dos Sete Anos - N. do T.

35 545
dividida entre dois ou três ministros, em guerra aberta um
com o outro, e que, para mutuamente se prejudicarem, afund�
vam o reino ; o descontentamento geral do povo e de todas as
ordens do Estado ; a teimosia de uma família obstinada, que,
sacrificando permanentemente as suas luzes (se acaso as tinha)
aos seus gostos, afastava quase sempre dos empregos os mais
capazes, para neles pôr quem mais lhe agradava : tudo concor­
ria para j ustificar a previsão do Conselheiro, bem como a do
público e a minha. Tal previsão fez-me mesmo muitas vezes
hesitar sobre se eu próprio não devia procurar um asilo fora
do reino antes das perturbações que pareciam ameaçá-lo ; con­
tudo, tranquilizado pela minha pequenez e pelo meu feitio paci­
fico, j ulguei que, na solidão em que queria viver , tempestade
alguma podia chegar até mim ; agastado apenas por, neste
estado de coisas, Monsieur de Luxemburgo se prestar a incum­
bências que deviam torná-lo muito menos produtivo no seu
Governo, desejari a que, para o que desse e viesse, ele ali arran­
j a.sse um retiro, se viesse a acontecer que a grande máquina
soçobrasse, como parecia de temer no estado actual das coisas,
e neste momento ainda me parece indubitável que se todas
as rédeas do Governo não caíssem enfim numa só mão, a Monar­
quia francesa estaria agora metida numa camisa de onze varas.
Enquanto o meu estado de saúde ia piorando, a impressão
do Emílio ia-se atrasando, e foi por fim inteiramente suspensa,
sem que eu pudesse saber por que razão, sem que Guy se dig­
nasse já escrever-me ou responder-me, sem poder ter noticias
de ninguém, nem nada saber do que se passava, visto que Mon­
sieur de Malesherbes se achava então no campo. Uma desgraça,
seja ela qual for, nunca me perturba nem abate, desde que
saiba em que consiste; a minha inclinação natural é, porém,
para ter medo das trevas; temo e odeio a sua escura atmosfera ;
o mistério inquieta-me sempre ; é por de mais contrário ao meu
natural franco até à imprudência. O aspecto do mais horrífico
monstro atemorizar-me-i:;�. pouco, creio eu ; mas se entrevisse
de noite uma figura coberta com um lençol branco, teria medo.
E aí está a minha imaginação, encandecida por este longo
silêncio, ocupada em desenhar-me fantasmas. Quanto mais eu
me empenhava na publicação da minha última e melhor obra,
mais me atormentava procurando o que podia entravá-la, e,
levando como sempre tudo aos extremos, j ulgava ver na suspen­
são da impressão do livro a sua supressão. Como todavia não
lhe podia imaginar nem a causa nem o processo, permanecia
na mais cruel incerteza do mundo. Escrevi cartas sobre cartas

546
a Guy, a Monsieur de !Malesherbes, a Madame de Luxemburgo,
e como as respostas não vinham, ou não vinham quando eu
as esperava, atormentava-me de todo, delirava. Soube, infeliz­
mente, pela mesma altura, que o P.e Griffet, j esuíta, havia
falado do Emílio, e tinha citado passos dele. Imediatamente a
minha imaginação despede como um relâmpago, e desvenda-me
todo o mistério da iniquidade : vi a sua marcha com tanta cla­
reza, com tanta certeza como se ela me fosse revelada. Pensei
que os j esuítas, furiosos com o tom de desprezo com que eu
falava dos colegas, se tinham apoderado da obra ; que eram eles
que entravavam a edição ; que, informados por Guérin, seu
amigo, do meu presente estado, e prevendo para breve a minha
morte, de que eu mesmo não duvidava, queriam retardar a
impressão até esse momento, com a intenção de truncar, de
alterar a minha obra, atribuindo-me, para realizar os seus
desígnios, sentimentos diferentes dos meus. É espantosa a quan­
tidade de factos e de circunstâncias que no meu espírito se
vieram sobrepor a esta loucura para lhe dar uma aparência de
verosimilhança, que digo eu ! provar-me a sua evidência e
demonstrá-Ia. Sabia que Guérin estava totalmente n as mãos
dos j esuítas. Atribuía-lhes todas as propostas de amizade que
ele me havia feito, convenci-me de que era por instigação sua
que ele tinha instado comigo para que eu tratasse com Néaulme ;
que tinha obtido do dito Néaulme as primeiras folhas da minha
obra ; que tinham em seguida achado processo de sustar a im­
pressão em casa de Duchesne, e talvez de se apoderar do meu
manuscrito, para nele trabalharem à sua vontade, até que a
minha morte lhes desse a liberdade de o publicar disfarçado
á sua moda. Apesar da solércia do P.e Berthier, eu tinh a sempre
percebido que os j esuítas não gostavam de mim, não só como
Enciclopedista, mas porque todos os meus princípios eram ainda
mais opostos às suas máximas e ao seu crédito do que a incre­
dulidade dos meus confrades, visto o f anatismo ateu e o fana­
tismo devoto, tocando-se pela intolerância comum, poderem até
associar-se, como o fizeram na China, e como o fazem contra
mim; ao passo que a religião razoável e moral, tirando todo o
poder humano sobre as consciências, não deixa nenhum recurso
�1,os arbítrios desse poder. Sabia que o senhor éhanceler era
também muito amigo dos j esuítas; receava que o filho, intimi­
dado pelo pai, se visse forçado a entregar-lhes a obra que havia
protegido. Julgava mesmo ver o efeito de semelhante entrega
nas chicanas que começavam a provocar contra mim a respeito
dos dois primeiros volumes, para os quais se exigiam folhas adi-

547
clonais a propósito de nonadas; ao passo que os dois outros volu­
mes estavam, como não era desconhecido, cheios de coisas tão
fortes que seria preciso refundi-los inteiramente, ao censurá­
-los como os dois primeiros, ISabia além disso, e o próprio Mon­
sieur de Malesherbes mo havia dito, que o abade de Grave, a
quem encarregara de inspeccionar a edição, era ainda outro
partidário dos jesuítas. Por toda a parte só via jesuítas, sem
pensar que, em vésperas de serem aniquilados, inteiramente
absorvidos com a sua própria defesa, tinham mais que fazer do
que andar a intrigar a respeito de um livro onde não se tratava
deles. Faço mal em dizer sem pensar, porquanto pensava nisso
muito bem, e aquela foi mesmo uma das objecções que Monsieur
de Malesherbes teve o cuidado de me fazer, logo que teve conhe­
cimento da minha quimera: graças, porém, a outra destas
excentricidades de um homem que, do fundo do seu retiro, quer
julgar dos segredos dos grandes negócios, dos quais nada sabe,
nunca quis acreditar que os jesuítas se achassem em perigo, e
considerava os boatos que corriam como um embuste seu para
acalmar os adversários. Os seus triunfos passados, nunca des­
mentidos, davam-me uma ideia tão terrível do seu poder, que
eu já lamentava a objecção do Parlamento. Sabia que Mon­
sieur de Choiseul tinha estudado com os jesuítas, que Madame
de Pompadour não esta va mal com eles, e que a sua união com
os favoritos e os ministros tinha sempre parecido vantajosa
a uns e a outros contra os inimigos comuns. A corte parecia
não se importar com coisa nenhuma, e, convicto de que se a
sociedade recebesse um dia algum duro revés nunca seria por
o Parlamento ser bastante forte para lho aplicar, concluía desta
inacção da corte o alicerce da sua confiança e o vaticínio do
seu triunfo. Não vendo, enfim, em todos os boatos na ordem
do dia senão dissimulação e armadilhas da parte deles, e
supondo que, na sua segurança, tinham tempo para cuidar de
tudo, não duvidava de que em breve esmagassem o Jansenismo,
e o :parlamento, e os Enciclopedistas, e tudo o que não houvesse
suportado o seu jugo, e que se por fim deixassem o meu
livro aparecer, não seria senão depois de o haverem transfor­
mado, a ponto de fazerem dele uma arma sua, valendo-se do
meu nome para surpreender os meus leitores.
Eu sentia-me à morte; mal compreendo como semelhante
extravagância não acabou comigo, de tal maneira me aterro­
rizava a ideia de que a minha memória seria desonrada depois
de mim, no meu mais digno e melhor livro. Nunca receei tanto
morrer, e creio que se tivesse morrido nestas circunstâncias,

548
morreria desesperado. Hoje mesmo, quando sem obstáculo vejo
em marcha a execução da mais odiosa, da mais terrível das
conspirações ainda maquinada contra a memória de um homem, ·

morrerei muito mais sossegado, seguro de deixar nos meus


escritos um testemunho de mim que cedo ou tarde tnunfara
das conspirações dos homens.
Monsieur de Malesherbes, testemunha e confidente das
minhas agitações, empregou para as acalmar
que cuidados
demonstram a inesgotável bondade do seu coração. Madame
de Luxemburgo concorreu para esta boa obra, e foi várias vezes
a casa de Duchesne, para saber em que pé estava a edição.
Enfim, a impressão recomeçou, e seguiu mais ràpidamente.
sem que nunca eu pudesse saber porque tinha sido suspensa.
Monsieur de Malesherbes deu-se ao cuidado de vit a Montmo�
rency para me tranquilizar: conseguiu-o, e como a minha per·
feita confiança na sua rectidão tivesse triunfado do delirio da
minha pobre cabeça, tornou eficaz tudo o que fez para me
chamar à razão. Depois de ver as minhas angústias e o meu
delírio, era natural achar que eu era muito para lamentar.
Foi o que fez. As conversas constantemente repisadas da cabala
filosófica que o rodeava vieram-lhe à mente. Quando fui viver
para a Hermitage, declararam, como já <;iisse, que não estaria
ali muito tempo. Quando viram a minha persistência, disseram
que era por teimosia, por orgulho, por vergonha de me con­
tradizer, mas que eu me aborrecia ali de morte e que vivia
muito infeliz. Monsieur de Malesherbes acreditou-o e disse-mo
em' carta. Sensível a semelhante erro da parte de um homem
que tanto estimava, escrevi-lhe quatro cartas consecutivas, nas
quais, expondo-lhe os verdadeiros motivos do meu procedimento,
lhe descrevia fielmente os meus gostos, as minhas inclinações.
o meu carácter, e tudo o que no meu coração se passava. Estas
quatro cartas, escritas sem rascunho, de uma penada, sem
sequer as ter relido, são porventura a única coisa que em toda
a minha vida e.!'crevi com facilidade, o que é bem para admirar
no meio dos meus sofrimentos e do extremo abatimento em
que me encontrava. Sentindo-me desfalecer, gemia ao pensar
que deixava no espírito das pessoas de bem uma opinião tão
pouco justa de mim, e, graças ao bosquejo traçado à pressa
naquelas quatro cartas, tratava de certo modo de suprir às
memórias ·que tinha projectado. Estas cartas, que· agradaram a
Monsieur de Malesherbes, e que este mostrou em Paris, são até
certo ponto o sumário do que aqui exponho mais pormenoriza­
damente, e, a este título, mereciam ser conservadas. Entre os

549
meus papéis achar-se-á a cop1a que Monsieur de Melesherbes
mandou fazer a meu rogo, e que me enviou alguns anos depois.
A única coisa que doravante me afligia na ideia da minha
próxima morte era não ter nenhum homem de letras de con­
fiança, em cujas mãos pudesse depositar os meus papéis, para
depois de mim proceder à sua escolha. Desde a minha viagem
a Genebra, tinha travado relações de amizade com IMoultou;
tinha inclinação por este rapaz, e desejaria que ele viesse
fechar-me os olhos ; comuniquei-lhe o meu desej o, e creio que
teria feito com prazer este acto de humanidade, se os seus negó­
cios e a família o tivessem permitido. Privado desta consolação,
quis ao menos testemunhar-lhe a minha confiança, enviando­
-lhe a Profissão de fé do Vigário saboiano antes de publicada.
Ele mostrou.:.se contente ; mas não me pareceu que na sua
resposta compartilhasse da segurança com que eu então espe­
rava o efeito dela. Moultou desej ava possuir de mim qualquer
outro trecho que ninguém mais tivesse. Enviei-lhe a Oração
fúnebre do falecido duque d'Orleães, que havia escrito para
o abade Darty, e que não foi pronunciada, porque, contra o que
esperava, não foi ele quem foi encarregado de a fazer.
Depois de ter recomeçado, a impressão continuou, aca-­
bando-se mesmo bastante sossegadamente, e nela notei esta
coisa singular, a saber que, depois das folhas adicionais severa­
mente exigidas nos dois primeiros volumes, passaram os dois
últimos sem nada dizer, e sem que o seu conteúdo levantasse
algum obstáculo à sua publicação. Tive todavia ainda certa
inquietação que não devo passar em silêncio. Depois de ter tido
medo dos j esuítas, tive medo dos j ansenistas e dos filósofos.
Inimigo de tudo o que se chama partido, facção, cabala, nunca
esperei nada de bom das pessoas que a eles pertencem. As
Comadres haviam já há algum tempo abandonado o seu antigo
domicilio, e tinham-se instalado mesmo ao lado de mim, de
maneira que do seu quarto se ouvia tudo o que se dizia no meu,
assim como no terraço, podendo-se muito fàcilmente escalar
do seu jardim o pequeno muro que o separava do meu torreão.
Eu havia feito deste o meu gabinete de trabalho, de maneira
que tinha nele uma mesa coberta de provas e de folhas do
Emílio e do Contrato social, e como ia brochando estas folhas
à medida que mas enviavam, conservava ali todos os meus
volumes antes de serem publicados. A minha leviandade, a
minha negligência, a minha confiança em Monsieur Mathas,
no j ardim do qual estava encerrado, faziam com que, esquecen­
do-me muitas vezes de fechar à noite o torreão, o encontrava de

,.-· 550
manhã completamente aberto, o que de maneira nenhuma me
teria inquietado, se não julgasse ter notado qualquer desarru­
mação nos meus papéis. Depois de bastantes vezes haver notado
a mesma coisa, tive mais cuidado em fechar o torreão. A fecha­
dura era má, a chave só dava meia volta. Tornando-me mais
atento, descobri ainda maior desarrumação do que quando dei­
xava tudo aberto. Por fim, um dos volumes eclipsou-se durante
um dia e duas noites, sem que me fosse possível apurar o que
tinha sido feito dele, até que, ao terceiro dia de manhã, o voltei
a encontrar em cima da mesa. Nem então nem nunca descon­
fiara de Monsieur Mathas, nem do sobrinho, pois sabia que
um e outr o me estimavam, e tinha neles toda a confiança.
Comecei a ter menos nas Comadres. Sabia que, embora j anse­
nistas, mantinham algumas relações com D'Alembert, habitando
na mesma casa.
Isto despertou-me certa inquietação, e tornou-me mais
vigilante. Recolhi os meus papéis ao meu quarto, e deixei de
todo de ver semelhantes indivíduos, sabendo, aliás, que eles
haviam feito em várias casas alarde do primeiro volume do
Emílio, que tivera a imprudência de lhes emprestar. Embora
continuassem meus vizinhos até eu partir, nunca mais desde
então comuniquei com eles.
O Contrato social apareceu um mês ou dois antes do Emtlio.
Rey, de quem eu exigira que não introduzisse furtivamente livro
algum meu em França, dirigiu-se aos magistrados a fim de
obter autorização para fazer entrar aquele por Ruão, man­
dando a encomenda por mar para ali. Não obteve resposta
alguma : os fardos permaneceram em Ruão durante bastantes
meses, ao cabo dos quais lhos reenviaram, depois de haverem
tentado confiscarem-nos; Rey, no entanto, fez tal barulho, que
lhos restituíram. Uns curiosos obtiveram de Amsterdão alguns
exemplares que circularam sem grande rumor. Mauléon, que
tinha ouvido falar nisso, e que havia mesmo visto algo, falou-me
do caso, num tom de mistério que me surpreendeu, e que me
teria inquietado até, se, seguro de estar a todos os respeitos em
regra e de nada ter que exprobrar-me, eu me tivesse tranqui­
lizado graças à minha grande máxima. Nem sequer duvidava
de que Monsieur de Choiseul, já bem disposto a meu respeito,
e sensível ao elogio que a minha estima por ele me havia levado
a fazer na obra, me protegesse nesta ocasião contra a malevo­
lência de Madame de Pompadour.
Tanto como sempre, tinha eu motivos para contar então
com as bondades de Monsieur de Luxemburgo, assim como

551
com o seu apoio, se necessário fosse; porque nunca ele me deu
provas mais frequentes, nem mais afectuosas, da sua amizade.
Como, na viagem de Páscoa, o meu estado me não permitisse
ir ao Castelo, nem um só dia deixou de me vir ver, e, por fim,
vendo-me sofrer sem descanso, tanto fez que me resolveu a ver
o irmão Cosme; mandou-o chamar, trouxe-mo ele mesmo, e
teve a coragem, certamente rara e meritória numa alta perso­
nagem, de permanecer em minha casa durante a operação. que
foi cruel e longa. Tratava-se porém apenas de ser sondado ;
mas nunca o havia podido ser, nem mesmo por Morand, que
o tentou algumas vezes, sempre sem resultado. O irmão Cosme,
que tinha habilidade e uma ligeireza de mão sem igual, conse­
guiu por fim introduzir uma pequeníssima algália, depois de
me fazer sofrer bastante para cima de duas horas, durante as
quais eu me esforcei por reter os gemidos, para não despedaçar
o coração sensível do bom Marechal. Ao primeiro exame, o irmão
Cosme julgou achar uma grande pedra, e disse-mo ; ao segundo,
j á a não achava. Tendo recomeçado segunda e terceira vez,
com um cuidado e uma precisão que me fizeram achar o tempo
compridissimo, declarou não haver pedra nenhuma, mas que a
próstata estava cirrosa e de um tamanho sobrenatural ; achou
a bexiga grande e em bom estado, e acabou por me declarar
que havia de sofrer muito, e que viveria muito tempo. Se o
segundo vaticínio se cumpre tanto como o primeiro, os meus
males estão longe de acabar.
Foi assim que depois de haver sido, durante tantos anos,
tratado sucessivamente de vinte males que não tinha, eu acabei
por saber que a minha doença, incurável, mas não mortal, dura­
ria tanto como eu. Sofreada por esta certeza, a minha imagi­
naçã o nunca mais me apresentou a perspectiva de uma morte
cruel com as dores do cálculo. Deixei de temer que um pedaço
de sonda, que há bastante tempo se havia quebrado na uretra,
me provocasse o mícleo de uma pedra. Liberto de males ima­
ginários, mais cruéis para mim do que os males reais, suportei
mais tranquilamente estes últimos. É indubitável que dessa
altura em diante sofri menos da minha doença do que ante­
riormente, e nunca me lembro de que devo este alívio a Mon­
sieur de Luxemburgo sem que novamente a sua memória me
não enterneça.
Regressando por assim dizer à vida, e mais do que nunca
ocupado com o plano mediante o qual queria passar o resto
dela, só esperava, para o executar, que o Emílio fosse publi­
cado. Pensava na Touraine, onde já tinha estado. e que muito

552
me agrada, tanto pela brandura do . clima, como pela dos
habitantes.

La terra molle e lieta e dilettosa


Simile a se l'habitator produce 1.

Tinha falado do meu projecto a Monsieur de Luxemburgo,,


que me quis dissuadir dele ; falei-lhe de novo como coisa assente.
Ele então propôs-me o castelo de Merlou, a quinze léguas de
Paris, como sendo um asilo que me poderia convir, e no qual um
e outro teriam prazer em instalar-me. Semelhante proposta co­
moveu-me e não me desagradou. Antes de mais nada, era mister
ver o local; assentámos no dia em que o senhor Marechal man­
daria o seu criado de quarto com uma carruagem, para ali me
levar. Nesse dia, achei-me muito incomodado ; foi preciso adiar
a partida, mas os contratempos que sobrevieram impediram-me
de a executar. Tendo sabido depois que a propriedade de Merlou
não era do senhor Marechal, mas sim da senhora Marechala,
consolei-me mais fàcilmente de para lá não ter ido.
O Emílio apareceu por fim, sem que eu voltasse a ouvir falar
de folhas adicionais, nem de dificuldade alguma. Antes da sua
publicação, o senhor Marechal reclamou de mim todas as cartas
de Monsieur de Malesherbes que diziam respeito à obra. A mi­
nha grande confiança em ambos, a minha profunda segurança,
impediram-me de reflectir no que havia de extraordinário e
mesmo de inquietante em tal pedido. Restituí as cartas, excepto
uma ou duas, que por descuido haviam ficado nuns livros. Algum
tempo antes, Monsieur de IM:alesherbes tinha-me indicado
que retiraria as cartas escritas por mim a Duchesne durante o
meu rebate a respeito do j esuítas, e deve-se confessar que tais
cartas não eram muito honrosas para a minha razão. Eu, no
entanto, dei-lhe a saber que em coisa alguma queria passar por
melhor do que era, e que podia deixar-lhe as cartas. Ignoro o
que Monsieur de Melesherbes fez.
A publicação do livro não produziu aquele fragor de aplau­
sos que se seguia à de todos os meus escritos. Nunca houve obra
que recebesse tantos elogios particulares, nem tão pouca apro­
vação pública. O que me disseram, o que me escreveram as pes­
soas mais capazes de a j ulgar trouxe-me a confirmação de que
se tratava do melhor e do mais importante dos meus escritos.

1 «A terra doce, alegre e deleitosa


.

Cria habitantes que a ela se assemelham.» - Torcato Tasso.

553
Tudo isto foi no entanto dito com as mais bizarras precauções,
como se conviesse guardar segredo sobre o bem que dele se pen­
sava. Madame de Boufflers, que me fez saber que o autor do
livro merecia estátuas e homenagens de todos os humanos, pe­
diu-me sem cerimónias, no fim do seu bilhete, que lhe devolvesse
este. D'Alembert, que me escreveu, dizendo-me que a obra deci­
dia da minha superioridade, e me devia colocar à cabeça de
todos os homens de letras, não assinou a sua carta, embora ti­
vesse assinado todas as que até então me escrevera. Duelos,
amigo certo, homem verdadeiro, mas circunspecto, e que tinha
em conta o livro, evitou falar-me nele por escrito ; La Conda­
mine atirou-se à Profissão de fé, e disparatou ; na sua carta,
Clairaut limitou-se ao mesmo trecho, mas não receou exprimir
a emoção que a sua leitura lhe causara, e assinalou-me, tex­
tualmente, que tal leitura lhe havia reanimado a sua velha
alma: de todos aqueles a quem enviei o livro, foi o único que
disse alto e bom som a toda a gente todo o bem que dele pensava.
Mathas, a quem também dera um exemplar antes do livro
se achar à venda, emprestou-o a Monsieur de Blaire, conselheiro
do Parlamento, pai do intendente de Estrasburgo. Monsieur de
Blaire possuía uma casa de campo em Saint-Gratien, e Monsieur
Mathas, seu antigo conhecido, ali o ia ver algumas vezes quando
podia. Fê-lo ler o Emílio antes que ele fosse publicado. Monsieur
de Blaire disse-lhe estas palavras textuais, que no mesmo dia
me foram referidas : «Monsieur Mathas, eis aqui um belissimo
livro, mas de que em breve se falará mais do que será de desejar
para o autor.» Quando ele me contou estas palavras, não pude
deixar de me rir, e nelas só vi a importância de um homem to­
gado, que de tudo faz mistério. Todas as conversas inquietantes
que até mim chegaram não me fizeram mais impressão, e, longe
de prever de maneira nenhuma a catástrofe que estava imi­
nente, convicto da utilidade, da beleza da minha obra, convicto
de estar em regra a todos os respeitos, convicto, como o cria, da
influência inteira de Madame de Luxemburgo e do favor do
ministério, aplaudia-me pelo partido que havia tomado de me
retirar no meio dos meus triunfos, e no momento em que aca­
bava de esmagar todos os que me invej avam.
Só uma coisa me alarmava na publicação do livro, e isto,
menos pela minha segurança do que por descargo do meu cora­
ção. Na Hermitage, em Montmorency tinha eu visto de perto e
com indignação os vexames que um cioso cuidado dos prazeres
dos príncipes leva a exercer nos infelizes camponeses, forçados
a sofrer os estragos que as caçadas fazem em seus campos. sem

554
ousarem defender-se senão à força de barulho, forçados a passar
as noites nos seus favais e nos seus ervilhais, com caldeiras,
tambores, campainhas, para afastar os j avalis. Testemunha da
dureza bárbara com que o senhor conde de Charolois fazia tra­
tar esta pobre gente, tinha eu, no Emílio, feito um ataque contra
tal crueldade. Outra infracção às minhas máximas, que não dei­
xou de ser punida. Soube que os oficiais do senhor príncipe de
Conti não procediam com menos dureza nas terras deste; receei
que o príncipe, por quem estava possuído de respeito e de reco­
nhecimento, tomasse para si o que a humanidade revoltada me
havia feito dizer com respeito a seu tio, e se considerasse ofen­
dido. No entanto, como a minha consciência me sossegava ple­
namente sobre este artigo, tranquilizei-me com o seu testemu­
nho, e fiz bem. Pelo menos, nunca soube que este grande prín­
cipe tivesse prestado a menor atenção ao passo, escrito muito
antes de ter a honra de o vir a conhecer.
Poucos dias antes do meu livro ser publicado, pois que me
recordo muito bem da altura, apareceu uma outra obra sobre o
mesmo assunto, tirada palavra a palavra do primeiro volume da
minha, afora algumas banalidades com que entremearam o
extracto. O livro levava o nome de um genebrino, chamado Bale­
xert ; e mostrava no titulo que havia ganho o prémio da Acade­
mia de Harlem. Compreendi fàcilmente que tanto a Academia
como o prémio eram uma criação recentíssima, para chamar
a atenção do público sobre o plagiato ; mas vi igualmente que
havia nisto qualquer intriga anterior, de que nada compreendia ;
quer graças à comunicação do meu manuscrito, sem o que o
roubo não poderia ter sido feito; quer para estabelecer a histó­
ria do pretenso prémio, ao qual necessário se tornara dar qual­
quer fundamento. Só bastantes anos mais tarde é que, por uma
palavra escapada a D'Ivernois, eu penetrei no mistério e entrevi
os que haviam posto em acção o cavalheiro Balexert.
Começavam a ouvir-se os surdos bramidos que precedem a
tempestade, e todas as pessoas um pouco penetrantes viram bem
que a respeito de mim e do meu livro se estava incubando qual­
quer conspiração que não tardaria a estalar. Por mim, a minha
segurança, a minha estupidez foram tais, que, longe de prever
a minha desgraça, nem sequer suspeitei da sua causa, depois de
lhe haver sentido os efeitos. Começaram por espalhar com bas­
tante habilidade que, exercendo-se sevícias contra os j esuítas,
se não podia mostrar uma indulgência parcial pelos livros e os
autores que atacavam a religião. Censuravam-me ter posto o
meu nome no Emílio, como se eu o não houvesse p osto em todos

555
os meus outros escritos, a respeito dos quais nada tinham dito.
Parecia temerem ver-se forçados a algumas diligências que
com repugnância fariam, mas que as circunstâncias tornavam
necessárias, e a que a minha imprudência tinha dado ocasião.
Tais boatos chegaram ao meu conhecimento e nada me inquie­
taram : nem sequer me veio à ideia que em todo este negócio
pudesse haver a menor coisa que pessoalmente me dissesse
respeito, a mim, que me sentia tão perfeitamente isento de
censura, tão bem apoiado, tão completamente em regra a todos
os respeitos, não receando que Madame de Luxemburgo me
deixasse em apuros, em virtude de uma falta que, a existir, era
de sua inteira responsabilidade. Mas sabendo como em tais
casos as coisas se passam, e que é de uso exercer represálias
sobre os livreiros, poupando os autores, não deixava de me
inquietar por Duchesne, se Monsieur de Malesherbes o viesse
a abandonar.
Conservei-me tranquilo. Os boatos aumentaram, e em breve
mudaram de tom. O público, e sobretudo o Parlamento, parecia
irritar-se com a minha tranquilidade. Ao fim de alguns dias
a agitação tornou-se terrível, e, mudando de objecto, as ameaças
dirigiam-se directamente para mim. Claramente se ouvia dizer
aos parlamentares que não se ganharia nada em queimar os
livros, e que era necessário queimar os autores. Quanto aos
livreiros, nada se dizia. A primeira vez que estas conversas, mais
dignas de um inquisidor de Goa que de um senador, me chega­
ram aos ouvidos, não duvidei se tratasse de uma invencionice
dos holbachianos para tratarem de me aterrorizar e me obri­
garem a fugir. Ri com a infantil artimanha, e, troçando deles,
dizia para comigo que, tivessem eles sabido a verdade das
coisas, teriam buscado outro qualquer meio para me meter
medo; contudo, os boatos tornaram-se por fim de tal ordem,
que se viu ser a coisa a valer. Monsieur e Madame de Luxem­
burgo haviam nesse ano antecipado a sua viagem a Montmo­
rency, de sorte que já aqui se achavam no começo de Junho.
Ouvi falar muito pouco no Castelo dos meus novos livros, apesar
do barulho que eles faziam em Paris, e os donos da casa então
nada absolutamente me diziam. Contudo, uma manhã em que
me encontrava só com Monsieur de Luxemburgo, diz-me este :
Disseste vós mal de Monsieur de Choiseul no Contrato social?
Eu? foi a minha resposta, recuando surpreendido, não, posso
jurá-lo; ao contrário, teci-lhe, com uma pena que não é louva­
minheira, o mais belo elogio que ainda ministro algum recebeu.
E imediatamente lhe referi o passo. E no Emtlio? , continuou ele.

