Você está na página 1de 434

HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

PEMBROKE COLLINS
EDITORIAL BOARD

PRESIDENT Felipe Dutra Asensi

MEMBERS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, Brazil)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Brazil)
Adriano Rosa (USU, Brazil)
Alberto Shinji Higa (Procuradoria Geral de Jundiaí, Brazil)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Brazil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, Brazil)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colombia)
Carlos Mourão (PGM, Brazil)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, Brazil)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Brazil)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Brazil)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Brazil)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Brazil)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, United States)
Elaine Teixeira Rabello (KIT, Netherlands)
Glaucia Ribeiro (UEA, Brazil)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Brazil)
Jonathan Regis (UNIVALI, Brazil)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura, Spain)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, Brazil)
Luciano Nascimento (UEPB, Brazil)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Brazil)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Brazil)
Marcia Cavalcanti (USU, Brazil)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Brazil)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Brazil)
Rogério Borba (UVA, Brazil)
Rosangela Tremel (JusCibernética, Brazil)
Roseni Pinheiro (UERJ, Brazil)
Sergio de Souza Salles (UCP, Brazil)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brazil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Brazil)
ORGANIZAÇÃO:
ORGANIZADORES
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
THIAGO RODRIGUES PEREIRA
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, ROGERIO BORBA DA SILVA

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
HORIZONTES
INTERDISCIPLINARES

GRUP O M ULTIF O CO
Rio de Janeiro, 2019

DEERFIELD BEACH, FL – UNITED STATES


PEMBROKE COLLINS
2023
Copyright © 2023 | Darlan Alves Moulin, Karine Tomaz Veiga, Telson Pires,
Thiago Rodrigues Pereira (orgs.)

EDITORIAL PRESIDENCYFelipe Asensi


PUBLISHING Felipe Asensi
EDITORIAL COORDINATION Vanessa Abraim

PROOFREADING Pembroke Collins' Team

GRAPHIC PROJECT AND COVER Diniz Gomes

FORMATTING Diniz Gomes

PEMBROKE COLLINS
1191 E Newport Center Dr #103 - Deerfield Beach
FL 33442 - United States
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

ALL RIGHTS RESERVED

No part of this book can be used or reproduced by any means without this Publisher's written permission.

FINANCING

This book was financed by the International Council for Higher Studies in Law (CAED-Jus), by the
International Council for Higher Studies in Education (CAEduca) and by Pembroke Collins.

All books are submitted to the peer view process in double blind format by the Publisher and, in the case
Collection, also by the Editors.

H811

Horizontes interdisciplinares / Darlan Alves Moulin, Karine Tomaz


Veiga, Telson Pires, Thiago Rodrigues Pereira (org.). – Deerfield
Beach, FL: Pembroke Collins, 2023.

434 p.

ISBN 979-8-88670-080-0

1. Generalidades. 2. Interdisciplinaridade. 3. Obras gerais. I.


Moulin, Darlan Alves (org.). II. Veiga, Karine Tomaz (org.). III. Pires,
Telson (org.). IV. Pereira, Thiago Rodrigues (org.).

CDD 000

Librarian: Aneli Beloni


CRB7 049/21
SUMÁRIO

ARTIGOS — CIÊNCIA DO DIREITO E INTERDISCIPLINARIDADE 15

INTERPRETAÇÃO ARTÍSTICA E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:


PRESSUPOSTOS COMUNS E CRÍTICA DA PROPOSTA DWORKINIANA 17
Felipe Rodrigues Xavier

DIREITO DIGITAL NA ERA DA TECNOLOGIA: PERSPECTIVAS PARA


POLÍTICAS PÚBLICAS, REGULAÇÃO E ENSINO JURÍDICO 34
Eduardo Cesar Elias de Amorim

O CONCEITO BASE DE DIREITO NA OBRA DE IMMANUEL KANT 44


Chrystian Jeff Ferreira

ARTIGOS — FINANCIAMENTO E CONTROLE DE DIREITOS ESSENCIAIS 57

A “ESSENCIALIDADE” DO DIREITO À SEGURANÇA PÚBLICA E O SEU


VERDADEIRO CUSTO: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO RIO DE JANEIRO 59
Stefany Pereira Batalha

SISTEMA DE FINANCIAMENTO DOS DIREITOS À SAÚDE SOB O CUSTEIO


DOS FUNDOS PÚBLICOS 73
Karine Tomaz Veiga

ARTIGOS — TEORIAS, INTERDISCIPLINARIDADE E PESQUISAS EMPÍRICAS 105

A DESIGUALDADE DOS HOMENS: NO LIVRO “A REPÚBLICA”, DE PLATÃO,


E NA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA 107
Adelmo José Pereira
DO POSITIVISMO AO PÓS-POSITIVISMO: UMA TRAJETÓRIA INEVITÁVEL 121
Isabella Nunes Borges

OBSTÁCULOS E FALSOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À PESQUISA


CIENTÍFICA 140
Lília de Sousa Nogueira Andrade

OS IMPACTOS DA FORMAÇÃO CONTINUADA EM MATEMÁTICA PARA A


CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DO DOCENTE 158
Vicente Henrique de Oliveira Filho
Gilberto Tavares dos Santos

ARTIGOS — DESENVOLVIMENTO SOCIAL, AMBIENTAL, ECONÔMICO E


SUSTENTÁVEL 173

ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DA


TECNOLOGIA E INOVAÇÃO COMO ITENS CONSTITUCIONAIS 175
Micaela Tavares Nobemassa

A CRISE AMBIENTAL E A BUSCA DA GARANTIA FUNDAMENTAL DO MEIO


AMBIENTE SUSTENTÁVEL  188
Rafaela Polizel Botelho

A CONVENÇÃO DE BASILEIA E A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS


SÓLIDOS: O CONTROLE DE MOVIMENTOS TRANSFRONTEIRIÇOS DE
RESÍDUOS COMO GARANTIA À CIDADANIA E AO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL 202
Rafaela Polizel Botelho

ANÁLISE COMPARATIVA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO NO ENTORNO


DOS RIOS URBANOS: PARALELO BRASIL E PORTUGAL  221
Erika Matsugano.
Simone Polli

A SUSTENTABILIDADE E A SELETIVIDADE SOCIAL NAS RELAÇÕES DE


CONSUMO 240
Ana Paula dos Santos Ferreira
PRINCÍPIOS DA REGULAÇÃO E MEDIDAS DE PROTEÇÃO AO DIREITO
CONSTITUCIONAL À PAISAGEM LITORÂNEA CEARENSE, A PARTIR DO
ESTUDO DE CASO DO BEACH PARK E DAS PRAIAS DE CUMBUCO E
FLECHEIRAS 261
Eveline Lima de Castro

A ENERGIA FOTOVOLTAICA NO BRASIL E SEUS MARCOS REGULATÓRIOS 288


Lilian Novakoski

ARTIGOS — POLÍTICA, DESIGUALDADE E SOCIEDADE 301

VOTO DISTRITAL MISTO, UMA ALTERNATIVA NA SOLUÇÃO DA CRISE DE


REPRESENTATIVIDADE PARLAMENTAR 303
Jorge Antonio Lopes Ferreira
Alderico Kleber de Borba

RACISMO ESTRUTURAL E INJÚRIA RACIAL: A SUPERAÇÃO DE UM


PARADIGMA LEGAL E SOCIAL SOB A ÓTICA DA LEI 14.532/2023 320
Gustavo Henrique de Freitas

A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES: À LUZ DA INEFICÁCIA DO


AMPARO LEGAL FORNECIDO PELA LEI MARIA DA PENHA 333
Yaskara Valéria Ferreira Quirino de Mélo

O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E SEU AUXÍLIO AO PODER


JUDICIÁRIO NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA 347
Rafael Menguer Bykowski dos Santos

RESUMOS 371

EDUCAÇÃO EM E PARA DIREITOS HUMANOS NO ENSINO MÉDIO: A


BUSCA PELA EMANCIPAÇÃO 373
Fernando César Domingos Marcili

REFLEXÕES SOBRE O FINANCIAMENTO PÚBLICO NA SEGURANÇA DO


RIO DE JANEIRO 378
Stefany Pereira Batalha
FUNDO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE: POR QUE PODEM SER IMPEDIDOS DE RECEBEREM
DOAÇÕES? 383
Karine Tomaz Veiga

DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA E LIBERDADE: O DESENCADEAR DA SOCIEDADE


POLÍTICA BRASILEIRA, GUIADA PELO SLOGAN TOTALITÁRIO, E SUA
OPOSIÇÃO À DEMOCRACIA  389
Maria Clara Oliveira Brandão da Rocha Abreu

POLÍTICAS AMBIENTAIS, SOCIAL E GOVERNANÇA (ESG) INTRODUZIDAS


AO COTIDIANO DAS EMPRESAS: A NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO
DE NOVAS PRÁTICAS PARA OS DESAFIOS DA MODERNIDADE 394
Luís Henrique Bortolai
Larissa Almeida Rodrigues

O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO AMBIENTAL E SUA


CONTRIBUIÇÃO PARA A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIANTE DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS: ANÁLISE DE CASOS DO STF E DO
ACORDO MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA 400
Rhadson Rezende Monteiro

PANDEMIA DA COVID-19, LIBERALISMO ECONÔMICO E


DESENVOLVIMENTO HUMANO: ESTUDO DIANTE DA EXPANSÃO
EMPRESARIAL E O DIREITO DA PERSONALIDADE 406
Letícia Vermelho Obici
Andryelle Vanessa Camilo Pomin
Dirceu Pereira Siqueira

MUDANÇAS CLIMÁTICAS (CONVENÇÃO-QUADRO DA ONU SOBRE


MUDANÇA DO CLIMA, LEI Nº 12.187/2009, DECRETO Nº 2.783/1998 E LEI
ESTADUAL Nº 13.798/2009, DECRETO ESTADUAL Nº 55.947/2010 E RES.
267/2000) 413
Ana Paula Silva Borgomoni

QUALIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO: UM ESTUDO SOBRE A PERCEPÇÃO


DAS FAMÍLIAS BENEFICIADAS NO PROGRAMA CRIANÇA FELIZ (PCF) E
PRIMEIRA INFÂNCIA MELHOR (PIM) 419
Andreia da Silva de Souza
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A EDUCAÇÃO
SUPERIOR NO BRASIL 424
Leidiane Pires Rodrigues
Daniella Couto Lôbo

DESIGUALDADES ECONÔMICAS E SOCIAIS: O ESTADO TEM UM PAPEL


RESPONSÁVEL? 429
Carla Maria de Bastos Borrões
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-JUS

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo (Universidade Federal
do Sul da Bahia, Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas, Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität —
Frankfurt am Main, Alemanha)
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)

11
Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos Santos (Universidade Federal do Sul
da Bahia, Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto, Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)

12
APRESENTAÇÃO — SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito


(CAED-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de aca-
dêmicos para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões inter-
disciplinares de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia parte
importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os par-
ticipantes por meio de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes di-
ferenciais:

• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


Direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão e-book aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes por meio de ferramentas
via internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.

13
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos


de alta qualidade no campo do Direito em nível nacional e internacional,
tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-
gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2023, o CAED-Jus organizou o seu tradicional Congresso In-
ternacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus 2023), que
ocorreu entre os dias 24 a 26 de maio e contou com 21 Grupos de Traba-
lho com mais de 479 artigos e resumos expandidos de 54 universidades e
29 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos apre-
sentados ocorreu por meio do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos 10 livros do evento.
Os coordenadores de GTs foram convertidos em organizadores dos
respectivos livros, ao passo que os trabalhos apresentados em GTs que não
formaram 18 trabalhos foram realocados noutro GT, conforme previsto
em edital específico.
Os coordenadores de GTs indicaram artigos para concorrerem ao
Prêmio CAED-Jus 2023. A Comissão Avaliadora foi composta pelas pro-
fessoras Daniela Lacerda Santos (Centro Universitário Arthur Sá Earp
Neto — UNIFASE), Renata Ferreira dos Santos (Universidade do Es-
tado do Amazonas — UEA) e Isabela Cristina de Miranda Gonçalves
(Universidade do Estado do Amazonas — UEA). O trabalho premiado
foi de autoria de Evandro Borges Martins Bisneto e Ana Elizabeth Neirão
Reymão, sob o título “A (ir)racionalidade neoliberal e a urgência do bem-
-estar social para uma retomada civilizatória”.
Esta publicação americana é financiada por recursos do Conselho In-
ternacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho In-
ternacional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pem-
broke Collins, todos sediados nos Estados Unidos, e cumpre os diversos
critérios de avaliação de livros com excelência acadêmica internacionais.

14
ARTIGOS — CIÊNCIA
DO DIREITO E
INTERDISCIPLINARIDADE

15
INTERPRETAÇÃO ARTÍSTICA
E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:
PRESSUPOSTOS COMUNS E CRÍTICA
DA PROPOSTA DWORKINIANA
Felipe Rodrigues Xavier1

INTRODUÇÃO

O artigo se fundamenta nas conquistas da filosofia da linguagem pelo


Wittgenstein das Investigações Filosóficas e a descrição da gramática lógica
do funcionamento de nossa linguagem jurídica nos contextos interpre-
tativos mais fundamentais do Direito, projeto de Ronald Dworkin para
a construção de sua teoria do direito como integridade. Se o primeiro
possui a importância fundamental de redefinir os conceitos de verdade e
objetividade na Filosofia e nas Ciências Humanas, resultando na crise ao
mesmo tempo de toda a tradição filosófica da representação dos gregos a

1 Doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela USP. Mestre e Bacharel em Direito pela
UNESP. Autor de “Interpretação e Aplicação do Direito nos Positivismo(s) Jurídico(s)” e ou-
tros trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Ex-editor-chefe de revista acadêmica (Re-
vista de Estudos Jurídicos — REJ/UNESP). Pesquisa Filosofia e Teoria do Direito, com ênfase
em interpretação jurídica e interpretação literária, as relações entre direito e moral, episte-
mologia e literatura. Pesquisa e atua também nas áreas de Direito Constitucional, Direitos
Fundamentais e Direito Processual Civil. Professor de Direito. Advogado e Consultor. Mem-
bro da Comissão de Direitos e Valores Imobiliários da 3ª Subseção da OAB/SP. Poeta.

17
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Schopenhauer e o perfil metodológico-científico imposto ao pensamento


e à linguagem, Dworkin, fundamentado em tais descobertas, realiza uma
espécie de depuração da semântica jurídica no uso do conceito de direito
em nossos variados contextos jurídicos, principalmente quanto à questão
da objetividade de nossas proposições sobre Literatura e Direito.
Portanto, num primeiro momento analisaremos os diferentes tipos
de conceitos e os diferentes tipos de interpretação. Nas segunda e tercei-
ra partes do artigo, talvez as partes em que estejam seu maior interesse e
importância, as semelhanças lógicas (de funcionamento) da interpretação
literária e da interpretação jurídica: de que modo se aproximam o “obje-
to” de cada uma delas e de que modo as proposições sobre uma obra ou
uma prática social podem adquirir veracidade. Por fim, a análise crítica da
construção dworkiniana sobre o tipo de interpretação, argumentativa e
construtiva, que efetivamente fazemos e o máximo que essa interpretação
pode atingir: ajuste e justificação para revelar a melhor obra literária pos-
sível ou mostrar a prática social complexa como o direito em sua melhor
luz, bem como o alcance e os limites desta sua tese para a interpretação
artística em geral.

1. ESPÉCIES DE CONCEITOS E ESPÉCIES DE


INTERPRETAÇÃO

“Uma causa principal das doenças filosóficas — dieta unilateral: ali-


mentamos nosso pensamento apenas com uma espécie de exemplos.”
(Wittgenstein, 1999, p. 150, § 593, grifo nosso).
No Direito, assim como na Filosofia, estamos constantemente sendo
ludibriados por semelhanças superficiais na maneira como falamos que
enganam diferenças profundas, diferenças lógicas. Podemos perguntar e
responder questões que são perfeitamente inteligíveis quando dizem res-
peito a certo tipo de coisas ou fatos, mas que são completamente ininte-
ligíveis, ou fazem um sentido muito diferente, quando dizem respeito a
outra categoria de fatos ou de coisas.
Dworkin apresenta em seus últimos trabalhos, especialmente em Jus-
tice in Robes, um “mapa conceitual” para a melhor compreensão do con-
ceito de direito. O novo mapa conceitual objetiva distinguir, na esteira

18
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

da filosofia da linguagem, os diferentes tipos de conceitos em geral e os


de direito em particular, com o intuito de depurar analiticamente, sem
anseios de esgotamento, os mais importantes jogos de linguagem em que
utilizamos o conceito de direito. Logo, a adoção de determinado tipo de
conceito para “direito” interfere decisiva e prolongadamente em toda a
construção teórico-doutrinária posterior. Isso porque a diferença entre
tais conceitos é lógica, e não meramente semântica. Se não percebermos
de qual jogo da linguagem se trata, acabaremos enfeitiçados pela lingua-
gem, segundo Wittgenstein, e vítimas do aguilhão semântico, segundo
Dworkin.
Os conceitos podem ser colocados a serviço de diferentes usos. Por
sua vez, o sentido do conceito de direito afeta diretamente o sentido das
proposições jurídicas, ou seja, o valor de verdade dessas proposições. A
principal questão sobre a qual se debruça Dworkin é “se as considerações
morais se encontram entre as condições de veracidade das proposições
de direito e, se assim for, de que modo isso ocorre.” (2010, p. 10, grifo
nosso). Respondendo-se afirmativamente, a questão se transforma: qual
o conceito de direito mais apto a justificar moralmente as proposições ju-
rídicas?
O projeto de conceito de direito se inicia no estágio semântico. Os
conceitos criteriais são aqueles compartilhados apenas quando as pessoas
concordam com os critérios para a correta aplicação do conceito (Dworkin,
2010, p. 15). Já os conceitos naturais se referem a determinada estrutura fí-
sica ou biológica e admitem muito melhor o aparato técnico-científico: a
ciência pode “demonstrar” faticamente a essência de determinada estru-
tura (o DNA de certa espécie animal ou a composição atômica de um mi-
neral), o que de modo algum acontece com os outros tipos de conceitos.
Por fim e mais importante, conceitos interpretativos dependem con-
tinuamente da reflexão e argumentação dentro da própria prática social da
qual exsurge. Para Dworkin, os principais conceitos de moralidade polí-
tica e pessoal são interpretativos, tais como justiça, direito, igualdade, li-
berdade e democracia. Em relação aos conceitos interpretativos não existe
consenso compartilhado e admitido sobre quais critérios são necessários
para a correta aplicação de tais conceitos, como ocorre com os conceitos

19
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

criteriais, nem tampouco há a possibilidade de demonstração segundo os


métodos científicos, como ocorre com os conceitos naturais.
Os conceitos interpretativos simplesmente não funcionam como os
demais. Eles pressupõem e exigem o compartilhamento não de critérios
linguísticos, mas antes de uma prática social efetiva que Wittgenstein cha-
mou de forma de vida compartilhada. Deve haver um acordo e um desacor-
do. As pessoas devem estar de acordo sobre o conceito de justiça, direito
ou igualdade ser interpretativo. Por outro lado, as pessoas devem estar em
desacordo sobre a aplicação do conceito, do que é ou não é exemplo do
conceito. Sem o primeiro pressuposto, o pressuposto do acordo, as pessoas
estariam debatendo em línguas diferentes ou fazendo mímica para um
cego. Sem o segundo pressuposto, o pressuposto do desacordo, conceitos
como justiça e direito são reduzidos a conceitos como “noite”, “beijo” ou
“leão”.

O conceito doutrinário de direito funciona como um conceito in-


terpretativo [...] Compartilhamos esse conceito como atores em
práticas políticas complexas que exigem que interpretemos essas práticas
a fim de decidir sobre a melhor maneira de dar-lhes continuidade, e uti-
lizamos o conceito doutrinário de direito para apresentar nossas
conclusões. Para elaborar o conceito, atribuímos valor e propósito à prática
e formulamos concepções sobre as condições de veracidade das afirmações par-
ticulares que as pessoas fazem no contexto da prática, à luz dos propósitos e
valores que especificamos. (Dworkin, 2010, p. 19, grifo nosso).

Uma teoria sobre um conceito interpretativo será ela mesma uma in-
terpretação da prática em que está inserido o conceito (Dworkin, 2010, p.
19). Não existe horizonte zero de sentido. Uma teoria sobre um conceito
interpretativo será ela mesma inevitavelmente uma interpretação tanto de
tal conceito como da prática em que ele surge. Essa inevitabilidade, longe
de corromper o conceito de interpretação, integra e faz parte da própria
atividade de interpretar.
O positivismo jurídico compreende o direito criterialmente, e não
de maneira interpretativa. Embora a confusão conceitual se apresente
mais explicitamente em Kelsen ao identificar o objeto da Ciência Jurídica

20
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

como o conjunto de ordens coercitivas reguladoras do comportamento


humano criadas de acordo com o sistema jurídico moralmente asséptico e
independente do teórico, os outros ramos positivistas padecem da mesma
malformação, inclusive as correntes realistas e o positivismo hermenêuti-
co de Hart. Todos eles são vítimas do aguilhão semântico ao adotar, já no
estágio semântico de suas respectivas teorias, algum conceito criterial de
direito (como a observância externa e interna dos cidadãos às normas ou
o comportamento dos juízes em relação às leis) e não o conceito interpre-
tativo de direito.
Apenas o direito como conceito interpretativo consegue explicar as
profundas divergências jurídicas existentes. O aspecto mais relevante no
conceito interpretativo se revela no estreito entrelaçamento entre direito
e moral: as intencionalidades dos agentes, seus valores e propósitos fazem
parte das condições de veracidade das proposições jurídicas, pois eles estão
continuamente sendo (re)interpretados devido a novas condições, requi-
sitos e finalidades.
Os tipos de conceitos condicionam, mas não determinam os tipos de
interpretação. Novamente não pretendemos esgotar as modalidades de in-
terpretação nem tampouco identificar algum elemento comum a todos os
tipos (o que apenas demonstraria a permanente influência do aguilhão se-
mântico). “Talvez a única relação entre eles seja aquilo que Wittgenstein
chamou de ‘semelhança familiar’ [...] A linguagem verbal muitas vezes nos
induz a esse tipo de erro: talvez não exista nada que nos seja útil chamar de
interpretação em geral” (Dworkin, 2014a, p. 188–189). Em Law’s Empire, o
jusfilósofo norte-americano nos apresenta com três formas de interpretação.
A interpretação conversacional é aquela mais conhecida, em que interpreta-
mos as ações comunicativas (sons e movimentos) para sabermos o que outra
pessoa disse ou fez. A interpretação científica, por sua vez, se relaciona à co-
leta, análise e resultados de dados naturais. Outra natureza e outro objetivo
possuem a interpretação artística: interpretamos A Divina Comédia ou Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band para justificar algum ponto de vista sobre
seu significado e propósito. A interpretação de uma prática social complexa,
institucionalizada e moralmente avaliativa por todos que dela fazem parte
como o direito tem muito mais a ver com a interpretação artística, pois

21
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

“ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade
distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação de con-
versação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação
científica.” (Dworkin, 2014b, p. 60–61).
Precisamos agora justificar os paralelos entre a interpretação de uma
prática social valorativa como o direito e uma obra literária, bem como as
contribuições da filosofia da linguagem sobre verdade e objetividade de
nossas proposições.

2. O “OBJETO” COMUM

É uma tendência dominante na interpretação jurídica ou artística


estarmos sempre procurando algo no mundo (um objeto, uma coisa, algo
sensível) que corresponda a uma palavra2. Uma palavra, principalmente se
for substantivo, tem que corresponder a uma coisa ou a um fato. É uma
exigência lógica do nosso pensamento e, caso não exista a tal coisa, já
começamos a desconfiar das pretensões do interlocutor e da utilidade da
conversa ou leitura.
Tenho agora a Constituição Federal de 1988 numa das mãos e A Di-
vina Comédia na outra. Vejo que a Constituição é analítica e que A Divina
Comédia é dividida em 99 cantos. E se empresto os volumes, em que apoiar
minhas considerações sobre a Constituição e a Comédia? O preconceito fi-
losófico-linguístico reside nesta necessidade de ancoramento.
Outra tendência dominante se revela no desejo de generalidade. A
faculdade de direito, por exemplo, se encontra cheia delas: Teoria Geral
do Processo, Teoria Geral do Crime etc. Em todas elas há a procura de
algo comum a todas as entidades processuais, criminais etc. que as tornem
como tal, que sirvam de critério definitivo para a aplicação dos conceitos.

2 “Enfrentamos uma das grandes fontes da desorientação filosófica: um substantivo faz-


-nos procurar uma coisa que lhe corresponda.” (Wittgenstein, 1992a, p. 25) [...] “O erro
que estamos sujeitos a cometer poderia ser expresso deste modo: procuramos o uso de
um signo, mas fazemo-lo como se ele fosse um objeto, coexistente com o signo. (Uma das
causas deste erro é, de novo, o fato de estarmos à procura de uma ‘coisa correspondente’ a
substantivo).” (Wittgenstein, 1992a, p. 30).

22
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Reformulando juridicamente o exemplo de Wittgenstein, é como se ten-


tássemos ensinar na disciplina de Teoria Geral do Processo o modelo, o
termo geral “Processo” sob o qual todos os tipos processuais particulares
serão subsumidos ao longo do curso e da carreira jurídicos. Forma-se a
imagem processual totalizante. A partir de então, o estudante e futuro pro-
fissional não reconhece mais processos (no plural, inicial minúscula), mas
apenas formas defeituosas do Processo (no singular, inicial maiúscula). O
sentido da palavra torna-se a imagem ou, melhor dizendo, uma coisa, um
objeto real do mundo que se correlaciona metafisicamente com a palavra e
o sujeito que a emprega. “Isto significa, grosseiramente, que consideramos
as palavras como se todas elas fossem nomes próprios, e que confundi-
mos, por isso, o objeto nomeado com o sentido do nome.” (Wittgenstein,
1992, p. 48).
Esse anseio de generalidade tem outra fonte importante: a presen-
ça permanente do método da ciência como método por excelência, uni-
versal, de redução de qualquer fenômeno natural a uma quantidade física
mensurável: “Os filósofos têm sempre presente o método da ciência e são irresisti-
velmente tentados a levantar questões e a responderem-lhes do mesmo modo que a
ciência.” (Wittgenstein, 1992, p. 49, grifo nosso).

Não estaremos a cometer um erro do mesmo gênero que o da


confusão entre uma gravação em disco de uma música e a própria
música? E não estaremos a presumir que sempre que ouvimos uma
música deverá existir uma espécie de gravação dessa música em
disco, a partir da qual ela é tocada? (Wittgenstein, 1992, p. 78–79).

As proposições jurídicas não são significados ontologicamente inde-


pendentes. As proposições jurídicas não são apenas descritivas de objetos,
coisas existentes no mundo, sejam elas pedaços do contexto geral onde o
direito se manifesta ou sejam revelações do estado mental daqueles que
se expressam sobre ele (principalmente legisladores e juízes: e aqui temos
uma tradicionalíssima teoria da interpretação). Por outro lado, as proposi-
ções jurídicas não são simplesmente valorações subjetivas, mais ou menos
egoístas, sobre a correção ou beleza de outras proposições, sobre aquilo
que o direito é ou deveria ser.

23
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

A interpretação do direito articula descrição e valoração, mas seu


resultado, porque em si mesmo interpretativo, se revela muito diferente
de ambas. O mesmo acontece com nossas instituições sociais mais com-
plexas, como o Estado, a religião ou o casamento. O mesmo acontece,
enfim, com a interpretação artística. A tese de Dworkin é de que toda
interpretação, conscientemente ou não, apresenta a sua compreensão de
determinada obra (artística ou jurídica) que, segundo ela mesma, revela tal
obra como a melhor possível, fazendo dessa interpretação uma das candi-
datas, igualmente, a melhor interpretação disponível daquela obra.
Uma mesma obra gera tantas interpretações pois cada qual apresenta
à sua maneira a forma como entende melhor, o modo “correto” de inter-
pretá-la com o objetivo de mostrá-la em sua melhor luz. As interpretações
não são totalmente livres, pois a obra mesma estipula restrições sobre sua
identidade: tudo o que a obra contém e tudo o que pôde ser descoberto
sobre ela tem de ser obrigatoriamente tomado em consideração para a
interpretação. Do mesmo modo, nada sobre a obra pode ser modificado
para torná-la forçadamente melhor. A obra não admite coações nem re-
cortes. Isso faz a diferença entre explicar interpretativamente uma obra e
transformá-la naquilo que se deseja.
As interpretações são rivais. As interpretações rivalizam sobre a quali-
dade e integridade umas das outras pois estão interessadas na melhor obra
possível, que é comum a todas elas, afinal. A atividade de interpretação
deixa agora o pobre campo dicotômico “descrição ou valoração” para ser
algo muito diferente disto ou daquilo: na interpretação de uma obra ou
texto já não existe a separação definitiva entre reprodução e crítica. Elas se
entrelaçam a formar algo muito diferente, muito mais próximo à construção
ou reconstrução de sentidos no propósito, se honestas, de revelar a melhor
obra ou texto possíveis. E se nos perguntam como consideramos nossa
interpretação, se descritiva ou valorativa, simplesmente não temos como
responder: a pergunta está mal formulada. O mesmo acontece sobre a
atividade dos juízes: afinal, os juízes criam ou aplicam as leis?
Se as teorias são rivais, o que decide qual é a melhor? Duas consi-
derações são essenciais: em primeiro lugar, o direito é uma prática social
essencialmente argumentativa. Em outras palavras, “Todos os envolvidos

24
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

nessa prática compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende
da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no
âmbito dela mesma” (Dworkin, 2014b, p. 17). Ou seja, as proposições
jurídicas apenas fazem sentido no interior da própria prática jurídica da
qual surgem, e a permanente argumentação se justifica pela necessidade
permanente de validação ou invalidação dessas mesmas proposições.
Em segundo lugar e talvez mais importante, o Direito e outras prá-
ticas sociais complexas não têm como fonte simples fatos físico-naturais,
observáveis e quantificáveis (se o tiverem — com o que descordo — tais
fatos não se constituirão em fonte direta, nem serão a única fonte, e muito
menos serão a fonte determinante do direito). De volta à interpretatividade
do direito: não poderemos demonstrar nunca — se com “demonstrar” nos
referimos à possibilidade de transformar o argumento a uma coisa sensível
do mundo, a um objeto quantificável — a veracidade ou qualidade da ar-
gumentação. Claro que o consenso nada prova, afinal todos podem estar
errados. Nunca poderemos demonstrar que esta ou aquela interpretação se
ajusta e melhor serve à prática. Isso apenas é possível argumentativamente,
no interior da própria prática, e qualquer exigência de demonstrar o inde-
monstrável — como a definição de critérios de validação, por exemplo, e
como devem funcionar tais supostos critérios — apenas reforça a persis-
tente imposição do método científico na Filosofia e no Direito: onde ele
se mostra, num primeiro momento, impossível, e, nos momentos seguin-
tes, um estorvo.
Assim, se o Direito é internamente argumentativo e suas proposições
não podem ser verificadas conforme a lógica ciência, isso, é claro, não
significa que todas as interpretações jurídicas serão boas ou igualmente
valiosas. Uma interpretação competente do Direito tem de passar

Por um teste de duas dimensões: deve ajustar-se a essa prática e demonstrar


sua finalidade ou valor. Mas finalidade ou valor, aqui, não pode sig-
nificar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura,
não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento
político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço
social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar

25
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação


dessas alternativas. (Dworkin, 2005, p. 239, grifo nosso).

As duas dimensões de adequação e justificação pertencem ao tipo


de interpretação denominada construtiva ou construtivista. Isso porque
construirá ou (re)construirá o valor daquela obra ou prática segundo al-
gum propósito que, ao mesmo tempo, as faz relevantes e oferece as razões
para sua continuidade, descontinuidade ou alteração. Embora alguns de
seus elementos principais tenham sido argumentados nas últimas páginas,
voltaremos a ela na quarta e última parte.

3. VERDADE E OBJETIVIDADE: APORTES DA FILOSOFIA


DA LINGUAGEM

A Filosofia difere logicamente da ciência. A ciência trata de construir


teorias e modelos que podem ser testados pela experiência e assim confir-
mar seu acerto, ou seja, a “verdade” desta teoria ou deste modelo, o que
quer dizer que há a correspondência entre a ciência e a realidade. Mas não
há possibilidade de uma “teoria” filosófica nesses termos, pois o sentido
antecede a experiência e nela está pressuposto (Hacker, 2000, p. 12–13).
Se o objetivo da ciência é explicar fenômenos por meio de hipóteses cau-
sais e inferências hipotético-dedutivas a partir de leis e condições “natu-
rais”, então o estatuto da filosofia tem de ser outro que o científico, pois em filosofia
não há nada de hipotético: não pode ser uma hipótese que uma proposição
que entendemos faça sentido. Não há “teoria” em filosofia, no sentido de
que a teoria serve à ciência, e não há “explicação” em filosofia, no sentido
de que a ciência explica a realidade — a não ser, nesse caso, o único tipo
de explicação que a filosofia pode almejar, isto é, a descrição do uso das
palavras e seu significado.
As expressões “interno” e “externo” são metafóricas (Hacker, 2000,
p. 45–46). O que talvez de mais importante a filosofia da linguagem nos
ensina é a representação linguística, a ficção gramatical dessas expressões:
elas não significam a “real” existência de um âmbito interno e um âm-
bito externo do humano, total ou parcialmente separados (Advertência:
esta conquista da filosofia da linguagem não faz de seu oposto verdadeiro,

26
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

isto é, que “realmente” não existe interno e externo. Ambas são contras-
sensos). De modo que não somos capazes de descrever o externo sem o
interno, e nem o interno sem o externo. Se nascemos com nosso DNA
exclusivo e já totalmente pronto, o mesmo não acontece com a lingua-
gem. Afinal, aprendemos a linguagem do “exterior” e ela nos serve in-
distintamente.
Os critérios são normativos: se a estrutura da linguagem é criterial,
ela é governada por regras. Para que tenha sentido, uma frase qualquer
deve obrigatoriamente seguir regras: usamos regras comuns como guias para
o ensino, a crítica e a justificação desta prática. “The point of the concept of a
rule is that it should enable us to evaluate what is being done.” (Winch, 2003, p.
32, grifo nosso). Wittgenstein descobre uma objetividade na linguagem,
uma objetividade nova: a partir de agora, o conceito de objetividade se
apresenta muito mais como congruência de subjetividades e não como padrão
independente de qualquer perspectiva interna ou “subjetiva”.
A exigência de objetividade imposta ao Direito, às Artes e às Ciências
Humanas em geral simplesmente não faz sentido. A objetividade enten-
dida como coisas ou fatos existentes no mundo, fatos observáveis e men-
suráveis quantitativamente, cuja existência e compreensão sejam indepen-
dentes de qualquer valoração, constituindo-se, portanto, na necessidade
de correspondência ou transformação das proposições em coisas ou fatos
físico-naturais, não faz sentido porque as condições de verdade no Direi-
to, nas Artes e nas Ciências Humanas em geral são estabelecidas por regras
sociais (muito sensitivas a valores e fins) e não num estado fático de coisas.
A objetividade fisicalista, fundamento das teorias positivistas, comete esse
grave erro filosófico.
Temos de abandonar esse conceito de objetividade, derivado por sua
vez da concepção absoluta do mundo (completamente neutra e indepen-
dente, em que o sujeito se apodera livremente dos objetos e sentidos do
mundo a partir de um grau zero de compreensão — ou “ponto de vista arqui-
mediano”), se quisermos oferecer contribuições significativas nas nossas in-
terpretações de direito ou arte. Embora nos seja constantemente requerido,
nenhuma argumentação jurídica ou artística habilita-se a possuir valor de
verdade “real”, espelhado no mundo, que transcenda a própria prática.

27
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Não vejo por que tentar encontrar algum argumento geral no sen-
tido que os julgamentos interpretativos morais, políticos, jurídicos
ou estéticos são objetivos. Os que pedem algum argumento dessa nature-
za querem algo diferente do tipo de argumentos que eu e eles produziríamos
a favor de exemplos ou casos particulares de tais julgamentos. Mas não vejo
como poderiam existir tais argumentos diferentes. (Dworkin, 2005, p.
257, grifo nosso).

Podemos denominar essa exigência epistemológica de “tese da de-


monstrabilidade”. Em suma, se não se puder demonstrar a veracidade
de uma proposição, depois de conhecidos ou estipulados todos os fatos
concretos (os fatos físicos e os fatos relativos ao comportamento hu-
mano) referentes a ela, então essa proposição não pode ser verdadeira.
Mas para ele e outros como Habermas ou Finnis existem outros fatos
que não são concretos nesse sentido, mas sim o que podemos cha-
mar de fatos morais. E se existem fatos morais, ou como quer que se
chamem os fatos que não sejam simplesmente concretos — algo que
em si mesmo não é demonstrável pelos métodos científicos comuns
—, as proposições de direito podem ser verdadeiras mesmo depois de
conhecidos todos os fatos concretos e ainda que não tenha sido encon-
trada a demonstração cabal, a prova material e irrefutável da veracidade
daquela proposição. Enfim, os juristas podem continuar a discordar e
discutir. E constantemente estão, pois uma proposição jurídica “pode
ser verdadeira em virtude de um fato moral que não é conhecido nem
estipulado.” (Dworkin, 2005, p. 206).
A questão de se o Direito possui fontes morais é interpretativa, não
demonstrável. A questão de se, possuindo o Direito fontes morais, as pro-
posições jurídicas podem ser moralmente objetivas, é interpretativa (e
moral) também. Do mesmo modo, a questão da possibilidade da objeti-
vidade na interpretação é interpretativa. Palavras como “objetivamente”
e “realmente” não nos auxiliam em nada na tarefa. Com Wittgenstein,
“quero dizer que não podemos dar nenhum sentido à ideia de que existe
alguma outra coisa que poderíamos fazer para decidir se nossos julgamen-
tos são ‘realmente’ verdadeiros” (Dworkin, 2005, p. 259, grifo nosso).

28
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

4. INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVISTA: ANÁLISE E


LIMITES DA PROPOSTA DWORKINIANA

Uma teoria geral do direito é uma teoria interpretativa, mas, além


disso, e assim como as interpretações literárias, é uma teoria interpretativa
construtiva: elas “tentam apresentar o conjunto da jurisdição em sua me-
lhor luz, para alcançar o equilíbrio entre jurisdição tal como o encontram
e a melhor justificativa dessa prática.” (Dworkin, 2014b, p. 112–113, grifo
nosso). A interpretação construtiva não se limita às causas das obras de arte
e das práticas sociais — o como e o porquê de sua origem —, nem tam-
pouco as toma como as considerações mais importantes para sua atividade.
A interpretação construtiva se preocupa muito mais com os propósitos da
obra ou prática: seu significado, seu valor e as razões de sua permanência
ou transformação. “Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma
questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo
o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina
que pertençam” (Dworkin, 2014b, p. 63–64). Desse modo, o intérprete
coparticipa da permanente ressignificação da prática, porque nela imerso
(ele mesmo um dos autores): os propósitos de uma prática social complexa
estão, de certa forma, compartilhados entre autores e intérpretes.

Uma prática social cria e pressupõe uma distinção crucial entre interpretar os
atos e pensamentos dos participantes um a um, daquela maneira, e interpre-
tar a prática em si, isto é, interpretar aquilo que fazem coletivamente. Ela
pressupõe essa distinção porque as afirmações e os argumentos que
os participantes apresentam, autorizados e estimulados pela práti-
ca, dizem respeito ao que ela quer dizer, e não ao que eles querem
dizer. Essa distinção não teria importância efetiva se os participan-
tes de uma prática sempre estivessem de acordo quanto à melhor
interpretação dela. Mas eles não concordam, pelo menos em de-
talhes, quando a atitude interpretativa é intensa. Devem, na verdade,
concordar sobre muitas coisas para poderem compartilhar uma prática social.
[...] Isso significa não apenas usar o mesmo dicionário, mas com-
partilhar aquilo que Wittgenstein chamou de uma forma de vida
suficientemente concreta [...] Mas essa semelhança de interesses e con-

29
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

vicções só deve manter-se até um certo ponto: deve ser suficientemente densa
para permitir a verdadeira divergência, mas não tão densa que a divergência
não possa manifestar-se. (Dworkin, 2014b, p. 76–77, grifo nosso).

Primeiro, na etapa pré-interpretativa se faz necessário um alto grau


de consenso sobre o conteúdo do “objeto” a ser interpretado. Aqui são
definidos os dados brutos da interpretação: suposições sobre a relevância e
extensão da prática e, principalmente, a identificação das regras e padrões
compartilhados que fornecem seu conteúdo experimental característico e
quase indiscutível, os exemplos dessa prática. Uma atitude interpretativa já
se faz presente aqui, embora de maneira menos intensa e provavelmente
muito menos polêmica que nas fases posteriores. Segundo, na etapa inter-
pretativa propriamente dita a atividade de interpretação se volta à procura
de uma justificação geral, o porquê dos principais elementos da prática
identificados na etapa anterior. A justificativa deve ajustar-se o suficiente
para que “o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa práti-
ca, não como alguém que inventa uma nova prática” (Dworkin, 2014b, p.
81), que se constitui em argumentos sobre as razões fáticas, institucionais
e morais que estabelecem a prática como tal: os propósitos, enfim, que justi-
ficam sua existência, continuidade e transformação. Na fase interpretativa
são feitos dois juízos essenciais: primeiro sobre a adequação da interpreta-
ção aos elementos mais importantes dessa prática e, segundo, a justificação
que ela lhe oferece. A melhor (ou mais correta) interpretação é aquela que,
segundo Dworkin, conseguirá oferecer a melhor justificação da prática, ou
seja, mostrá-la em sua melhor luz. Por último, na etapa pós-interpretativa
ou reformuladora a interpretação se ajusta ao sentido daquilo que a prática
então “realmente requer” para melhor servir à justificativa geral aceita na
etapa interpretativa. Há uma reavaliação das expectativas e concepções,
voltando-se aos pontos de partida. Mas tal retorno não é meramente tau-
tológico, mas interpretativo porque está constantemente reavaliando toda
a cadeia interpretativa.
A interpretação construtiva se apresenta em duas dimensões princi-
pais: adequação e justificação. Por meio delas avaliamos seu sucesso; uma
interpretação tem de adequar-se àquilo que pretende justificar. A interpre-
tação igualmente tem de justificar esta prática ao revelar os valores con-

30
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

siderados importantes que ela serve, e aqui as interpretações são rivais:


podemos citar dentro do pensamento jurídico as correntes críticas que
denunciam o direito como forma de domínio político, o pragmatismo e
o consequencialismo em suas formas moral ou econômica, o método da
ponderação alexyano, entre outras.

CONCLUSÃO

“O que os homens aceitam como justificativa — mostra como eles


vivem e pensam.” (Wittgenstein, 1999, p. 112, § 325). Não há como
tecermos afirmações significativas sobre Literatura ou Direito se nós e
nossos críticos estivermos constantemente em busca da demonstração de
sua verdade ou falsidade: nem quem afirma, e nem a quem ou contra é
afirmada, poderá fazê-lo. Tal exigência é um contrassenso e atravanca o
empreendimento público da interpretação, que não exige critérios de va-
lidação, mas sim ajuste e, principalmente, justificação da obra ou prática
tanto artística quanto jurídica.
Por sua vez, a interpretação construtiva não se faz concebível dentro
dos limites epistemológicos legados pelo positivismo científico. Concei-
tos essenciais em nossa teoria e prática como verdade, objetividade, descrição
e valoração não se referem, no Direito e na Arte, “à mesma coisa” que seu
emprego na Medicina ou na Engenharia. Se a prática social do Direito en-
volve valores aos quais somos sensíveis, a própria interpretação será inevi-
tavelmente criativa porque imporemos intenções e valores como condição
para aquela prática: ela é importante justamente por envolver tais propósi-
tos. Há nessa concepção dworkiniana traços indiscutíveis de certa circulari-
dade hermenêutica que o aproxima da hermenêutica filosófica de Gadamer.
Apesar das semelhanças essenciais, há por certo diferenças significati-
vas entre a interpretação construtiva de uma obra artística e a interpretação
construtiva de uma prática social. Podemos indicar as seguintes: a) uma
obra artística apresenta limites muito mais estreitos quanto ao seu conteú-
do e extensão; b) a questão temporal também parece ser decisiva, afinal são
muito mais frequentes mudanças bruscas e relevantes numa prática social
qualquer do que numa obra canônica; c) da mesma forma, as intenções ou
propósitos do autor, já que geralmente se trata de obra autoral de um ou

31
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

poucos autores, tendem a ser preponderantes em relação aos daqueles do


intérprete — no entanto, lembremos, uma boa interpretação faz com que
o autor aprenda algo sobre sua própria criação; d) o laço interpretativo é
bem mais largo numa prática social: quase todas as pessoas estão envol-
vidas nela, direta ou indiretamente, sendo concomitantemente autores e
intérpretes dessa prática; e) as finalidades são completamente diversas num
empreendimento artístico e no Direito, e obedecem a outros valores. Es-
sas cinco diferenças — apesar das semelhanças indicadas — entre a inter-
pretação construtiva na arte e numa prática social, sem querer esgotá-las,
são bastantes ricas e refletem, em maior ou menor grau, as distinções mais
sensíveis entre Arte e Direito, e serão certamente exploradas em futuros
trabalhos.

REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor.


Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2014a.

DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. Trad. Jefferson Luiz Camargo.


Rev. da trad. Fernando Santos. Rev. téc. Alonso Reis Freire. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

DWORKIN, Ronald. De que maneira o direito se assemelha à literatura.


In: Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. Rev.
téc. Gildo Sá Leitão Rios. Rev. da trad. Silvana Vieira. 2. ed. Justiça
e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jeferson Luiz Ca-


margo. Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios. 3. ed. Justiça e Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2014b.

HACKER, Peter Michael Stephan. Wittgenstein: sobre a natureza hu-


mana. Trad. João Vergílio Gallenari Cuter. Coleção Grandes Filóso-
fos. São Paulo: UNESP, 2000.

32
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

PERRY, Stephen R. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In:


MARMOR, Andrei (ed.). Direito e interpretação: ensaios de fi-
losofia do direito. Trad. Luís Carlos Borges. Justiça e Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

WINCH, Peter. The idea of a social science and its relation to phi-
losophy. 2. ed. Routledge: London, 2003.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Os Pensadores.


Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro azul. Trad. Jorge Mendes. Lisboa:


Edições 70, 1992.

33
DIREITO DIGITAL NA ERA DA
TECNOLOGIA: PERSPECTIVAS PARA
POLÍTICAS PÚBLICAS, REGULAÇÃO E
ENSINO JURÍDICO
Eduardo Cesar Elias de Amorim3

INTRODUÇÃO

A tecnologia digital está cada vez mais presente em nossas vidas e


tem impactado significativamente a maneira como vivemos e trabalha-
mos. Essa mudança na forma como nos relacionamos com o mundo tem
gerado desafios e oportunidades para a regulação e políticas públicas, es-
pecialmente no que se refere ao Direito e à inclusão digital.
Com a ascensão da tecnologia, surge uma série de novas questões
jurídicas, que vão desde a responsabilidade por decisões tomadas por al-
goritmos até a regulamentação do uso da tecnologia digital. O direito di-
gital, portanto, é um campo em expansão e tem sido objeto de discussão e
reflexão por parte de acadêmicos, advogados e reguladores.

3 Graduação em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (2000). Especialização em Di-
reito Empresarial e Docência do Ensino Superior. Atualmente é advogado e pesquisador
colaborador do NEF — Núcleo de Estudos do Futuro da PUC/SP. Doutorando em Direito e
Ciências Sociais pela Universidade Nacional de Córdoba.

34
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Além disso, a inclusão digital é um tema importante, que aborda a


garantia do acesso às tecnologias digitais e a proteção da privacidade dos
usuários, de forma a garantir que todos possam usufruir dos benefícios
trazidos pela tecnologia.
Nesse contexto, é importante mencionar um caso concreto que ilus-
tra a importância do Direito e das Políticas Públicas na era digital. Em
2019 foi sancionada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)
no Brasil, que estabelece regras para o tratamento de dados pessoais por
empresas e órgãos públicos. A LGPD foi inspirada na General Data Protec-
tion Regulation (GDPR), uma lei europeia que tem como objetivo proteger
a privacidade dos usuários e o uso adequado de seus dados pessoais.
A LGPD é um exemplo de como as políticas públicas podem ser usa-
das para proteger a privacidade e os direitos dos usuários em um contexto
de transformação digital. Porém, é importante notar que sua implemen-
tação e fiscalização ainda enfrentam desafios, evidenciando a importância
de uma regulamentação sólida e eficiente para lidar com as mudanças tra-
zidas pela tecnologia.
Este artigo tem como objetivo discutir os desafios e oportunidades
da regulação tecnológica e da inclusão digital na era digital, bem como a
importância da inclusão de novas tecnologias no ensino jurídico. Por fim,
apresenta um estudo de caso sobre a melhoria de políticas públicas com o
uso do Direito Digital.

1. DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ERA DIGITAL

O avanço tecnológico tem impactado profundamente a sociedade em


todas as esferas, e a área do Direito e das políticas públicas não é exceção.
A era digital trouxe consigo novos desafios e possibilidades, e a rapidez
e a amplitude das mudanças tecnológicas têm exigido que o Direito e as
políticas públicas acompanhem essas transformações.
A tecnologia está em constante evolução, o que representa um desafio
para a adaptação das normas jurídicas e das políticas públicas. O processo
de criação de leis e políticas públicas é lento e complexo, enquanto a tec-
nologia evolui em ritmo acelerado, o que cria um hiato entre as inovações
tecnológicas e as normas jurídicas que regem seu uso.

35
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Além disso, a era digital também apresenta desafios para a proteção


dos direitos humanos, como a privacidade, a liberdade de expressão e a
igualdade. A tecnologia digital pode afetar a privacidade dos indivíduos,
permitindo o acesso a informações pessoais sem o devido consentimento.
Ao mesmo tempo, a facilidade de acesso e compartilhamento de informa-
ções pode afetar a liberdade de expressão e a igualdade.
Por isso, é fundamental que as normas jurídicas e as políticas públicas
levem em conta as particularidades da tecnologia digital, como a transna-
cionalidade, a rapidez e a ampliação do alcance da informação. É necessá-
rio, ainda, que haja um diálogo constante entre o Direito e a tecnologia,
para que as leis e políticas públicas possam acompanhar as mudanças e
inovações tecnológicas.
Um exemplo concreto da importância da adaptação do Direito e das
políticas públicas às novas tecnologias é o caso do Marco Civil da Internet
no Brasil. Esse marco legal, criado em 2014, regulamentou o uso da inter-
net no país, garantindo a liberdade de expressão, a privacidade e a neutra-
lidade da rede. A partir da criação do Marco Civil, o Brasil se tornou um
dos poucos países a ter uma legislação específica para a internet.
Em conclusão, a adaptação das normas jurídicas e das políticas públi-
cas às novas tecnologias é fundamental para garantir a proteção dos direi-
tos humanos na era digital. É necessário que haja um diálogo constante
entre o Direito e a tecnologia, para que as leis e políticas públicas possam
acompanhar as mudanças e inovações tecnológicas e garantir a proteção
dos direitos fundamentais.

2. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ERA


DIGITAL

A proteção dos direitos humanos é uma das principais preocupações


na era digital. Com o avanço da tecnologia digital, as informações pessoais
e privadas estão cada vez mais expostas, e a liberdade de expressão e a
igualdade também podem ser ameaçadas por meio do uso indiscriminado
das tecnologias.
Os direitos fundamentais como a privacidade, a liberdade de expres-
são e a igualdade, precisam ser garantidos na era digital, assim como são

36
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

na vida offline. Para isso, é necessário que as normas jurídicas e as políticas


públicas levem em conta as particularidades da tecnologia digital, como
a transnacionalidade, a rapidez e a ampliação do alcance da informação.
A transnacionalidade é uma característica da internet que permite que
informações sejam compartilhadas entre diferentes países e jurisdições em
questão de segundos, sem a necessidade de fronteiras físicas. Isso pode
dificultar a aplicação das leis e regulamentações em relação à proteção dos
direitos humanos. Por isso, é importante que as políticas públicas conside-
rem essa transnacionalidade e promovam a cooperação internacional para
garantir a proteção dos direitos humanos na era digital.
Além disso, a rapidez da disseminação de informações na internet
pode gerar situações de difamação, calúnia e outras violações dos direitos
humanos de forma muito rápida e ampla, o que exige uma atuação efe-
tiva das autoridades para proteger e reparar eventuais danos causados. A
inclusão de ferramentas de monitoramento e de mecanismos de denúncia
também é importante para coibir práticas que violem os direitos humanos
na era digital.
Por fim, é fundamental que as políticas públicas e a regulação jurídica
na era digital sejam pautadas pelo respeito aos direitos humanos, garan-
tindo a proteção da privacidade, da liberdade de expressão, da igualdade
e outros direitos fundamentais. Apenas assim poderemos construir uma
sociedade digital mais justa e inclusiva

3. A PRIVACIDADE NA ERA DIGITAL

Na era digital, a proteção da privacidade tem sido cada vez mais de-
safiadora, já que as tecnologias digitais possibilitam uma facilidade sem
precedentes de coleta, processamento e compartilhamento de dados pes-
soais. A privacidade é um direito fundamental protegido pela legislação
em todo o mundo, e é essencial garantir que esse direito seja respeitado no
ambiente digital.
No entanto, a proteção da privacidade na era digital tem sido fre-
quentemente desafiada, principalmente pela coleta e compartilhamento
de dados pessoais por grandes empresas de tecnologia. Isso levou à im-
plementação de diversas normas regulatórias, como a Lei Geral de Prote-

37
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

ção de Dados no Brasil e o Regulamento Geral de Proteção de Dados na


União Europeia, que buscam estabelecer regras claras para o uso de dados
pessoais.
Além disso, as políticas públicas também têm um papel importante na
proteção da privacidade na era digital. É essencial que essas políticas esta-
beleçam regras claras e efetivas para a proteção da privacidade dos usuários
da internet e das tecnologias digitais.
A implementação de tecnologias que protejam a privacidade dos
usuários também é uma medida importante para garantir a privacidade na
era digital. Por exemplo, a tecnologia de criptografia pode ser usada para
proteger os dados pessoais dos usuários, garantindo que eles não sejam
acessados por terceiros sem autorização.
Em suma, a proteção da privacidade na era digital é um desafio im-
portante, que requer a implementação de normas regulatórias eficazes,
políticas públicas claras e efetivas e a utilização de tecnologias que pro-
tejam a privacidade dos usuários. É essencial que todos os envolvidos na
criação e no uso das tecnologias digitais reconheçam a importância da
proteção da privacidade como um direito fundamental e trabalhem para
garantir que esse direito seja respeitado.

4. A PRIVACIDADE UM POUCO ALÉM DA LIBERDADE


DE EXPRESSÃO

Quando colocamos à mesa, a confrontação entre a privacidade digital


e o direito de expressão são temas centrais na discussão sobre Direito e
Políticas Públicas na era digital. Com a facilidade de compartilhamento
de informações na internet, surge a preocupação com a proteção de dados
pessoais e com a possibilidade de manipulação das opiniões e informações
divulgadas.
No que se refere à privacidade, a proteção de dados pessoais é uma
questão fundamental, pois muitas vezes nossas informações são coletadas
e compartilhadas sem nosso consentimento, gerando preocupações com a
segurança e a proteção de nossos dados. Nesse sentido, a regulação do uso
de dados pessoais é um tema importante, que pode garantir a segurança e
a privacidade dos usuários da internet.

38
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Já em relação ao direito de expressão, a internet trouxe novas possi-


bilidades para o exercício desse direito, mas também apresenta desafios e
ameaças. A facilidade de disseminação de informações pode gerar a pro-
pagação de discursos de ódio e desinformação, o que pode comprometer
a liberdade de expressão e ameaçar a democracia.
Dessa forma, é importante que as políticas públicas considerem tanto
a proteção da privacidade quanto a garantia do direito de expressão na
era digital. A regulação adequada e o uso de tecnologias que permitam o
exercício desses direitos são fundamentais para a construção de uma socie-
dade digital mais justa e democrática.
Além disso, a educação jurídica também desempenha um papel im-
portante nesse contexto, pois é necessário que os operadores do direito
estejam preparados para lidar com as questões jurídicas relacionadas à tec-
nologia. A inclusão de novas tecnologias no ensino jurídico pode con-
tribuir para formar profissionais capazes de lidar com os desafios trazidos
pela transformação digital.
Em resumo, a proteção da privacidade e o direito de expressão são
questões fundamentais na discussão sobre Direito e Políticas Públicas na
era digital. A regulação adequada e a inclusão de novas tecnologias no en-
sino jurídico são importantes para garantir a construção de uma sociedade
digital mais justa e democrática.

5. A INCLUSÃO DIGITAL NA ERA CIBERNÉTICA

A inclusão digital é um tema importante na era digital. A tecnologia


digital oferece possibilidades de inclusão social, como acesso à informa-
ção, comunicação e serviços online. No entanto, a exclusão digital ainda é
uma realidade para muitas pessoas, especialmente em países em desenvol-
vimento e em comunidades carentes.
Para garantir a inclusão digital na era digital, são necessárias políticas
públicas que incentivem o acesso à tecnologia e o desenvolvimento de
habilidades digitais. O acesso à tecnologia e à inclusão digital devem ser
pensados de forma a não agravar as desigualdades existentes na sociedade,
que apresenta desafios regulatórios e éticos que exigem uma abordagem
cuidadosa da parte do Direito e das políticas públicas.

39
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Um exemplo de desafio é a regulamentação da tecnologia digital, que


pode ser complexa, uma vez que muitas empresas de tecnologia têm atua-
ção global e as normas jurídicas variam entre países e regiões. É necessário,
portanto, que as normas jurídicas e políticas públicas sejam pensadas de
forma a levar em conta as particularidades da tecnologia digital.

6. A OBRIGATORIEDADE DOS OPERADORES DO


DIREITO EM INCLUIR NOVAS TECNOLOGIAS NO
ENSINO JURÍDICO

A era digital tem transformado a maneira como a sociedade se co-


munica, interage e realiza negócios. Com isso, as profissões do Direito
também precisaram se adaptar a essa nova realidade. Os operadores do
Direito, incluindo advogados, juízes, promotores e outros profissionais,
agora precisam estar preparados para lidar com as novas tecnologias e as
questões jurídicas que surgem na era digital.
Nesse sentido, as instituições de ensino jurídico têm a importante
tarefa de incluir as novas tecnologias em seus currículos e metodologias de
ensino, a fim de fornecer aos estudantes as habilidades e conhecimentos
necessários sobre tecnologia digital. Isso permitirá que os futuros opera-
dores do Direito tenham uma compreensão clara das implicações jurídicas
e regulatórias da tecnologia digital e saibam como lidar com essas questões
de forma eficaz.
Além disso, a habilidade de entender e trabalhar com as tecnologias
digitais é uma importante competência para os operadores do Direito,
permitindo-lhes acompanhar as mudanças e a evolução das tecnologias
digitais em tempo real. Dessa forma, os profissionais do Direito poderão
oferecer soluções mais inovadoras e eficientes aos seus clientes, além de
estarem preparados para enfrentar os novos desafios jurídicos trazidos pela
era digital.
Em resumo, a atualização constante das habilidades e conhecimentos
dos operadores do Direito sobre tecnologia digital é essencial para lidar
com as questões jurídicas e regulatórias da era digital. As instituições de
ensino jurídico desempenham um papel fundamental nesse processo, for-

40
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

necendo aos estudantes as ferramentas necessárias para enfrentar os desa-


fios e as oportunidades oferecidos pela era digital.
Outrossim, sabemos bem que a era digital também trouxe novas for-
mas de atuação profissional para os operadores do Direito. Com o advento
da tecnologia, surgiram novas áreas de atuação, como o Direito Digital e
o Direito da Tecnologia da Informação, o Direito Cibernético e de In-
ternet, que exigem um conhecimento especializado sobre a regulação das
atividades digitais e das relações estabelecidas por meio da tecnologia.
Por outro lado, o momento ímpar que a sociedade vive, sendo assim
no mundo inteiro, com algumas exceções, também apresenta novos desa-
fios éticos e morais para os operadores do Direito.
A facilidade de acesso às informações pessoais e a ampla difusão de
notícias falsas e discursos de ódio na internet exigem uma postura crítica e
consciente por parte dos profissionais do Direito, a fim de garantir a defesa
dos direitos humanos e a promoção de uma sociedade justa e democrática.

7. UM CASO CONCRETO — LEI GERAL DE PROTEÇÃO


DE DADOS (LGPD)

Um caso concreto de melhoria de políticas públicas com o uso do


direito digital é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, que
entrou em vigor em 2020. A LGPD estabelece regras claras para a coleta,
processamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais,
garantindo maior segurança e privacidade aos cidadãos brasileiros.
A LGPD foi criada com base em modelos de regulação de dados pes-
soais adotados em outros países, como a GDPR na União Europeia. No
entanto, a legislação brasileira também levou em consideração as particu-
laridades do país, como a diversidade cultural e econômica. Desenvolvida
a partir da colaboração de diversas entidades e Organizações, incluindo o
Ministério Público Federal, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados
(ANPD) e a própria Sociedade Civil, a lei também prevê sanções para o
descumprimento das regras, o que incentiva as empresas a implementa-
rem medidas de segurança e privacidade para seus usuários.
Assim, a LGPD representa um avanço significativo na proteção dos
direitos dos usuários de serviços digitais no Brasil, garantindo maior trans-

41
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

parência e segurança no uso de dados pessoais. A implementação da lei


também impulsionou a criação de políticas públicas e de estratégias em-
presariais voltadas à privacidade e à proteção de dados, contribuindo para
a construção de uma cultura de privacidade digital no país.

CONCLUSÃO

A conclusão é que a era digital exige uma adaptação constante do


Direito e das políticas públicas. Isso porque a tecnologia digital está em
constante evolução e as suas implicações jurídicas e éticas também.
As políticas públicas têm um papel fundamental na regulação da tec-
nologia digital, garantindo a proteção dos direitos humanos, a inclusão
digital e a regulação adequada das empresas de tecnologia. É importante
que as políticas públicas levem em conta as particularidades da tecnologia
digital e que promovam a inovação e o desenvolvimento sustentável.
Já o Direito tem o papel de aplicar e interpretar as normas jurídicas em
relação à tecnologia digital, garantindo que os direitos fundamentais sejam
protegidos e que a tecnologia digital seja regulamentada de forma adequa-
da. Para isso, os operadores do Direito precisam estar preparados para lidar
com as questões jurídicas da era digital, incluindo as novas tecnologias em
seu ensino e aprimorando constantemente seus conhecimentos.
Por fim, é importante destacar que a adaptação do Direito e das polí-
ticas públicas à era digital é um desafio constante, mas que é necessário en-
frentá-lo para garantir a proteção dos direitos humanos e o desenvolvimento
sustentável na era digital. A colaboração entre as áreas do conhecimento,
bem como a participação da sociedade civil, é essencial para essa adaptação.