556
Nem uma palavra, respondi eu ; não há nele uma só palavra
que lhe diga respeito. Ah ! disse Monsieur de Luxemburgo, com
mais vivacidade que de costume, era necessário haver feito a
mesma coisa no outro livro, ou então ser mais claro ! Julgava
que o tinha sido, acrescentei eu ; estimava-o bastante para
isso. Monsieur de Luxemburgo ia a retomar a palavra ; vi-o
prestes a abrir-se ; conteve-se e calou-se. Infeliz politica de
cortesão, que nos melhores corações domina a própria amizade !
Embora curta, a conversa esclareceu-me sobre a minha
situação, ao menos de certo ponto de vista, e levou-me a com­
preender que era na verdade a mim que se atiravam. Deplorei
a inaudita fatalidade, que virava contra mim tudo quanto de
bem eu dizia e fazia. Sentindo, porém, que neste negócio tinha
por escudos a Madame de Luxemburgo e a Monsieur de
Malesherbes, não via como se poderiam haver para os afastar
e chegar até mim : e, de resto, eu desde logo percebi perfeita­
mente que não mais se trataria de equidade nem de justiça, e
que não escrupulizariam em examinar se eu realmente andara
mal ou não. No entretanto, a tempestade reboava cada vez
mais. Nem mesmo Néaulme, na prolixidade da sua tagarelice,
deixava de se me mostrar pesaroso por se ter ocupado com a
obra, e de entremostrar a certeza em que parecia estar a respeito
da sorte que ameaçava o livro e o autor. Havia todavia uma
coisa que continuava a tranquilizar-me : via Madame de Luxem­
burgo tão calma, tão contente, mesmo tão risonha, que forçoso
era que ela estivesse segura de si, para não ter a menor inquie­
tação a meu respeito, para não me dizer uma só palavra de
comiseração nem de escusa, para ver a marcha que o negócio
tomava com tanto sangue-frio como se não se tivesse metido
nele, e como se não tivesse mostrado por mim o menor interesse.
O que me surpreendia era ela não me dizer absolutamente nada ;
parecia-me que devia dizer-me qualquer coisa. Madame de
Boufflers parecia menos tranquila. Ia e vinha com um ar agi­
tado, desenvolvendo muita actividade, e garantindo-me que
também o senhor príncipe de Conti desenvolvia bastante para
aparar o golpe que me haviam preparado, e que ela continuava
a atribuir às circunstâncias presentes, nas quais convinha a o
Parlamento não se deixar acusar pelos j esuítas de indiferença
em matéria de religião. Parecia porém contar pouco com as dili­
gências do príncipe e com as suas. Todas as suas conversas,
mais alarmantes que tranquilizadoras, tendiam a convencer-me
que fugisse, aconselhando-me sempre a Inglaterra, onde me
oferecia muitos amigos, entre os quais o célebre Rume, que já

557
era amigo dela há muito tempo. Vendo que eu teimava em
ficar quedo, Madame de Boufflers tomou um rodeio mais capaz
de me abalar. Deu-me a entender que se eu fosse preso e inter­
rogado, ver-me-ia n a necessidade de ter que falar de Madame de
Luxemburgo, e que a amizade desta por mim merecia bem que
eu me não expusesse a comprometê-la. Respondi-lhe que nesse
caso Madame de Luxemburgo podia ficar tranquila, e que eu
a não comprometeria. Madame de Boufflers redarguiu-me que
tal resolução era mais fácil de tomar que de executar, no que
tinha razão, sobretudo quanto a mim, bem decidido a nunca ser
'
perjuro nem a mentir diante dos juízes, por muito arriscado
que fosse dizer a verdade.
Vendo que semelhante reflexão me tinha razoàvelmente
impressionado, sem que eu no entanto pudesse resolver-me a
fugir, falou-me ela da Bastilha por algumas semanas, como
de um meio de me subtrair à j urisdição do Parlamento, o qual
não se preocupa com os prisioneiros do Estado. Nada opus a
esta singular graça, logo que ela não fosse solicitada em meu
nome. Como Madame de Boufflers não voltou a falar no caso,
j ulguei posteriormente que ela só me tinha proposto tal ideia
para me sondar, e que nada tinham querido de um expediente
que acabaria com tudo.
Alguns dias depois, o senhor Marechal recebeu do cura de
Deuil, amigo de Grimm e de Madame d'Épinay, um a carta com
o aviso, que ele dizia ter obtido de boa fonte, de que o Parla­
mento devia proceder contra mim com a mais rigorosa severi­
dade, e que em determinado dia, que ele assinalava, seria decre­
tado contra mim um mandado de prisão. Supus o aviso da
lavra holbachiana ; sabia que o Parlamento dava muita atenção
às formalidades, e que seria infringi-las a todas começar nesta
ocasião por decretar um mandado de prisão antes de saber
j uridicamente se eu reconhecia o livro, e se era realmente eu o
seu autor. Só os crimes contra a segurança pública podem, por
um simples indício, levar a decretar um mandado de prisão,
no receio de que os criminosos escapem ao castigo, dizia eu a
Madame de Boufflers. Quando porém se quer punir um delito
como o meu, o qual merece honras e recompensas, procede-se
contra o livro, evitando-se enquanto se pode atacar o autor.
A isto opôs-me ela uma distinção subtil, que eu esqueci, para
me provar que era por favor que decretavam contra mim um
mandado de prisão, em vez de me citarem para ser ouvido. No
dia seguinte recebi uma carta de Guy, em que me comunicava
que, tendo ido nesse mesmo dia a casa do senhor Procurador-

558
-Régio, tinha visto em cima da sua secretária o borrão de
v.m requisitório contra o Emílio e o seu autor. Note-se que
o dito Guy era sócio de Duchesne, que havia imprimido a obra,
e o qual, muito tranquilo a seu respeito, tinha a caridade de
mandar este aviso ao autor. Imagine-se como tudo isto me
pareceu crível ! Era tão simples, tão natural que um livreiro,
admitido a uma audiência do Procurador-Régio, lesse tranqui­
lamente os manuscritos e os borrões espalhados na secretária
do magistrado ! Madame de Boufflers e outras pessoas confir­
maram-me a mesma coisa. Pelas absurdidades com que cons­
tantemente me serrazinavam, estava tentado a crer que toda
a gente havia endoidecido.
Percebendo perfeitamente que debaixo de tudo isto havia
um mistério que me não queriam revelar, esperava tranquila­
mente o acontecimento, confiando-me na minha inteireza e na
minha , inocência em todo este negócio, e felicíssim o por ser
chamado à hgnra de sofrer pela verdade, fosse qual fosse a
perseguição que me esperaria. Longe de nada recear e de me
conservar escondido, ia todos os dias ao castelo, e todas as
tardes dava o meu habitual passeio. A 8 de Junho, véspera
do decreto, dei-o na companhia de dois professores oratorianos,
o P.e Alamanni e o P.e Mandard. Levámos para Champeaux uma
merendazinha que comemos com grande apetite. Esquecêramo­
-nos dos copos : substituímo-los por uns cálamos de centeio, com
os quais aspirámos o vinho da garrafa, porfiando em escolher
tubos bem grossos, para ver qual de nós bebia mais. Nunca na
minha vida me achei tão alegre.
Já contei como quando era novo perdi o sono. Desde então
tinha-me habituado a ler todas as noites na cama, até sentir
os olhos fecharem-se-me. Apagava então a vela, e diligenciava
pegar no sono alguns instantes, que não duravam muito. Ordi­
nàriamente a minha leitura nocturna era a Bíblia, e Ii-a por
inteiro desta maneira pelo menos cinco ou seis vezes de seguida.
Como nessa noite me encontrasse mais espertinado que de
costume, prolonguei mais tempo a leitura, e li por inteiro o
livro que termina pelo Levita de Efraim, e que, se me não
engano, é o livro dos Juizes; porquanto a não revi depois disso.
Esta história impressionou-me muito, e meditava nela numa
espécie de sonho, quando de repente fui desperto por um baru­
lho e uma luz. Trazia-a Teresa, para alumiar Monsieur la Roche,
o qual, vendo-me soerguer-me bruscamente na cama, me disse :
Não vos alarmeis ; é da parte da senhora Marechala, que vos
escreve e vos envia uma carta do senhor príncipe de Conti.

559
Com efeito, na carta de rMadame de Luxemburgo encontrei
a que um próprio enviado pelo príncipe acabava de lhe trazer,
e em que a avisava que, apesar de todos os seus esforços, esta­
vam resolvidos a proceder contra mim com todo o rigor. A agi­
tação, acrescentava ele, é extrema; nada pode obviar ao golp e ;
a corte exige-o, o Parlamento quere-o ; à s sete d a manhã será
decretado contra ele o mandado de prisão, e imediatamente o
mandarão prender ; consegui que o não perseguissem se ele
se afastar ; contudo, se persiste em deixar-se apanhar, será
preso. La Roche conjurou-me, da parte da senhora Marechala
a que me levantasse e fosse conferenciar com ela. Eram duas
horas ; a senhora Marechala acabava de se deitar. Espera-vos,
acrescentou ele, e não quer adormecer sem vos haver visto.
Vesti-me à pressa, e corri ao castelo.
Madame de Luxemburgo pareceu-me pela primeira vez
agitada. A sua inquietação comoveu-me. Neste momento de
surpresa, a meio da noite, eu próprio me não achava isento
de emoção : mas ao vê-la, esqueci-me de mim mesmo para só
pensar nela e no triste papel que ela ia desempenhar, se eu
me deixasse agarrar : porquanto, sentindo em mim bastante
coragem para não dizer nunca senão a verdade, ainda que esta
me prejudicasse e me perdesse, nã o me sentia com suficiente
habilidade, nem porventura com suficiente coragem para evitar
ccmprometiê -la, caso fosse vivamente apertado. Isto me fez
sacrificar a minha glória à sua tranquilidade, a fazer por ela,
nesta ocasião, o que ninguém me levaria a fazer por mim.
Logo que a minha resolução foi tomada, comuniquei-lha, visto
não querer corromper o preço do meu sacrifício fa21endo-lho
comprar. Estou certo de que os meus motivos não deviam tê-la
enganado ; no entanto, nem uma só palavra me disse que deno­
tasse terem-lhe sido sensíveis. Essa indiferença magoou-me,
a ponto de vacilar sobre se devia retractar-me : o senhor Mare­
chal apareceu, porém ; alguns momentos depois, Madame de
Boufflers chegou de Paris. Fizeram o que Madame de Luxem­
burgo devia ter feito. Deixei-me cativar ; tive vergonha de me
desdizer, e não se tratou doutra coisa que não fosse o meu lugar
de refúgio e a ocasião em que devia partir. Monsieur de Luxem­
burgo propôs-me que ficasse alguns dias sob incógnito em sua
casa, para mais à vontade deliberar e tomar as minhas medidas ;
não lhe dei o meu assentimento, como não o dei à proposta de
ir em segredo ao Templo. Teimei em querer partir nesse mesmo
dia, de preferência a ficar escondido onde quer que fosse.

560
Compreendendo que tinha no reino inimigos secretos e pode­
rosos, pensei que, apesar da minha afeição pela França, devia
daqui sair para garantir a minha tranquilidade. O meu primeiro
impulso foi de me retirar para Genebra; um instante de
reflexão bastou porém para me dissuadir de cometer semelhante
tolice. Sabia que o ministério francês, mais poderoso ainda em
Genebra do que em Paris, não me deixaria mais sossegado numa
destas cidades do que na outra, logo que tinha resolvido ator­
mentar-me. Sabia que o Discurso sobre a desigualdade havia
excitado contra mim, no Conselho, um ódio tanto mais perigoso
quanto este não ousava manifestá-lo. Sabia que, quando a
Nova Heloísa aparecera, ele se tinha à última hora esforçado
por defendê-la, a pedido do doutor Tronchin; mas que, vendo
que ninguém o imitava, nem sequer em Paris, teve vergonha de
semelhante leviandade, e retirou a defesa. Não duvidava de que,
achando agora ocasião mais favorável, se empenhasse grande­
mente em aproveitá-la. Eu sabia que, apesar de todas as caras
bonitas que me faziam, reinava contra mim, em todos os corações
genebrinos, uma secreta inveja, que só esperava o momento de
se cevar. Não obstante, o amor da pátria chamava-me à minha,
e se pudesse gabar-me de aí viver em paz, não teria hesitado:
mas como nem a honra nem a razão me permitiam que ali me
acolhesse como fugitivo, tomei o partido de me aproximar
apenas dela, esperando na !Suíça o que a meu respeito tomariam
em Genebra. Em breve se verá que esta incerteza não durou
muito tempo.
Madame de Boufflers desaprovou fortemente esta resolução,
e fez novos esforços para me convencer a passar a Inglaterra.
Não me demoveu. Nunca amei a Inglaterra nem os ingleses, e
longe de vencer a minha repugnância, toda a eloquência de
Madame de Boufflers parecia aumentá-la, sem que eu soubesse
porquê.
Decidido a partir no mesmo dia, logo de manhã tinha par­
tido para toda a gente, e La Roche, por quem mandei buscar
os meus papéis, não quis dizer à própria Teresa se eu havia
partido ou não. Desde que r e solvera escrever um dia as minhas
memórias, havia acumulado muitas cartas e outros papéis, de
sorte que foi necessário fazer várias idas a minha casa. Pus
de lado uma parte destes papéis já extremados, e ocupei-me o
resto da manhã a extremar os outros, com o fim de só levar
o que me poderia ser útil, e queimar o resto. Monsieur de
Luxemburgo quis ter a amabilidade de me auxiliar neste tra­
balho, o qual se achou ser tão demorado que o não pudemos

36 561
terminar naquela manhã, e eu não tive tempo para queimar
coisa nenhuma. O senhor Marechal ofereceu-se-me para acabar
o resto da escolha, para queimar ele mesmo o refugo, sem se
ater a quem quer que fosse, enviando-me tudo o que houvesse
posto de lado. Aceitei o oferecimento, muito contente por me
libertar desta preocupação, e poder passar as poucas horas que
me restavam com pessoas tão estimadas, que ia abandonar para
sempre. Guardou a chave do quarto em que eu deixava os
papéis, e, cedendo aos meus instantes rogos, mandou chamar
a minha pobre tia, que se consumia em mortal perplexidade
a respeito do que havia sido feito de mim, e do que ia ser
dela, esperando a todo o momento os beleguins, sem saber como
proceder e que responder-lhes. La Rache conduziu-a ao castelo,
sem nada lhe dizer; ela julgava-me já bastante longe: ao
avistar-me, atroou os ares com os seus gritos, e precipitou-se-me
nos braços. ó amizade, correspondência dos corações, hábito,
intimidade! Neste doce e cruel momento juntaram-se tantos
dias de felicidade, de ternura e de paz, passados juntos, para
melhor me fazerem sentir o dilaceramento de uma primeira
separação, depois de durante dezassete anos mal nos havermos
perdido de vista um só dia. Testemunha do nosso abraço, o
Marechal não pôde reter as lágrimas. Deixou-nos. Teresa não
queria abandonar-me. Fiz-lhe ver os inconvenientes de me
seguir neste momento, e a necessidade que havia em ela ficar
para liquidar as minhas coisas e receber o dinheiro. Quando
se decreta contra um homem um mandado de prisão, é de uso
arrestar-lhe os papéis, selar-lhe os bens, ou inventariá-los, ou
nomear um depositário. Necessário era que Teresa ficasse para
vigiar o que se passaria, e de tudo tirar o melhor partido possí­
vel. Prometi-lhe que dentro em breve viria ter comigo: o senhor
Marechal confirmou a minha promessa; mas nunca quis dizer­
-lhe para onde ia, a fim de que, interrogada por quem viesse
prender-me, pudesse com verdade protestar a sua ignorância
neste artigo. Ao abraçá-la no momento de nos deixarmos, senti
em mim mesmo um movimento extraordinarissimo, e, num
arrebatamento, ai! por de mais profético, disse-lhe: Minha filha,
precisas armar-te de coragem. Participaste da prosperidade dos
meus dias felizes; pois que assim o queres, resta-te participar
das minhas misérias. Não esperes mais que afrontas e calami­
dades no meu rasto. A sorte que neste triste dia começa para
mim perseguir-me-á até à minha última hora.
Nada mais me restava do, que pensar na partida. Os bele­
guins deviam ter vindo às dez horas. Eram quatro da tarde

562
quando parti, e eles ainda não tinham chegado. Tinha-se resol­
vido que tomaria a posta. Eu não tinha cadeirinha. o senhor
Marechal presenteou-me com um cabriolé, e emprestou-me
cavalos e um postilhão até à primeira posta, onde, graças às
medidas que havia tomado, nenhuma dificuldade puseram em
me fornecer cavalos.
Como não tinha jantado à mesa, e não me havia mostrado
no castelo, as senhoras vieram dizer-me adeus à sobreloja,
onde tinha passado o dia. A senhora Marechala abraçou-me
por várias vezes com um ar muito triste; eu, porém, já não
sentia nos seus abraços o estreitamento daqueles que há dois
ou três anos ela me havia prodigalizado. Também Madame
de Boufflers me abraçou, dizendo-me coisas excelentíssimas.
o abraço que mais me surpreendeu foi o de Madame de Mire­
poix, que também lá se encontrava. A senhora Marechala de
Mirepoix é uma pessoa extremamente fria, composta e reser­
vada, e não me parece inteiramente isenta da altivez natural
na casa de Lorena. Nunca me tinha prestado muita atenção.
Quer porque, lisonjeado por uma honra que não esperava, eu
procurasse aumentar-lhe o preço, quer porque, com efeito, ela
tivesse posto no seu abraço um pouco daquela comiseração natu­
ral nos corações generosos, o eerto é que achei no seu movi­
mento e no seu olhar não sei quê de enérgico que me penetrou.
Pensando depois frequentemente no caso, suspeitei que, como
não desconhecia a sorte a que estava condenado, Madame de
Mirepoix não tinha podido defender-se de se enternecer um
instante a respeito do meu destino.
O senhor Marechal não abria a boca; estava pálido como
um morto. Quis absolutamente acompanhar-me até à cadei­
rinha que me esperava junto do bebedoiro dos animais. Atraves­
sámos todo o jardim sem dizer palavra. Eu tinha uma chave
do parque, da qual me servi para abrir a porta; depois do que,
em vez de a meter na algibeira, lha entreguei sem nada dizer.
Ele agarrou na chave com uma vivacidade surpreendente, coisa
em que não pude deixar de pensar frequentemente desde então.
Nunca tive na minha vida momento mais amargo do que o desta
separação. O nosso abraço foi longo e mudo: ambos sentimos
que tal abraço era um derradeiro adeus.
Entre La Barre e Montmorency, encontrei num carro de
aluguel quatro homens de preto, que me saudaram sorrindo.
Pelo que mais tarde Teresa me contou a respeito da figura dos
beleguins, da hora a que chegaram, e da maneira como se com­
portaram, não tive dúvidas de que se tratava deles; sobretudo,

563
por ter sabido depois que, em vez de me terem pronunciado
às sete horas, conforme me haviam comunicado, só o fizeram
ao meio-dia. Foi necessário atravessar Paris inteiramente. Num
cabriolé completamente aberto ninguém se acha lá muito bem
escondido. Vi na rua muitas pessoas que me cumprimentaram
com um ar de conhecidos, mas eu não reconheci ninguém.
Na mesma noite torci caminho para passar por Villeroy. Em
Lyon, os correios devem ser levados ao comandante. Tal coisa
podia constituir embaraço para um homem que não queria nem
mentir nem mudar de nome. Com uma carta de Madame de
Luxemburgo, fui rogar a Monsieur de Villeroy conseguisse fazer
com que me isentassem de semelhante obrigação. Monsieur de
Villeroy deu-me uma carta, que não cheguei a utilizar, visto
não ter passado por Lyon. Tal carta permanece ainda lacrada
entre os meus papéis. O senhor duque instou bastante comigo
para que eu dormisse em Villeroy; preferi porém retomar a
estrada principal, e no mesmo dia fiz ainda duas mudas.
A minha cadeirinha era dura, e eu achava-me muito
incomodado para poder fazer grandes jornadas. Não tinha aliás
um ar suficientemente importante para conseguir que me ser­
vissem bem, e sabido é que em França os cavalos de posta só
sentem a chibata nas costas do postilhãô. Pagando à larga aos
guias, julguei remediar à sua catadura e aos seus ditos; foi
pior ainda. Tomaram-me por um ninguém, que viajava por
encargo, e que pela primeira vez na vida andava de posta.
A partir desse momento só me deram pilecas, e tornei-me o
joguete dos postilhões. Acabei, como deveria ter começado, por
ganhar paciência, nada dizer e seguir como lhes aprouve.
Tinha maneira de não me aborrecer no caminho, entre­
gando-me às reflexões que se apresentavam sobre tudo o que
acabava de me suceder; cont udo , tal coisa não estava no feitio
do meu espírito, nem no pendor do meu coração. É surpreen­
dente a facilidade com que me esqueço do mal passado, por
muito recente que este possa ser. Tanto quanto prevê-lo me
horroriza e me perturba, enquanto o avisto no futuro, assim o
recordo fracamente e ele se desvanece sem custo logo que me
cai em cima. A minha cruel imaginação, que incessantemente
se atormenta prevendo os males que ainda não existem, distrai
a minha memória, e impede-me que me lembre dos que já
passaram. Contra o que está feito, já não há precauções a
tomar, e é inútil preocuparmo-nos com semelhante coisa. De
certo modo, esgoto de antemão a minha desdita; quanto mais
sofri ao prevê-la, mais facilidade tenho em esquecê-la; ao passo

564
que, ao invés, constantemente ocupado com a minha felicidade
passada, recordo-a e rumino-a, por assim dizer, ao ponto de
gozá-la de novo quando quero. Sinto ser a esta feliz disposição
que devo nunca ter conhecido aquele humor rancoroso que
fermenta num coração vindicativo, graças à permanente recor­
dação das ofensas recebidas, e o qual o atormenta a ele pró­
prio com todo o mal que quereria fazer ao seu inimigo. Natu­
ralmente exaltado, senti a cólerll,, a fúria até dos primeiros
momentos; nunca contudo qualquer desejo de vingança enraizou
dentro de mim. Ocupo-me muito pouco com a ofensa, para me
ocupar algo com o ofensor. Não penso no mal que dele recebi
senão em virtude daquele que posso ainda receber, e, estivesse
eu certo de que nenhum mais me faria, imediatamente esque­
ceria o que me fez. Pregam-nos com insistência o perdão das
ofensas : é isso sem dúvida uma bela virtude, mas que eu não
posso utilizar. Ignoro se o meu coração poderia dominar o seu
ódio, porquanto nunca ele o sentiu, e penso muito pouco nos
meus inimigos para ter o mérito de lhes perdoar. Para me ator­
mentarem, não direi a que ponto eles próprios se atormentam.
Estou à sua mercê, têm toda a força, e usam dela. Só uma coisa
há acima do seu poder, e onde eu os desafio: é forçarem-me a
atormentar-me por sua causa, ao atormentarem-se por minha.
Logo no dia imediato ao da minha partida, esqueci tão com­
pletamente tudo o que acabava de se passar: o Parlamento, e
Madame de Pompadour, e Monsieur de Choiseul, e Grimm, e
D'Alembert, e as suas conspirações, e os seus cúmplices, que,
não fossem as precauções que era obrigado a tomar, nem sequer
neles teria voltado a pensar durante toda a viagem. Em vez
de tudo isto, a recordação que me veio à memória foi a da
minha última leitura, na véspera de partir. Recordei-me igual­
mente dos Idílios de Gessner, que o seu tradutor, Hubner, me
havia enviado há algum tempo. Estas duas ideias ocorreram-me
com tal força, e associaram-se de tal maneira no meu espírito,
que quis tentar reuni-las, tratando à maneira de Gessner o tema
do Levita de Ejraim. !Semelhante estilo bucólico e ingénuo não
parecia de maneira nenhuma próprio para um tão cruel assunto,
e de maneira nenhuma se poderia presumir que a minha pre­
sente situação me fornecesse ideias muitos risonhas para o
animar. Contudo, tentei a coisa, apenas para me divertir sen­
tado na minha cadeirinha, e sem esperança alguma de ser bem
sucedido. Mal comecei a experiência, fiquei admirado com a
amenidade das minhas ideias, e com a facilidade que sentia em
traduzi-las. Em três dias, escrevi os treze primeiros cantos

565
deste poemeto, que depois terminei em Motiers, e tenho a cer­
teza de nunca ter feito na minha vida nada onde reine uma
doçura de costumes tão enternecedora, um colorido tão fresco,
pinturas tão ingénuas, um ambiente tão exacto, uma tão antiga
simplicidade em tudo, e tudo isto apesar do horror do assunto,
que no fundo é abominável; de sorte que, além de tudo o resto,
tive ainda o mérito da dificuldade vencida. Se o Levita de
Ejraim não é a minha melhor obra, será sempre a mais querida.
Nunca a reli, nunca a hei-de reler sem sentir o aplauso interior
de um coração sem fel, que, longe de se azedar com os seus
infortúnios, ,deles se consola consigo mesmo, e acha em si com
que compensá-los. Agarrem em todos aqueles grandes filósofos,
tão superiores nos seus livros à adversidade que nunca expe­
rimentaram; ponham-nos numa situação idêntica à minha, e,
na primeira indignação da honra ultrajada, dêem-lhes a escre­
ver uma obra semelhante: ver-se-á como eles se saem dela.
Ao partir de Montmorency para a Suíça, tinha tomado a
resolução de parar em Yverdun, em casa do meu bom e velho
amigo Monsieur Roguin, que ali vivia retirado há alguns anos,
e que já me havia mesmo convidado a ir visitá-lo. No caminho
soube que por Lyon me desviava de Yverdun; o que me evitou
de por aqui passar. Em compensação, era mister passar por
Besançon, praça de guerra, e por conseguinte sujeita ao mesmo
inconveniente. Pensei torcer caminho, e passar por Salins, a pre­
texto de ir visitar IMonsieur de Miran, sobrinho de Monsieur
Dupin, que estava empregado nas salinas, e que noutros tempos
me tinha convidado insistentemente para ir vê-lo. O expediente
deu resultado; não encontrei Monsieur de Miran: muito con­
tente por me dispensar de parar, continuei o meu caminho sem
que ninguém me dissesse nada.
Ao penetrar em território de Berna; mandei parar; desci,
prosternei-me, abracei, beijei a terra, e exclamei entusiasmado:
Céu! protector da virtude, eu te louvo, aporto a uma terra de
liberdade! É assim que sempre cego e confiante nas minhas
esperanças, eu me apaixonei pelo que devia causar a minha
infelicidade. Surpreso, o meu postilhão julgou-me louco; tor­
nei a subir para a cadeirinha, e poucas horas depois tive a
alegria tão pura quão viva de me sentir apertado nos braços
do respeitável Roguin. Oh! respiremos alguns momentos em
casa deste digno hospedeiro! Tenho necessidade de ganhar aqui
novamente coragem e força; em breve encontrarei em que
empregá-Ias.

566
Não é sem razão que, no relato que acabo de fazer, me
alarguei a respeito de todas as circunstâncias de que pude
lembrar-me. Embora não pareçam muito luminosas, uma vez
que se tenha o fio da trama podem esclarecer a sua marcha,
e, por exemplo, sem dar a ideia primeira do problema que vou
propor, ajudam bastante a resolvê-lo.
Suponho que, para a execução da conspiração de que era
objecto, o meu afastamento fosse absolutamente necessário,
para a levar a efeito tudo se devia passar pouco mais ou menos
como se passou; no entanto, se eu me não tivesse deixado assus­
tar e inquietar com a embaixada nocturna de Madame de
Luxemburgo e com os seus alarmes, e tivesse continuado a man­
ter-me firme como de começo, e em vez de ter ficado no castelo
tivesse voltado para o meu leito a dormir tranquilamente o
sono da manhãzinha, teriam na mesma decretado contra mim
a prisão? Grande questão, da qual depende a solução de muitas
outras, e para cujo exame não é inútil reparar nas horas do
decreto cominatório e do decreto real. Exemplo grosseiro, mas
sensível, da importância dos mínimos pormenores na exposição
dos factos a que se procuram as causas secretas, para as des­
cobrir por indução.

567
LIVRO DÉCIMO SEGUNDO

A
QUI começa a obra de trevas em que, há oito anos, me
acho mergulhado, sem que, por mais que houvesse feito,
tenha podido rasgar-lhe a terrível obscuridade. No
abismo dos males em que me acho submerso, sinto o insulto
dos golpes que me são desferidos, distingo-lhes o instrumento
imediato; mas não posso ver nem a mão que o dirige, nem
os meios que esta põe em acção. o opróbrio e as desgraças caem
'
sobre mim como que por sua própria iniciativa, e sem o parecer.
Quando o meu coração alanceado solta os seus gemidos, tenho
o aspecto de um homem que se lamenta sem razão, e os autores
da minha ruína acharam a arte inconcebível de tornar o público
cúmplice da sua conspiração, sem ele mesmo dar por isso, e
sem lhe aperceber os efeitos. Ao narrar pois os acontecimentos
que me dizem respeito, os tratos que sofri, e tudo o que me
aconteceu, é-me impossível remontar à mão motora, e deter­
minar as causas, contando os factos. Estas causas primitivas
acham-se todas assinaladas nos três livros precedentes; todos
os interesses a mim relativos, todos os motivos secretos neles
são expostos. !Dizer porém como estas diversas causas se com­
binam para operar os estranhos acontecimentos da minha vida,
eis o que me é impossível explicar, mesmo por conjecturas. Se
entre os meus leitores se encontram alguns suficientemente
generosos para querer aprofundar estes mistérios e descobrir a
verdade, que eles releiam cuidadosamente os três livros prece­
dentes; tomem depois, a cada facto que lerem nos seguintes, as
informações que estiveram ao seu alcance, remontem de intriga
em intriga e de agente em agente até às primeiras causas de
tudo, eu sei de certeza o termo em que pararão as suas investi­
gações; perco-me, contudo, na senda tortuosa e obscura dos
subterrâneos que a esse termo os conduzirão.
Durante a minha permanência em Yverdun, travei conhe­
cimento com toda a familia de iMonsieur Roguin, e, entre
outras pessoas, com a sobrinha, Madame Boy de la Tour e as

569
filhas, cujo pai conhecera noutros tempos em Lyon, como julgo
havê-lo dito. Tinha ela vindo a Yverdun ver o tio e os irmãos;
a filha mais velha, de cerca de quinze anos de idade, encan­
tou-me com o seu grande senso e o seu excelente carácter.
Liguei-me pela mais terna amizade à mãe e à filha. Esta estava
destinada por a.vronsieur IRoguin ao sobrinho coronel, j á de certa
idade, e que também me testemunhava a maior afeição; no
entanto, se bem que este casamento apaixonasse o tio, fosse
também grandemente desejado pelo sobrinho, e a satisfação
de um e outro me causasse um vivíssimo interesse, a grande
desproporção das idades e a extrema repugnância da menina
levaram-me a pôr-me ao lado da mãe para evitá-lo, e o casa­
mento não se realizou. O coronel casou depois com 'Mademoiselle
Dilan, sua parenta, de um carácter e de uma beleza muito a meu
contento, e que o tornou o mais feliz dos maridos e dos pais.
Apesar disto, Monsieur Roguin não pôde esquecer ter eu nesta
ocasião contrariado os seus desej os. Consolei-me com a certeza
de ter cumprido, tanto para com ele, como para com !-\ família,
o dever da mais santa amizade, a qual não está em nos tornar­
mos sempre agradáveis, mas em aconselhar sempre pelo mP.lhor.
Não permaneci muito tempo na dúvida sobre o acolhlmento
que me esperava em Genebra, no caso em que tivesse o desejo
de lá voltar. O meu livro foi ali queimado, e decretada contra
mim a prisão a 18 de Junho, isto é, nove dias depois de havê-lo
sido em Paris. Neste segundo decreto acumulavam-se tantas e
tão incríveis absurdidades, e o Édito Eclesiástico era nele tão
formalmente violado, que recusei dar crédito às primeiras noti­
cias que me chegaram, e temi, quando elas se acharam perfei­
tamente confirmadas, que uma tão manifesta e revoltante
infracção de todas as leis, a começar pela do bom senso, pusesse
Genebra em estado de sítio. Pude serenar; tudo permaneceu
tranquilo. Se a populaça estremeceu a qualquer rumor, foi ape­
nas contra mim, e publicamente fui tratado por todos os pala­
vrosos e pedantes como um estudante a quem se deveria amea­
çar com o chicote por não ter dito bem o catecismo.
Estes dois decretos foram o sinal do grito de maldição que
se levantou contra mim em toda a Europa, com uma fúria sem
exemplo. Todas as gazetas, todos os j ornais, todas as brochuras
tocaram a rebate da maneira mais terrível. Sobretudo os fran­
ceses, este povo tão doce, tão polido, tão generoso, que se gaba
tanto da sua benevolência e das suas atenções para com os
desgraçados, esquecendo de súbito as suas virtudes favoritas,
distinguiu-se pelo número e violência dos ultrajes com que à

570
porfia me fazia sucumbir. Eu era um ímpio, um ateu, um exal­
tado, um furioso, um animal feroz, um lobo. O continuador do
Jornal de Trévoux escreveu sobre a minha pretensa licantropia
um desatino, que revelava bem o seu. Enfim, dir-se-ia que em
Paris receavam ter questões com a polícia, se, ao publicar-se
um escrito fosse sobre que assunto fosse, se esquecessem de
entremear nele algum insulto contra mim. Ao procurar em vão
a causa desta geral animosidade, estive prestes a acreditar que
toda a gente tinha enlouquecido. Quê! O redactor da Paz perpé­
tua atiça a discórdia ; o editor do Vigário Saboiano é um ímpio ;
o autor da Nova Heloísa é um lobo; o do Emílio um furioso! Ai!
meu Deus, que teria eu sido se houvesse publicado o livro do
Espírito 1, ou qualquer outra obra parecida? E todavia, na
celeuma que se levantou contra o autor deste livro, o público,
longe de juntar a sua voz à dos perseguidores daquele, vingou-o
deles graças aos seus elogios. Compare-se este livro com os
meus, a maneira diferente como foram recebidos, o procedi­
mento que houve para com os dois autores nos diversos Estados
da Europa ; achem-se para estas diferenças causas que possam
satisfazer um homem sensato: eis tudo o que peço, e calo-me.
Dei-me tão bem com a estadia em Yverdun, que, graças
à viva solicitação de Monsieur iRoguin e de toda a sua família,
tomei a resolução de aqui ficar. Também Monsieur de Moiry
de Gingins, bailio da cidade, me encorajava com as bondades
que mostrava na sua administração. O coronel instou tanto
comigo para que eu aceitasse habitar num pequeno pavilhão
que havia em sua casa, entre o pátio e o jardim, que acabei
por aceder, e logo ele se apressou em mobilá-lo e guarnecê-lo
de tudo o que era necessário ao meu pequeno lar. Roguin,
fidalgo de pendão e caldeira, uma das pessoas que mais se afa­
digavam em volta de mim, não me largava todo o santo dia.
Eu mostrava-me sempre sensível a tantas amabilidades, mas
a verdade é que ele às vezes me importunava bastante. O dia
da minha instalação estava já marcado, eu havia já escrito
a Teresa para vir ter comigo, quando de súbito soube que se
levantava em Berna celeuma contra mim, a qual era atribuída
aos devotos, e cuja causa primeira nunca pude penetrar.
O Senado, excitado contra mim não se sabe por quem, parecia
não me querer deixar tranquilo no meu retiro. o senhor bailio,
ao primeiro rumor desta agitação, escreveu em minha defesa
a vários membros do governo, censurando-os pela sua cega

1 Referência ao livro de Montesquieu, O Espírito das Leis. - N. do T.

571
intolerância, e exprobrando-lhes o facto de quererem recusar a
um homem de mérito oprimido o asilo que tantos bandidos
encontravam nos seus Estados. Pessoas sensatas presumiram
que o calor das suas repreensões em vez de adoçar tinha irritado
os espíritos. Fosse como fosse, nem o seu crédito nem a sua
eloquência puderam obviar ao golpe. Prevenido da ordem que
devia notificar-me, avisou-me antecipadamente, e eu, para não
ter que esperar tal ordem, resolvi partir logo no dia imediato.
A dificuldade era saber para onde havia de ir, pois via que
Genebra e a França me estavam interditas, e previa perfeita­
mente que, neste negócio, cada qual se apressaria a imitar o
vizinho.
Madame Boy de la Tour propôs-me que me fosse instalar
numa casa desabitada, mas completamente mobilada, que per­
tencia ao filho, sita na vila de Motiers, no Val-de-Travers, con­
dado de Neufchâtel. Havia apenas uma serra a atravessar para
ali chegar. O oferecimento vinha tanto mais a propósito quanto
era certo eu dever estar nos Estados do Rei da Prússia natural­
mente ao abrigo das perseguições, e não poder ao menos a reli­
gião de maneira nenhuma ali ser utilizada como um pretexto.
Contudo, uma dificuldade íntima que não me convinha revelar,
fazia-me hesitar fortemente. Aquele amor inato da justiça, que
sempre me devorou o coração, junto à minha secreta inclinação
pela França, tinha-me inspirado certa aversão pelo Rei da Prús­
sia, que se me afigurava, com as suas máximas e a sua conduta,
calcar a pés todo o respeito pela lei natural e por todos os deve­
res humanos. Entre as gravuras emolduradas com que eu havia
adornado o meu torreão de Montmorency, encontrava-se um
retrato do príncipe, por baixo do qual se via um dístico que ter­
minava assim:

Pensa como filósofo, e procede como Rei.