REFERÊNCIAS

ALVES, Edilene Lôbo; MIRANDA, Carolina; LIMA, Nayara. Prote-


ção de Dados Pessoais e Privacidade no Brasil. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2019.

COSTA, Daniel Arbix. Direito e Políticas Públicas na Era Digital:


Inovação, tecnologia e novos modelos de regulação. São Paulo: Sa-
raiva Educação, 2020.

42
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

CRUZ, Tatiane Cunha da. Direitos humanos e novas tecnologias: im-


plicações para o Direito. Revista do Tribunal Regional do Tra-
balho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 63, n. 97, p. 83–99, 2015.

KATZ, James E.; SHAPIRO, Carl. Tecnologia e Sociedade: Perspec-


tivas Sociológicas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

MACHADO, Felipe. Direito Digital. São Paulo: Atlas, 2017.

MAIA, Maria Helena. Direito à informação e sociedade da informação.


In: MAIA, Maria Helena (org.). A sociedade da informação no
Brasil: Livro Verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia,
2000.

MASSONI, Marcos Aurélio. Direito, tecnologia e democracia. Rio


de Janeiro: Elsevier, 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SILVA, Alexandre Atheniense da. Direito na era digital. Rio de Janei-


ro: Forense, 2019.

43
O CONCEITO BASE DE DIREITO NA
OBRA DE IMMANUEL KANT
Chrystian Jeff Ferreira 4

INTRODUÇÃO

O filósofo alemão Immanuel Kant é conhecido como o “provinciano


universal”, pois jamais saiu de sua cidade natal, Königsberg, que na época
pertencia à Prússia. Entretanto, se por um lado nunca conheceu o mundo,
por outro, suas ideias navegaram por toda a extensão terrestre nesses quase
três séculos seguintes à sua produção acadêmica.
Poucos autores foram tão influentes na história do pensamento quan-
to o filósofo alemão, seja por sua filosofia densa, profunda e abrangen-
te, que intrigou diversos outros autores contemporâneos e posteriores a
ele, que desejaram tanto continuar o seu pensamento quanto usá-lo de
base para produzirem suas próprias ideias por meio de uma crítica direta;
seja por suas diversas repercussões práticas, entre as quais se encontra, por
exemplo, o conceito de Direito, objeto desta pesquisa.
Dentre esses autores, podemos citar Kelsen, que é tido a priori como
um neokantiano. A relação necessária que o autor constrói entre norma e
sanção em sua obra deriva do pensador iluminista:

4 Graduando em Direito pela UFPB e em Filosofia pela UNIP. Coordenador Geral do Centro
Acadêmico Manoel Mattos (2023–2024). Aluno do grupo de pesquisa Filosofia do Direito e
Pensamento Político.

44
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Kant (AA 06:232) define que Direito e faculdade de coagir são


iguais. Coerção (Zwang) em alemão significa uso da força como
constrição à liberdade. Ao Direito está ligada a faculdade de coagir,
existe a proibição de opor-se à vontade do legislador. Kelsen diz
que o aplicador do Direito possui a faculdade de coagir fisicamente
o destinatário do comando para cumprir a norma, podendo usar a
força para obrigar ao cumprimento do comando jurídico-norma-
tivo. (Lima, 2017, p. 21).

Posteriormente, acontece no pós-guerra a chamada “virada kantia-


na”, e é notória a influência de obras como “A Paz Perpétua” para que
as novas constituições que valorizam a pessoa humana pudessem vir a se
consolidar, bem como para que o Direito Internacional em prol da paz
possa ser pensado e colocado em prática com a criação de instituições
como a ONU:

Após a Segunda Guerra, houve uma retomada das ideias kantianas


no âmbito do mundo jurídico. A frieza do positivismo jurídico,
utilizado como base para os desmandos que atingiram vidas ino-
centes para expansão do nazismo, estava enfim derrotada. A De-
claração Universal dos Direitos do Homem elaborada em 1948,
consagrou a dignidade humana como valor jurídico universal e
passou a influenciar sobremaneira a construção das constituições
do mundo pós-guerra. (Oliveira, 2016, p. 17).

Nesse contexto, pensadores como Ronald Dworkin puderam emer-


gir reaproximando o Direito dos princípios graças à Kant, e hoje diversos
países têm os princípios de sua sociedade como uma base fundamental de
seu sistema jurídico, como é o caso do Brasil.
Assim, entende-se que Kant é um autor fundamental para se enten-
der e pensar o Direito, tanto em sentido teórico quanto prático. Todavia,
para se adentrar em discussões e temáticas mais profundas, é necessário se
entender a priori como o próprio conceito de Direito é definido na obra
do autor alemão.

45
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Esta pesquisa visa então esclarecer o conceito base do que Kant en-
tende ser a definição de Direito, para que, após isso, se possa adentrar em
discussões e temáticas mais densas e profundas. Para isso fez-se uma revi-
são bibliográfica das obras Crítica da Razão Prática (2020), Metafísica dos
Costumes (2913) e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2003),
bem como diversos outros comentadores do pensamento kantiano.

1. A RAZÃO PRÁTICA

Parte expressiva da genialidade de Kant se deve à abrangência de sua


obra, pois não apenas disserta sobre os extremos das questões teóricas e
práticas, mas, de maneira genial, as correlaciona. Ele vive no contexto de
três grande correntes ideológicas, o racionalismo de Leibniz, o empirismo
de Hume e a ciência positiva-matemática de Newton (Morente, 1976,
p. 221–222), que deságuam na teoria inédita e abrangente de Kant, que
utiliza do melhor que há no pensamento de sua época.
Enquanto os empiristas entendiam que o conhecimento se daria pela
experiência, os racionalistas defendiam que ele se dá apenas pela razão.
Kant, com seu criticismo, liga tais ideias, pois para o autor alemão a ex-
periência está interligada à razão, já que os fenômenos do mundo são per-
cebidos pelos sentidos do indivíduo que o contempla e, a partir de então,
se tornam pensáveis por meio do entendimento (Kenny, 2008, p. 127).
Ademais, a física de Newton provou matematicamente que a natureza
pode sim se interligar com a razão (Morente, 1976, p. 221), o que favorece
as ideias de Kant mostrando que a empiria e a razão são ambas necessárias
para se construir o conhecimento.
Mas é necessário constar que a razão se distingue do conhecimento,
pois ela é o esforço do intelecto para ir além do que o entendimento pode
obter e quando se divorcia da experiência se torna “razão pura’’, que é o
foco da crítica kantiana (Kenny, 2014, p. 127). Assim, podemos concluir
que o conhecimento se dá pelo diálogo entre a sensibilidade e o entendi-
mento, pois a matéria é a posteriori, mas sua forma a priori e ambas se rela-
cionam no indivíduo pensante (Leite, 2019, p. 38–41).
A partir desse ponto pode-se passar para a sua outra crítica, a da razão
prática:

46
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Se se admite que a razão pura pode conter em si um fundamento


prático, isto é, um fundamento suficiente para a determinação da
vontade, então existem leis práticas; se não for o caso, então todos
os princípios práticos serão meras máximas. (Kant, 2016, p. 34).

A razão em Kant se constrói então com o dever ser normativo que


dialoga com a prática, elas nunca se encontram, mas se ajudam mutua-
mente e nisso Kant concilia o ideal racionalista com o empirista em ter-
mos práticos. Nesse contexto surge o que o autor chama de Direito, que
têm seus conceitos retirados da razão, mas se constrói a partir da prática
(Kant, 2021, p. 11–15).
Todos possuem em si tanto uma razão teórica quanto uma prática,
pois, graças ao conceito de liberdade, é perceptível uma faculdade racional
orientada para guiar as ações.

2. A LIBERDADE

O conceito de liberdade é popularmente entendido pela capacidade


de fazer o que se deseja, entretanto em Kant a liberdade é entendida a priori
como um conceito negativo do arbítrio:

O arbítrio que pode ser determinado pela razão pura se chama


livre-arbítrio. O que só é determinável pela inclinação (impulso
sensível, stimulus) seria o arbítrio animal (arbitrium brutum). O
arbítrio humano, pelo contrário, é um arbítrio tal que é certamen-
te afetado, mas não determinado, pelos impulsos, e não é, pois,
puro por si mesmo (sem uma prática adquirida da razão), ainda que
possa ser determinado às ações por uma vontade pura. A liberda-
de do arbítrio é aquela independência de sua determinação pelos
impulsos sensíveis: este é o seu conceito negativo. (Kant, 2021, p.
19–20).

Assim, no pensamento kantiano, a liberdade não é simplesmente fa-


zer o que os seus sentidos determinam. Livre para o autor alemão é aquele
que contraria os seus impulsos e consegue, por fim, agir positivamente

47
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

segundo a determinação de sua razão, pois a liberdade, em seu conceito


positivo é a “capacidade da razão pura de ser prática por si mesma. Isso
não é possível de outro modo, porém, que não o da subordinação da má-
xima de cada ação à condição de aptidão da primeira para a lei universal”
(Kant, 2021, p. 20).
Nas palavras de Sandel:

Com frequência definimos liberdade como ausência de obstáculos


para que possamos fazer o que quisermos. Kant discorda. Ele tem
uma definição mais estrita e rigorosa de liberdade.

Kant raciocina da seguinte forma: quando nós, como ani-


mais, buscamos o prazer ou evitamos a dor, na verdade não
estamos agindo livremente. Estamos agindo como escravos
dos nossos apetites e desejos.
[...]
Para agir livremente, de acordo com Kant, deve-se agir com
autonomia. E agir livremente é agir de acordo com a lei que
imponho a mim mesmo - e não de acordo com os ditames
da natureza ou das convenções sociais.
[...]
Agir livremente não é escolher as melhores formas para atingir de-
terminado fim; é escolher o fim em si. (Sandel, 2020, p. 140–141).

Liberdade é, então, agir segundo um dever e ela, a liberdade, se de-


monstra e comprova a si mesma na medida em que os indivíduos conse-
guem agir por autonomia, segundo as leis universais da razão que criam a
si mesmos. Por isso ela capacita a razão a ser prática em si mesma:

Ainda na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant de-


fine o conceito de liberdade de dois modos: um negativo e outro
positivo. A definição negativa consiste na possibilidade de não se
deixar determinar pelas leis da causalidade natural. Enquanto que
a definição positiva, que pode ser derivada da primeira definição,

48
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

diz respeito à possibilidade de criar leis universais para a vontade


racional, isto é, corresponde à formulação das leis do imperativo
categórico. (Costa, 2019, p. 61).

Como supracitado, essas leis universais da razão são o que Kant enten-
de como Imperativo Categórico, um imperativo moral e necessário para
todos indivíduos verdadeiramente livres, sendo esse imperativo definido
por ele mesmo pela máxima: “age unicamente segundo uma máxima tal
que ao mesmo tempo possas querer que ela se torna uma lei universal”
(Walker, 1999, p. 31).
O imperativo categórico é então uma obrigação da razão que leva os
indivíduos a questionarem a si mesmos qual a medida racional que devem
tomar em cada um de seus atos, não por vontade, mas por puro dever.
E uma vez que os indivíduos são livres e agem por dever, é possível
que o pacto social seja feito para fundar o Estado e o Direito.

3. O PACTO SOCIAL

Na modernidade, os Estados nacionais surgem, e com eles diversos


autores buscam entender o que racionalmente poderia justificar sua exis-
tência. Nesse contexto, surge o conceito de contratualismo, entendido
como “Uma escola definida por usar uma mesma sintaxe ou uma mesma
estrutura conceitual — o consenso —, para racionalizar a força, regrar
as relações e alicerçar o poder, em sua dinâmica e estrutura” (Chrispino,
2001, p. 41).
O contratualismo é então a ideia de que em um momento hipotético
os indivíduos livres em seu estado de natureza decidiram se submeter a
uma mesma ordem civil, social e jurídica que chamamos de “Estado”.
Para Kant, a existência do pacto é, sobretudo, um dever moral, pois
sem a constituição civil a injustiça reinaria de forma permanente. Sem
uma legislação, as liberdades de arbítrio seriam totalmente desenfreadas
e se manifestariam exteriormente de forma descontrolada (Nedel, 2000,
p. 30). Assim, sem a existência do pacto o indivíduo seria por um lado
livre nos mais diversos sentidos do termo, mas por outro teria que convi-
ver com uma incerteza constante, pois nunca saberia quando seria ataca-

49
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

do, já que os outros indivíduos que convivem com ele em sociedade são
igualmente livres e podem fazer o que quiser com sua liberdade, inclusive
usá-la para atacá-lo.
Então, na perspectiva kantiana, se torna viável perder parte de sua
liberdade exterior para o surgimento da legislação civil, pois com isso o
indivíduo ao menos possuiria a certeza que sua liberdade seria respeitada
dentro dos limites de seu arbítrio.
Dessa feita, compreende-se que na perspectiva contratualista o Esta-
do, em linhas gerais, possui a função de defender o indivíduo. De outra
forma não haveria um porquê racional que justificasse a constatação que
os cidadãos não apenas aceitam ter sua liberdade limitada em prol da fun-
dação do Direito, mas que também escolhem permanecer sob os cuidados
da proteção jurídica do Estado:

O que funda o Estado é a ideia de uma associação como acordo de


vontades para fundar um Estado de Direito, autolimitado na lei,
assegurando assim a igualdade de todos perante a lei.

O limite do exercício do poder não é a vontade de um monarca ou


déspota individual, mas a legítima vontade do povo expressa na lei,
em querer a democracia e dentro desta impor limites às vontades
existentes em uma dada sociedade. (Lima, 2017, p. 82).

4. O CONCEITO DE DIREITO

Entendido que a razão prática se relaciona com o conceito de liber-


dade na medida em que faz a razão pura ser capaz de ser prática por si
mesma e que essa resulta, por fim, no imperativo categórico como uma
lei necessária da razão, o contrato social faz-se possível e com isso surge o
conceito de Direito:

O imperativo categórico não teria sentido se o homem não fosse


livre em seu agir. Com efeito, a comunicação entre a razão teórica
e a prática efetiva-se através da lei da liberdade, consubstanciada na
obrigação moral.

50
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Por outro lado, é princípio fundamental da ética kantiana o da


autonomia da razão prática. Para que uma vontade possa querer
por puro dever, é necessário que não esteja submetida a uma lei
estranha, mas que seja legisladora de si mesma. Destarte, só obe-
decerá a própria lei, que é, por seu turno, lei universal. Com isso,
a autonomia da vontade torna-se princípio de todas as leis morais
e dos deveres que a elas se conformam. Como consequência, o
direito participa da doutrina dos costumes. Isso porque o dever
— tal como a obrigação — é o conceito comum às duas partes da
metafísica dos costumes. Da autonomia da vontade provêm a legis-
lação moral e a legislação jurídica, referindo-se esta última às ações
externas, enquanto que a primeira diz respeito às ações internas do
homem. (Leite, 2019, p. 57 e 60).

Agora pode ser finalmente apresentada a definição de Direito kantia-


no: “o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode
estar de acordo com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da
liberdade” (Kant, 1982, p. 337 apud Weber, 2013, p. 42).
O Direito então é uma forma pela qual se torna possível que os dife-
rentes arbítrios convivam de maneira harmônica dentro do pacto social.
As normas limitam a ação humana e servem como base para que cada
indivíduo saiba quais são os seus limites de ação e, caso transgrida a sua
liberdade e atinja a do outro, estará ferindo o Direito e, uma vez perten-
cente ao pacto, pode sofrer sobre si sanções. O Direito é então limitação
de arbítrios livres, o que pode ser vulgarmente traduzido na frase popular
“o meu direito termina onde o seu começa”, ditado de extremo cunho
kantiano.
Nesse mesmo sentido, explica Bobbio que:

É verdade que o direito é liberdade; mas é liberdade limitada pela


presença de liberdade dos outros. Sendo a liberdade limitada e
sendo eu um ser livre, pode acontecer que alguém transgrida os
limites que me foram dados. Mas, uma vez que eu transgrida os
limites, invadindo com minha liberdade a esfera da liberdade do
outro, torno-me uma não-liberdade para o outro. Exatamente

51
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

porque o outro é livre como eu, ainda que com liberdade limitada,
tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade. Pelo fato
de que não pode repeli-lo a não ser por meio da coação, esta se
apresenta como ato de não-liberdade cumprido para repelir o ato
de não-liberdade do outro e, portanto — uma vez que duas
negações se afirmam —, como um ato restaurador da liber-
dade. (Bobbio, 1997, p. 125).

Segundo o filósofo, o Direito se refere então à “legislação externa”


que regula as relações entre indivíduos e estabelece limites e condições
para a liberdade de ação de cada um.
Kant entende que o Direito é baseado neste princípio da liberdade,
que é a capacidade de agir de acordo com as próprias leis, sem ser coagido
ou impedido por outros. Assim, o direito é visto como uma forma de
proteger a liberdade individual, ao mesmo tempo em que estabelece
limites para garantir que essa liberdade não prejudique a liberdade dos
outros.
A lei é a expressão da razão prática e deve ser universalmente aplicável,
ou seja, deve ser válida para todos os seres racionais que estão protegidos
pelo contrato social. Por fim, o filósofo alemão entende que a lei deve ser
formulada de tal forma que possa ser aceita por todos os indivíduos, in-
dependentemente de suas preferências pessoais ou interesses particulares:

[...] o conceito de um direito externo em geral procede in-


teiramente do conceito de liberdade nas relações externas dos
homens entre si, nada tendo a ver com o fim que todos os
homens perseguem de modo natural (o propósito de serem fe-
lizes), nem com a prescrição dos meios para lográ-lo; de sorte
que esse fim não há de imiscuir-se de maneira alguma naquela
lei a título de fundamento para determiná-la. O direito é a
limitação da liberdade de cada um à condição de sua concor-
dância com a liberdade de todos, na medida em que esta con-
cordância seja possível segundo uma lei universal. (KANT, p.
144 apud LEITE, 2015, p. 63–64).

52
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

CONCLUSÕES

Ante o exposto, pode-se entender que a compreensão do conceito


de Direito é essencial para que se possa progredir em outros debates kan-
tianos mais profundos, bem como para se ler a obra do autor iluminista,
sobretudo sua política, na íntegra.
A partir da distinção que Kant faz entre razão teórica e razão prática, é
compreensível que a razão teórica permite o desenvolvimento do conceito
de liberdade, uma vez que esta faz a razão pura ser prática por si mesma
(Kant, 2013, p. 22).
Para Kant, a liberdade é então um valor supremo, que deve ser pro-
tegido e mantido a todo custo e é por meio do contrato social que os
indivíduos abdicam de parte dela para receberem em troca proteção e
segurança, estabelecendo um sistema jurídico que deve ser justo, igua-
litário e, sobretudo, racional. Essa é uma ideia fundamental para a com-
preensão do Direito em Kant, uma vez que o Direito é visto como uma
forma de garantir a liberdade dos indivíduos e de protegê-los de possíveis
abusos de poder.
Por fim, chegamos à definição de Direito em Kant, que está inti-
mamente ligada à ideia de autonomia moral. Para Kant, o Direito é um
conjunto de normas que tem como objetivo garantir a liberdade dos indi-
víduos e permitir que eles ajam de acordo com a sua própria vontade. No
entanto, essa vontade deve estar em conformidade com a lei moral, que exi-
ge que os indivíduos ajam de forma a não prejudicar a liberdade dos outros.
Assim, o Direito é visto como uma expressão concreta da autonomia moral,
que permite que os indivíduos vivam em uma sociedade justa e livre.
Uma sociedade deve poder legislar acerca de seu ordenamento jurídi-
co, pois o ordenamento jurídico é fruto do consenso entre as livres razões
dos indivíduos; então, nesses termos:

Em Kant, o indivíduo é parte de uma comunidade e, como tal,


nela se encontra sua referenciação como marco produtor dos valo-
res políticos do bem comum a partir do contrato originário, ape-
sar de não dever abdicar de sua vida privada como valor básico
na estrutura sócio-política. Pelo contrário, a manutenção da vida

53
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

privada é o elemento permanente que norteará o próprio espaço


público kantiano, a ideia de que o indivíduo não pode ceder direi-
tos injustificadamente ao público, qualquer cessão que agrida sem
razão suficiente a autonomia privada será desequilibrada. É neces-
sário em Kant um acordo racional sobre a perspectiva de valores
comuns. A ideia reguladora de uma constituição justa estabelece
critérios objetivos no Direito para a análise da normatividade das
condutas concretas (empíricas) em função de princípios elegidos
pelo próprio povo através do parlamento. (Lima, 2017, p. 78–79).

Em resumo, a obra de Kant é um importante marco na história da Filo-


sofia e do pensamento jurídico. Ao enfatizar a importância da razão prática,
da liberdade e da autonomia moral, Kant nos convida a repensar as bases de
nosso sistema jurídico e a buscar uma maior igualdade e justiça para todos os
indivíduos, tendo a razão e a dignidade humana como elementos basilares.
Suas ideias ainda são relevantes na contemporaneidade e possuem uma vasta
aplicação prática, especialmente quando consideramos as diversas formas de
opressão e desigualdade que ainda existem em nossa sociedade.
Assim, é um grande erro dizer que Kant é um autor superado, pois
é evidente que ainda se há muito conhecimento em prol da humanidade
para se abstrair de sua obra.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel


Kant. Trad. Alfredo Fait. 4. ed. Brasília: UNB, 1997.

CHRISPINO, Alvaro. Os cenários futuros como consenso social: do


contrato social ao universo educacional. Revista Brasileira de Es-
tudos Pedagógicos, Brasília, v. 82 n. 200-01-02, p. 40–56, 2001.

COSTA, Rafaella Silveira Sucupira da. A Autonomia da Vontade e o


Problema da Fundamentação da Moralidade no Pensamento
de Immanuel Kant. Dissertação (Mestrado) — UFPB/CCHLA,
João Pessoa, Paraíba, 2019.

54
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Petrópolis, RJ: Vozes,


2016.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e


outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003.

KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Petrópolis, RJ: Vozes,


2021

KENNY, Anthony. Uma Nova História da Filosofia Ocidental: filo-


sofia moderna. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

LEITE, Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant. Coleção 10 lições. 9.


ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

LIMA, Newton de Oliveira. O Estado de direito em Kant e Kelsen.


Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia: lições preli-


minares. 5. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1976.

OLIVEIRA, Viviane Mendonça de Miranda de. As relações homos-


sexuais e o discurso religioso: liberdade de expressão e liberdade
religiosa. 2016. Monografia (Pós-Graduação Lato Sensu) — Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

SANDEL, Michael J. Justiça, o que é fazer a coisa certa? 32. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

WALKER, Ralph. Kant: Kant e a lei moral. Coleção Grandes Filóso-


fos. Tradução de Oswald Giacóia Junior. São Paulo: Editora Unesp,
1999.

WEBER, Thadeu. Direito e justiça em Kant. Revista de Estudos Cons-


titucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v.
5, n. 1, p. 38–47, jan./jun. 2013.

55
ARTIGOS — FINANCIAMENTO
E CONTROLE DE DIREITOS
ESSENCIAIS

57
A “ESSENCIALIDADE” DO DIREITO
À SEGURANÇA PÚBLICA E O SEU
VERDADEIRO CUSTO: UM OLHAR
SOBRE O ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
Stefany Pereira Batalha5

INTRODUÇÃO

A proteção dos Direitos Humanos deriva de diversos instrumentos e


mecanismos positivados e declarados com a finalidade basilar de garantir
a aplicação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana. Nes-
se sentido, no presente artigo evidencia-se a abordagem sobre o finan-
ciamento e o controle de direitos essenciais, também conhecidos como
Direitos Sociais, para uma discussão relevante atinente ao custo de tais
direitos.
Diante disso, questiona-se o real preço pago e sua eficácia, para a vi-
sualização da efetividade, ou não, do propósito desses direitos.
O direito à segurança pública é um tema complexo e crucial para a
sociedade como um todo, especialmente em locais como o estado do Rio

5 Bacharelanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), bolsista pelo PROUNI


e assistente Jurídica na brMalls.

59
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

de Janeiro, que enfrenta desafios significativos em relação à criminalidade


e à violência. Para entender melhor a essencialidade desse direito e seu ver-
dadeiro custo é preciso considerar uma abordagem multidisciplinar, que
envolva diferentes áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Ciência
Política e o Direito. Além disso, é fundamental levar em conta a realidade
específica do estado do Rio de Janeiro, considerando suas particularida-
des sociais, culturais, econômicas e políticas. Com uma metodologia de
pesquisa sólida e bem estruturada, é possível avançar na compreensão da
importância do direito à segurança pública e dos desafios envolvidos em
garantir esse direito de forma efetiva e sustentável.
Assim sendo, far-se-á uso do método hipotético-dedutivo para ana-
lisar a relação entre financiamento e controle do direito à segurança e sua
garantia. Para isso, serão utilizados como base a Constituição Federal de
1988 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como a análi-
se de doutrinadores renomados no assunto.

1. CONCEITOS BÁSICOS SOBRE SEGURANÇA

O termo segurança se origina do latim securitas, que nos traz algumas


ideias com sentidos diferentes. Diante do sentido etimológico esposado,
Maria da Glória Gohn (2013, p. 192) entende que “a segurança pode ser
entendida como um valor socialmente construído e que está associado a
diferentes aspectos, como a proteção do indivíduo e da sociedade contra
ameaças externas, a prevenção de riscos e a garantia de condições adequa-
das de vida”.
Já Souza (2011) observa a segurança sobre uma ótica multidimensional
que envolve mais do que apenas a proteção contra a violência e a crimina-
lidade: ela engloba também a garantia de condições dignas de vida, como
acesso à saúde, à educação, ao trabalho e à moradia, bem como a proteção
do meio ambiente e dos direitos humanos. Ou seja, é tido como algo garan-
tido, sobre o espectro da confiança, vinculado a uma certeza, atinente ao ato
de assegurar, ou seja, manter-se protegido de possíveis perigos.
O direito à segurança é um conceito sociológico que se refere à ne-
cessidade das pessoas de se sentirem protegidas em suas vidas diárias. Se-
gundo o sociólogo Anthony Giddens (1984), a segurança é um dos pilares

60
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

fundamentais da sociedade moderna, juntamente com a ordem e a justiça.


Giddens argumenta que o direito à segurança não deve ser visto apenas
como um direito individual, mas também como um direito coletivo, já
que a segurança das pessoas é um requisito básico para o funcionamento
da sociedade como um todo.
Outro importante doutrinador que aborda o direito à segurança
como um conceito sociológico é Zygmunt Bauman (2000), para o qual a
segurança é uma necessidade humana básica e um elemento fundamental
da vida em sociedade. No entanto, ele argumenta que a segurança na so-
ciedade moderna é cada vez mais volátil e efêmera, o que gera um senti-
mento de incerteza e vulnerabilidade nas pessoas. Bauman argumenta que
o direito à segurança deve ser visto como um direito humano universal e
que as sociedades modernas precisam se esforçar para garantir que todas as
pessoas tenham acesso a um mínimo de segurança.
Alguns doutrinadores também apontam para a relação entre o direito
à segurança e a justiça social. Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu
(1998), a segurança é um bem escasso que é distribuído de forma desigual
na sociedade. Bourdieu argumenta que as pessoas que estão em uma posi-
ção mais desfavorecida socialmente têm menos acesso à segurança do que
as pessoas mais privilegiadas. Assim, para garantir que o direito à seguran-
ça seja respeitado, é necessário lutar pela justiça social e pela igualdade de
oportunidades.
Assim, é importante destacar que o direito à segurança não pode ser
visto como um conceito absoluto, que está acima de qualquer outra con-
sideração. Como aponta o filósofo alemão Jürgen Habermas (1996), o
direito à segurança deve ser equilibrado com outros direitos fundamentais,
como a liberdade e a privacidade. Habermas argumenta que as sociedades
modernas precisam encontrar um equilíbrio entre a garantia da segurança
das pessoas e a proteção de suas liberdades individuais, para que o direito
à segurança seja garantido sem comprometer outros valores fundamentais.
O direito à segurança também pode ser compreendido a partir de
uma matriz antropológica. Para o antropólogo Clifford Geertz (1973), a
segurança é uma das necessidades básicas das pessoas em todas as culturas
e sociedades. Segundo Geertz, a segurança é uma das dimensões funda-

61
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

mentais da experiência humana e está relacionada à necessidade de se sen-


tir protegido contra ameaças físicas, sociais e psicológicas.
Nesse sentido, uma matriz antropológica pode ajudar a compreen-
der como diferentes culturas e sociedades concebem e buscam garantir
o direito à segurança. Por exemplo, algumas sociedades tradicionais po-
dem enfatizar a proteção da comunidade como um todo, enquanto ou-
tras podem privilegiar a proteção da família ou do indivíduo. Além disso,
as práticas e crenças culturais também podem influenciar a forma como
as pessoas percebem e lidam com ameaças à sua segurança. No entanto,
é importante destacar que uma matriz antropológica não deve ser vista
como uma justificativa para relativizar ou minimizar a importância do
direito à segurança. Pelo contrário, a compreensão da diversidade cultural
pode ajudar a ampliar a discussão sobre como garantir a segurança das
pessoas em diferentes contextos e realidades. Assim, é fundamental que
as políticas públicas e as práticas sociais levem em conta as especificidades
culturais e sociais de cada contexto, mas sem deixar de lado o compromis-
so com a garantia do direito à segurança de todas as pessoas.
Em resumo, o direito à segurança, sobre um âmago sociológico e an-
tropológico, se refere à necessidade de as pessoas se sentirem protegidas
em seu cotidiano. A compreensão desse direito como um conceito com-
plexo e multifacetado requer uma abordagem interdisciplinar, que leve
em conta as dimensões sociais, culturais, psicológicas e políticas envolvi-
das na busca pela segurança.
Por fim, tendo em vista os pontos elucidados, pode-se afirmar que a
lógica da segurança consiste em mitigar os riscos ou suprimi-los de uma
determinada realidade concreta. Desse modo, o direito à segurança deve
ser visto como um direito fundamental e universal, que deve ser garantido
a todas as pessoas, independentemente de sua origem, cultura ou posição
social.

1.1. A SEGURANÇA COMO UM DIREITO HUMANO

A prima facie, vale elucidar que os direitos humanos são inerentes a


todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade,
etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Eles incluem o direito

62
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

à vida, à liberdade e à segurança pessoal; liberdade de opinião e expressão;


liberdade de pensamento, consciência e religião; e o direito a um padrão
de vida adequado.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ado-
tada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, o reconheci-
mento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo. A Declaração estabelece um conjunto comum de
direitos para todas as pessoas e serve como um padrão para os Estados
promoverem e protegerem os direitos humanos.
Assim sendo, especificando um pouco mais sobre o tema, vale verifi-
car algumas nuances da Segurança como um Direito Humano.
Valerio de Oliveira Mazzuoli (2019, p. 24) afirma que os direitos hu-
manos podem ser definidos da seguinte forma:

Os direitos humanos são direitos fundamentais que possuem uma


natureza universal, isto é, aplicam-se a todos os seres humanos,
independentemente de sua condição social, econômica, política
ou cultural. São, portanto, direitos que transcendem as fronteiras
nacionais e que se aplicam em todos os contextos e em todas as
culturas.

A segurança é um direito humano fundamental, essencial para ga-


rantir a proteção e o bem-estar das pessoas. Ou seja, isso norteia o atuar
do Estado, que tem a responsabilidade de proteger seus cidadãos e garantir
que eles possam viver em segurança. Pois bem, diante disso, verifica-se
logo nos primeiros artigos da referida declaração, a proteção do direito
à segurança: “Art. 3 — Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade
e à segurança pessoal.” (ONU, 1948, grifo nosso). Tal artigo reforça a
importância da segurança pessoal para a condição de uma sociedade mini-
mamente aceitável. Além disso, a Declaração também aborda o contexto
da segurança sobre uma matriz social, vejamos:

Art. 22 — Todo ser humano, como membro da sociedade, tem


direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela

63
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos


de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indis-
pensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua perso-
nalidade. (ONU, 1948).

Portanto, faz-se mister que a segurança, enquanto um direito hu-


mano, não pode ser alcançada sem o respeito aos direitos humanos.
Violações desses direitos, como tortura, detenção arbitrária e discrimi-
nação, podem levar a conflitos e instabilidade, comprometendo a segu-
rança das pessoas. Portanto, é fundamental que os Estados promovam e
protejam os direitos humanos como um meio para garantir a segurança
de seus cidadãos.
Além disso, a promoção dos direitos humanos é essencial para pre-
venir conflitos e promover a paz. Isso significa que o respeito aos direitos
humanos é fundamental para construir sociedades justas e pacíficas.
A promoção dos direitos humanos também é importante para garan-
tir o desenvolvimento econômico e social. Direitos como educação, saúde
e trabalho decente são fundamentais para garantir que as pessoas possam
viver com dignidade e alcançar seu potencial. Além disso, o respeito aos
direitos humanos pode ajudar a reduzir a desigualdade e promover o cres-
cimento econômico inclusivo.
Nesse sentido, tendo como amparo o recorte histórico dos Direitos
Humanos, há de se observar uma faceta positivada na esfera internacional
por meio de declarações, tratados e convenções internacionais.
Em resumo, a segurança e os direitos humanos estão intimamente
relacionados. A proteção dos direitos humanos é essencial para garantir a
segurança das pessoas, enquanto a promoção dos direitos humanos é fun-
damental para prevenir conflitos, promover a paz e garantir o desenvolvi-
mento econômico e social. Portanto, é importante que os Estados adotem
medidas para promover e proteger os direitos humanos como um meio
para garantir a segurança de seus cidadãos.
Ademais, no mesmo construto valorativo, contudo com matrizes
irradiadoras distintas, observa-se que a segurança também se apresenta
como um direito fundamental.

64
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1.2. A SEGURANÇA COMO UM DIREITO


FUNDAMENTAL

Após algumas considerações sobre o aspecto internacional do tema,


vale agora observar o paradigma Constitucional, mais especificamente re-
ferente aos Direitos Fundamentais, sobre a segurança. Assim sendo, Pérez
Luño (2011, p. 34) entende que os direitos fundamentais:

[...] são um conjunto de normas jurídicas que estabelecem a prote-


ção dos direitos e liberdades mais relevantes para a pessoa humana.
Eles garantem a dignidade da pessoa, sua autonomia e sua capaci-
dade de participação ativa na vida política, econômica e social da
comunidade. Esses direitos estão intimamente ligados aos valores
éticos, morais e políticos de uma sociedade e, portanto, são consi-
derados fundamentais para a organização de um Estado democrá-
tico e de direito.

Ou seja, um direito positivado na esfera interna. Isso significa que são


certificados pelos ordenamentos jurídico-positivistas estatais, ou seja, são
aqueles postos na Constituição Federal, que se apresenta no ordenamento
jurídico como instrumento irradiador da legalidade interna, muito por
conta da supremacia constitucional e de sua força normativa.
Pois bem, no contexto brasileiro a segurança é reconhecida pela dou-
trina como um direito fundamental de segunda dimensão/geração por ser
um direito social, o que é expresso na Constituição Federal de 1988, em
seus artigos 5º, caput e 6º:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,


garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade [...].

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o tra-


balho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos de-
samparados, na forma desta Constituição. (Brasil, 1988).

65
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

É mister garantir a segurança dentro de um convívio partilhado e,


por isso, a Carta Magna estabelece em seu artigo 144 que a segurança
pública é vista como um dever estatal, vejamos: “A segurança pública,
dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patri-
mônio.” (Brasil, 1988).
Assim sendo, entende-se que a segurança pública é considerada um
direito fundamental que assegura o exercício de todos os direitos do orde-
namento jurídico brasileiro, efetiva o exercício da cidadania e consolida o
Estado Democrático de Direito6.
A Constituição Federal Brasileira garante a segurança como di-
reito fundamental individual e social, que é protegido pelo Estado de
forma que as pessoas possam viver com dignidade7. Ao se reconhecer
o direito à segurança pública como direito fundamental, erige-se um
marco de responsabilidades inafastáveis do Estado, sobremaneira no
que toca ao reconhecimento de tal direito como “meio” para a concre-
tização de tantos outros.
A segurança pública faz parte do rol dos direitos fundamentais dos
indivíduos, necessários ao natural desenvolvimento da personalidade hu-
mana e ao aperfeiçoamento da vida em sociedade. Por meio dela, assegu-
ra-se proteção e amparo às pessoas, permitindo-lhes desfrutar dos demais
direitos.
Em vista disso, se faz necessária a aplicação de medidas que viabilizem
a ação do Estado sobre a matriz da segurança e suas diversas facetas, para
que tal direito transmute de uma perspectiva meramente teórica para um
campo evidentemente prático.

6 Afinal o que é segurança pública? Jus.com.br, 31 ago. 2016. Disponível em: https://jus.
com.br/artigos/51752/afinal-o-que-e-seguranca-publica. Acesso em: 26 abr. 2023.
7 Segurança Pública — Direito Humano Fundamental. Jusbrasil, 16 jan. 2017. Disponível
em: https://fernandasales7583.jusbrasil.com.br/artigos/418880669/seguranca-publica-di-
reito-humano-fundamental. Acesso em: 26 abr. 2023.

66
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

2. FINANCIAMENTO E CONTROLE DO DIREITO À


SEGURANÇA

Pois bem, tendo em vista as questões trazidas à baila, entende-se que


para que seja assegurado o direito à segurança precisa-se de uma série de
atuações por parte do Estado. As políticas públicas são uma importante
ferramenta para a promoção de mudanças na sociedade, e podem ser utili-
zadas como meio de financiamento para proporcionar segurança pública.
A participação da população também é uma importante ferramen-
ta para o funcionamento da segurança pública. Como destaca Teixeira e
Rocha (2016), os governos têm de promover a participação ativa da po-
pulação, por meio de consultas públicas, audiências e outras formas de
envolvimento, a fim de garantir que as políticas públicas atendam às ne-
cessidades e demandas reais da sociedade. Tal consideração se apresenta
de forma interessante sob a ótica da correta aplicação dos investimentos
destinados à garantia da Segurança Pública, visto que, embora a verba de-
signada para o setor de segurança tenha aumentado, fato esse que facilita,
ou deveria facilitar, o papel de assegurar à população o real direito à segu-
rança, o reflexo desse ato não chega no cotidiano da sociedade brasileira.
Em decorrência disso, Pinheiro (2019, p. 21) evidencia que:

Apesar dos avanços na legislação e das políticas públicas de segu-


rança implementadas nas últimas décadas, o Brasil ainda enfrenta
grandes desafios na garantia desse direito. O país é um dos mais
violentos do mundo, com altas taxas de homicídios, roubos e fur-
tos, além de enfrentar outras formas de violência, como o femini-
cídio, a violência contra crianças e adolescentes, a homofobia e o
racismo.

É o que se pode observar no estado do Rio de Janeiro. No ano de 2022,


utilizando a delimitação territorial de todo o estado, verifica-se expressivos
números de vítimas nos crimes contra a vida, contra a liberdade sexual e
nos crimes de roubo. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP),
foram registrados 3.059 casos de homicídio doloso e 1.894 de homicídio
culposo de trânsito, 5.627 casos de estupro, 4.229 roubos de carga, 62.092

67
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

roubos de rua e 25.198 roubos de veículos. Esses foram alguns dos casos
que tiveram o registro de ocorrência lavrados nas delegacias de Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro.8
Tendo em vista o recorte do estado do Rio de Janeiro, é imprescindí-
vel olhar as formas de financiamento de políticas públicas de cunho asse-
curatório, bem como seu controle, por meio de fiscalizações pelos órgãos
responsáveis em conjunto com a sociedade. De acordo com a Secretaria
de Estado de Fazenda do Rio de Janeiro, o gasto orçamentário com se-
gurança pública no ano de 2022 foi de R$ 14.763.426.270,66 (quatorze
bilhões, setecentos e sessenta e três milhões, quatrocentos e vinte e seis
mil, duzentos e setenta reais e sessenta e seis centavos) — um valor dema-
siadamente alto.9
Diante desse cenário, é crucial questionar a efetividade dos investi-
mentos em segurança pública na região e a forma como esses recursos
estão sendo utilizados. É preciso considerar que a segurança pública não é
uma questão apenas de policiamento ostensivo e repressão ao crime, mas
também envolve a prevenção da violência por meio de políticas públicas
que promovam a justiça social, a igualdade de oportunidades e a proteção
dos direitos humanos.
Além disso, é importante averiguar se os recursos estão sendo em-
pregados de maneira adequada, valendo-se de processos de auditoria —
que são procedimentos que têm como objetivo apurar se os recursos estão
sendo aplicados corretamente e de acordo com a legislação — realizados
pelo órgão de controle interno ou mesmo pelo Tribunal de Contas, que
possui a função de fiscalizar a gestão dos recursos públicos; ampliando as
informações sobre o andamento das ações realizadas com esses recursos,
bem como sua divulgação, para que a sociedade possa acompanhar e fisca-
lizar de perto o seu uso, tornando o processo mais democrático e eficiente
e, por fim, promovendo o Conselho Comunitário de Segurança — RJ

8 Disponível em: http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/. Acesso em: 10 abr. 2023.


9 Disponível em: http://www.fazenda.rj.gov.br/transparencia/faces/OrcamentoTematico/
SegurancaPublica;jsessionid=B0KwiYed_DgRUE1uasJ-wQBv8V-Vf_7nptt1UjAIdFWxHh-
-sY7C7!-37462377?_afrLoop=94211601005169937&_afrWindowMode=0&_afrWindowI-
d=null&_adf.ctrl-state=vfujinbij_1. Acesso em: 10 abr. 2023.

68
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

(CCS). O CCS é um canal de comunicação entre a sociedade civil e as


Secretarias de Estado de Polícia Civil e de Polícia Militar, e possui o fito
de obter a colaboração voluntária dos cidadãos na redução da violência,
da criminalidade e na manutenção da paz social, para que dessa forma a
população tenha conhecimento e, com isso, a oportunidade de participar
ativamente na gestão dos recursos destinados à segurança pública.
Diante da análise superficial dos números trazidos pelo próprio estado
do Rio de Janeiro, verifica-se que há um investimento financeiro eleva-
díssimo no tocante ao tema; contudo, a falta de retorno do investimento
feito em segurança pública no referido estado evidencia a necessidade de
um trabalho conjunto de fiscalização das políticas públicas e das aplicações
das verbas adquiridas, por parte da Administração Pública, a fim de garan-
tir a proteção dos direitos essenciais da população, em evidência o direito
à segurança e consequentemente a redução dos índices de criminalidade.
Ou seja, há uma visualização complexa do que envolve o financia-
mento e o controle da segurança enquanto direito, pois há uma interces-
são daquilo que envolve o campo subjetivo e objetivo da realidade local do
Rio de Janeiro, atinente à lógica de micropoderes que exercem o controle
factual em regiões variadas dentro do próprio estado, quer dizer, verifica-
se uma aplicação difusa da própria noção de direito dentro de localidades
próprias, fato esse que dificulta essa equação entre o investimento e o
retorno prático sobre a melhora da segurança pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da construção proposta no presente artigo, tendo um percor-


rer teórico referente à alusão das raízes da segurança enquanto um direito
humano e fundamental, algumas considerações devem ser feitas para que
haja um melhor entendimento sobre a temática.
Pois bem, é evidente o fato de que a situação de segurança pública
no estado do Rio de Janeiro é uma das mais críticas do país.10 Apesar dos

10 Disponível em: https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2023/03/01/rondonia-foi-o-


-7-estado-mais-violento-em-2022-aponta-monitor-da-violencia.ghtml. Acesso em: 19 abr.
2023.

69
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

altos investimentos em segurança pública realizados nos últimos anos e de


cuidarmos de legislar, positivando a segurança como um direito basilar
para uma vida digna, o aumento da violência continua sendo um grande
desafio para as autoridades. A complexidade dos problemas de segurança
pública na região é resultado de diversos fatores, como a desigualdade so-
cial, o tráfico de drogas e a violência incitada por ele, a falta de efetividade
das políticas públicas e a ausência de fiscalização na utilização das verbas
públicas.
Entretanto, independente das várias adversidades, podemos observar
que há uma preocupação em mitigar a problemática da falta de segurança
presente na localidade. O vultoso investimento em segurança pública no
estado do Rio de Janeiro nos mostra um esforço por parte da gestão para
combater a violência na região. No entanto, apesar desse esforço, a taxa
de criminalidade no estado continua alta, com elevados índices de ho-
micídios, roubos, furtos e outros crimes, o que torna evidente, portanto,
a urgência da implementação de políticas públicas que atuem na raiz do
problema, bem como de medidas fiscalizadoras. Dessa forma será possível
construir uma sociedade mais justa e segura para todos os seus habitantes.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Liquid modernity. John Wiley & Sons, 2000.

BOURDIEU, P. Acts of resistance: Against the new myths of our


time. Polity Press, 1998.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

GEERTZ, C. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. Basic


Books, 1973.

GIDDENS, A. The constitution of society: Outline of the theory of


structuration. Polity Press, 1984.

70
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

GOHN, Maria da Glória. Manifestações no Brasil contemporâneo:


lutas sociais na democracia. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

HABERMAS, J. Between facts and norms: Contributions to a dis-


course theory of law and democracy. MIT Press, 1996.

ISP (INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO


RIO DE JANEIRO). Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/.
Acesso em: 10 abr. 2023.

LACERDA, Alexandre S. Afinal, o que é segurança pública? Jusbrasil,


10 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51752/afinal-
-o-que-e-seguranca-publica. Acesso em: 26 abr. 2023.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional


Público. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2019.

ONU (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS). Declara-


ção Universal dos Direitos Humanos. Nova York: Organização
das Nações Unidas, 1948.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos: estado de la


cuestión. 6. ed. Madrid: Tecnos, 2011.

PINHEIRO, Almério de Castro. A dinâmica da criminalidade trans-


nacional: reflexões sobre as organizações criminosas transnacionais
e o combate ao crime organizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educa-
ção, 2019.

RONDÔNIA foi o 7º estado mais violento em 2022, aponta Monitor da


Violência. G1, 1.° mar. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/
ro/rondonia/noticia/2023/03/01/rondonia-foi-o-7-estado-mais-
-violento-em-2022-aponta-monitor-da-violencia.ghtml. Acesso
em: 19 abr. 2023.

SALES, Fernanda. Segurança pública: direito humano fundamental. Jus-


brasil, 26 abr. 2017. Disponível em: https://fernandasales7583.jus-

71
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

brasil.com.br/artigos/418880669/seguranca-publica-direito-huma-
no-fundamental. Acesso em: 26 abr. 2023.

SECRETARIA DE ESTADO DE FAZENDA DO RIO DE JANEI-


RO. Disponível em: https://www.fazenda.rj.gov.br/. Acesso em: 10
abr. 2023.

TEIXEIRA, Ana Cláudia Ribeiro; ROCHA, André Luis. Políticas


Públicas e Direitos Sociais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

72
SISTEMA DE FINANCIAMENTO DOS
DIREITOS À SAÚDE SOB O CUSTEIO
DOS FUNDOS PÚBLICOS
Karine Tomaz Veiga11

INTRODUÇÃO

Com o propósito de conhecer a natureza das políticas públicas cus-


teadas pelos fundos de saúde do Município do Rio de Janeiro (MRJ), do
estado do Rio de Janeiro (ERJ) e da União, esta pesquisa de abordagem
qualitativa e quantitativa evidencia, de forma integrada, o comportamen-
to do custeio das ações e serviços públicos de saúde (ASPS).
Com o objetivo geral de avaliar o grau de compatibilidade e aderência
orçamentária de cada uma das políticas públicas dependentes dos recursos
dos fundos, este estudo se divide em etapas (Bardin, 2011) que justificam o
referencial teórico adotado, elucidando os procedimentos metodológicos,
inclusive, quando da explicitação, organização e expressão dos conceitos-
-chave relacionados. O tipo misto de abordagem também proporcionou
coletar dados orçamentários de planejamento e execução para que fosse

11 Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. É mestra


em Accountability Educacional, com MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades
e pós-graduação em Direito Público Aplicado, Direito Financeiro e Orçamentação e Direito
Digital.

73
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

possível lograr êxito na constituição da confrontação dos percentuais de


alteração e contingenciamentos.
Para seu desenvolvimento, especificamente, buscou-se: i) verificar a
forma como as ações foram planejadas e realizadas ao longo do período
avaliado (2018 a março de 2022); ii) identificar o comportamento dos flu-
xos de alterações orçamentárias e contingenciamentos, levando em consi-
deração o montante dos recursos transferidos ou autorizados a transferir,
bem como o percentual dos repasses em relação às demais receitas previs-
tas para cada fundo; iii) conhecer e analisar as informações sobre a exe-
cução dos recursos de saúde, no todo ou em relação aos blocos de finan-
ciamento; e iv) conhecer e analisar as informações sobre quantos e quais
recursos foram abertos para financiar políticas emergenciais de combate à
pandemia da Covid-19, para cada fundo e valor executado, segregando a
realização das despesas em conformidade com a Fonte de Recursos (FR).
Ainda, na expectativa de contribuir com um conjunto de conheci-
mentos técnico-jurídicos, em especial para a organização, planejamento,
desenvolvimento e controle de políticas públicas prioritárias, adota-se
como método de sistematização e monitoramento o Sistema de Finan-
ciamento dos Direitos à Saúde sob o custeio dos Fundos Públicos, com-
preensível e “validável” por todos aqueles que empreguem as mesmas eta-
pas de análise, fundamentos teóricos e pressupostos.
Portanto, justifica-se este estudo enquanto instrumento de fiscaliza-
ção de políticas públicas essenciais, em razão da lacuna de conhecimento
que aborde diferentes esferas em uma mesma avaliação, relacione e integre
o planejamento à execução do orçamento. Merece destaque, ainda, o con-
texto da pesquisa, com referência ao período da pandemia da Covid-19, às
competências constitucionais de atendimento dos serviços públicos essen-
ciais de saúde e a função essencial do financiamento das ASPS via fundos.

CRITÉRIOS METODOLÓGICOS

As análises restringiram-se às extrações dos dados de execução orça-


mentária e financeira contidos nas bases do Portal Contas Rio12 do Sis-

12 Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/contasrio. Acesso em: 10 out. de 2022.

74
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tema de Administração Financeira do Município do Rio de Janeiro, do


Sistema Integrado de Gestão Orçamentária, Financeira e Contábil do Es-
tado do Rio de Janeiro (Siafe–Rio)13 e dos portais federais mantidos pela
Controladoria-Geral da União (Portal da Transparência14) e pela Secreta-
ria do Orçamento Federal — Painel Sistema Integrado de Planejamento e
Orçamento (SIOP)15. Não houve, portanto, validação dos saldos financei-
ros por fonte de recursos destinados ao pagamento das despesas avaliadas,
mediante conciliação bancária, mas tão somente a evidenciação dos dados
referentes à programação e à execução, bem como a triangulação das in-
formações relacionadas.
Sobre a triangulação, Minayo (2000) ressalta a importância da práti-
ca disciplinada e sistematizada, através de concepção crítica, da reflexão
sobre a teoria e o objeto de pesquisa, sendo relevante a amplitude, diante
do vasto e complexo volume de dados e informações produzidas cientifi-
camente sobre o tema. Destaca-se, nesse caso, a capacidade de articulação
com a realidade, dado que todo objeto de pesquisa não surge da espon-
taneidade, mas de uma demanda concreta atravessada por um tempo his-
tórico, em especial quanto à necessidade de recursos para o combate aos
efeitos da pandemia da Covid-19.
Desse modo, pode-se dizer que um dos maiores desafios encontra-
dos no decorrer desta pesquisa foi a seleção do que analisar, em busca das
respostas pretendidas, além da coleta e tratamento de um grande volume
de informações presentes em todos os documentos que compõem o corpus
documental avaliado — quatro exercícios completos e um trimestre, para
todas as políticas de saúde custeadas pelos seus respectivos fundos, em três
esferas da Federação.
Ademais, de forma generalizada, estruturas básicas de controle orça-
mentário e financeiro podem ser aplicadas a qualquer tipo de sistema, seja
ele interno ou externo, público ou privado (Cunha, 2017). Fato é, o uso
desses sistemas garante o cumprimento de metas estabelecidas nas “polí-
ticas de estado”, via definição clara dos objetivos pretendidos pelos “pro-

13 Disponível em: http://www.fazenda.rj.gov.br/siaferio. Acesso em: 10 out. de 2022.


14 Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br. Acesso em: 10 out. de 2022.
15 Disponível em: https://www1.siop.planejamento.gov.br. Acesso em: 10 out. de 2022.

75
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

gramas de governo”; inseridos operacionalmente no planejamento das


despesas públicas, por meio de “programas de trabalho” (Conti, 2022).
Estes, por sua vez, envolvem práticas necessárias para o atingimento das
finalidades de interesse público, em respeito a cada área temática, por isso
assim dizer, agregando valor público ao gasto realizado (Abraham, 2015)
e, dessa forma, mantida a necessidade de controle das entregas pactuadas.
Para a análise dos elementos envolvidos na execução orçamentária dos
fundos de saúde nacional, estadual (ERJ) e municipal (MRJ), adotou-se
como metodologia a verificação dos lançamentos inseridos nos sistemas
orçamentários e financeiros das três esferas de governo, para o período
compreendido entre 2018 e março de 2022, tomando por base as infor-
mações contidas nas demonstrações das seguintes unidades orçamentárias
(UO):

UO 36901 — Fundo Nacional de Saúde (FNS)

UO 93103 — Recursos Fundo Nacional de Saúde (RFNS)

UO 29610 — Fundo Estadual de Saúde (FES-RJ)

Não é UO — Fundo Municipal de Saúde (FMS-RJ)

No caso da União, as análises foram realizadas em referência às extra-


ções realizadas nas bases do Portal da Transparência, do Painel SIOP e do
painel do próprio fundo, conforme as seguintes categorias de informações
e cruzamentos: por unidade orçamentária; unidade da federação; locali-
zador de gasto; ano; filtro aplicado para a string “Rio de Janeiro”; e ação
governamental (AG).
No Portal de Transparência federal, verificou-se na base de “Recur-
sos Transferidos” por Unidade da Federação “Rio de Janeiro” e Muni-
cípio “Rio de Janeiro”, para cada um dos exercícios avaliados, de acordo
com o tipo de favorecido “Fundos Públicos”, as destinações por: tipo de
transferência; órgão responsável; programa de governo; ação governamen-
tal; função de governo; plano orçamentário; localizador do gasto; grupo
da despesa; elemento da despesa; e modalidade de aplicação (MA), dentre
estas as “Transferências a Municípios — Fundo a Fundo (MA 41)” e as
“Transferências a Estados — Fundo a Fundo (MA 31)”.

76
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Também foram cruzadas as bases da despesa pública geral dos órgãos


36000 — Ministério da Saúde e sua UO Fundo Nacional de Saúde (FNS),
além dos dados contidos nas bases específicas de informações do FNS.
Para o Fundo de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (FES–RJ), me-
diante extração, análise e cruzamento das informações contidas no siste-
ma Siafe–Rio, foi possível avaliar o total de recursos destinados para cada
uma das fontes ou destinação de recursos e verificar as suas respectivas
aplicações por ação governamental, segregando, inclusive, os valores que
foram transferidos pela União.
Destarte, conforme verificado no Portal Contas Rio, o Fundo Mu-
nicipal de Saúde (FMS–RJ) não está classificado como unidade orçamen-
tária, embora a Lei Complementar nº 141/2012, consoante se verifica das
disposições do art. 14, defina:

Art. 14 — O Fundo de Saúde, instituído por lei e mantido em


funcionamento pela administração direta da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, constituir-se-á em uni-
dade orçamentária e gestora dos recursos destinados a ações
e serviços públicos de saúde, ressalvados os recursos repassados
diretamente às unidades vinculadas ao Ministério da Saúde (grifo
nosso).

Dessa forma, frente à impossibilidade de verificação orçamentária e


financeira do fluxo do FMS–RJ, optou-se por demonstrar a execução
completa da Função de Governo Saúde (FG Saúde), a fim de evidenciar
quão imprescindível é a descrição detalhada da programação e execução
para cada unidade orçamentária.
Por fim, dentre as limitações encontradas, ainda quanto aos critérios
metodológicos adotados na avaliação das contas do MRJ, destaca-se a au-
sência de informações consolidadas referentes às dotações “atualizadas” e
aos montantes “contingenciados”. Tal circunstância termina por impedir
que seja possível visualizar “quanto” e “em quais políticas públicas” acon-
teceram as alterações orçamentárias por descentralização e o bloqueio para
uso dos recursos dos fundos. Ressalta-se que o mesmo não ocorreu com
os dados orçamentários do estado do Rio de Janeiro.

77
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

1. O SISTEMA DE FINANCIAMENTO DOS DIREITOS À


SAÚDE SOB O CUSTEIO DOS FUNDOS PÚBLICOS

Os fundos especiais, em geral, desde a sua criação, devem manter,


em separado, registros contábeis dos atos afetos à gestão dos recursos que
lhe são destinados, por força da Lei nº 4.320/64, além de consolidados
às contas do Poder Executivo para subsidiar os sistemas de gestão fiscal,
acompanhamento da execução orçamentária e prestação de contas anual
de responsabilidade.
Por esse motivo, frente à incerteza financeira que poderia compro-
meter a execução de políticas públicas prioritárias, vinculam-se deter-
minadas receitas à finalidade de garantir o atendimento de direitos e
a realização de objetivos legais previamente estabelecidos em um ver-
dadeiro Sistema de Financiamento dos Direitos à Saúde (SFDS) sob o
custeio dos Fundos Públicos.
Para Reis (2016, p.7), os seguintes critérios devem ser observados
quando da constituição de um fundo especial:

i. obrigatoriedade de lei para a sua instituição;

ii. especificações na lei das receitas (próprias ou transferidas) e de


outros recursos que o integrarão;

iii. determinação na lei dos objetivos e da destinação ou campo de


aplicação dos recursos do fundo;

iv. controle da gestão expresso em contabilidade, orçamento, rela-


tórios e demonstrações em separado, para posterior consolidação
com a contabilidade geral;

v. incorporação ao próprio fundo do saldo apurado no final do


exercício, salvo determinação em contrário da lei, para posterior
consolidação com o patrimônio geral;

vi. autonomia administrativa e financeira expressa na descentrali-


zação de funções e tarefas, bem como na competência decisorial
para o seu comando;

78
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

vii. o fundo especial não tem personalidade jurídica, podendo ser


gerido por setor da administração direta ou indireta desde que re-
lacionado aos objetivos para os quais fora constituído.

Desse modo, se a lei instituidora dos fundos não dispuser diferente-


mente, o ordenador das despesas dos fundos, em princípio, será o chefe do
Poder Executivo, autoridade máxima da Administração Pública, a quem
cabe a prerrogativa de desconcentração do processo decisório. Todavia, o
que ocorre comumente é a delegação dessa competência aos respectivos
gestores dos fundos, ao secretário da pasta responsável ou a outro servidor,
formalizada por meio de decreto, ato que detalhará as correspondentes
atribuições daquele agente público delegado.
Como consequência do método de sistematização e monitoramento
das políticas públicas de saúde, deformidades, alterações e inexecuções são
demonstradas, comprometendo o princípio da proteção à confiança às es-
colhas públicas, o realismo orçamentário e a segurança jurídica do plane-
jamento estratégico (Conti, 2022). De outra forma, essa prática também
fortalece e subsidia a atuação do controle externo, com relevância para
os pareceres prévios com vasta fundamentação técnica que “funcionam
como instrumentos de pressão sobre os parlamentares e sobre o Poder
Executivo” (Cunha, 2017, p. 208); fomenta e operacionaliza o controle
social; e respalda o controle judicial, quando da inércia estatal (Cunha,
2017), com dados, fatos e resultados sobre as escolhas orçamentárias reali-
zadas no próprio orçamento (Pinto; Pereira Júnior; Oliveira, 2018).

1.1. FUNDOS DE SAÚDE

Conforme prescreve a Constituição da República Federativa do Bra-


sil de 1988 (CRFB/88), art. 167, inciso IX, o Fundo de Saúde foi insti-
tuído por lei infraconstitucional (criação jurídico-administrativa) e deve
ser mantido em funcionamento pela Administração direta que o criou.
É considerado como um conjunto de recursos financeiros destinados à
finalidade específica ou patrimônio a ser aplicado em projetos ou ativi-
dades vinculados a determinado programa de trabalho, em certa área de

79
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

responsabilidade, necessariamente devendo estar ligado a órgão da Admi-


nistração a que estiver afeto.
Ao ser instituído, seus recursos permanecem destinados a interesse
público determinado, no exercício da sua arrecadação ou em outros fu-
turos, os quais não podem ter destinação diversa. As disponibilidades de
caixa serão escrituradas à parte, em contas específicas no Ativo Financei-
ro, que indiquem a especificação clara do fundo especial e a sua destina-
ção com a respectiva contrapartida em obrigações a pagar escrituradas no
Passivo Financeiro.
Em conformidade com o Código Civil brasileiro (arts. 40–44), o
Fundo de Saúde não é pessoa jurídica e não possui personalidade jurídica,
ainda que tenha a inscrição obrigatória no Cadastro Nacional da Pessoa
Jurídica (CNPJ). Sobre os cadastros de CNPJ dos fundos avaliados, res-
tam discriminados:

00.530.493/0001-71 — Fundo Nacional de Saúde

35.949.791/0001-85 — Fundo Estadual de Saúde

11.715.094/0001-00 — Fundo Municipal de Saúde

Sobre esse aspecto, o objetivo da exigência de criação de Fundo de


Saúde destaca a necessidade de evidenciar a movimentação dos recursos
a serem alocados em ASPS, mediante demonstração de conta bancária,
extrato e conciliação, de forma que assegure e aperfeiçoe a programação
orçamentária e o atendimento às necessidades prioritárias do cidadão nes-
sa área temática, bem como permitir o controle efetivo, eficiente e eficaz
pelos órgãos fiscalizadores, notadamente pelos Conselhos dos Direitos
da Saúde16, instâncias colegiadas, deliberativas e permanentes do Sistema
Único de Saúde (SUS), integrante da estrutura organizacional do Minis-
tério da Saúde ou das respectivas secretarias estadual ou municipal.

16 Conselho Nacional de Saúde (CNS) (http://conselho.saude.gov.br/), Conselho Estadual


de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (CES–RJ) (http://www.conselhodesaude.rj.gov.br/) e
Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/conse-
lho-municipal-de-saude).

80
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1.1.1. COMPOSIÇÃO DO FUNDO NACIONAL DE SAÚDE

Quanto à elaboração, o FNS foi instituído pelo Decreto nº


64.867/1969, reorganizado pelo Decreto nº 806/1993 e revogado pelo
Decreto nº 3.964/2001. É organizado de acordo com as diretrizes e
os objetivos do SUS e funciona como gestor financeiro dos recursos
destinados a financiar as despesas correntes e de capital do Ministério
da Saúde e de todos os órgãos e entidades da administração direta e in-
direta. De acordo com o art. 2º do Decreto nº 3.964/2001, compõem
recursos do fundo:

Art. 2° Constituem recursos do FNS:

I — os consignados, a seu favor, no Orçamento da Seguridade So-


cial, de acordo com o disposto no art. 34 da Lei no 8.080, de 19 de
setembro de 1990, para o atendimento das despesas e transferências
referidas no art. 2° da Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990;

II — os consignados, a seu favor, no Orçamento Fiscal da União;

III — os decorrentes de créditos adicionais;

IV — os provenientes de dotações de organismos internacionais


vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de
cooperação técnica, de financiamento e de empréstimo;

V — os provenientes do seguro obrigatório de danos pessoais cau-


sados por veículos automotores de vias terrestres, de que trata o
parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991;

VI — os resultantes de aplicação financeira na forma da legislação


vigente;

VII — os decorrentes de ressarcimento de recursos realizados por


pessoas físicas e jurídicas originários da prestação de contas, do
acompanhamento ou das ações de auditorias previstas no § 4o do
art. 33 da Lei no 8.080, de 1990;

VIII — as receitas provenientes de parcelamentos de débitos apu-


rados em prestação de contas de convênios, ou derivadas do acom-

81
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

panhamento, de auditorias e de financiamentos relacionados com


as ações e os serviços de saúde;

IX — os créditos provenientes dos agentes ou das entidades inte-


grantes do SUS, bem como aqueles resultantes de transações fi-
nanceiras e comerciais;

X — as receitas provenientes do ressarcimento previsto no art. 32


da Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998;

XI — os obtidos por intermédio de operações de crédito;

XII — as receitas provenientes da execução de seus créditos;

XIII — os saldos positivos apurados em balanço transferidos para


o exercício seguinte;

XIV — as rendas e receitas eventuais que lhe venham a ser desti-


nadas; e

XV — os de outras fontes, de acordo com o art. 32 da Lei no


8.080, de 1990.

Assim, quanto à composição das suas receitas, 45% dos recur-


sos advêm do Seguro DPVAT, conforme estabelecido no Decreto nº
2.867/1998 e na Lei nº 8.212/91, visando ao atendimento de vítimas de
acidentes em hospitais da rede SUS. Também compõe a receita do FNS
o ressarcimento efetuado pelas operadoras de planos de saúde referente
aos serviços prestados de atendimento à saúde, previstos nos contratos dos
consumidores e seus respectivos dependentes, realizados em instituições
públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS,
em conformidade com a Lei nº 9.656/1998. Conforme a normativa, tais
recursos serão destinados a:

Art. 3° Os recursos do FNS, observado o disposto no art. 2° da Lei


no 8.142, de 1990, destinam-se a prover:

I — despesas correntes e de capital do Ministério da Saúde, seus


órgãos e suas entidades, da administração direta e indireta, inte-
grantes do SUS;

82
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

II — transferências para a cobertura de ações e serviços de saúde


destinadas a investimentos na rede de serviços, à cobertura assis-
tencial e hospitalar e às demais ações de saúde do SUS a serem
executados de forma descentralizada pelos Estados, pelo Distrito
Federal e pelos Municípios;

III — financiamentos destinados à melhoria da capacidade instala-


da de unidades e serviços de saúde do SUS;

IV — investimentos previstos no plano plurianual do Ministério


da Saúde e na Lei Orçamentária Anual;

V — outras despesas autorizadas pela Lei Orçamentária Anual.

Para a Lei Complementar nº 141/2012 e o Decreto nº 7.507/2011, os


recursos transferidos pela União deverão ser movimentados até sua des-
tinação final em contas específicas e mantidas em instituição financeira
oficial. As transferências fundo a fundo serão realizadas de forma regu-
lar e automática quando se tratar de transferência obrigatória, entendi-
da como aquela pactuada na Comissão Intergestores Tripartite, aprovada
pelo Conselho Nacional de Saúde, informada aos demais conselhos de
saúde e Tribunais de Contas de cada ente federado e destinada ao custeio
das ações e serviços públicos de saúde.
De acordo com o portal do FNS, os recursos do Ministério da Saú-
de repassados aos estados, municípios e ao Distrito Federal são organi-
zados por Blocos de Financiamento, conforme prevê a Portaria MS nº
828/2020:

83
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Quadro 1 — Blocos de Financiamento

Blocos de Financiamento ASPS


Bloco de Manutenção: recursos destinados
à manutenção das condições de oferta e
continuidade da prestação das ações e serviços
• Atenção Primária
públicos de saúde, inclusive para financiar
• Atenção Especializada
despesas com reparos e adaptações, como
• Assistência Farmacêutica
por exemplo: reparos, consertos, revisões,
• Vigilância em Saúde
pinturas, instalações elétricas e hidráulicas,
• Gestão do SUS
reformas e adaptações de bens imóveis sem
que ocorra a ampliação do imóvel, dentre
outros.
Bloco de Estruturação: recursos aplicados
conforme definido no ato normativo que lhe
deu origem e serão destinados exclusivamente
• Atenção Primária
para Aquisição de equipamentos voltados
• Atenção Especializada
para realização de ações e serviços públicos
• Assistência Farmacêutica
de saúde; obras de construções novas ou
• Vigilância em Saúde
ampliação de imóveis existentes utilizados
• Gestão do SUS
para a realização de ações e serviços públicos
de saúde; e obras de reforma de imóveis já
existentes utilizados para realização de ASPS.
Fonte: https://portalfns.saude.gov.br/sobre-o-fns/

Outrossim, a Lei Complementar nº 141/2012 também definiu a


quantia que deve ser aplicada anualmente pela União, devendo correspon-
der ao valor empenhado no exercício financeiro anterior com o acrésci-
mo do percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno
Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da LOA. Sobre o cômputo das
aplicações pelos demais entes, os arts. 6º ao 11 estabelecem a aplicação mí-
nima de 12% para os Estados e Distrito Federal (arts. 155 e 157, e alínea
“a”, dos incisos I e II do caput do art. 159 da CRFB/88) e de 15% para
Municípios e Distrito Federal (arts. 156 e 158, e alínea “b”, do inciso I do
caput e o § 3º do art. 159, da CRFB/88).

84
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1.1.2. COMPOSIÇÃO DO FUNDO ESTADUAL DE SAÚDE

No âmbito do estado do Rio de Janeiro, instituído para ser instru-


mento de suporte financeiro para o desenvolvimento das ações nas áreas
médica, sanitária, hospitalar e de apoio, executadas ou coordenadas pela
Secretaria de Estado de Saúde, o FES–RJ foi criado pela Lei nº 1.512/1989,
e prevê como origens de receitas:

Art. 2º — Constituirão receitas do Fundo:

i — dotações consignadas no orçamento do Estado e créditos adi-


cionais que lhe sejam destinados;

II — recursos auferidos pela prestação de serviços ou fornecimento


de bens;

III — auxílios, subvenções, contribuições, transferências e partici-


pações em convênios e ajustes;

IV — doações de pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas,


nacionais, estrangeiras e internacionais;

V — produto de operações de crédito;

VI — rendimentos, acréscimos, juros e correções monetárias pro-


venientes de aplicação de seus recursos;

VII — transferências ordinárias e extraordinárias ao Estado, ori-


ginadas do Fundo Nacional de Saúde e da Seguridade Social na
forma estabelecida pela legislação federal pertinente;

VIII — outras receitas.

Legalmente, as receitas do FES–RJ deverão ser destinadas a:

Art. 4º — Os recursos do Fundo Estadual de Saúde serão aplica-


dos:

I — no financiamento total ou parcial de programas integrados de


saúde desenvolvidas pela Secretaria ou com ela conveniados;

85
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

II — no pagamento de vencimentos, salários e gratificações ao pes-


soal dos órgãos ou entidades que participam da execução das ações
previstas no § 1º do artigo 1º, bem como ao pessoal admitido ou
contratado para execução de programas e projetos específicos que
geram receitas próprias para o Fundo;

III — no pagamento pela prestação de serviços para execução de


programas ou projetos específicos que geram receitas próprias para
o Fundo;

IV — na aquisição de material permanente e de consumo, de me-


dicamentos, vacinas, leite e alimentos necessários ao desenvolvi-
mento dos programas;

V — na construção, reforma, ampliação, aquisição ou locação


de imóveis para a adequação da rede física de unidades sanitárias,
ambulatórios, laboratórios, hospitais e outros estabelecimentos de
prestação de serviços de saúde;

VI — no desenvolvimento e aperfeiçoamento dos instrumentos de


gestão, planejamento, administração e controle das ações de saúde;

VII — no atendimento de despesas diversas, necessárias à execução


das ações citadas no § 1º do artigo 1º ou de projetos com a mesma
finalidade.

Para a Lei orçamentária Anual de 2022 (Lei nº 9.550/2022), compete


ainda ao FES–RJ: i) oferecer suporte financeiro para o desenvolvimento
das ações desenvolvidas pela Secretaria de Estado de Saúde, segundo di-
retrizes do SUS; ii) programar e acompanhar a execução orçamentária e
financeira das receitas e despesas; e iii) realizar as ações de execução orça-
mentária e financeira das receitas e despesas.

1.1.3. COMPOSIÇÃO DO FUNDO MUNICIPAL DE


SAÚDE

Do mesmo modo, o FMS–RJ, criado pela Lei nº 1.583/1990, tam-


bém objetiva ser instrumento de suporte financeiro para o desenvolvi-

86
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mento das ações descentralizadas nas áreas médica, sanitária, hospitalar,


de apoio e suprimento executadas ou coordenadas pela Secretaria Mu-
nicipal de Saúde, de acordo com as determinações previstas na legislação
pertinente, sendo elas, de acordo com o § 1º do art. 1º:

1) atendimento médico sanitário e hospitalar integral em unidades


sanitárias, consultórios, ambulatórios, laboratórios, unidades de
atendimento de urgência, hospitalar e outros estabelecimentos de
prestação de serviço de saúde;

2) a vigilância sanitária, vigilância epidemiológica e o controle de


endemias;

3) a produção e distribuição de vacinas, soros, medicamentos e ou-


tros de interesse da saúde pública.

4) prevenção, promoção e segurança da saúde do trabalhador;

5) promoção e assistência à saúde da mulher, à saúde do adulto, à


saúde mental, à saúde do adolescente, à saúde da criança e à saúde
bucal.

Prevê como receitas do fundo, conforme preceitua o seu art. 2°: i) re-
cursos originários do orçamento da União, da seguridade social, do Estado
e do Município, na forma estabelecida pela legislação federal pertinente;
ii) auxílios, subvenções, contribuições, transferências e participações em
Convênios e Ajustes; iii) resultados financeiros (rendimentos, acréscimos,
juros, correções monetárias etc.) de suas aplicações obedecida a legislação
em vigor; iv) recursos de pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas,
nacionais e estrangeiros, sob a forma de doação, observada a legislação
aplicável; v) todo e qualquer recurso proveniente de multas ou penalida-
des que tenham origem na fiscalização e ações da Secretaria Municipal de
Saúde; vi) receitas provenientes do ressarcimento de despesas de usuários
com cobertura securitária de entidade privada; e vii) entre outras receitas.
Tais recursos seguem direcionados para custear as seguintes despesas:

Art. 4º — Os recursos do Fundo Municipal de Saúde serão apli-


cados:

87
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

I — no financiamento total ou parcial de programas integrados de


saúde, desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Saúde ou com
ela conveniados;

II — no pagamento pela prestação de serviços para execução de


programas ou projetos específicos na área de saúde;

III — na aquisição do material permanente e de consumo, de me-


dicamentos, vacinas, leite e alimentos necessários ao desenvolvi-
mento dos programas;

IV — na construção, reforma, ampliação, aquisição ou locação


de imóveis para a adequação da rede física de unidades sanitárias,
ambulatórios, laboratórios, hospitais e outros estabelecimentos de
prestação de serviços de saúde;

V — no desenvolvimento e aperfeiçoamento dos instrumentos de


gestão, planejamento, administração e controle das ações de saúde;

VI — no atendimento de despesas diversas necessárias à execução


das ações citadas no parágrafo 1º, do artigo 1º ou de projetos com
a mesma finalidade;

VII — no gerenciamento descentralizado das diversas unidades


ambulatoriais e hospitalares.

2 DOS RESULTADOS VERIFICADOS QUANTO À


PROGRAMAÇÃO E EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIAS DOS
FUNDOS DE SAÚDE

2.1 FUNDO NACIONAL DE SAÚDE

No que diz respeito à avaliação das classificações das despesas públi-


cas, destaca-se, a fim de justificar a escolha da seleção desta análise, o art.
6º da Portaria Interministerial da Secretaria do Orçamento Federal (SOF)
e Secretaria do Tesouro Nacional (STN) nº 163/2001, que dispõe:

Art. 6° Na lei orçamentária, a discriminação da despesa, quanto à


sua natureza, far-se-á, no mínimo, por categoria econômica, gru-
po de natureza da despesa e modalidade de aplicação.

88
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Assim, apesar de o art. 2º da Lei nº 4.320/1964 não instituir formal-


mente o orçamento-programa, dispositivos foram inseridos quanto à ne-
cessidade de evidenciação dos programas de governo.

Art. 2°. A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e


despesa de forma a evidenciar a política econômico-financeira e
o programa de trabalho do governo, obedecidos aos princípios de
unidade, universalidade e anualidade.

A partir da edição da Portaria do então Ministério do Orçamento e


Gestão (MOG) de nº 42/1999, aplicável à União, Estados, Distrito Fede-
ral e Municípios, também passou a ser obrigatória a identificação, nas leis
orçamentárias, das ações em termos de funções, subfunções, programas,
projetos, atividades e operações especiais:

Art. 4º Nas leis orçamentárias e nos balanços, as ações serão iden-


tificadas em termos de funções, subfunções, programas, projetos,
atividades e operações especiais.

Logo, o elemento da despesa e demais desdobramentos não constam


necessariamente da LOA, podendo sofrer alteração durante a execução dos
orçamentos sem a necessidade de processo legislativo. No entanto, a natureza
da despesa deverá ser complementada pela informação gerencial denominada
“modalidade de aplicação”, a qual tem por finalidade indicar se os recursos
são aplicados diretamente por órgãos ou entidades no âmbito da mesma esfera
de governo ou por outro ente da Federação e suas respectivas entidades, e
objetiva, precipuamente, possibilitar a eliminação da dupla contagem dos re-
cursos transferidos ou descentralizados. Assim, definidas no Manual de Con-
tabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP), conforme orienta a STN,
destacam-se as codificações, quanto às transferências Fundo a Fundo:

31 — Transferências a Estados e ao Distrito Federal — Fundo a


Fundo;

35 — Transferências Fundo a Fundo aos Estados e ao Distrito


Federal à conta de recursos de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 24
da Lei Complementar nº 141, de 2012;

89
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

36 — Transferências Fundo a Fundo aos Estados e ao Distrito


Federal à conta de recursos de que trata o art. 25 da Lei Comple-
mentar n° 141, de 2012;

41 — Transferências a Municípios - Fundo a Fundo;

45 — Transferências Fundo a Fundo aos Municípios à conta de


recursos de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 24 da Lei Complemen-
tar n° 141, de 2012;

46 — Transferências Fundo a Fundo aos Municípios à conta de


recursos de que trata o art. 25 da Lei Complementar n° 141, de
2012 (grifo nosso).

Conforme pontuado, considerando a programação das destinações


do FNS aos fundos estadual e municipal analisados, observou-se, na Ta-
bela 1, uma destinação de R$ 22,806 bilhões ao longo do período (2018
a março de 2022), frente à programação autorizada (acumulada) na LOA
de R$ 27,552 milhões.

Tabela 1 — Programação e Execução global do FNS (2018 a 03/2022)


Unidade
Localizador Modalidade de Aplicação Ano Dotação Inicial Dotação Atual Alteração Liquidado % Pago
Orçam entária
2018 656.677.136 651.207.983 -5.469.153 647.650.088 99,45% 647.650.088
31 - Transferências a Estados e 2019 513.777.000 662.405.093 148.628.093 657.873.110 99,32% 657.873.110
ao Distrito Federal - Fundo a 2020 675.817.074 768.925.682 93.108.608 764.973.863 99,49% 764.973.863
Fundo 2021 834.501.739 736.312.342 -98.189.397 733.781.807 99,66% 733.781.807
2022 733.991.204 305.073.491 -428.917.713 234.583.232 76,89% 234.583.232
35 - Transferências Fundo a
Fundo aos Estados e ao Distrito
Federal à conta de recursos de 2019 0 2.485.673 2.485.673 2.485.674 100,00% 2.485.674
que tratam os §§ 1o e 2o do art.
36901 - Fundo
0033 - No Estado do Rio 24 da LC 141
Nacional de
de Janeiro 2018 4.417.210.349 4.224.308.127 -192.902.222 4.197.093.709 99,36% 4.197.093.709
Saúde
2019 4.609.123.096 4.257.043.191 -352.079.905 4.232.169.140 99,42% 4.232.169.140
41 - Transferências a
2020 4.839.119.355 4.471.138.204 -367.981.151 4.439.813.326 99,30% 4.439.813.326
Municípios - Fundo a Fundo
2021 4.901.371.280 4.915.934.849 14.563.569 4.821.815.258 98,09% 4.821.815.258
2022 5.198.563.323 5.638.918.317 440.354.994 1.569.197.807 27,83% 1.569.197.807
2019 0 79.800.350 79.800.350 79.800.350 100,00% 79.800.350
45 - Transferências Fundo a
2020 0 88.100.000 88.100.000 88.100.000 100,00% 88.100.000
Fundo aos Municípios à conta
de recursos de que tratam os
2021 0 115.720.002 115.720.002 115.720.000 100,00% 115.720.000
§§ 1o e 2o do art. 24 da LC 141

31 - Transferências a Estados e 2019 500.000 1.000.000 500.000 1.000.000 100,00% 1.000.000


ao Distrito Federal - Fundo a 2020 1.000.000 970.421 -29.579 970.421 100,00% 970.421
36901 - Fundo 2018 1.398.200 3.198.200 1.800.000 3.198.200 100,00% 3.198.200
3341 - No Município do
Nacional de 2019 34.297.774 11.507.204 -22.790.570 6.515.313 56,62% 6.515.313
Rio de Janeiro - RJ 41 - Transferências a
Saúde 2020 2.720.454 5.620.454 2.900.000 2.220.454 39,51% 2.220.454
Municípios - Fundo a Fundo
2021 55.676.617 55.188.617 -488.000 54.388.503 98,55% 54.388.503
2022 19.575.931 19.575.931 0 0 0,00% 0
6525 - No Estado do Rio 36901 - Fundo
41 - Transferências a
de Janeiro (Crédito Nacional de 2020 0 97.697.820 97.697.820 97.697.820 100,00% 97.697.820
Municípios - Fundo a Fundo
Extraordinário) Saúde
9026 - Aquisição de
Material Permanente, 36901 - Fundo 31 - Transferências a Estados e
Equipamentos e sua Nacional de ao Distrito Federal - Fundo a 2018 56.873.247 56.873.247 0 55.450.000 97,50% 55.450.000
Instalação – No Estado Saúde Fundo
do Rio de Janeiro
Total 27.552.193.779 27.169.005.198 -383.188.581 22.806.498.075 83,94% 22.806.498.075

Fonte: Portal SIOP (2018 a 2022).

90
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

De forma detalhada, de acordo com o SIOP, considerando as desti-


nações para o ERJ e MRJ, para cada política de saúde inserida e detalhada
nos programas de governo e suas ações governamentais, identificadas pelo
localizador de gasto e modalidade de aplicação, alterações orçamentárias
de retirada de dotação17 acima de 50% foram observadas em diversas ações
originariamente autorizadas.
Para o ERJ, destacam-se as seguintes reduções, inclusive em ações
de enfrentamento aos efeitos do Coronavírus: AG 4705 — Promoção da
Assistência Farmacêutica por meio da Disponibilização de Medicamen-
tos do Componente Especializado (-51,57%, em 2021); AG 2E90 — In-
cremento Temporário ao Custeio dos Serviços de Assistência Hospita-
lar e Ambulatorial para Cumprimento de Metas (-71,68%, em 2020, e
-97,86%, em 2021); AG 2F01 — Reforço de Recursos para Emergência
Internacional em Saúde Pública — Coronavírus (-100%, em 2021); AG
8535 — Estruturação de Unidades de Atenção Especializada em Saúde
(-87,36%, em 2021); AG 2E89 — Incremento Temporário ao Custeio
dos Serviços de Atenção Primária à Saúde para Cumprimento de Metas
(-100%, em 2021); AG 20AL — Apoio aos Estados, Distrito Federal e
Municípios para a Vigilância em Saúde (-67,73%, em 2021); e AG 8585
— Atenção à Saúde da População para Procedimentos em Média e Alta
Complexidade (-64,86%, em 2022).
No caso do MRJ, as seguintes políticas sofreram reduções na progra-
mação autorizada para repasse de recursos pelo FNS: AG 2E89 — Incre-
mento Temporário ao Custeio dos Serviços de Atenção Básica em Saúde
para Cumprimento de Metas (-100%, em 2019); AG 2E87 — Controle
da população de animais em situações excepcionais (castração e atenção
veterinária — LDO 2019, art. 41) (-100%, em 2019); AG 2E90 — In-
cremento Temporário ao Custeio dos Serviços de Assistência Hospitalar
e Ambulatorial para Cumprimento de Metas (-95,65%, em 2019); e AG
8535 — Estruturação de Unidades de Atenção Especializada em Saúde
(-100%, em 2019).

17 Calculada pela diferença apurada entre os créditos orçamentários iniciais aprovados nas
LOAs e os créditos atualizados ao final de cada exercício.

91
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

De outro modo, considerando o que dispôs o Portal de Transparência


federal, para o FMS–RJ, foram transferidos R$ 7,556 bilhões no período,
distribuídos entre diferentes políticas públicas. Sendo a mais relevante, a
AG 858518 recebeu R$ 947,604 milhões, em 2018; R$ 1,070 bilhão, em
2019; R$ 917,623 milhões, em 2020; R$ 1,319 bilhão, em 2021; e R$
294,313, até março de 2022. Ainda, consta a transferência de R$ 416,279
milhões para a AG 21C0 — Enfrentamento da emergência de saúde pú-
blica de importância internacional decorrente do Coronavírus, em 2020;
e R$ 3,260 milhões, em 2021; além de R$ 1,400 milhão na AG 2F01
— reforço de recursos para emergência internacional em saúde pública —
Coronavírus, no mesmo ano.
Para o estado do Rio de Janeiro, de acordo com o mesmo portal, o
FES–RJ recebeu R$ 3,781 bilhões, considerando todas as modalidades de
aplicação. De igual modo, a AG 8585 se destacou com os repasses de R$
637,096 milhões, em 2018; R$ 631,580 milhões, em 2019; R$ 722,333
milhões, em 2020; R$ 834,076 milhões, em 2021; e R$ 171,177 milhões,
até março de 2022. Para enfrentamento aos efeitos do Coronavírus, fo-
ram repassados R$ 371,586 milhões, em 2020, e R$ 44,142 milhões, em
2021, na AG 21C0.
Além desses aspectos, importante destacar as mudanças ocorridas a
partir de 2022, referentes às transferências regulares e automáticas realiza-
das pelo FNS, segundo as Portarias Gabinete do Ministro/ Ministério da
Saúde (GM/MS) nº 28, 124, 125, 128 e 261/2022. O que se percebe é que
a publicação destes atos, além de simplificar, uniformizou os termos ado-
tados para valores transferidos mensalmente a cada um dos fundos locais
(denominados agora “parcelas” e não mais “competências”, com 12 par-
celas anuais). Tais mudanças viabilizam o rastreio do recurso e o controle
da sua efetiva aplicação. Conforme a Portaria GM/MS nº 28/202219, os
montantes destinados ao cofinanciamento anual das ASPS do Grupo de

18 AG 8585 — Atenção à Saúde da População para Procedimentos em Média e Alta Com-


plexidade.
19 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-28-de-7-de-ja-
neiro-de-2022-373590958

92
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (Teto


MAC), para o ERJ e MRJ, foram:

Tabela 2 — Cofinanciamento — Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e


Hospitalar
MAC SEM
UF IBGE Estado/Município Gestão SAMU TOTAL
SAMU
RIO DE
RJ 330000 Estadual 628.247.781,20 15.533.700,00 643.781.481,20
JANEIRO
RIO DE
RJ 330455 Municipal 1.118.284.153,03 - 1.118.284.153,03
JANEIRO
Fonte: Portaria GM/MS nº 28, de 7 de janeiro de 2022.

Ademais, a Portaria GM/MS nº 124/202220 trouxe os montantes


anuais relativos ao Incentivo de Custeio às Ações de Vigilância, Prevenção
e Controle das ISTs/Aids e Hepatites Virais do Bloco de Manutenção das
ASPS, do Grupo de Vigilância em Saúde, sendo R$ 3.468.194,96, para o
MRJ, e R$ 1.805.804,32, para o ERJ, em 2022.
Já a Portaria GM/MS nº 125/202221 divulgou os montantes anuais
relativos à Assistência Financeira Complementar (AFC) da União para
cumprimento do piso salarial profissional nacional dos Agentes de
Combate às Endemias (ACE) e ao Incentivo Financeiro para fortale-
cimento de políticas afetas à atuação dos ACE (IF), no Grupo de Vigi-
lância em Saúde do Bloco de Manutenção das ASPS, com a destinação
para o MRJ, em 2022, de: i) IF — R$ 2.311.205,00; e ii) AFC —R$
43.912.895,00.
Enquanto isso, a Portaria GM/MS nº 128/202222 apresentou a pro-
gramação anual para o Piso Fixo de Vigilância em Saúde e ao incentivo
aos Laboratórios Centrais de Saúde Pública no Grupo de Vigilância em

20 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-124-de-24-de-


-janeiro-de-2022-375788031
21 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-125-de-24-de-
-janeiro-de-2022-376060803
22 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-128-de-24-de-
-janeiro-de-2022-375795517

93
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Saúde do Bloco de Manutenção das ASPS, com a destinação para o MRJ


de R$ 28.650.483,70 e para o ERJ R$ 17.117.322,03.
Por fim, a Portaria GM/MS nº 261/202223 trouxe os montantes anuais
de referência destinados ao cofinanciamento federal de recursos do Bloco
de Manutenção das ASPS, no Grupo de Atenção Primária, a serem repas-
sados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios no ano de 2022.
Para este caso, não houve apresentação de valores destinados ao ERJ, mas
tão somente para o MRJ:

Tabela 3 — Cofinanciamento — Atenção Primária


0009 -
0008 - Incentivo 000D -
000A - Incentivo 0002 - Agente Incentivo
financeiro da Programa de Valor Total
UF MUNICÍPIO IBGE para Ações Comunitário financeiro
APS - Capitação Informatização Montante Anual
Estratégicas de Saúde da APS -
Ponderada da APS
Desempenho
RIO DE R$ R$ R$ R$ R$ R$
RJ 330455
JANEIRO 112.355.356,20 55.029.650,00 255.056.830,20 44.640.588,00 18.936.300,00 486.018.724,40

Fonte: Portaria GM/MS nº 28, de 7 de janeiro de 2022.

Oportunamente, é aconselhável que estes valores possam ser cru-


zados com as demais bases de informações relativas à programação in-
serida na LOA e ao devido repasse dos recursos, dando correspondente
atenção à tempestividade, integridade e compatibilidade das afirma-
ções declaradas.
De outro modo, quanto antes os entes federados puderem ter acesso
às previsões de cofinanciamento, mais rapidamente será possível inserir
os referidos créditos nas peças orçamentárias, originalmente ou de forma
adicional.

23 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-261-de-8-de-fe-


vereiro-de-2022-379094247

94
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1.2 FUNDO ESTADUAL DE SAÚDE

Na sequência, mediante análise do planejamento do orçamento


fixado para a UO 29610 — Fundo Estadual de Saúde, restou identificada
a programação global inicial de R$ 31,663 bilhões, acrescida de R$ 4,860
bilhões ao longo do tempo. Todavia, apesar do acréscimo, executou ape-
nas R$ 28,071 bilhões (em despesas liquidadas), ou seja, cumpriu 76,86%
do orçamento efetivamente autorizado (dotação atualizada), conforme
demonstra a Tabela 4. Ainda, no período, constatou-se o bloqueio de R$
1,500 bilhão, por meio de contingenciamentos, chegando a 11,09% da
autorização programada, em 2019.

Tabela 4 — Programação e execução do FES–RJ

Despesas
Dotação Crédito Despesas Despesas
Exercício Dotação Inicial Alteração % (b/a) % (c/a) Orçamentárias
Atualizada (a) Contingenciado (b) Empenhadas Liquidadas (c)
Pagas
2018 5.395.178.594 6.111.731.661 716.553.067 16.946.153 0,28% 5.864.341.756 5.857.621.907 95,84% 3.289.240.054
2019 6.088.423.466 6.606.631.102 518.207.636 732.986.766 11,09% 5.577.158.938 5.550.645.542 84,02% 4.898.952.797
2020 6.199.969.614 7.065.008.677 865.039.063 230.019.995 3,26% 6.516.618.583 6.492.799.797 91,90% 6.225.950.364
2021 6.086.006.152 8.846.484.981 2.760.478.829 119.890.950 1,36% 8.334.682.525 8.318.599.193 94,03% 7.674.591.061
2022 7.894.345.015 7.894.345.015 0 401.039.186 5,08% 2.235.061.264 1.852.135.620 23,46% 1.561.894.019
Total 31.663.922.841 36.524.201.435 4.860.278.594 1.500.883.051 4,11% 28.527.863.066 28.071.802.059 76,86% 23.650.628.294

Fonte: Portal Siafe-Rio (2018 a 2022).

Quanto às naturezas das receitas e fontes de recursos estabelecidas


para o custeio das políticas do FES–RJ, por meio da autorização inserta
na LOA de cada exercício, foi possível observar a distribuição das FR 100,
108, 122, 212, 230 e 232, com destaque para os recursos do SUS (FR
225). Assim, com base nessas informações, é possível avaliar, por exem-
plo, se toda a destinação arrecadada, via transferências da União a cada
ano, foi efetivamente aplicada pelo fundo de saúde.

95
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Tabela 5 — Execução do FES–RJ por Fonte de Recursos


Despesas
Dotação Despesas Despesas
Exercício Fonte Dotação Inicial Orçamentárias
Atualizada Empenhadas Liquidadas
Pagas
100 - Ordinários Provenientes de
2.168.343.853 2.352.765.910 2.286.512.456 2.286.512.456 948.419.774
Impostos
101 - Ordinários Não Provenientes de
44.620.719 3.633.996 429.893 425.842 241.961
Impostos
2018 107 - Transferências Constitucionais
0 167.451.272 167.026.922 167.026.922 160.540.322
Provenientes de Impostos
122 - Adicional do ICMS - FECP 2.467.478.487 2.765.641.036 2.643.398.017 2.643.398.017 1.446.010.168
212 - Transferências Voluntárias 4.922.423 5.449.446 527.023 527.023 0
225 - Sistema Único de Saúde- SUS 709.813.112 816.790.002 766.447.446 759.731.647 734.027.828
100 - Ordinários Provenientes de
2.438.597.675 2.247.861.574 1.862.013.807 1.862.013.807 1.650.197.546
Impostos
107 - Transferências Constitucionais
0 0 0 0 0
Provenientes de Impostos
108 - Receita Desvinculada Tesouro - EC
0 518.207.636 513.433.489 513.433.489 366.577.027
2019 93/2016 ADCT - Artigo 76-A
122 - Adicional do ICMS - FECP 2.857.569.225 3.048.305.326 2.698.286.846 2.698.286.846 2.424.554.293
212 - Transferências Voluntárias 2.151.261 2.151.261 121.861 121.861 121.861
225 - Sistema Único de Saúde- SUS 786.548.808 786.548.808 503.302.935 476.789.539 457.502.069
232 - Taxas pelo Exercício do Poder de
3.556.497 3.556.497 0 0 0
Polícia e por Serviços Públicos
100 - Ordinários Provenientes de
3.519.495.488 3.178.962.431 2.926.707.123 2.926.707.123 2.802.907.986
Impostos
101 - Ordinários Não Provenientes de
0 0 0 0 0
Impostos
102 - Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal
0 0 0 0 0

107 - Transferências Constitucionais


0 0 0 0 0
Provenientes de Impostos
108 - Receita Desvinculada Tesouro - EC
14.884.861 14.884.861 0 0 0
93/2016 ADCT - Artigo 76-A
2020
122 - Adicional do ICMS - FECP 1.903.978.214 2.313.825.081 2.288.181.393 2.288.181.393 2.156.210.162
198 - Auxílio Financeiro da União para
0 362.131.159 362.131.159 362.131.159 362.131.159
Ações de Saúde - Covid-19
212 - Transferências Voluntárias 1.117.600 1.117.600 93.249 93.249 65.594
218 - Transferências Intraorçamentárias
0 0 0 0 0

225 - Sistema Único de Saúde- SUS 746.931.048 1.180.525.142 939.505.659 915.686.874 904.635.464
230 - Recursos Próprios 5.002.956 5.002.956 0 0 0
232 - Taxas pelo Exercício do Poder de
8.559.447 8.559.447 0 0 0
Polícia e por Serviços Públicos
100 - Ordinários Provenientes de
4.112.659.723 6.398.907.991 6.362.230.347 6.362.230.347 6.002.330.425
Impostos
101 - Ordinários Não Provenientes de
0 0 0 0 0
Impostos
102 - Fundo Orçamentário Temporário 0 0 0 0 0
107 - Transferências Constitucionais
0 116.826.461 116.826.461 116.826.461 0
Provenientes de Impostos
2021 108 - Receita Desvinculada Tesouro - EC
0 0 0 0 0
93/2016 ADCT - Artigo 76-A
122 - Adicional do ICMS - FECP 1.216.563.281 1.052.470.465 909.541.897 909.541.897 843.209.577
212 - Transferências Voluntárias 0 496.915 58.144 58.144 58.144
225 - Sistema Único de Saúde- SUS 753.126.660 1.274.126.660 946.025.677 929.942.344 828.992.915
230 - Recursos Próprios 100.000 100.000 0 0 0
232 - Taxas pelo Exercício do Poder de
3.556.488 3.556.488 0 0 0
Polícia e por Serviços Públicos
100 - Ordinários Provenientes de
6.124.054.977 6.124.054.977 1.707.399.734 1.448.834.005 1.187.700.611
Impostos
101 - Ordinários Não Provenientes de
0 0 0 0 0
Impostos
102 - Fundo Orçamentário Temporário 0 0 0 0 0
107 - Transferências Constitucionais
0 0 0 0 0
Provenientes de Impostos
2022 108 - Receita Desvinculada Tesouro - EC
0 0 0 0 0
93/2016 ADCT - Artigo 76-A
122 - Adicional do ICMS - FECP 792.720.543 792.720.543 318.440.080 231.524.294 206.877.065
212 - Transferências Voluntárias 1.117.600 1.117.600 0 0 0
225 - Sistema Único de Saúde- SUS 972.968.135 972.968.135 209.221.450 171.777.320 167.316.343
230 - Recursos Próprios 400.000 400.000 0 0 0
232 - Taxas pelo Exercício do Poder de
3.083.760 3.083.760 0 0 0
Polícia e por Serviços Públicos

Fonte: Siafe–Rio (2018 a 2022).

96
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Quanto à arrecadação do FES-RJ, considerando, especialmente, os


valores que são percebidos como receita no ERJ e caracterizados como
despesa na União, importa destacar que o levantamento permitido por
meio da natureza e não pela Fonte de Recursos termina por dificultar a
tempestividade e a conferência exata dos ingressos.

1.3 FUNDO MUNICIPAL DE SAÚDE

Acerca do FMS–RJ, importante evidenciar a natureza do fundo na


estrutura do orçamento munícipe, visto que o mesmo não está classificado
como UO, como ocorre, por exemplo, na União e no ERJ, nem mesmo
está definido como FR, como acontece com o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação (Fundeb).
Assim, conforme se observa, em razão da ausência de identificação
do Fundo, não é razoável afirmar “o quê” foi custeado com estes recursos
e “quanto”, optando esta pesquisa por apresentar o montante destinado
à FG Saúde, sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde.
Ratifica-se, considerando a invisibilidade orçamentária do FMS–RJ, a
impossibilidade de se afirmar que todos os valores transferidos pelo SUS
transitaram adequadamente, conforme estabelece a LC nº 141/2012, pelas
contas do FMS–RJ. Para ter certeza desse fato, far-se-ia necessário pro-
mover circularizações, por meio de auditoria, evidenciando a entrada e a
saída de recursos nos extratos bancários das referidas contas.
Desse modo, mediante análise, restou evidenciada a programação fi-
nal acumulada para o período de R$ 34,427 bilhões (dotação atualiza-
da), com a execução total de 68,17% do orçamento disponibilizado (R$
23,470 bilhões em despesas liquidadas), o pagamento de despesas do exer-
cício no montante de R$ 21,255 bilhões, além do pagamento de dívidas
reconhecidas e inscritas em Restos a Pagar (R$ 2,871 bilhões), para as
estruturas vinculadas à Secretaria Municipal de Saúde do MRJ.
Conforme mencionado anteriormente, o Portal Contas Rio não dis-
ponibiliza informações referentes à dotação inicial (LOA) e nem mesmo
quanto aos contingenciamentos procedidos, prejudicando, por completo,
o controle e a avaliação de eficácia dos valores autorizados em lei, em espe-

97
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

cial, quanto às alterações procedidas no orçamento do FMS-RJ e quanto


aos bloqueios.
Ainda, considerando as Fontes de Recursos programadas para o fi-
nanciamento das políticas de saúde, diferentemente do que ocorre com
a União e com o ERJ, situação em que os mesmos fundos encontram-se
classificados como UO e possuem as suas fontes de custeio detalhadas, em
atendimento às regras de transparência e clareza estabelecidas na LC nº
141/2012, observou-se a seguinte pulverização de custeio na execução e
pagamento das despesas da FG Saúde:

Tabela 6 — Execução da Função de Governo Saúde do MRJ por FR


2018 2019 2020 2021 2022
Fonte de
Pago Restos Pago Restos Pago Restos Pago Restos Pago Restos
Recursos Liquidado Liquidado Liquidado Liquidado Liquidado
Pagar Pagar Pagar Pagar Pagar
100 1.167.350.412 1.320.802.770 565.086.522 601.561.454 343.753.909 619.843.888 416.416.219 377.258.205 67.762.406 123.436.005
105 0 0 0 0 0 0
108 12.070 12.070
112 0 0 0 0
113 0 0 0 0 127.932 127.932 279.350 246.281 0 33.070
118 0 0
119 1.631.887.973 1.479.547.028 2.086.017.932 2.197.029.585 1.937.472.455 2.124.540.415 1.931.633.545 1.985.345.368 501.727.781 572.252.303
120 22.324.997 22.786.494 34.792.388 31.718.787 37.094.791 35.851.362 47.821.291 50.487.837 8.648.584 11.553.099
123 52.210.656 52.210.656
125 113.655.000 113.655.000
146 2.463.900 0 0 2.463.900 13.804.616 0 0 353.722
156 2.199.143 0 510.528 2.199.143
164 57.483.978 53.062.134 63.055.537 62.598.610 64.692.508 69.571.279 65.986.358 60.910.484 15.532.173 15.430.656
165 0 4.335.142
170 0 15.248.322
173 233.729.427 215.616.003 242.455.019 242.363.167 237.209.310 255.414.586 256.977.937 235.079.356 68.405.480 67.429.484
180 376.128.686 400.319.228 415.759.684 400.713.683 421.802.094 448.379.402 418.181.581 418.745.369 178.905.517 176.984.133
181 938.201.792 978.447.503 1.101.746.505 1.008.838.051 1.230.977.359 1.332.068.842 1.341.673.136 1.364.739.935 392.601.141 260.738.409
182 46.437.751 56.454.846 48.623.375 49.956.108 41.904.011 51.989.038 64.490.085 63.567.281 27.342.137 28.417.270
183 31.402.858 35.693.756 41.104.420 36.243.133 19.885.843 23.974.541 30.574.557 24.995.018 2.825.370 9.771.958
184 1.000 34.002 94.608 9.976 1.000 139.083 1.000 1.000 0 0
185 19.504.336 11.963.599 81.462 20.175.947 93.219 138.413 127.932 188.774 33.145 48.767
188 229.681.929 198.825.376 0 32.240.574
195 5.070.154 5.954.085 8.471.619 8.337.360 12.076.337 13.386.820 11.254.859 9.613.452 1.767.384 2.659.855
196 247.435.578 243.814.070 530.155.030 353.954.854 90.688.141 273.415.007
197 39.706.037 39.706.037 32.915.824 32.915.824 43.536.481 2.563.882 0 45.479.329
198 0 0
200 384.372 416.409 0 23.489 0 0 0 0 0 0
208 184.009.515 151.506.281 275.628.277 288.798.043 781.718.743 810.207.746 1.017.496.913 945.643.525 199.332.486 131.261.857
218 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
305 1.797.862 1.625.655 0 172.207
306 0 0 0 1.292.215
308 98.200 141.312 926.323 926.323 428.943 428.943 10.009.467 2.062.920 0 8.344.504
313 2.009.837 1.752.442 696.534 432.413 0 889.198
320 2.323.099 2.023.086 370.761 832.059 3.190.691 3.190.691 4.298.244 3.601.149 0 697.094
323 0 0
380 6.486.114 6.486.114 31.941.053 32.344.964 0 513.481
381 9.365.148 20.953.839 27.615.049 27.615.049
382 9.462.292 10.261.155 9.847.811 7.500.491 0 5.479.312
383 371.914 249.376 0 671.400
384 444.933 0 35.100 567.995
385 3.417.542 1.412.518 5.512.080 12.333.333 0 3.364.238 1.142.220 550.000 0 1.419.180
395 3.649.441 3.052.218 590.663 1.153.357 353.050 602.086 541.301 488.362 0 183.341
396 140.328.969 111.676.494 0 31.863.484
400 120.143 317.618 0 12.653
408 349.349 100.068 0 450.143 0 35.500
Total 4.794.197.271 4.838.655.452 4.960.452.721 5.036.963.692 5.479.148.869 6.129.077.346 6.566.605.409 6.212.524.298 1.669.737.275 1.909.685.728

Fonte: Portal Contas Rio (2018–2022).

98
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

A esse respeito, o MCASP (2021) esclarece que a classificação orça-


mentária por FR tem como objetivo identificar as fontes de financiamen-
to dos gastos públicos, integrando receita e despesa, mediante duplo papel
fundamental de transparência e avaliação da viabilidade das entregas das
metas físicas e financeiras no devido processo orçamentário.
Para as receitas, as FRs têm a finalidade de indicar a origem e a pos-
sibilidade de destinação dos recursos, consideradas as circunstâncias vin-
culadas, inclusive, tendo em vista que há origens que só podem custear
determinados tipos de despesas, ao passo que outras fontes estão livres para
realizar qualquer gasto.
Quanto à integração com as despesas, as FRs permitem identificar
de onde virá a fonte financiadora de cada política pública. Assim, evi-
dencia-se, a depender da origem, se a condução para a sua aplicação foi
correta, regular e legal. Nesse caso, havendo infringência na execução dos
gastos, por meio da FR é possível demonstrar o que pode ser denomi-
nado “rastreio do dinheiro público”. Logo, quando comprovado que o
valor transferido para X foi aplicado em finalidade Y, diversamente àquela
autorizada em lei, configura-se aqui o que pode ser caracterizado como
tredestinação orçamentária.
Sem aprofundar na complexidade do tema, quando a FR é obscura,
adotando a definição “Outras”, por exemplo, aglutinando diferentes ori-
gens dentro de uma mesma codificação, dificulta-se a identificação desde
o ingresso dos recursos até a sua utilização no momento do pagamento.
Ainda, inviabiliza a própria evidenciação da regularidade e legalidade dos
bloqueios de dotação orçamentária, considerando as justificativas permi-
tidas para adoção de medidas de contingenciamento, fundamentadas em
razão da queda na arrecadação que autoriza a limitação de empenho. Ora,
se não há definição específica da FR, deixando claro de qual arrecadação
se está falando, como afirmar que houve queda na receita? A questão que
fica é: de qual receita? Veja que o conceito é amplo e comporta diferentes
categorias, origens, espécies, desdobramentos e tipos, conforme preceitua
o Manual Técnico do Orçamento (2022).
Aliás, a codificação da FR existe para trazer transparência às contas
públicas, em especial àquelas que são vinculadas, e com isso atender o pa-

99
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

rágrafo único do art. 8º da LRF c/c com o art. 50, inciso I, que terminam
também por viabilizar o cumprimento dos arts. 48, inciso II do parágrafo
único, e 48–A.
Em 2020, em razão da circunstância de enfrentamento ao Coronaví-
rus, o MRJ ainda criou duas FRs, a fim de detalhar as entradas e saídas: i)
FR 123 — Recursos de Enfrentamento da Covid-19 Saúde e Assistência
Social; e ii) FR 188 — Recursos SUS destinados ao Enfrentamento da
Covid-19 Custeio. Em 2021, a FR 189 — Recursos do FES–RJ destina-
dos ao Enfrentamento da Covid-19 também foi criada.
Sobre a falta de padronização das FR, a partir de 2023, os entes da
Federação deverão respeitar a nova classificação convencionada e detalha-
da para todas as origens de receitas e destinações de despesas, definida por
meio das Portarias Conjuntas STN/SOF nº 20/2021 e nº 710/2021.
Por fim, para o MRJ, ainda quanto aos fatores limitado-
res, além do FMS–RJ não ser classificado como UO, de acordo
com o Portal Contas Rio, também não é possível avaliar o ingres-
so dos recursos específicos do fundo, mas tão somente pela “descri-
ção de rubricas”, como identificado, por exemplo, nas arrecadações de
R$ 59,980 milhões, via “Convênio nº 034/2014 — RIOSAUDE/ SMS
— CER Barra”, e de R$ 236,353 milhões, mediante “Convênio nº
37/2019 — RIOSAUDE/SMS — Hospital Municipal Ronaldo Gazzo-
la”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo realizou avaliação orçamentária e financeira acerca


dos fluxos e das informações relacionadas aos fundos de saúde municipal,
estadual e nacional, para o período de 2018 a março de 2022, adotando
como método de sistematização e monitoramento das políticas públicas a
concepção do Sistema de Financiamento dos Direitos à Saúde sob o cus-
teio dos Fundos Públicos.
Considerando a extensão das análises e o elevado grau de profundida-
de dos dados avaliados, observou-se que os fundos especiais devem manter
seus registros contábeis segregados, respeitadas as regras de composição
das suas receitas, bem como as destinações estabelecidas em lei específi-

100
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

ca, para cada fonte de custeio, mediante levantamento da programação e


execução orçamentária dessas origens.
Desse modo, quanto à análise dos fluxos, à execução dos recursos
orçamentários, às informações sobre quanto e quais valores foram autori-
zados especificamente para financiar as políticas emergenciais de combate
à pandemia da Covid-19, por unidade orçamentária vinculada (para cada
fundo), conclui-se:

i. No âmbito federal, considerando a programação das destina-


ções do FNS aos fundos estadual e municipal, observou-se uma
destinação de R$ 22,806 bilhões ao longo do período (2018 a mar-
ço de 2022) e uma redução do orçamento total programado ini-
cialmente na ordem de R$ 383,188 milhões, frente à liquidação de
83,94% do montante autorizado pelas leis orçamentárias anuais.
Ou seja, por parte do FNS houve uma execução orçamentária a
menor de R$ 4,362 bilhões, visto que havia autorização orçamen-
tária, mas não houve a devida realização destas despesas, conside-
rada a natureza das transferências Fundo a Fundo e o localizador
de destinação do orçamento (033 — Estado do Rio de Janeiro e
3341 — Município do Rio de Janeiro);

ii. De outro modo, de acordo com o Portal de Transparência


federal mantido pela CGU, o FNS transferiu R$ 7,556 bilhões
para todas as modalidades de aplicação do FMS–RJ e R$ 3,781
bilhões para o FES–RJ. Todavia, o Portal de Transparência do pró-
prio FNS evidenciou que o CNPJ do FMS–RJ recebeu R$ 7,797
bilhões e o CNPJ do FES–RJ, R$ 3,874 bilhões; logo, registrou
uma diferença a maior de, aproximadamente, R$ 241 milhões e
R$ 93 milhões, respectivamente;

iii. No âmbito estadual, considerando a programação e execução


orçamentárias do FES–RJ, restou identificada a autorização nas
LOAs de R$ 36,524 bilhões, dotação acumulada, e a execução
de R$ 28,071 bilhões em despesas custeadas pelo Fundo. Houve
também o contingenciamento sofrido, em 2019, de 11,09%, blo-
queando R$ 732,986 milhões, mesmo tendo havido um acrésci-

101
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

mo nos créditos orçamentários na ordem de R$ 2,760 bilhões em


2021;

iv. As dotações foram distribuídas entre as Fontes de Recursos


100, 108, 122, 212, 225, 230 e 232, com destaque para a progra-
mação de custeio com recursos do SUS — FR 225. Todavia, não
foi possível demonstrar a arrecadação por meio das FR, somente
pela natureza da receita, classificação que impede a conferência
exata dos ingressos do fundo estadual;

v. No âmbito municipal, considerando a programação e execução


orçamentárias do FMS–RJ, a natureza do fundo na estrutura do
orçamento público não está classificada como unidade orçamentá-
ria, como ocorre, por exemplo, na União e no Estado do Rio de
Janeiro, nem mesmo está definida como Fonte de Recursos, como
acontece, por exemplo, com o Fundeb. Assim, em razão da ausên-
cia de identificação, não foi possível afirmar “o quê” exatamente
foi custeado pelo fundo municipal, nem mesmo “quanto”.

Nesse contexto, não há interoperabilidade entre as classificações das


receitas da União, do ERJ e do MRJ, nem mesmo divulgação nos seus
portais de transparência quanto aos repasses detalhados e às origens das
receitas que compõem os fundos, inclusive por meio das FRs.
Sobre esse aspecto, espera-se, a partir de 2023, que a STN possa efe-
tivamente exigir a classificação padronizada para todas as FRs e os entes
possam implementar o Sistema Único e Integrado de Execução Orça-
mentária, Administração Financeira e Controle, conforme preceitua a
LRF (art. 48, § 6°). Assim, a sociedade, os conselhos, os órgãos de con-
trole e a academia poderão avaliar de forma objetiva, segura e tempestiva a
efetiva implementação das políticas públicas custeadas com os recursos dos
fundos, fortalecidas pela integração e interoperabilidade das informações
pertinentes às ações e serviços públicos de saúde.

REFERÊNCIAS

ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. 3. ed.


Rio de Janeiro: Forense, 2015.

102
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Dispo-
nível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/cons-
tituicao. Htm. Acesso em: 22 nov. 2022.

CONTI, José Mauricio; MARRARA, Thiago; IOCKEN, Sabrina Nu-


nes; CARVALHO, André Castro. Responsabilidade do Gestor
na Administração Pública. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

CUNHA, Milene. O controle da execução orçamentária como meio


garantidor de direitos fundamentais. In: LIMA, Luiz Henrique;
OLIVEIRA, Weder de; CAMARGO, João Batista (coord.). Con-
tas Governamentais e Responsabilidade Fiscal: desafios para o
Controle Externo — Estudos de Ministros e Conselheiros Substitu-
tos dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa


em saúde. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2000.

PINTO, Élida Graziane; SARLET, Ingo Wolfgang; PEREIRA JÚ-


NIOR, Jessé Torres; OLIVEIRA, Odilon Cavallari de. Política
Pública e Controle. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

REIS, Heraldo da Costa. Fundo municipal de saúde: diretrizes para


implantação. In: TRINDADE, Carlos Alberto; BARATTA, Tereza
Cristina; REIS, Heraldo da Costa Reis. 4. ed. rev. atual. Rio de Ja-
neiro: IBAM, 2016.

103
ARTIGOS — TEORIAS,
INTERDISCIPLINARIDADE E
PESQUISAS EMPÍRICAS

105
A DESIGUALDADE DOS HOMENS:
NO LIVRO “A REPÚBLICA”, DE
PLATÃO, E NA PREVIDÊNCIA SOCIAL
BRASILEIRA
Adelmo José Pereira24

INTRODUÇÃO

O livro “A República” foi escrito por Platão (427–347 a.C.) com o


fim de descrever as bases em que a vida em sociedade e a administração de
uma cidade poderiam ser feitas de forma harmoniosa, coerente, visando o
bem comum, livre de anarquias e interesses particulares.
O livro é desenvolvido por meio do que ficou conhecido como “diá-
logos socráticos”, narrativas que têm por finalidade reproduzir as ideias
filosóficas havidas nas conversas mantidas entre Sócrates e outros cidadãos
gregos ao longo da sua vida de pensador.
No livro III dessa obra, Sócrates narra uma ficção chamada de mito
dos metais. Trata-se de uma parábola na qual se enuncia que, no momen-
to da criação, todos os homens tiveram algum tipo de metal misturado às
suas almas. Esse mito é utilizado pelo filósofo para convencer os homens
de que as diferenças existentes entre eles é obra da natureza com o intuito
de melhor conduzi-los no exercício das funções necessárias para o bom

24 Advogado. São Paulo (SP), Brasil.

107
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

funcionamento da cidade. Sua finalidade, então, é a busca da justiça para


todos, inclusive para a cidade.
A previdência social brasileira também divide alguns dos seus benefi-
ciários em classes com o fim de dar concretude à justiça social proclamada
no preâmbulo da Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de
1988 (CF/1988), e um pouco de racionalidade para o sistema de paga-
mento de benefícios previdenciários.
É assim que o art. 16 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 — Lei
de Benefícios da Previdência Social (LBPS), classifica os dependentes dos
segurados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) em três classes
numéricas (classes nºs 1, 2 e 3) com o objetivo de estabelecer, se necessá-
rio, uma ordem de preferência para o pagamento de benefícios.
O presente artigo tem por escopo, então, examinar ambas as clas-
sificações acima citadas e traçar um paralelo entre o mito dos metais e
as classes de dependentes dos segurados do RGPS no que diz respeito à
concretização da justiça.
Dessa forma, o trabalho terá início com a exposição do mito dos me-
tais tal qual descrito no livro III de “A República” de Platão; após, de
forma breve, discorrer-se-á acerca dos beneficiários da previdência social
brasileira e das classes de dependentes estabelecidas na legislação de re-
gência; logo em seguida, será feito o cotejo entre essas duas classificações
previamente abordadas, encerrando-se o presente trabalho com a apresen-
tação das considerações finais obtidas a partir do estudo do tema proposto.

1. O MITO DOS METAIS RELATADO NO LIVRO “A


REPÚBLICA”, DE PLATÃO

No livro III, §§ 414 e 415, de “A República”, Platão (1979, p. 178–


181) utiliza o mito dos metais para o fim de conferir aos homens um sen-
timento de união em torno da cidade em que eles viviam e, além disso,
separá-los a partir de suas qualidades com o objetivo de que cada um exer-
cesse a “sua” função visando o bem comum.
Esse mito, de origem fenícia, é empregado por Platão com o objeti-
vo de convencer os cidadãos a respeito da validade dos seus argumentos
(Platão, 1979, p. 178). Assim, pela voz de Sócrates, ele descreve como a

108
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

natureza gera e divide os homens a partir de suas qualidades excelentes e


os diferencia uns dos outros de uma forma natural e, por que não dizer,
até mesmo racional.
No diálogo apresentado, um pouco constrangido a respeito do con-
teúdo do mito e da forma com a qual pretende utilizá-lo, Sócrates afirma
que se deve contar aos cidadãos que todos os homens advêm do mesmo
molde. Isso porque eles teriam sido gerados no seio da terra, sem qualquer
tipo de arma e sem as demais características atuais possuídas por cada um
deles e, no momento ideal, quando eles estavam prontos (ou completos),
a terra lhes enviou para viver em sociedade, ou seja, literalmente deu-lhes
“à luz” (Platão, 1979, p. 179).
Ao contar esse mito aos homens, Sócrates pretende dar um estímulo
para que eles permaneçam unidos, pois todos seriam irmãos gerados pela
mesma terra, ligados uns aos outros por verdadeiros laços de sangue. Dessa
maneira, se alguém atacasse a terra que os gerou, local de sua origem e
moradia, eles deveriam se reunir para a defender como quem defende a
própria mãe (Platão, 1979, p. 179).
Esse seria o motivo para a formação da cidade, qual seja, a defesa do
espaço estabelecido sob a forma de uma comunidade de irmãos que lutam
até o fim para manter incólume a terra que lhes presenteou com o maior
dom da natureza: a própria vida.
Sócrates esclarece também que, além de incutir nos homens esse sen-
timento de unidade em virtude de sua origem comum, o mito tem o con-
dão de demonstrar a todos que o próprio criador, ao moldar os homens,
fê-los conscientemente diferentes entre si.
Isso porque, no momento em que se deu a criação de cada um deles,
misturou-se ouro puro à alma daqueles considerados aptos a governar e a
guardar a cidade, em decorrência de que eles seriam mais preciosos que os
demais e, assim, incumbidos de cuidar de todos e buscar o bem comum
para os seus pares (Platão, 1979, p. 179–180).
Esses homens nobres seriam auxiliados na gestão da cidade por outros
homens que no momento da sua criação teriam recebido em sua alma um
metal menos precioso que aquele dourado, mas tão importante quanto

109
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

ele, qual seja, a prata. Assim, os seus auxiliares seriam aqueles sujeitos que
possuíssem almas de prata (Platão, 1979, p. 179–180).
Por fim, tão necessários para a vida em comunidade quanto os sujeitos
acima citados, agricultores, artesãos e outros trabalhadores braçais seriam
aqueles homens que tivessem recebido ferro e bronze para compor a sua
alma (Platão, 1979, p. 179–180), de maneira que se completaria o quadro
de indivíduos necessários para o desenvolvimento harmonioso da cidade.
Em virtude disso, a natureza do homem estaria vinculada aos metais
preciosos encontrados sob a terra e que, à escolha do criador, teriam sido
misturados à alma de cada cidadão cuja origem remonta à cidade, local no
qual todos vivem.
O mito demonstra, então, que todos os cidadãos de uma determinada
cidade são irmãos, pois são frutos gerados pela mesma árvore, pertencem
a um único gênero — são homens —, mas são desiguais entre si, tendo
em vista que estão divididos em diversas espécies com atribuições diferen-
tes, cada qual desempenhando uma função importante para o engrande-
cimento daquele local de vida em comum.
Assim, aquele que estivesse apto por natureza para exercer uma dada
função deveria ser posto nela, sob pena de que, em se fazendo o contrário
— ou seja, colocar pessoas inaptas para desenvolverem certas atividades —
isso levasse à destruição da cidade.
Veja-se que Sócrates justifica, por meio do mito dos metais, que os
homens são diferentes entre si, pois possuem diferentes habilidades, algo
que permite atribuir a cada um deles o exercício de uma das várias fun-
ções necessárias para o bem da coletividade e a manutenção da ordem no
interior da cidade.
Além disso, o filósofo encontra um bom fundamento para justificar
a maneira de afastar aqueles homens que podem ser considerados os me-
lhores — os que têm ouro e prata misturados na composição das suas
almas — das intrigas, disputas e ganâncias, que podem ser consideradas
acontecimentos rotineiros e típicos da vida em comunidade; isso porque,
tendo ouro e prata de qualidade divina em suas almas, esses homens não
necessitariam possuir ou manusear o ouro humano, menos nobre e, por
conta disso, sem o mesmo valor.

110
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Sócrates vai mais além ao dizer que seria uma verdadeira mácula para
suas nobres almas que eles tivessem algum tipo de contato com o ouro
dos mortais, causador de tantas situações vis e ordinárias e que é em tudo
contrário à riqueza havida na alma nobre e pura desses homens (Platão,
1979, p. 182).
Por conta disso, eles jamais deveriam tocar ou manusear esses me-
tais, não deveriam exibi-los como ornamento e sequer deveriam ficar sob
o mesmo teto que eles, nem utilizar talheres feitos com o seu material.
Essa seria a forma de preservarem a si mesmos e também à cidade (Platão,
1979, p. 182): manterem-se afastados desses metais humanos caracteriza-
dos por uma natureza vil.
Assim, a sociedade ficaria dividida em classes sociais, sendo que a clas-
se mais importante, aquela composta por homens de alma de ouro, ante
a proibição descrita nos parágrafos anteriores, seria mantida às expensas
da própria cidade, pois eles não teriam direito à riqueza e nem poderiam
constituir família, pois sua função seria cuidar do bem da coletividade
em uma espécie de solidariedade social e total desprendimento das coisas
mundanas.
É de se notar que, em seu diálogo, Sócrates leva em consideração que
essa divisão dos homens em classes sociais feita com base no suposto metal
existente em suas almas não é estanque nem tampouco imutável. Isso por-
que seria plenamente possível que o filho gerado por um guardião não
fosse um guardião, tendo em vista características outras que não as volta-
das para o desempenho daquela importante função, ou que o filho de um
agricultor nascesse com aptidões para ser um guardião, não herdando de
seus pais as mesmas características possuídas pelas almas deles. Isso signifi-
ca dizer que os descendentes dos homens poderiam não ter em suas almas
o mesmo metal havido na alma de seus pais (Platão, 1979, p. 179–180).
Em razão disso, ainda que o normal fosse o nascimento de uma crian-
ça semelhante ao metal possuído pelos seus pais — vale dizer, pais com
alma de ouro gerariam filhos com alma de ouro —, segundo Sócrates, era
plenamente possível que isso não ocorresse, ou seja, pode ser que do ouro
nasça a prata ou até mesmo o ferro, sendo certo que o inverso também se

111
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

mostra compreensível, ou seja, que do ferro nasçam crianças com alma de


ouro ou prata.
É a educação de cada criança que irá demonstrar qual é o metal que
prevalece na sua alma, algo que pode modificar a sua natureza e o destino
do seu possuidor no que diz respeito à atividade que ele irá desenvolver
na cidade.
Sócrates sabe que esse tipo de mito não é verdadeiro e é por isso que
ele o chama de “mentira” e fica receoso de o expor durante o diálogo,
mas o utiliza como um recurso moralmente válido para que a cidade ideal
seja um local de amplo desenvolvimento e onde impere a busca pelo bem
comum (Platão, 1979, p. 178–179). Em suma, o mito se consubstancia
em uma importante “ferramenta argumentativa para o convencimento
popular” (Gomes, 2022, p. 49–50).
Dessa forma, ao se utilizar do mito dos metais, Sócrates apresenta
algo que vai dar concretude à vida em sociedade, significa dizer, ele dá a
motivação que une os cidadãos ao redor do local em que todos vivem e,
também, dá fundamento à divisão dos homens em classes sociais diferen-
tes entre si e que termina por repercutir na função de cada um deles na
condução dos rumos da cidade e do bem comum (Platão, 1979, p. 175)
fundamental para a vivência harmoniosa de todos.
Feita essa exposição do mito dos metais e do seu significado e da sua
importância para o bom desenvolvimento das atividades rotineiras da ci-
dade, na próxima seção discorrer-se-á acerca da forma pela qual se dá a
classificação dos dependentes dos segurados do RGPS no sistema previ-
denciário brasileiro a fim de, posteriormente, traçar-se um paralelo entre
ambos.