Este verso que, em qualquer outra pena, teria sido um belo


elogio, na minha possuía um sentido inequívoco, e que aliás o
verso anterior explicava clarissimamente. Todos os que vinham
visitar-me, e que não eram em pequeno número, tinham visto
o dístico. O próprio cavaleiro de Lorenzy o tinha copiado para o
dar a D'Alembert, e eu não duvidava de que D'Alembert tivesse
tido o cuidado de transformá-lo numa adulação minha ao prín­
cipe. Eu havia ainda agravado aquele primeiro erro graças a
um passo do Emílio, onde, sob o nome de Adrasto, rei dos dáu­
nios, se via perfeitamente quem era visado, e a observacão

572
não havia escapado aos murmuradores, visto Madame de Bouf­
flers várias vezes me ter chamado a este capitulo. Deste modo,
tinha a absoluta certeza de estar inscrito a tinta vermelha nos
registos do Rei da Prússia, e, supondo aliás que ele seguisse os
princípios que eu ousara atribuir-lhe, os meus escritos e o seu
autor só por si não podiam deixar de lhe desagradar: pois que
é sabido terem-me sempre os maus e os tiranos votado o ódio
mais mortal, mesmo sem me conhecerem, e apenas pela leitura
dos meus escritos. Ousei contudo pôr-me à sua mercê, e julguei
correr pouco risco. Sabia que as paixões baixas apenas subjugam
os homens fracos, e pouco atacam as almas de forte têmpera,
como a que eu sempre reconhecera nele. Pensava que na sua
arte de reinar entrava em linha de conta o mostrar-se magnâ­
nimo em semelhante ocasião, e que não estaria abaixo do seu
carácter sê-lo com efeito. Pensei que uma vil e fácil vingança
não contrabalançaria nele por um momento o amor da glória,
e, colocando-me no seu lugar, não julguei impossível valer-se
ele da circunstância para confundir com o peso da sua genero­
sidade o homem que havia ousado pensar mal dele. Fui pois
instalar-me em Motiers, com uma confiança cujo preço eu o
supunha capaz de avaliar, dizendo para comigo: Quando Jean
Jacques se levanta ao lado de Coriolano, seria Frederico inferior
ao general dos Volscos?
O coronel Roguin queria absolutamente atravessar comigo
os montes para vir instalar-me em Motiers. Uma cunhada de
Madame Boy de la Tour, chamada Madame Girardier, a quem
a casa que eu ia ocupar fazia bastante arranjo, não me viu che­
gar com muito prazer; no entanto, deu-me de boamente posse
da habitação, comendo eu em sua casa enquanto esperava que
Teresa chegasse e que o meu modesto lar estivesse organizado.
Sentindo bem que doravante seria sobre a terra um fugi­
tivo, tinha hesitado, desde que partira de Montmorency, em con­
sentir que ela viessse ter comigo, para compartilhar da vida
errante a que me via condenado. Graças a esta catástrofe, sen­
tia que as nossas relações iam mudar, e que o que até então
havia sido favor e benefício da minha parte, ia passar a sê-lo
da parte dela. Se a sua dedicação resistisse à prova das minhas
desgraças, estas dilacerariam o coração de Teresa, e a sua .dor
viria aumentar os meus males. Se a minha fatalidade lhe es­
friasse o coração, ela encareceria a sua constância como um
sacrificio, e, em vez de sentir o prazer que eu tinha, partilhando
com ela o meu último pedaço de pão, Teresa só sentiria o seu

573
mérito em querer na verdade seguir-me por toda a parte onde
a sorte me forçasse a ir.
É mister dizer tudo: não dissimulei nem os defeitos da
minha pobre Mamã, nem os meus; não devo poupar também
Teresa, e, por muito prazer que tenha em prestar homenagem a
uma pessoa que tão querida me é, também não quero encobrir as
suas faltas, se é que mesmo uma mudança involuntária nas afei­
ções do coração constitui uma verdadeira falta. Há já muito
tempo que eu me apercebia da frieza do seu. Notava que Teresa
já não era para mim o que fora nos nossos belos tempos, e per­
cebia-o tanto mais quanto era certo eu continuar a ser para ela
sempre o mesmo. Voltava a cair no mesmo percalço cujas con­
sequências tinha sentido junto de Mamã, consequências que
foram idênticas junto de Teresa. Não procuremos a perfeição
fora da natureza; teria sucedido o mesmo com qualquer outra
mulher. Por muito sensata que me tivesse parecido, a decisão
que havia tomado a respeito dos meus filhos nunca me tinha
tranquilizado o coração. Ao meditar o meu tratado da educa­
ção, senti que tinha descurado deveres de que nada me podia
dispensar. Por fim, o remorso tornou-se tão vivo, que quase me
arrancou, no começo do Emílio, a confissão pública da minha
falta, e o lanço é mesmo tão claro, que admira como depois de
semelhante passo tivessem tido a coragem de mo censurar. No
entanto, a minha situação era a mesma, ou pior ainda, graças à
animosidade dos meus inimigos, que só esperavam apanhar-me
em falta. Receei reincidir, e, como não quisesse correr o risco
de semelhante coisa, 'preferi condenar-me là abstinência a
expor Teresa a ver-se de novo no mesmo caso. Eu tinha aliás
notado que a convivência com mulheres agravava sensivelmente
o meu estado: esta dupla razão tinha-me levado a resoluções,
que por vezes observara mal, mas nas quais persistia com mais
constância há três ou quatro anos; era também a partir dessa
época que tinha notado o resfriamento de Teresa: por dever,
tinha para comigo a mesma dedicação, mas já não a tinha por
amor. Tal coisa tornava necessàriamente menos agradável o
nosso comércio, e eu pensava que, na certeza de poder conti­
nuar a contar com os meus cuidados onde quer que se achasse,
Teresa preferiria talvez ficar em Paris a andar errante comigo.
No entanto, tinha manifestado tanta dor quando nos sepa­
rámos, tinha exigido de mim promessas tão positivas de nos
juntarmos, tinha, desde que eu partira, disso exprimido tão
vivo desejo, tanto ao senhor príncipe de Conti, como a Monsieur
de Luxemburgo, que, longe de ter a coragem de lhe falar em

574
separação, mal a tive para eu mesmo pensar em tal, e, depois
de em meu coração ter sentido como me era impossível passar
sem ela, não pensei mais senão em chamá-la sem demora.
Escrevi-lhe pois que partisse; ela veio. Mal havia dois meses
que a tinha deixado; era, no entanto, a nossa primeira sepa­
ração depois de tantos anos. Ambos a tínhamos sentido bem
cruelmente. Que emoção ao abraçarmo-nos! Oh! como são
doces as lágrimas de ternura e de alegria! Como o meu cora­
ção nelas se desaltera! 'Porque me fizeram derramar tão poucas
semelhantes!
Ao chegar a Motiers, escrevera a Mylord Keith, marechal
da Escócia, governador de Neufchâtel, para o avisar de que
me recolhera aos Estados de Sua Majestade, e para lhe pedir a
sua protecção. Respondeu-me com a generosidade que se lhe
conhece e que eu esperava dele. Convidou-me a que fosse vê-lo.
Fi-lo com Monsieur Martinet, castelão do Val-de-Travers, que
gozava de grande favor junto de Sua Excelência. O aspecto
venerável do ilustre e virtuoso escocês comoveu-me fortemente
o coração, e a partir desse mesmo momento começou entre
ele e mim aquela viva afeição que da minha parte foi sempre
igual, e que o seria sempre da sua, se os traidores que me tira­
ram todas as consolações da vida se não houvessem aproveitado
do meu afastamento para abusar da sua velhice e desfigurar-me
e-os seus olhos.
George Keith, marechal hereditário da Escócia, e irmão do
célebre general Keith, que viveu gloriosamente e morreu no
leito de honra, tinha abandonado o seu pais na mocidade, e
dele foi proscrito por se haver ligado à casa :Stuart, de que
em breve se desgostou, graças ao espírito injusto e tirânico que
nela viu, e que foi sempre o seu carácter dominante. Permane­
ceu por muito tempo em Espanha, cujo clima bastante lhe
agradava, e acabou por se ligar, bem como o irmão, ao Rei da
Prússia, que conhecia os homens, e os acolheu como eles mere­
ciam. Foi bem pago pelo acolhimento, graças aos serviços que
o marechal Keith lhe prestou, e graças a uma coisa bem mais
preciosa ainda, que foi a sincera amizade de Mylord Marêchal.
A grande alma deste homem digno, inteiramente republicana
e altiva, só se podia dobrar ao jugo da amizade ; mas dobrava­
-se-lhe tão perfeitamente, que, apesar da diferença de princí­
pios, não viu mais que Frederico a partir do momento em que
se ligou a este. o !Rei encarregou-o de negócios importantes,
enviou-o a Paris, a Espanha, e por fim, vendo-o, já velho,
necessitar de repouso, deu-lhe como recolhimento o governo de

575
Neufchâtel, com a deliciosa ocupação de ali passar o resto da
vida a tornar feliz este pequeno povo.
Os neuchatelenses, que só gostam de coisas refolhudas e
vistosas, que não conhecem o verdadeiro pano, e põem o espí­
rito nas tiradas, ao verem um homem frio e simples, tomaram
por altivez a sua simplicidade, a sua franqueza por rudeza, o
seu laconismo por estupidez, agastaram-se contra os seus cui­
dados generosos, porque, querendo ser útil e não adulador, não
sabia lisonjear as pessoas que não estimava. Na ridícula questão
do ministro Petitpierre, que os seus confrades expulsaram
por não querer que eles eternamente fossem precitos, como
Mylord se tivesse oposto às usurpações dos ministros, viu levan­
tar-se contra ele toda a terra, cujo partido tomava, e este
estúpido burburinho não se tinha ainda extinguido quando eu
cheguei. Passava pelo menos por um homem que se deixava
prevenir, e de todas as imputações com que o acusaram, esta
era talvez a menos injusta. Ao ver o venerando ancião, o meu
primeiro movimento foi comover-me com a magreza do seu
corpo, já descarnado pelos anos; ao levantar porém os olhos
para a sua fisionomia animada, aberta e nobre, apoderou-se de
mim um respeito associado à confiança, que levou de vencida
todo e qualquer outro sentimento. Ao cumprimento brevíssimo
que lhe dirigi quando o abordei, respondeu-me ele falando de
outra coisa, como se já ali me achasse há oito dias. Nem sequer
nos mandou sentar. O empertigado castelão ficou de pé. Por
mim, vi no olhar penetrante e fino de Mylord não sei quê tão
carinhoso, que, sentindo-me logo à vontade, fui sem cerimónia
sentar-me ao seu lado no sofá. Pelo tom familiar que imedia­
tamente tomou comigo, percebi que semelhante liberdade lhe
dava prazer, e que ele dizia para consigo mesmo: Este não é
neuchatelense.
Efeito singular da grande conformidade dos caracteres!
Numa idade em que o coração perdeu já o calor natural, o
deste bom velho animou-se por mim de uma maneira que
surpreendeu toda a gente. Veio ele ver-me a Motiers, a pre­
texto de atirar às codornizes, e passou aqui dois dias sem
tocar numa espingarda. Estabeleceu-se entre nós uma tal ami­
zade (é este o nome), que não podíamos passar um sem o
outro. O castelo de Colombier, onde ele habitava no Verão,
era a seis léguas de Motiers: todos os quinze dias, o mais tardar,
eu ali ia passar vinte e quatro horas, regressando depois do
mesmo modo como um peregrino, sempre com o coração cheio
dele. A emoção que outrora experimentava nas minhas corridas

576
da Hermitage a Eaubonne era certamente bem diferente· mas
não era mais doce do que aquela com que me aproxima a de �
Colombier. Quantas lágrimas de ternura eu não verti frequen­
temente no caminho, ao pensar nas paternais bondades nas
n'
amáveis virtudes, na doce filosofia deste respeitável a cião!
Eu chamava-lhe meu pai, ele chamava-me seu filho. Estes dois
nomes dão em parte ideia da afeição que nos unia, mas não
a dão ainda da necessidade que um do outro tínhamos, nem
do desejo permanente que sentíamos de estar perto um do
outro. Queria ele absolutamente instalar-me no castelo de
Colombier, e durante muito tempo insistiu comigo para que ali
ocupasse definitivamente os meus aposentos. Disse-lhe por fim
que era mais livre em minha casa, e que gostava mais de passar
a vida a vir visitá-lo. Mylord aprovou esta franqueza, e não se
falou mais no caso. Oh! bom :Mylord! oh meu digno pai! como
o meu coração estremece ainda ao pensar em vós! Ah! bár­
baros! que golpe me desferiram ao separarem-vos de mim!
Mas não, não, grande homem, sois e sereis sempre o mesmo
para mim, que sou sempre o mesmo. Enganaram-vos, mas não
vos fizeram mudar.
Mylord Marêchal não ·é isento de defeitos; é um sages, mas
é homem. Com o mais penetrante espírito, com o mais fino
tacto que é possível, com o mais profundo conhecimento dos
homens, deixa-se por vezes enganar, sem se corrigir. Tem um
feitio singular, algo fantástico e estranho no talhe do seu
espírito. Parece esquecer-se das pessoas que vê todos os dias,
e lembra-se destas no momento em que elas menos o esperam:
as suas atenções parecem despropositadas ; os seus presentes
são segundo a fantasia, e não segundo a utilidade. Dá ou envia
imediatamente o que lhe passa pela cabeça, quer se trate de
uma coisa de alto preço, quer seja uma coisa sem valor. Um
jovem genebrino, que queria entrar ao serviço do Rei da Prús­
sia, apresenta-se a Mylord: em vez de lhe dar uma carta, Mylord
dá-lhe um saquito cheio de ervilhas, encarregando-o de o
entregar ao Rei. Ao receber tão singular recomendação, o Rei
coloca imediatamente quem lha leva. Estes altos génios usam
entre si uma linguagem que os espíritos vulgares nunca com­
preenderão. Estas pequenas extravagâncias, parecidas com os
caprichinhos de uma mulher nova, só me tornavam Mylord Marê­
chal mais interessante. Tinha a absoluta certeza, e posterior­
mente experimentei-o bem, de que elas não influíam nem nos
sentimentos, nem nos cuidados que a amizade lhe prescreve
nas ocasiões sérias. É porém certo que na sua maneira de obse-

577
37
quiar ele tem ainda a mesma singularidade dos seus modos.
Apenas citarei um rasgo, a respeito de uma ninharia. Como a
jornada de Motiers a Colombier era para mim muito forte,
dividia-a eu de costume, partindo depois do almoço e dormindo
em Brot, a meio caminho. Como o hospedeiro, que se chamava
Sandoz, desejava impetrar em Berlim um favor que era para
ele extremamente importante, rogou-me que pedisse a Sua
Excelência que o solicitasse por ele: de boa vontade. Levo-o
comigo, deixo-o na antecâmara, e falo do seu caso a Mylord,
que nada me responde. A manhã passa-se; ao atravessar a
sala para ir jantar, vejo o pobre Sandoz, farto de esperar.
Julgando que Mylord o tinha esquecido, volto a falar-lhe nele,
antes de nos sentarmos à mesa ; nem palavra, como anterior­
mente. Achei um pouco dura esta maneira de me fazer sentir
como eu o importunava, e calei-me, lamentando baixinho o
pobre Sandoz. Ao regressar no dia seguinte, fiquei muito admi­
rado com os agradecimentos que este me dirigiu pelo b om
acolhimento e pelo bom jantar que tinha tido em casa de
Sua Excelência, que além disso lhe havia recebido o papel
Três semanas depois, Mylord enviou-lhe o rescrito que ele tinha
pedido, expedido pelo ministro e assinado pelo Re_ i, e isto sem
nunca ter querido dizer nem responder, nem a mim nem a ele,
uma só palavra sobre o assunto, de que julguei não ter querido
encarregar-se.
Desejaria não parar de falar de George Keith: é dele que
provêm as minhas últimas recordações felizes; todo o resto
da minha vida não foram senão aflições e apertos de coração.
A sua memória é-me tão triste, e, lembra-me tão confusamente,
que me não é possível pôr ordem alguma na minha narração :
daqui por diante serei forçado a arranjá-la ao acaso e como
as coisas se apresentarem.
A minha inquietação a respeito do meu asilo não tardou
em desvanecer-se, graças là resposta do Rei a Mylord Marêchal,
em quem, como se pode julgar, encontrara um bom advogado.
Sua Majestade não só aprovava o que ele havia feito, como o
encarregou (porque é preciso tudo dizer) de me dar doze luises.
Atrapalhado com semelhante incumbência, e sem saber como
se desempenhar dela decentemente, ·o bom Mylord tratou de
atenuar a ofensa, transformando o dinheiro em provisões, e
anunciando-me que tinha ordem de me fornecer lenha e carvão
para começar o meu pequeno lar; acrescentou mesmo, e talvez
por sua iniciativa, que o Rei de boa vontade me mandaria
construir uma casinha ao meu gosto, se eu quisesse escolher o

578
local. Este último oferecimento comoveu-me bastante, e fez-me
esquecer a mesquinhez do outro. Sem aceitar nenhum deles,
considerei Frederico como meu benfeitor e meu protector, e
afeiçoei-me a ele com tanta sinceridade, que a partir desse
momento ganhei tanto interesse pela sua glória, quanta era
a injustiça que até então tinha achado nos seus triunfos. Teste­
munhei a minha alegria pela paz que ele fez pouco depois,
graças a uma inspiração de muito bom gosto: era um cordão
de grinaldas, com que ornei a casa que habitava, e no que, é
certo, tive a altivez vingativa de gastar quase tanto dinheiro
como o que ele havia querido dar-me. Concluída a paz, j ulguei
eu que, estando no auge da sua glória militar e política, Frede­
rico ia adquirir outra de espécie diferente, reanimando os seus
Estados, fazendo neles reinar o comércio, a agricultura, criando
neles um novo solo, cobrindo-o com um novo povo, mantendo
a paz entre todos os seus vizinhos, tornando-se o árbitro da
Europa, depois de haver sido o seu terror. Podia sem risco
depor a espada, cert1ssimo de que não o obrigariam a pegar
nela. Como visse que ele não se desarmava, receei que apro­
veitasse mal a sua superioridade, e que a sua grandeza fosse
apenas uma semigrandeza. Ousei escrever-lhe a este propósito,
e, tomando o tom familiar, próprio para agradar aos homens da
sua têmpera, levar até j unto dele aquela santa voz da verdade,
que tão poucos reis estão aptos a entender. Tomei esta liberdade
em segredo e apenas de mim para com ele. Nem sequer a par­
ticipei a Mylord Marêchal, e enviei-lhe a minha carta para o 'Rei
inteiramente lacrada. Mylord enviou-a sem se informar do seu
conteúdo. O Rei não lhe respondeu nada, e algum tempo depois,
como iMylord Marêchal tivesse ido a Berlim, disse-lhe apenas
que eu o havia descomposto a valer. Por aqui percebi que a
minha carta tinha sido mal recebida e que a fr anquez a do meu
zelo tinha passado por grassaria de pedante. No fundo, podia
muito bem ser; talvez eu não houvesse dito o que era mister
dizer, e não houvesse empregado o tom que era mister empregar.
Só posso responder pelo sentimento que me tinha feito pegar
da pena.
Pouco tempo depois de me haver estabelecido em Motiers­
-Travers, com todas as garantias possíveis de que me deixariam
aqui sossegado, comecei a vestir-me à arménia. Não era uma
ideia nova. Várias vezes no decurso da minha vida ela me havia
ocorrido, e frequentemente me ocorreu em Montmorency, onde
o continuado uso das sondas, condenando-me a ficar frequen­
temente no quarto, melhor me fez sentir toda a utilidade do

579
trajo comprido. A comodidade que me oferecia um alfaiate
arménio, que frequentemente vinha ver um parente que tinha
em Montmorency, tentou-me a aproveitar a ocasião para come­
çar com este novo vestuário, mesmo com risco das murmurações,
com que pouco me preocupava. Quis no entanto, antes de adoptar
a nova indumentária, ouvir a opinião de Madame de Luxem­
burgo, que muito me aconselhou a adoptá-la. Mandei portanto
fazer um pequeno guarda-roupa arménio; contudo, a tem­
pestade levantada contra mim fez-me adiar o seu uso para
ocasião mais calma, e só alguns meses mais tarde, forçado
graças a novos ataques a recorrer às sondas, é que julguei poder,
sem nenhum risco, usar em Motiers o novo fato, sobretudo
depois de haver consultado o pastor da terra, o qual me disse
qÚe sem escândalo o podia mesmo envergar no templo. Tomei
pois a túnica, o cafetã, o boné de peles, a cinta, e, depois de
haver assistido nestes trajos ao serviço divino, não achei incon­
veniente em usá-los em casa de Mylord Marêchal. Ao ver-me
assim vestido, Sua Excelência dirigiu-me este simples cumpri­
mento: Salamaleki; depois do que tudo acabou, e eu não voltei
a usar outro fato.
Havendo abandonado por completo a literatura, só pensei
em gozar uma vida tranquila e doce, tanto quanto isso dependesse
de mim. Sozinho, nunca conheci o aborrecimento, mesmo na
mais perfeita desocupação; a minha imaginação, enchendo
todos os vazios, basta para me ocupar. Só a tagarelice inactiva
num quarto, sentados uns diante dos outros a dar apenas
à lingua, é que eu nunca pude suportar. Quando caminhamos,
quando passeamos, vá que não vá: os pés e os olhos fazem ao
menos qualquer coisa; mas estar para ali de braços cruzados,
falando do tempo que faz e das moscas que voam, ou, o que é
pior, a e nde r eç armos cumprimentos uns aos outros, isso é para
mim um suplicio insuportável. Para não viver como um selvagem,
pensei em aprender a fazer cordão. Levava a minha almofada
para as visitas que fazia, ou ia como as mulheres trabalhar para
a porta, conversando com quem passava. Tal coisa fazia-me
suportar a inanidade da linguarice, e passar o tempo sem me
aborrecer em casa das minhas vizinhas, das quais algumas
eram bastante amáveis, e não isentas de espírito. Entre outras,
uma, chamada Isabel d'Ivernois, filha do procurador-geral da
república de Neufchâtel, pareceu-me suficientemente digna de
estima para que me ligasse a ela por uma amizade particular,
com que ela se não deu mal, em virtude dos conselhos úteis
que lhe dei, e dos cuidados que lhe prestei em ocasiões impor-

580
tantes; de maneira que presentemente, digna e virtuosa mãe
de família, ela me deve porventura a razão, o marido, a vida,
a felicidade. Por meu lado, devo-lhe dulcíssimas consolações,
mormente durante um Inverno bem triste, em que, no cúmulo
dos meus males e dos meus desgostos, ela vinha passar com
Teresa e comigo compridos serões, que sabia tornar-nos cur­
tíssimos, graças ao encanto do seu espírito, e aos mútuos desa­
bafos dos nossos corações. Isabel chamava-me papá, eu chama­
va-lhe filha, e os nomes que dávamos um ao outro não deixarão,
espero-o, de lhe serem tão queridos como a mim. Para tornar
o meu cordão de algum modo útil, presenteava com ele as
minhas amigas novas quando estas casavam, sob condição que
seriam elas quem amamentaria os filhos. A este título, dei um
à irmã mais velha de Isabel, ,que o mereceu; dei também um
a Isabel, que não o mereceu menos, mas só pela sua intenção,
porque nunca teve a felicidade de poder realizar a sua vontade.
Ao enviar-lhes o cordão, escrevi a uma e outra, tendo a carta da
primeira corrido mundo; contudo, tanta ostentação não con­
vinha à segunda: a amizade não se dá com tão grande espa­
vento.
Entre os conhecimentos que fiz na vizinhança, e em cujos
pormenores não entrarei, devo mencionar o coronel Pury, que
tinha uma casa na serra, onde vinha passar o Verão. Não me
apressava em travar relações com ele, porque sabia que o coro­
nel era muito mal visto na corte e por Mylord Marêchal, a
quem não visitava. Contudo, como me veio visitar e foi para
mim extremamente cortês, necessário foi ir por minha vez
visitá-lo; a coisa continuou, e por vezes comíamos um em casa
do outro. Em sua casa conheci Monsieur du Peyrou, com quem
em seguida me liguei por uma amizade tão íntima que me não
dispensa de falar dele.
Monsieur du Peyrou era americano, filho de um coman­
dante de surinam, cujo sucessor, Monsieur le Chambrier, de
Neufchâtel, casou com a viúva. Ficando viúva segunda vez, veio
instalar-se com o filho na terra do segundo marido. Filho único,
muito rico, e amado com grande ternura pela mãe, Du Peyrou
hHvia sido educado com muito desvelo, e a sua educação tinha­
-lhe aproveitado. Tinha adquirido conhecimentos imperfeitos,
algum gosto pelas artes, e presumia de haver sobretudo culti­
vado a razão: o seu ar de holandês, frio e filosófico, a sua tez
morena, o seu feitio silencioso e reservado, favoreciam bastante
esta opinião. Embora novo ainda, era surdo e gotoso. Semelhante
coisa tornava todos os seus movimentos muito calmos, muito

581
graves, e, embora gostasse de discutir, falava em geral pouco,
porque não ouvia. Todo este exterior se me impôs. Disse para
comigo: Aqui está um pensador, um homem sábio; seria uma
felicidade ter um amigo como ele. Para acabar de me cativar,
Du Peyrou dirigia-me a palavra eom frequência, sem nunca
me endereçar nenhum cumprimento. Falava-me pouco de mim,
pouco dos meus livros, pouquíssimo dele mesmo; não era falto
de ideias, e tudo quanto dizia era bastante justo. Esta justeza
e esta igualdade seduziram-me. O seu espírito não tinha nem
a elevação, nem a finura do de Mylord IMarêchal; mas a sim­
plicidade era a mesma: sempre era representá-lo em alguma
coisa. Não me apaixonei, mas liguei-me pela estima, e a pouco e
pouco tal estima trouxe a amizade. Com ele esqueci totalmente
a objecção que fizera ao .barão d'Holbach, qual era a de ser

rico, e creio que fiz mal. Aprendi a duvidar que um homem,


seja ele qual for, gozando de uma grande fortuna, possa amar
sinceramente os meus princípios e o seu autor.
Durante muito tempo vi pouco Du Peyrou, porque eu não
ia a Neufchâtel, e ele só vinha uma vez por ano à serra do
coronel Pury. Porque não ia eu a Neufchâtel? Trata-se de uma
infantilidade que não devo ocultar.
Embora protegido pelo 'Rei da Prússia e por Mylord Marê­
chal, se de começo evitei que me perseguissem no meu asilo,
não evitei pelo menos as murmurações do público, dos magis­
trados municipais, dos ministros. Depois do impulso dado pela
França, não era de bom tom não me dirigirem ao menos qual­
quer insulto: teriam medo que parecesse condenarem os meus
perseguidores não os imitando. A classe de Neufchâtel, isto é,
a companhia dos ministros da cidade, deu o impulso, tentando
mover contra mim o Conselho de Estado. Como semelhante ten­
tativa não tivesse dado resultado, os ministros dirigiram-se ao
magistrado municipal, que imediatamente mandou proibir o
meu livro, e, tratando-me a todo o momento pouco cortês­
mente, dava a entender, e dizia-o até, que, se eu houvesse
querido instalar-me na cidade, não mo teriam consentido.
Encheram o seu Mercúrio de inépcias e da mais charra devocio­
nice, que, embora fizessem rir as pessoas sensatas, não deixa­
vam de exaltar o povo e de o excitar contra mim. Tudo isto
não impedia que, ao escutá-los, eu lhes não devesse estar muito
grato pelo favor que me faziam em me deixar viver em Motiers,
onde não tinha nenhuma autoridade; ter-me-iam de boa von­
tade medido o ar às carradas, desde que eu lho pagasse bem.
Queriam que eu lhes estivesse reconhecido pela protecção que,