2 A PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA

2.1 BENEFICIÁRIOS

Beneficiários são as pessoas que têm o direito de receber os benefícios


pecuniários pagos pela previdência social brasileira. Trata-se de um gênero
do qual são espécies os (i) segurados do RGPS e os seus (ii) dependentes.

112
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Inicialmente, porém, cumpre observar que a previdência social está


estruturada sob a forma de um seguro público coletivo e compulsório,
baseado no princípio da solidariedade e organizado sob a forma de um re-
gime geral que garante aos seus beneficiários um determinado serviço ou
o pagamento de uma renda mensal necessária para garantir a subsistência
dessas pessoas e de suas famílias na hipótese da ocorrência de uma situação
prevista em lei como um risco social (Gouveia, 2012, p. 23).
Assim, os segurados da previdência social podem ser divididos em
segurados obrigatórios e facultativos. Os primeiros são todas as pessoas
físicas que exercem qualquer tipo de atividade econômica de vinculação
compulsória ao RGPS (art. 11 da LBPS). Assim, nos termos do art. 11,
incisos I a VII da LBPS, são segurados obrigatórios os: empregados; em-
pregados domésticos; contribuintes individuais; trabalhadores avulsos; e
segurados especiais.
Os segurados facultativos, por sua vez, consubstanciam-se em quais-
quer pessoas que tenham mais de 16 anos de idade e que não exerçam
atividade remunerada que os enquadre como segurados obrigatórios do
RGPS. Isso porque eles recolhem contribuições previdenciárias de forma
livre e espontânea (art. 13 da LBPS). Esses segurados têm o direito de
receber os benefícios elencados no art. 18, I, “a” a “h” do LBPS, quais
sejam: aposentadorias por incapacidade permanente (antiga aposentadoria
por invalidez), por idade, por tempo de contribuição especial, auxílio por
incapacidade temporária (antigo auxílio-doença), salário família, salário
maternidade e auxílio-acidente.
Além desses sujeitos, conforme dispõe o art. 16 da LBPS, são bene-
ficiários da previdência social os dependentes do segurado: pessoas que
pertencem ao seu grupo familiar (Castro; Lazzari, 2023, p. 133) ou são
equiparadas a essas pessoas pela lei, e que dependem da sua força de tra-
balho para sobreviver. Eles têm o direito a receber apenas dois tipos de
benefícios previdenciários: a pensão por morte (art. 18, II, “a” da LBPS) e
o auxílio-reclusão (art. 18, II, “b” da LBPS).
Os dependentes são divididos e classificados pela LBPS para fins da
aferição da real necessidade de receberem benefícios previdenciários, algo
que será objeto de explanação na próxima subseção deste trabalho.

113
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

2.2 CLASSES DE DEPENDENTES

O art. 16 da LBPS divide os dependentes dos segurados do RGPS


em três classes hierárquicas entre si (classes nºs 1, 2 e 3) e estanques, com
o fim de aferir quem necessita e quem tem prioridade no recebimento de
eventuais benefícios da previdência social brasileira.
A primeira informação importante é a de que essas classes de
dependentes são hierarquizadas. Em razão disso, a existência de de-
pendentes em uma determinada classe mais alta é o suficiente para
a exclusão do recebimento de todos os outros que acaso figurem nas
demais classes subsequentes (art. 16, § 1º da LBPS). Por exemplo, para
o eventual dependente da classe nº 3 receber o benefício, não pode
haver dependente na classe nº 1 e nem na nº 2. Por sua vez, para o de-
pendente da classe nº 2 ter direito a um benefício, não podem existir
beneficiários na nº 1, excluindo-se de qualquer análise o dependente
da classe nº 3 (Martins, 2012, p. 302).
Assim, são considerados dependentes de primeira classe o cônjuge, o
(a) companheiro (a) e o filho não emancipado, de qualquer condição, me-
nor de 21 anos ou inválido, ou que tenha deficiência intelectual ou mental
ou deficiência grave (art. 16, I da LBPS).
Os pais do segurado da Previdência Social, por sua vez, são conside-
rados seus dependentes de segunda classe (art. 16, II, da LBPS).
Finalmente, são dependentes de terceira classe os irmãos do segurado
menores de 21 anos de idade. Além deles, também pertencem a essa classe
os irmãos de qualquer idade que sejam inválidos ou que tenham deficiên-
cia intelectual ou mental ou deficiência grave (art. 16, III da LBPS).
As pessoas constantes da classe nº 1 têm a sua dependência econômica
do segurado presumida pela lei, sendo suficiente a prova do seu enquadra-
mento nessa classe de beneficiários para que possam receber desde logo o
benefício devido (art. 16, § 4º da LBPS).
Por outro lado, para fazerem jus ao recebimento de qualquer presta-
ção da previdência social, os dependentes que se enquadram nas classes
subsequentes (nº 2 e nº 3) devem provar a sua dependência econômica do
segurado do RGPS (art. 16, § 4º da LBPS). Vale dizer, a demonstração
dessa dependência é condição sine qua non para o recebimento de qualquer
tipo de benefício previdenciário.

114
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

O segundo dado fundamental acerca dessas classes de dependentes é


que elas são estanques e absolutamente independentes entre si, em virtude
do que não há qualquer possibilidade de que um dependente da classe nº
3 ascenda à classe nº 2 ou que um da classe nº 2 se aloque na classe nº 1.
Vale dizer, os sujeitos enquadrados nessas classes são inamovíveis entre elas
e não podem ter as suas posições previamente estabelecidas em lei ignora-
das no momento em que se busca aferir o direito ao recebimento de um
determinado benefício pago pela previdência social.
A despeito disso, é certo que, conforme sustentam Carlos Alberto Pe-
reira de Castro e João Batista Lazzari (2023, p. 138), todos “os dependen-
tes de uma mesma classe concorrem em igualdade de condições” entre si.
Derradeiramente, destaca-se que a perda da qualidade de dependente
se dá com o fim do relacionamento conjugal mantido com o segurado do
RGPS, quando o dependente completa 21 anos de idade, quando cessa a
sua invalidez ou deficiência, ou quando ele vier a falecer, tudo em confor-
midade com o disposto no art. 17, do Decreto nº 3.048, de 6 de maio de
1999, que estabelece o Regulamento da Previdência Social.
Dessa forma, ante a constatação dos requisitos legais, a ausência do con-
vívio com os segurados do RGPS permite aos seus dependentes, provada a
dependência econômica quando necessária e observada a hierarquia das clas-
ses estabelecida na LBPS, o recebimento de um benefício previdenciário.
Apresentadas as classes de dependentes estabelecidas pela LBPS no
âmbito da Previdência Social brasileira, na próxima seção far-se-á uma
análise dessa classificação à luz daquela divisão dos cidadãos em classes
sociais narrada no mito dos metais por Sócrates, conforme exposto na
seção 1, supra.

3. A DESIGUALDADE DOS HOMENS: UMA FICÇÃO NA


FILOSOFIA DE PLATÃO E NA PREVIDÊNCIA SOCIAL
BRASILEIRA

Através de uma ficção, tanto na filosofia de Platão quanto na previ-


dência social, a desigualdade havida entre as pessoas é justificada como
sendo uma obra da natureza.

115
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Com efeito, no livro III de “A República”, o mito dos metais narra-


do por Sócrates mostra como a natureza faz os homens diferentes uns dos
outros: adiciona metais mais ou menos preciosos à alma de cada um deles,
algo que os habilita para o desempenho de certas funções importantes para
o sucesso da vida em coletividade.
Ainda, segundo Sócrates, o normal seria a transmissão hereditária
dessas diferenças entre os cidadãos, algo que, no entanto, poderia simples-
mente não acontecer. Assim, seria possível que pais com ouro ou prata na
composição da sua alma gerassem filhos com almas que tenham metais
menos nobres, sendo certo que o contrário também poderia ocorrer, ou
seja, pais com alma de ferro ou bronze poderiam gerar filhos com alma de
ouro ou prata.
Note-se, então, que há a possibilidade de mudança de classe social
na sociedade descrita por Sócrates, de maneira que um homem não está
preso ou “amaldiçoado” a permanecer em uma determinada classe. Logo,
desde que demonstre habilidades para o exercício de outras funções igual-
mente relevantes para o bem da coletividade, é plenamente possível que
ele desempenhe atividades diferentes daquelas exercidas pelos seus geni-
tores.
Por sua vez, a previdência social brasileira também se utiliza de uma
ficção para classificar os dependentes do segurado do RGPS, uma vez que
as classes enunciadas pelo art. 16 da LBPS têm como fundamento o grau
de proximidade familiar existente entre esses dependentes e o segurado
do sistema.
No entanto, ao contrário do mito dos metais, na previdência social
brasileira não há qualquer possibilidade de uma pessoa enquadrada em
uma das classes de dependentes trocar de classe ou receber o benefício
previdenciário no lugar ou juntamente com o indivíduo que se encontra
em uma classe hierarquicamente acima da sua.
Vale dizer, mesmo que pai e mãe (classe nº 2) do segurado dependam
economicamente dele para sobreviverem, essa condição de dependência
somente será analisada para fins de concessão do benefício previdenciá-
rio se não existir qualquer dependente na classe nº 1 (cônjuge supérstite,
companheiro (a) do segurado e filhos menores).

116
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Em havendo, ainda que esse sujeito da classe nº 1 seja uma pessoa


abastada e não necessite do benefício para sobreviver, é para ele que a pre-
vidência social tem o dever legal de pagar a prestação pecuniária, de forma
que os supostos dependentes constantes das demais classes (no exemplo
dado, os pais do segurado, que compõem a classe nº 2) e suas necessidades
serão completamente ignorados.
Veja-se, então, que, se a mudança de classe na cidade descrita por Só-
crates, segundo o mito dos metais, pode acontecer a partir da descoberta
das verdadeiras aptidões das crianças (metais contidos em suas almas), no
âmbito da previdência social brasileira uma mudança desse tipo não tem
qualquer possibilidade de acontecer. Tudo porque a classificação feita pela
LBPS, apesar de ser fundada em uma ficção de proximidade familiar ima-
ginada pelo legislador, é rígida, taxativa e não pode ser superada pela prova
de necessidade econômica.
Observe-se que, tendo em consideração o pensamento e o contex-
to da sua época, as classes sociais compostas a partir do mito dos metais
buscam desigualar os homens para fazer justiça e alcançar o bem comum.
Exatamente o contrário do que ocorre com a classificação feita pela legis-
lação previdenciária em relação aos dependentes do segurado do RGPS,
tendo em vista que a desigualação feita por ela não atinge o bem comum
e tampouco promove a justiça social anunciada pela CF/1988 em relação
aos dependentes necessitados.
Se o fundamento fosse o bem comum e a justiça social, certamen-
te o benefício previdenciário deveria ser pago àquelas pessoas que pro-
vassem de forma efetiva a necessidade do seu recebimento para viverem
e sobreviverem com dignidade. Todavia, atualmente, mesmo que façam
esse tipo de prova, o art. 16, § 1º da LBPS, não reconhece a essas pessoas,
que ocupam classes de dependentes em posição hierarquicamente inferior,
qualquer direito perante a previdência social, ainda que dependam eco-
nomicamente do segurado e necessitem daquela prestação pecuniária de
natureza previdenciária para sobreviver.
Dessa forma, apesar de tanto o mito dos metais quanto a previdência
social brasileira se valerem de uma ficção para construir uma sociedade
dividida em classes de pessoas, possuidoras de direitos e deveres, é possível

117
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

verificar que, no referido mito, a busca pelo bem comum e pela justiça é
algo constante, o que não ocorre no âmbito da previdência social brasi-
leira, pois a divisão dos dependentes em classes hierárquicas e estanques
entre si não conduz a efetivação da justiça social e do bem comum cuja
perseguição é uma das diretrizes da CF/1988.
Realizada a exposição e a análise do tema que foi proposto inicial-
mente, a seguir apresentam-se as considerações finais acerca do trabalho
desenvolvido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O paralelo que se pode traçar entre o mito dos metais e a classificação


dos dependentes do segurado do RGPS é exatamente a busca de ambas
pela ordenação e racionalidade do sistema de cada qual, sendo certo que o
objetivo de se atingir a justiça social resta prejudicada no que diz respeito
à previdência social brasileira.
Com efeito, a separação dos cidadãos em classes de acordo com o
metal contido na sua alma descrita por Sócrates com fundamento no mito
dos metais visava o bem comum e uma organização racional da cidade,
de maneira que cada qual pudesse dar o melhor de si para o progresso e
o atingimento do bem da coletividade. Essa classificação, porém, não era
estanque, rígida, imutável, pois um sujeito gerado por almas de bronze ou
ferro poderia vir a ser reconhecido como um homem com alma de ouro
ou prata, da mesma forma que o inverso seria possível, ou seja, o ouro ou
a prata poderiam gerar o bronze ou o ferro.
Significa dizer, então, que, no indigitado mito, a mudança de classe
era algo possível e ela visava sempre o bem da cidade. No entanto, se a
busca da justiça social resta atingida quanto ao bem comum no mito dos
metais, na previdência social brasileira, ao se fazer a divisão e o enquadra-
mento das pessoas em classes, essa justiça não logra êxito em ser atingida,
haja vista o fato de que as referidas classes, além de hierárquicas, são abso-
lutamente estanques e incomunicáveis entre si. Isso porque não é dado a
um dependente o direito de trocar de classe para o fim de receber, sozinho
ou em conjunto com pessoas de outras classes, um determinado benefício
previdenciário.

118
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

É o que ocorre, por exemplo, na hipótese de um segurado do RGPS


falecer e deixar um cônjuge ou companheiro (classe nº 1): mesmo que
essa pessoa tenha renda própria e, em razão disso, não tenha necessidade
de receber o benefício previdenciário, ela o receberá em detrimento dos
pais (classe nº 2) ou dos irmãos (classe nº 3) do segurado falecido, ainda
que eles comprovem a total dependência econômica desse último. Isso por
si só permite considerar que a divisão de classes da previdência social não
atende aos anseios de justiça social propalados pela CF/1988, tendo em
vista que o benefício previdenciário não servirá para resguardar aqueles
que realmente necessitam dele.
Dessa forma, tanto o mito dos metais narrado por Sócrates quanto a
divisão dos dependentes do segurado do RGPS em classes visam desigua-
lar as pessoas ficticiamente com o fim de atingir o bem comum, a organi-
zação e a racionalização dos seus sistemas, sendo certo, entretanto, que a
estrutura montada pela legislação previdenciária brasileira não atinge esse
desiderato, de maneira que ela não concretiza a justiça social exigida pelas
normas da CF/1988.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Direito


Previdenciário. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; MÉ-
TODO, 2023.

DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 7. ed. Porto Ale-


gre: Verbo Jurídico, 2010.

GOMES, Gilmar Araújo. O mito fundante da religião civil: Considerações


sobre o mito dos metais na república de Platão (Pl. Rep. 414b–415c).
RÓNAI — Revista de estudos clássicos e tradutórios, Juiz de
Fora (MG), v. 10, n. 2, p. 42–53, dez. 2022. Disponível em: https://
periodicos.ufjf.br/index.php/ronai/article/view/37904/25516. Aces-
so em: 6 abr. 2023.

GOUVEIA, Carlos Alberto Vieira de. Benefício por incapacidade &


perícia médica: Manual prático. Curitiba: Juruá, 2012.

119
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 32. ed. São


Paulo: Atlas, 2012.

PLATÃO. A República. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém:


UFPA, 1979.

120
DO POSITIVISMO AO PÓS-
POSITIVISMO: UMA TRAJETÓRIA
INEVITÁVEL
Isabella Nunes Borges25

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca trabalhar duas correntes de pensamento


jurídico: o Positivismo e o Pós-Positivismo — em especial, a passagem
de um para o outro, como uma consequência da mutabilidade e espon-
taneidade do Direito. Para tanto, foi aplicada a metodologia bibliográfica
qualitativa.
O primeiro tópico do trabalho se destina a tratar sobre as circunstân-
cias que trouxeram o Positivismo Jurídico à existência e, logo em seguida,
os motivos da incapacidade de ele continuar regulando adequadamente a
sociedade.
Diante da insubsistência do Positivismo Jurídico, o Pós-Positivismo
procurou suprir as lacunas deixadas.

25 Mestranda em Direito Constitucional pelo CEUB. Editora Adjunta da Revista Brasileira de


Políticas Públicas. Advogada colabora da DPDF. Trabalha com temas voltados à Hermenêuti-
ca Sistemática, Teoria da Decisão Judicial e Administrativa.

121
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Nesta senda, o segundo tópico traz as características e peculiaridades


dessa corrente de pensamento jurídico, que reconhece a dependência do
Direito aos fatores situacionais (economia, política, sociologia e cultura).
Por fim, a terceira seção deste trabalho buscou refutar algumas das
principais críticas ao Neoconstitucionalismo, como (i) um crescimento
desnecessário do judiciário; (ii) a violação da vontade da maioria do povo,
expressa nas leis; e (iii) a ausência de rigorosidade do ordenamento jurídi-
co e de critérios reais e racionais capazes de controlar o discurso judicial.
Para fins de delimitação da nomenclatura utilizada no trabalho, é
relevante informar que Pós-Positivismo e Neoconstitucionalismo serão
tratados como sinônimos aqui. O Pós-Positivismo é uma designação pro-
visória, que trabalha com uma visão desenvolvida dos valores, princípios,
regras, direitos fundamentais e hermenêutica constitucional (Barroso,
2003). Dessa forma, a compreensão dada à Constituição atualmente faz
parte do contexto teórico do Pós-Positivismo; por isso se referir a um
será como se referir ao outro neste trabalho, haja vista compartilharem o
mesmo espaço conceitual.

1. POSITIVISMO JURÍDICO: O IDEAL AINDA SE


MANTÉM?

Tanto o Direito quanto a linguagem são elementos espontâneos, fru-


tos de um contexto cultural e político. Os paradigmas formulados pelo
Direito, portanto, são limitados ao espaço-tempo. Eles são responsáveis
por erigir dogmas, legitimando determinadas verdades assim como blo-
queando certas dúvidas e perguntas.
A Revolução Francesa e os ideais iluministas tiveram uma função im-
portante na percepção jurídica. O Positivismo Jurídico, que deu seus pri-
meiros sinais no século XVIII, permitiu com que o poder do Estado fosse
desvinculado do teocentrismo. Ou seja, o governo não era mais legitima-
do por uma divindade, pelo contrário, a legalidade passou a ser o principal
pilar de sustentação e limitação do Poder Público, o que restringiu a dis-
cricionariedade do Estado, imputando-lhe a função de mero executor fiel
da lei (Kelsen, 2016).

122
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

O primeiro aspecto a se destacar é que o Estado sempre manteve,


mesmo após o século XVIII, uma postura insubmissa. Essa característi-
ca pode se mostrar tanto positiva como negativa. As instituições públicas
solucionavam problemas fora de suas competências legalmente estabele-
cidas, evoluindo e aplicando valores na prática — o que muitos conside-
ravam uma violação à separação dos poderes era a solução para alcançar a
justiça jurídica.
Por outro lado, a legalidade também era desrespeitada por meio do
abuso do poder, como foi o caso da dissolução da primeira Assembleia
Constituinte por Dom Pedro I, dos Atos Institucionais, do golpe do Es-
tado Novo, do impedimento de Pedro Aleixo, entre outros exemplos de
intolerância (Barroso, 2003, p. 142).
O Estado também deve se apresentar como um organismo prestacio-
nal, sendo capaz de respeitar o interesse público e promover o bem-estar
social. Veja que preencher o critério da legalidade (o que, como visto, foi
cumprido com falhas) não basta. A legitimidade precisa ser conquistada.
Noutras palavras, o Estado deve ser capaz de consolidar as melhores con-
dições jurídicas (Schmidt-Assmann, 2003).
Contrariamente, o Positivismo se apresentou como ilegítimo. De
início, o interesse público representava os interesses da Administração
Pública, mantendo a elitização de certos grupos sociais, sustentando ca-
racterísticas patrimonialistas. Como a seara pública estava dominada pelo
clientelismo, demandas como educação, saúde, habitação e saneamento
foram deixadas de lado, colocando à prova o próprio conceito de dignida-
de (Barroso, 2003).
Por outro lado, é impossível tornar o homem neutro ou imparcial.
Sua percepção do mundo, quanto mais de um texto legislativo que é pro-
duto de discussões políticas, não pode ser desvinculado daquilo que se
chama de mundo ou campo vivido (Stein, 2004). Se não é possível reti-
rar o elemento humano e subjetivo das Ciências Exatas, quanto mais das
Ciências Sociais Aplicadas (Coelho, 2015).
Reduzindo o “ser” ao “dever-ser”, o Positivismo Jurídico fez com
que o Direito repousasse sobre si e apenas sobre si. Ele tirou do seu campo
visual as circunstâncias extrajurídicas naturalmente vinculadas à sociedade

123
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

que pretendia regular (Stein, 1988; Müller, 2005), o que freou a capaci-
dade do Direito se posicionar frente à sociedade (Barroso, 2003, p. 150).
A Ciência Jurídica, como campo complexo do conhecimento, não
pode se contentar com a letra da lei. Pelo contrário, o labor do execu-
tor do Sistema Jurídico é ir além dos conflitos singulares, alcançando os
valores fundamentais subjacentes à norma, para alcançar os valores e os
princípios gerais da ordem jurídica (Canaris, 2002, p. 77–79). Segundo
afirma Atienza (2023, p. 158), o magistrado deve se vincular à norma
(em sentido estrito, leis) e, também, às suas razões fundamentais (valores
e princípios).
Outro ponto que merece destaque é a confiança acrítica do Positi-
vismo na vontade do legislador. Jeremy Waldron reforça que o proces-
so legislativo é tumultuoso, conflituoso, plural, repugnante, fedorento e
barulhento. Essas características não são ruins. Pelo contrário, são des-
ses debates que a dialeticidade é efetivada. Boas deliberações e reforços
à democracia são frutos desse momento político vital (Waldron, 2003).
Não obstante, o Positivismo obrigou o magistrado a compreender a lei
como se ela fosse produto de um processo puramente racional, transpa-
rente e límpido. Criou-se uma figura do legislador ideal, único, coerente
e onicompreensivo (Coelho, 2023, p. 30).
A Constituição é uma norma à espera de interpretação e efetivação
(afinal, o texto sozinho não é capaz de fazer nada). Por tal razão ela não
pode existir sem o processo interpretativo. Em realidade, todos os se-
res humanos operam pela interpretação do mundo — não há fatos, mas
apenas interpretação de fatos (Coelho, 2015). A experiência jurídica e do
mundo vivido são atos interpretativos, afinal, não há uma forma inequí-
voca de compreender a sociedade. Por isso a Ciência Jurídica não se des-
vincula do seu contexto histórico.
A conclusão é lógica: o direito constitucional não é a prescrição nor-
mativa. Em realidade, ele também é o fruto dos padrões hermenêuticos
expressos na jurisprudência dos Tribunais (Coelho, 2023, p. 36). Além
disso, o ambiente externo é anterior ao ambiente interno do Sistema Jurí-
dico e, por isso, este depende daquele para se manter. Com essa necessária
mediação entre a realidade e a norma, as instituições públicas (aqui inseri-

1 24
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

dos os Órgãos Julgadores e seus magistrados) não estão dizendo o Direito,


mas, sim, fazendo o Direito (Pereira, 2019).
Horbach (2007) afirma que a atual ideia de harmonia e igualdade en-
tre os Poderes Públicos tem levado a alguns equívocos, em especial à no-
ção de um Judiciário com muitos atributos, tornando essa entidade forte e
expansiva. Os conceitos não podem ser misturados. A harmonia, a igual-
dade e a independência entre os Poderes está para conferir a cada uma das
funções estatais (legiferante, executiva e judiciária) a liberdade de serem
metodologicamente ativas na busca pelo sentido da norma (Otero, 2011).
Não se trata do império do Judiciário, assim como é equivocado sustentar
o império do Poder Legislativo, limitando a jurisdição a uma atividade
mecânica, acrítica e meramente reprodutora de uma suposta vontade do
legislador.
Numa finalização deste tópico, cabe dizer que, por causa das razões
apontadas acima, foi necessário encontrar uma alternativa para o déficit
teórico deixado pelo Positivismo. O sistema de direitos fundamentais,
junto com seus princípios e valores, foram incluídos no Sistema Jurídi-
co. Vetores axiológicos e a dignidade da pessoa humana passaram a ser
as principais balizas hermenêuticas. A Constituição foi hierarquicamente
posicionada em nosso ordenamento e a fluidez conceitual se tornou um
elemento necessário à promoção da democracia e da otimização do Direi-
to (Binenbojm, 2008).
A classificação de um Estado Democrático de Direito — como
indicado em nossa Carta Constitucional — não é justificativa para
o enrijecimento do ordenamento jurídico ou para a supremacia do
Legislativo. Significa a manutenção de um Estado com rigoroso respeito
ao ordenamento normativo, mas, ainda assim, ontológica e epistemologi-
camente aberto para o ambiente externo26.

26 Isso traduz a ideia de um Sistema Jurídico que tem a adaptabilidade como objeto e
objetivo, de uma Ciência Jurídica provisória e incompleta por estar em constante aperfei-
çoamento (Pereira, 2019).

125
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

2. PÓS-POSITIVISMO: UM NOVO PARADIGMA


NECESSÁRIO

Uma das principais críticas feitas ao Neoconstitucionalismo é a pre-


sença da subjetividade no discurso, em especial nas decisões judiciais, o
que, segundo alguns críticos, mitigaria a força normativa do ordenamento
jurídico27 — razão pela qual é cabível iniciar este tópico com algumas ob-
servações sobre o tema.
Manuel Garcia Morente (1980) afirma que o processo de compreen-
são é formado por um binômio: o sujeito cognoscente e o objeto conhe-
cido. Ambos estabelecem, entre si, uma correlação, mas não se confun-
dem. Em realidade, possuem uma separação completa. Isso quer dizer que
sujeito sempre será sujeito e o objeto sempre objeto. Eles não devem se
fundir, apesar de sempre caminharem juntos. O sujeito pode ser classifica-
do como o indivíduo que se presta a conhecer algo, como é o caso de um
magistrado em sua função jurisdicional. Noutro lado, o objeto conhecido
é a coisa que se contempla e interpreta, como um fato ou uma norma.
O sujeito cognoscente precisa sair de si e caminhar em direção ao
objeto conhecido para estudá-lo — se disporá a conhecer a coisa inter-
pretada, mas sem capturá-la ou tomá-la para si; se fizesse assim, sujeito
e objeto entrariam em uma espécie de fusão que poria fim à correlação.
Por outro lado, o objeto se expõe para ser estudado, se entregando e, ao
mesmo tempo, modificando o sujeito.
Em meio ao processo de compreensão, o intérprete lançará suas pri-
meiras reflexões acerca da coisa interpretada. São as chamadas intuições.
Elas podem ser emocionais, motivacionais ou intelectuais. A intuição inte-
lectual é aquela que deve ser desenvolvida na Ciência e, claro, no ambiente
dos Tribunais. Ao aplicá-la, o sujeito buscará compreender o objeto como
ele é: isso significa apresentar ideias e, em seguida, refutá-las, discuti-las e
pôr à prova as reflexões alcançadas. Ela é fruto de uma dialeticidade, viabi-

27 Dentre algumas críticas, pode-se usar como exemplificação aquelas destacadas nos ar-
tigos seguintes (cabe ressaltar que as críticas serão mais bem discutidas no tópico seguinte
deste trabalho): “A constitucionalização simbólica” (Neves, 1994) e “Neoconstitucionalismo:
entre a ‘ciência do direito’ e o ‘direito da ciência’” (Ávila, 2009).

126
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

lizando a captação direta da essência do objeto por meio da cognição mais


racional possível (Morente, 1980, p. 22 e 23), todavia, nunca absoluta: a
subjetividade pode ser controlada, não eliminada.
O contexto se faz relevante, pois o conteúdo que se considera verda-
deiro é temporário, já que é fruto dos valores sociais em determinado pe-
ríodo. O compartilhamento que se tem do mundo representa, nada mais
e nada menos, a unidade de sentidos compartilhados pelos membros de
uma sociedade, também chamados de valores (Scheler, 1994).
Tais impasses e incompletudes são elementos que permitem à Ciên-
cia Jurídica mudar e construir novos paradigmas. A abertura de novos
horizontes é um processo gradual e lento, mas visa uma abordagem inter-
disciplinar e pluralista. Como consequência, esse comportamento jurídi-
co (receptivo a inovações) aumentou a quantidade de bens que merecem
tutela e estendeu a titularidade de direitos subjetivos (Wolkmer, 2016, p.
123 e 125).
Essa sistemática não fragiliza o Direito, pelo contrário, a Ciência Jurí-
dica é formada por duas dimensões: uma autoritativa e uma valorativa. A
primeira é sustentada pelo Positivismo Jurídico. A coexistência dela com a
segunda dimensão (a valorativa) é o que permite a legitimação do discur-
so, segundo aponta o Pós-Positivismo. A articulação dessas duas instân-
cias explica a proatividade da jurisdição para a efetivação e conformação
do Direito. Embora a ponderação seja limitada (como será visto mais a
frente), ela ocupa um papel central da justificação do discurso decisório
(Atienza, 2023, p. 158).
Atienza (2006) indica a existência de quatro tipos de Sistemas Jurídi-
cos: (i) os que são fechados e rechaçam qualquer tipo de invocação, como
ocorreu com o direito muçulmano; (ii) os sistemas fechados, mas que ad-
mitem a inovação — tendo como exemplo o Common Law desde o século
XIX; (iii) os abertos e que não aceitam a inovação, assim como o direito
consuetudinário; (iv) por fim, os abertos e que admitem inovação, como
o direito característico do Welfare State.
Atualmente, os Sistemas Jurídicos se apresentam como uma mistu-
ra dos modelos dois e quatro. Isso quer dizer que, em regra, admitem
a inovação (Atienza, 2006, p. 22). A solução adequada para as questões

127
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

jurídicas é encaixada, então, numa moldura que representa as possibilida-


des interpretativas viáveis para o ambiente externo que envolve o Direito
(Barroso, 2003, p. 144).
Diante dessas circunstâncias, o diálogo, a motivação e a argumenta-
ção se tornam fatores de legitimação das decisões judiciais. São elementos
que, inclusive, contribuem para o conceito de democracia deliberativa,
em que as decisões são tomadas a partir da construção de um debate públi-
co. Isso demonstra que democracia está além dos direitos políticos, abran-
gendo os argumentos e a justificação dos discursos (Mendonça, 2014). Daí
a importância da exposição dos votos e da participação da sociedade em
audiências.
Assim, o Neoconstitucionalismo possui algumas características pró-
prias. A primeira delas é que o “ser” não é reduzido ao “dever-ser”, afinal,
não existe um significado linguístico desvinculado do contexto em que a
mensagem é pronunciada (Wittgenstein, 1992, p. 23).
Tal comportamento judicial não é local. Pelo contrário, pode-se per-
ceber uma produção jurisdicional em diversos níveis: dentro das Cortes
nacionais; na aplicação de leis domésticas pelas Cortes internacionais; na
tutela de direitos nos Tratados Internacionais; nas decisões judiciais em
Cortes internacionais sobre matérias de Direito Internacional. Em todas
estas esferas (nacional, supranacional e internacional) há algo em comum:
a preservação e proteção do ser humano segundo as suas necessidades
concretas, por meio de uma produção normativa e jurisdicional que tem
os direitos humanos como núcleo (Olsen, 2021, p. 10).
Além dos direitos humanos, as consequências da decisão jurídica
também não podem ser ignoradas. Devem, na verdade, ser minuciosa-
mente estudadas pelo intérprete da norma. Tais consequências se confi-
guram como um critério de seleção do melhor método hermenêutico, o
que quer dizer que o magistrado deve escolher aquela metodologia exegé-
tica ou aquela decisão que produz os melhores resultados práticos (Viola,
2007, p. 212).
Destaca-se que a proteção dos direitos do homem é pilar de susten-
tação da própria soberania de um Estado, afinal a soberania é afastada nos
casos de ofensa a eles. Isso demonstra que o respeito a este standard não é

128
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

apenas um mecanismo de proteção da pessoa, mas, sim, de uma obrigação


em nível internacional. Trata-se de um imperativo necessário para evitar
lacunas jurídicas e o descrédito perante outros países (Olsen, 2021, p.
43–46).
Tal cenário faz com que a ponderação seja o elemento a solucionar as
tensões dialéticas do ordenamento jurídico, segundo as exigências do caso
concreto. Nem sempre esse processo será perfeito. Os discursos e diálogos
judiciais são formados por avanços e retrocessos. O que se preza, não obs-
tante, é a constante busca por soluções que valorizem a dignidade do ser
humano, como condição de validade e eficácia dos pronunciamentos do
Poder Público (Olsen, 2021, p. 65).
A vinculação dos magistrados às regras e aos princípios é um antídoto
ao formalismo pregado no Positivismo Jurídico. Por outro lado, as insti-
tuições públicas se prestam para o alcance do bem-estar social. O cum-
primento aos escopos do sistema, o respeito aos direitos fundamentais e
ao interesse público são, noutro ponto, o antídoto para o ativismo lesivo
(Atienza, 2023, p. 158).

3. REFUTAÇÃO DE CRÍTICAS AO
NEOCONSTITUCIONALISMO

Este momento destina-se à apresentação e à refutação de algumas crí-


ticas comumente apresentadas contra o Pós-Positivismo. Não se preten-
de sustentar que o Neoconstitucionalismo seja uma teoria perfeitamente
construída, ou que ela é capaz de apresentar a solução ideal para todas
as questões sociais. Mas apenas que ela é uma continuação necessária da
Ciência (como a construção inevitável de novos paradigmas para superar a
insuficiência de teorias anteriores).
O primeiro aspecto a ser abordado é com relação ao surgimento e
aos propósitos da atividade judicial proativa. Estudiosos costumam datar
a ascensão de um Judiciário mais presente no cenário da guerra, como,
por exemplo, na constituição do Tribunal de Nuremberg — instituído
para julgar os crimes praticados por nazistas e penalizar a violação aos di-
reitos humanos, mesmo que isso significasse mitigar a soberania nacional.
Acrescenta-se, ainda, a vagareza do Executivo e do Legislativo, o que for-

129
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

çou o Judiciário a construir um comportamento institucional forte. Isso


levou à afirmação de que o crescimento do Judiciário se tratava de uma
decisão política (Vianna et al., 2007).
Os críticos sugerem que, de início, o Supremo Tribunal Federal sur-
giu para garantir a homogeneidade na produção normativa, mas que, em
seguida, a Corte passou a tocar várias dimensões da vida e da organização
Estatal ((Vianna et al., 2007; Vieira, 2008).
Diante dessas circunstâncias, o Supremo Tribunal recebeu diversos
“apelidos” dos críticos do Neoconstitucionalismo. Foi comparado com
um poder constituinte permanente, pelo fato de a jurisprudência da Corte ser
tão expansiva e, até mesmo, ocupar o espaço do Legislativo (Vieira, 2008);
e foi intitulado de árbitro dos bons costumes, por atingir esferas da reali-
dade social, cultural e econômica (Garapon, 1996).
Ocorre que, no início da expansão do Judiciário, o Supremo Tribunal
Federal se mostrou resistente às mudanças e à expansão de suas compe-
tências. O “ponto de virada”, para que a Corte se posicionasse frente aos
direitos fundamentais, foi o caso Ellwanger (Habeas Corpus 82.424/RS),
em alinhamento com a tendência dos Tribunais Constitucionais estran-
geiros na busca pela legitimação dos discursos. A partir desse momento,
abriu-se precedente para que a Corte se mostrasse defensora da dignidade
humana (Arguelhes, 2022). Nesse sentido, a judicialização passa a cum-
prir um papel qualitativo — pois precisa suprir a inércia do Legislativo e do
Executivo — e quantitativo — como resultado da democracia, haja vista
a maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos que buscavam a
justiça (Barroso, 2019).
O que se observa, em realidade, é um Poder Judiciário que se presta
a servir de porto seguro e entrincheiramento dos direitos e liberdades funda-
mentais — uma esperança de solução para as incertezas políticas e moro-
sidades administrativas. A judicialização não passa de um fato necessário
da vida, presente na maioria dos países democráticos e Estados com uma
Constituição analítica e programática. Com isso, é possível identificar a
existência de uma judicialização — desenho institucional democrático —
que não se confunde com o ativismo — invasão das funções legiferantes ou
executivas (Barroso, 2018).

130
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Nessa senda, pode-se seguir para a apresentação da segunda crítica,


que diz respeito à democracia. Humberto Ávila (2009) procura sustentar
que o produto da função legiferante (as leis, assim como a Constituição) é
resultado de um esforço democrático. Uma vez que os representantes do
Poder Legislativo são escolhidos pela maioria do povo, as leis represen-
tam a vontade majoritária da população. Nesse sentido, a interpretação
ou ponderação que modifica o texto da norma seria contrária ao Estado
Democrático de Direito, pelo fato de ofender parte da vontade do povo
uma vez legalmente estampada nos dispositivos normativos. Segundo ele,
tratar-se-ia de um abandono da hipótese legal, depreciação e desvaloriza-
ção da função legislativa.
A obediência às leis é fruto de uma decisão comum dos membros da
sociedade, como um reflexo democrático também. Ocorre que a demo-
cracia tem um componente liberal. O cidadão não é plenamente vincula-
do à lei, especialmente porque os seus direitos fundamentais constituem
um limite ao poder do Estado (até mesmo um limite contra o abuso do
ordenamento jurídico).
Por outro lado, a democracia depende, inevitavelmente, da converti-
bilidade de maiorias e minorias, tornando relativo o conceito de poder da
maioria. Isso significa que a democracia não pode ser resumida ao governo
da maioria. O governo da maioria, nesse caso, não passaria de uma manei-
ra abreviada de representar um governo cujo poder da maioria é limitado,
porque respeita o direito das minorias e os direitos fundamentais. Não é
um governo majoritário incondicional (Enterría, 2009, p. 73–74).
O Judiciário exerce, muitas vezes, uma posição contramajoritária, ao
defender o interesse das minorias frente a maioria estampada na lei (como
exemplos: Habeas Corpus 82.424; ADI 4.277 e ADPF 132; ADPF 291;
Recurso Extraordinário 670.422 e ADI 4.275; Mandado de Injunção
4.733 e ADO 26; ADI 5.543) — e o faz, inclusive, em respeito à Carta
Constitucional.
A judicialização e o papel contramajoritário da Corte coadunam com
o conceito de democracia. Afinal, como assinalado, o Judiciário é um
espaço de legitimação discursiva que coexiste com o posicionamento ma-
joritário do Legislativo. Os Tribunais são, nada mais nada menos, que

131
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

mais um espaço de discussão entre vários outros (Souza Neto, 2006) — o


que não significa que as Cortes pretendem usurpar o espaço de outras
arenas de discussão social. Esse posicionamento contramajoritário já é
universalmente aceito como forma de proteção dos direitos fundamen-
tais, dos canais de participação e das regras do jogo democrático (Barroso,
2018).
O Legislativo é aquele que, em primeiro lugar, apresentará a inova-
ção, introduzindo novas hipóteses legais ao ordenamento jurídico. Em
seguida, tais mandamentos serão aperfeiçoados, moldados ao caso con-
creto, perfectibilizando a interação entre o “dever-ser” e o “ser”, como
por exemplo a jurisprudência, em especial aquela destacada pela Corte
Constitucional que será capaz de vincular cidadãos e até mesmo a Admi-
nistração Pública (Freitas, 1998).
Com isso, pode-se avançar para a segunda crítica ao Pós-Positivis-
mo: aquela que sustenta que a indeterminação dos conceitos e a busca
(axiológica e principiológica) por seu significado mitigam a Lei e levam ao
excesso de símbolos normativos.
Marcelo Neves (1993) indica que a predominância da ponderação de
princípios acarreta uma desconstitucionalização. Segundo ele, isso signi-
fica a desjuridicização do ordenamento jurídico (em especial da Consti-
tuição), haja vista a generalização incongruente e inconsciente da juridi-
cidade.
Em paralelo, Habermas (1997) afirma que o excesso da ponderação
de valores e as discussões sobre as antinomias fariam o Direito perder a sua
rigorosidade, o que colocaria em risco o próprio sistema de direitos fun-
damentais, haja vista o seu amolecimento e ausência de critérios racionais
de ponderação.
Sobre esse aspecto, cabe destacar algumas questões. A primeira delas
é a de que a ponderação não é, nem deve ser, o único argumento utilizado
em uma decisão judicial. Robert Alexy (2011) ratifica que outros funda-
mentos e outras bases de justificação devem ser incluídos no discurso. Pa-
ralelamente, Atienza (2012) afirma a necessidade da ponderação — como
elemento de legitimação do discurso —, mas reforça que, apesar de sua
relevância, ela não é absoluta nem onicompreensiva.

132
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Ademais, certo grau de simbolismo é necessário. A generalidade e


abstração não é um requisito da linguagem jurídica propriamente dita,
mas, sim, um requisito da linguagem justa (Alvarez-Ciefuegos, p 1986, p.
46). O próprio Neves (1993) aponta que a força normativa da legislação
depende, em certa medida, das variáveis simbólicas.
Os conceitos jurídicos indeterminados são condições de sobrevivên-
cia das Leis, quanto mais da Constituição. Eles são encarados a todo o
momento (conceitos como interesse público, boa-fé, dignidade humana,
liberdade de expressão, privacidade, entre inúmeros outros). Eles dizem
respeito a uma questão jurídica, pois norteiam a atuação pública e limitam
a discricionariedade (Enterría, 2009).
Daí, pode-se passar a terceira crítica ao Pós-Positivismo: de que ele
não fornece limites claros para a interpretação judicial, fazendo com que
o processo de escolha do método hermenêutico seja arbitrário (Neves,
1996).
Todavia, a decisão deve ser fundamentada em valores normativos e
jurídicos, mesmo que sejam implícitos. Não se trata de dizer uma decisão
pautada no bom senso ou em valores particulares. Os argumentos traça-
dos devem ser coerentes e, em respeito à isonomia, é ideal que possam ser
aplicados em outras situações semelhantes. Por fim, além da aplicação dos
princípios materiais, os princípios instrumentais devem ser respeitados
(Barroso, 2003).
Portanto, alguns desses princípios instrumentais devem ser explici-
tados (Coelho, 2004)28. Eles guiam não a aplicação do direito material,
mas sim o processo decisório e a interpretação jurídica. O primeiro deles
é a unidade da Constituição: segundo ele, as normas constitucionais não
podem ser compreendidas isoladamente, mas como um único organismo
de regras e princípios que são mutuamente dependentes.
Há o princípio da correção funcional, indicando que não se pode chegar
a conclusões que perturbem a estrutura e a ordem estabelecidas para o
Sistema Jurídico. Dado que o ordenamento é coerente, sistematizado e

28 Eles serão apresentados a seguir e encontram respaldo no seguinte artigo: “Métodos e


princípios da interpretação constitucional: o que são, para que servem, como se aplicam”
(Coelho, 2004).

133
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

prestacional, as decisões prolatadas devem ser capazes de manter essa fun-


cionalidade jurídica do Sistema.
Há, ainda, o princípio da eficácia integradora e coesão social. Ele carrega o
significado de que o magistrado deve dar preferência aos critérios decisó-
rios que favoreçam a integração e unidade política. Afinal, a Constituição
deve ser capaz de manter uma coesão social e ela fará isso por meio da
práxis jurídica (Coelho, 2004, p. 29–33).
Há ainda outros princípios, como a vedação ao retrocesso, em especial
quanto aos direitos fundamentais, fazendo com que o Judiciário respeite
os direitos fundamentais e afaste do ordenamento jurídico as normas que
os violam. E outros já bem conhecidos, como os princípios da razoabilida-
de, interpretação conforme a Constituição, presunção de constitucionalidade das leis
e atos normativos, supremacia da constituição e efetividade (Barroso, 2003, p.
162–166 e 170).
Com isso conclui-se que o Neoconstitucionalismo se apresenta
não como uma corrente perfeita, mas como uma linha de compreensão
democrática (com respeito às maiorias e minorias), e que procura con-
ceder balizas claras, patentes e adequadas à interpretação dos conceitos
jurídicos indeterminados tão essenciais à sobrevivência do ordenamento
jurídico.

CONCLUSÃO

O Positivismo Jurídico surgiu com a intenção de limitar o poder ar-


bitrário e impedir um sistema injusto de privilégios à elite, por meio da
estrita vinculação do Estado a Leis imparciais e gerais. Ocorre que, com
o tempo, a teoria se provou insuficiente. Ela não foi capaz de preencher
adequadamente os requisitos de legalidade, legitimidade e justificação do
discurso jurídico. Na verdade, construiu-se a figura de um legislador ideal
e coeso, o “ser” foi reduzido ao “dever-ser” e a pretensão de uma teoria
pura do Direito impediu que os fenômenos sociais fossem adequadamente
captados pelo Sistema Jurídico.
O novo paradigma compreende que o Direito é dependente do seu
contexto sociocultural e que ele não pode ser aperfeiçoado sem o contato
com outros subsistemas extrajurídicos. A corrente aponta para uma or-

134
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

dem hierarquizada de valores, princípios e normas, admitindo a abertura


e inovação jurídicas por meio das práticas judiciais. Os preceitos funda-
mentais da Constituição são agora o norte da interpretação jurídica e da
construção do significado dos conceitos jurídicos indeterminados. Re-
conheceu-se que as duas dimensões do Direito (valorativa e autoritativa)
precisam caminhar juntas para tornar o Sistema Jurídico legitimado.
Nesse sentido, o Pós-Positivismo mantém a ordem democrática esta-
belecida na Constituição, pois se atenta para a vontade da maioria e para
a proteção e incentivo da minoria. Essa função apenas é possível quando
o Judiciário trabalha os valores e princípios dialeticamente, por meio da
refutação e justificação dos discursos.
Essa maleabilidade, tão vital para a sobrevivência do Sistema Jurí-
dico, é atingida porque a linguagem jurídica possui doses necessárias de
abstração, generalidade e indeterminação (sem as quais a própria função
legiferante seria inviabilizada) — o que permite que os mandamentos de
otimização sejam compreendidos à luz da realidade fática.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 3. ed. Porto Ale-


gre: Livraria do Advogado, 2011.

ARGUELHES, Diego W. Ellwanger e as transformações do Supremo


Tribunal Federal: um novo começo? Revista de Direito e Praxis,
Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 1.530–1.584, 2022.

ATIENZA, Manuel. El Derecho como argumentacion. 1. ed. Barce-


lona: Ariel Derecho, 2006.

ATIENZA, Manuel. O argumento de autoridade no Direito. Revista


Novos Estudos Jurídicos, Santa Catarina, v. 17, n. 2, p. 144–160,
2012. Disponível em: Portal de Periódicos da Univali. Acesso em: 3
jan. 2023.

ÁVILA. Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do


direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito

135
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

do Estado, Salvador, n. 17, 2009. Disponível em: Direito do Estado


| Direito Público da Cidadania | Portal Jurídico. Acesso em: 3 fev.
2023.

BARROSO, Luis R. A judicialização da vida. In: BECHA, Edmar et al.


130 anos: em busca da República. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

BARROSO, Luís R. Contramajoritário, Representativo e Iluminista:


Os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contempo-
râneas. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, 2018,
p. 2.171–2.228. Disponível em: Contramajoritário, Representativo
e Iluminista: Os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias
contemporâneas / Countermajoritarian, Representative, and Enli-
ghtened: The roles of constitutional tribunals in contemporary de-
mocracies | Barroso | Revista Direito e Práxis (uerj.br). Acesso em:
13 abr. 2023.

BARROSO, Luís R.; BARCELLOS, Ana P. O começo da história. A


nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito
brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
232, p. 141–176, abr./jun. 2003. Disponível em: O começo da his-
tória. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro | Revista de Direito Administrativo (fgv.br). Aces-
so em: 18 fev. 2023.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo, di-


reitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de


Sistema na ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002.

CHICOSKI, Davi. A legalidade administrativa e a crise do positivismo


jurídico. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 3, n. 1,
p. 254–283, 2016.

136
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

COELHO, Inocêncio M. Da hermenêutica filosófica à hermenêuti-


ca jurídica: fragmentos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

COELHO, Inocêncio M. Métodos e princípios da interpretação cons-


titucional: o que são, para que servem, como se aplicam. Revista
Direito Público, Brasília, v. 1, n. 5, p. 23–37, jul./ago./set. 2004.
Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direi-
topublico/issue/view/142 . Acesso em: 13 jan. 2023.

ENTERRÍA, Eduardo García de. Democracia, juices y control de la


administracíon. Madrid: Civitas, 2009.

FREITAS, Juarez. Interpretação Sistemática do direito em face das


antinomias normativas, axiológicas e principiológicas. 1994.
400 f. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de San-
ta Catarina, Florianópolis, 1994. Disponível em: https://repositorio.
ufsc.br/bitstream/handle/123456789/106382/94485.pdf?sequence=
1&isAllowed=y. Acesso em: 20 fev. 2023.

FREITAS, Juarez. Respeito aos precedentes judiciais iterativos pela Ad-


ministração Pública. Revista de Direito Administrativo, v. 211,
p. 117–123, 1998.

GARAPON, Antoine. O guardador de Promessas: Justiça e Demo-


cracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e vali-


dade. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HORBACH, Carlos B. A nova roupa do direito constitucional: neo-


-constitucionalismo, pós-positivismo e outros modismos. Revista
dos Tribunais, v. 859, p. 81–91, 2007.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 1998.

MENDONÇA, Eduardo B. F. A democracia das massas e a demo-


cracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajori-

137
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tária. 2014. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: Plataforma Sucupira (capes.
gov.br). Acesso em: 20 mar. 2023.

MORENTE, Manuel Garcia. Lecciones preliminares de filosofia.


México: Editorial Porrúa, 1980.

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucio-


nal. 3. ed. rev. e ampl. Tradução: Peter Naumann. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. Guarulhos:


Acadêmica, 1994.

NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionali-


zação fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das
estruturas reais de poder. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 33, n. 132, p. 321–330, 1996. Disponível em: Consti-
tucionalização simbólica e desconstitucionalização fática : mudança
simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de po-
der (senado.leg.br). Acesso em: 19 jan. 2023.

NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema


da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade
periférica e suas implicações na América Latina. Anuário do Mes-
trado em Direito, Recife, Universidade Federal de Pernambuco,
p. 313–357, 1993.

OLSEN, Ana C. L. Pluralismo no Ius Constitutionale Commune


Latino-Americano: Diálogos Judiciais sobre Direitos Humanos:
Diálogos Judiciais para Interpretação e Aplicação dos Direitos Hu-
manos. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2021.

OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da


vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2011.

PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e poder. Florianópolis: Tirant Lo


Blanch, 2019.

138
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

SCHELER, Max. Da reviravolta dos valores. Petrópolis: Vozes, 1994.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e demo-


cracia deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

STEIN, Ernildo. Mundo vivido: das vicissitudes e dos usos de um con-


ceito da fenomenologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “Ser e Tempo” (Martin Heide-


gger). Petrópolis: Vozes, 1988.

VIANNA, Luiz W.; BURGOS, Marcelo B.; SALLES, Paula M. Dezes-


sete anos de judicialização da política. Tempo Social — Revista de
Sociologia da USP, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 39–85, 2007. Dispo-
nível em: https://www.revistas.usp.br/ts/issue/view/997. Acesso em:
11 abr. 2023.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, n.


2, p. 441–464, 2008. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/
dspace/handle/10438/9674. Acesso em: 11 abr. 2023.

VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Derecho e Interpreta-


ción: Elementos de Teoria Hermenéutica del Derecho. Madrid:
Editoral Dykinson, 2007.

WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. 1. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2003.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1992.

WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teo-


ria geral dos “novos” direitos. In: WOLKMER, Antônio Carlos;
LEITE, José Rubens Morato. Os “novos” direitos no Brasil: na-
tureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2016.

139
OBSTÁCULOS E FALSOS
OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À
PESQUISA CIENTÍFICA
Lília de Sousa Nogueira Andrade29

INTRODUÇÃO

O conhecimento científico parte da tentativa de explicar a reali-


dade em si mesma. É retificável, segue um processo de construção e
reconstrução de um conjunto de informações que se adquire e se solidifica
com a experiência. O saber influencia nas decisões e nos comportamentos.
Muitas vezes traz segurança ao indivíduo e o habilita a ser mais livre nas
suas escolhas, contudo podem existir dificuldades na elaboração do saber
científico.
A existência de obstáculos em qualquer área da ciência é um
impedimento ao progresso da própria ciência. A palavra obstáculo tem
as seguintes definições no dicionário Aurélio (online, 2018): “1. é aquilo
que obsta ou impede; estorvo, impedimento; 2. barreira; 3. resistência a
que se opõe a uma força”. De imediato, a referência a um obstáculo nos
remete a definição de “barreira”, relacionado a um impedimento físico.

29 Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Mestra em


Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Penal e Processo
Penal. Professora. Advogada.

140
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Em uma visão poética seria “uma pedra no caminho”, portanto, algo fora
do indivíduo.
O conceito de obstáculo aqui considerado terá alusão a impedimento
de algo que não está às claras, mas às escondidas. Poderá haver dificul-
dade em reconhecer um obstáculo devido a sua imperceptibilidade. Por
presumir-se conhecedor da realidade, o homem é lento em constatar os
impedimentos, que são muitas vezes sutis, e outras, difíceis de serem per-
cebidos.
Bachelard (1996, p. 17), ao afirmar sobre os obstáculos epistemoló-
gicos, não os relaciona a aspectos externos: “E não se trata de considerar
obstáculos externos, [...] é no âmago do próprio ato de conhecer que apa-
recem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos”.
Assim, os obstáculos epistemológicos se dão no interior do indivíduo, é
necessária uma análise individual extraída da própria consciência do cien-
tista. Já os falsos obstáculos decorrem de ideias concebidas do meio exter-
no, de uma generalização indevida, que podem ou não ser consolidadas
interiormente.
Insta reconhecer que às vezes o conhecimento não é alcançado pela
comunidade científica devido à existência de obstáculos. Dessa feita, o
artigo tem como objetivo estudar os obstáculos e falsos obstáculos científi-
cos, elencando a ignorância como atitude; a não sujeição a críticas; e o não
reconhecimento da suscetibilidade ao erro, como obstáculos ao conheci-
mento. Estuda os falsos obstáculos como o senso comum e a religião. A
relevância desses aspectos se dá na existência de barreiras (com também
falsas barreiras), que se vencidas engrandecem o sujeito do processo de
conhecimento.

1. TEORIA DO CONHECIMENTO

Cabe tecer algumas considerações sobre a teoria do conhecimento.


Inicialmente, destaca-se a diferenciação entre gnosiologia e epistemologia.
Enquanto esta é o conhecimento estudado cientificamente, aquela é o es-
tudo da teoria do conhecimento de modo geral.
Na estrutura geral do conhecimento há a presença do sujeito, do ob-
jeto e do ato de conhecer. O sujeito mantém uma relação com o objeto a

141
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

ser conhecido e a relação entre eles decorre do processo de conhecimento.


Depois de conhecido o objeto passa a incorporar o próprio sujeito. Há
uma apreensão do objeto pelo sujeito. A teoria do conhecimento tem uma
ênfase no ato de conhecer, nos entornos que envolvem a relação sujeito-
-objeto.
Na antiguidade, Aristóteles (2006) considerava que o processo de co-
nhecimento passava primeiramente pelos sentidos. Os sentidos recebem
as qualidades do objeto como primeira fonte de conhecimento, e, em se-
guida, o intelecto as captura. Assim, a atividade da sensação concerne a
coisas particulares e a partir delas elabora o conhecimento referente aos
conceitos universais. Isso ocorre por uma experiência de indução. Depois,
com o conhecimento dos universais, ocorre o processo inverso, de dedu-
ção, com a afirmação do particular.
Kant provoca uma reviravolta quando direciona o conhecimento para
que seja visto a partir do sujeito, e não mais do objeto. Há uma superação
do pensamento tradicional: olhava-se para o objeto enquanto se deveria
partir das condições de possibilidade do sujeito para alcançar o objeto.
Caracteriza-se esse redirecionamento como transcendental.
No pensamento kantiano, o conhecimento é uma atividade cons-
trutiva do sujeito como resultado do trabalho das condições subjetivas e
manifestações da coisa em si. “Aqui o conhecimento não é visto como
uma reprodução de uma realidade qualquer, mas como uma constituição
apriorística do objeto pela subjetividade cognoscente” (Oliveira, 1989, p.
9). A princípio, a redefinição pode ser inovadora, mas desconsidera que
há conceitos objetivos, conhecimentos que não variam de acordo com a
subjetividade.
Em Husserl o centro da teoria do conhecimento é como alcançar a
objetividade. Investiga como o sujeito alcança a realidade exterior da sua
subjetividade. Não é simples descrição do que aparece sem uma decisão
sobre o que o ente é em sua essência e em seu ser, mas o esclarecimento
dos entes em sua essência, em seu sentido e em seu ser (Oliveira, 2014, p.
9). Ocorre a análise de como o objeto se dá na subjetividade, nas vivên-
cias intencionais do sujeito. O sujeito tem formas intencionais diferentes,
acarretando formas distintas de dar-se dos objetos.

142
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Para Hessen o conhecimento aparece como uma relação entre o su-


jeito e o objeto. Nessa relação sujeito e objeto permanecem eternamente
separados e ao mesmo tempo possuem uma relação recíproca. A correla-
ção entre sujeito e objeto é determinada na medida em que o sujeito só é
sujeito para um objeto e o objeto só é objeto para um sujeito. Eles são um
para o outro. O sujeito tem como função aprender o objeto e em corres-
pondência o objeto é apreendido pelo sujeito (Hessen, 2003, p. 20).
A partir da teoria do conhecimento elencado pode-se abordar a dife-
rença do conhecimento comum e do conhecimento científico.

1.1 CONHECIMENTO COMUM E CONHECIMENTO


CIENTÍFICO

Cabe distinguir o que diferencia o conhecimento comum do conhe-


cimento científico. O senso comum, como também pode ser chamado
o conhecimento comum, não passa por experiências e métodos que lhes
deem sustentação. Apesar disso, muitas vezes encontra uma solidez que
nem o conhecimento científico alcança.
Para Marques Neto (2001), o conhecimento comum “constitui-se
sobre a base da opinião, sem uma elaboração intelectual sólida”. O autor
destaca algumas características do conhecimento comum: afirma que é
assistemático, não tem nexo com os outros conhecimentos, não consti-
tuindo um corpo de explicações lógicas e coerentes; também é ambíguo,
pois pode reunir com o mesmo nome conceitos de realidades diferentes; é
essencialmente empírico, pois baseado no senso comum permanente, em
dados perceptivos, não faz abstrações, não constrói teorias explicativas; é
um conhecimento casual, na medida em que não decorre de experiências
e métodos, mas de circunstâncias. Esclarece o autor que o conhecimento
comum não implica em conhecimento falso ou errôneo. São muitas vezes
verdadeiros, apenas falta a eles uma sistematização racional, ordenada e
metódica, e também um posicionamento crítico do ato de conhecer.
O conhecimento comum “não se distingue do conhecimento cientí-
fico nem pela veracidade nem pela natureza do objeto conhecido: o que os
diferencia é a forma, o modo ou o método e os instrumentos do ‘conhe-
cer’” (Lakatos; Marconi, 2003, p. 75).

143
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

No que se refere ao conhecimento científico, Lakatos (2003, p. 79) o


reconhece como real (porque lida com ocorrências ou fatos), contingente
(pois suas hipóteses são verificadas através da experiência), sistemático
(formado logicamente por um sistema de ideias), verificável (as afirmações
que não podem ser comprovadas não pertencem à ciência), falível (não
é absoluto), e por isso é aproximadamente exato (novas técnicas podem
reformular uma teoria existente).
Ressalte-se que apesar das diferenças há uma comunicação entre o
conhecimento científico e o senso comum. Como afirma Hugo Segundo
(2019, p. 32), “esses saberes dialogam, não sendo raro que concepções do
senso comum sejam examinadas e aprofundadas pela ciência, em vez de
serem simplesmente desmentidas por ela”.
Assim, o conhecimento científico é aquele provado, que deriva da
experimentação. Segundo Chalmes (1993, p. 23) “As teorias científicas
são derivadas de maneira rigorosa da obtenção dos dados da experiência
adquiridos por observação e experimento.” Não há espaço para algo que
não seja fundamentado. “Opiniões ou preferências pessoais e suposições
especulativas não tem lugar na ciência. A ciência é objetiva” (Chalmes,
1993, p. 23).
Marques Neto (2001, p. 46) é mais preciso ao afirmar que:

O conhecimento científico se constitui rompendo com o conhe-


cimento comum, e não aprimorando-o ou continuando-o linear-
mente. Não basta, com efeito, uma sistematização do senso co-
mum para termos uma ciência. A distinção entre esses tipos de
conhecimento não é apenas de grau. Há profundas diferenças qua-
litativas que os caracterizam como formas cognitivas que pratica-
mente nada tem em comum.

É o resultado de um método racionalmente preestabelecido, de modo


que “as teorias científicas resultam sempre de um processo de constru-
ção, em que a razão tem um papel essencialmente ativo” (Marques Neto,
2001, p. 47). Não é, portanto, um conhecimento superficial, tendo em
vista que “toda teoria científica se caracteriza por expressar um conheci-

144
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mento aproximado, retificável, e não um simples reflexo dos fatos” (Mar-


ques Neto, 2001, p. 47).
Assim, para a produção do conhecimento científico há vários méto-
dos resultantes de experiências e pesquisas que imprimem a falseabilidade
de suas asserções, enquanto o conhecimento comum reproduz aconteci-
mentos ratificados que constituem um consenso sobre casos.

2. OBSTÁCULOS AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Aquilo que inviabiliza ou prejudica o conhecimento científico é tido


como um obstáculo epistemológico. Cabe enfatizar que o impedimento
não é fácil de ser percebido, pois o homem às vezes não é capaz de per-
ceber o que o impede de avançar. Conquanto, à medida que percebe, é
impulsionado a ultrapassar o obstáculo e ir além. Dessa forma, agrega a
sociedade com o conhecimento experimentado e engrandece a si, pois
soube antes dar um passo para trás.

2.1 IGNORÂNCIA COMO ATITUDE

O conhecimento científico é resultado de uma postura de esforço,


de experiências e de erros. A busca do conhecimento exige um agir, uma
postura positiva. Em contrapartida, a inércia estabelece a ignorância. A
ignorância é o estado de quem não tem ciência de algo, seja por um falso
discernimento seja por falta de conhecimento. Tanto o sujeito pode de
forma deliberada não se propor a conhecer como o sujeito pode não ter o
conhecimento de algo.
Aftalion (2004, p. 32) entende que o conhecimento não se dá de for-
ma gratuita. É o resultado de uma disposição de conhecer, de uma atitude
cognoscitiva. O contrário a essa busca pelo conhecimento é a “ignorância
como atitude”. Essa é definida como a negação do desconhecido. Não há
uma inquietude do homem pelo conhecer, pois se não há algo desconhe-
cido, não há nada por conhecer. Assim, o homem fica fechado em seu
mundo. Não significa a correspondência com uma pessoa que é tida por
ignorante, mas se refere àquela que apesar de possuir conhecimentos pensa
que não há nada que se conhecer, assume a ignorância como atitude. Um

145
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

exemplo citado por Aftalion é a atitude dos físicos da época de Galileu que
ridicularizaram suas experiências sobre a queda dos corpos e se negaram
a observar as luas de Júpiter pelo telescópio, baseados na autoridade de
Aristóteles.
O progresso da ciência se dá com rupturas entre um conhecimento
estabelecido e o anunciado. Esse processo ocorre repetidas vezes em for-
mas cíclicas, o conhecimento já sedimentado acaba sendo substituído pelo
novo. O bom pesquisador reconhece que não tem a ciência perfeita dos
conceitos estabelecidos, pelo contrário, move-se por um impulso de busca
pelo saber.

2.2 NÃO ESTAR SUJEITO ÀS CRÍTICAS

Uma das características do conhecimento científico é a presença de


um método sistemático com produção de resultado que traga inovação ou
retifique um conhecimento científico. A solidez do conhecimento produ-
zido se dá à medida que é experimentado.
Depois de devidamente verificado, sujeitar o conhecimento a críticas
permitirá robustecê-lo. Temos acesso apenas à parte da realidade que é
maior e mais complexa do que a compreensão humana. Assim, é natural
que as impressões sejam imperfeitas, provisórias, e delas se extraiam no-
vas análises que a levem a aprimorar o exame inicial (Machado Segundo,
2014, p. 4).
Diante de uma ideia ou teoria científica, expô-la a críticas iria torná-
-la mais forte e robustecida. Popper (2001, p. 25–26) propõe a teoria do
falibilismo. Para ele, cada teoria deve ser testada tão rigorosamente quanto
seria possível testá-la. Um exame rigoroso deve ser feito na tentativa de
descobrir as fraquezas existentes naquilo que está a ser examinado. Colo-
car a teoria a prova é submetê-la à crítica e fazer com que opere todos os
meios que existam para testá-la, o que não só permite descobrir as teorias
falsas, como também possibilita aprender por que uma teoria está errada.
Ao se verificar o porquê de a teoria estar equivocada se formula com mais
rigor um novo problema, que é ponto de partida para um novo ciclo.
Do problema inicial são extraídas respostas que permitem formular com

146
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

precisão outro problema, e segue-se no desenvolvimento de afirmações


científicas (Popper, 2001, p. 31).
Sujeitar uma teoria à crítica fortalece os enunciados científicos que
decorrem dela ou evidencia a falibilidade de seus enunciados. Com efeito,
ao se deparar com a possibilidade de falhas de um argumento científico,
“não será o objetivo pessoal do cientista e muitas vezes também o verda-
deiro cientista tentará defender do falibilismo uma teoria na qual deposi-
tou grandes esperanças” (Popper, 2001, p. 26).
Habilita o cientista a progredir cientificamente a subordinação às
críticas. Nesse sentido, dispõe Rescher (2003, p. 23) que “Nothing is
more significant for and characteristic of our human cognitive situation
than our ability to step back from what we deem ourselves to know and
take a critically evaluative attitude toward it.”

2.3 O NÃO RECONHECIMENTO À SUSCETIBILIDADE


AO ERRO

É próprio do homem o erro. Como o sujeito que desenvolve o


conhecimento científico é o homem, podemos deduzir que o conhecimento
científico é suscetível de ser equivocado. Esse reconhecimento não deve
ser esquecido ou tido como sem importância para o desenvolvimento do
conhecimento.
Segundo Rescher (2003, p. 17), inescapáveis fatos relacionados ao co-
nhecimento devem ser considerados. Inicialmente, o autor destaca que
o conhecimento é imperfeito e que nós deveríamos estar conscientes da
nossa suscetibilidade ao erro. Nosso conhecimento está envolvido em er-
ros, não apenas os que decorrem de nossas ações, mas também os que
decorrem de nossas omissões. Não importa quão cuidadosamente nos
propormos a implementarmos uma ideia, algo irá escapar. Destaca Re-
scher (2003, p. 17) que “we do — and should — recognize that no matter
how carefully we propose to implemente the idea of membership in our
‘body of accepted knowledge’, in practice some goats will slip in along
the sheep.”

147
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Esse conhecimento imperfeito conduz a uma “lacuna epistêmica”


(Rescher, 2003, p. 17), que é o espaço entre o que nós almejamos alcançar
em comparação com as escassas evidências com que baseamos algo.
Decorre, assim, o reconhecimento do falibilismo científico, aqui não
como resultado de uma sujeição crítica, mas do reconhecimento do erro.
O nosso conhecimento científico contém uma grande quantidade de im-
precisão, fato que deveríamos reconhecer. Relembra o autor (Rescher,
2003) que um cientista do ano 3000 irá pensar que o conhecimento de
hoje é tão imperfeito quanto nós pensávamos que era a ciência de 300 anos
atrás. O progresso científico traz não apenas novos fatos, mas também a
forma de ver os velhos fatos.
Outro aspecto traçado por Rescher (2003, p. 18) são os “pontos ce-
gos”. Eles decorrem dos fatos que sabemos que existem, mas não sabemos
numerá-los. Da mesma forma que sabemos que algumas questões estão
sem resposta, mas não sabemos quais são essas respostas faltantes. Reco-
nhecemos a incompletude de nosso conhecimento, mas não conseguimos
identificar essa incompletude individualmente.
Por fim, Rescher (2003, p. 18–19) destaca como as mais seguras das
previsões podem cair no erro. Seguramente podemos prever o custo de um
projeto de construção ou a data de concretização de uma tarefa, no entanto,
nossas previsões nem sempre acertam. Por mais que façamos essas previsões
cuidadosamente, em algum momento iremos errar. O exemplo mais co-
mum é a previsão do tempo, que mostra como será a metodologia daquele
dia, mas subestima uma mudança de temperatura de um dia para o outro de
aproximadamente dez por cento. O autor conclui evidenciando o paradoxo
sobre o conhecimento: o que muitas vezes aceitamos como conhecimento
científico acaba sendo reconhecido como um erro desmascarado; afirma
nos seguintes termos: “For much of what we see and accept as knowledge
— has to be acknowledged as being little more than yet unmasked error”
(Rescher, 2003, p. 19). Os recursos do conhecimento nunca permitem
representar com adequação a condição real dos fatos.
Portanto, a suscetibilidade ao erro nos permite evidenciar a falha do
conhecimento científico, que é sempre construído e que muitas vezes te-
mos como verdadeiro e dotado de certeza.

148
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

3 OS FALSOS OBSTÁCULOS AO CONHECIMENTO


CIENTÍFICO

3.1 O CONHECIMENTO GERAL

Bachelard (1996, p. 65) afirma que “a falsa doutrina do geral que do-
minou de Aristóteles a Bacon” é um obstáculo ao conhecimento cien-
tífico. Conduz à ideia de que “a generalidade imobiliza o pensamento”,
caracterizando que a ciência do geral obstrui a pesquisa científica.
O autor é enfático ao afirmar que as verdades primeiras das várias
áreas do conhecimento científico e “a busca apressada da generalidade leva
muitas vezes a generalidades mal colocadas, sem ligação com as funções
matemáticas essenciais do fenômeno”. Constata que “essas leis gerais blo-
queiam atualmente as ideias.” (Bachelard, 1996, p. 71).
Um exemplo específico trazido pelo autor é o conhecimento geral em
uma aula de mecânica em que se estuda a queda dos corpos. A forma geral
de que “todos os corpos caem sem exceção” (Bachelard, 1996, p. 67), de
certo modo, obstaculizaria o desenvolvimento de descobertas científicas.
Deixa claro que “essa forma geral bem constituída pode entravar o pen-
samento” (Bachelard, 1996, p. 67), afirmando que “a lei é tão clara, tão
completa, tão fechada, que não se sente necessidade de estudar mais de
perto o fenômeno da queda. Com a satisfação do pensamento generali-
zante, a experiência perdeu o estímulo” (Bachelard, 1996, p. 68).
Para o autor, diferentemente ocorre com a experiência do tubo de
Newton no vácuo que permite constatar que todos os corpos caem à mes-
ma velocidade. Chega-se então a um conhecimento útil, baseado em uma
experiência empírica. São os termos do autor: “Ao proceder à experiência
no vácuo, com a ajuda do tubo de Newton, chega-se a uma lei mais rica:
no vácuo, todos os corpos caem à mesma velocidade. Este é um enunciado
útil, base real de um empirismo exato” (Bachelard, 1996, p. 67).
No entanto, não se pode afirmar que o conhecimento geral é um
obstáculo ao conhecimento, como afirma Bachelard. Pelo contrário, para
aquele que tem o espírito cientista, um espírito investigador que lhe é
próprio, não se limita ao conhecimento geral. Na definição sobre o que é
ciência, Chalmers (1993, p. 23) afirma que “A ciência é baseada no que

149
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

podemos ver, ouvir, tocar etc.”, ou seja, é a partir do conhecimento geral


que se parte para um conhecimento que é experimentado. Já não é ver-
dadeira a ideia de que “com a satisfação do pensamento generalizante, a
experiência perdeu o estímulo” (Chalmers, 1993, p. 72).
O verdadeiro cientista não se satisfaz com o conhecimento media-
no dos acontecimentos do mundo. É próprio dele buscar e desenvolver o
“como” e “porquê” tal fato se realiza. As leis gerais não bloqueiam, como
diz Bachelard, ao contrário, servem de base de conhecimento e impulsio-
nam o cientista que deseja desenvolvê-las.
Vejamos o conhecimento geral de que “todos os raios luminosos se
propagam em linha reta” (Bachelard, 1993, p. 66). Esse conhecimento jun-
tamente com as habilidades de um cientista permitiu que se desenvolves-
se a luz elétrica. Foi esse conhecimento inicial que permitiu que Thomas
Edison inventasse a lâmpada. O desafio era tentar manter um filamento
incandescente durante a transmissão da corrente elétrica. Nos seus experi-
mentos, depois de operar vários materiais, ao utilizar um filamento fino de
carvão a alto vácuo, Thomas Edison conseguiu que o filamento brilhasse,
mas não queimasse com a passagem da eletricidade. Chegar ao resultado
final só foi possível depois de muito esforço e também porque houve um
conhecimento geral inicial. Para aquele que é verdadeiramente interessado
em conhecer, o conhecimento geral o impulsiona para o desenvolvimento
de aprimoramentos e inovações do que já está posto no mundo.
Além disso, outro aspecto deve ser considerado. Nosso cérebro é
formado por células chamadas de neurônios, as quais transmitem as in-
formações através dos sinais elétricos e químicos passados de neurônio
a neurônio através das sinapses. Quanto maior o número de sinapses,
melhor ele opera.
A neurociência se ocupa em estudar o sistema nervoso e busca des-
vendar como o cérebro funciona. Sabendo que “A ciência é tão embrio-
nária que muitas questões ainda estão sendo discutidas, e novas pesquisas
atualizam nosso conhecimento sobre o cérebro praticamente a cada se-
gundo.” (Waytz; Mason, 2014, p. 72).
Em um estudo colacionado na revista Harvard Business Review Brasil
(Waytz; Mason, 2014, p. 71–79), foi identificado no cérebro cerca de 15 redes

150
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

e várias sub-redes cerebrais. Das sub-redes existentes há a chamada padrão. A


sub-rede padrão é quando o cérebro “trabalha” quando estamos relaxados.
Mesmo quando não há nenhum pensamento específico, essa região do cére-
bro ainda permanece ativada. Os cientistas consideram que “dispor de tempo
livre sem pensar em nada é fator importante (e subutilizado) para inovações
revolucionárias” (Waytz; Mason, 2014, p. 73). Isso permitiria que as mentes
tivessem ideias inovadoras. O momento “Eureka” surge na sub-rede padrão
ou quando se desiste de resolver um problema (Waytz; Mason, 2014).
Assim, não se pode desprezar que as ideias gerais de alguma forma
contribuam para as inovações científicas. A partir de um problema, com
um conhecimento preliminar seja específico ou geral sobre algo, o cérebro
funciona para solucionar a questão científica. Muitas vezes, a junção de
ideias simples e gerais permite que venha à luz o momento para a resolu-
ção de uma indagação precisa.
O cérebro recebe informações e armazena. Quanto maior o número
dessas informações há um melhor desempenho na medida em que elas se
interconectam. A partir daquele conhecimento inicial se desencadeiam
novas informações. Desse modo, o conhecimento inicial, que podemos
chamar de geral, permite que as informações sejam guardadas com maior
propriedade e que delas se desencadeiem outras.
Nesse ponto cabe ressaltar que para os verdadeiros cientistas o conhe-
cimento geral não emperra o conhecimento científico. Para aqueles que
buscam conhecer e desenvolver a ciência, nenhum conhecimento geral
implicaria em um obstáculo.

3.2 RELIGIÃO

Tem-se a ideia de que a religião é um empecilho ao desenvolvimento


científico. Essa concepção provavelmente decorre de eventos específicos
que foram contados de forma equivocada no decorrer da história.
Um desses casos é de Galileu Galilei30, que é apresentado como um
herege e “muitas pessoas, especialmente estudantes, pensam que Galileu

30 O caso Galileu tomou proporções desarrazoáveis, que criam até os dias de hoje a ideia
que a Igreja dificulta o conhecimento científico. Galileu Galilei trouxe contribuições impor-

151
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

foi um ‘mártir’ da ciência e que a Igreja foi o carrasco e inimiga do pro-


gresso humano e da ciência.” (Aquino, 2018). No entanto, ele não foi
torturado e nem morto. De fato, foi condenado por ter violado uma ins-
trução papal, mas sua sentença foi passar o resto da vida em uma prisão
domiciliar em uma casa de campo nos arredores de Florença. Desse e de
outros casos na história, tem-se a conclusão de que o cristianismo é ini-
migo do progresso científico.
Talvez o que pese na relação entre a religião e a ciência são aspectos
éticos dos quais a religião não se desvencilha por estar relacionada com a
fé — o que não impede o favorecimento e o progresso da ciência, desde
que respeite o aspecto ético-moral.
Ademais, os progressos científicos ao longo da história foram desen-
volvidos por muitos religiosos. Podemos citar sacerdotes que avançaram
em estudos científicos. Isso revela o interesse nos mistérios do universo e
na busca por entendê-los. Conduziram sacerdotes cientistas a dedicação
à pesquisa científica, garantindo que “o relacionamento entre a igreja e
a ciência foi de amizade mais do que de antagonismo e desconfiança.”
(Woods, 2014, p. 64).
Um grande cientista religioso foi Francis Bacon (1214–1218), fran-
ciscano que deu destaque ao empirismo como método de conhecimento
científico. Descreve o método científico como um ciclo repetido de ob-
servação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação indepen-
dente. Teve um admirável trabalho no campo da matemática, com a ideia
de que é a matemática que permite o acesso à ciência, além de propor-
cionar avanços nos estudos da óptica que posteriormente possibilitaram o
desenvolvimento dos óculos.
Outro cientista que se destacou na história foi Giuseppe Mercalli
(1850–191), sacerdote italiano que contribuiu para a avaliação de inten-

tantes no campo da astronomia e da física, desenvolvidas a partir do sistema copernicano.


A discussão se deu com a objeção da Igreja em aceitar o sistema copernicano como modelo
verdadeiro sem evidências conclusivas, devendo ser exposto como um modelo teórico. A
celeuma foi prejudicada ainda mais com a afirmação de Galileu que os versículos da Sagrada
Escritura deveriam ser reinterpretados, uma vez que o sistema apresentado parecia contra-
dizer certas passagens da Escritura (Woods, 2014).

152
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

sidade dos sismos. Seus estudos em sismologia permitiu criar um sistema


de medição que logo foi conhecido como Mercalli, utilizado para medir
a intensidade dos terremotos segundo os danos materiais. Também teve
importante contribuição pela publicação de um sistema de classificação de
erupções vulcânicas. A sua vida sacerdotal juntamente com seus trabalhos
científicos evidenciam que a religião não é um obstáculo, mas uma opor-
tunidade de estudar a criação de Deus.
Para os religiosos, a crítica racionalista que insiste na negação de qual-
quer conhecimento que não seja fruto da razão não condiz com a moral
cristã. Além da razão humana, existe a fé (João Paulo II, 1988). As duas
andam juntas, “o mundo e o que nele acontece, assim como a história e
as diversas vicissitudes da nação, são realidades observadas, analisadas e
julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este
processo” (João Paulo II, 1998, p. 12).
É a partir dessa união da fé com a razão que se pode afirmar a harmonia
da ciência com a religião. No entanto, muitas vezes a fé é considerada iso-
ladamente no tocante ao conhecimento popular. Por exemplo, tem-se a
ideia de que a teoria do Big Bang é incompatível com o relato bíblico do
Gênesis. Dentre os criacionistas é popular a crença de que o mundo foi
criado tal e qual descrito no Gênesis. Sem ter um conhecimento teológico,
o senso comum incompatibiliza as teorias. O conhecimento popular não
sabe que “O livro do Gênesis descreve de maneira figurada esta condição
do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo
no centro a ‘árvore do bem e do mal’” (João Paulo II, 1998, p. 14).
Desse modo, João Paulo II afirmou que é possível a acreditar na evo-
lução e também na participação de Deus nesse processo. Para isso é ne-
cessário reconhecer que a causa primeira que deu origem à evolução seja
divina. O pontífice declarou que “novos conhecimentos científicos levam
a não considerar mais a teoria da evolução mera hipótese” (João Paulo II,
2004). No entanto, não se refere a aprovar todas as teorias da evolução.
Não deve ser considerado em termos puramente científicos , mas insiste na
“importância da filosofia e da teologia para uma correta compreensão do
‘salto ontológico’ para o humano” (João Paulo II, 2004), enquanto criado
à imagem de Deus. Dessa forma, é possível admitir a compatibilidade da

153
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

teoria da evolução com o criacionismo desde que considere que Deus


criou o objeto primeiro.
O padre Georges Lemaître (1894–1966) trouxe contribuição para a
comunidade científica ao estudar o início da expansão do universo. Acre-
ditava-se que o universo era estático conforme o modelo cosmológico de
Newton, e que também era acreditado por Einstein. O padre foi o pri-
meiro a formular a lei de proporcionalidade entre distância e velocidade
de afastamento das galáxias, e nela propõe uma evolução a partir de um
“átomo primitivo”. Seus estudos desenvolvem a ideia de que o universo
estava comprimido num único átomo chamado de “ovo cósmico”, que se
explodiu sob a forma de uma super-radioatividade se fragmentando em
pedaços sucessivos. A fragmentação se sucede caracterizando um universo
em expansão até os dias atuais. Posteriormente, Georges Gamov desen-
volveu uma nova descrição do começo do universo nomeada de Big Bang,
sendo inequívoco que os pilares dessa teoria já pertenciam à cosmologia
do padre Lemaître:

Em 1927 o padre jesuíta belga, cosmologo, Geroge Lamaitre con-


firmou a expansão do Universo, dando uma solução dinâmica para
as equações de Alberte Einstein, baseando-se em dados sobre o
desvio para o vermelho da luz de galáxias distantes. Essa descoberta
foi confirmada dois anos depois pelo físico norte americano Edwin
Humble, que chegou a conclusão que a expansão do universo está
se acelerando. O padre George Lamaitre foi um dos gênios de uma
geração que incluiu outros grandes físicos como Maxwell, Eins-
tein, Heisenberg, Planck, Bohr, Schrodinger e Godel. (Aquino,
2012, p. 59).

Ademais, muitas conquistas científicas foram realizadas por padres


jesuítas:

Contribuíram para o desenvolvimento dos relógios de pêndulo,


dos pantógrafos, dos barômetros, dos telescópios refletores e dos
microscópios, e trabalharam em campos científicos tão variados
como o magnetismo, a ótica e a eletricidade. Observaram, em

154
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

muitos casos antes de qualquer outro cientista, as faixas coloridas


na superfície de Júpiter, a nebulosa de Andrômeda e os anéis de Sa-
turno. Teorizaram acerca da circulação do sangue (independente
de Harvey), sobre a possibilidade teórica de voar, sobre a maneira
como a lua influi nas marés e sobre a natureza ondulatória da luz.
Mapas estrelares do hemisférios sul, lógica simbólica, medidas de
controle de enchentes nos rios Pó e Adige, introdução dos sinais
mais ou menos na matemática italiana- tudo isso foram realizações
jusuíticas, e cientistas influentes como Fermat, Huygens, Leibnitz
e Newton não era, os únicos a ter jesuítas entre os seus correspon-
dentes mais apreciados. (Aquino, 2012, p. 94).

Poderiam ser citados avanços científicos e outras realizações de re-


ligiosos que contribuíram para o avanço da ciência. Desde que não seja
violado da moral cristã, todo campo científico pode ser explorado e de-
senvolvido, de modo que a religião pode contribuir para o conhecimento
científico, pois onde há a fé também há o desejo de conhecer como fun-
ciona o mundo construído por Deus.

CONCLUSÃO

Um obstáculo epistemológico é algo muitas vezes difícil de ser perce-


bido. Tal fato impede o acesso ao conhecimento. Alguns obstáculos foram
desenvolvidos no artigo. A princípio, a ignorância, em que se pensa que
não há nada a que se conhecer. Foi também mencionada a não sujeição
a críticas, em que o conhecimento não é experimentado, impedindo o
fortalecimento do que é examinado. E, como o erro é próprio do ser hu-
mano, o seu não reconhecimento é outro obstáculo que irá conduzir a um
conhecimento imperfeito.
Foram também destacados falsos obstáculos, como o conhecimento
geral e a religião. O conhecimento geral é um falso obstáculo na medida
em que serve de base para o conhecimento científico e não impede que o
cientista avance em suas pesquisas. A religião também é um falso obstá-
culo pois, ao contrário do que se pensa, é possível caminhar com a ciência
desde que não venha a ferir a moral cristã. Nessa perspectiva, verifica-se a

155
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

importância de se reconhecer os obstáculos e falsos obstáculos para supe-


rá-los e facilitar o processo de conhecimento.

REFERÊNCIAS

AFTALIÓN, Enrique R.; VILANOVA, José; RAFFO, Julio. Introduc-


ción al derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2004.

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Ciência e fé em harmonia. 6.


ed. Lorena: Cléofas, 2012.

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. O caso Galileu Galilei. Dis-


ponível em: https://cleofas.com.br/o-caso-galileu-galilei-parte-1/.
Acesso em: 23 nov. 2018.

ARISTÓTELES. De Anima. Tradução de Maria Cecília Gomes dos


Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006.

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contri-


buição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Con-
traponto, 1996.

CHALMERS, Alan. O que é a ciência afinal? Brasília: Editora Brasi-


liense, 1993.

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Comunhão e ser-


viço: a pessoa humana criada à imagem de Deus. 2004. Disponível
em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_
documents/rc_con_cfaith_doc_20040723_communion-steward-
ship_po.html#*. Acesso em: 23 nov. 2018.

DICIONÁRIO AURÉLIO ONLINE. Disponível em: https://www.di-


cionariodoaurelio.com/. Acesso em: 23 nov. 2018.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins


Fontes, 2003.

HUGO SEGUNDO, Brito Machado. Epistemologia falibilista e teoria


do Direito. RIDB, ano 3, n. 1, p. 197–260, 2004. Disponível em:

156
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2014/01/2014_01_00197_00260.
pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.

JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Fides et Ratio: sobre as re-
lações entre fé e razão. 14 set. 1988. Disponível em: http://w2.va-
tican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_
enc_14091998_fides-et-ratio.html. Acesso em: 23 nov. 2018.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do Direito: Con-


ceito, objeto, Método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A filosofia na crise da modernida-


de. São Paulo: Loyola, 1989.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ontologia em debate no pensa-


mento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2014.

POPPER, Karl. A vida é aprendizagem. Epistemologia evolutiva e so-


ciedade aberta. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 2001.

RESCHER, Nicholas. Epistemology: an introduction to the theory of


knowledge. New York: State University of New York Press, 2003.

WAYTZ, Adam; MASON, Malia. Seu cérebro em funcionamento. O


que uma nova abordagem da neurociência pode nos ensinar sobre
administração? Harvard Business Review Brasil.

WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civili-


zação ocidental. 9. ed. São Paulo: Quadrante, 2014.

157
OS IMPACTOS DA FORMAÇÃO
CONTINUADA EM MATEMÁTICA
PARA A CONSTITUIÇÃO DA
IDENTIDADE DO DOCENTE
Vicente Henrique de Oliveira Filho31
Gilberto Tavares dos Santos32

INTRODUÇÃO

O ambiente social atual exige estabelecer atitude crítica e reagente


dos cidadãos, no que se refere a reconhecer e a tratar os problemas surgi-
dos, a fim de que as possíveis respostas sejam apresentadas da forma mais
adequada possível. Para que essas respostas sejam elaboradas, faz-se neces-
sário buscar caminhos sistemáticos que promovam discussão, reflexão e
praticidade. A escola é o local para promover tais discussões, já que, no seu
espaço, ocorrem os processos formais de ensinar e aprender. É preciso que
tais processos sejam discutidos e aprimorados para que a escola mantenha
o seu propósito vanguardista e agregador de conduzir a sociedade a viver
de forma equilibrada e participativa.

31 Doutor em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PU-
C-SP), com área de concentração em Tecnologias e Meios de Expressão em Matemática.
32 Doutor em Engenharia de Produção e professor associado da Escola de Administração da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

158
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Não obstante a importância da escola enquanto agente de formação e


conexão entre os cidadãos, o seu papel precisa ser revisto continuamente.
Pede-se, na atualidade, por exemplo, que a escola abandone um compor-
tamento tradicional caracterizado por uma forma de ensinar automática,
pouco reflexiva e dissociada da realidade vivencial dos aprendizes. Por ve-
zes, os conhecimentos são repassados “para frente”, encerrando-se a tarefa
em si mesma, perdendo-se a oportunidade de promover discussão, refle-
xão e aprendizado eficaz. Para enriquecer o seu papel, é preciso estimular
a escola a melhor contribuir para a preparação dos discentes, a fim de que
eles sejam capazes de interpretar o mundo em que vivem e estabeleçam
posicionamentos associados às questões que lhe estão proximamente re-
lacionadas. Em suma, precisa-se buscar uma melhor conexão entre teoria
e prática.
Porém, para se rever o papel da escola, é preciso reavaliar as partici-
pações dos sujeitos com ela envolvidos. Para que se possa pensar na me-
lhor preparação do discente é preciso articular a formação do docente.
Para isso, faz-se necessário que os docentes sejam desafiados a rever suas
práticas pedagógicas para acompanhar os avanços surgidos. Ou seja, a re-
lação “aprendizado-docente-ensino-discente” precisa ser reconhecida
conscientemente pelos seus entes para que se possa pensar em inovar e
melhorar. A identidade docente pode ser entendida como a convergência
e interação entre o que o docente é, como sujeito cognoscente, e o que
faz, como agente social, no espaço profissional e particular, estabelecendo
uma tripla relação: pensar-sentir-agir (Moita, 2013).
Este artigo tem o objetivo de compreender os impactos da formação
continuada em matemática na constituição da identidade profissional em
um grupo de docentes que atuam no ensino fundamental da educação
básica.

1. FORMAÇÃO CONTINUADA DO DOCENTE: UM


OLHAR DIRECIONADO

A formação de professores durante muito tempo foi considerada ape-


nas como o processo de formação inicial. Entretanto, percebeu-se que a
formação do professor carece de ser continuada e aperfeiçoada, haja vista

159
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

a necessidade de se associar a educação à sociedade de uma forma siste-


mática e permanente. A formação não deve centrar-se exclusivamente na
fase inicial, pois surge a perspectiva da atualização, aperfeiçoamento de
conhecimento e técnicas como imperiosas para que a sociedade seja aten-
dida nas suas demandas de discussão, reflexão e qualificação. Além disso,
a formação inicial deixa lacunas, visto que o conhecimento é dinâmico e
carece ser aprimorado no decorrer do tempo. Por outro lado, a formação
da identidade profissional é um processo contínuo e inacabado. O pros-
seguimento desse aprimoramento ocorre por meio de cursos de formação
continuada para que possa atuar de forma contextualizada (Leone; Leite,
2011; Veiga, 2012).
A formação contínua deve ser vista como infinita, a ser realizada ao
longo de toda a vida profissional do docente, em colaboração a uma ne-
cessidade social permanente. Assim vista, a formação contínua é um desa-
fio, já que requer do docente a busca por atualização constante e adaptada
aos diversos contextos sociais. Essa formação deve ser permanentemente
inovadora no sentido de acompanhar a evolução dos saberes, das tecnolo-
gias e do comportamento social. A formação continuada de docentes im-
plica preparar professores para o incerto e para uma sociedade que está em
constante processo de transformação. Trata-se de uma ação complemen-
tar à formação inicial, com enfoque aprimorador de uma ação já iniciada
(Alarcão; Tavares, 2001; Veiga, 2010).
Falsarella (2004, p. 50) entende a formação continuada como “pro-
posta intencional e planejada, que visa a mudança do educador por meio
de um processo reflexivo, crítico e criativo de sua própria prática pedagó-
gica, produzindo conhecimento e intervindo na realidade.” Nesse mesmo
contexto, Palma (2010) fortalece esse pensamento ao afirmar que o que
deve mobilizar os docentes não seja apenas aquilo que podem aprender,
mas os sentidos que atribuam ao que aprendem e os motivos que os inci-
tem a pensar e a agir por decorrência do aprendizado. É necessário que a
formação continuada faça sentido no contexto e nas vivências do docente.
Porém o conhecimento humano não se encerra. A sociedade busca
informações atualizadas e consequente produção de novos conhecimentos
com significado multidisciplinar para atender aos contextos social, econô-

160
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mico, político e cultural. O docente precisa ser dotado de conhecimentos


educacionais e culturais que lhe permitam atuar com desembaraço diante
dessas necessidades, atuando em situações pedagógicas normais e atípicas.
Na prática, o professor precisa estar atento às transformações requeridas e
estar disponível para a formação continuada (Borges, 2012).
Murta et al. (2008) consideram que a formação continuada é uma exi-
gência da atividade profissional no mundo atual, não podendo ser reduzi-
da a uma ação compensatória de fragilidades da formação inicial. Pressu-
põe-se que o conhecimento adquirido no início da formação amadureça
e vá se qualificando para atender à diversidade das situações que solicitam
intervenções. Assim, a formação continuada deve desenvolver uma atitu-
de de aprimoramento, investigativa e reflexiva.
Borges (2012) destaca três dimensões a serem consideradas na articu-
lação de um curso de formação continuada: (1) a do objetivo teórico que
seja abastecido pela epistemologia que sustenta o processo educativo; (2)
a da construção cultural dos repertórios de conhecimentos e de produção
do sujeito em encadeamento histórico; (3) a da prática investigativa por
meio da reflexão sobre a própria prática docente e a replicação para esferas
educacionais mais amplas. Para a autora, a situação atual exige a formação
em serviço, atrelada ao pensamento crítico e a uma atitude interrogativa,
não se limitando ao que o professor já sabe ou pensa que sabe. É necessária
uma constante (re) construção de saberes e fazeres, visto que o processo
de formação é inconcluso e inacabado e perpassa os aspectos da sua vida
profissional e pessoal.
Nesse sentido, então, a função da formação continuada é também
fortalecer a identidade profissional do docente, a partir de uma proposta
de desenvolvimento de saberes profissionais. O professor constrói o seu
ideário profissional referenciado em suas escolhas, crenças epistemológi-
cas, suas maneiras de selecionar, produzir e apreender novos saberes da
prática docente e integrá-los como construto de uma formação profissio-
nal ao longo da vida. Há a obrigatoriedade de estar aberto à atualização
constante dos saberes, às novas aprendizagens e fazeres inerentes à prática
educativa para que não sucumba à obsolescência e desvalorização profis-
sionais (GUIMARÃES, 2005).

161
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Nesse mesmo contexto, Guesta (2001) afirma que os conhecimen-


tos utilizados para enfrentar as situações inéditas exigirão do docente: (a)
análise da própria prática; (b) reflexão que faça emergir os recursos inte-
lectuais implícitos nas ações que executa; (c) diagnóstico das situações; (d)
escolha das estratégias de atuação; e (e) previsão das possíveis consequên-
cias advindas desse processo de elaboração do conhecimento.
Imbernón (2010) defende uma formação continuada centrada em cin-
co pilares de atuação do docente: (a) a reflexão prático-teórica atrelada à sua
realidade educacional e social, com compreensão, interpretação e interven-
ção a que se refere a capacidade de os professores gerarem conhecimento
pedagógico por meio da análise da prática educativa; (b) a troca de expe-
riências, escolares e de vida, e a reflexão entre indivíduos para possibilitar
a atualização em todos os campos de intervenção educacional e melhorar a
comunicação entre as partes; (c) a união da formação docente a um projeto
de trabalho e não o contrário; (d) o uso da formação como ferramenta críti-
ca contra práticas laborais tais como sexismo, proletarização, individualismo
etc. e práticas sociais (a exclusão e a intolerância); e (e) o desenvolvimento da
instituição educacional para um objetivo de inovação abrangente, mediante
o trabalho coletivo, em que o reconhecimento da escola seja construído por
todos e haja intenção em transformar uma situação.

2. METODOLOGIA DA PESQUISA

O estudo realizado é de natureza qualitativa, do tipo estudo de caso


(Yin, 2005). Foi realizado com um grupo de dezoito professores que
atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental de Matemática, partici-
pantes de um curso de formação continuada. Foram entrevistados doze
professores que atuam na educação básica. Todos os docentes são especia-
listas em suas áreas de formação, e exercem atividade docente em média
há 13 anos.
Os dados foram coletados por meio de um questionário online, utili-
zou-se a ferramenta do Google Drive, de uma entrevista semiestruturada
realizada ao término do curso e de um memorial constituído ao longo do
curso. Para a análise, utilizou-se a Análise Textual Discursiva (ATD), pro-
posta por Moraes e Galiazzi (2011), delineada nas etapas: (a) organização

162
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

do corpus, (b) unitarização dos elementos de significado, (c) definição das


categorias, e (d) produção de metatexto, conforme expresso na Figura 1.

Figura 1 — Sequência de análise da ATD

Fonte: Oliveira Filho, 2016 (Adaptado de Moraes; Galiazzi, 2011).

O corpus mostrou uma primeira compreensão relativamente ao ob-


jetivo da pesquisa. A unitarização fragmentou o corpus e identificou os
elementos de significado expressos nas falas dos entrevistados e de in-
teresse para a pesquisa. Do corpus foram extraídos dezoito elementos de
significado, dando origem às seguintes categorias: (1) a satisfação como
pressuposto básico para o exercício da profissão, (2) a relação da formação
com as práticas em sala de aula, (3) a reflexão como consequência das ex-
periências pessoais e formação da identidade profissional, e (4) a inclusão
do discente no processo do conhecimento, que serão detalhadas a seguir
na parte das discussões dos resultados da pesquisa.

3. METATEXTO: DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DA


PESQUISA

O metatexto propõe-se a comunicar as análises alcançadas sobre o


fenômeno investigado, de acordo com as categorias definidas, e com o

163
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

suporte das descrições e interpretações refinadas nas etapas anteriores ou


mesmo teorias a priori que lhe sirvam de referência. Efetivamente, trata-se
de um esforço construtivo do pesquisador, em que ele detalha os conteú-
dos das categorias definidas e os transforma em argumentos conectados
aos objetivos e objeto de estudo. Esses argumentos não são um exercício
de síntese e sim momentos de inspiração e intuição do pesquisador sobre
a razão de ser da pesquisa (Moraes; Galiazzi, 2011).
As categorias definidas anteriormente não são lineares e não se con-
cluem unicamente nos seus significados. Elas perpassam umas os limites
das outras de forma bastante inter-relacionada.
Nesse sentido, as implicações do curso de formação continuada mi-
nistrado apresentaram várias dimensões que demonstram os seus aspectos
positivos e negativos. De maneira geral, as implicações apresentaram ava-
liação fortemente positiva relativa à experiência de formação a distância e
presencial.
Dentre as principais dimensões destacadas pelos entrevistados emer-
giram as seguintes categorias: (1) a satisfação como pressuposto básico
para o exercício da profissão, (2) a relação da formação com as práticas em
sala de aula, (3) a reflexão como consequência das experiências pessoais e
formação da identidade profissional, e (4) a inclusão do discente no pro-
cesso do conhecimento.
Com relação à dimensão satisfação, ela se materializou principal-
mente pela oportunidade em participar do evento e a forma como foi de-
senvolvido o curso, em que o professor tinha atribuições individuais de
aprendizado mescladas às possibilidades de trabalho em grupo. Satisfação
também por perceber a possibilidade de aplicar o conhecimento teórico
em práticas intercambiadas e discutidas com os demais docentes. O in-
dividual e o coletivo interagiram satisfatoriamente, gerando um grau de
motivação que se estabeleceu e manteve durante o período de realização
do curso. O trabalho em grupo facilita e motiva a compreensão. Há o
crédito na atividade em grupo como caminho para promover reflexão so-
bre o conhecimento dentro e fora da sala de aula. A convivência acelera e
solidifica o aprendizado. Ao mesmo tempo em que as atividades em grupo
podem apresentar impasses por questionamentos e competições surgidas,

164
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

os aspectos positivos da interação e reflexão suplantam os primeiros. Cor-


roborando com esse pensamento, Imbernón (2009, p. 76) argumenta que
é necessário “compartilhar dúvidas, contradições, problemas, sucessos e
fracassos são elementos importantes na formação das pessoas e no seu de-
senvolvimento pessoal e profissional”.
Percebe-se a necessidade de promover cursos dessa natureza periodi-
camente, não só como meio de atualização, mas também para “motivar”
o docente. Manter o ciclo motivador é muito importante para revitalizar
o papel do docente e fortalecer a sua identidade profissional e, por conse-
quência, a do discente. Nesse sentido, faz-se mandatória a reciprocidade
na relação docente-discente para promover o conhecimento. O docente
promove a motivação ao incentivá-lo a usar o conhecimento teórico na
prática. E o discente promove a motivação do docente quando ele reco-
nhece e valida a importância do conhecimento oportunizado.
Sob um aspecto negativo, levanta-se o fato de que as diretrizes dos
cursos de formação precisam ser revistas para que se possa acompanhar as
demandas requeridas pela sociedade. Em especial, os cursos de formação
de professores da Educação Básica precisam se adequar aos novos tempos
e incentivar a escola como espaço formativo e socializador de conheci-
mento, gerando uma formação que integre e articule diferentes saberes e,
ao mesmo tempo, admita as singularidades dos sujeitos no seu processo
de formação.
Além disso, a satisfação pode conduzir o docente a disseminar o co-
nhecimento de forma mais aprazível para o discente. É claro que a satis-
fação estará dependente do grau de autonomia do docente para realizar
suas atividades. E a autonomia só funcionará se houver processos que es-
timulem o seu desenvolvimento profissional. Constatou-se que “satis-
fação-motivação-autonomia” são variáveis inseparáveis para constituir o
exercício da profissão.
Outra dimensão diz respeito à conexão “formação docente e prática
de ensino”. O ensino não é algo isolado. As práticas precisam ser reco-
nhecidas e intercambiadas com os participantes com propostas de revisão
periódicas para que as boas práticas sejam validadas e outras sejam remo-
deladas. Porém, a formação precisa ser mais prática e menos empírica.

165
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Em relação ao conhecimento matemático, constatou-se o que o


melhor caminho para aprender é por meio da sua prática, especialmente
se associada à vida do discente. Na verdade, o conhecimento da mate-
mática deve ser estimulado com um viés prático para docente e discente,
em uma relação recíproca, a fim de que o mito da matemática como
disciplina “difícil de aprender” seja descontinuado. É preciso que os su-
jeitos envolvidos reconheçam o processo de ensino e aprendizagem ma-
temático como algo prático e reflexivo. Somente assim eles ultrapassarão
a barreira do aprendizado matemático como algo memorial e decorativo
e dissociado das práticas cotidianas. Se isso acontecer, o uso do teorema
de Pitágoras, por exemplo, não se concluirá em uma abstrata atribui-
ção. Faz-se obrigatório explicar o porquê de se utilizar tal teoria, não se
perdendo a oportunidade de promover o uso desse conhecimento como
algo aplicável ao cotidiano, como avaliar distâncias, medir áreas etc. Em
suma, é emergente que as experiências tecnicistas sejam substituídas por
situações práticas associadas à realidade.
O exercício da profissão de docente deve ser intencional e espontâ-
neo, sob o risco de, em não sendo, descaracterizar e enfraquecer o proces-
so de ensino e aprendizagem. Essa intencionalidade valida a relação “pro-
fessor-conhecimento-discente” e o intercâmbio de saberes associados.
O professor, antes de promover o conhecimento, deve refletir sobre
como materializar a apresentação desse conhecimento. A intensidade des-
sa reflexão está associada à sua experiência de vida nos âmbitos pessoal e
profissional, que serão os canais para a utilização dos recursos pedagógi-
cos. O processo de reflexão é uma consequência de vida; porém, a in-
teração com outros agentes, a compreensão da sua história, o conhecer
novas práticas pedagógicas podem estimular e acelerar a reflexão, dando
dinamismo à atuação docente e proximidade com as expectativas dos dis-
centes. Imbernón (2010) argumenta que um dos pilares da formação con-
tinuada é a troca de experiências e a reflexão entre indivíduos iguais que
têm o objetivo de se atualizar e melhorar a comunicação entre si.
O conhecimento matemático é diversificado e sequenciado, no sen-
tido de que boa parte dos conteúdos são construídos em uma relação
encadeada de pré-requisitos. O conhecimento em matemática não é

166
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

imediato e carece de ser construído no decorrer do tempo. Precisa de re-


flexão e tempo para ser assimilado, a fim de que possa ser utilizado e as-
sociado de forma consciente às práticas cotidianas. Nesse sentido, é ne-
cessário reelaborar o significado e representação social do conhecimento
matemático por parte do educando e do educador. É preciso desacelerar
o uso do tecnicismo no ensino e aprendizado, propondo formas lúdicas,
mais dinâmicas, críticas, realistas e motivadoras. Por isso, é importante
motivar e estimular as atividades “pensantes” desde a formação inicial.
Além disso, é preciso ultrapassar as barreiras do erro enquanto fracasso
e transformá-lo como oportunidade de refazer, reaprender e gerar um
conhecimento bem assimilado.
O conhecimento da matemática não é e não pode ser tratado de for-
ma dissociada das outras áreas de conhecimento. Essa interação é interes-
sante e importante, pois pode despertar interesses ao discente em outras
áreas, assim como a compreender, por meio da matemática, como outras
áreas explicam as suas ocorrências.
Já as experiências pessoais são propulsoras e referência para o exer-
cício profissional. Não se pode relegar as experiências pessoais enquanto
contribuintes para o exercício da vida profissional de qualquer pessoa em
qualquer profissão, porém, no caso do professor, essa relação pode ser vis-
ta como mais importante, pois o docente tem como atribuição máxima
buscar interagir com o discente. Se a interação não ocorrer, a formação
e o conhecimento compartilhado terão pouco ou nenhum sentido. Es-
ses argumentos dos professores vão ao encontro do pensamento de Tardif
(2008, p. 49–50), quando explica que “o docente dificilmente atua sozi-
nho. Ele interage com outras pessoas, a começar pelos alunos. A atividade
docente não é exercida sobre um objeto [...]”. Situações desse tipo são
demonstrações de poder que comprometem a interação entre professor
e aluno, o andamento das aulas, o uso de práticas mais interativas, já que
relações de confiança não são estabelecidas.
Os aspectos positivos e negativos da vida pessoal acabam interferindo
na vida profissional do docente. A questão é como essas situações podem
ser reelaboradas a ponto de tornarem-se úteis para o aprendizado. As si-
tuações positivas acabam por naturalmente serem mais fáceis de serem

167
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

replicadas. Nesse aspecto, a aceitação será vista como uma etapa reflexi-
va em que o docente se aproveita da situação positiva para retransmiti-la
aos discentes e adaptá-la às situações necessárias. Já as situações negativas
tendem a configurar registros ruins para aquele que a experienciou, com
possibilidades de, mesmo que inconscientemente, evitar situações simi-
lares. Nesse aspecto, a formação continuada com participação em grupo
pode ser uma oportunidade para superar limitação dessa natureza. Corro-
borando com esse pensamento, Imbernón (2010) argumenta que um dos
pilares da formação continuada é a troca de experiências e a reflexão entre
indivíduos iguais que têm o objetivo de se atualizar e melhorar a comuni-
cação entre si. Outro aspecto a ser considerado diz respeito à necessidade
de o discente sentir-se incluído nos processos de aprendizado e não ser
um mero agente de execução do conhecimento. O processo de ensino
e aprendizagem é recíproco e não unilateral e unidirecionado. Há uma
falsa demonstração de domínio de conteúdo, cabendo a ele a exposição do
conteúdo e utilização de meios de ensinar às vezes nem tanto participati-
vos, como se os discentes fossem meros fantoches a realizar movimentos
estabelecidos pelo seu mentor. Há de se considerar que o processo de en-
sino e aprendizagem é interativo e carece de colaboração recíproca. Nesse
contexto Nóvoa (2009) explica que carece a prática fazer sentido para o
discente, de sorte que ele converta essa experiência em uma possibilidade
de utilizá-la no seu dia a dia. O autor acrescenta que esse tipo de vivência
proporciona maior assimilação dos conteúdos apreendidos.
É necessário acreditar que cada educando será o agente de
transformação do seu próprio conhecimento, sentindo-se como
participante ativo do processo de aprendizagem. A escola necessita encarar
a tarefa de formar a nova geração nessa perspectiva; senão, continuar-se-á
emancipando sujeitos para atuar em uma sociedade letárgica e incapaz de
resolver seus próprios conflitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos tempos atuais, o exercício da docência requer dinamismo em


ambientes muito diversos e cada vez mais exigentes por demandas especí-
ficas. Para atender a esses pedidos, não basta apenas desejar ser professor. É

168
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

preciso construir competência e associá-la à aptidão para ser docente. Essa


construção perpassa as experiências pessoais e profissional do docente, a
sua formação anterior ao exercício da atividade, a formação inicial e con-
tinuada, o grau de interação com outros docentes, discentes, a escola e a
comunidade na qual é participante. Por isso, os desafios emergem de for-
ma exigente, dinâmica e multifacetados. Do docente requer-se um grau
de conhecimento, assimilação e adaptação intensos.
O propósito dessa etapa foi o de ir além da explicação das ideias defi-
nidas nas categorias, no sentido de permitir uma reflexão e interpretação
mais elaborada sobre os impactos do curso de formação continuada em
matemática, agora conjuntos e construídos pelos autores.
A formação continuada em matemática foi positiva. As principais
percepções estiveram relacionadas a discutir sobre: i) a satisfação como
pressuposto básico para o exercício da profissão docente; ii) a relação da
formação docente com as práticas em sala de aula; iii) a reflexão como
consequência das histórias de vida e profissional; e iv) a inclusão do dis-
cente no processo do conhecimento.
Percebeu-se grande interesse dos participantes relativamente à ma-
nutenção de cursos dessa natureza, em que seja possível mesclar o uso de
metodologias pedagógicas e os diversos conteúdos teóricos a serem dispo-
nibilizados, a fim de diversificar o ensino e a aprendizagem. Ainda houve
grande reconhecimento à possibilidade de interação com outros parti-
cipantes e à promoção de melhorias no ensino da matemática de forma
conjunta enquanto caminho que permita ao discente entender de forma
reflexiva a sua realidade cotidiana.

REFERÊNCIAS

ALARCÃO, Isabel; TAVARES, José. Paradigmas de formação e inves-


tigação no ensino superior para o terceiro milênio. In: ALARCÃO,
Isabel (org.). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre:
Artmed, 2001.

BORGES, Lívia Freitas Fonseca. Um currículo para a formação de pro-


fessores. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro; DA SILVA, Edileuza

169
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Fernandes (org.). A escola mudou: que mude a formação de pro-


fessores. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

FALSARELLA, Ana Maria. Formação continuada e prática de sala


de aula: os efeitos da transformação continuada na atuação do pro-
fessor. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004.

GUESTA, Nágila Caporlíngua. Cotidiano escolar e formação refle-


xiva do professor: moda ou valorização do saber docente? 1. ed.
Araraquara: JM Editora, 2001.

GUIMARÃES, Valter Soares. Os saberes dos professores: Ponto de parti-


da para a formação contínua. Boletim Salto para o Futuro, v. 13,
p. 33–38, 2005.

IMBERNÓN, Francisco. Formação continuada de professores.


Porto Alegre: Artmed, 2010.

IMBERNÓN, Francisco. Formação permanente do professorado:


novas tendências. São Paulo: Cortez, 2009.

LEONE, Naiara Mendonça; LEITE, Yoshie Ussami Ferrari. O início da


carreira docente: implicações à formação inicial de professores. Re-
vista Eletrônica Pesquiseduca, Santos, v. 3, n. 6, p. 236–259, jul./
dez. 2011.

MOITA, Maria da Conceição. Percursos de formação e de transforma-


ção. In: NÓVOA, Antonio. (org.) Vidas de professores. Porto:
Porto Editora, 2013.

MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual dis-


cursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011.

MURTA, Cláudia Pereira do Carmo; SILVA, Diolina Moura; COR-


DEIRO, Valter Luiz dos Santos. Guia do curso. In: BRASIL.
Pró-Letramento — Programa de formação continuada de
professores dos anos/séries iniciais do Ensino Fundamental
— Matemática. Brasília: MEC/SEB, 2008.

170
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Educa:


Lisboa, 2009.

OLIVEIRA FILHO, Vicente Henrique de. Repercussões de um cur-


so de formação continuada à distância na constituição da
identidade profissional de um grupo de professores do ensino
fundamental no Maranhão. 2016. Dissertação (Mestrado em Fí-
sica) — Faculdade de Física, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.

PALMA, Rute Cristina Domingos da. A produção de sentidos so-


bre o aprender e ensinar matemática na formação inicial de
professores para a educação infantil e anos iniciais do ensino
fundamental. Tese (Doutorado) — Faculdade de Educação, Uni-
versidade Estadual de Campinas, 2010.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petró-


polis, RJ: Vozes, 2008.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro (org.) Profissão docente: novos senti-


dos, novas perspectivas. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 2010.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. A aventura de formar professores. 2.


ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre:


Bookman, 2005.

171
ARTIGOS —
DESENVOLVIMENTO SOCIAL,
AMBIENTAL, ECONÔMICO E
SUSTENTÁVEL

173
ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DA
TECNOLOGIA E INOVAÇÃO COMO
ITENS CONSTITUCIONAIS
Micaela Tavares Nobemassa33

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possui


conteúdo relacionado ao fomento do setor de tecnologia e inovação, pen-
sando em como organizar as forças produtivas nacionais para gerar rique-
zas que serão reinvestidas para melhoria da vida social. Pelo caráter trans-
versal dessa temática tanto no texto jurídico quanto na realidade social,
é essencial pensar no cenário prático do desenvolvimento de tecnologias
inovadoras no nosso país.
A elementaridade do tema se contrapõe com a realidade, já que nem
mesmo dentro do judiciário nacional possui relevância. Em um país com
grande produtividade judiciária, temos um tema pouco explorado e,
quando o é conduzido, ocorre de forma secundária e subalternizada.

33 Mestranda em Direito Político e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade


Presbiteriana Mackenzie; graduanda em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas da Universidade de São Paulo; parte do grupo Direito e Desenvolvimento, da
profa. Solange Teles.

175
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

As decisões judiciais aqui analisadas são focadas no Supremo Tribu-


nal Federal com os seguintes termos “fomento”, “inovação”, “agências
financeiras oficiais de fomento”, “tecnologia” e “investimento”, com
maior detalhamento no capítulo relacionado ao tema. Assim, por meio
desta pesquisa, analisaremos como os itens pesquisados, apesar de possuí-
rem conteúdo no texto maior nacional, não possuem protagonismo no
debate jurisprudencial do país.

1. INOVAÇÃO E TECNOLOGIA NA CONSTITUIÇÃO

A partir da Segunda Guerra Mundial, temos um intenso esforço in-


ternacional organizado para o aumento da capacidade científica e tecno-
lógica dos países subdesenvolvidos, principalmente pelas organizações in-
ternacionais, políticas ou financeiras, tais quais a Organização das Nações
Unidas, a Organização dos Estados Americanos e o Banco Interamerica-
no do Desenvolvimento, com participação ativa também das potências
industriais globais (Herrera, 1995). É dentro desse cenário que devemos
interpretar os elementos de fomento no setor de tecnologia e inovação
existentes descritos na Lei Maior nacional.
A nossa Constituição possui diversos sentidos. Dentre eles, temos o
de texto dirigente da ação governamental do Estado nos termos da doutri-
na de Canotilho, além de, conforme Niklas Luhmann, ser um documento
regulador do sistema político (Bulos, 2017). Portanto, nossa Magna Carta
deve regular a ação estatal e a política de forma a valorizar e desenvolver
tecnologia e inovação.
A partir de agora, temos a análise dos artigos constitucionais rele-
vantes para o debate em questão. Começamos, então, pelo texto presente
no Capítulo II Das Finanças Públicas, no Título VI Da Tributação e do
Orçamento, com o conseguinte artigo:

Art. 165. [...]

§ 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as


metas e prioridades da administração pública federal, es-
tabelecerá as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em
consonância com trajetória sustentável da dívida pública, orien-

176
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alte-


rações na legislação tributária e estabelecerá a política de apli-
cação das agências financeiras oficiais de fomento (Brasil,
1988, grifo nosso).

A Lei de Diretrizes Orçamentárias é anterior à elaboração do orça-


mento por ser “ela própria que irá fornecer as metas e as prioridades que
deverão constar no orçamento anual” (Bulos, 2017, p. 1.530). Assim, por
possuir destinação constitucional específica, identifica-se a relevância te-
mática da política de aplicação das agências financeiras ao estar direta-
mente relacionada com as metas e prioridades da Administração Pública
Federal. A mera especificação no parágrafo já dá destaque ao tema.
Posteriormente, o texto constitucional evidencia que, mesmo em ce-
nários de crise, como de descompasso entre despesas e receitas correntes,
as ações das agências financeiras oficiais de fomento são uma exceção e
devem ser tratadas como prioridades. Nesse sentido:

Art. 167–A. Apurado que, no período de 12 (doze) meses, a relação


entre despesas correntes e receitas correntes supera 95% (noventa
e cinco por cento), no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à De-
fensoria Pública do ente, enquanto permanecer a situação, aplicar
o mecanismo de ajuste fiscal de vedação da:

[...]

§ 6º Ocorrendo a hipótese de que trata o caput deste artigo, até que


todas as medidas nele previstas tenham sido adotadas por todos os
Poderes e órgãos nele mencionados, de acordo com declaração do
respectivo Tribunal de Contas, é vedada:

[...]

II — a tomada de operação de crédito por parte do ente en-


volvido com outro ente da Federação, diretamente ou por inter-
médio de seus fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais
dependentes, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento

177
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

ou postergação de dívida contraída anteriormente, ressalvados os


financiamentos destinados a projetos específicos celebrados
na forma de operações típicas das agências financeiras ofi-
ciais de fomento (Brasil, 1988, grifo nosso).

Reforçando, assim, por meio do artigo supracitado, a relevância do


tempo dentro do conjunto constitucional.
Além disso, temos outros artigos a serem analisados, como o 213 pre-
sente no Título VIII Da Ordem Social, Seção I Da Educação:

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas,


podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou fi-
lantrópicas, definidas em lei, que:

[...]

§ 2º As atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e


fomento à inovação realizadas por universidades e/ou por
instituições de educação profissional e tecnológica poderão
receber apoio financeiro do Poder Público (Brasil, 1988, grifo
nosso).

Nesse sentido, a educação possui um programa constitucional a ser


seguido, já que o “subsistema constitucional da educação disciplina os princípios
e preceitos fundamentais que discriminam indicações curriculares [...] além
de congregar elementos formais da organização” (Bulos, 2017, p. 1.610).
A parte financeira do setor pode auxiliar no desenvolvimento da pesquisa
dentro das unidades de ensino, respeitando, pois, o tema da tecnologia
desde as suas bases de aprendizagem.
Continuando, temos artigos na Seção IV Da Ciência, Tecnologia e
Inovação que “procurou fomentar investimentos, propiciando ao País al-
cançar o estágio do conhecimento aplicado” (Bulos, 2017, p. 1.630). A
seguir:

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvi-


mento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tec-
nológica e a inovação.

178
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tra-


tamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem públi-
co e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.

§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a


solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento
do sistema produtivo nacional e regional.

§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas


áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive
por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e
concederá aos que delas se ocupem meios e condições espe-
ciais de trabalho.

§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em


pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação
e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sis-
temas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada
do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da pro-
dutividade de seu trabalho.

[...]

§ 6º O Estado, na execução das atividades previstas no caput


, estimulará a articulação entre entes, tanto públicos quanto
privados, nas diversas esferas de governo (Brasil, 1988, grifo
nosso).

Destrinchando o conteúdo, temos o dever do Estado de “apoiar e


estimular a formação de recursos humanos” (Bulos, 2017, p. 1.631) nas
áreas de pesquisa científica básica e pesquisa tecnológica. Destaca-se a ne-
cessidade de prioridade na resolução de problemas brasileiros e, para isso,
têm-se diversas possibilidades de apoio, envolvendo até mesmo o Direito
do Trabalho — sem olvidar da obrigação legislativa de apoiar e estimular as
empresas que invistam em tecnologia e inovação e da melhor relação entre
entes públicos e privados no desenvolvimento tecnológico do país.
E,

179
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será


incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural
e socioeconômico, o bem-estar da população e a autono-
mia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortale-


cimento da inovação nas empresas, bem como nos demais
entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção
de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes pro-
motores da inovação, a atuação dos inventores independen-
tes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnolo-
gia (Brasil, 1988, grifo nosso).

Ao analisar o artigo 219, complementa-se o tema com a ideia de con-


siderar o mercado interno um patrimônio nacional, que deve ser incen-
tivado para viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o
bem-estar geral e nossa autonomia tecnológica.
Ademais, temos os artigos 219–A e 219–B, frutos da Emenda Cons-
titucional nº 85, de 2015:

Art. 219–A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-


pios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos
e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive
para o compartilhamento de recursos humanos especiali-
zados e capacidade instalada, para a execução de projetos de
pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inova-
ção, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida
pelo ente beneficiário, na forma da lei.

Art. 219–B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inova-


ção (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre
entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promo-
ver o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação
(Brasil, 1988, grifo nosso).

180
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

As obrigações com o tema não são apenas de um ente federativo, mas


sim de todos eles, como protagonistas nas relações com sujeitos tanto pú-
blicos quanto privados de forma a alcançar o desenvolvimento científico
e tecnológico — além da organização do Sistema Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação (SNCTI) para viabilizar a colaboração entre en-
tes. Para isso, há a possibilidade de firmar instrumentos diversos, como o
compartilhamento de especialistas.
Esse é, então, o cenário constitucional do país relacionado com tec-
nologia e inovação. Importante compreender esses artigos como transver-
sais por afetarem diversas áreas do Direito. Temos, portanto, a discussão
jurisprudencial dentro desse cenário constitucional.

2. DA JURISPRUDÊNCIA

A pesquisa jurisprudencial aqui realizada utilizou as decisões do


Supremo Tribunal Federal como eixo de pesquisa. A busca de decisões
foi dividida em três etapas: i) primeiro utilizando os termos “fomento”
e “inovação”, com oito resultados e apenas um relacionado à temática
do presente trabalho; nesta pesquisa encontraram-se acórdãos com temas
variados de fornecimento de medicamento à necessidade de comunica-
ção prévia dos devedores em caso de inclusão em cadastro de proteção ao
crédito, que não serão avaliados pelo desinteresse temático; ii) a segunda
pesquisa utilizou o termo “agências financeiras oficiais de fomento”, com
um resultado; e, por fim, iii) com os termos “tecnologia”, “inovação” e
“investimento”, com dois resultados relacionados e interessantes à temá-
tica. Não houve limite temporal para a realização da pesquisa jurispruden-
cial, que foi concluída em abril de 2023.
Nesse sentido, a Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade 612 — Rio de Janeiro relaciona a Lei de Diretrizes Orçamentá-
rias e as agências financeiras oficiais de fomento:

A Lei de Diretrizes Orçamentárias possui destinação consti-


tucional específica e veicula conteúdo material próprio, que, de-
finido pelo art. 165, §2º, da Carta Federal, compreende as metas
e prioridades da Administração Pública, inclusive as despesas de

181
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

capital para o exercício financeiro subsequente. Mais do que isso,


esse ato estatal tem por objetivo orientar a elaboração da lei or-
çamentária anual e dispor sobre as alterações na legislação tributá-
ria, além de estabelecer a política de aplicação das agências
financeiras oficias de fomento (Brasil, 1994, p. 1, grifo nosso).