582
mau grado seu, o Rei me dispensava, e que eles constantemente
se esforçavam por me retirar. Por fim, como não o puderam
conseguir, depois de me haverem feito todo o mal que puderam
e de me haverem desacreditado do alto de todo o seu poder,
transformaram em valor a sua impotência, encarecendo-me
a bondade que tinham em tolerar-me na sua terra. Como única
resposta, devia eu rir-me na cara deles: fui bastante tolo para
me enxofrar, e cometi a inépcia de não querer ir a Neufchâtel,
resolução que mantive perto de dois anos, como se não fora
demasiada honra para gente desse jaez ligar alguma importân­
cia aos seus processos, que, bons ou maus, não lhes podem ser
imputados, pois que nunca agem senão por instigação. Aliás,
espíritos sem cultura e sem luzes, que não consideram outro
objecto de estima além do crédito, do poder do dinheiro, estão
muito longe de desconfiar sequer que aos talentos se deve algum
respeito, e que é uma desonra ultrajá-los.
Um certo «maire», que, graças às suas prevaricações, tinha
sido demitido, dizia ao lugar-tenente de Val-de-Travers, marido
da minha Isabel: Dizem que esse Rousseau tem muito espírito;
trazei-mo cá, para eu ver se isso é verdade. Os desprazeres de
um homem, para com o qual tomam semelhante tom, devem
certamente irritar pouco aqueles que os experimentam.
Pela maneira como me tratavam em Paris, em Genebra,
em Berna, mesmo em Neufchâtel, não esperava merecer mais
consideração por parte do pastor do lugar. No entanto, tinha­
-lhe sido recomendado por Madame Boy de la Tour, e ele
havia-me acolhido bem; nesta terra, porém, onde festejam
igualmente toda a gente, os carinhos nada significam. Contudo,
.depois da minha adesão solene à Igreja reformada, e vivendo
num país reformado, eu não podia, sem faltar aos meus com­
promissos e ao meu dever de cidadão, descurar a profissão
pública do culto em que havia voltado a entrar: assistia por
conseguinte ao serviço divino. Por outro lado, ao apresentar-me
à sagrada mesa, temia expor-me à afronta de uma recusa, e
não era de maneira nenhuma provável que, depois do escarcéu
feito em Genebra pelo Conselho, e em Neufchâtel pela classe,
ele quisesse administrar-me tranquilamente a ceia na sua
igreja. Como visse pois aproximar-se o tempo da comunhão,
decidi escrever a Monsieur de Montmollin, que tal era o nome
do ministro, para fazer acto de boa vontade, e declarar-lhe que
estava sempre ligado pelo coração à Igreja protestante; disse­
-lhe ao mesmo tempo, para evitar chicanas sobre os artigos de
fé, que não queria explicação particular alguma a respeito do

583
dogma. Tendo assim regularizado a minha situação sob este
aspecto, permaneci quedo, sem duvidar que Monsieur de Mont­
mollin recusasse admitir-me sem a discussão preliminar, que
eu não queria, e que deste modo tudo acabasse sem que fosse
por culpa minha. De maneira nenhuma. Quando menos o espe­
rava, Monsieur de Montmollin apareceu a declarar-me que não
só me admitia à comunhão debaixo da cláusula que eu propu­
sera, como além disso tanto ele como os antigos tinham grande
honra em me receber no seu rebanho. Nunca nos meus di,as
tive semelhante nem mais consoladora surpresa. Viver sempre
isolado sobre a terra parecia-me um destino bem triste, sobre­
tudo na adversidade. No meio de tantas proscrições e tantas
perseguições, ,achava uma doçura extrema em poder dizer para
comigo: Ao menos estou entre os meus irmãos, e fui comungar
com uma emoção do coração e lágrimas de piedade, que eram
porventura a preparação mais agradável a Deus que se lhe
poderia levar.
Algum tempo depois, Mylord enviou-me uma carta de
Madame de Boufflers, que, presumo-o eu ao menos, tinha vindo
por intermédio de !D'Alembert, que conhecia Mylord Marêchal.
Na carta, a primeira que tal dama me escrevia depois da minha
partida de IMontmorency, repreendia-me ela vivamente por
causa do que eu havia escrito a Monsieur de Montmollin, e
sobretudo por haver comungado. Compreendi tanto menos a
quem queria ela chegar com a sua descompostura, quanto era
certo que depois da minha viagem a Genebra eu me tinha
sempre declarado ,alto e bom som protestante, e estivera publi­
camente na embaixada da Holanda, sem que absolutamente
ninguém tivesse reparado em tal. Parecia-me divertido querer
Madame de Boufflers meter-se a dirigir a minha consciência
em matéria de religião. Contudo, como não duvidava, embora
nada compreendesse do caso, que a sua intenção era a melhor
do mundo, não me ofendi com a sua singular saída, e respon­
di-lhe sem cólera, expondo-lhe as minhas razões.
No entanto, as injúrias impressas prosseguiam, e os seus
benévolos autores censuravam aos poderes tratarem-me com
tanta doçura. Este concurso de latidos, cujos móveis continua­
vam a agir encapotadamente, tinha algo de sinistro e de terrí­
vel. Por mim, deixava-os falar sem me inquietar. Garanti­
ram-me que tinh a aparecido uma censura da Sorbona; não o
quis acreditar. Que tinha a Sorbona que se meter nesta ques­
tão? Queria certificar que eu não era católico? Toda a gente
o sabia. Queria provar que eu não era bom calvinista? Que lhe

584
----.--- ,,-----

importava? Era ter bem singulares preocupações; era substi­


tuir-se aos nossos ministros. Antes de ter visto o escrito, acre­
ditei que o faziam circular sob o nome da !Sorbona, para
troçar dela; ainda mais o acreditei depois de o haver lido. Por
fim, quando já me não foi possível continuar a duvidar da
sua autenticidade, tudo quanto me vi reduzido a acreditar foi
que era mister meter a Sorbona numa casa de alienados.
Houve outro escrito que me impressionou mais, porque
partia de um homem que eu sempre estimei, e cuja constância
admirava, embora lamentando ·a sua cegueira. Falo da pastoral
do Arcebispo de Paris contra mim. Julguei dever responder-lhe.
Podia-o fazer sem me rebaixar; era um caso pouco mais ou
menos parecido com o do Rei da Polónia. Nunca gostei das
d.iscussões violentas, à Voltaire. Só sei bater-me com dignidade,
e quero que aquele que me ataca não desonre os meus golpes,
para que eu me digne defender-me. Não duvidei que a pastoral
fosse da lavra dos jesuítas, e, embora na altura eles próprios
se achassem em desgraç.a, reconhecia todavia nela a sua antig&
máxima de esmagar os infelizes. Também eu podia pois seguir a
minha antiga máxima de honrar o autor titular, e fulminar a
obra: e é o que creio ter feito com bastante êxito.
Achei ·a permanência em Motiers muito agradável, e, para
me resolver a acabar ali os meus dias, só me faltava ter a
subsistência assegurada: no entanto, .a vida ali é cara, e eu
havia visto arruinarem-se-me todos os antigos projectos com
a dissolução do meu lar, a fundação doutro novo, com a venda
ou a dispersão de todos os meus móveis, e com as despesas que
tinha sido obrigado a fazer desde a minha partida de Mont­
mor.ency. Diàriamente via diminuir o pequeno capital de que
dispunha. Bastavam dois ou três anos para lhe consumir o resto,
sem ver nenhum meio de o renovar, a não ser que recomeçasse
a escrever livros; ofício funesto, a que já havia renunciado.
Convencido de que em breve tudo mudaria a meu respeito
e de que o público, cur·ado do delírio, faria dele envergonhar
os poderes, só procurava dilatar os meus recursos até essa feliz
mudança, que melhor me permitiria escolher entre os que
poderiam oferecer-se. Para isso, tornei a pegar no Dicionário de
música, que bastante adiantara em dez anos de trabalho, e a
que só faltava a última demão, e ser copiado a limpo. Os meus
livros, que me haviam sido enviados há pouco, forneceram-me
os meios de acabar a obra: os meus papéis, que me foram envia­
dos ao mesmo tempo, permitiram-me começar o empreendi­
mento das minhas Memórias, com as quais me queria apenas

585
ocupar daqui por diante. Comecei por transcrever cartas para
uma colecção que me pusesse a memória na ordem dos factos
e dos tempos. Já tinha feito a selecção daquelas que para tal
efeito queria conservar, e cuja sequência em cerca de dez
anos era ininterrupta. No entanto, ao arranj á-las para as trans­
crever, encontrei nelas uma lacuna que me surpreendeu. Era
uma lacuna de perto de seis me�es, desde outubro de 1 756 até
ao mês de Março seguinte. Recordav,a-me perfeitamente de
haver incluído na selecção numerosas cartas de Diderot, de
Deleyre, de Madame d'Épinay, de Madame de Chenonceaux, etc.,
que preenchiam aquela lacuna, e que não se encontravam. Que
era feito delas? Havia alguém mexido nos meus papéis, durante
os poucos meses que estes tinham ficado no palácio Luxem­
burgo? Não era concebível tal coisa, além de que eu tinha visto
o senhor Marechal pegar na chave do quarto onde os havia
guardado. Como diversas cartas de mulher, assim como todas
as de Diderot não estavam atadas, sendo eu forçado, para arru­
mar tais cartas por sua ordem, a preencher as datas de memó­
ria, e por tentativas, julguei de inicio cometer erros de data,
e passei revista a todas ,as cartas que a não tinham, ou às quais
eu a havia dado, para ver se entre elas não encontraria as que
deviam preencher aquele buraco. 1Esta experiênc:ia não deu
resultado; vi que o buraco era bem real, e que as cartas tinham
com toda a certeza sido tiradas. Por quem e para quê? Eis o que
eu não compreendia. Anteriores às minhas grandes questões, e
do tempo da minha pnmeira embriaguez por Júlia, estas cartas
não podiam interessar a ninguém. Eram quanto muito algumas
intrigas de Diderot, alguns motejos de Deleyre, testemunhos de
amizade de Madame de Chenonceaux, e mesmo de Madame
d'Épinay, com a qual me achava então nas melhores relações.
Quem se pod�ria importar com tais cartas? Que queriam fazer
delas? Só sete anos depois é que pude suspeitar do terrível
objecto de semelhante roubo.
Bem verificado tal deficit, fui levado a procurar entre os
meus rascunhos se não lláveria mais algum. Encontrei outros
que, dada a minha falta de memória, me levaram a supor que
haveria mais no acervo dos meus papéis. Os que notei foram
o rascunho da Moral sensitiva, e o do extracto da Aventuras
de Mylord Eduardo. Este último, confesso-o, fez-me desconfiar
de Madame de Luxemburgo. Tinha sido o seu criado de quarto,
La Roche, quem me havia expedido estes papéis, e imaginei que
só ela no mundo se poderia interessar por semelhante papelico ;
mas que interesse podia ela ter pelo outro como pelas: cartas
.

586
subtraídas, das quais, mesmo com más intenções, nenhum .uso
se poderia fazer que me prejudicasse, a menos de as falsifica­
rem? Quanto ao senhor Marechal, cuja inalterável probidade
conhecia, assim como a verdade da sua amizade por mim, nem
um momento suspeitei dele. Esta suspeita nem sequer a pude
fixar sobre a. senhora Marechala. Depois de durante bastante
tempo me haver fatigado a procurar o autor do roubo, tudo
o que de mais razoável me acudiu ao espírito foi imputá-lo a
D'Alembert, que, tendo-se já introduzido em casa de Madame
de Luxemburgo, teria encontrado meia de esquadrinhar os
papéis, e de subtrair o que lhe houvesse agradado, tanto
manuscritos como cartas, quer para procurar armar-me qual­
quer intriga, quer para se ,apropriar do que pudesse convir­
-lhe. Supus que, iludido pelo título da Moral sensitiva, tivesse
julgado encontrar o plano de um verdadeiro tratado de mate­
rialismo, do qual tiraria contra mim o partido que bem se pode
imaginar. Convicto de que o e�ame do rascunho em breve o
desenganaria, e resolvido a abandonar completamente a lite­
ratura, incomodei-me pouco com semelhantes furtos, os quais
não eram os primeiros que havia sofrido da mesma mão 1 sem
me queixar. Em breve pensei tanto nesta infidelidade como se
nenhuma houvessem cometido, e pus-me a reunir os materiais
que me tinham deixado, para trabalhar nas minhas Confissões.
Durante muito tempo julgara que a companhia dos minis­
tros, ou ao menos os cidadãos e os burgueses, reclamariam em
Gen�bra contra a infracção do édito no decreto promulgado
contra mim. Tudo permaneceu tranquilo, pelo menos exterior­
mente; porquanto havia um descontentamento geral, que só
esperava ocasião para se manifestar. Os meus amigos, ou os
meus pretensos amigos, escreviam-me cartas sobre cartas, exor­
tando-me a que viesse pôr-me à testa deles, e garantindo-me
uma reparação pública por parte do Conselho. O receio da
desordem e das perturbações que a minha presença podia pro­
vocar impediu-me de aceder às suas instâncias, e, fiel ao jura­
mento feito outrora, de nunca ser cúmplice de nenhuma dissen­
ção civil no meu pais, preferi deixar subsistir a ofensa, e

1 Nos seus Elementos de música encontrei muitas coisas tiradas do


que, acerca desta arte, eu próprio havia escrito para a Enciclopédia, e que
lhe havia entregue muitos anos antes da publicação dos Elementos. Ignoro
c,.ue parte teve num livro intitulado Dicionário das Belas-Artes, mas nele
encontrei artigos transcritos palavra por palavra dos meus, e isto muito
tempo antes dos ditos artigos terem sido estampados na Enciclopédia.
- Nota de J.-J. Rousseau.

587
banir-me para sempre da minha pátria, a regressar a ela por
meios violentos e perigosos. É certo que da parte da burguesia
esperava representações legais e ordeiras contra uma infracção
que a interessava em extremo. Não as fizeram. Os que a con­
duziam procuravam não tanto a verdadeira reparação das ofen­
sas como a ocasião de se tornarem necessários. Havia intrigas
secretas, mas guardava-se silêncio, deixava-se vociferar os
/ chocalheiros e os santarrões, ou os que pretensamente o eram,
que o Conselho punha em evidência para me tornar odioso à
populaça, e fazer atribuir o seu destempero ao zelo religioso.
Depois de em vão ter esperado mais de um ano que alguém
reclamasse contra um processo ilegal, tomei por fim o meu
partido, e, vendo-me abandonado pelos meus concidadãos,
resolvi renunciar à minha ingrata pátria, onde nunca tinha
vivido, da qual nunca recebera nem bens nem serviços, e pela
qual, como preço da honra que tinha procurado prestar-lhe, me
via tão indignamente tratado, e por consenso- unânime, visto
que aqueles que deveriam falar nada haviam dito. Escrevi pois
ao primeiro síndico desse ano, que era, segundo creio, Monsieur
Favre, uma carta por meio da qual abdicava solenemente do
meu direito de burguesia, e na qual, aliás, observava a decência
e a moderação que sempre pus nos actos de altivez que a
crueza dos meus inimigos frequentemente me arrancou nas
minhas desgra , ças.
Esta diligência abriu por fim os olhos aos cidadãos: per­
cebendo que, no seu próprio interesse, tinham andado mal
em abandonar a minha defesa, tomaram-na quando já era
tarde. Juntaram àquele outros agravos, e deles fizeram a maté­
ria de várias representações muito bem arrazoadas, que alar­
garam e reforçaram à medida que as duras e desagradáveis
denegações do Conselho, o qual se sentia apoiado pelo ministério
da França, melhor lhes ia fazendo sentir o projecto formado
de os submeter. Estas altercações provocaram várias brochuras
que nada resolveram, até que de súbito apareceram as Cartas
escritas do Campo, obra escrita a favor do Conselho, com uma
arte infinita, e graças à qual o partido representante, reduzido
ao silêncio, se viu por certo tempo esmagado. A peça, monu­
mento perdurável dos raros talentos do seu autor, era do pro­
curador da !República Tronchin, homem de espirita, homem
ilustrado, muito versado nas leis e no Governo da República.
Siluit terra.
Refeitos do primeiro choque, os representantes projec­
taram uma resposta, da qual com o tempo se saíram razoàvel-

588
mente. No entanto, todos dirigiram os olhares para mim, como
sendo a única pessoa que podia entrar em liça contra tal
adversário, com a esperança de o enterrar. Confesso que pensei
a mesma coisa, e, compelido pelos meus antigos concidadãos,
que me impunham o dever de os ajudar com a pena num aperto
de que eu havia sido o motivo, tomei a peito refutar as Cartas
escritas do Campo, e parodiei-lhes o titulo com este outro que
pus às minhas: Cartas escritas da Montanha. Empreendi e
executei com tanto sigilo este trabalho, que, numa entrevista
que tive em Thonon com os chefes dos representantes, para
falarmos da sua questão, e na qual eles me mostraram o esboço
da sua resposta, não lhes disse sequer uma palavra acerca da
minha, que já estava pronta, com receio não sobreviesse qual­
quer obstáculo à impressão, se dela chegasse qualquer boato
quer aos magistrados, quer aos meus inimigos particulares.
Não evitei todavia que a obra fosse conhecida em França antes
de ser publicada; no entanto, preferiram deixá-la aparecer a
dar-me a entender bem de mais a maneira como haviam des­
coberto o meu segredo. Direi a tal respeito o que soube, e que se
limita a pouco; calar-me-ei sobre o que conjecturei.
Em Motiers tinha quase tantas visitas como as que tinha
tido na Hermitage e em Montmorency; mas eram pela maior
parte de espécie inteiramente diferente. Aqueles que até então
me tinham vindo ver eram pessoas que, tendo comigo relações
de talentos, de gostos, de máximas, as alegavam como motivo
das suas visitas, encaminhando de início as suas conversas para
os assuntos a respeito dos quais eu me podia entreter com
elas. Em 'Motiers não se dava nada disto, sobretudo pelo que
toca à França. Tratava-se de oficiais e outras pessoas que
nenhum gosto tinham pela literatura, que, pela sua maior parte,
nem sequer haviam lido os meus escritos, e que, pelo que diziam,
não tinham deixado de fazer trinta, quarenta, sessenta, cem
léguas, para vir ver e admirar o homem ilustre, célebre, cele­
bérrimo, o grande homem, etc. Porquanto, a partir desse
momento, não cessaram de me atirar grosseiramente à cara
com as mais impudentes bajulações, do que até então nie havia
preservado a estima dos que se aproximavam de mim. Como a
maior parte destes visitantes inesperados não se dignavam nem
nomear-se nem dizer-me o seu estado, como os seus conhe­
cimentos e os meus não incidiam sobre os mesmos assuntos, e
como não haviam nem lido nem folheado as minhas obras, não
sabia de que lhes falar: esperava que eles próprios falassem,
visto que lhes competia a eles saber e dizer-me porque me
vinham ver. Percebe-se que daqui não resultavam para mim
conversas muito interessantes, ainda que o pudessem ser para
eles, segundo o que queriam saber : pois que, como eu de nada
desconfiava, exprimia-me sem reserva a respeito de todas as
questões que eles julgassem apropositado formular, e, ordinà­
riamente, retiravam-se tão cientes como eu de todos os porme­
nores da minha situação.
Desta forma recebi, por exemplo, Monsieur de Feins,
escudeiro e capitão de cavalaria no regimento da Rainha, o
qual teve a constância de passar vários dias em Motiers, e
até de me seguir pedestremente até La Ferriere, levando o
cavalo à rédea, sem comigo ter outro ponto de contacto a
não ser que ambos conhecíamos Mademoiselle Fel e que ambos
sabíamos jogar ao emboca-bola. Antes e depois de Monsieur de
Feins recebi uma outra visita muito mais extraordinária. Che­
gam dois homens a pé, cada qual conduzindo um macho car­
regado com a sua pequena bagagem, hospedam-se no alber­
gue, pensam eles próprios os machos, e pedem para me vir
ver. Pelos aprestos de tais almocreves, tomaram-nos por con­
trabandistas, e imediatamente correu a noticia de que vinham
visitar-me contrabandistas. Bastou a sua maneira de me abor­
darem para me certificar de que se tratava de gente de outra
polpa ; contudo, sem serem contrabandistas, podiam ser aven­
tureiros, dúvida que me pôs algum tempo de sobreaviso. Não
tardaram em tranquilizar-me. Um, era Monsieur de Montauban,
chamado Conde de la Tour Dupin, fidalgo do Delfinado ; o
outro, era Monsieur Dastier, de Carpentras, antigo militar, que
não podendo ostentar a sua cruz de S. Luis, a tinha metido na
algibeira. Estes cavalheiros, ambos muito amáveis, tinham muito
espírito ; a sua conversação era agradável e interessante ; a
m aneira como viajavam, tão ao meu gosto, e tão pouco ao dos
fidalgos franceses, deu-me por eles uma espécie de afeição que
o seu comércio não fez senão fortalecer. O nosso conhecimento
nem sequer ficou por ali, visto que dura ainda, tendo-me eles
voltado a visitar várias vezes, não já a pé, contudo, o que tinha
sido bom para principiar; mas, quanto mais via tais cavalheiros,
menos relações achava entre os seus gostos e os meus, menos
sentia que as suas máximas fossem as minhas, que os meus
escritos lhes fossem familiares, que houvesse uma verdadeira
simpatia entre eles e mim. Que me queriam eles, pois? Porque
teriam vindo visitar-me naqueles trajes? Porque teriam ficado
vários dias? Porque teriam voltado várias vezes? Porque mos­
traram tal desejo em ter-me por hóspede? Não pensei então

590
fazer a mim mesmo todas estas perguntas. Fi-las algumas vezes
depois disso. Comovido com as suas propostas, o meu coração
entregava-se sem raciocinar, mormente a Monsieur Dastier,
cujo ar mais franco me agradava mais. Ficámos mesmo em
correspondência, e quando quis mandar imprimir as Cartas da
Montanha, pensei dirigir-me a ele para despistar os que espe­
ravam que o meu pacote fosse a caminho da Holanda. Tinha-me
ele falado muito, e talvez intencionalmente, da liberdade de
imprensa em Avinhão; havia-me oferecido os seus préstimos,
no caso de eu ali querer mandar imprimir qualquer coisa: apro­
veitei tal oferecimento, e, pelo correio, fui-lhe enviando suces­
sivamente os primeiros cadernos. Depois de os haver conser­
vado bastante tempo, Monsieur Dastier reenviou-mos indican­
do-me que livreiro algum tinha ousado tomar conta deles, e
eu fui obrigado a socorrer-me novamente de Rey, tendo o
cuidado de só enviar os cadernos um após outro, e de não lar­
gar os seguintes senão depois de ter sido avisado da recepção
dos primeiros. Antes da obra ser publicada, soube que a haviam
visto nos gabinetes dos ministros, e d'Escherny, de Neufchâtel,
falou-me de um livro, O homem da Montanha, que d'Holbach
lhe havia dito ser da minha autoria. Garanti-lhe, o que era
verdade, nunca ter escrito livro nenhum com tal título. Quando
as Cartas apareceram, D'Escherny ficou furioso, e acusou-me
de mentir, quando eu só lhe havia dito a verdade. Eis como
tive a prova de que o meu manuscrito era conhecido. Confiante
na fidelidade de Rey, fui forçado a dirigir para outro lado as
minhas conjecturas, e aquela em que preferi deter-me foi a de
que os pacotes haviam sido abertos no correio.
Pouco mais ou menos pela mesma altura travei também
conhecimento, a principio só por carta, com um tal Monsieur
Laliaud, de Nimes, o qual me escreveu de Paris, pedindo-me que
lhe enviasse o perfil em silhueta, de que, dizia ele, tinha necessi­
dade para o meu busto em mármore que havia mandado fazer a
Le Moine, para colocar na sua biblioteca. Se se tratava de uma
fineza para me cativar, deu perfeitamente resultado. Pensei que
um homem que queria ter o meu busto em mármore na sua
biblioteca estava repleto das minhas obras, e por conseguinte dos
meus prlnc!plos, e que me amava porque a sua alma estava em
uníssono com a minha. Era difícil que semelhante ideia me
não seduzisse. Vi Monsieur Laliaud depois. Encontrei-o zelosis­
simo em prestar-me uma quantidade de pequenos serviços, em
intrometer-se bastante nos meus pequenos negócios. Quanto
ao resto, duvido que algum dos meus escritos tenha entrado

591
no reduzido número de livros que em sua vida leu. Ignoro se
possui uma biblioteca, e se se trata de um móvel para seu uso,
e, quanto ao busto, limitou-se a um péssimo esboço em barro
feito por Le Moine, sobre o qual mandou gravar um horrendo
retrato, que não deixa de correr sob o meu nome, como se
comigo tivesse alguma parecença.
O único francês que pareceu vir visitar-me por gosto pelos
meus sentimentos e pelas minhas obras foi um moço oficial do
regimento de Limousin, chamado Monsieur Seguier de Saint­
-Brisson, que foi visto e talvez se veja ainda brilhar em Paris
e na sociedade, graças aos seus talentos e às suas pretensões
a espirituoso. Tinha vindo visitar-me a Montmorency no inverno
que precedeu a minha catástrofe. Achei-lhe uma vivacidade de
sentimento que me agradou. Escreveu-me mais tarde para
Motiers, e quer porque quisesse lisonjear-me, quer porque real­
mente o Emílio lhe houvesse dado volta ao miolo, comunicou-me
que abandonava o serviço para viver independente, e que apren­
dia o ofício de marceneiro. Tinha um irmão primogénito, capi­
tão do mesmo regimento, que era toda a predilecção da mãe,
a qual, imoderadamente devota, e dirigida não sei por que
abade tartufo, procedia muito mal para com o filho mais novo,
acusando-o de irreligião, e até do crime irremissível de manter
relações comigo. Eis os agravos pelos quais queria romper com
a mãe, e tomar o partido a que acabo de me referir, tudo para
fazer de pequeno Emílio.
Alarmado com semelhante ousia, dei-me pressa em escre­
ver-lhe, para o levar a mudar de resolução, e pus nas minhas
exortações toda a força de que era capaz: estas foram escutadas.
Voltou ao seu dever para com a mãe, e retirou das mãos do
coronel do seu regimento a demissão que lhe havia entregue,
e a que aquele tivera a prudência de não dar qualquer segui­
mento, para lhe dar tempo a reflectir melhor sobre o caso.
Repeso das suas loucuras, Saint-Brisson cometeu outra menos
escandalosa, mas que de maneira nenhuma era mais ao meu
gosto; foi a de se fazer autor. Publicou uma após outra duas
ou três brochuras, que não anunciavam um homem despro­
vido de talento, mas a respeito das quais não terei que
acusar-me de lhe haver dirigidÓ elogios suficientemente encara­
jantes para prosseguir nessa carreira.
Algum tempo depois, veio visitar-me, e os dois fomos em
peregrinação à ilha de S. Pedro. Nesta viagem, achei-o dife­
rente de quando o vira em Montmorency. Tinha não sei quê
de afectado, que de princípio me não escandalizou muito, mas

592
que desde então me veio frequentemente à lembrança. Veio visi­
tar-me ainda uma vez ao hotel de Saint-Simon, quando passei
por Paris para me dirigir a Inglaterra. Soube ali o que ele me
não havia dito, isto é, que vivia na alta sociedade, e que via com
muita frequência Madame de Luxemburgo. Em Trye não me deu
sinal algum de vida, e nada me mandou dizer pela sua parenta,
Mademoiselle Seguier, que era minha vizinha, e que nunca me
pareceu muito bem disposta a meu respeito. Numa palavra, o
entusiasmo de Monsieur de Saint-Brisson acabou num relampo,
como a ligação com Monsieur de Feins; este, porém, não me
devia nada, ao passo que o outro devia-me qualquer coisa, a
não ser que os disparates que eu o impedira de praticar não
tivessem passado de um capricho da sua parte: o que, no fundo,
podia muito bem ser.
De Genebra recebi também uma grande quantidade de
visitas. Os De Luc pai e filho escolheram-me sucessivamente
para seu enfermeiro; o pai caiu doente no caminho; o filho
estava-o ao partir de Genebra; ambos vieram restabelecer-se
em minha casa. Ministros, parentes, carolas, quidams de toda
a sorte chegavam de Genebra e da Suíça, não como os de
França, para me admirarem e me meterem a ridículo, mas para
me ralharem e me catequizarem: o único que me deu prazer
foi Moultou, que veio passar três ou quatro dias comigo, e
que eu bem quereria reter mais tempo. O mais constante de
todos, o que mais teimou, e que à força de importunidades me
subjugou, foi um tal Monsieur d'Ivernois, comerciante de Gene­
bra, francês refugiado e parente do Procurador Geral de Neuf­
châtel. Este Monsieur d'Ivernois de Genebra passava em Motiers
duas vezes por ano, expressamente para ali me vir ver, ficava
em minha casa de manhã à noite vários dias de seguida, tomava
parte nos meus passeios, trazia-me mil espécies de presentinhos,
insinuava-se em todos os meus negócios, sem que entre ele e
mim houvesse qualquer comunhão de ideias, nem de inclina­
ção, nem de sentimentos, nem de conhecimentos. Duvido que
em toda a sua vida haja lido um livro inteiro de qualquer
género, e que saiba mesmo de que tratam os meus. Quando
comecei a herborizar, seguiu-me nas minhas excursões botâ­
nicas, sem gosto por esta diversão, e sem nada ter que me
dizer, nem eu a ele. Teve mesmo a coragem de passar três dias
inteiros só comigo numa locanda de Goumoins, donde julguei
expulsá-lo à força de o aborrecer e de lhe dar a perceber como
ele me aborrecia a mim, e tudo isto sem que jamais me houvesse

33
593
sido possível cansar a sua inacreditável constância, nem descor­
tinar o motivo desta.
Entre todas estas relações, que só à força entabulei e man­
tive, não devo omitir a única que me foi agradável, e na qual
pus um verdadeiro interesse do coração: foi a do moço húngaro
que veio instalar-se em Neufchàtel, e depois em Motiers, alguns
meses depois de eu próprio aqui me instalar. Na terra chama­
vam-lhe o Barão de Sauttern, nome sob o qual havia sido
recomendado de Zurique. Era alto e elegante, a sua figura era
agradável, e a sua sociedade afável e doce. Disse a toda a
gente, e a mim próprio mo deu a entender, que havia vindo
para Neufchàtel só por minha causa, e para conformar a sua
mocidade à virtude, graças ao meu comércio. A sua fisionomia,
o seu tom, os seus modos pareceram-me de acordo com os sl:ms
discursos, e eu acreditaria faltar a um dos maiores deveres
afastando um rapaz no qual nada via que não fosse amável,
e que me procurava por um tão respeitável motivo. Não sei
entregar só metade do meu coração. Sauttern em breve teve
toda a minha amizade, toda a minha confiança; tornámo-nos
inseparáveis. Tomava parte em todas as minhas excursões
pedestres; ganhava-lhes gosto. Levei-o a casa de Mylord Marê­
chal, que lhe fez mil festas. Como não sabia ainda exprimir-se
em francês, só me falava e escrevia em latim: eu respondia-lhe
em francês, e esta mistura das duas línguas não tornava as
nossas conversas nem menos fluentes, nem menos vivas a todos
os respeitos. Falou-me da familia, dos seus negócios, das suas
aventuras, da corte de Viena, cujos pormenores domésticos
parecia conhecer bem. Enfim, durante perto de dois anos pas­
sados na maior intimidade, só lhe encontrei uma doçura de
carácter a toda a prova, costumes não só honestos como ele­
gantes, um grande asseio na sua pessoa, uma extrema decência
em todos os seus discursos, todas as provas, enfim, de um homem
de bom nascimento, as quais me levaram a estimá-lo por de
mais, para que ele se me não tornasse caro.
No apogeu das nossas relações, D'Ivernois, de Genebra.
escreveu-me para que me acautelasse com o moço húngaro que
se havia instalado perto de mim, pois que lhe tinham garantido
tratar-se de um espião que o ministério francês tinha posto ao
meu lado. Semelhante aviso podia parecer tanto mais inquie­
tante, quanto era certo que na terra em que eu estava toda
a gente me prevenia que tivesse cautela, que me espreitavam, e
que buscavam atrair-me a terra francesa para ai me pregarem
uma vil partida. Para de uma vez para sempre tapar a boca