Falamos, portanto, de “um dos mais importantes instrumentos nor-


mativos do novo sistema orçamentário brasileiro”, que possui “natureza
essencialmente transitória” (Brasil, 1994, p. 4) e perdeu sua plena vigên-
cia, o que tira a eficácia da ação de ADI sem resolução no Tribunal.
Porém, apesar da perda do objeto da ação, é possível observar que a
Lei de Diretrizes Orçamentárias é relevante para a organização da Admi-
nistração Pública, com relevante papel das agências financeiras de fomen-
to. Essas agências oficiais possuem sua política estabelecida em lei e são es-
senciais para o funcionamento dos projetos nacionais de desenvolvimento.
Relacionado ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
1.259.480 — São Paulo, temos que a “Corte já assentou a possibilidade de
o Estado fomentar certos serviços de utilidade pública mediante criação
de entidades de regime jurídico privado não integrantes da Administração
Pública” (Brasil, 2022, p. 1). O serviço de utilidade pública em debate é:

Instituição de serviço social autônomo em âmbito municipal, com


o objetivo de promover o crescimento econômico e a gera-
ção de empregos por meio do fortalecimento de médias, peque-
nas e microempresas e cooperativas, especialmente por meio de
programas e projetos de fomento e estímulo ao médio, ao pequeno
e ao microempreendedor, bem como às cooperativas, inclusive
de incentivo à inovação e ao desenvolvimento tecnológico
(Brasil, 2022, p. 1, grifo nosso).

Relacionado a esse objetivo, temos a “implementação de políticas que


estimulem a pesquisa, a difusão de tecnologias e a inovação, e que incre-
mentem a competitividade das empresas” e a “oferta de treinamento e de-
senvolvimento para empreendedores e empregados, com foco na abertura
de empresas e sua gestão sustentável” (Brasil, 2022, p. 16).

182
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Assim, por meio desse recurso, é possível compreender que o incenti-


vo à inovação e ao desenvolvimento tecnológico é um serviço de utilidade
pública e pode ser fomentado pelo Estado. Dentro desse cenário, faz-se
essencial a pesquisa, a difusão de tecnologias e a inovação para o melhor
funcionário empresarial.
Já na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.529 — Distrito Federal,
temos o cenário de proteção da propriedade industrial no país. Importan-
te pensar a proteção à propriedade industrial como direito fundamental,
que “se dá de forma temporária e com fundamento no interesse social e
no desenvolvimento tecnológico e econômico” (Brasil, 2021a, p. 3). To-
davia, no Brasil “temos a ausência, de fato, de limitação temporal para a
proteção patentária no Brasil” (Brasil, 2021a, p. 5), o que resulta, portan-
to, na vigência de patentes além de limites razoáveis no país.
A propriedade industrial é um “instituto com finalidade determinada
pela Constituição e que não se circunscreve a um direito individual, pois
diz respeito à coletividade e ao desenvolvimento do país” (Brasil, 2021a,
p. 3). Apesar disso, temos um atraso crônico na análise dos pedidos que
afeta toda a dinâmica jurídica de proteção. Dessa forma:

Quanto maior o prazo de exclusividade usufruído pelo ti-


tular da patente farmacêutica, mais será onerado o poder
público e a sociedade, considerando-se a necessidade de aquisi-
ção de medicamentos em larga escala para a execução de políticas
públicas em saúde (Brasil, 2021a, p. 6, grifo nosso).

Essa ação possui o período da pandemia da Covid-19 como contexto,


o que evidencia a emergência da temática ao lidar com tamanha crise de-
vido a recursos escassos e demanda aumentada. E:

O prolongamento indevido dos prazos de vigência de patentes


farmacêuticas reveste-se de caráter injusto e inconstitucional,
por privilegiar o interesse particular em detrimento da co-
letividade, impactando de forma extrema a prestação de serviços
de saúde pública no país e, consequentemente, contrariando o di-
reito constitucional à saúde (art. 196 da Constituição de 1988). A

183
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

extensão do prazo de vigência das patentes afeta diretamente as


políticas públicas de saúde do país e obsta o acesso dos cidadãos a
medicamentos, ações e serviços de saúde, causando prejuízos não
apenas a concorrentes e consumidores, mas, principalmente,
àqueles que dependem do Sistema Único de Saúde para garantir
sua integridade física e sua sobrevivência (Brasil, 2021a, p. 6, grifo
nosso).

O art. 40 da Lei 9.279/1996 gera insegurança jurídica por criar in-


determinação do prazo de proteção da propriedade industrial, além de
ofender o próprio Estado Democrático de Direito. Assim, a presente ação
visou tornar inconstitucional este artigo, e o faz. É necessária previsibili-
dade para que os agentes de mercado possam atuar sem arbitrariedade e
desigualdade nas relações.
Não se deve esquecer que a propriedade industrial é essencial para o
próprio desenvolvimento do setor industrial e de tecnologias inovadoras.
Porém, deve-se coadunar tanto os direitos do criador como as necessida-
des da sociedade, conforme trecho a seguir:

A temporariedade da patente permite a harmonização da pro-


teção à inventividade com o cumprimento da função social
da propriedade, pois, apesar de resguardar os direitos dos autores
de inventos ou modelos de utilidade por um período determina-
do, incentivando e remunerando os investimentos em inovação,
garante ao restante da indústria e, em última análise, à sociedade,
a possibilidade de se apropriar dos benefícios proporcionados pelos
produtos da criatividade a partir da extinção dos privilégios de sua
exploração (Brasil, 2021a, p. 7, grifo nosso).

Além disso,

A demora no tempo de exame das patentes é uma realida-


de que precisa ser combatida, para se garantir segurança
jurídica a todos os agentes do mercado. Nada justifica um
período de exame administrativo de cerca de dez anos. Apelo ao

184
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

administrador público federal (Instituto Nacional da Propriedade


Industrial, Agência Nacional de Vigilância Sanitária e Secretaria
de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da
Saúde) para que envide efetivos esforços no sentido de superar as
deficiências na análise dos pedidos de patentes (Brasil, 2021a, p. 8,
grifo nosso).

Esse cenário de morosidade no fornecimento da proteção dada pelas


patentes junto da ilimitada salvaguarda temporal causa um cenário difi-
cultador do desenvolvimento de tecnologias no país. Por meio dessa de-
cisão judicial é possível compreender muito das dificuldades burocráticas
que a ciência e tecnologia enfrentam.
Por fim, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.482 — Distrito
Federal, temos uma questão estrutural essencial para o desenvolvimento
tecnológico nacional: a instalação e o compartilhamento de infraestru-
tura e de redes de telecomunicações. Essa ação trata de a União possuir a
competência para legislar sobre o tema e a exploração direta e indireta das
telecomunicações. Esse tema possui relação com “o fomento à atividade
econômica e ao desenvolvimento regional” (Brasil, 2021b, p. 10).
Assim, temos no voto do Ministro Nunes Marques que:

As telecomunicações constituem, hoje, não apenas uma das mais


importantes atividades econômicas das sociedades nacionais, mas
também a própria base de praticamente todas as demais formas de
criação de riquezas, uma vez que estamos caminhando para uma
economia dirigida por dados (data-driven economy), que trafegam
nas redes de telecomunicação (Brasil, 2021b, p. 58).

Como podemos observar pelas ações analisadas, os temas de tecno-


logia e inovação são secundários e subalternizados. O Supremo Tribunal
Federal teve 12.956 julgamentos no ano de 2022. Além disso, conforme
o site da Transparência do Plenário Virtual, no ano de 2007 houve a mais
alta quantidade de decisões, com 23.076 julgamentos (Supremo Tribunal
Federal, 2023). E, mesmo nesse cenário de muitos processos, temos pou-
cas decisões passíveis de análise para a temática de inovação e tecnologia —

185
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

isso sem qualquer limitação temporal ao realizar as buscas. As ações não


trazem esse tema como elemento central e, sim, possuem relações com o
cenário brasileiro.

CONCLUSÕES

Com isso, temos o cenário nacional brasileiro de tecnologia e inova-


ção que possui orientação constitucional, mas posição prática não priori-
tária nas políticas internas, já que o tema sequer chega ao Supremo Tribunal
Federal.
A Constituição Federal é expressa ao dar relevância para o tema da
inovação e tecnologia, já que são elementos essenciais para o desenvolvi-
mento socioeconômico. Possui a Lei Maior em seu conteúdo obrigações
e possibilidades que permitem alcançar os objetivos nacionais. Ademais, as
ações judiciais analisadas aqui reforçam esse discurso de relevância, preser-
vação e necessidade do melhor funcionamento dos sistemas de fomento.
Contudo, também se pode notar como a temática é secundária nos
processos em questão. Não se fala exatamente sobre o tema e sua aplicação
prática na realidade, mas sim sobre elementos que permitem a identifica-
ção desse cenário no país. Isso se dá em meio a um processo de judicialização
nacional extremada e de grande produtividade judiciária, o que maximiza
a evidência do papel prático irrelevante desse tema na realidade brasileira.

REFERÊNCIAS

AROCENA, Rodrigo; SUTZ, Judith. Weak knowledge demand in the


South: learning divides and innovation policies. Science and Pu-
blic Policy, v. 37, n. 8, p. 571–582, oct. 2010.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). Agravo Re-


gimental em Recurso Extraordinário 1259480. Agravante:
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Agravados:
Presidente da Câmara Municipal de são Paulo e Prefeito do Muni-

186
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

cípio de São Paulo. Relator: Min. Dias Toffoli, publicado em 5 ago


2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/
sjur467651/false . Acesso em: 5 abr. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de


Inconstitucionalidade 5529 — Distrito Federal. Requerente:
Procurador-Geral da República. Requeridos: Presidente da Repú-
blica e Congresso Nacional. Relator: Min. Dias Toffoli, publicado
em 1 set 2021a. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pa-
ges/search/sjur451892/false . Acesso em: 5 abr. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de


Inconstitucionalidade 6482 — Distrito Federal. Requerente:
Procurador-Geral da República. Requeridos: Presidente da Repú-
blica e Congresso Nacional. Relator: Min. Gilmar Mendes, publica-
do em 21 maio 2021b. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.
br/pages/search/sjur467651/false . Acesso em: 5 abr. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Questão de Or-


dem na Ação Direta de Inconstitucionalidade 612 — Rio de
Janeiro. Requerente: Mesa Diretora da Asssembleia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro. Requeridos: Governador do Estado do
Rio de Janeiro e Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
Relator: Min. Celso de Mello, publicado em 6 maio 1994. Disponí-
vel em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur35856/false.
Acesso em: 5 abr. 2023.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed.


São Paulo: Saraiva, 2017.

HERRERA, Amílcar. Los determinantes sociales de la política científica


en América Latina. Política científica explícita y política científica
implícita. Redes, v. 2, n. 5, p. 117–131, dic. 1995.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Painéis estatísticos. Disponí-


vel em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/plenario_virtual/
plenario_virtual.html . Acesso em: 19 abr. 2023.

187
A CRISE AMBIENTAL E A BUSCA DA
GARANTIA FUNDAMENTAL DO MEIO
AMBIENTE SUSTENTÁVEL
Rafaela Polizel Botelho34

INTRODUÇÃO

Diante da ação antrópica sobre a natureza, o indivíduo se depara com


a insustentabilidade do meio, uma vez que há um alto grau de degrada-
ção ambiental, hoje mundialmente discutido tendo em vista a tentativa de
abordar sobre os desafios das sociedades com relação ao espaço natural.
Faz-se mister considerar que ao longo dos últimos séculos houve uma
mudança no padrão de consumo mundial, tendo como resultado a maxi-
mização na utilização dos recursos naturais para atender as demandas da
sociedade, sendo o meio físico-natural provedor dos insumos.
Apesar de o consumismo representar um dos principais elementos
constitutivos da crise ecológica global, a abundância dos bens de consumo
é considerada pelo sistema industrial como um símbolo bem-sucedido
das economias capitalistas modernas.

34 Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista — UNESP, Facul-


dade de Ciências Humanas e Sociais FCHS, Franca (SP); Pós-graduada em Direito Processual
Integrado pela UniDomBosco; Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

188
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

A preocupação que envolve o consumismo não é apenas em relação à


retirada da matéria-prima dos recursos naturais, mas também do descarte
pós-consumo, pois a quantidade de resíduos gerados, por exemplo, é de-
terminante para a degradação e riscos ambientais — levando em conside-
ração a saúde pública e os seus custos ao Estado.
Sendo assim, há uma realidade mundial quanto à urgência na altera-
ção do panorama socioambiental tendo em vista sua majoração, atrelado
ao aumento populacional e ao aumento na utilização de matéria-prima
provinda da natureza, a produção industrial e seus respectivos descartes.
No Brasil essa urgência perdura há anos, considerando que há perda de
biomas e invasão de espaços de populações nativas, por exemplo, ferindo
seus direitos ambientais e fundamentais básicos.
Com respaldo no ordenamento jurídico, tornou-se imprescindível a
proteção do meio ambiente como forma de garantia da própria existên-
cia humana e, consequentemente, de seus direitos fundamentais. No en-
tanto, apesar dos dispositivos normativos, as políticas instituídas não são
capazes de reduzir e, portanto, sequer extinguir o desmatamento, a dis-
posição inadequada de resíduos, a extração desordenada de matéria-pri-
ma natural e outras, afastando, assim, uma garantia constitucionalmente
estipulada.
Nesse sentido, pretende-se com o presente artigo apresentar e discutir
sobre a importância do meio ambiente sustentável como forma de garantia
do direito fundamental para que, então, haja de fato sua implementação
para efetivar o estabelecido normativamente.

1. O MEIO AMBIENTE E A CRISE AMBIENTAL

No passado, os assentamentos humanos eram sustentados pelo ecossis-


tema do planeta em que, por exemplo, plantava-se para conseguir alimen-
tos e os meios para o mantimento eram retirados diretamente dos meios
de produção — em sua maioria artesanal. No entanto, com a introdução
da sociedade industrial emergiu a massificação na utilização dos recursos
naturais — uma vez que são fontes indispensáveis de matéria-prima para
a produção. Ocorre que essa matéria-prima é finita, diferentemente do
que antes parecia encontrar em abundância e de forma ilimitada. Com o

189
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

passar dos anos foi possível observar que a capacidade de suporto do meio
ambiente não é mais a mesma.
Com isso, vive-se uma crise ambiental sem precedentes na história
da humanidade, de forma que, hodiernamente, em específico, “a degra-
dação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigual-
dade e da pobreza são sinais eloquentes da crise do mundo globalizado”
(Leff, 2011, p. 9).
A partir dessas circunstâncias, imperioso ressaltar novamente sobre
o modelo de desenvolvimento adotado pela sociedade industrial (Leff,
2006, p. 134) e agravado pela sociedade pós-industrial (Castells, 2006, p.
43). Isso pois há uma crescente exploração dos recursos naturais decor-
rentes da evolução constante da ciência e da tecnologia, principalmente
após os séculos XIX e XX com a implementação do modelo fordista de
produção e a expansão da atividade industrial.
Encontramo-nos na sociedade pós-industrial, em que as sociedades
produzem bens e a vida é um jogo contra a natureza fabricada. Assim, a
sociedade pós-industrial é baseada no trabalho e no serviço, e, portanto, é
um jogo entre as pessoas (Castells, 2006, p. 43).
Através dessas vertentes houve a mecanização e a institucionalização
do mundo, em que prevalece a razão cartesiana segundo a qual o “pensar”
a partir de uma linguagem racionalista — sendo a razão a única forma que
o ser humano tem de alcançar o verdadeiro conhecimento — se faz im-
prescindível, sendo um princípio basilar na teoria econômica.
No entanto, ressaltam-se os paradigmas organicistas dos processos da
vida e o desenvolvimento antinatural da civilização moderna. A racio-
nalidade econômica desterrou a natureza da esfera da produção, gerando
processos de destruição ecológica e degradação ambiental que foram apa-
recendo como externalidades do sistema econômico.
Demonstra-se então a “confluência de processos físicos, biológicos e
simbólicos reconduzidos pela intervenção do homem — da economia, da
ciência, e da tecnologia” na natureza (Leff, 2011, p. 9).
Cumpre ressaltar que a crise ambiental, além de ser entendida como
uma crise de civilização, pode ser considerada também como uma crise
de pensamento. Isso pois a compreensão da complexidade ambiental per-

190
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

passa um processo de construção e reconstrução que “remete-nos às suas


origens, à compreensão de suas causas; implica considerar os ‘erros’ da
história que se enraizaram em certezas sobre o mundo com falsos funda-
mentos” (Leff, 2001, p. 192).
Essas “certezas sobre o mundo” devem ser analisadas, pois através da
criticidade é possível perceber o intuito em transmutar o meio ambiente
em parte integrante da sociedade consumista, a qual o “objetifica” através
de ações que fazem parte da cultura de uma racionalidade dominante. De-
nota-se ao perceber o afastamento de uma relação intrínseca e simbiótica
— o homem e natureza.
Como bem menciona Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 26):

A construção da natureza como algo exterior à sociedade — uma


construção estranha aos povos com que os europeus entravam em
contato — obedeceu às exigências da constituição do novo sis-
tema econômico mundial, centrado na exploração intensiva dos
recursos. Esta construção foi sustentada por um processo que veio
a ser conhecido como Revolução Científica, e esteve na origem da
ciência tal como hoje a conhecemos a ciência moderna.

A referida crise veio questionar os fundamentos teóricos e ideológicos


que construíram as bases e deram legitimidade ao crescimento econômi-
co, o qual negou a natureza em sua concepção, provocando graves proces-
sos de destruição ecológica e degradação ambiental (Leff, 2006, p. 133).
Com isso, era e é imprescindível a valorização da natureza, ratificando,
então, as normas ambientais garantistas e, com elas, discutindo os padrões
estabelecidos pela sociedade pós-industrial.
Essa nova significação deveria advir de uma mudança radical em nos-
sas percepções, em nossos pensamentos, nossos valores e nas interpreta-
ções e aplicação das normas. Para Fritjof Capra, faz-se necessária uma
mudança de paradigma, daquele que apresenta uma visão de mundo me-
canicista para uma visão holística, que compreende o mundo como um
todo integrado e não como um conjunto de partes dissociadas, ou seja,
uma visão ecológica, na qual esta percepção reconheça a interdependência
essencial entre todos os fenômenos (Capra, 1996, p. 26).

191
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Através dessa visão, surgem novos vínculos entre a economia e a eco-


logia global. Ressalta-se que no passado a preocupação se mostrava com os
impactos do crescimento econômico sobre o meio ambiente. Hodierna-
mente, a preocupação se dá sobre os desgastes ecológicos — degradação de
solos, regimes hídricos, atmosfera e florestas — sobre, então e consequen-
temente, as perspectivas econômicas. Por isso, ressalta-se que a ecologia e
a economia estão cada vez mais entrelaçadas — em âmbito local, regional,
nacional e mundial — numa rede inteiriça de causas e efeitos (Comissão
Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1991, p. 5).
Tem-se, desse modo, que o princípio da sustentabilidade se norteia
com o objetivo de transmutar os valores que hoje vigoram frente à verten-
te econômica-ecológica, uma vez que tal vertente representa a faculdade
normativa intrínseca na ordem mundial capitalista, da qual é imprescindí-
vel a inserção ecológica para a continuidade humana em um desenvolvi-
mento contínuo sustentável.
Foi a partir da indicação do Conselho Econômico e Social das Na-
ções Unidas, em julho de 1968, que emergiu o ideal de se organizar um
encontro de países a fim de se criar formas de controlar a poluição do ar
e a chuva ácida, dois dos problemas ambientais que mais inquietavam a
população dos países centrais àquela época. Enviada à Assembleia Geral
da ONU, a indicação foi aprovada em dezembro daquele ano. Na mesma
reunião, definiu-se o ano de 1972 para sua realização. Estava nascendo,
então, a conferência que marcou o ambientalismo internacional e que
inaugurava um novo ciclo de estudos das relações internacionais (Ribei-
ro, 2010, p. 74). Com ela, integrou-se à contemporaneidade a pauta que
precisaria ser enfrentada e implementada: a sustentabilidade. A sustenta-
bilidade passou a ser difundida nas convenções e conferências mundiais,
como por exemplo a Conferência das Nações Unidas para o Meio Am-
biente e o Desenvolvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro.
Nesse momento havia a necessidade de encarar os desafios da de-
gradação ambiental no âmbito do “projeto civilizatório da modernidade”
(Leff, 2011, p. 16) e, no intuito de transmutar a realidade, foi imperioso
delimitar estratégias entre a linha econômica que resultasse na obtenção e
na garantia do desenvolvimento sustentável.

192
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Interpor a sustentabilidade no cenário de alcance pela racionalidade


ambiental reflete, assim, a intenção de crescimento contínuo, em que a
sustentabilidade enquadre o próprio processo econômico, e não uma con-
dicionante para sua obtenção — ou seja, a sustentabilidade e o processo
econômico em convergência.
Essa racionalidade ambiental, então, sustentar-se-ia através de uma
construção social respaldada pelo saber, por ações sociais e político-eco-
nômicas, e não só, por exemplo, como um processo evolutivo da natu-
reza. Assim, a racionalidade surgiria com as potencialidades e as possibi-
lidades de processos materiais diversos, desenvolvimentos tecnológicos e
estratégias políticas de transformação social.
Esses processos de construção de uma sociedade ecológica são mo-
bilizados por um saber que constitui aos atores sociais do ambientalismo,
que geram a mudança social e a transição para a sustentabilidade. Assim, o
conceito de racionalidade ambiental expressa o real como potência do que
pode “chegar a ser” na realidade (Leff, 2011, p. 113).
Através dessa relação inerente — homem-natureza —, traduz-se que
o direito à vida é intrinsecamente relacionado à proteção ao meio am-
biente devidamente equilibrado e, consequentemente, sustentável. Com
isso, torna-se uma garantia fundamental: isso pois se difere da proteção
revelada no início da construção dos direitos básicos. Não é apenas uma
proteção à vida, mas a proteção da vida como as diversas formas das ati-
vidades sociais, a preservação do equilíbrio ecológico do meio ambiente,
prevenindo também a sua deterioração. Assim, contribui-se para a prote-
ção de todo aspecto de vida social.
Para a autora Cristiane Derani, o direito fundamental a um meio am-
biente ecologicamente equilibrado se perfaz por meio de uma construção
social, a qual parte de dados da realidade social. Isso porque a inserção da
natureza na sociedade passa, de modo fundamental, pelo direito. Assim, o
direito ao meio ambiente protegido normatiza os comportamentos sociais
que devem ser empreendidos para a realização da implementação e garan-
tia da manutenção das formas de vida (Derani, 1998, p. 97).
Destarte, atribuir o meio ambiente como uma temática dentro dos
direitos humanos é capaz de traduzir a importância na inclusão para a ob-

193
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tenção da sustentabilidade e consequentemente da promoção dos direitos


fundamentais. A partir desse ponto, demonstra-se a relevância em se obter
um meio ambiente sustentável sob uma ótica humanista que o garanta
como um direito fundamental.

2. A TUTELA CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE

Ao abordar o tema, a Constituição Federativa do Brasil de 1988 re-


cepcionou o conteúdo da Lei nº 6.938/81 (Brasil, 1981), e, ao contrário
das constituições precedentes, que não trataram da questão ambiental,
destinou um capítulo direcionado para sua tratativa.
Nos ensinamentos de Edis Milaré, essa ruptura às constituições passa-
das foi um marco histórico de inegável valor, dado que as anteriores sequer
se preocupavam com a proteção do meio ambiente de forma específica e
global, e, ainda, sequer tinham a expressão “meio ambiente” emprega-
das, revelando total despreocupação com o “próprio espaço que vivemos”
(Milaré, 1991, p. 3).
O art. 225 da Constituição Federal (Brasil, 1988), em seu caput, es-
tabelece que o meio ambiente deve ser ecologicamente equilibrado, como
um direito comum ao povo — o que afasta a natureza como coisa possí-
vel de ser considerada propriedade de qualquer/somente indivíduo. De-
termina ainda sobre a necessidade de sua defesa e preservação, a fim de
que preserve e garanta uma qualidade de vida para a presente e também
para as futuras gerações. Por meio da redação do caput do artigo 225 da
CF, observa-se: “Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Porém, vale ressaltar, conforme Paulo de Bessa Antunes:

O art. 225 da Constituição Federal não contempla uma definição de


meio ambiente – nem lhe caberia; entretanto, estabelece que o des-
frute das condições ecologicamente equilibradas do meio físico se
constitui em direito de todos, logo, trata-se de um direito individual
pertencente a cada um dos indivíduos que integram a coletividade e

194
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

que tem a condição de ser essencial para o desfrute da sadia qualida-


de de vida. Estabeleceu, ainda, a norma fundamental, a existência de
um dever jurídico de defender e de preservar o meio ambiente para
as presentes e as futuras gerações. (Antunes, 2015, p. 111).

Mais do que a própria garantia de um meio ambiente ecológico so-


mente pelo prisma científico, está a garantia do meio ambiente enquanto
local de desenvolvimento da cultura e políticas humanas, a fim de garantir
a perpetuação de sua espécie, sendo ele, de fato, o objeto sobre o qual in-
cide a regulamentação do meio ambiente.
Atrela-se o dever ao Estado ao dispositivo da Constituição Federal,
em seu artigo 5º, inciso LXXIII, do qual estabelece ser o meio ambiente
um direito fundamental, onde qualquer cidadão é parte legítima para pro-
por ação popular em prol da sua defesa.
De acordo com os ensinamentos do autor Paulo de Bessa Antunes
(2015, p. 111), demonstrou-se que o Estado brasileiro tem não somente a
faculdade, mas o dever, de defender e preservar o bem jurídico ambiental,
a fim de garantir o seu equilíbrio e, então, propiciar uma digna condição
de vida.
Pode-se afirmar que, mesmo considerando a existência de leis an-
teriores das quais tutelavam de várias formas a preservação ambiental, a
Constituição Federal de 1988 representou o mais importante avanço le-
gislativo, uma vez que garantiu a preservação do meio ambiente, além de
demonstrar a necessidade de reparação de danos eventualmente causados.
Isso se deve ao fato de que, ao trazer o direito de um meio ambiente
equilibrado e preservado, ao status de Direito Constitucional, colocou-o
como prioridade nas ações do poder público. Mais ainda, deve-se ao fato
de que está disposto na norma hierárquica do ordenamento jurídico, mos-
trando-se imperioso que toda e qualquer legislação esteja em acordo com
os preceitos constitucionais. Assim, impede que o legislador infraconsti-
tucional venha a promulgar leis que sejam atentatórias ao meio ambiente,
em benefício de qualquer outro interesse.
Na atualidade, conforme trazido por Nicolao Dino de Castro Costa
Neto (2003, p. 11), “o meio ambiente, constituindo objeto de preocupação
do Direito, reveste-se de um valor de caráter fundamental”. Nesse prisma,

195
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

refere-se ao reconhecimento de que o direito ao meio ambiente sadio deve


constituir a expressão de um valor inerente à dignidade humana.
Cumpre ressaltar que, ao marco dessa constitucionalização, a preser-
vação do meio ambiente como objeto primeiro de tutela no plano inter-
nacional encontrou, como meio primordial para sua garantia, um marco
na declaração sobre o Ambiente Humano, realizada na conferência das
Nações Unidas em Estocolmo, Suécia, em junho de 1972. Nessa confe-
rência, consagrou-se o instituto solenemente, e, tão somente após, foi tido
como destaque nas leis supramencionadas.
Conforme aponta Boaventura de Souza Santos (2003, p. 198):

Os recursos naturais da terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a


fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas natu-
rais, devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras,
mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequados.
Deve ser mantida e, sempre que possível, restaurada ou melhorada a
capacidade da terra de produzir recursos renováveis vitais. O homem
tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosa-
mente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem
assim o seu habitat que se encontram atualmente em grave perigo, por
uma combinação de fatores adversos. Em consequência, ao planificar
o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à con-
servação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres.

Assim, tem-se que o meio ambiente é um todo formado por múltiplos


fatores, sejam eles biológicos, inanimados, humanos, entre outros, dos
quais ainda, intrínsecos entre si, permitem o desenvolvimento da vida hu-
mana em sua plenitude e com suas relações inerentes. Por esse motivo,
imperioso se faz a sua manutenção e garantia.

3. A SUSTENTABILIDADE COMO UM DIREITO


FUNDAMENTAL

Um dos princípios basilares do Direito Ambiental é o da sustenta-


bilidade. Para tanto, esse princípio institui um equilíbrio entre as ações

196
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

socioeconômicas para que proteja e garanta um meio ambiente ecologi-


camente equilibrado para a presente e as futuras gerações. Como ante-
riormente mencionado, no sistema constitucional brasileiro é possível o
reconhecimento dos direitos fundamentais tanto referentes aos incisos nu-
merados no artigo 5º da Constituição Federal, como também aqueles não
enumerados (CF/88, art. 5º, § 2º), formulando como norma de direito
fundamental aquela que decorra do sistema constitucional de forma geral.
É o que acontece, por exemplo, com o artigo 225 da Constituição
Federal, o qual estipula o direito ao meio ambiente ecologicamente equi-
librado como essencial à sadia qualidade de vida. Assim, com a estipulação
normativa constitucional de um direito à proteção do meio ambiente, im-
prescindível é relacionar essa proteção à fundamentalidade do direito ali
assegurado. Por meio dessa imposição a sustentabilidade passou a possuir
uma eficácia fundamental autoaplicável, impondo, assim, tanto ao poder
público quanto a toda sociedade, a obrigatoriedade de efetivar a norma
estipulada no ordenamento jurídico — como uma norma fundamental.
Os direitos fundamentais estão desde sempre envolvidos pela hete-
rogeneidade e ambiguidade conceitual e terminológica (Sarlet, 2006, p.
33). Direitos fundamentais não são apenas liberdades públicas, porque
abrangem tanto direitos de autonomia e de defesa como direitos políticos
de cidadania e direitos econômicos, sociais e culturais (Miranda, 1993, p.
47–49). Visam, a toda forma, a garantia de normas e princípios estipulados
como direito da pessoa humana.
Por se tratar da terminologia “ecologicamente equilibrado”, equipa-
ra-se a dignidade humana como fonte da ressignificação constitucional
do desenvolvimento socioambientalmente sustentável e democrático, no-
vamente mediado pela força normativo-constitucional da dignidade da
pessoa humana como centro das ordens jurídicas contemporâneas.
Por meio da definição dada pela Comissão Brundtland (Informe
Brundtland, 1987), ressaltou-se no documento “Nosso Futuro Comum”
— ou, como ficou conhecido, Relatório Brundtlan — a correlação entre
a humanidade e suas ações para o futuro do planeta. Com ela objetivou-se
a garantia para o desenvolvimento presente sem o comprometimento das
capacidades de gerações futuras.

197
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Colocar em prática essa premissa demonstra a indissociabilidade do


meio ambiente para com a lógica do crescimento econômico e do próprio
desenvolvimento humano. Explica-se pela razão das questões referentes
ao desenvolvimento sustentável serem amplamente discutidas — devido a
sua imprescindibilidade — como uma alternativa para tornar sustentável,
assim, o atual modelo de desenvolvimento.
Por esse motivo, atrelar a sustentabilidade como uma tutela constitu-
cional dos direitos humanos fundamentais é o modo de instrumentalizar
o princípio do direito sustentável a ser devidamente efetivado no Brasil
— por meio da Constituição Federal — e no mundo, devidamente res-
paldados na promoção da dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese pelo exposto, observa-se a inter-relação entre os direitos


fundamentais ao se reconhecer o direito a um meio ambiente sadio e sus-
tentável como garantia fundamental. É de forma garantista e essencial seu
reconhecimento e sua efetividade para que, então, haja um comprometi-
mento finalístico da função ambiental — propiciando uma sadia qualida-
de de vida com o meio ambiente devidamente sustentável para a presente
e as futuras gerações.
Com isso, ter-se-á uma existência hígida em decorrência da preser-
vação do equilíbrio ecológico, ou seja, uma vida em plenitude com seus
desdobramentos em saúde, na garantia da liberdade, da segurança e justiça
social para o alcance da igualdade dos indivíduos da nação. Do mesmo
modo, pode-se buscar a proteção ambiental mediante a reivindicação de
direitos existentes, garantidos constitucional e infraconstitucionalmente.
Percebe-se, assim, a indivisibilidade dos direitos humanos: afirmado
como um direito fundamental, o direito a um meio ambiente sustentável;
muito mais do que acarretar restrições ao exercício de outros direitos, en-
riquece o rol dos direitos fundamentais consagrados e impõe medidas que
afastem a crise ambiental enfrentada mundialmente há tempos.
Destarte, tratando-se de um importante valor social discutido nacio-
nal e internacionalmente, faz-se imperiosa a garantia do meio ambiente
sustentável para o alcance e a aplicabilidade dos direitos humanos a serem

198
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

garantidos a todos, tanto em uma reflexão a propósito de normas jurídicas


costumeiras ou nos princípios gerais de direito. Por isso, o direito ao meio
ambiente é identificado como um direito fundamental.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem concei-


tual. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

BEZERRA, Maria do Carmo de Lima; FERNANDES, Marlene Allan


(coord). Cidades Sustentáveis: subsídios à elaboração da Agenda
21 brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente: Instituto Bra-
sileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; Con-
sórcio Parceria 21 IBAMISER- REDEH, 2000. 155 p.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Grá-
fico, 1988.

BRASIL. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento


(SNIS). 2022.

CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: Uma nova compreensão científica dos


sistemas vivos. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

CASTELLS, Manuel. The Theory of the Network Society. Cambri-


dge: Felix Stalder, 2006.

COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESEN-


VOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Edito-
ra da Fundação Getúlio Vargas, 1991.

COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro. Proteção Jurídica do Meio


Ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

DERANI, Cristiane. Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado:


Direito Fundamental e Princípio da Atividade Econômica. In: FI-
GUEIREDO, Guilherme José Purvin de (org.). Advocacia Pú-

199
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

blica e Sociedade. Ano II, n. 3. Editora Max Limonad: São Paulo,


1998. p. 91–101.

GOLDENBERG, M. (org). Ecologia, ciência e política. Rio de Janei-


ro: Revan, 1992.

INFORME BRUNTLAND. Disponível em: https://www.senado.


gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/rio20/temas-em-discussao-na-
-rio20/ecodesenvolvimento-conceito-desenvolvimento-sustenta-
vel-relatorio-brundtland-onu-crescimento-economico-pobreza-
-consumo-energia-recursos-ambientais-poluicao.aspx Acesso em:
05 out. 2020.

JACOB, Pedro. Educação Ambiental, Cidadania e Sustentabilidade. Ca-


dernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n. 118,
2003.

LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da


natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, com-


plexidade, poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

MAY, P. H.; MOTTA, R. S. Introdução. Valorando a natureza: aná-


lise econômica para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
Campus, 1994.

MILARÉ, Edis. Legislação Ambiental do Brasil. São Paulo: APMP,


1991.

MONTIBELLER FILHO, G. O mito do desenvolvimento susten-


tável. Florianópolis, SC:Edufsc, 2001.

MOTTA, R. S. da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: Editora


FGV, 2008.

RIBEIRO, Wagner Costa. A Ordem Ambiental Internacional. São


Paulo: Contexto, 2010.

200
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G. de; NU-


NES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone da ciência:
a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, Boaventura
de Sousa (org.). Semear Outras Soluções: os caminhos da biodi-
versidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. p. 21–121.

SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o políti-


co na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2003.

SATO, Michèle. O Desenvolvimento. In: SACHS, I. Ecodesenvolvi-


mento. Cadernos do NERU — ICHS — UFMT, n. 6. Cuiabá:
Editora da UFMT, 1997. p. 61–95.

ZIMMER, A. Direito Administrativo do Saneamento: um estudo a


partir do Novo Marco Legal (Lei 14.026/2020). 1. ed. Porto Alegre:
Evangraf LTDA, 2021.

201
A CONVENÇÃO DE BASILEIA E A
POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS
SÓLIDOS: O CONTROLE DE
MOVIMENTOS TRANSFRONTEIRIÇOS
DE RESÍDUOS COMO
GARANTIA À CIDADANIA E AO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Rafaela Polizel Botelho35

INTRODUÇÃO

Há uma realidade mundial quanto à urgência na gestão dos resíduos


sólidos, tendo em vista a sua crescente produção, agravada com o aumento
populacional, com o aumento da produção industrial, do consumo e de
seus respectivos descartes. Essa urgência perdura há anos, considerando
que há tipos de destinações inadequadas dos resíduos — por exemplo a
sua exportação de modo ilegal, que, por consequência, denota ao tráfico
internacional de resíduos, cada vez mais frequente entre países desenvol-

35 Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista — UNESP, Facul-


dade de Ciências Humanas e Sociais FCHS, Franca (SP); Pós-graduada em Direito Processual
Integrado pela UniDomBosco; Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

202
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

vidos e em desenvolvimento. Esse problema desencadeia a transferência de


riscos ambientais, já que possui como objetivo principal não a proteção do
meio, e sim o lucro e o proveito econômico pelos Estados.
A Convenção da Basileia, tratado internacional do qual o Brasil é
signatário, condena tais práticas e determina que todos aqueles que rati-
ficaram a Convenção tomem medidas efetivas para evitar que tal negócio
assuma proporções globais catastróficas e, ao mesmo tempo, que adaptem
suas legislações internas a fim de que a conduta seja punida com rigor.
Na mesma direção, dispõe a Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, em seu artigo 49, a proi-
bição da importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como
de resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente,
à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento,
reforma, reuso, reutilização ou recuperação.
No entanto, o Brasil demonstra um déficit quanto à disposição final
desses resíduos produzidos no próprio país e um défict frente ao estabele-
cido na Convenção e na PNRS, afastando a garantia de uma sustentabili-
dade na gestão de seu manejo e, consequentemente, impossibilitando um
serviço público adequado desses resíduos. São fatos convergentes.
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo tratar sobre a im-
prescindibilidade do controle de movimentos transfronteiriços dos resí-
duos sólidos como garantia à cidadania e ao desenvolvimento sustentável.
Também, visa demonstrar as lacunas entre as normas regulamentares,
tendo em vista se tratar de uma Convenção Internacional e uma norma
supralegal.
Por essa razão, parte-se do entendimento da imprescindibilidade da
discussão na alteração frente à produção e geração dos resíduos como tam-
bém sobre a sua movimentação e disposição final, tendo em vista ser uma
realidade que requer atenção. No entanto, não se pode olvidar que, uma
vez possuindo a presente percepção, mister o combate em suas causas que
consequentemente direcionam ao combate aos seus efeitos que aqui abor-
da: os movimentos transfronteiriços ilegais de resíduos sólidos.
Como forma de explanação, aborta este estudo sobre a Convenção de
Basileia e a Política Nacional de Resíduos Sólidos, dos quais controlam e

203
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

dispõem sobre o tema. Após, faz-se uma abordagem sobre o desenvolvi-


mento sustentável e o seu objetivo à garantia constitucional para a efetivi-
dade da cidadania.

1. A CONVENÇÃO DE BASILEA E OS RESÍDUOS


SÓLIDOS NO BRASIL

A Conferência Eco-92 ou Rio-92 foi a primeira das Nações Unidas


sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro
em 1992. Nesse evento, contribuições para o modelo de desenvolvimento
ambientalmente sustentável foram realizadas, formulando o que passou a
ser conhecido como Agenda 21.
No tocante aos resíduos sólidos, este documento reconheceu os pa-
drões insustentáveis de produção e consumo, dos quais resultam em de-
gradação ao meio ambiente, sendo, destarte, a causa (e não efeito) do pro-
blema que aqui se expõe. Isso porque seu manejo inadequado, além de
ameaçar a qualidade do meio ambiente e a saúde pública, pode acarretar
graves mazelas sociais, pois embora o meio ambiente possa ser considerado
difuso e ao que parece equânime, se comparado aos países desenvolvidos
nota-se a desproporção junto aos países subdesenvolvidos e sua respectiva
produção de resíduos. Isso ocorre principalmente quando se demonstra o
fenômeno da chamada “injustiça ambiental”, que mostra que o impacto
ambiental é distribuído de forma desigual, levando em conta as caracterís-
ticas socioeconômicas de um povo.
Para tanto, imperioso e indispensável seria uma alteração significativa
desse panorama em que o manejo ambientalmente saudável, sustentável e
correto dos resíduos sólidos sobressairia à realidade atual, obtendo, então,
um foco ao destino correto dos resíduos — e não transfonteiriço — e,
também, a realização de um modelo de reproveitamento dos resíduos ge-
rados — o que auxiliaria o controle ao tráfico internacional.
Nesse intuito, há a convergência do país no estabelecimento de
mecanismos de controle. Para tanto, ressalta-se a Convenção de Basileia
e a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Na Convenção de Basileia há
como objetivo principal a realização de controle de movimentos transfron-
teiriços de resíduos perigosos e seu depósito, estabelecendo mecanismos

204
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

de controle baseados nos princípios da notificação e do consentimento


prévio para a importação, a exportação e o trânsito de resíduos perigosos e
outros resíduos, a fim de coibir o tráfico ilegal e prever a intensificação da
cooperação internacional para a gestão ambientalmente adequada.
No entanto, cumpre ressaltar que a Convenção não proíbe a movi-
mentação transfronteiriça de resíduos, principalmente os perigosos. Pelo
contrário, ela institui regras basilares e norteadoras a fim de que a movi-
mentação ocorra de modo ambientalmente equilibrado, e que se respeite,
principalmente, o âmbito social, ambiental e da saúde humana.
A referida Convenção promove ao ordenamento jurídico brasileiro
dois eixos: proporciona a soberania para proibição na entrada dos resíduos
no território nacional; e dispõe que os resíduos perigosos devem ser depo-
sitados nos locais onde foram gerados, visando tanto a proteção da saúde
humana quanto a garantia ao meio ambiente equilibrado.
No Brasil, a Convenção foi internalizada na íntegra por meio do
Decreto nº 875, de 19 de julho de 1993 (Brasil, 1993), sendo também
regulamentada pela Resolução Conama nº 452, de 2 de julho de 2012
(Conama, 2012).
Com o país sendo signatário da convenção, além de coibir o tráfico
ilegal, previu, também, a intensificação da cooperação internacional para
uma gestão ambientalmente adequada.
Quanto ao estabelecido referente à exportação de resíduos perigosos
e outros resíduos, a Convenção estabelece a imprescindibilidade do con-
sentimento do Estado sobre a importação ou não desses resíduos. Ou seja,
a decisão de realizar ou não a movimentação transfronteiriça dos rejeitos
deve partir unicamente do Estado, por escrito — de maneira a garantir
sua soberania.
Para que seja legalmente dado início à movimentação transfrontei-
riça de resíduos perigosos é necessário não apenas o consentimento, por
escrito, como mencionado, do Estado de importação, mas também a ce-
lebração de um contrato entre o exportador e o encarregado do depósito,
especificando a forma como os resíduos serão gerenciados.
Haverá o tráfico ilegal quando houver qualquer movimento trans-
fronteiriço de resíduos perigosos ou outros rejeitos transportados sem

205
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

as devidas notificações. É o que estipula o artigo 9º da Convenção: será


considerado como tráfico ilegal o movimento transfronteiriço de resíduos
perigosos ou outros rejeitos, quando: A) sem notificação, segundo os dis-
positivos da presente Convenção, para todos os Estados interessados; ou
B) sem o consentimento, segundo os dispositivos da presente Convenção,
de um Estado interessado; ou C) com o consentimento de Estados obtido
por meio de falsificação, descrição enganosa ou fraude; ou que não esteja
materialmente em conformidade com os documentos; ou D) que resulte
num depósito deliberado (por exemplo, dumping) de resíduos perigosos
ou outros resíduos, caracterizando violação da presente Convenção e de
princípios gerais do direito internacional, será considerado tráfico ilegal
(Brasil, 1993).
Desse modo, faz-se mister destacar as inúmeras responsabilidades es-
tipuladas entre os signatários da referida Convenção, tanto do exportador
quanto do importador, tais como: concluir o contrato com o encarregado
do depósito; fornecer garantias financeiras e seguras, apresentar notifica-
ções ao Estado de exportação e de trânsito; aguardas as devidas autoriza-
ções; completar e assinar documentos de movimento; e acompanhar o
processo de movimento transfronteiriço (Brasil, 1993).
A fim de consolidar o tratado ambiental ratificado, houve também a
promulgação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei nº
12.305, de 2 de agosto de 2010, dispondo, logo em seu artigo primeiro,
seus princípios, objetivos e instrumentos, bem como sobre as diretrizes
relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluí-
dos os perigosos, às responsabilidades dos geradores e do poder público e
aos instrumentos econômicos aplicáveis (Brasil, 2010).
Contrapondo, passa-se à análise quanto ao cunho que relaciona a
Convenção ratificada. Em seu artigo 49, a PNRS dispõe que é proibida
a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como de resí-
duos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde
pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma,
reuso, reutilização ou recuperação (Brasil, 2010).
Mesmo com a disposição no ordenamento jurídico, depara-se com
inúmeros casos de movimentos transfronteiriços clandestinos de resíduos

206
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

sólidos, tornando problema nos portos — isso pois as cargas importadas


possuem elementos tóxicos como lixo hospitalar, resíduos, baterias, serin-
gas, remédios fora de validade e outros. No entanto, como observado pela
norma supramencionada, tal importação é proibida.
Recentemente houve a apreensão no terminal gaúcho de Rio Grande
de lixo clandestino, em contêineres, incluindo aparas de papel, material
hospitalar usado, dejetos humanos, luvas cirúrgicas, descarte de material
para coleta em laboratórios, resto de alimentos, pneus, brinquedos e ou-
tros — ou seja, importação de lixo tóxico (Carta Capital, 2021).

Figura 1 — Apreensão no terminal gaúcho de Rio Grande

Fonte: Publicado na edição n.º 1151 de Carta Capital, em 1º de abril de 2021.

Importante ressaltar que na gestão e no gerenciamento de resíduos


deve ser observada umaordem de prioridade, qual seja: não geração, redu-
ção, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição
final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Posto isso, a implementação da referida lei trouxe ao país novas pers-
pectivas de definição dos resíduos, criando metas e objetivos a serem cum-
pridos em prol do desenvolvimento sustentável, isso tendo ainda como

207
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

respaldo o país ser signatário da Convenção já mencionada. Destacou os


principais objetivos de sua publicação em seu artigo 7º (Brasil, 2010), em
que dispõe:

Art. 7º São objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos:

I — proteção da saúde pública e da qualidade ambiental;

II — não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento


dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente
adequada dos rejeitos;

III — estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção e


consumo de bens e serviços; IV - adoção, desenvolvimento e apri-
moramento de tecnologias limpas como forma de minimizar im-
pactos ambientais;

V — redução do volume e da periculosidade dos resíduos perigo-


sos;

VI — incentivo à indústria da reciclagem, tendo em vista fomentar


o uso de matérias-primas e insumos derivados de materiais reciclá-
veis e reciclados;

VII — gestão integrada de resíduos sólidos;

VIII — articulação entre as diferentes esferas do poder público, e


destas com o setor empresarial, com vistas à cooperação técnica e
financeira para a gestão integrada de resíduos sólidos;

IX — capacitação técnica continuada na área de resíduos sólidos;

X — regularidade, continuidade, funcionalidade e universaliza-


ção da prestação dos serviços públicos de limpeza urbana e de ma-
nejo de resíduos sólidos, com adoção de mecanismos gerenciais e
econômicos que assegurem a recuperação dos custos dos serviços
prestados, como forma de garantir sua sustentabilidade operacional
e financeira, observada a Lei nº 11.445, de 2007;

XI — prioridade, nas aquisições e contratações governamentais,


para:

208
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

a) produtos reciclados e recicláveis;

b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis


com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis;

XII — integração dos catadores de materiais reutilizáveis e reciclá-


veis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo
ciclo de vida dos produtos;

XIII — estímulo à implementação da avaliação do ciclo de vida


do produto;

XIV — incentivo ao desenvolvimento de sistemas de gestão am-


biental e empresarial voltados para a melhoria dos processos pro-
dutivos e ao reaproveitamento dos resíduos sólidos, incluídos a re-
cuperação e o aproveitamento energético;

XV — estímulo à rotulagem ambiental e ao consumo sustentável.

Posto isso, a Lei nº 12.305 incorporou a diretriz da Agenda 21 e obje-


tivouobter condições ambientalmente saudáveis, economicamente viáveis
e socialmente justas, conforme os princípios do desenvolvimento susten-
tável.
Nota-se que a PNRS é mais restritiva do que a Convenção de Ba-
sileia, visto que proíbe o tráfico de resíduos perigosos, sem estabelecer
exceções, ao passo que a Convenção traz a hipótese de autorização de o
país importar como ressalva, o que induz o entendimento de que nessa
situação o tráfico é ilícito.
Observa-se que, ao trazer exceções, a Convenção de Basileia acaba
por contrariar os próprios objetivos de proteção à saúde humana e ao meio
ambiente, visto que dá abertura para fraudes como a ocorrida em notícia
supramencionada, em que os países exportadores simplesmente alegam
que a carga é de determinado produto e, na realidade, trata-se de resíduo
perigoso.
Registre-se, ainda, que a PNRS é omissa quanto ao tráfico de resí-
duos não perigosos, o que causa desconforto e abre precedentes para uma
possível violação da norma, à semelhança do que ocorre com a exceção
prevista na Convenção de Basileia.

209
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Portanto, diante dessas controvérsias, ainda resta verificar qual norma


deve ser aplicada quanto à importação de resíduos e resíduos perigosos:
PNRS ou Convenção de Basileia?
Atualmente são reconhecidos três níveis diferentes de tratados e con-
venções internacionais: Tratados e convenções sobre direitos humanos,
aprovados em dois turnos nas duas casas do Congresso, cada um com três
quintos dos votos dos respectivos membros, equivalentes a emendas cons-
titucionais, o que dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 3º
(Brasil, 1988).
Houve a pacificação, pelo Supremo Tribunal Federal, referente ao en-
tendimento sobre a hierarquia dos Tratados e Convenções Internacionais
no ordenamento jurídico brasileiro através dos Recursos Extraordinários
de nº 349.703 e nº 466.343. Com isso, realizaram-se algumas distinções
com base no processo legislativo de incorporação de normas internacio-
nais ao direito brasileiro e se o objeto de um tratado ou convenção diz
respeito aos direitos humanos.
Assim, se um tratado ou convenção internacional não tratar de di-
reitos humanos, a hierarquia será a do direito consuetudinário. Situação
diferente ocorre nos pressupostos que tratam dos direitos humanos, em
que a hierarquia será supralegal ou, se ratificada em cada casa da Assem-
bleia Nacional, em dois turnos, com três quintos dos votos dos respectivos
membros, seria igualmente correspondente às emendas constitucionais.
No caso analisado, caso haja o entendimento de que a Convenção da
Basiléia envolve direitos humanos ambientais — o que de fato ocorre e
dispõe —, então se pode concluir pela supralegalidade, porque não passou
pelo processo a fim de constituir uma emenda constitucional. Portanto,
ainda que a Lei 12.305/2010 seja posterior e tenha expertise para regula-
mentar a matéria, não tem o condão de revogar a Convenção de Basileia
devido à hierarquia, tornando-se um preceito sem a força normativa que
deveria conter, resultando, assim, na fragilidade do sistema legal em um
contexto nacional e transnacional.
Percebe-se assim, no entanto, a divergência entre o estabelecido junto
ao ordenamento jurídico que rege o país e a realidade enfrentada, da qual
não segue o imposto pela norma regulamentadora.

210
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Visando auxiliar o desenvolvimento, o fortalecimento do setor de ges-


tão de resíduos sólidos no país e a atuação junto aos princípios de proteção
ambiental e o desenvolvimento sustentável, através de parcerias com os se-
tores público e privado, há a ABRELPE (Associação Brasileira de Empre-
sas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais). Ressalta-se tal associação
pois é a responsável em fornecer dados e estudos estatísticos quanto aos
resíduos, trazendo, em publicações anuais, o comportamento da geração
de resíduos das diversasregiões do país, com dados financeiros, estatísticas
de destinação, entre outros. Isso pois as nuances do dia a dia dos indi-
víduos concentraram-se no ambiente doméstico, incluindo a produção
e o descarte de resíduos. Por outro lado, as atenções das administrações
municipais passaram a ter foco quase que exclusivamente nos serviços de
atendimento à saúde (ABRELPE, 2021).
Esse fato demonstra e ressalta que há evolução da geração per capita dos
resíduos sólidos no Brasil,e que a geração dos resíduos leva consigo outras
questões, como fatores sociais, econômicos e culturais. Ainda, demonstra
o notório de que onde há maior concentração de renda é maior a propen-
são ao consumo e consequentemente maior a propensão à produção do
resíduo. Sendo assim a geração per capita e a caracterização dos resíduos
tem a ver com o desenvolvimento econômico de um país, o poder aquisi-
tivo e o correspondente consumo de uma população.
Esses dados demonstram a dissonância entre as diretrizes estabelecidas
pela lei e pela Convenção, e os desdobramentos da má gestão dos resíduos
que atualmente se impõem em uma sociedade mundial de consumo, tra-
zendo críticas direcionadas não apenas pela perspectiva econômica, mas
também — e principalmente — pelo viés ambiental.
Por isso, um dos obstáculos para conter o contrabando, fora o elevado
fluxo de cargas e mercadorias nos portos — brasileiros e de todo o mun-
do, como já mencionado —, é o aumento desenfreado da produção de
lixo nas sociedades modernas. Apesar da providência tomada, a situação
continua. No ano de 2010, no Porto de Rio Grande, foi interceptado pela
Receita Federal e pelo IBAMA um contêiner, proveniente da Alemanha,
com 22 toneladas de lixo, entre fraldas descartáveis, rações e matéria or-
gânica, como alimentos em decomposição. À transportadora sul-coreana

211
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Hanjin Shipping foi imposta multa de R$ 1,5 milhão, e à importadora


Recoplast multa de R$ 400 mil — a qual alegou que iria recorrer, ar-
gumentando que a carga encomendada era de polímeros de etileno para
reciclagem (Porto, 2010).
Em 2011, no Porto de Suape, litoral sul de Pernambuco, foram
apreendidas pela Alfândega da Receita Federal 23 toneladas de lixo hospi-
talar em contêineres oriundos dos EUA. A carga estava identificada como
se fosse tecido de algodão defeituoso, mas, na realidade, tratava-se de lixo
hospitalar, como gazes, seringas, ataduras usadas, catéteres e lençóis com
fluídos orgânicos, classificados como resíduo sólido potencialmente infec-
tante e perfurocortante (ANVISA, 2011). No mesmo ano, foram apreen-
didos por fiscais da Receita Federal no Porto de Itajaí, Santa Catarina,
60 toneladas de resíduos provenientes da Espanha, em seis contêineres,
os quais continham plástico e material orgânico com mau cheiro, larvas
e insetos. O trajeto do lixo espanhol durou cerca de 40 dias e incluiu seis
países — Espanha, Itália, Portugal, Argentina, Uruguai e Brasil (Raffin,
2011).
Recentemente, em setembro de 2013, foram apreendidos por Fiscais
da Receita Federal e pelo IBAMA, no Porto de Navegante, Santa Ca-
tarina, 15 contêineres com 353 toneladas de lixo tóxico, importado dos
EUA, que continha vidros de tubos de raios catódicos contaminados por
chumbo. A carga, todavia, foi declarada como cacos, fragmentos e resí-
duos de vidro destinados ao processamento em indústrias (Folha, 2013).
Esses casos, a título de exemplo, mostram a importância de uma le-
gislação — seja através de tratados ou atos normativos em disposição no
ordenamento jurídico — que disciplina concomitantemente e no mesmo
direcionamento e previsões a situação (causa e efeitos) dos resíduos sóli-
dos; e, mais do que isso, revelam a necessidade da eficácia e da aplicabili-
dade das normas.

2. CONTROLE PARA O DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL E PARA GARANTIA À CIDADANIA

A Constituição Federal enfatiza em seu texto o desenvolvimento na-


cional como sendo um dos objetivos fundamentais do Estado, conforme

212
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

dispõe em seu artigo 3º, inciso II (Brasil, 1988). Para tanto, é necessário
que existia uma harmonização com a ordem econômica, conforme tam-
bém dispõe em seu artigo 170 e seguintes, em que, assim, estabelecerá o
crescimento econômico (art. 170, caput), atenderá aos princípios em defesa
do meio ambiente (art. 170, VI) e conseguirá reduzir as desigualdades re-
gionais e sociais (art. 170, VII).
Desse modo, demonstra-se a tríade basilar do desenvolvimento sus-
tentável, constitucionalmente prevista pelos artigos supramencionados,
estabelecendo uma responsabilidade intergeracional que se encerra no art.
225 da Constituição Federal — artigo que dispõe que todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tornando-o um direito
fundamental.
Por conseguinte, através da análise dos artigos da Constituição, evi-
dencia-se que o desenvolvimentonacional sustentável abrange quatro ele-
mentos constituintes, quais sejam: o crescimento econômico, a justiça so-
cial, a defesa do meio ambiente e a responsabilidade intergeracional.
Essa responsabilidade intergeracional deve ocorrer, por exemplo, en-
tre os países que são signatários da Convenção de Basileia. Assim, devem
garantir os moldes estabelecidos no parâmetro frente ao controle dos mo-
vimentos transfronteiriços, a fim de que sejam devidamente regulamenta-
dos e não ocorram de forma ilegal.
Cumpre ressaltar que existem múltiplas interpretações do termo de-
senvolvimento sustentável. O documento elaborado pela Comissão Mun-
dial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, evento realizado em
1987,conhecido como Relatório de Brundtland (nomeado assim pelo fato
de que a comissão foi presidida pela então primeira-ministra norueguesa
Gro-Bruntland), definiu o termo como “o desenvolvimento que satisfaça
as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações fu-
turas de suprir suas próprias necessidades” (Faladori, 2001).
O Relatório Brundtland parte de uma série de iniciativas que ante-
cederam a Agenda 21 — já mencionada, a qual foi elaborada durante a
ECO 92 —, em que se reiterou uma visão crítica do modelo de desenvol-
vimento adotado pelos países industrializados e replicado pelos países em
desenvolvimento. Por isso destacou o risco excessivo de recursos naturais

213
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

utilizados, independentemente da capacidade de suporte do ecossistema.


O relatório aponta que o desenvolvimento sustentável é incompatível com
os padrões de produção e consumo que prevalecem na sociedade moderna
(Bezerra; Fernandes, 2000).
Ainda, o documento da Agenda 21 critica o atual modelo de de-
senvolvimento econômico, visto como socialmente injusto e esbanjador
do ponto de vista ambiental — recurso este finito. Para a alteração des-
se modelo, propõe-se uma nova sociedade respaldada em um ambiente
ecologicamente responsável, havendo produção sustentáveis e alternativas
de produtos. Para tanto, imperioso se faz o fortalecimento dos moldes já
estipulados para garantia de disposição final dos resíduos sólidos e na ges-
tão compartilhada de recursos. Com isso, como bem destaca Sato (1997),
propostas de desenvolvimento econômico que não incorporam fatores so-
ciais e ambientais estão fadadas ao esquecimento.
Vários autores argumentam que há uma contradição, uma oposição
intratável entre os conceitos de desenvolvimento sustentável e sustentabilidade.
O primeiro é considerado um conceito abrangente da mesma sociedade,
cujos modelos mostram seu esgotamento. O segundo é fruto de um movi-
mento histórico recente que questionou fortemente a sociedade industrial.
Outra tendência importante afirma que o conceito de sustentabilidade
vem da ecologia e que sua operacionalidade em comunidades humanas
ainda não foi admitida. Apesar da discussão acalorada, Bezerra e Fernan-
des (2000) apontam que o conceito de desenvolvimento sustentável ainda
está em constante construção.
Sato (1997) argumenta que as discussões sobre a definição do termo
desenvolvimento sustentável são inofensivas, gerando mais conflito na teoria
do que na prática. O Relatório Brundtland previu muitas de suas diver-
gências conceituais, observando que não é necessário o acordo teórico,
mas a ação. As razões para essas diferenças estão nas diferenças regionais e
internacionais existentes, pois há “países ricos” de um lado — países ricos
que abraçam o discurso do desenvolvimento sustentável, com a gestão de
seus resíduos aparentemente legal — e “países pobres” de outro lado, apesar
da abundância de recursos naturais, com compreensão da interdepen-
dência das relações globais.

214
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

No entanto, como nos casos demonstrados, o que se percebe é a pre-


valência econômica dos países desenvolvidos para que os países subde-
senvolvidos controlem e “assumam” os rejeitos finais de um consumo
desenfreado praticado em seus países. Assim, transformam esses países
subdesenvolvidos em verdadeiros lixões. Seria esse o modelo ideal para
o desenvolvimento sustentável? E ainda, é nesse molde que caminha o
ordenamento jurídico em vigência em países como o Brasil, signatário
da Convenção de Basileia e com Política Nacional de Resíduos Sólidos
em vigor?
Há esse hiato entre as concepções entre desenvolvimento sustentável
e o que de fato ocorre entre fronteiras.
Jacob (2003) acredita que o desenvolvimento sustentável pode ser en-
tendido como um processo: por um lado, as restrições mais importantes
estão relacionadas ao desenvolvimento de recursos, direção do desenvol-
vimento tecnológico e macroinstitucional; por outro lado, o crescimento
deve enfatizar aspectos de qualidade, especialmente relacionados à equida-
de, ao uso e à geração de resíduos e poluentes. Além disso, ofoco deve ser a
superação de déficits sociais, necessidades básicas e mudanças nos padrões
de consumo, especialmente nos países desenvolvidos, para que os recursos
básicos possam ser mantidos e aumentados.
Na mesma linha, para o autor deve existir a adoção, assimilação e
implementação dos conceitos deeducação e consciência ambiental, de de-
senvolvimento sustentável, de produção limpa e princípio poluidor, entre
outros (Jacob, 2003). Tais medidas são amplamente reafirmadas, como
ocorreu na Conferência da Organização das Nações Unidas. Entretanto,
são medidas que confrontam o sistema de produção e consumo capitalista,
e, assim, mostram-se insuficientes para promover a ruptura necessária para
efetivas mudanças.
O conceito de desenvolvimento sustentável estabelecido durante a
ECO 92 considera que o desenvolvimento econômico dever ser conci-
liado juntamente com a sustentabilidade ambiental e social. Para tanto,
imprescindível se faz uma sustentabilidade econômico-financeira capaz
de garantir o desenvolvimento pleno.

215
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Porém, como ressalta May e Motta (1994), “embora existam


inúmeras formas de se definir desenvolvimento sustentável, o que na
verdade está se discutindo é a crescente preocupação com os atuaispadrões
de crescimento econômico que podem resultar na inviabilidade da vida
humana na Terra”.
Já em relação à gestão dos resíduos sólidos, Abreu (2001) salienta que
os obstáculos são evidenciados pelo alto potencial poluidor das nações e
pelo déficit do manejo, o que pode relacionar-se diretamente aos casos em co-
mento do tráfico ilegal de resíduos sólidos. Há, nesses exemplos, demonstração clara
de déficit no manejo pelo exportador e o baixo potencial econômico do importa-
dor — isso quando a movimentação se dá nos moldes estabelecidos entre os países
signatários. O problema de fato se dá na falta do controle da movimentação trans-
fronteiriça.
Ressalta-se também como problemática a inutilização de potenciais
para reciclagem ou outro método de reaproveitamento desses resíduos
produzidos por ambos os países — seja signatário ou não, desenvolvido
ou em subdesenvolvimento, exportador ou importador.
Posto isso, com as definições de desenvolvimento sustentável já deli-
neadas, frisa-se que a Sustentabilidade Social pode ser alcançada mediante
a interação de setores nacionais e internacionais.
Galbiati (2005) frisa que na gestão dos resíduos sólidos urbanos a sus-
tentabilidade ambiental e social se constrói a partir de modelos de sistemas
integrados, que possibilitem a redução dos resíduos gerados pela população
local, a reutilização de materiais descartados e a reciclagem dos materiais
que possam servir de matéria-prima para a indústria, diminuindo dessa
forma o desperdício e gerando renda.
Ademais, para que uma nova regulamentação atenda ao interesse pú-
blico e científico, especialmenteno que tange à proteção e ao uso sustentá-
vel da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados,e, ainda,
a sustentabilidade aos serviços prestados ao manejo dos resíduos, será ne-
cessária a representação de determinados setores da sociedade, buscando-
-se construir pontes de entendimento entre todas as partes envolvidas e
não defendendo corporativamente interesses específicos.

216
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Nesse sentido, caminharemos na busca de alternativas que fortale-


çam o arcabouço jurídico-institucional de proteção ambiental, de maneira
geral, e da diversidade biológica, especificamente — busca que se fun-
da sobre a harmonização desses objetivos sem que haja, por via reflexa,
descaracterização de direito anteriormente tutelado. Assim, procuramos
contribuir para o aprofundamento do modelo de sustentabilidade defini-
do constitucionalmente, assegurando os direitos das futuras gerações com
base no princípio do não retrocesso ecológico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescente problema referente à disposição correta dos resíduos só-


lidos no Brasil e no mundo demonstra a necessidade quanto ao fortaleci-
mento do ordenamento jurídico a fim de nortear sua gestão — isso para
que as políticas públicas sejam capazes de implementar as questões de se-
gurança ambiental.
Conforme explanado no decorrer do presente artigo, verifica-se que
tanto a Lei nº 12.305/2010, a qual institui a Política Nacional de Resíduos
Sólidos, quanto a Convenção de Basileia, são instrumentos legais com o
intuito de coibir o tráfico ilegal de Resíduos Sólidos Perigosos.
Em alguns casos, porém, ocorre o contrário, pois a PNRS é obrigató-
ria na declaração de proibição, enquanto a Convenção introduz uma série
de exceções que deixam margem para o descumprimento. Ademais, para
fundamentar esse hiato existente, considera-se que a PNRS é de direi-
to consuetudinário, ao passo que a Convenção tem hierarquia supralegal
e deve prevalecer, tornando as normas impressas no Regimento Interno
uma simples ferramenta sem força alguma.
De todo modo, a difícil lição que emergiu foi a compatibilidade entre
a Convenção de Basileia e a Lei nº 12.305/2010. Claramente, o ideal se-
ria apoiar uma maior proteção do Estado. Dessa forma, as regras internas
deveriam prevalecer sobre a Convenção, e a única forma de se conseguir
isso é mudando a redação da Convenção de Basileia para excluir exceções.
No entanto, a situação não é tão simples quanto parece, pois é de natureza
transnacional e afeta países e nações.

217
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Demonstra-se ainda que não basta a alteração no efeito atingido por


essas exceções, mas também sobre a causa do problema: a atuação da so-
ciedade como geradora de infinitos resíduos sólidos, não havendo preo-
cupação com sua destinação final. Mediante todos esses instrumentos
persecutórios, tem-se como imperioso a redução ao mínimo da geração
dos resíduos para a busca de um desenvolvimento mundial que de fato
seja sustentável.
Nota-se que a trajetória da Convenção de Basileia foi marcada por
profundas e conflituosas tensões, envolvendo uma multiplicidade de inte-
resses. Por um lado, o grupo de países desenvolvidos vê a perda da possi-
bilidade de comercializar resíduos perigosos e, assim, evitar os altos custos
de gerenciá-los. Por outro lado, também existem países em desenvolvi-
mento que ratificam a Convenção porque sofrem as consequências das
relações de exploração estabelecidas pelos países desenvolvidos.
Com isso, é incontestável o desafio posto à Convenção de Basileia e
à Política Nacional de Resíduos Sólidos. Não obstante, por maiores que
sejam os seus desafios globais e nacionais, carregam tais normas princí-
pios éticos e morais, pois representam instrumentos estimuladores da
justiça ambiental.
Assim, mesmo tendo ciência de suas inúmeras fragilidades e desafios,
desqualificá-la é negar a importância daquela que pioneiramente apresen-
tou freios à movimentação transfronteiriça de resíduos perigosos e trouxe
à tona a necessidade de se regulamentar a situação exploratória até então
vivenciada pelos países em desenvolvimento.
Somente assim haverá a preservação do meio ambiente não só para
proveito das gerações presentes como também das futuras. Além disso,
como consequência, possibilitará uma decrescente produção de resíduos,
o que corrobora com a efetivação de um desenvolvimento sustentável e
de uma cidadania efetiva, ambas garantidas constitucionalmente a todos
os indivíduos.

REFERÊNCIAS

ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2021. V. 1,


2021.

218
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

ABREU, Maria de Fátima. Do lixo à cidadania: estratégias para a ação.


Brasília: Caixa Econômica Federal e UNICEF, 2001. 94 p.

ANVISA. ANVISA e Receita Federal apreendem container com


lixo hospitalar no Porto de Suape. 12 out. 2011. Disponível em:
http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+port al/anvisa/sala+-
de+imprensa/menu+- +noticias+anos/2011+noticias/anvisa+e+recei-
ta+fe deral+apreendem+container+com+lixo+hospitalar+ no+por-
to+de+suape. Acesso em: 1 dez. 2022.

BEZERRA, Maria do Carmo de Lima; FERNANDES, Marlene Allan


(coord). Cidades Sustentáveis: subsídios à elaboração da Agen-
da 21 brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente: Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis;
Consórcio Parceria 21 IBAMISER- REDEH, 2000. 155 p.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Grá-
fico, 1988.

BRASIL. Decreto nº 875/1993. Disponível em: D875 (planalto.gov.br).


Acesso em: 1 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/
l11445. Acesso em: 24 jul. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. Disponível em:http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12305.
htm. Acesso em: 5 abr. 2022.

FOLHA, Centro Sul. 350 toneladas de lixo tóxico vindo dos EUA
são apreendidos em Santa Catarina. 13 set. 2013. Disponível em:
http://folhacentrosul.com.br/geral/1871/350- toneladas-de-lixo-to-
xico-vindo-dos-eua-saoapreendidos-em-santa-catarina.

GALBIATI, Adriana Farina. O gerenciamento integrado de resíduos


sólidos e a reciclagem. 2005. Disponível em: https://www.refea-
guape.org.br. Acesso em: 7 ago. 2022.

219
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

JACOB, Pedro. Educação Ambiental, Cidadania e Sustentabilidade. Ca-


dernos de Pesquisa, n. 118. São Paulo, Fundação Carlos Chagas,
2003.

MARIS, Thiago; ALMEIDA, Luciana Togeiro de. A Convenção de Ba-


siléia e os Desafios para o seu progresso. In: II SIMPÓSIO DE PÓS-
-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO
PROGRAMA “SAN TIAGO DANTAS” (UNESP, UNICAMP
e PUC/SP). Anais. Disponível em: http://www.santiagodantassp.
locaweb.com.br/br/simp/artigos2009/thiago_maris_luciana_almei-
da.pdf.

MAY, P. H.; MOTTA, R. S. Introdução. Valorando a natureza:


análise econômica para o desenvolvimento sustentável. Rio de Ja-
neiro: Campus, 1994.

PORTO, J.; FÉ, V. Mais lixo vindo da Inglaterra foi encontrado


ontem no Porto de Santos. IBAMA, 16 jul. 2009. Disponível em:
http://www.ibama.gov.br/noticias-2009/mais-lixovindo-da-ingla-
terra-foi-encontrado-ontem-no-portode-santos Acesso em: 4 maio
2023.

SATO, Michèle. O Desenvolvimento. In: SACHS, I. Ecodesenvolvi-


mento. Cadernos do NERU — ICHS — UFMT, n. 6. Cuiabá:
Editora da UFMT, 1997. p. 61–95.

SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio


ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo:
Atlas, 2001.

VEIGA, Marcelo Mota; VEIGA, Lilian Bechara Veiga. Análise socioe-


conômica dos movimentos transfronteiriços de resíduos só-
lidos. Disponível em: http://www.abepro.org.br/biblioteca/ENE-
GEP2005_Enegep0301_0832.pdf. Acesso em: 2 dez. 2022.

220
ANÁLISE COMPARATIVA DAS ÁREAS
DE PRESERVAÇÃO NO ENTORNO
DOS RIOS URBANOS: PARALELO
BRASIL E PORTUGAL
Erika Matsugano36.
Simone Polli37

INTRODUÇÃO

Em 2010 a Assembleia Geral da ONU reconheceu na Resolução nº


64/292, que determina o acesso à água limpa e segura e ao saneamento
básico como direitos humanos fundamentais. As mudanças climáticas e os
impactos nos recursos hídricos, além das inundações, afetam a qualidade
da água e sua disponibilidade nos centros urbanos. Populações buscaram
se instalar em locais onde o acesso à água fosse facilitado, portanto, na an-
tiguidade as grandes cidades nasceram próximas aos rios, como o Nilo no
Egito, com base na agricultura.
Porém, à medida que a cidade expandiu e o ser humano adotou a
lógica de domínio da natureza, os rios passaram a sofrer os impactos
hidrológicos e ambientais do crescimento urbano (Baptista; Cardoso,

36 Mestranda no Programa de Planejamento e Governança Pública da UTFPR.


37 Docente da UTFPR.

221
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

2013). Diante desse contexto, o presente estudo apresenta o escopo


de analisar a aplicabilidade da norma legal quanto aos institutos de
Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as águas, especialmente
a dos rios urbanos, conforme a legislação ambiental brasileira e por-
tuguesa.
Dessa forma, é necessária a integração da natureza com as cidades.
A urbanização gera impactos ao ambiente por potencializar a desi-
gualdade social, por provocar carência de habitação, desemprego, pro-
blemas de higiene e de saneamento básico, e, em situações extremas,
é capaz de tornar a paisagem urbana ambientalmente degradada nos
meios físico, biótico e antrópico (Medeiros et al., 2017).
O presente trabalho é um estudo comparado do tratamento dado
às APPs no Brasil e em Portugal, sobre a legislação aplicada, com o
objetivo de demonstrar como aplicar as leis combinando as normas,
com a proteção e preservação ambiental, a partir dos temas das APPs
e os recursos hídricos como elementos que possam contribuir para a
compreensão dessas áreas.
Utiliza-se o método bibliográfico e comparativo dos ordenamen-
tos português e brasileiro — a legislação e os institutos utilizados —, a
partir das legislações vigentes, de levantamento bibliográfico e, ainda,
introduzindo uma discussão do tema dos rios urbanos em áreas urba-
nas consolidadas baseada em princípios e normas relativas ao assunto.
A análise busca trazer paralelos entre Brasil e Portugal, com as
suas diferentes perspectivas ante suas diferenças territoriais, econô-
micas, sociais e institucionais; busca-se verificar as semelhanças e di-
ficuldades entre a implementação das normas de política de ordena-
mento urbano na visão do gestor local, e com isso trazer considerações
e recomendações finais.

1. METODOLOGIA

O trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica,


conforme Gil (2002), que traz elementos sobre o conhecimento pro-
duzido sobre qualquer assunto; pesquisa documental, com a coleta de
informações secundárias e sem tratamento. Utilizando-se do méto-

222
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

do de abordagem e pesquisa jurídica com o método comparativo, de


acordo com Gil (2002), com a utilização das semelhanças e diferenças
por meio da observação dos ordenamentos legais brasileiros e portu-
gueses, nos pontos em que se aproximam, respeitando suas especifi-
cidades.
A escolha de Portugal e Brasil baseou-se nos argumentos defendi-
dos por Tonelotto e Crozatti (2017), que afirmam que são dois países
com proximidade cultural e histórica, dado que a estrutura do setor
público brasileiro teve suas origens nas estruturas existentes em Por-
tugal e ainda hoje ambos conservam similaridades entre si.
Traz-se um panorama da legislação de proteção ambiental, nos
dois países, em relação às APPs, sendo que o consenso mundial é de
que as áreas naturais devem ser preservadas, e as medidas tomadas vi-
sam apoiar esse posicionamento.

2. MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E OS RECURSOS


HÍDRICOS

No processo de crescimento urbano, a lógica do mercado imobi-


liário propicia a divisão da cidade em cidade legal e cidade ilegal (Ma-
ricato, 2002; Rolnik, 2006). A cidade legal é aquela parte da cidade
que é contemplada pelo poder público que busca suprir as necessida-
des de infraestrutura, além de ser valorizada pelo mercado imobiliá-
rio. Ao mesmo tempo, a “cidade ilegal” se refere à porção irregular
da cidade, não reconhecida pelo poder público em termos de planos
urbanísticos, sendo caracterizada por Maricato (2002) como o “lugar
fora das ideias”.
Brasil e Portugal possuem semelhanças na preocupação ambien-
tal: as legislações portuguesas elaboradas pelo reino transferiram suas
decisões também para o Brasil, focadas principalmente nas questões
econômicas. Jung (2011) relata que a preocupação com a proteção à
natureza, através do controle na exploração de determinados recursos
naturais, foi descrita inicialmente nas Ordenações Filipinas, no século
XVI.

223
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

2.1 LEGISLAÇÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO


BRASILEIRO E PORTUGUÊS

A Constituição Brasileira de 1934 previa a responsabilidade da


União e dos Estados quanto à proteção das belezas naturais e dos mo-
numentos de valor histórico e artístico. Dentro desse contexto, os
principais dispositivos legais criados para proteção da natureza foram:
1) o Código Florestal (Decreto nº 23.793/34); 2) o Código das Águas
(Decreto nº 24.643/34); 3) o Código de Caça e Pesca (Decreto nº
23.793/34); e o Decreto de Proteção aos Animais (Medeiros, 2006).
Em 1964, o Novo Código Florestal foi revisto e aprovado — Lei nº
4.771/65 (Brasil, 1965), extinguindo as quatro tipologias de áreas pro-
tegidas antes previstas na versão de 1934, substituindo-as por: Parque
Nacional e Floresta Nacional (categorias específicas), Áreas de Preser-
vação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) (Medeiros, 2006).
Com a elaboração do Código Florestal — Lei nº 12.651/12 (Bra-
sil, 2012), os maiores debates trouxeram as atenções das comunidades
internacionais. As áreas de preservação permanente não têm apenas
a função de preservar a vegetação ou a biodiversidade, mas possuem
uma função ambiental muito mais abrangente, voltada, em última
instância, ‘‘a proteger espaços de relevante importância para a conser-
vação da qualidade ambiental como a estabilidade geológica, a prote-
ção do solo e assim assegurar o bem-estar das populações humanas’’
(Schaffer et al., 2011, p. 9).
É indiscutível a existência de grande número de instrumentos à
disposição do Estado capazes de produzir uma cidade mais igualitária,
mas ao serem efetivados afetarão diretamente interesses individuais e
de determinados grupos sociais e, por esse motivo, têm sua aplicação
limitada, devido a grande resistência de grupos ligados à especulação
imobiliária (Gomes; Pinto, 2020).

2.2 ÁREAS DE PROTEÇÃO E PRESERVAÇÃO

O crescimento desordenado e sem planejamento das cidades cria


cenários antagônicos, em que de um lado estão os moradores dos cen-

2 24
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tros urbanos (representados pela cidade legal ou formal) e de outro a


classe menos favorecida (representada pela cidade ilegal ou informal),
que vive à margem da sociedade e distante de onde se encontram os
equipamentos públicos que dão acesso, por exemplo, à saúde, ao lazer
e à melhor qualidade de vida.
O termo Áreas de Preservação Permanente tem seu nascedouro,
de acordo com Antunes (2015), ainda sob a designação de florestas
protetoras, desde o Decreto 4.421, de 28 de dezembro de 1921, que,
em seu artigo 3º, inciso I, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, estabeleceu o que eram as
florestas protetoras (Brasil, 1921).
O termo APPs surgiu em 1934, quando foi criado o primeiro
Código Florestal Brasileiro — Decreto nº 23.793 (Brasil, 1935), a
partir do qual era conferida a proteção às florestas. Assim, deveriam
conservar o recurso hídrico, evitar a erosão do solo e proteger os sí-
tios que, por sua beleza natural, merecessem ser conservados (artigo
4º). Nesse mesmo ano, os recursos naturais foram tratados de maneira
bastante protetiva, tendo sido editados o Código das Águas (Decreto
nº 24.643/34) e medidas de proteção e defesa dos animais (Decreto
nº 24.645/34).
A legislação brasileira define Áreas de Preservação Permanente
(APPs) como espaços territoriais protegidos, no art. 225 da Consti-
tuição Brasileira. O Código Florestal (Lei nº 12.651/12 e alteração
posterior, Lei nº 12.727/12) traz um detalhamento das Áreas de Pre-
servação Permanente (aplicável a áreas rurais e urbanas), além de defi-
nir outros espaços de uso limitado.
O art. 3°, inciso II da Lei 12.651/2012, define a área de preserva-
ção permanente como a “área protegida, coberta ou não por vegeta-
ção nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos,
a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o flu-
xo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das
populações humanas”, definição semelhante a que constava no art. 1º,
§ 2º, II da Lei 4.771, antigo Código Florestal.
Na Figura 1 é apresentada uma linha do tempo da evolução legis-
lativa do Brasil sobre a temática ambiental:

225
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Figura 1 — HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA

Fonte: Brancalion et al. (2012).

O termo preservação permanente tem sua razão de ser no sentido de


que se diferenciam os conceitos de conservação e preservação. A noção de
preservação, como espécie do gênero conservação, está caracterizada pela
prevenção específica e pela atuação necessária para a manutenção integral
de um meio natural em suas características cientificamente ideais e origi-
nais (Valera, 2017).
No entanto, à medida que a cidade expandiu e o ser humano adotou
a lógica de domínio da natureza, os rios passaram a sofrer os impactos hi-
drológicos e ambientais do crescimento urbano (Baptista; Cardoso, 2013).
As áreas de preservação permanente são as áreas localizadas em
imediações de nascentes e cursos d´água, lagoas, lagos ou reservatórios
d݇gua naturais e ou artificiais, os topos de morro e serras, as encostas com
aclive acentuado, as restingas na faixa litorânea e as vegetações localizadas
em determinadas áreas urbanas, sendo que neste trabalho iremos tratar das
áreas no entorno dos rios urbanos, especificamente.

226
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

As áreas de APPs públicas, localizadas em áreas urbanas consolidadas,


são importantíssimas para a preservação do rio, da fauna e do abasteci-
mento urbano (quanto mananciais), no entanto, são de difícil manuten-
ção. Sofrem uma pressão por ocupação derivada do preço da terra. O po-
der público tem dificuldade de fiscalização, controle e manutenção dessas
áreas, ainda mais em momentos de recessão econômica, em que os altos
aluguéis reforçam a informalidade urbana e a pressão pela sua ocupação.

2.3 AS ÁREAS PROTEGIDAS EM PORTUGAL

Portugal, na sua organização administrativa, tem sistema legal repu-


blicano unitário, com distribuição territorial do poder político, dividido
em 18 distritos e duas regiões autônomas, portanto, não há divisão hie-
rárquica direta entre os entes do estado maior, sendo o problema da dis-
persão legal também vigente neste país, em termos tanto temporal quanto
material, o que dificulta a coerência das decisões relativas ao tema florestal
(Portugal, 2005).
Dentro da legislação portuguesa não se encontra termo equivalente
ao utilizado no Brasil para área de preservação permanente, porém, isso
não significa que o país não adote regulamentações, limitações e prote-
ções às suas áreas de preservação de forma geral, pois em algumas legisla-
ções locais os termos definem claramente o que deve ser protegido.
A Legislação Nacional de Portugal, no domínio do ambiente, englo-
ba leis e normas sobre cada fator que influencia a qualidade e a preservação
do meio ambiente, como: qualidade do ar e das águas, manejo de substân-
cias perigosas, proteção da saúde etc. (SOUZA et al., 2011).
Nesse contexto, a caracterização das Áreas de Preservação em Portu-
gal é dada por legislação específica, adaptada às características da região.
A Constituição de Portugal, assim como a brasileira, institui normas am-
bientais que estipulam tarefas e obrigações do Estado e normas que garan-
tem direitos subjetivos aos cidadãos.
Portugal possui diversos tipos de organizações voltadas para a prote-
ção do meio ambiente, e o tema das questões ambientais e climáticas é de
responsabilidade da APA (Agência Portuguesa do Ambiente), órgão do
Ministério do Ambiente. Ainda assim, o tema climático não se encerra

227
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

exclusivamente nas competências da APA, sendo que as autarquias e ou-


tras instituições podem, autonomamente, tomar medidas para o combate
às alterações climáticas.
Em Portugal, a Lei de Bases da Política Florestal (Portugal, 1996) é
menos coercitiva e limitadora que o Código Florestal Brasileiro, e parte de
princípios e linhas mestras de políticas a serem observadas por leis especí-
ficas. Portugal utiliza o Programa Nacional de Políticas de Ordenamento
do Território (PNPOT), um modelo territorial para o país que se consoli-
da como instrumento nacional de coordenação de políticas. Também uti-
liza os Planos de Ordenamento Florestal (POF) para controlar e planejar
sua extensão territorial — desde o plano mais amplo, o regional (PROF),
que abrange áreas com afinidades específicas. Os PROFs fornecem o en-
quadramento técnico e institucional apropriado para a minimização dos
conflitos relacionados com categorias de usos do solo e modelos silvícolas
concorrentes para o mesmo território.
Cunha et al. (2020) afirmam que “apesar da sua tradição centralis-
ta, a multiplicidade de planos e programas existentes fundamenta-se na
premissa de gestão integrada do território, conforme preconizado pelo
projeto europeu. Dessa forma, as sucessivas reformas regulamentares es-
timularam ações estratégicas para ampliar a capacidade de articulação dos
mecanismos de coordenação das políticas setoriais”.

2.4 ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE NO BRASIL

Mello (2008), em sua abordagem sobre as formas de uso e ocupação


das margens de corpos d’água urbanos, trata sobre a função ambiental das
APPs que ainda possuem vegetação remanescente nas margens de cursos
d’água (como, por exemplo, sistemas de água corrente, corredeiras, rios
e riachos), enfatizando que são extremamente importantes em razão dos
benefícios que oferecem aos Municípios, principalmente na prevenção da
ocorrência de desastres e em relação à qualidade da vida urbana.
Maricato (2000) afirma que a legislação brasileira possui rigoroso e
amplo aparato regulatório que controla a produção do espaço urbano, e,
portanto, não é pela falta de material legislativo que as cidades crescem de

228
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

modo desorganizado, mas sim pela desconsideração da ilegalidade vivida


pela maioria da população:

Não é por falta de planos e nem de legislação urbanística


que as cidades brasileiras crescem de modo predatório. Um
abundante aparato regulatório normatiza a produção do es-
paço urbano no Brasil — rigorosas leis de zoneamento, exi-
gente legislação de parcelamento do solo, detalhados códigos
de edificações são formulados por corporações profissionais
que desconsideram a condição da população urbana brasilei-
ra em relação à moradia e à ocupação da terra, demonstrando
que a exclusão social passa pela lógica da aplicação discrimi-
natória da lei (Maricato, 2000, p. 147).

Pes (2017) considera que ao analisar os ordenamentos jurídicos do


Brasil e de Portugal, notadamente a proteção ambiental constitucional e
algumas normas que dispõem sobre a política de tutela do meio ambien-
te, é possível concluir que existe uma base legal mínima, composta por
instrumentos e institutos jurídicos, capaz de assegurar a proteção legal ao
meio ambiente. No Brasil, a inclusão de um capítulo próprio sobre o as-
sunto na Constituição e, em Portugal, as disposições constitucionais sobre
o ambiente, tanto na dimensão de direito objetivo, quanto na dimensão de
direito subjetivo, são fundamentais para efetivar a proteção do ambiente.
Segundo Maricato, há uma grande lacuna entre a “retórica e a prá-
tica” do planejamento urbano no Brasil. No campo discursivo, os tex-
tos que pretendem nortear o desenvolvimento urbano estão fincados nos
direitos universais, pautados pela igualdade preconizada na constituição
brasileira, na normatividade cidadã, enquanto em sua prática prevalecem
a cooptação, o favor, a discriminação e a desigualdade (2000, p. 135).
Entretanto, esse arcabouço legal é antagônico à prática de crescimento da
cidade, e não apenas em seu território informal, mas, sobretudo, nas ações
da cidade formal, sob liderança do poder executivo. Segundo a autora, vi-
venciamos, no campo conceitual, as ideias fora do lugar e, no campo real,
o lugar fora das ideias.

229
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

2.5 ÁGUAS (ODS 6): MUDANÇAS CLIMÁTICAS E AS


CIDADES

No ano de 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável


(ODS) foram estabelecidos por meio de 17 objetivos a serem cumpridos
até o ano de 2030. No caso específico do Objetivo 6, trata-se de “asse-
gurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para
todos”.
A água é um bem de titularidade de toda a comunidade global, ca-
racterizada pela Constituição portuguesa (Portugal, 1976) como um bem
de domínio público e pela Constituição brasileira (Brasil, 1988) como um
bem público, pertencente à União (artigo 20, incisos III e IX) e aos Esta-
dos (artigo 26, inciso I).
Conforme a Lei da Política Nacional dos Recursos Hídricos, no Bra-
sil, e a Lei de Bases do Ambiente de Portugal, em Portugal, a água, de
acordo com Gomes (2020), é definida de forma integral como bem de
domínio público (aspecto ligado à dimensão de bem ambiental), essencial
para a vida humana intergeracional (aspecto ligado à sua condição de bem
de direito humano fundamental) e que, por sua natureza limitada e escas-
sa, se enquadra como um bem jurídico dotado de valor econômico.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a identificação das principais normativas ambientais sobre o


tema das APPs e das águas, verifica-se que existem diversas normas que
abrangem a legislação ambiental, e que mesmo com a diferença de alguns
anos a preocupação com a conservação e a preservação do meio ambiente
tornou-se um problema de escala global, com todos os países discutindo
o tema.
Dentro da contextualização das normas, e apesar de sua ligação his-
tórica que trilha sobre a questão da colonização entre os dois países, em
diferentes aspectos, apresenta-se o Quadro 1 com os dados analisados:

230
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Quadro 1 — COMPARATIVO ENTRE AS NORMATIVAS BRASIL E PORTUGAL


Categorias Brasil Portugal Análise Observação

APPs - Lei 12.651/12 Não possui um País integrante da União Ambos os


- Lei 13.465/2017 documento Europeia, Portugal segue países têm
- Resoluções organizado e princípios propostos por normativas, com
do CONAMA estruturado um tratado que engloba nomenclaturas
(Conselho Nacional para assegurar a cabeçalhos sobre todos os diferentes, mas
do Meio Ambiente): defesa do meio assuntos, incluindo o Meio ambos os países
Resolução nº 302, Ambiente. Ambiente. têm órgãos
de 20/03/2002; Dá por legislação Base no Código Florestal e fiscalizadores.
Resolução nº 303, específica no em diversas resoluções do Buscam a
de 20/03/2002; caso em questão, CONAMA. E cada local proteção do
Resolução nº 341, de adaptada às define as margens de rios meio ambiente,
25/09/2003; características urbanos conforme o Plano e ambas trazem
Resolução nº 369, da região e diretor. critérios
de 28/03/2006; revista em prazos norteadores
Resolução nº 425, constantes. referente a
de 25/05/2010 essas áreas e sua
Resolução nº 429, importância para
de 28/02/2011. a sobrevivência
da natureza e do
ser humano.
Água Lei da Política Lei de Bases do A proteção e a gestão A proteção
Nacional dos Ambiente. dos recursos hídricos é realizada
Recursos Hídricos. compreendem as águas em diferentes
superficiais e as águas normativas,
subterrâneas, os leitos tendo uma lei
e as margens, as zonas da água e lei de
adjacentes, as zonas recursos hídricos.
de infiltração máxima
e as zonas protegidas,
e têm como objetivo
alcançar o seu estado
ótimo, promovendo uma
utilização sustentável
baseada na salvaguarda do
equilíbrio ecológico dos
recursos.
ODS 6 Sem dados. 18º lugar (Rede Em razão da pandemia não Não houve
de Soluções de houve evolução em todos evolução em
Desenvolvimento os objetivos. relação ao Brasil,
Sustentável). e em relação a
Portugal houve
uma pequena
melhoria.
Fonte: Autoria própria (2023).

231
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Há que se considerar que o objetivo de proteção das APPs não di-


ferencia áreas urbanas de rurais, e que as faixas de proteção fixadas pela
lei não têm aplicação fácil quando se analisa a realidade de uma cidade.
Assim, para entendimento do que é considerada uma área urbana conso-
lidada, a Resolução CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente)
nº 302/02 (Brasil, 2002) trouxe a definição no inciso II — Área de Pre-
servação Permanente.
No caso de Portugal, a conservação e a proteção é um dever públi-
co e privado, pois todos os bens ambientais cumprem a função social e
estão cobertas pelas normativas constitucionais, com a possibilidade de
utilização das áreas de preservação desde que atendendo a critérios restri-
tos e pré-determinados com a garantia de um meio ambiente equilibrado
e saudável, estabelecendo uma consciência e sensibilização cidadã para a
preservação do meio ambiente.
Segundo Maricato (2006, p. 213) o Brasil possui historicamente “raí-
zes [...] profundas” de uma “cultura patrimonialista” baseada na concen-
tração de poder e na captura da esfera pública por interesses privados, o
que nos fornece elementos a serem considerados nas ações que dependam
de mudanças de valores sociais e da mentalidade historicamente construí-
dos. A legislação, nesse sentido, não reflete nem as contradições nem a
realidade sociocultural da maioria da população. E quando o poder eco-
nômico é concentrado na mão de poucos, a legislação tende a favorecer
um mesmo grupo hegemônico.
Maricato (2000) afirma que existe a cidade legal e a cidade ilegal. Para
a cidade ilegal não há planos e nem ordem e ela não é conhecida por suas
dimensões ou características, o que de certa forma é reflexo do urbanismo
de planejamento. A regulação urbanística adotada no Brasil tem compro-
metimento com a cidade legal e ignora a cidade ilegal, representada pelas
ocupações ilegais do solo urbano.
Vieira et al. (2014) concluíram que o tratamento dispensado às áreas
de preservação permanente no Brasil não encontra paralelo ao tratamento
dado nos Estados Unidos, em Portugal e na Espanha, sendo que a con-
clusão ainda é a mesma, não significando que os países não regulam suas
áreas de preservação.

232
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Portugal adota as políticas da Comunidade Europeia, e não por que


existem limitações restritivas e específicas para o uso da floresta particular,
sendo que esta depende de um plano de uso para qualquer tipo de manejo,
independentemente de sua área. Consegue seu controle através dos Planos
Regionais de Ordenamento do Território feitos em todo o país, além dos
planos municipais.
A dificuldade encontrada foi a de que as limitações impostas nas APPs
apresentam um rol taxativo, porém dentro do processo de evolução essa
mesma característica, o maior empecilho na legislação às APPs, é a ideia
de limitar de forma igual todos os estados brasileiros, sem levar em conta
as características de sua topografia, bacia hidrográfica, bioma e outros fa-
tores que devem ser levados à discussão no âmbito de cada estado.
No Brasil como em Portugal, não somente o Estado tem o dever
de preservação ambiental, mas todos têm esse dever, por intermédio dos
meios constitucionalmente previstos, ou seja, por ações tomadas indivi-
dual ou coletivamente e pelas vias administrativas e judiciais no Brasil ou
em Portugal.
A legislação ambiental brasileira é uma das mais bem elaboradas, po-
rém, tem pontos incoerentes com a realidade, pois exige da sociedade e
das instituições comportamentos e atitudes que elas não conseguem cum-
prir (Borges et al., 2009).
Conflitos surgem com a definição de áreas para proteção ambiental,
visto que de um lado existe uma demanda geral da sociedade pela con-
servação dos recursos naturais e paisagens, e de outro, existem interesses
relacionados aos usos estabelecidos no lugar, por meio da ocupação do
solo (Shiraishi, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que a problemática da escassez hídrica e a preservação das


áreas protegidas, e as medidas tomadas ao longo do tempo, têm sido nor-
teadas pela legislação; contudo, há a necessidade de se tentar suprir de-
mandas mais específicas e tornar as leis mais personalizadas de acordo com
cada localidade, região ou cidade.

233
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

As diferenças entre Brasil e Portugal também resultam numa situa-


ção diferente entre os dois países. O Código Florestal determina o uso do
solo muito restrito ao longo dos rios, dada a gestão da proteção da mata
ciliar e do rio, não sendo as normas negociáveis e tratadas de forma obri-
gatória para todo o território nacional, mesmo não sendo respeitadas da
mesma forma.
Em Portugal38, as diferentes nomenclaturas das áreas e em diferentes
regiões atendem ao regime de governo do país. A legislação nacional de
Portugal, no domínio do ambiente, engloba leis e normas sobre cada fator
que influencie sobre a qualidade e preservação do meio ambiente, como:
clima, água, ar, resíduos e gestão ambiental.
Conclui-se que o tratamento dispensado às áreas de preservação per-
manente no Brasil não encontra paralelo ao tratamento dado em Portu-
gal, não significa que os países não regulam suas áreas de preservação.
Diferentemente da forma fixada no Brasil, os países que adotam limites à
utilização de determinadas áreas protegidas não o fazem de forma genérica,
pois as legislações locais normalmente utilizam indicadores que definem
claramente o que, quanto e como esses espaços precisam ser efetivamente
protegidos.
O Brasil necessita de gestão e manejo eficazes que consigam real-
mente conter os avanços dos desmatamentos, principalmente por conta de
fatores externos pelos quais não há como controlar as questões governa-
mentais, alterações legislativas. Já em Portugal, os planos de ordenamento
são eficazes; apesar disso, não conseguem conter os recentes e constantes
incêndios florestais, em sua maioria em áreas protegidas, assim como as
especulações imobiliárias que se dão por conta do ecoturismo em áreas de
relevante interesse ecológico, dificultando o ordenamento em áreas pro-
tegidas (Oliveira, 2020).
Em Portugal, a água é considerada como um recurso ecológico, que
permite ser um bem público sem prioridade para uso da população. No
Brasil, os recursos hídricos são definidos em seus atos legais como naturais
e econômicos, permitindo que sejam recursos públicos geridos pelo Esta-
do com uso prioritário para a população.

38 Disponível em: https://apambiente.pt/.

234
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Constatou-se neste estudo a existência de potenciais mecanismos ap-


tos a promover a tutela climática, nexo que se completa, entre outras medi-
das no território, pelo zoneamento de áreas vulneráveis, investimentos em
infraestrutura, sistemas de gestão de risco, aprimoramento das condições
de moradia e fiscalização efetiva dos espaços ambientalmente protegidos.
A atuação de Portugal dentro da Comunidade Europeia pode trazer
maiores benefícios ante as normativas e diretrizes aplicadas, bem como a
colaboração e a participação dos demais estados-membros. O Brasil, ante
sua dimensão continental, ainda necessita envidar maiores esforços nos
debates e discussões sobre o tema, para a melhoria da qualidade de vida.
Dessa forma, ajustes futuros nas normas e ainda a sua aplicação efetiva tan-
to por parte do Estado quanto do cidadão são necessários, já de maneira
imediata.

REFERÊNCIAS

AGENDA 2030. ODS — Objetivos de desenvolvimento sustentá-


vel. 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso
em: 20 jan. 2023.

ANTUNES, P. B. Áreas de Preservação Permanente Urbanas. Revista


de Informação Legislativa, ano 52, n. 206, abr./jun. 2015.

BAPTISTA, M. C.; CARDOSO, A. S. Rios e cidades: uma longa e


sinuosa história. Revista da Universidade Federal de Minas Ge-
rais, v. 20, n. 2, p. 124–153, 2013.

BORGES, L. A. C.; DE REZENDE, J. L. P.; PEREIRA, J. A. A. Evo-


lução da legislação ambiental no Brasil. Revista em Agronegócio
e Meio Ambiente, v. 2, n. 3, p. 447–466, 2009.

BRANCALION, P. H. et al. Análise crítica da Lei de Proteção da Ve-


getação Nativa (2012), que substituiu o antigo Código Florestal:
atualizações e ações em curso. Natureza & Conservação, v. 14, p.
e1–e16, 2016.

235
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Dispo-
nível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/cons-
tituicao.htm. Acesso em: 12 jan. 2023.

BRASIL. Decreto nº 23.793, de 23 de janeiro de 1934. Aprova o Códi-


go Florestal. 1934.

BRASIL. Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934. Decreta o Có-


digo de Águas. 1934.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182


e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da políti-
ca urbana e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 2001.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção


da vegetação nativa; altera as Leis n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981,
9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de
2006; revoga as Leis n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754,
de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de
agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Ofi-
cial da União, 2012.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA. Re-


solução CONAMA nº 302, de 20 de março de 2002. Dispõe
sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação
Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno.

CUNHA, E. M. P.; JULIÃO, R. P.; OLIVEIRA, F. H. A política urba-


na no Brasil e em Portugal: contexto e evolução histórica. Cidades,
Comunidades e Territórios, n. 40, 2020.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas,


2002.

GOMES, M. F.; PINTO, W. S. Justiça socioambiental e processo de ur-


banização das cidades. Revista de Direito da Cidade, v. 12, n. 1,
p. 582–608, 2020.

236
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

GOMES, T. O Direito à Água Doce frente à Escassez Hídrica. Tese


(Doutorado) — Universidade de Lisboa, Portugal, 2020.

JUNG, T. I. A evolução da legislação ambiental no Brasil. Âmbito


Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, abr. 2011. Disponível em: https://
ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-ambiental/a-evolucao-da-
-legislacao-ambiental-no-brasil/. Acesso em: 20 jan. 2023.

MARICATO, E. As ideias fora do lugar, e o lugar fora das ideias. In:


ARANTES, O. B. F.; VAINER, C.; MARICATO, E. (org.). A ci-
dade do pensamento único. Desmanchando consensos. Coleção
Zero à esquerda. Petrópolis: Vozes, 2000.

MARICATO, E. Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos avan-


çados, v. 17, p. 151–166, 2003.

MEDEIROS, G. A. et al. Water quality, pollutant loads, and multivari-


ate analysis of the effects of sewage discharges into urban streams of
Southeast Brazil. Energy, Ecology and Environment, v. 2, n. 4,
p. 259–276, 2017.

MEDEIROS, R. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas


no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. 9, n. 1, p. 41–64, jan./jun.
2006.

MELLO, S. Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valoriza-


ção dos corpos d’água. 2008. 348 f. Tese (Doutorado) — Universi-
dade de Brasília, Brasília, 2008.

OLIVEIRA, J. Estudo das diferenças entre as áreas protegidas no


Brasil e em Portugal. 2020. 96 f. Monografia. Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco, Recife, 2020.

PES, J. H. Breve comparação da proteção jurídica ambiental de Brasil e


Portugal. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 2, n. 2, p. 145–173,
2017.

PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa: VII Revisão


Constitucional [2005]. Lisboa: Assembleia da República, 2005.

237
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

PORTUGAL. Lei nº 33/96, de 17 de agosto de 1996. Lei de Bases da


Política Florestal. 1996.

PORTUGAL. Portaria nº 108, de 15 de março de 2013. Aprova os


estatutos da Agência Portuguesa do Ambiente, I. P. Disponível em:
https://dre.pt/dre/detalhe/portaria/108-2013-259891. Acesso em: 20
abr. 2023.

PORTUGAL. República Portuguesa. Disponível em: https://www.


portugal.gov.pt/pt/gc21. Acesso em: 2 abr. 2023.

ROLNIK, R. A construção de uma política fundiária e planejamento


urbano para o país — avanços e desafios. Políticas Sociais: Acom-
panhamento e Análise, n. 12, fev. 2006.

SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Huci-


tec, 1988.

SCHAFFER, W. B. et al. Áreas de Preservação Permanente e


Unidades de Conservação & Áreas de Risco. O que uma coisa
tem a ver com a outra? Relatório de Inspeção da área atingida pela
tragédia das chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro. Brasília:
Ministério do Meio Ambiente, 2011.

SHIRAISHI, J. C. Conflitos ambientais em unidades de conserva-


ção: percepções sobre a Reserva Biológica da Contagem. DF: 2011.

SILVA, A. C. P.; CONDE, F.; VISEU, C. O desenvolvimento sustentá-


vel e sustentabilidade municipal: o caso de Portugal. Revista Ges-
tão & Sustentabilidade Ambiental, v. 11, n. 4, p. 429–458, 2022.

SILVA, C. O. F.; GOVEIA, D. Avaliação da qualidade ambiental de


corpos hídricos urbanos utilizando análise multivariada. Inte-
rações, Campo Grande, v. 20, p. 947–958, 2019.

SOUZA, M. C. M.; MARTINS; NEVES, A. A.; CANGANI, M. T. A


política nacional do meio ambiente de Portugal. Revista Tópos, v.
5, n. 2, p. 67–88, 2011.

238
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

TONELOTTO, D. P.; CROZATTI, J. Endividamento público em ní-


vel local: estudo comparativo da legislação entre Brasil e Portugal.
Revista Gestão e Políticas Públicas, v. 7, n. 1, p. 74–93, 2017.

VALERA, C. A. Avaliação do novo código florestal: as áreas de pre-


servação permanente — APPs, e a conservação da qualidade do solo
e da água superficial. 2017.

VIEIRA, E. G.; GONÇALVES, D. O.; BOEING, J. B. Áreas de preser-


vação permanente: peculiaridades do tema no Brasil, Estados Uni-
dos, Portugal e Espanha. Lex Humana, v. 6, n. 1, p. 44–69, 2014.

239
A SUSTENTABILIDADE E A
SELETIVIDADE SOCIAL NAS
RELAÇÕES DE CONSUMO
Ana Paula dos Santos Ferreira39

INTRODUÇÃO

A sustentabilidade é um instituto diretamente ligado com o direito do


consumidor — por mais que não seja realizado tal vínculo comumente, se
trata da permanência das condições de vida e de atender a necessidade das
populações futuras (Castilho; Vasconcelos, 2019). Esta tem bases históri-
cas de longa data, porém não se percebe como realidade na maioria dos
países, principalmente ao se abordar a relação: consumidor, fornecedor e
sustentabilidade.
Assim, ainda que exista o chamado “consumidor consciente”, volta-
do a questões ambientais e sustentáveis, este acaba restrito a sua respectiva
classe social (Corrêa, 2005). Portanto, ao analisar os fornecedores e gover-
no, principalmente brasileiros, se percebe poucos investimentos quanto à
questão sustentável.
Com isso, os consumidores aparentam interessar-se pelo tema da sus-
tentabilidade, existindo na atualidade um “movimento pró-consumo”;
no entanto, acabam consumindo poucos “produtos sustentáveis”, o que

39 Bacharela em Direito.

24 0
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

ocorre muitas vezes devido ao valor destes ser muito dispendioso (Rodri-
gues, 2021). Por conseguinte, mostra-se necessária a alteração desse plano
e a urgência em não restringir a sustentabilidade apenas a determinadas
classes socais.
Dessa forma, a análise destes elementos é de suma importância, pois
demonstra ações que não vêm apresentando muita efetividade, perceben-
do-se que em diversos locais do mundo existem métodos mais enérgicos
(Souza; Thebaldi, 2022). No entanto, o Brasil ainda é carente em muitos
aspectos quanto ao tema, sendo relevante a discussão sobre tais subsídios,
para que se torne possível a arguição dos institutos: da sustentabilidade,
das relações de consumo, do desenvolvimento social e da seletividade de
classes quanto a medidas sustentáveis. Importante a possibilidade de pro-
posição quanto a modificações desses subsídios, para formas alternativas
de se realizar estas ações, que já são utilizadas nos países considerados de-
senvolvidos.
É relevante tratar do tema em questão buscando a modificação dos
métodos ineficazes adotados até o momento, haja vista acarretem conse-
quências danosas, tais quais: não permitir que parte da população realize
práticas sustentáveis, manter distinção entre classes sociais e impedir o de-
senvolvimento sustentável de todo um país.
Nesse sentido, o artigo está estruturado utilizando-se de abordagem
qualitativa e dos procedimentos: de levantamento bibliográfico, análises
legislativas e doutrinárias. Baseando-nos para alcançar tal objetivo em pes-
quisas realizadas pela internet e em revistas com caráter jurídico (Consal-
ter; Mej, 2011). Outrossim, é elaborado em quatro tópicos: (i) evolução
histórica da sustentabilidade e relações de consumo até a atualidade; (ii) o
elo entre desenvolvimento sustentável e social; (iii) a seletividade na ado-
ção de medidas sustentáveis; e (iv) formas alternativas como solução à se-
letividade na instauração de medidas sustentáveis.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SUSTENTABILIDADE E


RELAÇÕES DE CONSUMO ATÉ A ATUALIDADE

Ao abordar a questão da sustentabilidade, raramente é realizado enca-


deamento desta para com o âmbito das relações de consumo, sendo nor-

24 1
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

malmente tratada quanto às condições ambientais e quanto ao compro-


misso com as gerações futuras (Bursztyn; Bursztyn, 2012).
Contudo, deve-se aplicar atualmente o termo “sustentabilidade” de
maneira interdisciplinar, existindo várias visões e interpretações de acordo
com cada estudo desenvolvido, podendo ser abordado de forma trans-
disciplinar (Mikhailova, 2004). Assim, esta se pode voltar aos debates de
outros ramos, como do âmbito consumerista.
Tal modificação ocorreu de forma gradual no decorrer histórico,
transfigurando a visão de sustentabilidade. Primeiramente, houve a reali-
zação da Conferência de Estocolmo em 1972, e a percepção da necessida-
de de uma nova maneira de conviver com o planeta. No entanto, o desen-
volvimento sustentável apenas passou a ser o foco a partir da Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (RIO–92)
(Mikhailova, 2004).
Posteriormente, a Organização das Nações Unidas publicou, por
meio da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
em 1987, no Relatório de Brutland, o conceito efetivo de desenvolvimen-
to sustentável: “Desenvolvimento sustentável é aquele que busca as neces-
sidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de
atender suas próprias necessidades” (Bruntland, 1988, p. 46). Ademais, o
conceito que prevalece atualmente não trata apenas do desenvolvimento
em si, mas identifica os fatores que podem limitá-lo (Mikhailova, 2004).
Quanto à conotação da relação de consumo, está prevista no atual
Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, baseando-se como
vínculo, resultado de um negócio jurídico entre credor, devedor e a rela-
ção consensual que há entre eles, seguindo sempre as normas da legislação
retromencionada (Paiva, 2015). Assim, é necessária a existência de consu-
midor, fornecedor, produto ou serviço; ausente um desses requisitos resta
infundada a possibilidade da relação de consumo (Donato, 1993).
A figura do consumidor é apontada no artigo 2º do Código de Defesa
do Consumidor, descrito como toda e qualquer pessoa, física ou jurídica,
que adquire ou se utiliza de produto ou serviço como destinatário final
(Brasil, 1990). Portanto, o indivíduo que compra determinado produto

24 2
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

ou paga por serviço é considerado consumidor, seja para uso próprio para
uso de terceiros (Lisboa, 2001).
Já quanto ao fornecedor, previsto no artigo 3º da Lei nº 8.078/90,
seria toda pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou es-
trangeira, que poderá exercer múltiplas atividades, tais quais: montagem,
criação, construção, distribuição, dentre outros (Brasil, 1990).
Ademais, sobre o produto, se trata do objeto da relação de consumo.
Ele é especificado na legislação como: serviços, os quais se caracterizam
por uma obrigação de fazer; e produtos, os quais se voltam para obrigação
de fazer, previsto no artigo 3º, § 1º do Código de Defesa do Consumidor
(Brasil, 1990).
Tratar da relação de consumo faz jus ao desenvolvimento econômico
dela decorrente. É fato que a produção desenfreada de bens e serviços re-
mete a tempos remotos, primordialmente à Revolução Industrial, a qual
apresentou de imediato seus reflexos e consequências na sociedade, insti-
tuindo produção e distribuição em larga escala, em detrimento à produ-
ção artesanal, que era a base mercadológica nos anos anteriores (Camelo,
2015).
Com esse tipo de produção, ocorre o solapamento de recursos na-
turais, fato já previsto e discutido até mesmo por Marx em sua principal
obra, “O capital”, a qual institui a natureza como corpo inorgânico do
homem, sendo sua fonte direta fornecedora de vida. Destacamos: “A afir-
mação de que a vida física e espiritual do homem se acha integrada com
a natureza não tem outro sentido que de que a natureza se acha integrada
consigo mesma e que o homem é parte da natureza” (Marx apud Foladori,
2005, p. 145).
Essa percepção também foi destacada por Thomas Malthus em 1798,
o qual se preocupava quanto o crescimento desordenado e desproporcio-
nal da população em detrimento da oferta de alimentos e recursos natu-
rais, que eram limitados e finitos (Sousa, 2012).
Com isso, foi perpetuada a ideia que desenvolvimento econômico
e desenvolvimento social seriam diretamente opostos à preservação am-
biental e aos recursos naturais, estando ambos em conflito constante, já
que desde a Revolução industrial o avanço mercadológico e tecnológi-

24 3
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

co se apresentou ligado à degradação ambiental, acarretando em reações


negativas muitas vezes pelo consumismo exacerbado (Oliveira, 2012). A
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvi-
mento, que gerou a Agenda 21 (1992), determinava:

Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de


vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar
os padrões insustentáveis de produção e consumo e promover po-
líticas demográficas adequadas. (ONU, 1992).

Com o decurso do tempo, as empresas aderiram gradativamente às


políticas de desenvolvimento sustentável, tentando reverter a ideia de que
mercado e tecnologia são os responsáveis pela degradação ambiental, bus-
cando unir ambos os conceitos (EOS Organização, 2017).
Assim, o posicionamento do consumidor também foi alterado, sur-
gindo novos parâmetros e ideais como o de consumo consciente, caracte-
rizado por se tratar de um ato solidário realizado pelo consumidor, o qual
passa a enxergar seus atos individuais como também responsáveis pelo im-
pacto causado ao meio ambiente (Souza; Thebaldi, 2012).
No entanto, é notável a forma como tais ações são realizadas por uma
quantidade reduzida de empresas e produtores, além de que, parcela mais
reduzida ainda de consumidores pode efetivamente ter acesso a esses tipos
de serviço e produtos (Iaquinto, 2018).
Nesse ínterim, a forma como a questão da sustentabilidade e do de-
senvolvimento sustentável surgiu e se modificou no decorrer histórico,
sendo suficientemente mais presente no período atual, mostrou-se não
condizente com a realidade de grande parte da população.

2. O ELO ENTRE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E


SOCIAL

É válido ressaltar a dificuldade na mensuração da sustentabilidade,


surgindo tal necessidade desde a Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento, com o surgimento dos indicadores
ambientais (RIO–92) (Mikhailova, 2004).

24 4
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Quando se trata de indicador ambiental, se busca a manifestação de


dados e informações voltados para o conhecimento sobre determinado
fenômeno ambiental, com o objetivo de alcançar suas principais caracte-
rísticas e efeitos, devendo ser feito de forma recorrente para acompanhar
mudanças no decorrer do tempo e avaliar se houve progressão ou regres-
são no meio ambiente como um todo (Carrizosa, 1982).
Assim, surgiram índices com o objetivo de mensuração da susten-
tabilidade e do desenvolvimento sustentável. Um dos principais seria o
ESI (Environmental Sustainability Index), possuindo a finalidade de realizar
a medição, a nível mundial, referente às questões ambientais, buscando
indicar em quais países se apresenta maior possibilidade de obter um de-
senvolvimento sustentável, com a finalidade de organizar e fornecer sub-
sídios a políticas públicas voltadas a esse objetivo. Sobre o citado índice,
destacamos:

ESI–2002 trata-se do primeiro “ranking” global do gênero, co-


brindo 142 países. Na ponderação do ESI, entram 20 indicadores
cruzados, obtidos pela mixagem de 68 variáveis separadas. O ín-
dice ESI vai de 0 a 100. Quanto mais limpo ou menos sujo um
país, maior a nota ponderada. A avaliação leva em conta condições
do presente, situações do passado e inclinações do futuro. Igual-
mente do ambiente econômico, cultural, político e institucional
nos tratos da sustentabilidade ambiental. (Pereira; Sauer; Fagundes,
2015).

Anualmente são realizadas pesquisas para esse tipo de mensuração


com constantes variáveis. Conforme Tabela 1, se prevê o Índice de Sus-
tentabilidade Ambiental em 2001 e 2002, por ordem do país com maior
desenvolvimento sustentável para o menor:

24 5
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Tabela 1 — Índice de Sustentabilidade Ambiental em 2001 e 2002

Fonte: Environmental Sustainability Index 2002 — World Economic Forum — Annual Mee-
ting. Yale e Columbia University (2003).

Assim, é possível verificar que o desenvolvimento econômico tam-


bém está ligado ao desenvolvimento sustentável, contudo, não majorita-
riamente, haja vista países desenvolvidos economicamente não necessa-
riamente lideram o ranking quando se trata de sustentabilidade, como se
nota pela Tabela 1.
Nesse ínterim, um dos elementos que se pode inferir seria que a di-
ferença entre países com maiores e menores índices de sustentabilidade
se dá quanto aos primeiros notar-se a existência de legislações, medidas
e políticas públicas, adotadas por cada governo e empresas de forma ge-
ral, diferentemente dos segundos, sendo um problema de caráter amplo e
abrangente.
Dessa forma, se busca constatar como a falta de legislação voltada ao
tema, incentivos por parte dos programas governamentais e medidas ado-
tadas pelos produtores refletem em uma sustentabilidade seletiva social-
mente, podendo ser realizada apenas por parte da população de determi-

24 6
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

nada área, interligado ao fato de que ainda que se tenha desenvolvimento


econômico este não é a chave para a sustentabilidade.
Nesse diapasão, destacamos, conforme Tabela 2, recente pesquisa
realizada pela Corporate Knights, empresa canadense, a qual listou as 100
empresas mais sustentáveis do mundo:

Tabela 2 — As 100 empresas mais sustentáveis do mundo

Fonte: 2020 Global 100 results. Corporates Knights (2020).

Com base na Tabela 2, um dos fatores que se pode inferir é que nos
países classificados como mais sustentáveis há uma maior presença de leis,
políticas públicas e incentivo empresarial.
Para corroborar tal alegação, abordamos trecho que trata da Dina-
marca, país que sempre lidera os rankings quando se trata de sustentabilida-
de, como é notável pela Tabela 2, tendo sido possuidora da empresa mais
sustentável do mundo em 2020. Destacamos:

A capital da Dinamarca, Copenhague, quer criar um vale europeu


do silício para o desenvolvimento sustentável. Um investimento que
em breve dará frutos. Mas há muitos anos tem investido fortemente
em diversas práticas que ainda vão refletir no futuro. (Elza, 2020).

24 7
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Nesse ínterim, o desenvolvimento social está diretamente ligado ao


sustentável, já que a população busca realizar atividades no âmbito sus-
tentável, porém não de forma isolada ou autônoma, mas sempre sendo
influenciada por seus governantes e produtores. Sobre isso, destacamos:
“Outro grande exemplo de Copenhagen, que a transforma em uma das
mais importantes da região europeia, é por desenvolver alternativas de
sustentabilidade. A cidade sempre se preocupou com a população e com o
meio ambiente” (Portobello, 2017).
Portanto, é possível constatar que a sustentabilidade se torna frequen-
te em determinadas localidades, por elementos como a organização go-
vernamental e investimentos de produtores, o que em conjunto reduz a
seletividade dessas atividades aos consumidores, não se percebendo tal fato
em locais que não possuem tais elementos.

3. A SELETIVIDADE NA ADOÇÃO DE MEDIDAS


SUSTENTÁVEIS

Algumas empresas têm percebido que a comercialização de produtos


sustentáveis atrai o interesse de boa parte dos consumidores. Sobre isso,
destacamos: “as marcas que demonstram comprometimento com a sus-
tentabilidade cresceram mais de 4%, enquanto aquelas que não exibem
tais atributos avançaram menos de 1%” (Niero, 2016).
Contudo, também é válido destacar a dificuldade em se manter no
ramo, exclusivamente voltando-se à causa sustentável, o que traz grandes
obstáculos aos empreendedores, e muitas vezes o não mantimento dessas
empresas no mercado.
Como exemplo, destacamos a empresa Veggie Box, brasileira, a qual
atendia o consumidor oferecendo apenas produtos veganos e sem testes
em animais, podendo tratar-se de itens de autocuidado, beleza ou alimen-
tos, criada ao perceber a carência da oferta desses gêneros no mercado.
Contudo, a própria criadora chegou a destacar a dificuldade na comercia-
lização dos referidos produtos por obterem alto valor agregado, e, portan-
to, refletirem de forma negativa no valor final, sendo repassado ao consu-
midor, o qual acabava abrindo mão de obter o citado bem por presumir o
preço como exageradamente alto — o que consequentemente resultou na

24 8
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

queda econômica para a empresa, a qual declarou pausa temporária e sem


previsão de retorno para o mercado (Dias, 2015).
Com isso, pode-se perceber a dificuldade dos produtores que se utili-
zam da política de sustentabilidade, haja vista são reduzidas facilidades ou
incentivos, principalmente legais, gerando desestímulo a estes, tendo de
enfrentar sozinhos forte concorrência no mercado ao tentar apoiar cau-
sas como as mencionadas. Assim, encaram altos preços, necessários para
garantir os produtos ou serviços voltados à sustentabilidade. Por conse-
guinte, tem de repassar esta quantia ao valor final pago pelo consumi-
dor, gerando um excessivo encarecimento do produto e desestímulo ao
comprador, como mencionado por Laura Valente de Macedo (2008) na
Conferência Internacional Ethos.
Dessa forma, se depreende certa seletividade ao se tratar do consumo
de produtos e de serviços sustentáveis, por estes não serem acessíveis eco-
nomicamente para a maior parte da população — e consequentemente a
todas as classes sociais.
Nos últimos anos, parte da população brasileira passou por uma trans-
formação social, com aproximadamente 30 milhões de pessoas abando-
nando a linha da pobreza por terem obtido maior acesso a créditos e maior
renda (Calixto, 2016). Assim, essa “nova classe média” — denominação
utilizada por Marcelo Cortes Neri (2008) —, derivada da recuperação do
mercado de trabalho com mais empregos e ocupação, representou a as-
censão de grupos antes considerados como pobres. Sobre isso, destacamos
trecho que explicita tal definição:

O estudo revela a emergência de uma nova classe média no Brasil.


A ascensão desta nova classe média é a principal inovação recente
nesta década que se confirma aqui como a da redução da desigual-
dade e tem sido propulsionada por ela e agora pela volta do cresci-
mento. (Neri, 2008, p. 6).

Assim, é perceptível a alteração social na composição socioeconômi-


ca, em que as camadas mais carentes da população passaram a possuir in-
cremento em sua renda familiar, havendo melhores condições econômicas

24 9
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

e gerando alteração social nos níveis de consumo da sociedade brasileira,


afetando também a sustentabilidade (Vieira, 2014).
O Brasil em 2008 publicou a Portaria MMA de nº 44, a qual pre-
via o Comitê Gestor Nacional de Produção e consumo Sustentáveis
(CGPCS), tendo como objetivo estipular ministérios e parcerias com
o setor privado para buscar ações sustentáveis (Brasil, 2008), porém,
não suficiente para que esta classe média em ascensão passasse a ser
consumidora consciente.
Nesse ínterim, surgem movimentos responsáveis pela ação políti-
ca voltada para as práticas de consumo, atribuindo aos consumidores a
função de agentes de mercado totalmente responsáveis por suas decisões
(Portilho, 2009). Com isso, nasce o conceito de “consumo consciente”,
segundo o qual Barros e Ayrosa (2012) designam prevalecer a ideia de
consumidores que se considerariam pessoas melhores por captar os citados
problemas e por buscar soluções para estes, no entanto, restritos em suas
ideias pelos altos preços atribuídos aos produtos, os desencorajando, como
classe média, a consumi-los (Vieira, 2016). Sucinta a ideia, ao indicar-se
que o cenário atual acolhe a imagem do consumidor também como mem-
bro ativo do mercado quando se trata de sustentabilidade, demonstrando-
-se quantidade consideravelmente maior de consumidores conscientes.
Contudo, a situação-problema destacada seria quanto à forma como esse
consumo sustentável se demonstra muito mais restrito e seletivo às classes
mais altas, chegando raramente às classes mais baixas e até mesmo à parte
da classe média.