694
a todos estes ineptos informadores, propus a Sauttern um
passeio pedestre a Pontarlier, sem o prevenir de coisa nenhuma.
Quando chegámos a Pontarlier, dei-lhe a ler a carta de
d'Ivernois, e, em seguida, abraçando-o com fervor, disse-lhe:
Sauttern não necessita que eu lhe demonstre a minha con­
fiança, mas o público necessita que eu lhe demonstre que a sei
empregar bem. Este abraço foi dulcíssimo; foi um daqueles
prazeres da alma que os perseguidores não poderiam conhecer,
nem furtar aos oprimidos.
Nunca acreditarei que Sauttern fosse um espião, nem que
me houvesse traído; mas enganou-me. Quando lhe abri sem
reserva o meu coração, teve ele a coragem de me fechar cons­
tantemente o seu, e de me iludir com mentiras. Inventou não
sei que história que me levou a acreditar ser a sua presença
necessária no seu país. Exortei-o a que partisse o mais depressa
possível; partiu, e quando eu o julgava já na Hungria, soube
que estava em Estrasburgo. Não era a primeira vez que ali
havia estado. Tinha ali lançado a perturbação numa familia:
o marido, sabendo que eu o via, escrevera-me. Eu não havia
poupado diligência alguma para chamar a rapariga à virtude,
e Sauttern ao seu dever. Quando os julgava perfeitamente des­
prendidos um do outro, haviam-se eles aproximado, e o próprio
marido tinha tido a complacência de tornar a receber o rapaz
em sua casa; a partir desse momento nada tinha a dizer. Soube
que o pretenso barão me tinha iludido com um ror de mentiras.
Não se chamava tal Sauttern, chamava-se Sauttershaim. Com
respeito ao titulo de barão que lhe haviam dado na Suíça, não
podia censurar-lho, visto que nunca ele o tinha tomado; mas
não duvido de que fosse um verdadeiro fidalgo, e Mylord Marê­
chal, que conhecia os homens, e que havia estado no seu pais,
considerava-o e tratou-o sempre como tal.
Assim que partiu, a criada da hospedaria de fMotiers onde
ele comia declarou estar grávida dele. Era uma tal porcalhona,
e Sauttern, geralmente estimado e considerado em toda a terra
pela sua conduta e os seus costumes honestos, era tão brioso
no seu asseio, que semelhante impudência desagradou a toda
a gente. As mais amáveis criaturas da terra, que inutilmente
lhe haviam prodigalizado as suas carícias, estavam furiosas; eu
rebentava de indignação. Fiz todos os esforços para mandar
prender a desavergonhada, oferecendo-me para pagar todas as
despesas e para afiançar Sauttershaim. Escrevi-lhe, não só for­
temente convencido de que não tinha sido ele o causador da

595
gravidez, como até que esta era fingida, e que tudo isto era
apenas uma traça planeada pelos seus e meus inimigos: queria
que ele voltasse a Motiers para confundir a velhaca e os que
a faziam falar. A frouxidão da sua resposta surpreendeu-me.
Sauttern escreveu ao pastor, a cuja paróquia a porcalhona
pertencia, e esforçou-se por atenuar a questão; vendo o que,
cessei de me meter nela, muito admirado de que um tão crapu­
loso homem houvesse podido ser bastante senhor dele mesmo
para me enganar com a sua reserva na mais intima familia­
ridade.
De Estrasburgo, Sauttershaim partiu para Paris a tentar
fortuna, e só ali achou a miséria. Escreveu-me, confessando-me
o seu peccavi. No ano seguinte, quando passei por Paris, vi-o
pouco mais ou menos no mesmo estado, mas grande amigo de
Monsieur Laliaud, sem que eu pudesse saber como havia ele
arranjado tal conhecimento, e se este era antigo ou recente.
Dois anos depois, Sauttershaim voltou para Estrasburgo, donde
me escreveu, e onde morreu. Eis a história rápida das nossas
relações, e o que eu sei das suas aventuras: mas, deplorando
a sorte do infeliz r'apaz, nunca deixarei de acreditar que ele
era de bom nascimento, e que toda a desordem do seu com­
portamento foi apenas a consequência das situações em que
se encontrou.
Tais foram as aquisições que fiz em Motiers, em matéria
de relações e de conhecimentos. Quantas semelhantes seriam
necessárias para compensar as cruéis perdas que sofri na
mesma altura!
A primeira, foi a de Monsieur de Luxemburgo, que, depois
de durante tanto tempo haver sido atormentado pelos médicos,
foi por fim sua vitima, tratando-o eles da gota, que não qui ­
seram reconhecer, como se fora de um mal que podiam curar:
se sobre este assunto nos devemos ater ao relato, que La
Rache, homem de confiança da senhora Marechala, me escre­
veu, trata-se em verdade de um exemplo, tão cruel como memo­
rável, que nos permite deplorar as misérias da grandeza.
A perda do bom senhor foi para mim tanto mais sensível,
quanto era certo ser ele o único amigo verdadeiro que eu tinha
em França, sendo tal a doçura do seu carácter que me havia
feito esquecer completamente a sua categoria para a ele me
afeiçoar como a um igual. As nossas relações não cessaram com
n. minha ausência, continuando ele a escrever-me como õantes.
Julguei no entanto notar que a ausência, ou a minha desgraça,

596
tinha enfraquecido a sua afeição. É muito dificil que um corte­
são conserve a mesma dedicação por alguém que sabe estar em
desfavor junto das autoridades. Aliás, pensei que o grande
ascendente que sobre ele tinha Madame de Luxemburgo me
não era favorável, e que esta se havia aproveitado do meu
afastamento para me prejudicar no espírito do senhor Mare­
chal. Quanto a ela, apesar de algumas demonstrações afectadas
e cada vez mais raras, de dia para dia escondia menos quanto
mudara para comigo. Escreveu-me de tempos a tempos quatro
ou cinco vezes para a Suíça, depois do que deixou de o fazer;
e era mister toda a prevenção, toda a confiança, toda a cegueira
em que ainda me achava para não ver nela mais que frieza a
meu respeito.
o livreiro Guy, sócio de Duchesne, que depois de mim
frequentava o palácio Luxemburgo, escreveu-me dizendo que
eu figurava no testamento do senhor Marechal. Nada de mais
natural e de mais crível; pelo que não duvidei. O facto levou-me
a deliberar comigo mesmo sobre a maneira como me havia de
comportar a respeito de semelhante legado. Depois de ·haver
pesado bem tudo, resolvi-me a aceitá-lo, tratasse-se do que
se tratasse, homenageando assim um homem de bem que, numa
esfera onde a amizade de maneira nenhuma penetra, tinha
sido meu amigo verdadeiro. Não ouvindo nunca mais falar
desse verdadeiro ou falso legado, fui dispensado de tal deve.r;
e, na verdade, custar-me-ia infringir uma das grandes máxi­
mas da minha moral, aproveitando algo da morte de alguém
que me havia sido querido. Durante a última doença do nosso
amigo Mussard, Lenieps propôs-me que aproveitasse a maneira
como ele revelava ser sensível aos meus cuidados para lhe
insinuar algumas disposições a favor de nós. Oh, caro Lenieps,
respondi-lhe eu, não conspurquemos com ideias interesseiras os
tristes mas sagrados deveres que prestamos ao nosso amigo
·moribundo; espero nunca figurar no testamento de ninguém,
nunca pelo menos no de nenhum dos meus amigos. Foi pouco
mais ou menos por esta altura que Mylord Marêchal me falou
do seu, do que tencionava fazer por mim, tendo-lhe eu dado
a resposta de que fálei na primeira parte.
A segunda perda, mais sensível ainda, e muito mais irre­
parável, foi a da melhor das mulheres e das mães, que carre­
gada já de anos e sobrecarregada de doenças, e de misérias,
deixou este vale de lágrimas para passar à habitação dos bons,
onde a amável recordação do bem que cá em baixo fez lhe

597
serve de recompensa eterna 1• Ide, alma doce e benfazeja, ide
para junto dos Fénelon, dos Bernex, dos Catinat, e daqueles
que, num estado mais humilde, como eles abriram os seus cora­
ções à verdadeira caridade; ide gozar o fruto da vossa, e pre­
parar para o vosso discípulo o lugar que ele espera ocupar um
dia ao vosso lado! Feliz, nos vossos infortúnios, que o céu, ao
terminá-los, vos tenha poupado ao cruel espectáculo dos dele!
Receando contristar o seu coração com o relato dos meus pri­
meiros desastres, não lhe havia escrito desde que chegara à
Suíça: escrevi no entanto a !Monsieur de Gonzié para me infor­
mar dela, e foi por este que eu soube ter ela acabado de consolar
os que sofriam, deixando ao mesmo tempo de sofrer. Em breve
também eu deixarei de sofrer; mas se acreditasse que a não
tornaria a ver na outra vida, a minha fraca imaginação recusar­
-se-ia à ideia da felicidade perfeita que ai me é prometida.
A terceira e última perda, porquanto desde então não me
restaram mais amigos a perder, foi a de Mylord Marêchal.
Não morreu; fatigado, contudo, de servir a ingratos, abandonou
Neufchâtel, e desde então nunca mais o vi. Vive e há-de sobre­
viver a mim, espero-o: vive e, graças a ele, nem todas as minhas
afeições sobre a terra se acham despedaçadas; nela existe ainda
um homem digno da minha amizade, porque o verdadeiro preço
desta está ainda mais na que se sente do que na que se inspira;
perdi porém as doçuras que a sua me prodigalizava, e eu não
posso já pô-lo senão na categoria daqueles a quem ainda amo,
mas a quem já não estou ligado. Ia a Inglaterra receber o per­
dão do Rei, e resgatar os seus bens outrora confiscados. Não
nos separámos sem fazermos para nos voltarmos a reunir pro�
jectos que lhe pareciam a 'ele quase tão doces como a mim.
Mylord Marêchal queria instalar-se no seu castelo de Keith­
-Hall, perto de Aberdeen, e eu devia ir ter com ele; mas seme­
lhante projecto agradava-me por de mais para poder esperar
que fosse bem sucedido. iMylord não ficou na Escócia. As afec­
tuosas solicitações do Rei da Prússia chamaram-no a Berlim,
e em breve se verá como me foi impossível ir ter com ele.
Antes de partir, prevendo a tempestade que se começava
a levantar contra mim, enviou-me ele por sua própria iniciativa
algumas cartas de naturalização, que pareciam ser uma precau­
ção seguríssima para que não pudessem expulsar-me da terra.
A comunidade de Couvet, no Val-de-Travers, imitou o exemplo

1 Rousseau refere-se a Madame de Warens, que morreu em Cham­


béry, a 29 de Julho de 1762. - N. do T.

598
do governador, e deu-me cartas de communier 1, gratuitas como
as primeiras. Desta maneira, transformado inteiramente em
cidadão do pais, estava ao abrigo de toda e qualquer expulsão
legal, mesmo por parte do príncipe: não foi todavia nunca pelas
vias legitimas que puderam perseguir aquele de todos os homens
que mais respeitou as leis.
Não creio dever contar no número das perdas que na
mesma altura sofri a do abade de Mably. Havendo habitado em
casa do irmão, tinha tido algumas relações com ele, nunca
porém muito intimas, e tenho algumas razões para crer que
os seus sentimentos a meu respeito tinham mudado de natureza
desde que eu adquirira mais celebridade do que ele. Foi porém
com a publicação das Cartas da Montanha que tive o primeiro
sintoma da sua má vontade contra mim. Em Genebra, puseram
a circular uma carta a Madame Saladin, que lhe atribuíam,
e na qual ele falava daquela obra como dos clamores sediciosos
de um desenfreado demagogo. A estima que nutria pelo abade
Õ.€' Mably, assim como a consideração que tinha pelas suas luzes,
nem um instante me permitiram acreditar que esta extrava­
gante carta fosse da sua autoria. Tomei sobre o caso o partido
que a minha franqueza me inspirava. Enviei-lhe uma cópia da
carta, prevenindo-o de que lha atribuíam. Não me deu resposta.
Tal silêncio surpreendeu-me: avalie-se no entanto da minha
surpresa quando Madame de Chenonceaux me comunicou que
a carta era realmente do abade, e que a minha o tinha verda­
deiramente atrapalhado! Porque, enfim, ainda mesmo que tivesse
razão, como poderia ele justificar uma dili�ência estrondosa e
pública, feita espontâneamente, sem obrigação, sem necessidade,
apenas com o fim de, no cume das suas desgraças, acabrunhar
um homem a quem sempre havia testemunhado a sua bene­
volência, e que nunca dela desmerecera? Pouco tempo depois
apareceram os Diálogos de Focion, nos quais apenas vi uma
compilação de escritos meus, feita sem prudência e sem ver­
gonha. Lendo tal livro, senti que o autor tinha tomado o seu
partido a meu respeito, e que eu não teria doravante pior ini­
migo. Creio que não me perdoou nem o Contrato social, muito
acima das suas forças, nem a Paz perpétua, e que só na suposi­
ção de que me não sairia tão bem é que parecia ter desejado
fosse eu o encarregado de fazer um extracto do abade de
St. Pierre.

1 Qualidade de burguês da comuna, por oposição ao simples habi­


tante desta. - N. do T.

599
l
/

Quanto mais me adianto na minha narração, menos ordem


e seguimento posso pôr nela. A agitação do resto da minha
vida não deu tempo a que os acontecimentos se me arrumassem
na cabeça. Foram eles por de mais abundantes, por de mais
confusos, por de mais desagradáveis para poderem ser nar­
rados sem confusão. A única impressão forte que me deixa­
ram é a do horrível mistério que lhes envolve a causa, e a do
estado deplorável a que me reduziram. A minha narração não
pode já caminhar senão ao acaso, e consoante as ideias me ocor­
rerem ao espírito. Recordo-me de que na altura a que me refiro,
inteiramente entregue às minhas Confissões, falava impruden­
tissimamente delas a toda a gente, sem sequer imaginar que
alguém tivesse interesse, ou vontade, ou poder para pôr obstá­
culos a este cometimento: e ainda que o acreditasse, nem por
isso seria mais discreto, graças à total impossibilidade em que
por meu natural me acho de conservar oculto algo do que sinto e
do que penso. Conhecido o cometimento, residiu nele, tanto
quanto posso julgar, a causa verdadeira da tempestade que
desencadearam para me expulsar da Suíça, e entregar-me a
mãos que me impedissem de o executar.
Projectava eu ainda outro que não era mais bem visto
por aqueles que receavam o primeiro: era uma edição geral
dos meus escritos. Tal edição parecia-me necessária para a
verificação daqueles dos meus livros portadores do meu nome
que eram verdadeiramente meus, e assim dar ao público a pos­
sibilidade de os distinguir daqueles escritos que, sob pseudó­
nimo, os meus inimigos me atribuíam para me desacreditarem
e me vilipendiarem. Além disto, semelhante edição era um meio
simples e honesto de garantir o meu pão, sendo mesmo o
único, porquanto, não podendo as mi:nhas Memórias aparecer
enquanto eu fosse vivo, sem ganhar um soldo de qualquer outra
maneira e sempre com despesas, via o fim dos meus recursos no
do produto dos meus últimos escritos. Tal razão havia-me apres­
sado a dar o Dicionário de música, ainda informe. Tinha-me
ele rendido cem luíses de contado, e cem escudos de renda
vitalícia, e ainda assim em breve se devia ver o fim de cem
luíses, quando anualmente se gastam mais de sessenta, e cem
escudos de renda nada eram para um homem sobre quem os
quidams e os indigentes caiam constantemente como estor­
ninhos.
Apresentou-se uma companhia de negociantes de iJ'ifeufchâtel
para a empresa da edição geral, e, para a dirigir, intrometeu-se
não sei como, um impressor ou um livreiro de Lyon, chamado

600
Reguillat. O acordo fez-se sobre um pé razoável e suficiente
para a boa efectivação do meu objecto. Entre obras impressas
e peças ainda manuscritas tinha eu com que fornecer seis
volumes in-quarto; além disso, comprometia-me a vigiar a
edição. Graças ao que deviam eles instituir-me uma renda vita­
lícia de mil e duzentas libras francesas e um presente de mil
escudos pagos de uma vez.
O contrato estava concluído, mas ainda não assinado,
quando apareceram as Cartas escritas da Montanha. A terrível
explosão que contra esta infernal obra e contra o seu abomi­
nável autor rebentou alarmou a companhia, e a empresa des­
fez-se. Eu compararia o efeito desta última obra ao da Cart..a
sobre a música francesa, se, suscitando contra mim o ódio e
expondo-me ao perigo, esta me não houvesse granjeado ao
menos consideração e estima. Depois daquela última obra,
porém, parece que em Genebra e Versalhes se admiraram de
que deixassem ainda respirar um monstro como eu. O Conselho
menor, excitado pelo Residente da França e pelo Procurador
da República, produziu uma declaração a respeito da minha
pbra, na qual a declara, com os mais atrozes qualificativos,
indigna de ser queimada pelo carrasco, acrescentando, com uma
desenvoltura que tem algo de burlesco, que ninguém pode, sem
se desonrar, responder-lhe nem sequer fazer-lhe qualquer refe­
rência. Gostaria de poder transcrever aqui essa curiosa peça;
infelizmente, porém, não a tenho, nem me recordo de uma só
palavra dela. Desejo ardentemente que algum dos meus leitores,
animado pelo zelo da verdade e da equidade, queira reler por
inteiro as Cartas escritas da Montanha; ouso dizer que sentirá
a estóica moderação que reina na obra, depois dos cruéis e sen­
síveis ultrajes com que à porfia acabavam de abater o autor.
Não podendo, porém, responder às injúrias, porque não as havia,
nem às razões, porque não havia que responder-lhes, tomaram o
partido de aparentarem de muito indignados para quererem
responder; e a verdade é que, se tomavam por injúrias os argu­
mentos invencíveis, deviam sentir-se grandemente injuriados.
Longe de por alguma forma se queixarem desta odiosa
declaração, os representantes seguiram o caminho que ela lhes
indicava, e, em vez de fazerem das Cartas da Montan.ha um
trofeu, que encobriram para delas fazerem escudo, tiveram a
cobardia de não prestar nem honras nem justiça a um escrito
feito em sua intenção e a seu rogo, nem o citaram, nem nomea­
ram, embora tàcitamente dele tirassem todos os seus argumen­
tos, e embora a exactidão com que seguiram o conselho que

601
termina a obra tenha sido a causa única da sua salvação e da
sua vitória. Tinham-me imposto este dever; eu cumpri-o; até
ao fim, havia servido a pátria e a sua causa. Roguei-lhes que
abandonassem a minha e que pensassem apenas neles nas suas
disputas. Pegaram-me na palavra, e eu não me meti mais nas
suas questões senão para constantemente os exortar à paz, sem
duvidar de que, se teimasse, seriam esmagados pela França. Tal
coisa não aconteceu: compreendo a razão, mas não é aqui o
lugar para a dizer.
Em Neufchâtel, o efeito das Cartas da Montanha foi a
princípio muito moderado. Enviei um exemplar a Monsieur de
Montmollin; recebeu-o bem e leu-o sem objecção. Estava doente,
assim como eu; quando se achou restabelecido, veio visitar-me
amigàvelmente, e de nada me falou. No entanto, começaram
os boatos; não sei onde, queimaram o livro. De Genebra, de
Berna, e talvez de Versalhes, o foco da efervescência passou
em breve a Neufchâtel, e sobretudo ao Val-de-Travers, onde,
ainda mesmo antes da classe ter feito qualquer movimento
aparente, haviam começado a amotinar o povo por meio de
práticas subterrâneas. Eu, ouso dizê-lo, devia ser amado pelo
povo daquela terra, como o fui pelo de todas aquelas em
que vivi, dando esmolas às mãos cheias, não deixando nenhum
indigente à minha roda sem assistência, não recusando a nin­
guém serviço algum que pudesse prestar e fosse justo, familia­
rizando-me talvez de mais com o povo, e furtando-me tanto
quanto podia a toda e qualquer distinção que pudesse excitar os
zelos. Nada disto impediu que, secretamente provocada não sei
por quem, a populaça se irritasse gradualmente contra mim,
indo até ao furor, e que me insultasse publicamente à luz do
dia, não só no campo e pelos caminhos, como em plena rua.
Os mais encarniçados eram aqueles a quem eu havia feito mais
bem, e até, sem mostrar-se, pessoas a quem eu continuava a
fazê-lo excitavam os outros, parecendo assim querer vingar-se
da humilhação de me estarem obrigados. Montmollin parecia
nada ver, e ainda se não mostrava. No entanto, como nos apro­
ximávamos do tempo da comunhão, veio ver-me para me aconse­
lhar a que me abstivesse de a ela me apresentar, garantindo-me,
aliás, que me não queria mal, e ,que me deixaria em paz. Achei
o cumprimento estranho; lembrava-me a carta de Madame de
Boufflers, e eu não podia imaginar quem seria que assim se
importava tanto que eu comungasse ou não. Como considerava
esta condescendência da minha parte como um acto de cobar­
dia, e como, aliás, não queria dar ao povo um novo pretexto

602
para me acusar de ímpio, repeli francamente as propostas do
ministro, o qual se retirou descontente, dando-me a entender
que eu me havia de arrepender.
A sua simples autoridade não bastava para me proibir de
comungar: era mister a do Consistório que me tinha admitido,
e enquanto o Consistório nada dissesse, eu podia apresentar-me
afoitamente, sem temer a recusa. Montmollin obteve da classe
a comissão de me citar perante o Consistório, para aqui prestar
contas da minha fé, e me excomungar no caso de haver recusa.
Também esta excomunhão só podia ser feita pelo Consistório
e por maioria de vozes. No entanto, os campónios que, sob o
r..ome de antigos, compunham esta assembleia, presididos e,
como é bom de compreender, governados pelo seu ministro,
não deviam naturalmente ter uma opinião diferente da deste,
mormente sobre matérias teológicas, de que percebiam ainda
menos do que ele. Fui pois citado, e resolvi comparecer.
Que feliz circunstância, e que triunfo para mim, se eu sou­
besse falar e se tivesse, por assim dizer, a minha pena na boca!
Com que superioridade, com que facilidade não teria enterrado
o pobre ministro no meio dos seus seis campónios! Como a
avidez de dominar havia feito esquecer ao clero protestante
todos os princípios de reforma, bastava-me, para os chamar a
eles e reduzi-los ao silêncio, comentar as primeiras Cartas da
Montanha, a respeito das quais haviam tido a estupidez de
me criticar. O meu texto estava pronto, eu só tinha que desen­
volvê-lo, e o meu homem achava-se confundido. Não teria sido
a tal ponto idiota que me conservasse apenas na defensiva;
era-me fácil tornar-me em agressor, mesmo sem ele dar por
isso, ou poder a isso obstar. Os próprios padrecas da classe, tão
estouvados como ignorantes, tinham-me posto na mais feliz
posição que eu poderia desejar para gostosamente os esmagar.
Mas quê! era mister falar, e falar imediatamente, achar as ideias,
os rodeios, as palavras no momento em que eram necessárias,
ter sempre presença de espírito, estar sempre de sangue-frio, não
me perturbar um só momento. Que podia eu esperar de mim,
sentindo bem a minha incapacidade para me exprimir de impro­
viso? Em Genebra, diante de uma assembleia inteiramente a
meu favor, e de antemão resolvida a tudo aprovar, vira-me
reduzido ao mais humilhante silêncio. Aqui, era tudo ao con­
trário: tinha que me haver com um intriguista, que punha a
astúcia no lugar do saber, que me armaria cem laços antes de
eu me aperceber de algum, inteiramente resolvido a apa­
nhar-me em falta, fosse como fosse. Quanto mais examinava

603
esta posição, mais ela me pareceu perigosa, e, sentindo a impos­
sibilidade de sair dela satisfatoriamente, imaginei outro expe­
diente. Meditei num discurso para pronunciar diante do Con­
sistório, para o recusar e dispensar-me de responder: a coisa
era facilima. Escrevi o discurso, e pus-me a estudá-lo de cor,
com um entusiasmo sem igual. Teresa troçava de mim, ao
ouvir-me resmonear sempre as mesmas frases, para tratar de
as encasquetar na cabeça. Esperava por fim fazer o meu dis­
curso; sabia que o Castelão, na sua qualidade de oficial do
príncipe, assistiria ao Consistório; que, apesar das manobras e
dos enredos de Montmollin, a maioria dos antigos era a meu
favor; eu tinha por mim a razão, a verdade, a justiça, a protec­
ção do Rei, a autoridade do Conselho de Estado, os votos de
todos os patriotas a quem o estabelecimento desta inquisição
interessava; tudo contribuía para me encorajar.
Na véspera do dia aprazado, sabia o discurso de cor; reci­
tei-o sem erros. Toda a noite o rememorei de cabeça; de manhã,
já não o sabia; a cada palavra hesito, julgo-me já na ilustre
assembleia, atrapalho-me, balbucio, perco a cabeça; por fim,
quase no momento de partir, falta-me totalmente a coragem;
fico em casa, e tomo a decisão de escrever ao Consistório,
dizendo atabalhoadamente as minhas razões, e pretextando as
minhas incomodidades que, verdadeillamente, no estado em
que então me encontrava, dificilmente me;-teriam deixado assis­
tir a toda a sessão.
Embaraçado com a minha carta, o ministro transferiu o
negócio para outra sessão. No entrementes, ele e as suas cria­
turas afadigavam-se para cativar. aqueles dos antigos que,
seguindo mais as inspirações da sua consciência do que as dele,
não eram do parecer nem da classe nem do seu. Por muito
fortes que os argumentos sacados do seu bestunto pudessem ser
para com esta espécie de gente, não pôde ganhar mais nenhum
além dos dois ou três que lhe eram já dedicados, e a quem
chamavam os seus almas danadas. O oficial do Príncipe e o
coronel Pury, que nesta questão se portou com muito zelo,
mantiveram os outros no seu dever, e quando o Montmollin quis
proceder à excomunhão, o Consistório refutou-o redondamente
por maioria de votos. Reduzido então ao expediente último
de alvorotar a populaça, pôs-se com os confrades e outras pes­
soas a trabalhar abertamente para isso, com tal sucesso que,
apesar dos fortes e frequentes rescritos do Rei, apesar de todas
as ordens do Conselho de Estado, fui enfim obrigado a abando-

604
nar a terra, para não expor o próprio oficial do Pl'incipe a ser
assassinado por me defender.
Tenho de toda esta questão uma recordação tão confusa,
que me é impossível dar alguma ordem, alguma ligação às ideias
que dela me vêm à memória, e só esparsas e isoladas, como se
apresentam ao espírito, é que as posso reproduzir. Recordo-me
de ter havido com a classe uma espécie de negociação, de que
Montmollin era o medianeiro. Tinha fingido temer-se que, gra­
ças aos meus escritos, eu perturbasse o sossego da terra, a quem
culpariam da minha liberdade de escrever. Tinha-me dado a
entender que, se eu me comprometesse a abandonar a pena,
seriam indulgentes quanto ao passado. Tal compromisso tinha-o
eu já tomado para comigo mesmo; não hesitei em tomá-lo para
com a classe, condicional, no entanto, e apenas quanto a maté­
ria de religião. Montmollin, baseado em qualquer modificação
que exigiu, achou meio de obter o escrito em duplicado: como
a condição fosse rejeitada pela classe, tornei a pedir o escrito ;
Montmollin restituiu-me um dos duplicados e guardou o outro,
sob pretexto de que se tinha extraviado. Depois disto, o povo,
francamente excitado pelos ministros, troçou dos rescritos do
Rei, das ordens do Conselho de Estado, e não voltou a conhe­
cer freio algum. Repreenderam-me no púlpito, chamaram-me
o Anti-Cristo, e perseguiram-me no campo como um lobisomem.
o meu trajo de arménio denunciava-me à populaça: sentia-lhe
cruelmente os inconvenientes; abandoná-lo porém nestas cir­
cunstâncias parecia-me uma cobardia. Não me pude resolver
a fazê-lo, e passeava-me tranquilamente na terra com a minha
cinta e o meu boné de peles, cercado dos vitupérios da canalha
e por vezes das suas pedradas. Ao passar em frente das casas,
muitas vezes ouvia dizer àqueles que nelas habitavam: Tra­
gam-me uma espingarda, que eu quero atirar-lhe para cima.
Eu nem por isso me apressava: e eles nem por isso ficavam
menos furiosos; limitaram-se porém sempre às ameaças, pelo
menos no artigo das armas de fogo.
Não deixei, durante toda esta agitação, de ter dois gran­
díssimos prazeres, que extremamente me sensibilizaram. O pri­
meiro foi poder fazer um acto de reconhecimento por intermédio
de Mylord Marêchal. Todas as pessoas honestas de Neufchâtel,
indignadas com os tratos que eu sofria e com as manobras de
que era vitima, execravam os ministros, percebendo perfeita­
mente que seguiam incitamentos de estranhos, e que eram ape­
nas satélites de outras pessoas que se escondiam para os fazer
agir, temendo outrossim que o meu caso tivesse consequências

605
para o estabelecimento de uma verdadeira inquisição. os magis­
trados, e sobretudo Monsieur Meuron, que havia sucedido a Mon­
sieur d'Ivernois no cargo de iProcurador Geral, faziam todos
os esforços para me defenderem. Ainda que simples particular,
o coronel Pury ainda fez mais e saiu-se melhor. Foi ele que
achou meio de abater Montmollin no seu Consistório, obri­
gando os antigos ao seu dever. Como gozava de consideração,
empregou-a tanto quanto pôde para sustar a sedição; contudo,
só podia opor a autoridade das leis, da justiça e da razão à do
dinheiro e do vinho. As forças não eram iguais, e neste ponto
Montmollin triunfou do coronel Pury. Sensível no entanto aos
seus cuidados e ao seu zelo, queria poder retribuir-lhe bons
ofícios por bons ofícios, e de qualquer maneira desquitar-me
para com ele. Sabia que ele cobiçava grandemente um lugar de
conselheiro de Estado; tendo porém procedido mal, segundo
opinião da corte, no caso do ministro Petitpierre, achava-se em
desgraça perante o Príncipe e o Governador. Arrisquei-me toda­
via a escrever a seu favor a Mylord t:M:arêchal; ousei mesmo
falar do emprego que ele desejava, e com tanta felicidade o
fiz que, contra o que toda a gente esperava, aquele lhe foi
quase imediatamente concedido pelo Rei. Assim a sorte, que
sempre me fez andar a um tempo ou muito por cima ou muito
por baixo, continuava a empurrar-me de um extremo para o
outro, e enquanto a populaça me cobria de bosta, fazia eu um
conselheiro de Estado.
O outro grande prazer que tive foi a visita que me fez
Madame de Verdelin com a filha, que tinha trazido aos banhos
de Bourbonne, donde deitou até Motiers, instalando-se em
minha casa dois ou três dias. A força de atenções e de obséquios,
tinha por fim vencido a minha repugnância, e o meu coração,
rendido às suas finezas, pagava-lhe a amizade que durante
tanto tempo ela me havia testemunhado. A sua viagem sensi­
bilizou-me, mormente nas circunstâncias em que me achava,
e nas quais, para alimentar a minha coragem, eu tinha grande
necessidade das consolações da amizade. Receei que ela se
incomodasse com os insultos que eu recebia da populaça, e
quereria furtá-la a tal espectáculo, para lhe não mortificar o
coração: não me foi, todavia, possível fazê-lo, e embora nos
nossos passeios a sua presença contivesse um pouco os insolen­
tes, viu o suficiente para julgar do que se passava no resto
do tempo. Foi até durante a sua permanência em minha casa
que de noite me começaram a atacar na minha própria habita­
ção. Uma manhã, a criada de quarto de Madame de Verdelin

600
encontrou a minha janela coberta de pedras que durante a
noite lhe haviam atirado. Arrancaram, levantaram e puseram ao
alto de encontro à porta, um banco pesadíssimo que estava na
rua à entrada da casa, de maneira que, a primeira pessoa que
fosse a abrir a porta da rua para sair, e nele não reparasse,
magoar-se-ia inevitàvelmente. Madame de Verdelin nada igno­
rava do que se passava; porquanto, além do que ela própria via,
o criado, homem de confiança, estava muito relacionado na
aldeia, abordava toda a gente, tendo mesmo sido visto a con­
versar com Montmollin. No entanto, pareceu não prestar aten­
ção nenhuma a nada do que se passava comigo, não me falou
de Montmollin nem de ninguém, e pouco respondeu ao que eu
por vezes lhe disse a este respeito. Parecendo tão-somente con­
vencida de que eu em Inglaterra estaria melhor do que em
qualquer outra parte, falou-me bastante de Monsieur Hume 1,

que então se achava em Paris, da sua amizade por mim, do


desejo que ele tinha de me ser útil no seu país. É o momento de
dizer algo deste Monsieur Hume.
Em França, e sobretudo entre os enciclopedistas, tinha adqui­
rido uma grande nomeada, graças aos seus tratados sobre o
comércio e a política, e finalmente graças à sua História da
casa Stuart, o único dos seus escritos de que eu havia lido algo
na tradução do abade Prévôt. Pelo que me haviam dito dele,
e por não conhecer as suas outras obras, estava convencido de
que Monsieur Hume aliava uma alma bastante republicana aos
paradoxos ingleses a favor do luxo. Baseado nesta opinião,
considerava toda a sua apologia de Carlos I como um prodígio
de imparcialidade, e tinha em tão alta conta a sua virtude
como o seu génio. O desejo de conhecer este homem raro e de
obter a sua estima havia grandemente aumentado as tenta­
ções de me passar a Inglaterra, despertadas em mim pelas
solicitações de Madame de Boufflers, íntima amiga de Mon­
sieur Hume. Ao chegar à !Suíça, recebi dele, por intermédio da
dita dama, uma carta extremamente lisonjeira, na qual, aos
maiores cumprimentos a respeito do meu génio, juntava o ins­
tante convite para me passar a Inglaterra, assim como a oferta
de todo o seu crédito e de todos os seus amigos para ali me
tornar a permanência agradável. Aqui encontrei Mylord Marê­
chal, o compatriota e amigo de Monsieur Hume, que me con­
firmou todo o bem que eu pensava deste, e que me contou até
a seu respeito uma anedota literária que o havia impressionado,

I O célebre filósofo inglês. - N. do T.

607
e que a mim me impressionou igualmente. Vallace t, que havia
es<!rito contra Hume a respeito do povoamento dos antigos,
encontrava-se ausente ao tempo em que se imprimia a sua
obra. Hume encarregou-se de rever as provas e de vigiar
a edição. Tal procedimento harmonizava-se com o meu feitio.
Era assim que eu tinha vendido, a seis soldos cada uma, cópias
de uma canção feita contra mim. Eu tinha pois uma quantidade
de prejuízos a favor de Hume, quando lMadame de Verdelin me
veio falar vivamente da amizade que ele dizia ter por mim,
e do seu desvelo em me fazer as honras da Inglaterra; era
assim que ela se exprimia. Instou bastante comigo para que
eu aproveitasse tal zelo, e que escrevesse a Monsieur Hume.
Como não tinha nenhuma inclinação natural pela Inglaterra,
e só queria tomar semelhante partido no último extremo,
recusei-me a escrever e a dar esperanças; deixei-a porém
senhora de fazer tudo o que julgasse conveniente para manter
Hume nas suas boas disposições. Graças a tudo o que me
havia dito a respeito deste homem ilustre, Madame de Verdelin,
ao abandonar Motiers, deixou-me na persuasão de que ele
era um dos meus amigos, e, mais ainda, que ela era uma das
suas amigas.
Depois da sua partida, Montmollin activou as suas mano­
bras, e a populaça deixou de conhecer freio. No entanto, eu
continuei a passear-me tranquilamente no meio dos apupos, e
como o gosto da botânica, que começara a adquirir junto do
doutor D'Ivernois, desse um novo interesse aos meus passeios ,
larguei a percorrer as cercanias com o fito de herborizar, sem
me incomodar com os clamores de toda aquela canalha, cuja
fúria o meu sangue-frio ainda mais irritava. Uma das coisas
que mais me afligiram foi ver as familias dos meus amigos 2, ou

1 Robert Wallace, autor de A Dissertation on the Numbers ot Mankinà


in anctent anã modem times. - N. -ão T.
2 Esta fatalidade havia começado quando da minha permanência em
Yverdun: porquanto, havendo o rico-homem Roguin morrido um ano ou
dois depois de eu ter abandonado a cidade, o velho Roguin teve a boa fé
de me dar a conhecer, desgostoso, que nos papéis do parente se tinham
encontrado provas de que ele havia entrado na conspiração para me
expulsar de Yverdun e do Estado de Berna. Tal coisa provava clarissi­
mamente que a conspiração não era uma questão de carolice, como o
haviam querido fazer acreditar, visto que o rico-homem Roguin, longe de
ser um devoto, levava o materialismo e a incredulidade até à intolerância
e o fanatismo. Aliás, ninguém em Yverdun se havia apossado tanto de
mim, ninguém me havia prodigalizado tantos afagos, louvores e adulações,
como o dito rico-homem Roguin. Seguia fielmente o plano caro aos meus
perseguidores. - Nota àe J.-J. Rousseau.

608
das pessoas que lhes usavam o nome, entrar com toda a fran­
queza na liga dos meus perseguidores, como, por exemplo, os
D'Ivernois, sem excepção sequer do pai e do irmão da minha
Isabel, Boy de la Tour, parente da amiga em casa de quem eu
estava instalado, e a cunhada deste, Madame Girardier. Este
Pierre Boy era tão asno, tão estúpido, e comportava-se com tal
brutalidade, que, para não me irritar, permiti-me caçoar com
ele, e escrevi, no gosto do Protetazinho, uma brochurazita de
algumas páginas, intitulada A visão de Pedro da Montanha, por
alcunha o Vidente\ e na qual encontrei processo de descansar
divertidlssimamente nos milagres que então constituíam o
grande pretexto da minha perseguição. Du Peyrou mandou
imprimir em Genebra o papelucho, que na terra apenas alcan­
çou um êxito medíocre; com todo o seu espírito, os neucha­
telenses não percebem de maneira nenhuma o sal ático nem o
gracejo, logo que este é um tanto ou quanto fino.
Cuidei um pouco mais de outro escrito da mesma altura,
cujo manuscrito se há-de encontrar entre os meus papéis, e
cujo assunto importa aqui relatar.
No ponto culminante da fúria dos decretos e da persegui­
ção, os genebrinos haviam-se particularmente salientado, gri­
tando com toda a força aqui d'El-Rei, e, entre outros, o meu
amigo vernes, com uma generosidade verdadeiramente teoló­
gica, escolhera precisamente aquele momento para publicar
contra mim umas cartas, nas quais pretendia provar que eu
não era cristão. Tais cartas, escritas num tom suficiente, nem
por isso eram melhores, embora se asseverasse que nelas havia
o dedo do naturalista Bonnet, pois que, embora materialista,
o dito Bonnet não deixa de ser de uma intolerantíssima orto­
doxia, logo que se trata da minha pessoa. Decididamente, não
me tentava responder a semelhante obra; contudo, como viesse
a propósito dizer dela uma palavra nas Cartas da Montanha,
inseri nestas uma nota assaz desdenhosa, que enfureceu Ver­
nes. Atroou Genebra com os seus gritos de raiva, e D'Ivernois
comunicou-me que ele estava fora de si. Algum tempo depois,
apareceu uma folha anónima que, em vez de ser escrita com
tinta, parecia escrita com água do Flegetonte 2• Nesta carta,
acusavam-me de haver exposto os meus filhos nas ruas, de
arrastar comigo uma prostituta de soldados, de estar gasto

I La vision de Pierre de la Montagne, dit le Voyant.


2 Trata-se do Sentimento dos cidadãos, que Rousseau atribuiu a Ver­
nes, mas que se verificou ser de Voltaire, e que figura nas obras deste
sob o título de Resposta às Cartas da Montanha. N. do T.
-

609
39
pelo deboche, podre de venéreo, e outras amabilidades seme­
lhantes. Não me foi difícil reconhecer o homem. Ao ler tal
libelo, a minha primeira ideia foi atribuir o devido valor a tudo
o que entre os homens se chama fama e reputação, pois que
via acusar de frequentador de bordéis um homem que nunca
o foi, e cujo maior defeito consistiu sempre em ser timido
como uma donzela, e tacharem-me de estar podre de venéreo,
a mim, que nunca nos meus dias fui atacado de nenhum mal
desta espécie, e a quem até os especialistas supuseram uma
conformação que me punha ao abrigo deles. Pesando bem tudo,
julguei que a melhor maneira de refutar o libelo era mandá-lo
imprimir na cidade onde havia vivido mais tempo, e enviei-o
a Duchesne para o mandar imprimir tal qual, com uma adver­
tência na qual denunciava Monsieur Vernes, e algumas breves
notas a esclarecer os factos. Não contente em haver mandado
imprimir a folha, enviei-a a várias pessoas, entre as quais o
senhor príncipe Luis de Wirtemberg, que por mim havia dado
gentilíssimos passos, e com o qual me achava então em corres­
pondênCia. O príncipe, Du Peyrou, e outros, pareceram duvidar
que fosse Vernes o autor do libelo, censurando-me por o haver
acusado tão levianamente. Os seus protestos ·fizeram-me ter
escrúpulos, e escrevi a Duchesne para que suprimisse a folha.
Guy escreveu-me, dizendo-me que a tinha suprimido; não sei se
o fez; tanta vez me mentiu, que uma a mais não seria para
espantar; e a partir de então, achei-me envolto naquelas pro­
fundas trevas, através das quais me é impossível vislumbrar
qualquer espécie de verdade.
Depois do furor que anteriormente havia mostrado, Mon­
sieur Vernes aguentou semelhante imputação com uma mode­
ração que era mais que admirável num homem que não a
houvesse merecido. Escreveu-me duas ou três cartas muito
comedidas, cujo fim me pareceu consistir em procurar, graças
às minhas respostas, perceber até que ponto eu estava infor­
mado, e se tinha alguma prova contra ele. Enviei-lhe duas
respostas curtas, secas, de sentido duro, mas cujos termos não
eram descorteses, e com as quais ele não ficou zangado. A ter­
ceira carta, vendo que queria travar uma espécie de corres­
pondência, não lhe respondi: mandou-me falar por intermédio
de D'Ivernois. Madame Cramer escreveu a Du Peyrou, dizendo­
-lhe estar convencida de que o libelo não era de Vernes. Nada
disto abalou a minha convicção; mas, enfim, como poderia
enganar-me, e como neste caso devia a Vernes uma autêntica
reparação, mandei-lhe dizer por D'Ivernois que lha daria de

610
maneira a ele poder ficar satisfeito, desde que me apontasse o
verdadeiro autor do libelo, ou ao menos me provasse que não
era dele. Fiz mais: sentindo bem que, não sendo ele o culpado,
eu não tinha no fim de contas o direito de exigir que me pro­
vasse o quer que fosse, resolvi escrever, numa espécie de memó­
ria bastante desenvolvida, as razões da minha convicção, subme­
tendo-as ao juizo de um árbitro, que Vernes não pôde recusar.
Dificilmente se adivinharia qual o árbitro que escolhi: o Con­
selho de Genebra. No fim da memória declarava que se depois
de a haver examinado e feito as indagações que julgasse neces­
sárias, e que estava em boas condições de fazer satisfatória­
mente, o Conselho decidisse que não era Monsieur Vernes o autor
da memória, imediatamente eu deixaria de acreditar que o fosse,
e partiria para me lançar aos seus pés, pedindo-lhe perdão até
que o tivesse obtido. Ouso dizer que nunca o meu ardente zelo
de justiça, nunca a rectidão, a generosidade da minha alma,
nunca a minha confiança naquele amor da justiça que existe
inato em todos os corações, se mostraram mais totalmente,
mais sensivelmente do que nesta circunspecta e tocante memó­
ria, na qual sem hesitar eu tomava os meus mais implacáveis
inimigos como árbitros entre o caluniador e mim. Li o escrito a
Du Peyrou: foi este da opinião que eu o não publicasse, e eu não
o publiquei. Aconselhou-me ele a que esperasse as provas pro­
metidas por Vernes; eu esperei-as, e espero-as ainda; aconse­
lhou-me a que me calasse entrementes; eu calei-me, e calar­
-me-ei p ara o resto da minha vida, arguido de haver imputado a
Vernes uma grave acusação, falsa e sem provas, embora interior­
mente permaneça persuadido, convencido, como da minha pró­
pria existência, que é ele o autor do libelo. A minha memória
está nas mãos de Monsieur Du Peyrou. Se alguma vez vir a luz
do dia, nela acharão as minhas razões, e nela conhecerão, espe­
ro-o, a alma de Jean Jacques, que os meus contemporâneos tão
pouco quiseram conhecer.
E tempo de chegar à minha catástrofe de Motiers, e à minha
partida do Val-de-Travers, depois de aqui ter permanecido
dois anos e de haver sofrido durante oito meses, com uma
constância inabalável, os mais indignos tratos. É-me impos­
sível recordar-me claramente dos pormenores desta época desa­
gradável; encontrá-los-ão porém no relato que dela publicou
Du Peyrou, e do qual terei que falar a seguir.
Depois da partida de Madame de Verdelin, a agitação tor­
nava-se mais viva, e apesar dos repetidos rescritos do Rei,
apesar das frequentes ordens do Conselho de Estado, apesar dos

611
cuidados do Castelão e dos magistrados do lugar, o povo, olhan­
do-me positivamente como o Anti-Cristo, e considerando inúteis
todos os seus protestos, pareceu enfim querer chegar às vias de
facto; já pelos caminhos as pedras começavam a zunir,.me aos
ouvidos, atiradas porém ainda de muito longe para poderem
atingir-me. Enfim, na noite da feira de Motiers, que se realiza
nos começos de Setembro, fui atacado na minha habitação, de
maneira a pôr em risco a vida dos que nela moravam.
A meia-noite, ouvi um grande barulho na galeria que domi­
nava as traseiras da casa. Uma chuva de pedras, atiradas contra
a janela e a porta que davam para a dita galeria, nesta caíram
com tal fragor, que o cão, que dormia na galeria, e que tinha
começado a ladrar, calou-se com medo, e refugiou-se num
canto, começando a roer e a arranhar o sobrado para procurar
fugir. Ao barulho, levanto-me; ia a sair do meu quarto para a
cozinha, quando uma pedra, atirada com mão vigorosa, atra­
vessou a cozinha, depois de ter partido a janela, e, abrindo a
porta do quarto, veio cair aos pés da cama; de maneira que,
houvesse-me eu apressado um segundo, apanharia com a pedra
pelo estômago. Julguei que o barulho havia sido para me atrai­
rem, e a pedra atirada para me apanharem à saída. Salto à
cozinha. Encontro Teresa, que se havia igualmente levantado,
e que, a tremer toda, se dirigia para mim. Encostámo-nos à
parede, fora da direitura da janela, para evitar sermos atin­
gidos pelas pedras e para deliberar sobre o que havíamos de
fazer: porquanto, sair para pedir socorro, era processo de nos
desancarem. Felizmente, a criada de um velhote que morava
por baixo de mim levantou-se ouvindo o barulho, e correu a
chamar o senhor Castelão, que era porta com porta connosco.
Este saltou da cama, agarrou à pressa no roupão, e no mesmo
instante apareceu com a guarda, que nessa noite andava de
ronda por causa da feira, e estava ali mesmo à mão. Vendo
os prejuízos, o senhor Castelão empalideceu de terror, e ao
avistar as pedras que atravancavam a galeria, exclamou: Meu
Deus! isto é uma pedreira! Inspeccionando os baixos da casa,
reparámos que haviam forçado a porta de um pàtiozito, e que
haviam tentado penetrar na casa pela galeria. Ao investigar-se
por que razão não havia a guarda apercebido ou impedido a
desordem, verificou-se que os de Motiers haviam teimado em
fazer esta ronda quando ela lhes não tocava, e embora coubesse a
vez a outra aldeia. No dia seguinte, o Castelão enviou o seu
relatório ao Conselho de Estado, que dois dias depois lhe orde­
nou que se informasse sobre a questão, prometendo uma recom-

612
pensa e o sigilo a quem denunciasse os culpados, e mandar,
entretanto, guardar por conta do Príncipe tanto a minha casa
como a do Castelão que com ela pegava. No dia imediato, o
coronel Pury, o Procurador da República Meuron, o Castelão
Martinet, o recebedor Guyenet, o tesoureiro D'Ivernois e o pai,
numa palavra, todas as pessoas distintas da terra, vieram visi­
tar-me, e juntaram as suas solicitações para me decidirem a
ceder à borrasca, e a sair ao menos temporàriamente de uma
paróquia onde já não podia viver nem com segurança, nem
com honra. Notei mesmo que, aterrorizado com a fúria do povo
exaltado, e temendo não chegasse ela até à sua pessoa, o
Castelão teria ficado contentíssimo vendo-me partir o mais
depressa possível, para se livrar do embaraço de me proteger,
e para ele próprio partir dali, como de facto fez, depois de eu
me ir embora. Cedi, pois, e até com pouca pena, pois que o
espectáculo do ódio do povo me causava uma dor de coração
que já não podia suportar.
Tinha mais de um asilo à escolha. Depois de haver regres­
sado a Paris, Madame de Verdelin havia-me falado em várias
cartas de um tal Monsieur Walpole, a quem ela chamava Mylord,
e o qual, assaltado de um grande zelo pela minha pessoa, me
propunha numa das suas terras um asilo, de que ela me fazia
as mais agradáveis descrições, entrando, quanto ao alojamento
e à subsistência, em pormenores qu.e denunciavam a que ponto
o dito Mylord Walpole e ela se ocupavam deste projecto. Mylord
Marêchal havia-me sempre aconselhado a Inglaterra ou a Escó­
cia, oferecendo-me ali igualmente um asilo nas suas terras;
oferecia-me contudo um outro perto dele, em Potsdam, que
me tentava muito mais. Acabava ele de me comunicar uma
proposta a meu respeito que o Rei lhe havia feito, e que consis­
tia numa espécie de convite para eu para ali ir, contando a
senhora duquesa de Saxe-Gota tanto com tal viagem, que me
escreveu a instar comigo para na passagem a ir ver, e ficar
algum tempo com ela; eu, no entanto, tinha uma tal afeição
pela Suíça, que me não podia resolver a deixá-la enquanto me
fosse possível ali viver, e aproveitei o tempo de que dispunha
para executar um projecto, que há alguns meses tinha na
cabeça, e do qual não pude ainda falar para não cortar o fio
à minha narração.
Este projecto consistia em me ir instalar na ilha de S. Pedro,
domínio do hospital de Berna, no meio do lago de Biena. Eu e
Du Peyrou, numa peregrinação pedestre que havíamos feito no
Verão anterior, tínhamos visitado a ilha, e eu tinha de tal

613
maneira ficado encantado eom ela, que desde então só havia
pensado na maneira de para ali ir morar. O maior obstáculo
residia no facto de a ilha pertencer aos cidadãos de Berna,
que há três anos me haviam tão vilmente expulsado da cidade,
e, além de que o meu orgulho sofria em voltar para junto de
pessoas que me haviam tão mal recebido, tudo levava a crer
que não me deixassem mais tranquilo na ilha do que em
Yverdun. A este respeito, consultara Mylord Marêchal que,
pensando como eu que os cidadãos de Berna ficariam muito
satisfeitos por me verem relegado na ilha e aqui me conservarem
como penhor dos escritos que eu poderia ser tentado a publicar,
tinha sobre o caso mandado sondar as suas disposições por um
tal Monsieur Sturler, seu antigo vizinho de Colombier. Monsieur
Sturler dirigiu-se aos chefes do Estado, e, de aeordo com a sua
resposta, garantiu a Mylord Marêchal que os cidadãos de Berna,
envergonhados com a sua conduta passada, só desejavam ver-me
domiciliado na ilha de S. Pedro, deixando-me ali tranquilo.
Para melhor me acautelar, e antes de me arriscar a ir para lá
morar, mandei tomar novas informações pelo coronel Chaillet,
que me confirmou o mesmo; e como o Recebedor da ilha hou­
vesse recebido dos patrões autorização para ali me alojar,
julguei nada arriscar indo instalar-me em casa dele, com o
consentimento táeito tanto do soberano como dos proprietários;
porquanto eu não podia esperar que os senhores de Berna reco­
nhecessem abertamente a injustiça que me haviam feito, e
infringissem assim a mais inviolável máxima de todos os sobe­
ranos.
A ilha de S. Pedro, chamada em Neufchâtel ilha de La
Motte, sita no meio do lago de Biena, tem cerca de meia légua
de perímetro; neste pequeno espaço fornece, porém, todas as
principais produções necessárias à vida. Tem campos, prados,
vergéis, matas, vinhas, e tudo isto, favorooido por um terreno
variado e montanhoso, forma uma distribuição tanto mais
agradável quanto as suas partes, não se descobrindo todas ao
mesmo tempo, se valorizam mutuamente, e fazem parecer a
ilha maior do que ela é na realidade. Um terrado, bastante
elevado, forma a parte ocidental, que olha para Gleresse e para
a Bonneville. Nesse terrado plantaram uma comprida alameda,
cortada ao meio por um belvedere, onde, durante as vindimas,
o povo de todas as costas vizinhas se junta ao domingo para
dançar e se divertir. Na ilha só há uma casa, onde habita o
Recebedor, mas a qual é vasta e cómoda, e situada num baixo
que a conserva abrigada dos ventos.

614
A quinhentos ou seiscentos passos da ilba, para o lado
sul, há outra ilha muito mais pequena, inculta e deserta, a
qual parece ter sido outrora separada da grande pelas tem­
pestades, e em cujo cascalho só crescem salgueiros e persi­
cárias, mas onde existe no entanto um elevado cômoro, bem
arrelvado e muito aprazível. A forma do lago é a de um oval
quase regular. As margens, menos ricas que as dos lagos de
Genebra e de Neufchâtel, não deixam de formar uma decoração
bastante bela, mormente na sua parte ocidental, que é muito
povoada, e bordada de vinhas no sopé de uma cadeia de serras,
pouco mais ou menos corno em Côte-Rôtie, mas que não pro­
duzem um vinho tão bom. Indo do sul para o norte, encon­
tram-se o bailiado de S. João, a Bonneville, Biena e Nidau, na
extremidade do lago, tudo entrecortado de aldeias muito apra­
zíveis.
Tal era o asilo que eu arranjara, e no qual resolvi ir ins­
talar-me ao abandonar o Val-de-Travers 1• A escolha era tão
conforme ao meu gosto pacífico, ao meu humor solitário e
preguiçoso, que a conto entre as mais doces fantasias por que
mais vivamente me apaixonei. Parecia-me que nesta ilha me
acharia mais separado dos homens, mais ao abrigo dos seus
ultrajes, mais esquecido deles, mais entregue, em suma, às
doçuras da ociosidade e da vida contemplativa. Desejaria de tal
maneira achar-me confinado nesta ilha, que mais nenhum
comércio tivesse com os mortais, e o certo é que tomei todas
as medidas que se podem imaginar para me furtar à necessi­
dade de o sustentar.
Tratava-se de viver, e a subsistência na ilha, onde aliâs
se está à discrição do Recebedor, é cara, tanto pelo elevado
custo dos produtos, como pela dificuldade dos transportes.
A dificuldade foi removida, graças a um acordo que Du Peyrou
quis ter a amabilidade de fazer comigo, substituindo-se à com­
panhia que havia empreendido e abandonado a edição completa
das minhas obras. Entreguei-lhe todos os materiais da edição.
Fiz o seu arranjo e distribuição. A isto juntei o compromisso de
lhe entregar as Memórias da minha vida, e fi-lo depositário

1 Talvez não seja inútil advertir que deixava ali um inimigo parti­
cular num tal Monsieur du Terraux, «maire» de Verriéres, muito pouco
considerado na terra, mas com um irmão, que dizem homem de bem,
nos escritórios de Monsieur de Saint-Florentin. O «maire» tinha-o ido
visitar algum tempo antes da minha aventura. As pequenas observações
desta natureza, que em si nada são, podem levar posteriormente à des­
coberta de muitas cavilações. � Nota àc J.-J. Rou;s;scau.

615
geral de todos os meus papéis, ·com a condição expressa de só
se utilizar deles depois da minha morte, visto tomar a peito
acabar tranquilamente a minha carreira, sem dar mais azo a
que o público se recordasse de mim. Graças a isto, a pensão
vitalícia que ele se encarregava de me pagar chegava para
a minha subsistência. Tendo Mylord Marêchal reentrado na
posse de todos os seus bens, oferecera-me outra de mil e
duzentos francos, que eu só aceitei reduzida a metade. Quis
ele enviar-me o capital, que eu recusei, em vista da dificul­
dade em o colocar. Entregou o dito capital a Du Peyrou,
nas mãos do qual ficou, e que dele me paga a renda vitalí­
cia no pé combinado com o constituinte. Juntando pois o
meu contrato com !Du Peyrou, a pensão de !Mylord Marê­
chal, cujos dois terços eram reversíveis a Teresa depois da
minha morte, e a renda de trezentos 'francos que me vinha de
Duchesne, podia contar com uma subsistência honesta, tanto
'
por minha parte, como, depois de mim, por parte de Teresa, a
quem deixava setecentos francos de renda, tanto da pensão
de Rey, como da de Mylord Marêchal: desta maneira, já não
podia recear que o pão lhe faltasse, assim como a mim. Estava
porém escrito que a honra me forçaria a recusar todos os
recursos que a fortuna e o meu trabalho poriam ao meu alcance,
e que morreria tão pobre como havia vivido. A menos de ser
o último dos infames, imaginem se eu podia observar acordos
que sempre tiveram o cuidado de me tornar ignominiosos, tiran­
do-me cuidadosamente todo e qualquer outro recurso, para me
forçarem a consentir na minha desonra. Como desconfiariam
eles do partido que eu em semelhante alternativa tomaria?
Sempre julgaram do meu coração pelo deles.
Tranquilizado quanto à minha subsistência, nenhuma outra
coisa me dava cuidados. Embora abandonasse no mundo o campo
livre aos meus inimigos, deixava, no nobre entusiasmo que
havia ditado os meus escrúpulos, assim como na constante uni­
formidade dos meus princípios, um testemunho da minha alma
que estava de acordo com o que toda a minha conduta prestava
do meu natural. Não precisava de outra defesa contra os meus
caluniadores. Sob o meu nome, podiam pintar um outro homem;
mas só podiam enganar aqueles que quisessem ser enganados.
De uma ponta à outra, podia dar-lhes a minha vida a criticar:
estava convencido de que, através das minhas faltas e das
minhas fraquezas, através da minha incapacidade para supor­
tar qualquer jugo, encontrar-se-la sempre um homem justo,
bom, sem rancor, sem ódio, sem inveja, pronto a reconhecer

616
os seus pr·óprios erros, mais pronto ainda em reconhecer os
dos outros, buscando toda a sua felicidade nas paixões amantes
e doces, e em todas as coisas levando a sinceridade até à impru­
dência, até ao mais incrível desinteresse.
Despedia-me pois de certo modo do meu século e dos meus
contemporâneos, e, ao confinar-me nesta ilha para o resto dos
meus dias, dizia adeus ao mundo; porque tal era a minha reso­
lução, e era ai que eu contava executar alfim o grande projecto
daquela vida ociosa, à qual até então havia inÜtilmente consa­
grado toda a pouca actividade que o céu me havia concedido.
Esta ilha ia ser para mim a ilha de Papimânia, aquele ditoso
pais onde se dorme :

Onde se jaz mais, onde nada se faz 1

Este mais era tudo para mim, porque eu sempre lastimei


pouco o sono; basta-me a ociosidade, e, logo que nada faça,
prefiro ainda sonhar acordado do que a dormir. Como a idade
dos projectos romanescos tinha passado, e o fumo da gloriola
me havia mais aturdido que seduzido, só me restava, como
última esperança, a de viver à vontade, num eterno ócio. É, no
outro mundo, a vida dos bem-aventurados, e dela fazia eu
doravante neste a minha felicidade suprema.
Os que me censuram tantas contradições não deixarão
neste ponto de me censurar mais uma. Disse eu que a ocio­
sidade das reuniões me tornava estas insuportáveis, e aqui
estou eu em busca da solidão apenas para nela viver ociosa­
mente. É todavia assim que eu sou; se há nisto contradição, é
da alçada da natureza, não da minha; há-o porém tão pouco,
que é nisto precisamente que eu sou sempre eu. A ociosidade
das reuniões é mortal, porque é uma necessidade. A da solidão
é encantadora, porque é livre e voluntária. De companhia, é-me
cruel nada fazer, porque a isso sou obrigado. É mister perma­
necer para ali pregado numa cadeira ou de pé, plantado como
uma estaca, sem mexer um dedo, sem ousar correr, nem saltar,
nem cantar, nem gritar, nem gesticular quando me apetece,
sem ousar sequer sonhar, tendo à uma todo o aborrecimento
da ociosidade e toda a mortificação do constrangimento; obri­
gado a prestar atenção a todas as tolices que se dizem, e a todos
os cumprimentos que se fazem, e a puxar constantemente
pelo miolo para não deixar escapar a vez de impingir a

I Alusão ao conto de La Fontaine : O Diabo de Papajigueira. - N. do T.

617
minha charada e a minha patranha. E chamais vós a isto
ociosidade? Um trabalho de forçado, é o que é.
A ociosidade que me apraz não é a do calaceiro que se
conserva de braços cruzados, numa total inacção, e que pensa
tanto como age. É a um tempo a da criança que constante­
mente se mexe para nada fazer, e a do tonto que divaga,
enquanto os braços estão em descanso. Gosto de estar ocupado
com nonadas, gosto de começar mil coisas sem acabar nenhuma,
de ir e vir quando me dá na gana, de a cada momento mudar
de projecto, de seguir todos os movimentos de uma mosca, de
querer arrancar um rochedo para ver o que há por debaixo dele,
de empreender entusiasmado um trabalho de dez anos, e aban­
doná-lo sem pena ao fim de dez minutos, enfim, de distrair-me
sem ordem nem plano durante todo o dia, de em tudo seguir
apenas o capricho do momento.
A botânica, tal como sempre a encarei, e tal como ela
começava a tornar-se para mim uma paixão, era precisamente
um estudo ocioso, indicado para encher todo o vazio dos meus
lazeres, sem neles consentir lugar para o delírio da imaginação,
nem para o aborrecimento de uma total desocupação. Errar
indolentemente através de bosques e campos, colher maquinal­
mente aqui e ali ora uma flor, ora um ramo, pascer o meu feno
quase ao acaso, observar repetidamente mil vezes as mesmas
coisas, sempre com interesse, pois que sempre as esquecia, eram
coisas com que passar a eternidade sem pensar aborrecer-me
um instante. Por muito elegante, por muito admirável, por
muito diversa que seja a estrutura dos vegetais, ela não basta
para impressionar a vista do ignorante e despertar-lhe inte­
resse. Aquela constante analogia, e contudo aquela variedade
/ prodigiosa que reina na sua organização, só entusiasma a queles
que têm já qualquer ideia do sistema vegetal. Os outros, à/ vista
de todos estes tesouros da natureza, só têm uma admiração
estúpida e monótona. Nada vêem em pormenor, porque nem
sequer sabem o que é mister contemplar, e também não vêem
o conjunto, porque não têm ideia alguma daquela cadeia de
relações e de combinações que confunde o espirito do observa­
dor. Eu estava, devendo a minha falta de memória sempre
manter-me, naquele feliz ponto de conhecer sempre da coisa
muito pouco para que tudo fosse novo para mim, e o bastante
para que tudo me fosse sensível. A diversidade dos solos em
qu e, embora pequena, a ilha se acha repartidá, oferecia-me
uma variedade suficiente de plantas para estudar, e para me
entreter toda a vida. Não queria nela deixar um filamento de

618
erva sem o analisar, e já me dispunha a fazer, com uma enorme
colecção de observações curiosas, uma Flora Petrinsularis.
Mandei vir Teresa com os meus livros e as minhas coisas.
Tomámos pensão em casa do Recebedor da ilha. A mulher
tinha as irmãs em Nidau, as quais a vinham ver cada uma por
sua vez, constituindo uma companhia para Teresa. Experimentei
ali aquela doçura de vida em que desejaria passar a minha,
e a qual me deu um gosto que apenas serviu para melhor me
fazer sentir a amargura da que tão de pronto lhe devia suceder.
Amei sempre a água com paixão, e o vê-la lança-me num
devaneio delicioso, embora frequentemente sem objecto deter­
minado. Quando estava bom tempo, nunca deixei, ao levan­
tar-me, de correr ao terrado para respirar o ar fresco e salubre
da manhã, e alargar a vista pelo horizonte deste belo lago,
cujas margens e serras que o circundam são um encanto para
a minha vista. Não encontro para a Divindade mais digna
homenagem do que esta admiração muda que a contemplação
das suas obras desperta, e que se não exprime por actos exten­
sos. Compreendo como os habitantes das cidades, vendo apenas
paredes, ruas, ·e crimes, têm pouca fé; mas não compreendo
como a não podem ter os camponeses, e sobretudo os solitários.
Como é que a sua alma se não eleva extasiadamente cem vezes
por dia ao autor das maravilhas que os impressionam? Por mim,
é sobretudo quando me levanto, abatido pelas insónias, que,
graças a um longo hábito, sou levado a estas elevações do cora­
ção, que não impõem a fadiga de pensar. Mas para isso é preciso
que os meus olhos se impressionem com o arrebatador espec­
táculo da natureza. No meu quarto, oro mais raramente e com
mais secura: à vista porém de uma bela paisagem, sinto-me
comovido, sem saber dizer porquê. Li algures que um sábio
bispo, na visita à sua diocese, encontrou uma velha que, como
única oração, apenas sabia dizer isto: Oh! Vai ele, diz-lhe:
Tiazinha, continuai a orar sempre assim; a vossa oração vale
mais do que as nossas. Essa oração, melhor que as outras, é
-
também a minha.
Depois do almoço, corria a escrever resmungando algumas
pobres cartas, suspirando vivamente pelo ditoso momento em
que não mais as teria que escrever. Afadigava-me alguns instan­
tes em volta dos meus livros e dos meus papéis, para os dese­
malar e arrumar, mais do que para os ler, e a sua arrumação,
que para mim se transformava na obra de Penélope, dava-me
o prazer de por instantes me entreter com nonad�s; depois do
que me aborrecia e a abandonava, para passar as três ou quatro

619
horas que me restavam da manhã a estudar botânica, mor­
mente o sistema de Lineu, ao qual ganhei uma paixão, de que
não pude curar-me perfeitamente, mesmo depois de lhe haver
sentido o vazio. Em meu entender, este grande observador é,
com Ludwig, o único que até hoje viu a botânica como natu­
ralista e como filósofo, estudou-a porém de mais em herbários
e em jardins, e pouco na própria natureza. Por mim, para quem
a ilha inteira era um jardim, logo que tinha necessidade de
fazer ou verificar qualquer observação, corria aos bosques ou
aos prados, com o meu livro debaixo do braço: uma vez ali,
deitava-me por terra junto da planta em questão, para a exa­
minar directamente à minha inteira vontade. Tal método ser­
viu-me bastante para conhecer os vegetais no seu estado natu-
. ral, antes de terem sido cultivados e desnaturados pela mão do
homem. Diz-se que Fagon, primeiro médico de Luis XIV, que
nomeava e conhecia perfeitamente todas as plantas do Jardim
Real, era, no campo, de uma tal ignorância, que, uma vez ali,
nada mais conhecia. Eu sou precisamente o contrário: conheço
qualquer coisa da obra da natureza, mas nada da do jardineiro.
Quanto às tardes, entregava-as totalmente ao meu humor
ocioso e indolente, e a seguir sem regra a impulsão do momento.
Frequentemente, quando o tempo estava calmo, ia imediata­
mente após sair da mesa lançar-me sozinho num barquinho,
que o Recebedor me havia ensinado a guiar com um só remo;
metia-me pela água dentro. O momento em que derivava
dava-me uma alegria que ia até à comoção, e cuja causa me
é impossível dizer ou compreender perfeitamente, a não ser
talvez um júbilo secreto por neste estadQ me achar fora do
alcance dos maus. Em seguida, errava sozinho pelo lago, apro­
ximando-me por vezes das margens, mas sem nunca as tocar.
Frequentemente, deixando ir o barco ao sabor do ar e da água,
entregava-me a devaneios sem objecto, e que nem por serem
estúpidos eram menos doces. Por vezes, exclamava enternecida­
mente : Oh natureza! oh minha mãe! eis-me só sob a tua
guarda ; não há aqui homem algum manhoso e velhaco que se
intrometa entre ti e mim. Afastava-me assim obra de uma
légua da terra; desejaria que o lago fosse o Oceano. No entanto,
para agradar ao meu pobre cão, que não gostava tanto como
eu das estações prolongadas sobre a água, seguia ordinària­
mente um fito no passeio; era desembarcar na ilhazita, passear
ali uma ou duas horas, ou deitar-me no alto da colina sobre
a relva, para me fartar do prazer de admirar o lago e os arre­
dores, para examinar e dissecar todas as ervas que se achavam

620
ao meu alcance, e para, qual outro Robinson, construir uma
morada imaginária na ilhazita. Tomava grande afeição ao
cômoro. Quando ali podia levar de passeio Teresa com a Rece­
bedora e as irmãs, como me orgulhava de ser o seu piloto e o
seu guia! Levávamos solenemente para lá coelhos para a povoar;
outra festa para J. J. Este povoamento tornou-me a ilhazita
ainda mais interessante. Dessa altura em diante passei a ir lá
mais vezes e com mais prazer, para procurar os vestígios do
progresso dos novos habitantes.
A estas distracções juntei outra que me recordava a doce
vida das Charmettes, e à qual a estação me convidava parti­
cularmente. Era uma repartição de cuidados rústicos para a
colheita dos legumes e das frutas, e que nós, Teresa e eu, sen­
tíamos pra,zer em partilhar com a Recebedora e a familia.
Recordo-me de que havendo-me vindo visitar um cavalheiro
de Berna, chamado Monsieur Kirkebergher, este me encontrou
empoleirado numa grande árvore, com um saco atado à cinta, e
já tão cheio de maçãs, que eu nem podia mexer-me ..Não me
amofinei com o encontro nem com outros semelhantes. Esperava
que, testemunhas do emprego do meu tempo, os habitantes de
Berna não voltassem a pensar em perturbar a minha tranqui­
lidade, deixando-me em paz na minha solidão. Preferiria muito
mais ali achar-me confinado por sua vontade do que por minha:
estaria mais certo de não ver o meu repouso perturbado.
Eis ainda uma daquelas confissões a respe1to da qual estou
de antemão convencido da incredulidade dos leitores, que tei­
mam sempre em me julgar através deles mesmos, embora
tenham sido forçados durante todo o curso da minha vida a
ver mil afeições internas nada parecidas com as suas. o que
é mais extraordinário é que, ao recusarem-me todos os senti­
mentos bons ou indiferentes que não possuem, estão sempre
prontos a atribuirem-me outros tão maus, que nem sequer
poderiam entrar num coração de homem; acham então muito
simples pôr-me em contradição com a natureza, e fazer de
mim um monstro que nem sequer é possivel existir. Absurdo
nenhum lhes parece incrível, desde que tenda a denegrir-me;
coisa nenhuma extraordinária lhes parece possível, desde que
tenda a honrar-me.
Contudo, apesar do que possam acreditar ou dizer, nem por
isso eu deixarei de expor fielmente o que fof, fez e pensou
J. J. Rousseau, sem explicar nem justificar a singularidade dos
seus sentimentos e das suas ideias, nem curar de saber se
outros houve que pensaram como ele. Tomei tal gosto à ilha

621
de S. Pedro, e a permanência nela agradava-me tanto, que,
à força de insculpir nela todos os meus desejos, formei o d�
nunca mais dali sair. As visitas que tinha que fazer aos
vizinhos, as· corridas que teria que dar a Neufchâtel, a Biena,
a Yverdun, a Nidau, fatigavam-me já a imaginação. Dia que
tivesse que passar fora da ilha parecia-me cerceado à minha
felicidade, e sair do recinto daquele lago era para mim sair
do meu elemento. Aliás, a experiência do passado tinha-me
tornado timorato. Bastava que ,qualquer bem acariciasse o meu
coração para pensar que o viria a perder, e o ardente desejo de
acabar os meus dias na ilha era inseparável do receio de ser
forçado a sair dela. Tinha-me habituado a ir sentar-me ao
entardecer na praia, sobretudo quando o lago estava agitado
Sentia um singular prazer em ver as ondas quebrarem-se aos
meus pés. Delas tirava a imagem do tumulto do mundo, e da
paz da minha habitação; e algumas vezes me enternecia com
esta doce ideia, até sentir as lágrimas marejarem-me os olhos.
Este repouso, que eu gozava apaixonadamente, era apenas per­
turbado pela inquietação de o perder; tal inquietação ia porém
até ao ponto de lhe alterar a doçura. Sentia que a minha situa­
ção era tão precária, que não podia cont3.r com ela. Ai!, dizia
para comigo, como eu trocaria de bom grado a liberdade de
sair daqui, coisa em que não cuido, pela certeza de aqui poder
ficar para sempre! Em vez de ser graciosamente tolerado, por­
que não me acho eu aqui detido à força! Aqueles que mais não
fazem ,que tolerar-me podem a todo o momento expulsar-me;
e posso eu esperar que, vendo-me feliz, os meus perseguidores
me deixem continuar a sê-lo? Ai! , quão pouco é que aqui me
permitam viver; desejaria que a isso me condenassem, e ambi­
cionaria ser obrigado a permanecer aqui, para o não ser a
sair. Deitava um olhar de invej a ao feliz Micheli Du ,Cret, que,
tranquilo no castelo de Arberg, mais não tivera que desejar
ser feliz para o ser. Por fim, à força de me entregar a estas
reflexões e aos inquietantes pressentimentos de novas tormen­
tas, sempre prestes a cair sobre mim, acabei por desejar,
mas com inacreditável ardor, que, em vez de apenas tolerarem
que habitasse na ilha, ma dessem por prisão perpétua, e posso
jurar que, dependesse ele tão-sõmente de mim condenaram-me
a tal, tê-lo-ia feito com a maior alegria, preferindo mil vezes
a necessidade de nela passar o resto da minha vida ao perigo
de dali ser expulso.
Semelhante receio não foi por muito tempo vão. Quando
menos o esperava, recebi uma carta do senhor Bailio de Nidau,

622
sob cujo governo estava a ilha de S. Pedro; por esta carta, inti­
mava-me ele, da parte de Suas Excelências, a que ·saísse dos
seus Estados. Ao M-Ia, julguei sonhar. Nada menos natural,
menos razoável, menos de prever que semelhante ordene por­
quanto eu havia considerado os meus pressentimentos mais
como inquietação de um homem desorientado pelas desgraças,
do que como uma previsão que pudesse ter o menor fundamento.
As medidas que havia tomado para garantir o consentimento
tácito do soberano, a tranquilidade com que me haviam dei­
xado instalar, a visita de vários cidadãos de Berna, assim como
do próprio Bailio, que me havia cumulado de amizades e de
atenções, o rigor da estação, na qual era bárbaro expulsar um
homem enfermo, tudo me levou a crer, assim como a muitas
pessoas, que havia qualquer mal-entendido em semelhante
ordem, e que os mal-intencionados tinham de propósito apro­
veitado o tempo das vindimas e da pouca frequência do Senado
para me desferirem bruscamente este golpe.
Se houvesse escutado a minha primeira indignação, teria
partido imediatamente. Onde ir, porém? Que fazer, à entrada
do Inverno, sem alvo, sem nada preparado, sem condutor, sem
carruagem? A não ser que deixasse tudo ao abandono, os meus
papéis, as minhas coisas, todos os meus negócios, tinha neces­
sidade de tempo para a tal providenciar, e na ordem não se
dizia se mo deixavam ou não. A continuidade da desgraça
começava a abater-me a coragem. Senti, pel-a primeira vez, o
meu orgulho natural ceder sob o jugo da necessidade e, apesar
das queixas do meu coração, necessário foi abaixar-me e pedir
um prazo. Dirigi-me a Monsieur de Graffenried, que me havia
enviado a ordem, para ma interpretar. Na sua carta desapro­
vava ele vivamente tal ordem, à qual só me intimava com a
maior pena, e os testemunhos de dor e de estima que a enchiam
pareciam-me outros tantos convites dulcíssimos a que lhe falasse
com o coração aberto; o que fiz. Nem sequer duvidava de que
a minha carta abrisse os olhos àqueles iníquos homens a respeito
da sua barbaridade, e que, no caso de não revogarem tão cruel
ordem, conceder-me-iam ao menos um prazo razoável, talvez
todo o Inverno, para preparar a minha partida, e escolher um
lugar para onde ir.
Enquanto esperava a resposta, pus-me a reflectir sobre a
minha situação, e a deliberar acerca do partido que devia tomar.
De todos os lados vi tantas dificuldades, o desgosto tinha-me de
tal maneira impressionado, e neste momento a minha saúde era
tão má, que me deixei completamente abater, tendo o meu

623
desalento tido por consequência tirar-me os poucos recursos que
me podiam restar no espírito para sacar o melhor partido pos­
sível da minha triste situação. Era evidente que, em qualquer
asilo que quisesse refugiar-me, não tinha meio de me esquivar
aos dois processos que haviam adoptado para me expulsarem:
um, levantando contra mim a populaça, graças a manobras
secretas; outro, expulsando-me violentamente, sem me darem
qualquer razão. Não podia pois contar com retiro nenhum
seguro, a não ser que o fosse procurar mais longe do que as
minhas forças e a estação pareciam permiti-lo. Ligando tudo
isto às ideias com que acabava de me ocupar, ousei desejar e
propor que quisessem dispor de mim em cativeiro perpétuo, de
preferência a fazer-me errar permanentemente sobre a terra,
expulsando-me sucessivamente de todos os asilos que houvesse
escolhido. Dois dias depois da primeira carta, escrevi segunda
a Monsieur de Graffenried, pedindo-lhe que fizesse a proposta
a Suas Excelências. A resposta de Berna a uma e outra foi
uma ordem concebida nos mais formais e nos mais duros ter­
mos para sair da ilha e de todo o território mediato e imediato
da República no espaço de vinte e quatro horas, e nunca mais
lá entrar, sob as mais graves penas
Este momento foi terrivel. Encontret-me depois nas piores
angústias, mas nunca em embaraço maior. Todavia, o que mais
me afligiu foi ser forçado a renunciar ao projecto que me havia
levado a desejar passar o Inverno na ilha. l!J tempo de contar
a anedota fatal que levou ao auge os meus desastres, e que
na minha queda arrastou um desventurado povo, cujas inci­
pientes virtudes prometiam já igualar um dia as de Esparta e
de Roma.
No Contrato social, havia eu falado dos corsos como de
um povo novo, o único da Eurpoa que não estava gasto pela
legislação, manifestando a grande esperança que se devia ter em
semelhante povo, se este tivesse a felicidade de encontrar um
sábio mentor. A obra foi lida por alguns corsos, que ficaram
sensibilizados pela maneira honrosa como eu falava deles, e
s. circunstância em que se encontravam de trabalhar pela sua
República levou alguns dos seus chefes a pensar em me pedi­
rem as minhas ideias sobre esta importante obra. Um tal Mon­
sieur Buttafuoco, pertencente a uma das primeiras famílias do
pais, e capitão em França do regimento real italiano, escreveu-me
a este respeito, fornecendo-me várias peças que eu lhe pedira
para me pôr ao corrente da história da nação e do estado do
pais.Também Monsieur iPaoli me escreveu várias vezes, e

624
embora eu sentisse semelhante cometimento acima das minhas
forças, julguei não dever recusar-lhas, para concorrer para
tão grande e bela obra, quando houvesse obtido todas as ins­
truções de que para isso tinha necessidade. Foi neste sentido
que respondi a um e a outro, e a correspondência com eles
continuou até eu partir.
Soube, precisamente na mesma altura, que a França estava
a enviar tropas para a Córsega, e que havia concluído um tra­
tado com os genoveses. Semelhante tratado, semelhante envio
de tropas inquietavam-me, e sem pensar ainda que tudo isto
tivesse alguma relação comigo, julguei ser impossível e ridículo
trabalhar numa obra que exige tão grande repouso, qual é a
organização de um povo, no momento em que este ia porventura
ser subjugado. Não escondi as minhas apreensões a Monsieur
Buttafuoco, que me tranquilizou com a certeza de que se no
tratado houvesse algo contrário à liberdade da sua nação, um
tão grande patriota como ele não ficaria, como ficava, ao ser­
viço da França. Com efeito, o seu zelo pela legislação dos cor­
sos, e as suas estreitas relações com !Monsieur Paoli, não podiam
deixar-me a seu respeito qualquer dúvida, e quando vim a saber
que ele fazia frequentes viagens a Versalhes e a Fontainebleau,
e que tinha relações com Monsieur de Choiseul, a única coisa
que concluí foi ter ele sobre as intenções da corte francesa
garantias que me dava a entender, mas sobre as quais não
queria explicar-se abertamente por correspondência.
Tudo isto me tranquilizava em parte. No entanto, como
nada compreendia deste envio de tropas francesas, como não
podia razoàvelmente pensar que elas ali se achassem para
defender a liberdade dos corsos, que eram muito bem capazes
de se defender sozinhos contra os genoveses, não podia tran­
quilizar-me completamente, nem intrometer me sem mais nem
-

menos na legislação proposta, sem obter provas seguras de


que tudo isto não era uma peça que me queriam pregar. Gosta­
ria grandemente de ter uma entrevista com Monsieur Butta­
fuoco; era a maneira de arrancar dele os esclarecimentos de
que tinha necessidade. Este protelou-a, e eu esperava-a com a
maior impaciência. Quanto a ele, não sei verdadeiramente se
a projectava; ainda porém que a projectasse, os meus desas­
tres ter-me-iam impedido de aproveitar dela.
Quanto mais meditava na empresa proposta, quanto mais
avançava no exame das peças que tinha entre mãos, mais
necessidade sentia de estudar de perto tanto o povo que se
tratava de organizar, como o solo em que este habitava, do

625
mesmo modo que todas as relações mediante as quais era neces­
sário apropriar tal organização. Cada dia compreendia melhor
que me era impossível adquirir de longe todas as luzes necessá­
rias para me guiar. Comuniquei-o por carta a Monsieur But­
tafuoco: ele próprio o sentiu, e se não formei precisamente o
propósito de passar à •Córsega, ocupei-me a valer com os meios
de fazer a viagem. Falei dela a Monsieur Dastier, o qual, tendo
outrora servido na ilha, como subordinado de Monsieur de
Maillebois, a devia conhecer. Nada poupou para me desviar de
tal intenção, e confesso que a terrível descrição que me fez dos
corsos e da terra resfriou bastante o desejo que eu- tinha de ir
viver com eles.
No entanto, quando as perseguições de Motiers me leva­
ram a pensar em abandonar a ISuíça, tal desejo reavivou­
-se-me, graças à esperança que tinha de encontrar enfim
entre esses insulares aquele repouso que me não queriam deixar
em parte alguma. Apenas uma coisa me assustava na viagem:
era a inaptidão e a aversão que sempre tinha tido pela vida
activa à qual ia ser condenado. Havia nascido para meditar a
meu cómodo na solidão, mas de maneira nenhuma para falar,
agir, tratar de negócios com homens. A natureza, que me dera o
primeiro talento, recusara-me o outro. Sentia no entanto que,
sem tomar directamente parte nos negócios públicos, logo que
me achasse na Córsega ver-me-ia obrigado a entregar-me ao
ardor do povo, e a conferenciar frequentlssimamente com
os chefes. o próprio objectivo da viagem exigia que, em vez de
procurar um refúgio, procurasse, no seio da nação, as luzes de
que tinha necessidade. Tornava-se claro que não poderia dispor
de mim mesmo, e que, arrastado mau grado meu, num turbi­
lhão para o qual não nascera, levaria ali uma vida inteiramente
contrária ao meu gosto, e só me mostraria desvantajosamente
para mim. Previa que, sustentando mal pela minha presença a
opinião de capacidade que os meus livros teriam podido dar­
-lhes de mim, desacreditar-me-ia entre os corsos, e perderià,
tanto em seu prejuizo como no meu, a confiança que haviam
depositado na minha pessoa, e sem a qual não poderia fazer
com êxito a obra que de mim esperavam. Tinha a certeza de
que saindo assim da minha esfera, me tornaria inútil para
eles e faria a minha infelicidade.
Atormentado, batido por tempestades de toda a sorte,
fatigado há já vários anos por viagens e perseguições, sentia
uma viva necessidade de me repousar, coisa de que os meus
bárbaros inimigos caprichavam em privar-me; mais do que

626
nunca suspirava por aquela amável ociosidade, por aquela doce
quietação de espírito e de corpo, ,que tanto tinha ambicionado,
e à qual, emendado das quimeras do amor e da amizade, o meu
coração limitava a sua felicidade suprema. Os trabalhos que
ia empreender, a vida tumultuosa a que ia entregar-me, só a
tremer os encarava; e se a grandeza, a beleza, a utilidade do
objecto animavam a minha coragem, a impossibilidade de me
empenhar com êxito tirava-ma absolutamente. Vinte anos de
profunda meditação a sós comigo custar-me-iam menos que
seis meses de vida activa no meio dos homens e dos negócios,
com a certeza ainda por cima de ser mal sucedido.
Lembrei-me de um expediente que me pareceu capaz de
tudo conciliar. Perseguido de todos os refúgios pelos enredos
subterrâneos dos meus secretos perseguidores, e vendo que só
na Córsega podia esperar que a minha velhice alcançasse o
repouso que em parte nenhuma eles me queriam deixar, resolvi
partir para ali, com as indicações de Buttafuoco, logo que me
fosse possível; renunciando, contudo, ao menos aparentemente,
para viver tranquilo, ao trabalho da legislação, e limitando-me,
para de qualquer modo pagar aos meus hospedeiros a sua hos­
pitalidade, a escrever a sua história in loco, salvo poder sem
dar nas vistas tomar as instruções necessárias para me tornar
mais útil, se visse possibilidades de triunfar. Assim, começando
por me não comprometer em coisa nenhuma, esperava achar-me
em condições de meditar no meu intimo, e mais à minha von­
tade, um plano que lhes pudesse convir, e isto sem renunciar
de todo à minha querida solidão, nem me submeter a um género
de vida que me era insuportável, e para que náo tinha talento.
Na minha situaçáo, porém, tal viagem não era coisa fácil
de executar. Pela maneira como Monsieur Dastier me havia
falado da Córsega, das mais simples comodidades da vida só
devia ali encontrar as que levasse comigo: roupa, fato, louças,
trem de cozinha, papel, livros, tudo era mister levar. Para me
transportar para lá com a minha governanta, necessário era
atravessar os Alpes, e arrastar atrás de mim, durante um tra­
jecto de duzentas léguas, uma bagagem inteira; necessário era
atravessar os Estados de vários soberanos, e, a avaliar pelo
tom geral da Europa, devia naturalmente esperar, depois das
minhas desditas, encontrar por toda a parte obstáculos, e ver
cada qual considerar como uma honra acabrunhar-me com
qualquer nova desgraça, violando para comigo todos os direitos
das gentes e da humanidade. As enormes despesas, as fadigas,
os riscos de semelhante viagem, obrigar-me-iam a prever e a

627
pesar-lhe de antemão todas as dificuldades. A ideia de me
encontrar por fim só, sem recursos na min'ha idade, e longe
de todos os meus conhecidos, à mercê deste povo bárbaro e feroz,
tal como mo descrevia Monsieur Dastier, era absolutamente de
molde a fazer-me meditar sobre semelhante resolução antes
de a executar. Desejava ardentemente a entrevista com que
Buttafuoco me havia feito contar, esperando os seus resultados
para me decidir completamente.
Enquanto assim vacilava, surgiram as perseguições de
Motiers, que me forçaram a retirar-me. Não me achava prepa­
rado para uma viagem comprida, sobretudo para partir para
a Córsega. Esperava noticias de Buttafuoco; refugiei-me na
ilha de S. Pedro, donde fui expulso no começo do_ Invérno, como
atrás referi. Os Alpes cobertos de neve tornavam-me então tal
emigração implacável, mormente na precipitação que me pres­
creviam. É certo que a extravagância de semelhante ordem
tornava-lhe impossivel a execução: porquanto, do meio desta
solidão cercada de águas, tendo apenas, após a intimação da
ordem, vinte e quatro horas para preparar a partida, encontrar
barcos e carruagens para sair da ilha e do território todo, difi­
cilmente poderia obedecer, ainda que tivesse asas. Escrevi ao
senhor Bailio de Nidau em resposta à sua carta, e dei-me pressa
em sair desta terra de iniquidade. Eis como tive que renunciar
ao meu querido projecto, e como, não havendo no meu desalento
podido obter que dispusessem de mim, eu me resolvi, graças ao
convite de Mylord Marêchal, a partir para Berlim, deixando
Teresa a invernar na ilha de S. Pedro, com as minhas coisas
e os meus livros, depondo os meus papéis nas mãos de 'Du Peyrou.
Empreguei uma tal diligência, que logo no dia seguinte de
manhã partia da ilha, apresentando-me em Biena ainda antes
do meio-dia. Pouco faltou para que a minha viagem terminasse
aqui, em vista de um incidente cuja narração não devo omitir.
Logo que se espalhou o boato de que eu havia recebido
ordem de abandonar o meu asilo, afluiram ali as visitas da
vizinhança, mormente pessoas de Berna, que, com a mais detes­
tável falsidade, me vinham adular, abrandar-me, e protestar
que haviam aproveitado a altura das férias e da cessação do
Senado para minutar e me intimarem a ordem, contra a qual,
diziam elas, os Duzentos estavam completamente indignados.
Entre a chusma dos consoladores, apareceram alguns da cidade
de Biena, pequeno estado livre encravado no de Berna, e, entre
outras pessoas, um mancebo chamado Wildremet, cuja família
era da mais alta condição, e dispunha na cidadezinha do prin-

628
cipal crédito. Wildremet conjurou-me vivamente, em nome dos
seus concidadãos, a escolher asilo entre eles, garantindo-me
desejarem eles desveladamente receberem-me ali; que consi­
derariam uma glória e um dever fazerem-me esquecer na sua
cidade as perseguições que eu houvera sofrido; que entre eles
não tinha a recear qualquer influência dos de Berna; que Biena
era uma cidade livre que de ninguém recebia leis, e que todos
os cidadãos estavam un:ânimemente resolvidos a não escutarem
solicitação alguma que me fosse contrária.
Como Wildremet visse que não me abalava, chamou em seu
auxilio várias outras pessoas, tanto de Biena e arredores, como
até de Berna, e entre as quais aquele mesmo Kirkebergher de
que já falei, que me havia procurado quando me retirara para
a Suíça, e cujos talentos e principias me despertavam interesse.
Mas as solicitações menos previstas e mais de ponderar foram
as de Monsieur Barthês, secretário da embaixada de França,
que veio ver-me com Wildremet, e me exortou fortemente a que
acedesse ao seu convite, espantando-me com o interesse vivo
e terno que parecia tomar por mim. Desconhecia absolutamente
Monsieur Barthês; via-o no entanto pôr nos seus discursos o
calor, o zelo da amizade, e via-o tomar verdadeiramente a peito
convencer-me a que me instalasse em Biena. Fez-me o mais
pomposo elogio da cidade e dos seus habitantes, com os quais
se mostrava tão intimamente ligado, que muitas vezes lhes
chamou diante de mim seus patronos e seus pais.
Esta diligência de Barthês desconcertou-me todas as con­
jecturas. sempre havia desconfiado ser Monsieur de Choiseul
o autor oculto de todas as perseguições que na Suíça eu sofria.
O procedimento do Residente da França em Genebra, o
do Embaixador em Soleure, não faziam mais que confirmar
perfeitamente as minhas suspeitas; via a influência secreta
da França em tudo o que em Berna, em Genebra, em Neuf­
châtel me sucedia, e julgava não ter em França inimigt:'
algum poderoso a não ser apenas o duque de Choiseul. Que
podia eu pois pensar da visita de Barthês, assim como do gene­
roso interesse que ele parecia tomar pela minha sorte? As mi­
nhas desgraças não haviam ainda destruído aquela confiança
natural no meu coração, e a experiência não me havia ainda
ensinado a ver por toda a parte ciladas escondidas debaixo dos
afagos. Procurava surpreendido a razão desta benevolência de
Barthês; não era bastante tolo para acreditar que ele fazia
a diligência por sua própria conta; via nele uma publicidade
e até uma afectação que denotavam uma intenção oculta, e

629
estava muito longe de alguma vez ter encontrado nestes peque­
nos agentes subalternos esta intrepidez generosa que, em seme­
lhante posto, me havia frequentemente confundido o coração.
Outrora havia convivido um pouco com o cavaleiro de
Beauteville em casa de Monsieur de Luxemburgo; tinha-me ele
testemunhado certa benevolência; depois da sua embaixada,
tinha-me ainda dado algumas provas de se recordar de mim,
e havia-me mesmo mandado convidar para ir visitá-lo a
Soleure: convite que, mesmo sem o aceitar, me havia sensibi­
lizado, visto não estar acostumado a ser tão cortêsmente tratado
pelas pessoas altamente colocadas. Calculei pois que !Monsieur
de Beauteville, obrigado a seguir instruções no que dizia res­
peito aos negócios de Genebra, me lamentava no entanto nas
minhas desgraças, e me havia arranjado, graças a cuidados
particulares, este asilo de Biena, para aqui poder viver tran­
quilo sob os seus auspícios. Sem querer aproveitá-la, tal atenção
sensibilizou-me, e, inteiramente resolvido a partir para Berlim,
aspirava ardentemente pelo momento de me encontrar com
Mylord Marêchal, convencido de que só junto dele é que já
agora encontraria um verdadeiro repouso e uma felicidade
duradoira.
Ao partir da ilha, Kirkebergher acompanhou-me até Biena.
Aqui encontrei Wildremet com outros bienenses, que me espe­
ravam à saída do barco. Jantámos todos juntos na estalagem, e,
mal cheguei, o meu primeiro cuidado foi procurar uma cadei­
rinha, visto querer partir logo no outro dia de manhã. Durante
o jantar, reiteraram aqueles cavalheiros o seu empenho de me
guardarem junto deles, e isto com tanto calor e tão comovedores
protestos que, apesar de todas as minhas resoluções, o meu
coração, que nunca soube resistir aos afagos, se deixou comover
com os deles; logo que me viram abalado, redobraram a tal
ponto os seus esforços, que por fim me deixei vencer, e consenti
em ficar em Biena, ao menos até à Primavera seguinte.
Imediatamente Wildremet se apressou a arranjar-me alo­
jamento, e gabou-me como sendo um achado um péssimo quar­
tito nas traseiras de um terceiro andar, o qual dava para um
pátio, onde me podia regalar com a exposição das fedorentas
peles de um curtidor de camurças. O hospedeiro era um homen­
zinho de má catadura e razoàvelmente mariola, que no dia
seguinte soube ser um debochado, um jogador, muito mal con­
ceituado no bairro; não tinha nem mulher, nem filhos, nem
criados, e eu, tristemente recluso no meu quarto, eu achava-me,
na mais ridente terra do mundo, instalado de maneira a morrer

630
de melancolia dentro de poucos dias. Mau grado tudo o que
me haviam dito acerca da solicitude dos habitantes em rece­
ber-me, o que mais me impressionou foi, ao passar pelas ruas,
não ver nada de cortês para comigo nas suas maneiras, nem
nada de obsequiador nos seus olhares. Contudo, estava inteira­
mente resolvido a ficar, quando soube, vi e senti, logo a partir
do dia seguinte, que na cidade lavrava uma terrível agitação a
meu respeito; vários zeladores vieram obsequiosamente preve­
nir-me de que logo no dia seguinte re�beria, da maneira mais
dura possível, uma intimação para sair imediatamente do
Estado, isto é, da cidade. Não tinha ninguém com quem me
abrir; todos os que me haviam retido se tinham dispersado;
Wildremet desaparecera; nunca mais ouvi falar de Barthês, e
não me pareceu que a sua recomendação me favorecesse por
ai além junto dos patronos e dos pais que diante de mim ele
tinha alardeado. Um tal Monsieur de Vau-Travers, de Berna,
que tinha uma bonita casa próximo da cidade, ofereceu-me no
entretanto ali asilo, esperando, dizia ele, poder eu assim evitar
ser lapidado. O partido não me pareceu suficientemente sedutor
para me tentar a prolongar a minha estadia entre este hospi­
taleiro povo.
Como no entanto havia perdido três dias com a demora,
já havia ultrapassado bastante as vinte e quatro horas que
os de Berna me haviam dado para sair dos seus Estados, e,
conhecendo a sua dureza, não deixava de estar apreensivo a
respeito da maneira como mos permitiriam atravessar, quando o
senhor Bailio de Nidau apareceu oportunissimamente para me
livrar de embaraços. Como havia claramente condenado o vio­
lento processo de Suas Excelências, julgou, na sua generosidade,
dever-me um testemunho público de que não havia nele tomado
parte alguma, e não receou sair do seu bailiado para me vir
fazer uma visita a Biena. Apareceu na véspera de eu partir;
e, longe de o fazer incógnito, ostentou mesmo certo cerimonial;
veio in fiocchi 1 na caleça com o secretário, e trouxe-me um
passaporte em seu nome, para eu atravessar à vontade o Estado
de Berna, sem receio de ser incomodado. A visita comoveu-me
mais que o passaporte. Não lhe teria sido menos sensível, ainda
que ele tivesse por objecto outra pessoa que não eu. Nada
conheço que tenha tanto poder sobre o meu coração como um
acto de coragem oportuno a favor do fraco injustamente
oprimido.

1 Em traje de cerimónia. - N. do T.

631
Enfim, depois de com dificuldade ter procurado uma liteira,
parti no dia seguinte de manhã desta terra homicida, antes de
chegar a deputação eom que me queriam honrar, antes mesmo
de haver podido tornar a ver Teresa, a quem tinha indicado que
viesse encontrar-se comigo, quando julgara parar em Biena, e
que mal tive tempo de prevenir em contrário por uma carta,
.assinalando-lhe o meu novo desastre. Na terceira parte, se
alguma vez tiver forças para a escrever, ver-se-á como, julgando
partir para Berlim, parti de facto para Inglaterra, e como as
duas damas que queriam dispor de mim, depois de, à força de
intrigas, me haverem expulsado da Suíça, onde me não achava
suficientemente à sua mereê, conseguiram entregar-me ao
amigo comum.

O que se segue foi acrescentado quando da leitura que fiz


deste escrito ao senhor e à senhora condessa de Egmont, ao
senhor príncipe Pignatelli, à senhora marquesa de Mesme, e
ao senhor marquês de Juigné.

Disse a verdade. Se alguém tem conhecimento de coisas


contrárias ao que acabo de escrever, houvessem elas sido mil
vezes provadas, está ao facto de mentiras e de imposturas, e
se se recusa a aprofundá-las, a esclarecê-las comigo, enquanto
me acho com vida, não ama nem a justiça, nem a verdade.
Por mim, declaro-o abertamente e sem receio: quem quer que,
mesmo sem haver lido os meus escritos, examinar por seus pró­
prios olhos o meu natural, o meu carácter, os meus costumes,
as minhas inclinações, os meus prazeres, os meus hábitos, e
chegue à conclusão de que sou um homem indigno, é ele
mesmo um homem que deve ser destruido.

Desta maneira acabei a minha leitura, e todos se calaram.


A unica pessoa que me pareceu comovida foi Madame de
Egmont; estremeceu visivelmente, mas imediatamente se refez,
e conservou-se silenciosa, assim como toda a companhia. Tal
foi o fruto que tirei desta leitura e da minha declaração.
SUMARIO DAS CONFISSõES
LIVRO PRI MElRO

Nascimento de Rousseau. Familia. Morte da mãe. Infância. Amor


da leitura. O pai de Jean-Jacques abandona Genebra. Partida para o
pensionato do pastor Lambercier, em Bossey. Afeição de Jean-Jacques
pelo primo Bernard. Mademoiselle Lambercier. Punições desta e os
seus estranhos efeitos psicológicos sobre Rousseau. Sensualidade pre­
coce. Carácter obstinado de Rousseau. A anedota da nogueira e do
aqueduto. Regresso a Genebra com o primo Bernard. Suas diversões
infantis. Primeiros amores. Mademoiselle de Vulson e Mademoiselle
Goton. Rousseau entra para o escritório do advogado Masseron. Apren­
dizagem do oficio de gravador. Brutalidade do patrão. Vida e anedotas
da oficina. Desprezo pelo dinheiro. Renovamento do gosto pela lei­
tura. Efeitos das leituras. Rousseau resolve abandonar o ofício de gra­
vador.

LIVRO SEGUNDO

Reflexões sobre o seu estado. Vida errante. O abade de Pontverre.


Carácter deste. O abade de Pontverre aconselha Rousseau a abandonar
a religião protestante. Chegada a Annecy e primeiro encontro com
Madame de Warens. História e carácter desta. Rousseau parte para
Turim para entrar num hospício de catecúmenos. O pai segue-o até
Annecy. Reflexões sobre a conduta do pai. Descrição da viagem para
Turim. Chegada a Turim. O hospício dos catecúmenos e os seus loca­
tários. Meditações acerca da religião. Instrução no hospício. Argumen­
tação com os padres. A história com o Mouro. Desejo de deixar o hos­
pício. Abjuração pública do protestantismo. Saída do hospício com
pouco dinheiro. Habitação em casa da mulher de um soldado. Vida
independente. Rousseau procura empregar-se em Lyon como gravador.
Insucesso. Encontro com Madame Basile. Paixão de Rousseau por
Madame Basile. Traição do caixeiro. Regresso súbito de Monsieur
Basile. Rousseau é despedido. Entra ao serviço da condessa de
Vercellis. Carácter e maneira de viver desta. O conde de La Rocque.

635
Os criados conspiram contra Rousseau. Morte da condessa de Vercellis.
o incidente da fita. Reflexões.

LIVRO TERCEIRO

Regresso ao primitivo alojamento. Comportamento para com as


raparigas no poço. Perseguição. O homem do sabre. Monsieur Gaime.
As suas atenções para com Rousseau. O Vigário saboiano. Rousseau
entra ao serviço do conde de Govone. Mademoiselle de Breglio.
O incidente filológico durante o jantar. Instrução com o abade de
Govone. Progressos. Dificuldades com o latim. Recomendação ao Rei.
Projectos brilhantes. Uma visita. Entusiasmo por Monsieur Bâcle.
Estranho procedimento. Cai em desgraça e é despedido. A fonte de
Hierão. Viagem a pé para Annecy com Bâcle. Chegada a Annecy. Des­
pedida de Bâcle. Recepção de Madame de Warens. Rousseau fica a
habitar com Madame de Warens. Merceret. Claude Anet. Afeição por
Madame de Warens. Vida e ocupações em Annecy. Monsieur D'Au­
bonne. Impressão desfavorável de Monsieur D'Aubonne a respeito de
Rousseau. Reflexões sobre a sua própria pessoa. Uma observação estú­
pida. Monsieur Gros. Estudos para padre. Outra dificuldade com o
�atim. O abade Gâtier. Desventura deste. O Vigário saboiano. Mopsieur
Corvezi. Rousseau desforra-se de Monsieur D'Aubonne. Q amante de
si mesmo. Fogo no seminário. O milagre. Sentencia-se que Rousseau
nem para padre presta. Gosto pela música. Entrada para casa de
Monsieur Le Maitre a fim de aprender música. Vida em casa do
mestre de coro. Venture de Villeneuve. Entusiasmo de Rousseau por
este. Rousseau e Monsieur Le Maitre partem para Lyon. Ataque de
Monsieur Le Maitre nas ruas de Lyon. Rousseau abandona-o cobar­
demente. Reflexões. Rousseau regressa a Annecy e verifica que
Madame de Warens partira para Paris.

LIVRO QUARTO

A música de Monsieur Le Maitre é confiscada em Lyon. Vida em


Annecy na ausência de Madame de Warens. Aventura com Mademoi­
selle de Graffenried e Mademoiselle Galley. Monsieur Simon. Sua per­
sonalidade. A sua dupla voz. A história com o aldeão. Rousseau parte
com Merceret para Friburgo. As suas relações durante a viagem.
Rousseau perde-se no caminho para Lausana. Amabilidade do hos­
pedeiro de Moudon. Rousseau estabelece-se como professor de música
em Lausana. Compõe uma peça para um concerto. Ensaio. Fiasco.

636
Vida dif1c11 em Lausana. Recordações de Madame de Warens. Visita ao
lago de Genebra. Vévay. Meditações. Viagem para Neuchâtel. Progres­
sos como professor de música. Encontro de Rousseau com o arquiman­
dr!ta de Jerusalém em Boudry. Entra ao seu serviço como intérprete.
Dirig�-se ao Senado de Berna. Visita ao marquês de Bonac. Prisão.
Os três Rousseau. Emprego em Soleure. Rousseau parte para Paris
para entrar ao serviço do coronel Godard. Projectos ambiciosos
durante a viagem. Primeiras impressões de Paris. Miserável compor­
tamento do coronel Godard. Sátira contra este. Rousseau abandona
Paris em busca de Madame de Warens. O jantar em casa do aldeão.
Chegada a Lyon. Mademoiselle do Chatelêt. Aventuras com um ope­
rário e um abade. Rousseau desgosta-se do povo de Lyon. Pobreza.
Um feliz encontro. Monsieur Rolichon. Partida de Lyon para Cham­
béry. Sucessos durante a viagem. Rousseau encontra de novo Madame
de Warens. Entra ao serviço do Rei Vitor Amadeu.

LIVRO QUINTO

Residência em Chambéry. A pensão de Madame de Warens. Inti­


midade desta com Claude Anet. Vida em Chambéry. A guerra franco­
-austriaca. Predilecção de Rousseau pelos franceses. Rameau. o Tra­
tado de harmonia deste. O padre Caton e o seu triste fim. Rousseau
abandona o serviço do Rei Vitor Amaqeu para se dedicar a professor
de música. Os alunos. Madame Lard. A condessa de Menthon. Estra­
nha proposta de Madame de Warens. Reflexões. Cumprimento da
proposta. Mais reflexões a respeito do carácter de Madame de Warens.
Mau êxito com as prendas da sociedade. Monsieur Grossi. Anedotas
a respeito deste. Morte de Claude Anet. Prodigalidade de Madame de
Warens. Rousseau parte para Besançon para tomar lições de har­
monia. Visita -novamente o pai. A sua bagagem é confiscada em
Rousses. Regresso a Chambéry. Fim da guerra. O conde de Lautrec.
A ópera Jette. Gauffecourt. Monsieur de Conzié. Voltaire. Amor pela
vagabundagem. Reflexões sobre a guerra civil. Morte do tio e do
primo Bernard. Os documentos sobre as fortificações de Genebra.
Experiências. Doença. Interesses vários e insónias. Agravamento da
saúde. Residência no campo. As Charmettes.

LIVRO SEXTO

A vida tranquila das Charmettes. Rousseau piora da saúde. Os


principies religiosos de Madame de Warens. Convalescença parcial.

637
Regresso a Chambéry. Monsieur Salomon. Amor pelo estudo. Volta
para as Charmettes. Amor dos animais. Planos de estudo. Dificul­
dades. A vida nas Charmettes. Estudos de astronomia. Teologia.
Ideias estranhas. Dias felizes. Rousseau parte para Genebra a fim
de reclamar a herança da mãe. Os estudos de anatomia. Resultados.
Rousseau parte para Montpellier a fim de consultar um médico céle­
bre: A viagem. Madame de Larnage. Rousseau faz-se passar por inglês.
Madame de Larnage apaixona-se por Rousseau. Convite para ir para
Saint-Andéol. Madame de Larnage parte. Visita à ponte do Gard.
Impressões. O anfiteatro de Nimes. Montpellier. Partida para Saint­
-Andéol. Rousseau resolve voltar para junto de Madame de Waréns.
Chegada a Chambéry. Fria recepção de Madame de Warens. Rousseau
encontra-se substituído por outro. Monsieur Vintzenried. Rousseau
aceita o lugar de preceptor dos filhos de Monsieur de Mably. Os
pupilos. Rousseau descobre a sua pouca vocação para preceptor e
deixa o serviço de Monsieur de Mably. Volta para junto de Madame
de Warens. Desilusões. A perdularidade de Monsieur de Vintzenried.
Rousseau parte para Paris com o seu sistema de notação musical.

LIVRO SÉTIMO

Reflexões acerca das Confissões. Paragem em Lyon para ver os


amigos. Mademoiselle Serre. Chegada a Paris. Rousseau é apresen­
tado na Academia Francesa por Réaumur. Uma comissão examina o
sistema de notação, denegando-lhe a novidade. Crítica de Rameau
ao sistema. Dificuldades de editar o sistema. Insucesso deste. Vida
indolente em Paris. Por conselho do P.e Castel, Rousseau experimenta
as mulheres. Madame Dupln, Madame de Beuz,enval, Madame de
Broglie. Paixão por Madame Dupin. Monsieur de Francueil. Grave
doença. A ideia de uma ópera. Convalescença. A ópera As musas
galantes. Rousseau parte para Veneza na qualidade de secretário
do embaixador conde de Montaigu. A peste em Messina. Quarentena
em Génova. O lazareto. Chegada a Veneza. Serviço na embaixada.
A baixeza e incapacidade de Monsieur de Montaigu. O actor Vero­
neso. o capitão Olivet e a história do navio. A letra de câmbio.
Rousseau presta um importante serviço à casa de Bourbon. Zanga de
Monsieur de Montaigu. O pessoal da embaixada. Domenico Vitali.
Conspiração deste contra Rousseau. Demissão de Rousseau. Conduta
de Monsieur de Montaigu. Disputa com o embaixador. As diversões
de Veneza. Amor pela música italiana. As cantoras do convento dos

638
Mendicanti. Desilusão acerca da sua beleza. A história com a
Padoana. O jantar a bordo com o capitão Olivet. Zulietta. o estranho -
comportamento de Rousseau para com esta. Rousseau resolve partir
para Paris a fim de se queixar do embaixador. Nova visita ao pai
em Genebra. A fraude de Monsieur de Montaigu a respeito da
bagagem. Chegada a Paris. Impossibilidade de obter satisfação.
O fim de Monsieur de Montaigu. Rousseau trava conhecimento com
Inácio Emanuel de Altuna. Rousseau encontra Teresa Le Vasseur.
Rousseau amanceba-se com esta. Rousseau termina As musas galan­
tes. Monsieur e Madame de La Popliniêre. Grosseiro comportamento
de Rameau. Representação de As musas galantes em casa de Mon­
sieur de Bonnenval a expensas do Rei. O assentimento do duque de
Richelieu. Festas em Versalhes. Rousseau é encarregado de modificar
o drama de Voltaire A Princesa de Navarra, com música de Rousseau.
Escreve a Voltaire a esse propósito. Resposta de Voltaire. Ensaio da
ópera alterada. Oposição de Rousseau. Rousseau cai doente de des­
gosto. Perfídia de Rameau. Representação da ópera e seu sucesso.
Inimizade de Madame de La Popliniêre. Morte do pai de Rousseau.
Gauffecourt ajuda Rousseau a entrar na posse do remanescente da
herança da mãe. A familia Le Vasseur. O seu comportamento para
com Teresa. A comédia Narciso é aceita nos Italianos, mas não
é representada. As musas galantes são ensaiadas na Grande ópera.
Rousseau retira a ópera. Desilusão. Rousseau entra para secretário
de Madame Dupin e Monsieur de Francueil. A comédia o compro­
misso temerário e a peça em verso A alameda de Silvia. Os frequen­
tadores da casa de Madame La Selle. As suas diversões e conversas
a respeito da Roda. Nascimento do primeiro filho de Rousseau.
Rousseau deposita-o na Roda. O segundo filho tem o mesmo destino.
Rousseau trava relações com Madame d'Épinay. A família desta.
A condessa d'Houdetot. Diderot. Roguin. O abade de Condillac.
D' Alembert. Diderot e D' Alembert empreendem a publicação do
Dicionário enciclopédico. Prisão de Diderot. Rousseau escreve a
Madame de Pompadour pedindo a sua libertação.

LIVRO OITAVO

Rousseau trava conhecimento com Grimm. Visita Diderot na


prisão de Vincennes. Rousseau resolve escrever um trabalho sobre
um tema proposto pela Academia de Dijon. Método de trabalho.
Rousseau instala-se em casa própria com Teresa. Delícias da sua
vida em comum. A história de Klupffel, Grimm e Rousseau com uma
rapariga. O prémio da Academia de Dijon. Rousseau defende o modo

639
como dispõe dos filhos. Perfídia de Madame Le Vasseur. Rousseau
caixa do Recebedor geral dos impostos. Incapacidade de desempenhar
o lugar. Doença grave. Reflexões. Rousseau resolve abandonar o
lugar de caixa e fazer-se copista de música. Furto de roupa branca
pelo irmão de Teresa. O trabalho premiado severamente criticado
pelos defensores da literatura. O Rei Estanislau. A inimizade de
Monsieur Bordes. Rousseau, homem na moda, recebe muitas visitas.
Recusa todos os presentes. Contratempos domésticos. Paris torna-se
detestável. Misantropia. Rousseau apresenta Grimm aos seus amigos.
O abade Raynal. Grimm e Mademoisell Fell. o barão D 'Holbach.
Monsieur Duelos. A senhora marquesa de Créqui. Monsieut Saurin.
Monsieur Mussard. Composição do Bruxo da aldeià. :t!:xito da
ópera. Rousseau vai a Fontainebleau para assistir à representação
do Bruxo no teatro real. Enorme êxito desta. Rousseau declina a
honra de ser apresentado ao Rei. Razões. Diderot insiste em vão
para que Rousseau aceite uma pensão do Rei. Começo da conspi­
ração de Grimm e Diderot. A perfídia do barão D'Holbach. Acusação
de plágio musical. A «Guerra dos bouttons». Os da «banda do Reb
e os da «banda da Rainha». Rousseau escreve a Carta sobre a
música francesa. Escândalo provocado por esta. Conspiração para
assassinar Rousseau. Censurável procedimento da direcção da ópera.
Rousseau pede em vão que lhe seja restituído o Bruxo. Procedimento
incorrecto de D'Holbach. Narciso é representado anonimamente na
Comédia Francesa. Insucesso da peça confessado pelo autor. O Dis­
curso sobre a desigualdade. Rousseau resolve não escutar os médicos
t:' viver como lhe apraz. Viagem com Teresa e Gauffecourt a Genebra.
Procedimento indecoroso de Gauffecourt. Rousseau volta a ver
Madame de Warens. Decadência e miséria desta. Rousseau abjura
do catolicismo e regressa à igreja protestante. Volta para Paris.
Os genebrinos recebem mal o Discurso sobre a desigualdade. Madame
d'Épinay oferece a Rousseau asilo na Hermitage. Voltaire estabel�­
ce-se em Genebra. Má impressão de Rousseau. Morte de Madame
D'Holbach e de Madame de Francueil. A visita de Venture de Ville­
neuve. Palissot escreve uma peça em que satiriza Rousseau para
agradar ao Rei da Polónia. Este quer castigá-lo. Rousseau intercede
a favor de Palissot.

LIVRO NONO

Rousseau instala-se na Hermitage. A panelinha holbachiana.


Reflexões. Entusiasmo pela Hermitage. Projectos futuros: As Insti­
tuições políticas; o extracto das obras do abade Saint-Pierre; a
Moral sensitiva; o Dicionário de música. Obrigação e inconvenientes

640
de cortejar Madame d'Épinay. Delícias da Hermitage. Reflexões sobre
Teresa. Necessidade de comunhão intima. Rousseau resolve pôr a
sua maneira de viver de acordo com os seus princípios. Diderot e
Grimm conspiram com Madame Le Vasseur. Estranha reserva da
parte de Teresa. Rousseau desilude-se com os escritos do abade de
Saint-Pierre. Plano do Extracto. Rousseau abandona a obra. Suas
razões. Recordações das Charmettes. Reflexões sobre a sua condição.
Resultados. Madame Le Vasseur contrai dívidas. O poema de Voltaire
sqbre o desastre de Lisboa. Rousseau escreve a Voltaire. Resposta
deste. Meditações. Madame d'Houdetot visita Rousseau. O roubo da
fruta de Monsieur d'Épinay. Rousseau e o hortelão. Rousseau aban­
dona-se às quimeras. Rousseau tenta apaziguar a tormenta suscitada
pelos enciclopedistas. Os partidos em oposição conspiram contra ele.
Júlia ou a Nova Heloísa, produto das disposições sentimentais de
Rousseau. Um singular presente de Madame d'Épinay. Diderot e o
Filho natural. Segunda visità de Madame d'Houdetot. O retrato desta.
O marido e o amante Saint-Lambert. Rousseau apaixona-se louca­
mente por Madame d'Houdetot. Ciúmes de Madame d'Épinay. A visita
do barão d'Holbach. Saint-Lambert sabe da paixão de Rousseau pela
amante. Rousseau desconfia de Madame d'Épinay. Madame d'Épinay
tenta subornar Teresa. Azeda troca de correspondência entre Rousseau
e Madame d'Épinay. Embaraço de Rousseau. Visita e reconciliação.
Troca de correspondência com Diderot a respeito de uma frase inju­
riosa do Filho natural. Visita a Diderot. Reconciliação. Opinião de
Diderot sobre Júlia. Visita ao barão d'Holbach. Regresso de Saint­
-Lambert. Esfriamento de Madame d'Houdetot. Restituição da corres­
pondência. Tarefas musicais. Rousseau acha-se vingado da descon­
fiança da sua incapacidade musical. Grimm chega à Chevrette.
Conspira com Madame d'Épinay. Arrogância e hipocrisia de Grimm.
Grimm e Diderot tentam aliciar Duelos. Rousseau resolve cortar com
Grimm. Censuras de Madame d'Épinay. Visita a Grimm. Madame
d'Épinay anuncia que parte para Genebra. Razão secreta. Singular
carta de Diderot a respeito dos deveres para com Madame d'Épinay.
Resposta. Rousseau resolve abandonar a Hermitage. O conselho de
Madame d'Houdetot. Rousseau despede-se de Madame d'Houdetot e de
Madame d'Épinay. Troca de correspondência entre Rousseau e Grimm
a respeito da partida de Madame d'Épinay. Comportamento vil de
Grimm. Rousseau escreve a Madame d'Épinay pedindo-lhe para ficar
mais algum tempo na Hermitage. Visita de Diderot. Resposta negativa
de Madame d'Épinay. Rousseau deixa a Hermitage e instala-se em
Mont-Louis. Rousseau despede Madame Le Vasseur. Carta a Madame
d'Épinay.

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LIVRO DÉCIMO

Mau estado de saúde. Carta de Madame d'Épinay. Madame d'Épi··


nay, Grimm e o dr. Tronchin conspiram em Genebra e em Paris
contra Rousseau. Reflexões. Correspondência tumultuosa com Madame
d'Houdetot. A Carta a D'Alembert sobre os espectáculos. Madame
d'Houdetot afasta-se de Rousseau. Generosa atitude de Saint-Lam­
bert. Rousseau ataca Diderot. Saint-Lambert censura-o. Troca de
correspondência. Rousseau aceita um convite de Monsieur d'Épinay
para um jantar. Rousseau é muito bem recebido por todos. Rousseau
trava relações com Marmontel. Inimizade deste. Rousseau reclama
novamente o Bruxo da aldeia. Vida tranquila em Mont-Louis. Novos
conhecimentos. Monsieur de Malesherbes. A amabilidade deste. Muti­
lação de uma cópia de J'Úlia para Madame de Pompadour. Oferecem
a Rousseau um lugar no Jornal dos sábios. Rousseau recusa. Lamen­
tações sobre as pequenas despesas a que o forçam as visitas. Proventos
de futuras obras. Rousseau abandona as Instituições políticas e a
Moral sensitiva. Rousseau resolve escrever as suas Confissões. O duque
de Luxemburgo e sua família instalam-se em Montmorency. Pro­
posta de Madame de Luxemburgo para que Rousseau entre para
a Academia Francesa. Visita do duque de Luxemburgo. Rousseau
é convidado para habitar no castelo de Montmorency durante as
obras de Mont-Louis. Rousseau instala-se no Petit-Château. Lei­
tura de Júlia a Madame de Luxemburgo. Singular carta de Madame
de Luxemburgo. Resposta. Regresso a Mont-Louis. A marquesa de
Verdelln e sua família. Madame de Verdelin e Coindet. Monsieur de
Silhouette. Carta de Rousseau a respeito dos financeiros. Consequên­
cias. Carta a Madame de Luxemburgo. Rousseau recusa publicar o
Emílio em França. Leit.ura do Emílio e o episódio da neta de Madame
de Luxemburgo. Defesa de Diderot. Aborrecimento de Diderot. A pri­
são do abade Morellet. D'Alembert pede a intercessão de Rousseau
para que o abade seja solto. O abade é solto. Rousseau tem conhe­
cimento de que Voltaire publica a sua carta sobre o desastre de
Lisboa. o abade Trublet. Carta a Voltaire. Visita do príncipe de
Conti. Madame de Boufflers. Rousseau domina a sua paixão por esta.

UVRO DÉCIMO PRIMEIRO

Publicação de Júlia. Seu enorme êxito. Comparação entre os


estilos de Richardson e de Rousseau. A Paz perpétua. Procedimento
desonesto do editor. Desgostos de família do duque de Luxemburgo.
Incompatibilização de Rousseau com o abade de Boufflers. Monsieur

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de Choiseul. Amabilidade deste. Reflexões. Rousseau faz uma desa.
jeitada referência a Monsieur de Choiseul no Contrato social. Tra�
balhos literários de Madame de Boufflers. O senhor preslaente
Hénault. Madame du Deffand. Mademoiselle de Lespinasse. Malícia
do marquês de Villeroy. Madame de Luxemburgo confidente de
Rousseau. Pesquisas frustradas dos filhos na Roda. Negociações para
a publicação do Emílio. Rousseau termina o Contrato social. O Ensaio
sobre a origem das línguas. Projectos de retirada. Generosidade do
editor Rey. Demora imprevista na publicação do Emílio. Doença grave
Cartas estranhas. Suspeitas. Reflexões sobre a condição da França.
A Guerra dos Sete Anos. A impressão do Emílio é suspensa. O Emílio
acaba de se imprimir. Rousseau suspeita que é perseguido pelos
jesuítas. As obras de Rousseau ameaçadas de confiscação em Ruão.
Intervenção cirúrgica. Resultados. Rousseau resolve abandonar a
vida literária depois da publicação do Emílio. O Emílio aparece.
Opiniões a respeito da obra. Os plágios de Monsieur Balexert, de
Genebra. A tempestade começa a desencadear-se. Calma de Rousseau.
A questão da referência a Monsieur de Choiseul no Contrato social.
Rousseau é aconselhado a retirar-se para Inglaterra. Hume. Ordem
de prisão contra Rousseau. A tempestade estala. Noticias nocturnas
de Paris. Rousseau prepara-se à pressa para fugir. Desamor da
Inglaterra e dos ingleses. Rousseau despede-se de Teresa. Partida
para a Suíça. Reflexões e incidentes da viagem. Emoção à entrada
em Berna. Chegada a Yverdun.

LIVRO DÉCIMO SEGUI\JDO

Reflexões. O Emílio é publicamente queimado em Genebra, e


decretada ordem de prisão contra o autor. Toda a Europa revoltada
contra Rousseau. Rousseau é obrigado a sair de Berna. Teresa vem
ter com Rousseau a Motiers. Resfriamento de Teresa. Razões. Rous­
seau escreve a Mylord Keith pedindo-lhe a sua protecção. Mylord
Keith, seu carácter. Amabilidade do Rei da Prússia. Rousseau escreve
ao Rei da Prússia. Rousseau adopta o trajo arménio. Rousseau aban­
dona a literatura. Ocupações. Monsieur Du Peyrou. Rousseau deseja
ser admitido à Comunhão. Condições. O ministro Montmolin. Madame
de Boufflers censura Rousseau por este haver comungado. Ataque
da Sorbona. Pastoral do Arcebispo de Paris contra Rousseau. Rous­
seau nota lacunas nos seus papéis. Renuncia a ir para Genebra.
As Cartas escritas da Montanha. Visitas misteriosas. Rousseau nega
ser o autor de o homem da Montanha. Séguier de Saint-Brisson.
o falso barão de Sauttern. Morte do duque de Luxemburgo. O tes-

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tamento do duque de Luxemburgo. Morte do abade de Mably. A redac­
ção das Confissões provoca a expulsão de Rousseau da Suíça. Edição
completa das obras. Rousseau publica as Cartas escritas da Montanha.
Alvoroço causado pela obra. As Cartas são publicamente queimadas
em Paris. Rousseau é aconselhado a que não se apresente à Comu­
nhão. Tentativas de excomunhão. O ministro Montmollin excita o
povo contra Rousseau. Perseguições. Visita de Madame de Verdelin
e da filha. Hume. A visão de Pedro da Montanha, por alcunha o
Vidente. O vil panfleto de Monsieur Vernes. A casa de Rousseau é
apedrejada pela populaça. Rousseau é aconselhado a abandonar
Motiers. Walpole. A ilha de S. Pedro. Vida e ocupações na ilha.
Rousseau é expulso da ilha. Rousseau pensa em ir para a Córsega.
França e Córsega. Rousseau decide partir para Berlim. Rousseau é
convidado para ficar em Biena. Mau comportamento do povo de
Biena. Rousseau abandona Biena. Nota final.

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