4. FORMAS ALTERNATIVAS COMO SOLUÇÃO À


SELETIVIDADE NA INSTAURAÇÃO DE MEDIDAS
SUSTENTÁVEIS

É notável no cenário atual a visão de “consumidor consciente”, de-


rivado de movimentos pró-consumo, em que se utiliza o consumo como
forma de distinção social, considerando suas atitudes como positivas e be-
néficas tanto para si quanto para a sociedade e o planeta de forma geral
(Michelletti, 2003). Para destacar esse conceito, apresentamos:

250
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

O consumo envolve também social, produção e reprodução de


valores Desta forma, não é uma atividade neutra, individual e des-
politizada. Ao contrário, trata-se de uma que envolve a tomada de
decisões políticas e morais em todos os dias. Há, portanto, uma
conexão entre valores éticos, escolhas políticas, políticas visões so-
bre uma natureza e comportamento relacionado às atividades de
consumo (Manual de Educação para o consumo sustentável Cida-
dania, IDEC, p. 14).

No entanto, a dificuldade imposta ao consumidor consciente quan-


to ao consumo sustentável é frequente. Assim, ainda que o consumidor
busque, por meio do consumo, apoiar atos políticos, sociais e sustentáveis,
enfrenta grande dificuldade ao tentar aderir a produtos e serviços voltados
a essas práticas, haja vista terem quantidade reduzida no mercado e custos
mais altos.
Assim, ainda que haja indivíduos com essa consciência e dispostos
a aderir às propostas sustentáveis, acabam sendo encontrados obstáculos
para efetivar tais ações, principalmente voltados à restrição financeira para
tal, além da falta de engajamento normativo (Halkier, 1999).
Torna-se evidente a vertente em que os produtos e serviços susten-
táveis acabam sendo muito mais dispendiosos ao consumidor, já que pos-
suem valor mais elevado. Obviamente, tal fator se dá por estes serem mais
difíceis e caros para serem desenvolvidos. Sobre isso, destacamos: “Um
garfo de plástico é fácil de moldar, prensar e vender em massa, mas o
mesmo garfo de bambu ecológico pode levar mais tempo, recursos e po-
limento para ser criado.” (Pensamento Verde, 2021).
Outros elementos que podem ser citados para exemplificar os valo-
res dispendiosos dos referidos produtos seriam: a utilização de elementos
naturais; a não utilização de produtos químicos, além da documentação
exigida para certificar aquele produto como orgânico e/ou sustentável; e a
modificação dos meios de produção (Belz; Peattie, 2009).
Portanto, se apresenta a necessidade de alteração dessa situação, para
que seja possível obter maior quantidade de consumidores sustentáveis,
realizando-se modificações nas estruturas sociais, haja vista as atitudes dos

251
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

consumidores serem apenas reflexos da administração governamental e


legislativa (Ottman, 1994).
Assim, não se caracteriza como responsabilidade exclusiva do con-
sumidor os índices baixos de sustentabilidade, mas sim dos órgãos com-
petentes, os quais não prestam auxílio quanto a isso. Destacamos: “Seria
muito cômodo transferir a responsabilidade de resolver todos os problemas
ambientais nas mãos dos consumidores, isentando outros órgãos compe-
tentes da função (Estado, associações comerciais, sindicatos, empresas e
partido políticos)”(Nogami, 2010, p. 4).
Nesse ínterim, alternativas possivelmente eficazes para a efetivação de
tal prática seriam, em primeiro plano, a implementação de políticas públi-
cas por parte do governo, atuando em um posicionamento de “marketing”,
tentando atingir o comportamento de parte da população, principalmente
aqueles denominados como “Quase Verdes”, os quais realizam práticas
ambientais mas acreditam que entidades e outras pessoas também deve-
riam fazê-lo, julgando suas ações insuficientes (Ottman, 1994).
Quanto a isso, ressaltamos: “Assim, o desafio maior para empresas,
governo e órgãos competentes é de amadurecer os pensamentos dos con-
sumidores Quase Verdes, pois é uma quantia expressiva, e torná-los cons-
cientes, tendo atitudes e comportamentos de consumidores Verdes Ver-
dadeiros” (Nogami, 2010, p. 5). Demonstra-se necessário que tal atitude
seja tomada pelas bases influentes da sociedade, quais sejam: empresas,
partidos políticos, emissoras, podendo ocorrer por meio de divulgações,
palestras, seminários, dentre outros métodos.
Um fato que pode ser utilizado como exemplo dessa estratégia e meio
de comprovação, seria ao realizar-se a análise da década de 1970, em paí-
ses como Estados Unidos e Canadá, os quais por meio desses incentivos
governamentais conseguiram que a população se voltasse amplamente a
práticas ambientais, criando por exemplo o “Dia da terra”, prezando pela
não poluição das águas, além de outras atitudes (Ottman, 1994).
Outrossim, a falta de legislação específica que reverbere sobre multas
e sanções a empresas que não aplicam qualquer tipo de prática voltada a
sustentabilidade também se caracteriza como um problema. A necessidade
atual é que os valores dos produtos verdes se tornem acessíveis à população

252
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mais carente e à nova classe média, com o intuito de reforçar sua consciência
ambiental e torná-los efetivamente consumidores sustentáveis.
Com isso, uma das alternativas existentes para tal situação seria a cria-
ção de legislação voltada para essa questão, prevendo a aplicação de sanções
e multas àqueles que não realizarem pelo menos uma ação voltada para a
causa, ou que não ofereçam no mínimo um produto sustentável, com valor
reduzido em questões de lucros, visando tornar-se economicamente mais
acessível ao consumidor e tentando não restringir a sustentabilidade apenas
às classes mais abastadas; além de possíveis facilidades econômicas por parte
do governo para a emissão de certificação dos produtos sustentáveis, o que
também poderia auxiliar na redução do valor final ao consumidor.
Para corroborar tal argumentação, trazemos o exemplo da Finlândia,
a qual se mantém nos últimos anos como um dos países mais sustentáveis
do mundo, ocorrendo por investimentos do governo, seja por redução de
impostos, investimento em políticas públicas, dentre outros elementos. A
exemplo, existe a declaração realizada pelo Ministério das Relações Ex-
teriores da Finlândia, ao citar uma pesquisa da Business Finland realizada
com mais de 500 empresas médias e pequenas, das quais 96% indicaram
que a sustentabilidade é benéfica para suas operações, devido aos auxílios
legislativos dados pelo governo (This Is Finland, 2022).
Outro exemplo implementado pelo governo finlandês seria quanto à
reciclagem, obtendo 95% das latas e 90% das garrafas de plástico recupe-
radas e instaurando máquinas de venda reversa em postos de abastecimen-
to e supermercados. Ademais, a indústria colabora com tal processo, já
que lhe é atribuída, por legislação, isenção de impostos sobre embalagens
de bebidas (Rauhala, 2020).
Quanto a isso, destacamos a legislação que indica a isenção de im-
posto sobre a embalagem de bebidas às empresas que adotam esse tipo de
processo:

O artigo 7.° desta diretiva, intitulado “Sistemas de recuperação,


recolha e valorização”, prevê:

a) a recuperação e/ou a recolha das embalagens usadas e/ou dos re-


síduos de embalagens provenientes do consumidor ou de qualquer

253
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

outro utilizador final ou do fluxo de resíduos, de forma a canalizá-


los para as soluções alternativas de gestão mais adequadas;

b) a reutilização ou valorização incluindo a reciclagem das embala-


gens e/ou dos resíduos de embalagens recolhidos, a fim de atingir
os objetivos definidos na presente diretiva.

Lei relativa ao imposto especial de consumo sobre certas embala-


gens de bebidas

15. Em conformidade com o § 5 da Lei n. 1037/2004 relativa ao


imposto especial de consumo sobre certas embalagens de bebidas,
a seguir “Lei relativa ao imposto especial de consumo sobre certas
embalagens de bebidas”, o imposto especial de consumo é de 51
cêntimos por litro de produto embalado.

16. O § 6 desta lei prevê casos de isenção do imposto especial de con-


sumo. Dispõe, no seu n. 1, ponto 1, que estão isentas as embalagens de
bebidas que estão integradas num sistema de devolução operacional
previsto no § 3, n. 1, ponto 2, da referida lei. (Europa, 2015).

Nesse ínterim, se percebe que por meio da legislação é possível que o


governo se manifeste buscando alcançar alguns marcos referentes à susten-
tabilidade, assim como é efetivado em diversos países considerados desen-
volvidos, tal qual a Finlândia.
Por fim, é notável que o governo está ligado à proporção de susten-
tabilidade num país, e que o consumidor costuma buscar a realização de
práticas sustentáveis, enfrentando dificuldades, todavia, para isso. Assim,
se apresentam alternativas, como uma nova forma de administração go-
vernamental, criação de legislações específicas para empresas e consumi-
dores e investimento em “marketing verde” com o intuito de tentativas à
solução de tal situação-problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na análise referida, é possível alcançar que a sustentabili-


dade e as relações de consumo estão diretamente interligadas. Esta tem

254
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

como intuito garantir as condições de vida para as gerações futuras, tendo


tal posicionamento se moldado no decorrer histórico, através da Confe-
rência de Estolcomo em 1972, além de outros marcos históricos.
Ademais, também foi abordada a previsão legal da relação de con-
sumo, fornecedor, consumidor e produto. Destaca-se que o desenvolvi-
mento econômico seria proporcional à degradação ambiental, no entanto,
com o tempo criou-se a figura do consumidor consciente, revertendo o
cenário acima citado. Contudo, essa figura não se mostra suficiente ainda,
haja vista os consumidores sustentáveis estão diretamente restritos às suas
respectivas classes sociais.
Discorreu-se sobre a forma como algumas empresas e governantes
vem aparentando realizar poucas atividades para atingir a sustentabilidade
e como ela está ligada ao desenvolvimento econômico, inferindo-se que
a primeira é fruto de políticas públicas e legislações favoráveis o que irá
definir o nível de desenvolvimento sustentável de cada país.
Destacou-se a dificuldade dos fornecedores em manter-se no ramo
exclusivamente sustentável, haja vista necessitarem de investimento de
altos valores para sua produção, o qual acaba por ser repassado também
para os consumidores. Assim, surge a seletividade social ligada à susten-
tabilidade, pela falta de acessibilidade dos produtos para a maior parte da
população.
Posteriormente, nota-se a necessidade de alteração da supracitada
situação, com efetivas modificações nas estruturas sociais, já que a maior
parte das atitudes dos consumidores é apenas reflexo da administração
pública.
Assim, destaca-se a implementação de políticas públicas como pri-
meira alternativa a tal situação-problema, a exemplo, atuar em um posi-
cionamento de “marketing”, amadurecendo o pensamento dos consumi-
dores quanto ao tema; além da demonstração da necessidade de legislação
específica, visando a aplicação de sanções e multas àqueles que não reali-
zarem atividades sustentáveis, evitando que a sustentabilidade permaneça
restrita às classes sociais, tentando reverter tal situação e aumentando ex-
ponencialmente o índice de sustentabilidade do país.

255
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

REFERÊNCIAS

ANNUAL MEETING. Yale e Columbia University, 2003. Dis-


ponível em: http://www.ciesin.org/indicators.

BARROS, D. F.; AYROSA, E. Consumo consciente: Entre resistên-


cia do consumidor e discurso identitário. In: ENCONTRO DE
MARKETING DA ANPAD, 5., 2012, Curitiba. Anais eletrôni-
cos. Curitiba: ANPAD, 2012. Disponível em: http://www.anpa-
d.o rg.br/dive rsos/trabalhos/EM A/ema_2012/2012_EM A257.pdf.
Acesso em: ago. 2022.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078 , Brasí-


lia, DF, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8078compilado.htm . Acesso em: jul. 2022.

BRASIL. Portaria MMA nº 44, de 13 de fevereiro de 2008. Diário Ofi-


cial da União, Brasília, 2008. Disponível em: https://www.normas-
brasil.com.br/norma/portaria-44-2008_205103.html. Acesso em:
jul. 2022.

BURSZTYN, Marcel; BURSZTYN, Maria. Fundamentos de polí-


tica e gestão ambiental: os caminhos do desenvolvimento susten-
tável. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

CALIXTO, Bruno. O que a nova classe média pensa sobre sustentabi-


lidade. Época/O Globo. 2016. Disponível em: https://epoca.oglo-
bo.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2013/11/o-
-que-bnova-classe-mediab-pensa-sobre-sustentabilidade.html .
Acesso em: ago. 2022.

CAMELO, Murilo Martins. Sociedade de consumo e produção industrial em


massa: influências na sustentabilidade ambiental. Revista de Direi-
to da Faculdade Guanambi, ano 1, n. 1, out. 2015.

CARRIZOSA, Júlio. Planejamento do meio ambiente. Cuadernos del


CIFCA, Madrid, 1982.

256
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AM-


BIENTE E DESENVOLVIMENTO. Agenda 21. Rio de Janeiro,
1992.

CONSUMO SUSTENTÁVEL. Manual de educação. Brasília: Con-


sumers International/MMA/MEC/IDEC, 2005.

CASTILHO, Rafael Alves de Araujo; VASCONSELOS, Fernanda Car-


la Wasner. A gestão social no contexto das práticas de sustentabi-
lidade organizacional e dos relatórios de sustentabilidade. In: con-
gresso brasileiro de gestão ambiental, 10., Fortaleza, 2019. Anais.
Disponível em: https://www.ibeas.org.br/congresso/Trabalhos2019/
VII-078.pdf. Acesso em: jul. 2022.

CONSALTER, Zilda Mara; MEJ, Kátia Graziele. A obrigação alimentar


e a lei de alimentos gravídicos: alguns aspectos materiais e proces-
suais. Revista de Ciências Jurídicas, Ponta Grossa, v. 3, p. 149–
178, 2011. Disponível em: http://http://www.revistas2.uep.br/index.
php/lumiar. Acesso em: nov. 2020.

CORRÊA, S. B. O processo ambientalizador e a etiqueta ambiental da


CSN: a empresa que “pensa verde”. In: Encontro Anual da ANPO-
CS, 29., Caxambu. Anais. Disponível em: http://portal.anpocs.org/
portal/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gi-
d=3645&Itemid=318. Acesso em: 18 fev. 2014.

CORPORATE, Knights. Global 100 results ranking 2020. Canadá.


Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1UmCIuAorJSs0T-
Po_OCVfP-ym3Ux_g8y-/view. Acesso em: ago. 2022.

DIAS, Cristiani. VeggieBox, um clube de assinaturas que entrega pro-


dutos cruelty-free e veganos. Draft, 2015. Disponível em: https://
www.projetodraft.com/conheca-o-veggiebox-um-clube-de-assi-
naturas-que-entrega-produtos-cruelty-free-e-veganos/. Acesso em:
ago. 2022.

DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: con-


ceito e extensão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

257
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

ELZA, Maria. Lições da Dinamarca para sustentabilidade. Greenfrog,


São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.greenfrog.com.
br/2020/04/06/licoes-da-dinamarca-para-sustentabilidade/. Acesso
em: ago. 2022.

EUROPA. Artigos 34.° TFUE e 110.° TFUE. InfoCuria Jurisprudên-


cia, 2015. Disponível em: https://curia.europa.eu/juris/document/
document.jsf;jsessionid=08D90139256465F1C6B528C720C-
5D4A2?text=&docid=165645&pageIndex=0&doclang=PT&mo-
de=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2679715 . Acesso em: abr.
2023.

EOS ORGANIZAÇÃO. Como as empresas têm inovado levando


em conta a sustentabilidade? [S.I.], 2017. Disponível em: https://
blog.fastformat.co/como-fazer-citacao-de-artigos-online-e-sites-
-da-internet/. Acesso em: ago. 2022.

FOLADORI, Guillermo. Revista de Direito Ambiental e Urbanísti-


co — Magister, Porto Alegre, v. 1, ago./set. 2005.

IAQUINTO, Beatriz Oliveira. A sustentabilidade e suas dimensões. Re-


vista da Esmesc, Fortaleza, v. 25, n. 31, 2018.

LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de


Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Responsabilidade


Civil no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. Rio de Janei-
ro: Aide, 1991.

NERI, Marcelo Cortês. A Nova Classe Média. Rio de Janeiro: CPS,


2008.

NIERO, Jamille. Compromisso das empresas com meio ambiente in-


fluencia decisão de compra do consumir. Fecomercio, 2016.
Disponível: https://www.fecomercio.com.br/noticia/compromis-
so-das-empresas-com-meio-ambiente-influencia-decisao-de-com-
pra-do-consumidor. Acesso em: ago. 2022.

258
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

NOSSO FUTURO COMUM. Relatório Brundtland. Co-


missão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvol-
vimento. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio
Vargas, 1988.

MACEDO, Laura Valente. “Mercado de produtos sustentáveis”.


Conferência Internacional Ethos: São Paulo, 2008.

ONU. Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sus-


tentável. Johanesburgo, 2002 Disponível em: www.onu.org.br.
Acesso em: ago. 2022.

OLIVEIRA, João Carlos Cabrelon. O consumo sustentável. Revista Ve-


redas do Direito, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 79–108, jan./jul.
2012.

PAIVA, Clarissa Teixeira. O que caracteriza uma relação de consumo.


Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4.401, 20 jul. 2015.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34128. Acesso em: 14 ago.
2022.

PENSAMENTO VERDE. Por que produtos sustentáveis ​​ são


mais caros? 2021. Disponível em: https://www.pensamento-
verde.com.br/sustentabilidade/por-que-produtos-sustentaveis-
-%E2%80%8B%E2%80%8Bsao-mais-caros/. Acesso em: ago.
2022.

PEREIRA, Marcos da Silva; SAUER, Leandro; FAGUNDES, Mayra


Batista Bitencourt. Mensurando a sustentabilidade ambiental: uma
proposta de índice para o Mato Grosso do Sul. Interações, Campo
Grande, MS, v. 17, n. 2, p. 327–338, abr./jun. 2016.

PORTILHO, F. Novos atores no mercado: movimentos sociais econô-


micos e consumidores politizados. Dossiê Política & Sociedade,
v. 8, n. 15, p. 199–224, 2009.

PORTOBELLO, Archtrends. Copenhagen — Um dos lugares mais


sustentáveis e felizes do mundo para se viver. São Paulo, 2017.

259
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Disponível em: https://archtrends.com/blog/copenhagen-um-lugar-


-sustentavel-e-feliz/. Acesso em: ago. 2022.

RAUHALA, Terhi. Sustentabilidade uma escolha óbvia. Revista This


is Finland, 2020. Disponível em: https://finland.fi/pt/vida-amp-so-
ciedade/para-muitos-na-finlandia-sustentabilidade-e-uma-escolha-
-obvia/. Acesso em: abr. 2023.

RODRIGUES, Caroline. Sustentabilidade será cada vez mais decisiva na


escolha da compra. Consumidor moderno, São Paulo, 2021. Dis-
ponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2021/08/19/
sustentabilidade-decisao-compra/. Acesso em: jul. 2022.

SOUSA, Rafaela. Teoria Malthusiana. Mundo Educação, São Paulo,


2012. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/
teoria-malthusiana.htm . Acesso em: jul. 2022.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha; THEBALDI, Isabela Maria Marques.


Equilíbrio entre consumo e sustentabilidade. Publica Direito, Mi-
nas Gerais, 2012. Disponível em: http://www.publicadireito.com.
br/artigos/?cod=53a738beb939fde0. Acesso em: jul. 2022.

THIS IS FINLAND. Finlândia caminha para a neutralidade com


digitais e roteiros de carbono até 2035. 2022. Disponível em:
https://finland.fi/pt/negocios-amp-inovacao/22-itens-para-22-de-
-abril-de-2022-uma-lista-finlandesa-para-o-dia-da-terra/. Acesso
em: abr. 2022.

VIEIRA, Izabelle Fernanda Silveira. Sustentabilidade nas práticas de


consumo da “nova classe média carioca.” Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
2014.

260
PRINCÍPIOS DA REGULAÇÃO E
MEDIDAS DE PROTEÇÃO AO DIREITO
CONSTITUCIONAL À PAISAGEM
LITORÂNEA CEARENSE, A PARTIR
DO ESTUDO DE CASO DO BEACH
PARK E DAS PRAIAS DE CUMBUCO E
FLECHEIRAS
Eveline Lima de Castro40

INTRODUÇÃO

Considerada como elemento essencial ao bem-estar individual e so-


cial (Silva, 2005), é necessário avaliar a paisagem sob a perspectiva da ati-
vidade turística, identificando os impactos sociais gerados pela supressão
do direito do turista à paisagem natural, decorrente da ação antrópica que
modifica o espaço público de forma indiscriminada.
Observa-se no litoral cearense a construção de pousadas, hotéis, bares,
restaurantes, parques, resorts, que, em prol do benefício particular, preju-

40 Mestra, Advogada, Professora, Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitá-


rio Estácio do Ceará Campus Parangaba, Bolsista do Programa Pesquisa Produtividade da
Estácio Ceará.

261
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

dicam a coletividade, na medida em que suprimem a paisagem, enquanto


direito subjetivo. Tais edificações comprometem, inclusive, a identidade
do litoral cearense, que não mais é lembrado por turistas e visitantes pelas
suas belezas naturais, mas pelas construções que ressignificam a paisagem
litorânea, transfigurando sua estética sob o argumento equivocado do de-
senvolvimento local, econômico e social.
Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, um documento legis-
lativo direcionado a tratar da paisagem, definindo-a e sobrelevando sua
proteção de forma clara e efetiva, embora haja documentos normativos
em que a ela se faz menção esparsa e superficialmente.
O direito à paisagem está inserido entre os direitos de terceira geração
ou direitos difusos (Bobbio, 2004), assim entendidos aqueles que devem
ser integralmente protegidos, por não se ter a dimensão dos indivíduos
que afeta. Daí a relevância profissional do estudo da paisagem, que tem
importância local e mundial, e cuja omissão da proteção jurídica pode
ocasionar lesão a uma massa indefinida de indivíduos, podendo atingir
gerações futuras.
O objetivo desta pesquisa é examinar o direito à paisagem a partir de
destinos turísticos considerados relevantes, tendo em vista a frequência da
recepção de turistas e visitantes no litoral do Ceará, elaborando um diag-
nóstico para propor medidas legais que explicitem a definição de paisagem
e estabeleçam critérios claros para a sua efetiva proteção.
A avaliação da relevância dos destinos turísticos estudados nesta pes-
quisa se deu com base em um processo de escolha realizado pela pesqui-
sadora, que levou em consideração a identificação dos equipamentos por
eles oferecidos, que atraem a atenção e o interesse de turistas que buscam
vivenciar experiências diferenciadas em seu contato com a localidade vi-
sitada, senão veja-se:

• Beach Park, conhecido pelo parque aquático, resort e barraca de


praia;
• Cumbuco, com atrações como passeios de buggy, quadriciclo, je-
t-sky, banana-boat, lancha, jegue, cavalo, jangada, prática de kitesurf
e sky bunda;

262
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

• Flecheiras, que atrai turistas pela tranquilidade e beleza de seu


centro, movimentado por bares e restaurantes.

Com os dados coletados na pesquisa de campo, obteve-se subsídios


suficientes para a construção dos princípios da regulação e efetiva proteção
da paisagem litorânea.

1. ESTUDOS DE CASO

As praias do Litoral Oeste cearense (Cumbuco e Flecheiras) e a praia


do Litoral Leste (Beach Park), ora analisadas, passaram por transformações
decorrentes da intervenção humana e, em consequência dessa ação, tive-
ram o espaço turístico modificado, impedindo o livre acesso à paisagem
na localidade tanto por turistas quanto por autóctones.
Busca-se identificar os processos antrópicos pelos quais o litoral cea-
rense está passando, bem como os impactos ocasionados pela supressão do
direito do turista e do residente à paisagem natural, que é bloqueada por
construções como restaurantes, bares e similares, casas de veraneio, hotéis
e pousadas.
O Ceará é conhecido e valorizado pelo turismo, cujo fluxo inten-
so de turistas gera, inevitavelmente, o crescimento econômico da região.
Entretanto, esse crescimento ocasiona um impacto na paisagem litorânea
decorrente da construção de segundas residências, hotéis, pousadas, bares
e restaurantes, edificados à beira-mar.
O turismo impacta diretamente o desenvolvimento social, e é essen-
cial que a localidade se desenvolva. Todavia, esse desenvolvimento não
pode ocorrer em detrimento de um ambiente ecologicamente equilibra-
do, que somente será alcançado mediante um planejamento que inclua,
além do Poder Público local, todos os atores do processo de transformação
da paisagem (autóctones, turistas, empreendedores).
Conforme Yázigi (2005, p. 126) “um dos problemas mais frequentes
nas praias é a questão do esgoto que na maioria das vezes é despejado no
mar”, o que decorre das construções à beira-mar, que desrespeitam valo-

263
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

res ambientais, obstruindo a visibilidade da paisagem marítima e compro-


metendo a identidade do lugar.
Salienta Paiva (2016, p. 40) que “o uso indiscriminado do espaço por
e para o turismo não reconhece distinção entre os ambientes rurais e urba-
nos, entre espaços naturais e culturais ou entre espaços reais e simulados”.

1.1. PRAIA DO BEACH PARK

A Praia do Porto das Dunas abriga o complexo turístico Beach Park,


objeto desta análise, que conecta praia, parque aquático e resort como se
fossem um todo indissociável, tratando a paisagem, eminentemente pú-
blica, como se bem privado fosse.
Essa realidade pode ser claramente percebida nas imagens abaixo, que
evidenciam a utilização do espaço público por um empreendimento de
caráter particular, modificando a paisagem de modo a atender a interesses
de empreendedores sob a justificativa impulsionar o mercado turístico.

Imagem 1 — Entrada do Complexo Turístico Beach Park

264
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Imagem 2 — Lateral da entrada do Complexo Turístico Beach Park

A praxe que vem se consolidando na sociedade atual, de utilização


do turismo como propulsor do desenvolvimento econômico, é utilizada
como argumento para alteração da imagem da paisagem, tornando o lugar
mais agradável para o consumo turístico. Nesse sentido, Ferrara (2002,
p. 71) afirma que “o apelo visual caracteriza o sistema cultural do nosso
tempo e a publicidade turística faz da exploração da imagem seu grande
atrativo”.
A paisagem tem sido o objeto do turismo mais recorrente no ciberes-
paço, sendo deveras contemporâneo os turistas fazerem selfies mostrando
uma bela paisagem como cenário de suas existências. As imagens acima
evidenciam o apelo visual mencionado por Ferrara, na medida em que foi
promovida a modificação da paisagem com o claro intuito de embelezar o
espaço, atraindo a atenção de turistas e autóctones.
As construções existentes no complexo, como parque aquático, resort,
restaurantes, lojas e demais atrativos, impedem o acesso direto de turistas e
residentes ao mar, sendo a visualização obstaculizada, evidenciando a mo-
dificação da paisagem natural para utilização eminentemente comercial.
O acesso à praia depende da passagem pelo complexo Beach Park, que
alterou integralmente o espaço, construindo uma calçada de garrafas de

265
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

vidro, colocando grama na lateral, além de realizar a edificação de lojas


e quiosques, conduzindo ao que se pode denominar de privatização do
espaço público.
Ocorre que, ao mesmo tempo em que a paisagem natural tem sido
modificada e mercantilizada, “o olhar turístico é ávido da novidade, do
diferente, do extraordinário” (Menezes, 2002, p. 48), o que conduz à ne-
cessidade de transformar a paisagem em um espetáculo de imagens, ali-
mentado por uma atmosfera de luxo, lazer e fantasia, para que possa ser
comercializada, gerando os lucros daí esperados.
Coloca-se a paisagem transformada pelo homem numa posição de
produto turístico passível de consumo, olvidando a indispensável proteção
da paisagem natural em prol do interesse capitalista. Despreza-se o inte-
resse dos consumidores que buscam o contato com a paisagem natural,
privilegiando aqueles que pretendem consumir o produto que foi elabora-
do para lhes ser oferecido mediante pagamento de elevados valores.
A área do Beach Park, marcada pela construção do parque aquático e
pelos resorts, atrai a atenção de turistas que buscam consumir um produto
luxuoso, sem a preocupação de manter contato com a paisagem natural.
Isso é chamado por Cruz (2007, p. 11) de uso turístico do espaço:

O uso turístico do espaço leva à formação do que temos habitual-


mente chamado de ‘território turístico’, quer dizer, porções do es-
paço geográfico em que a participação do turismo na produção do
espaço foi e ainda é determinante. O uso das aspas se faz necessário
porque, teoricamente, não há território que seja adjetivamente tu-
rístico. O que existe, de fato, são usos turísticos do território, ou
seja, porções de espaço apropriadas por diferentes fins, incluindo-
-se e destacando-se a atividade do turismo.

O uso do espaço voltado para a edificação dos resorts no Beach Park


imprime uma dinâmica de utilização do território que o caracteriza como
território turístico de resorts. Esse tipo de empreendimento turístico é de-
finido por Coriolano (2004, p. 205):

266
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Os resorts são as configurações espaciais mais elitizadas, locali-


zadas preferencialmente em áreas naturais preservadas e muitas
vezes distantes de áreas urbanizadas. São verdadeiros enclaves nas
comunidades onde se instalam; formam um mundo isolado e uti-
lizam todos os meios para prender o turista sem dar chances para
a saída de seus ambientes, para divertimentos e consumos fora de
suas dependências. E, como a oferta é variada e cativante, o tem-
po do turista é todo ocupado, as pessoas são privadas de sair sem
perceberem. Seu diferencial em relação aos hotéis é a localização
em enclaves que o grupo econômico denomina paradisíaco e tem
como frequentadores clientes de alto poder aquisitivo, que podem
pagar lazer e luxo.

Como se observa nas imagens abaixo, o percurso que segue de For-


taleza até o Beach Park não permite a visualização do mar, que é impedido
por edificações, como restaurantes, lojas, segundas residências, pousadas,
hotéis. Somente se pode chegar à praia após atravessar uma extensa rua
com lojas, bares, restaurantes, segundas residências e pousadas.

Imagem 3 — Mar avistado ao longe, a partir da CE 025

267
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Após percorrer todo esse logo caminho, o acesso à praia não é ime-
diato, devendo o turista transitar por todo o complexo, até avistar o mar.

Imagem 4 — Caminho percorrido pelo turista até chegar à praia

Imagem 5— Coqueiros e mesas entre os quais deve o turista passar para ter acesso ao mar

268
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

É de fácil percepção que as edificações realizadas para organizar o Complexo


Beach Park impedem o acesso direto à praia, restringindo o contato do
turista e do residente com a paisagem natural.

1.2. PRAIA DE CUMBUCO

O Município de Caucaia, localizado na Região Metropolitana de


Fortaleza, a 15 km da Capital, apresenta fácil acesso, pela CE 090, para
os turistas que pretendem conhecer praias como Iparana, Pacheco, Icaraí,
Tabuba, Cumbuco e Barra do Cauípe, além de lagoas como a Lagoa do
Banana e de Parnamirim.
A Praia do Cumbuco, objeto desta análise, conta com uma vasta rede
hoteleira e, no que toca aos atrativos turísticos, atende a públicos com
gostos diversificados, seja os que buscam emoção — com os passeios de
buggy e quadriciclo pelas dunas —, aventura — com a prática de kitesurf,
sky bunda, passeio de jet-sky, banana-boat ou lancha — ou os mais tranqui-
los e comedidos, com o passeio de jegue, cavalo e jangada.
Como ressalta Lopes (2015, online), Cumbuco é uma das localida-
des litorâneas do município de Caucaia que integra o roteiro turístico
Costa do Sol Poente, juntamente com Iparana, Pacheco, Icaraí e Ta-
buba, tendo, as três primeiras localidades, o veraneio como principal
atividade econômica e de lazer, enquanto Tabuba e Cumbuco concen-
tram-se no turismo.
Morais (2008) ressalta que Cumbuco é destaque turístico em Cau-
caia, sendo uma localidade conhecida mundialmente pelos diversos atra-
tivos turísticos, descritos anteriormente, bem como por sua paisagem na-
tural (lagoas, rios, dunas) e pelas novelas ali filmadas41. Por seus atrativos
diversificados, agrega turistas que fazem uso de seus complexos hoteleiros
e pousadas, atraindo também pessoas que buscam lá estabelecer segunda
residência.
O percurso de Fortaleza até o Cumbuco impede a visualização do
mar, que somente pode ser contemplado em raros e específicos pontos
durante o trajeto. Chegando a Caucaia, a estrada que dá acesso à praia do

41 Final feliz, Tropicaliente, Meu bem-querer (Dantas, 2002).

269
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Cumbuco é chamada de Avenida dos Coqueiros e apresenta construções


à sua esquerda e à sua direita, somente sendo possível acessar e visualizar a
orla marítima pelas ruas perpendiculares àquela.
O acesso à praia é limitado por lojas, restaurantes, barracas e hotéis,
que impedem o livre contato do turista com um espaço que, embora seja
público, vem sendo ocupado por equipamentos denominados de turísti-
cos. O direito do turista à paisagem marítima é restringido sob o auspício
de oferecer-lhe atrativos que acabam por gerar a movimentação econômi-
ca e o consequente desenvolvimento local.
Embora seja um argumento dotado de plausibilidade, não desmis-
tifica a legitimidade do direito à paisagem, que não pode ser suprimido
como já vem ocorrendo, mediante realização de construções à beira-mar
de modo desenfreado.
Nas imagens abaixo, o mar está ao fundo, sendo pouca ou nenhuma
a sua visibilidade, a depender da distância em que se registra a imagem, e
somente se pode chegar a ele após atravessar uma extensa rua com lojas,
bares, restaurantes e até mesmo a própria barraca.

Imagem 6 — Rua que dá acesso à praia

270
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Imagem 7 — Rua que dá acesso à praia

É possível observar, ainda, diversas construções que impedem o aces-


so direto do turista à paisagem marítima, sendo necessário, em muitos
casos, passar por dentro do empreendimento construído para que se tenha
acesso à praia.

Imagem 8 — Parte interna do Duro Beach Hotel-Pousada, que dá acesso à praia

271
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Imagem 9 — Passagem para a praia pelo Kite Hostel

Caso o turista opte por não atravessar os empreendimentos construí-


dos à beira-mar para ter acesso à praia, terá de utilizar os estreitos espaços
que remanesceram entre uma construção e outra. O problema encontrado
é que esses espaços, além de serem utilizados pela comunidade e por tran-
seuntes como depósito de lixo, evidenciam uma insegurança latente, por
serem becos sem movimentação de pessoas ou policiamento.

Imagem 10 — Espaço vazio entre construções e lixo exposto

272
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Além de percorrer todo o caminho já traçado até que chegue à praia,


não se pode olvidar a existência de lixo e mau cheiro em alguns locais,
tornando o ambiente visivelmente desagradável e pouco atrativo aos tu-
ristas.

1.3. PRAIA DE FLECHEIRAS

Fazendo uma análise do percurso que segue de Fortaleza até Flechei-


ras, percebe-se que o turista não terá a visibilidade do mar, que é obstruída
por diversas construções realizadas à beira da praia. Já nas proximidades da
Praia de Flecheiras, é possível vislumbrar o mar, com uma distância con-
siderável da estrada, pois neste perímetro não há sinalização de qualquer
construção à beira da praia. O mesmo se observa na Avenida Litorânea,
na entrada da Praia de Flecheiras, onde é possível ao turista, visitante e
autóctone vislumbrar a paisagem marítima durante o seu trajeto.

Imagem 11 — Percurso pela Av. Litorânea de Flecheiras

273
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Esse quadro é modificado poucos metros à frente, onde já se pode ob-


servar edificações consistentes em barracas de praia, que impedem o livre
acesso ao mar. A situação é tão abusiva que os donos dos empreendimen-
tos utilizam o espaço público como se dele fossem proprietários, tornando
o seu aceso privado, como se denota nas imagens abaixo, que mostram o
Beco do Guiomar, por onde o turista poderia ter acesso à praia por um
espaço minúsculo e, certamente, perigoso, bem como o estacionamento
privativo para clientes.

Imagem 12 — Beco do Guiomar, ao lado da primeira barraca da Av. Litorânea de Flecheiras

Há outros exemplos de limitação do acesso à paisagem marítima para


os turistas, que somente podem ter acesso à praia se passarem por dentro
de empreendimentos particulares ou por espaço deixados por estes, como
se vê nas imagens abaixo.

2 74
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Imagem 13 — Passagem para a praia por dentro da Pousada e Restaurante O Edmar, situa-
da na Av. Litorânea de Flecheiras

Imagem 14 — Acesso à praia por rua situada entre lojas e restaurantes

275
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Inobstante a existência de vários empreendimentos em Flecheiras,


como hotéis, pousadas, restaurantes e lojas, ainda há espaço livre, mas
que não escapou aos olhos dos empreendedores, como se vê na imagem
abaixo.

Imagem 15 — Loteamento a ser construído em Flecheiras

Outro aspecto que merece destaque se refere à construção do antigo


Hotel Orixás, que se apropria de um espaço considerável da praia, somen-
te permitindo a passagem por dentro do empreendimento daqueles que
estiverem hospedados no hotel ou consumindo os seus produtos.
O restaurante do hotel oferece cadeiras para banho de sol, mas cerca a
área que lhe é correspondente com estacas encravadas na areia e vincula-
das por cordas, o que impede o acesso a toda e qualquer pessoa ao espaço
público da praia. Observa-se, ainda, na lateral do hotel, duas “bocas de
esgoto” que levam dejetos até praia, gerando poluição e degradação da
paisagem natural.

276
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Imagem 16 — “Bocas de esgoto” na lateral do restaurante do Hotel Orixás

Todo esse quadro evidencia que, embora os nativos encontrem mui-


tos aspectos positivos com a construção dos empreendimentos, consis-
tentes em melhoria da vida pela geração de empregos e crescimento da
localidade, há impactos negativos que prejudicam autóctones e turistas,
em flagrante desrespeito à legislação vigente.

PRINCÍPIOS DA REGULAÇÃO E MEDIDAS DE


PROTEÇÃO DA PAISAGEM LITORÂNEA À GUISA DE
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qualquer norma que venha a ser editada no sentido de proteger o


patrimônio paisagístico, tal qual prevê a Carta Magna (Brasil, 1988), deve
levar em consideração os princípios de proteção da paisagem, que são a
base sobre a qual deve ser construída a regulação do Direito de Paisagem,
indispensável à efetividade da proteção ora propugnada.

As ciências sociais, nas quais se inclui o Direito, sem desprezo ao


estudo descritivo dos sistemas reais, ocupam-se, também, do es-

277
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tudo e elaboração de sistemas ideais, ou seja, da prescrição de um


dever-ser. Desse modo, não se limita a ciência jurídica à explica-
ção dos fenômenos sociais, mas, antes, investe-se de um caráter
normativo ordenando princípios concebidos abstratamente na su-
posição de que, uma vez impostos à realidade, produzirão efeito
benéfico e aperfeiçoador. (Barroso, 2002, p. 75).

Cretella Júnior (2005, p. 222) afirma que princípios “são os alicerces


da ciência”, “proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam
todas as estruturas subsequentes”.
Como pilares da ciência jurídica, cabe aos princípios direcionar a ati-
vidade legislativa, para que se promova uma regulação eficaz da paisagem
natural, impedindo que a utilização do espaço público seja limitada ou
restringida em prol do interesse econômico desenfreado e predatório de
uma minoria de empreendedores.
Os princípios são valores éticos e morais abrigados no ordenamento
jurídico, cuja tarefa é orientar a elaboração e interpretação das leis, bem
como estabelecer condutas gerais a serem seguidas.
Diferentemente das regras, que estabelecem condutas individuais,
normatizando situações específicas, os princípios têm caráter genérico e
não precisam estar positivados para que tenham validade; seu rol não é
exaustivo, taxativo, pois sinalizam os valores e anseios da sociedade, que
constantemente se transformam.
Belchior (2009) afirma que, havendo colisão entre princípios, a so-
lução será realizada por meio de mandamentos de otimização, na esteira
do que defende Robert Alexy (2006), pois são normas que exigem que
algo deva ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades
fáticas e jurídicas existentes. Como se vê, diz-se colisão (e não conflito),
porque não se pode excluir totalmente um princípio cuja aplicação se dá
por meio do balanceamento de interesses em disputa. Há acatamento de
um em relação ao outro, sem que isso implique em completo desrespeito
daquele que não prevaleceu.
Os princípios tem, assim, a finalidade de conduzir e orientar a ativi-
dade do legislador e intérprete da lei, oferecendo unidade e harmonia ao
ordenamento jurídico.

278
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Alexy (2006, p. 90) caracteriza os princípios como mandamentos de


otimização, definindo-os como:

[...] normas que ordenam que algo seja realizado na maior medi-
da possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que
são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados
e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades
jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pe-
los princípios e regras colidentes.

Como mandamentos de otimização, que orientam o legislador em


seu mister, os princípios abrigam uma abstração que permitem sua apli-
cabilidade a situações diversas e indeterminadas, daí porque Canotilho
(1993, p. 1.160–1.161) afirma serem eles os fundamentos das regras, as
“normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas”.
Sob a ótica fenomenológica, que conduz à essência das coisas, a
apreensão dos princípios evidencia juízos de valor preexistentes à elabora-
ção da norma, afirmando a essencialidade axiológica (valorativa) do Direi-
to. Os princípios gerais do Direito são, portanto, juízos de valor, enquanto
a norma é a objetivação desses juízos, com o intuito de realizá-los (Vas-
concelos, 2006, p. 224).
Os princípios são vagos, indeterminados, abstratos, norteadores, en-
quanto as normas são a concretização daquilo que os princípios revelam
acerca da essência, da natureza das coisas, como fundamento para a regu-
lamentação jurídica de uma matéria específica. Em virtude dessa carac-
terística, que lhe é intrínseca, de captar a essência para concretizar o que
outrora configurava mera abstração, busca-se nesta seção propor princí-
pios que sejam pilares para a regulação da proteção da paisagem litorânea
cearense. Considerando os princípios propostos, sugerir-se-á medidas que
concedam a devida efetividade à proteção da paisagem de interesse turís-
tico objeto desta pesquisa.

279
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Pautados nisso, os princípios a seguir elencados devem compor o Di-


reito de Paisagem, como fundamento de sua regulamentação, no intuito
de proteger a paisagem para as gerações presentes e futuras.
Considere-se que não se trata de um rol taxativo, mas de uma pro-
posta para a efetiva regulação deste direito subjetivo difuso, qual seja, a
paisagem, que vem sendo afrontado pela ausência de previsão legislativa
que possibilite a sua proteção.
A regulação do Direito de Paisagem deve atentar, portanto, aos prin-
cípios elencados a seguir:

1° princípio — A paisagem é um direito subjetivo


O olhar do turista sobre a paisagem inicia-se pelo sentido da visão
para, a partir dela, construir o significado da localidade. Esse processo de
significação do destino turístico não acontece isento das experiências pes-
soais do turista, que são preponderantes para formar a sua concepção a
respeito da paisagem.
O contato visual com a paisagem conduz à identificação de elemen-
tos comuns a qualquer indivíduo, como cores, casas, árvores, rios, mas
a significação atribuída a esses elementos no contexto paisagístico geral
depende da vivência de cada um. Esse fenômeno é a subjetividade, que
consiste em interpretar o mundo dos fatos a partir de experiências pessoais
das quais não pode o indivíduo se desvincular.
Partindo da premissa de que a significação da paisagem ocorre através
da subjetividade de cada indivíduo, é importante denotar o direito de cada
indivíduo de buscar a proteção da paisagem, que consiste em um direito
subjetivo, na medida em que cabe a cada titular do direito decidir se acio-
nará o Estado em defesa dos seus interesses.
A paisagem pode ser classificada como um direito subjetivo de todos
os cidadãos, que tem garantia de acesso livre às praias, previsto na legisla-
ção (Lei nº 7.661/88).
A regulação do Direito de Paisagem deve resguardar esse livre acesso,
efetivando o direito subjetivo de todos os turistas e autóctones, que não
pode ser obstaculizado ou impedido pela ação de empreendedores que
utilizam o espaço público como se dele fossem proprietários.

280
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

2° princípio — A paisagem é um direito difuso


Grinover (1984, p. 30–31), explica o que significa a categoria dos di-
reitos difusos:

[...] compreende interesses que não encontram apoio em uma re-


lação base bem definida, reduzindo-se o vínculo entre as pessoas
a fatores conjunturais ou extremamente genéricos, a dados de fato
frequentemente acidentais ou mutáveis: habitar a mesma região,
consumir o mesmo produto, viver sob determinadas condições so-
cioeconômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos etc.

O direito difuso pode ser definido como a categoria de direitos cuja


titularidade pertence e pode ser reivindicada por uma parcela indeter-
minada de pessoas. Sob esse aspecto, o direito à paisagem é considerado
difuso pois todos os cidadãos, indistintamente, têm direito ao patrimônio
paisagístico, podendo reivindicar o seu direito em caso de violação.
Na medida em que a regulação do Direito de Paisagem visa proteger
o direito de residentes e turistas, no que toca ao acesso à praia, caracteri-
za-se como direito difuso, pois qualquer turista ou autóctone pode reivin-
dicar tal acesso.

3° princípio — A proteção da paisagem é dever do Estado


A Constituição Federal preceitua caber ao Estado a proteção do pa-
trimônio paisagístico, razão pela qual o ente público não pode se omitir
à necessidade de regulação do Direito de Paisagem, que reclama medidas
urgentes e efetivas que impeçam a obstrução do acesso às praias e à paisa-
gem natural por turistas e membros da comunidade.

4° princípio — As praias são bens públicos, pertencentes à


União, e partes integrantes da paisagem
Caracterizadas como bens públicos, na forma da legislação (Código
Civil e Constituição Federal), as praias são partes integrantes da paisagem.
Como consequência disso, a legislação (Código Civil) não admite que
sejam alienadas para viabilizar a edificação de grandes empreendimentos
que frustram o contato de turistas e residentes com a paisagem natural.

281
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

5° princípio — A paisagem é parte da identidade local


A identidade de um destino turístico tem a paisagem como um de
seus elementos, pois ela integra o conjunto de memórias da comunidade.
No litoral cearense as praias são procuradas por turistas que buscam ex-
periências diferenciadas pelas belezas e atrativos turísticos que oferecem.

6° princípio — A paisagem como propulsora do turismo e do


desenvolvimento econômico
A modificação da paisagem, no litoral cearense, para satisfazer os de-
sejos dos turistas, impulsiona o turismo e culmina com o desenvolvimento
econômico da localidade, gerando benefícios para a comunidade. Inobs-
tante, é necessário atentar para o desenvolvimento sustentável, protegendo
a paisagem para que possa ser usufruída por gerações futuras, de modo que
o crescimento econômico local não seja sobrelevado em detrimento da
proteção da paisagem natural.

7° princípio — Paisagem como direito fundamental cujo


acesso é garantido livremente a todos
O direito à paisagem é garantido a todos equitativamente, razão pela
qual é necessário que o Poder Público tome atitudes urgentes no sentido
de limitar a ação de empreendedores sobre o litoral, que tem sido modifi-
cado de forma a impedir o acesso livre de todos de forma igualitária.

8° princípio — A necessidade de acesso à informação por tu-


ristas e autóctones para a ciência acerca da proteção da paisagem
A proteção da paisagem é competência que deve ser exercida pelo
Poder Público, cabendo-lhe também informar a coletividade sobre a ne-
cessidade de preservação dos recursos naturais, promovendo a divulgação
e o esclarecimento sobre as fragilidades e potencialidades do patrimônio
paisagístico.
É necessário que turistas e autóctones sejam informados sobre os
impactos gerados à paisagem pelos empreendimentos edificados à beira da
praia. O art. 5°, XIV, da CF (BRASIL, 1988), assegura “a todos o acesso
à informação”, de forma genérica.

282
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

9° princípio — Direito à paisagem como corolário do princí-


pio da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana, como valor fundamental do Estado
Democrático de Direito, prevista no art. 1º, III da Constituição Federal,
é o princípio mais valioso para compendiar a unidade material da Cons-
tituição Federal, devendo ser máxima a sua densidade jurídica no sistema
constitucional (Bonavides, 2001).
O princípio da dignidade humana é o eixo axiológico em torno do
qual gravitam os direitos fundamentais, que encontram na CF o seu ponto
de equilíbrio, em razão da unidade que esta lhes confere. À luz dessa con-
cepção, infere-se que a dignidade humana torna o sistema jurídico coeso e
harmônico, na medida em que os direitos e garantias fundamentais devem
ser estabelecidos de forma a efetivá-la.
É função precípua do Estado, além de se abster de praticar atos
atentatórios à dignidade humana, protegê-la contra atos de terceiros, o
que poderá ser feito mediante implementação de medidas de precaução
para evitar lesão da dignidade e dos diretos fundamentais ou medidas
tendentes a reconhecer e fazer cessar ou, pelo menos, minimizar os efeitos
das violações, assegurando a reparação integral do dano (Sarlet, 2009).
É primordial a existência, em uma ordem jurídica, de um instrumento
normativo que confira carga valorativa preponderante aos direitos da
pessoa humana, mormente em um Estado Democrático de Direito, que,
embora não esteja imune às arbitrariedades estatais, rechaça violações de
ordem física e psíquica aos cidadãos.
Nesse contexto, a proteção da paisagem, direito difuso subjetivo, im-
porta, por via reflexa, a proteção da dignidade da pessoa humana, na me-
dida em que terá resguardado o seu direito de livre acesso ao patrimônio
paisagístico.

10° princípio — A proteção da paisagem deve considerar a sua


possível modificação por fatores naturais e antrópicos e sustenta-
bilidade
A paisagem não está isenta da atuação de processos naturais e hu-
manos que nela promovam modificação, todavia, qualquer alteração deve

283
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

levar em consideração que seus benefícios serão usufruídos pelas gerações


presentes e futuras, o que evidencia a necessidade de sua proteção.

11° princípio — O desenvolvimento sustentável da paisagem


deve contar com a participação da comunidade, em conjunto
com o Poder Público
O desenvolvimento da paisagem é inevitável, dada a impossibilidade
de impedir a ação natural e antrópica sobre esse patrimônio. Como adver-
te Mota (2001, p. 17), os sistemas naturais, entretanto, sofrem degradação
“à medida que as atividades econômicas/humanas interferem em seu meio
ambiente”.
Em razão disso, faz-se premente a regulação do Direito de Paisagem
de modo a imprimir o desenvolvimento sustentável do patrimônio paisa-
gístico. Para tanto, a atuação do Poder Público em conjunto com a comu-
nidade é imprescindível, esta na categoria de usufrutuária dos benefícios
oferecidos pela paisagem e aquele na qualidade gestor do patrimônio.

12° princípio — A paisagem é componente do patrimônio


cultural
A paisagem surge como componente do patrimônio imaterial da lo-
calidade, contribuindo para a construção de sua identidade e memórias,
portanto, de sua cultura.
Considerando os doze princípios elencados alhures, sugere-se as me-
didas adiante indicadas, indispensáveis à efetiva proteção da paisagem de
interesse turístico.

1ª Medida — Regulamentação do direito à paisagem pela União;


2ª Medida — Regulamentação do uso e ocupação do solo pelo Mu-
nicípio;
3ª Medida — Estabelecimento dos controles urbanos e fiscalização
municipal sobre a paisagem;
4ª Medida — Revisão da legislação federal existente, para que tenha
efetividade;

284
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

5ª Medida — Reconstrução do acesso à praia e remoção das ocupa-


ções ilegais e irregulares, para que o lugar exista e seja, de fato, parte da
identidade local;
6ª Medida — Regulação da ocupação das praias para que os equipa-
mentos turísticos sejam implantados com baixo impacto ambiental e baixa
taxa de ocupação;
7ª Medida — Criação de sistema de informações turísticas que di-
vulgue as medidas de proteção à paisagem;
8ª Medida — Coleta e processamento do lixo que polui as praias
estudadas;
9ª Medida — Disciplina das ações humanas, de pessoas naturais ou
jurídicas, para minimizar o impacto sobre a paisagem;
10ª Medida — Criação de comitês de proteção da paisagem de inte-
resse turístico com atribuição de informar, controlar, fiscalizar e propor ao
Poder Público Municipal medidas de proteção à paisagem.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direito Fundamentais. 5. ed. São Paulo:


Malheiros, 2006.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade


de suas normas. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e Meio Am-


biente. Uma proposta de Hermenêutica Jurídica Ambiental Para A
Efetivação Do Estado De Direito Ambiental. 2009. 257 f. Disserta-
ção (Mestrado em Direito) — Universidade Federal do Ceará, Cea-
rá, 2009.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Nova edição. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia partici-


pativa. São Paulo: Malheiros, 2001.

285
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out.
1988. Seção 1, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 12 fev.
2023.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Cons-


tituição. 7. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.

CORIOLANO, Luzia Neide M. T. Turismo, território e sujeitos


nos discursos e práticas políticas. Tese de doutorado. Aracaju:
UFS/NPGEO, 2004.

CRETELLA JUNIOR, José. Primeiras Lições de Direito. 2. ed. Rio


de Janeiro: Forense, 2005.

CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. Geografias do Turismo: de lugares a


pseudolugares. São Paulo: Roca, 2007.

DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à vista. Estudo da Mariti-


midade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002.

FERRARA, Lucrécia d‘Alessio. Os lugares improváveis. In: YÁZIGI,


Eduardo (org.). Turismo e Paisagem. São Paulo: Contexto, 2002.
p. 65–82.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos. São


Paulo: Max Limonad, 1984.

LOPES, Francisco Willams Ribeiro. Os destinos turísticos face às popu-


lações locais: intervenções, efeitos e práticas na Praia do Cumbuco,
Ceará, Brasil. Revista Iberoamericana de Turismo, Penedo, v. 5,
Número Especial, p. 70–80, abr. 2015. Disponível em: http://www.
seer.ufal.br/index.php/ritur/article/view/1591/1228. Acesso em: 15
fev. 2023.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A paisagem como fato cultural.


In: YÁZIGI, Eduardo (org.). Turismo e Paisagem. São Paulo:
Contexto, 2002. p. 29–64.

286
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudên-


cia, glossário. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009.

MORAIS, L. F. S.; COSTA, C. R. R.; CORIOLANO, L. N. Impac-


tos socioambientais do turismo na praia do Cumbuco, município de
Caucaia-CE. In: Seminário internacional de turismo sustentável, 2.,
Fortaleza, 2008. Anais.

MOTA, José Aroudo. O valor da natureza: economia e política dos


recursos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.

PAIVA, Ricardo Alexandre. Turismo, produção e consumo do espaço. In:


VARGAS, Heliana Comin; PAIVA, Ricardo Alexandre (org.). Tu-
rismo, arquitetura e cidade. São Paulo: Manole, 2016. p. 33–54.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos


fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009.

VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 6. ed. São


Paulo: Malheiros, 2006.

YÁZIGI, Eduardo. O litoral como patrimônio natural e cultural. In: FU-


NARI, Pedro Paulo; PINSKY, Jaime (org.). Turismo e patrimô-
nio cultural. São Paulo: Contexto, 2005.

287
A ENERGIA FOTOVOLTAICA
NO BRASIL E SEUS MARCOS
REGULATÓRIOS
Lilian Novakoski42

INTRODUÇÃO

A energia elétrica nos proporciona conforto e também é fundamental


para o desenvolvimento econômico. Talvez não seja prepotente afirmar
que a vida hoje depende da energia elétrica.
Com os avanços tecnológicos das últimas décadas e as mudanças so-
ciais, surgem novas preocupações que também permeiam a sustentabilida-
de ambiental, frente às mudanças climáticas que o mundo vem suportan-
do. As discussões sobre questões ambientais abrangem diversos aspectos,
políticos, econômicos, jurídicos etc., o que também repercute a discussão
sobre a geração de energia através de fontes renováveis.
Em um passado recente, a energia advinha de fontes não renováveis
e não tardou para que inovações surgissem e fontes renováveis passassem
a dominar matrizes energéticas no mundo, o que garante também maior
segurança na produção energética.
Sendo a energia elétrica um bem tão essencial para a nossa vida e
nosso dia a dia, para evitar crises energéticas é fundamental haver planeja-
mento técnico e diversificação da matriz energética do país.

42 Mestranda em Direito, área de concentração em Direito, inovações e regulações. Espe-


cialista em Direito Previdenciário. Advogada e Professora.

288
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Nos últimos anos percebemos a ampliação da energia solar em nosso


país, o que possibilita uma fonte de energia renovável que traz menor im-
pacto ao meio ambiente em um país com grande incidência solar.43
Garantir o direito ao meio ambiente é garantir um direito fundamen-
tal, direito humano tão em voga na atualidade sobre o qual se discute o
mundo que a geração atual deixará para a próxima, e como evoluir e dimi-
nuir o impacto ao meio ambiente mas também permitir que o progresso
aconteça.
Nesse contexto, se faz importante a promoção de discussões com o
objetivo de fomentar a matriz energética, leis, regulamentações, recursos
públicos para ampliação e fomento de novas fontes energéticas, em espe-
cial a energia fotovoltaica.
A matriz energética brasileira é diversificada e a biodiversidade per-
mite a exploração de fontes renováveis de energia com menor impacto
socioambiental, porém, os incentivos e a segurança para maior ampliação
e investimento em fontes renováveis são elementos importantes para o au-
mento da geração fotovoltaica.
Dessa forma, uma visão interdisciplinar é importante para discutir
sobre energia solar no contexto brasileiro.

1 A ENERGIA FOTOVOLTAICA NO BRASIL

1.1. POR QUAL RAZÃO DISCUTIR SOBRE ENERGIA


ELÉTRICA?

Não há dúvidas que a energia elétrica foi uma criação que gerou um
grande impacto no mundo. Hoje não conseguimos imaginar como seria

43 Conforme dados apontados pela imprensa, a energia solar somente perde para a hídrica:
“A energia solar é a segunda maior fonte de energia no Brasil. Com 23,9 gigawatts (GW) em
operação, fica atrás apenas da fonte hídrica e ultrapassou a eólica, segundo levantamento
da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). O resultado foi obtido atra-
vés da soma de usinas e sistemas próprios de geração de energia, como o uso doméstico,
por exemplo. Com isso, em 2022 a energia solar teve um crescimento de 64% em relação a
2021.” Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/01/17/energia-
-solar-o-que-e-e-como-funciona.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 24 abr. 2023.

289
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

a vida sem energia elétrica: poucas horas sem energia em nossos lares ou
trabalhos causa desconforto, prejuízos e tensão.
Exemplos não faltam para demonstrar a importância da energia elé-
trica. Um caso que mostra o impacto da energia em nossas vidas ocorreu
no estado do Texas, Estados Unidos44, que vivenciou um apagão em um
rigoroso inverno, colocando em risco a vida de milhares de pessoas. No
Brasil, uma situação problemática há anos são os constantes “apagões”,
como o do estado de Roraima,45 que encontra-se isolado, não fazendo
parte do Sistema Interligado Nacional (SIN), prejudicando o fornecimen-
to de energia elétrica no estado.
No caso dos Estados Unidos, pessoas faleceram em consequência do
frio extremo e da falta de energia para se aquecer, o que demonstra mais
uma vez a importância da energia elétrica para todos nos dias atuais.
Para que possamos usufruir dos benefícios da energia elétrica, na ilu-
minação, carregando nossos celulares e computadores, utilizando inúme-
ros eletrodomésticos e outros confortos que a mesma nos proporciona, é

44 Caso do Texas-EUA: o Estado norte-americano ficou sem energia no mês de fevereiro de


2021, em pleno inverno rigoroso. Especialistas apontam como uma das causas a dependên-
cia do gás natural e a falta de infraestrutura das usinas para suportar baixas temperatura e
a alta da demanda energética que veio com o frio intenso (Disponível em: https://www.bbc.
com/portuguese/internacional-56143336. Acesso em: 20 jul. 2021).
45 Caso Roraima: Roraima é o único estado Brasileiro que não faz parte do Sistema Interliga-
do Nacional (SIN) e importava energia da Venezuela. O estado sofre com constantes apagões
e hoje obtém energia de termoelétricas. Sem a ligação do estado com o sistema nacional, a
crise irá permanecer. Para interligar o estado ao SIN, basta construir o Linhão Tucuruí, que
ligará Boa-Vista a Manaus. Parece simples, mas há anos a discussão sobre a obra esbarra
na questão indígena e nos conflitos políticos. Para interligar Roraima ao restante do país é
necessário construir linhão, passando por terras indígenas de Waimiri-Atroari, denominado
Linhão Tucuruí. A discussão gira em torno da possibilidade jurídica de impor ao povo indí-
gena daquelas terras a construção de linha de transmissão, visto ser obra estratégica para
abastecimento elétrico para o estado de Roraima. Até o momento, a obra não foi iniciada e
existem conflitos entre a FUNAI e os Waimiri-Atroari (Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2019-mai-27/mp-debate-crise-energetica-estado-roraima-questao-indigena. Aces-
so em: 20 jul. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/06/18/
waimiri-atroari-pedem-saida-da-funai-de-negociacoes-do-linhao-de-tucurui-apos-abertu-
ra-de-inquerito-na-pf.ghtml. Acesso em: 22 jul. 2021).

290
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

fundamental o planejamento da parte do Estado para que, com o aumen-


to populacional e as demandas industriais — que geram maior demanda
energética e infortúnios que possam prejudicar o fornecimento —, pos-
samos continuar usufruindo de forma segura, confiantes que a energia
elétrica não se esgotará pela falta de investimentos.
Além do planejamento estratégico para suprir a necessidade energéti-
ca, é importante analisar os impactos ambientais. Muitos recursos naturais
se esgotarão com o tempo e ainda existem fontes de energia não renová-
veis na produção energética, como o petróleo, que geram custo alto, sendo
a energia solar apontada como melhor opção de custo-benefício (Silva;
Araújo, 2022).
A falta de planejamento causou a mais emblemática crise energética
vivenciada por todos os brasileiros no ano de 2001, quando ocorreram
os “apagões” e tivemos que racionar energia, causando aumento no de-
semprego, redução do crescimento econômico e descontentamento para
a população, que se viu obrigada a privar-se da energia elétrica e a mudar
hábitos para economizar e ter aumento de custos, já elevados, com energia
(Tolmasquim, 2000).
Na crise energética de 2001, quando passamos a utilizar lâmpadas de
LED para economizar, apontou-se como principal problema a pequena
expansão do sistema elétrico brasileiro, faltando investimentos em geração
e transmissão, tendo até aquele momento suportado épocas de seca quan-
do respeitada a gestão plurianual das reservas hidroelétricas (Tolmasquim,
2000).
Em um breve relato de alguns fatos sobre casos da falta de energia,
percebemos a importância e como é fundamental pensar de forma estra-
tégica o setor energético.

1.2. ENERGIA ELÉTRICA E MATRIZ ENERGÉTICA DO


BRASIL

Quando tratamos sobre matriz energética — como obter energia


através de transformação de diversas formas e de recursos da natureza dis-
poníveis —, dividimos as energias em fontes renováveis e não renováveis,
sendo as renováveis aquelas que geram menor impacto na transformação

291
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

e são inesgotáveis, como a biomassa, a energia solar ou hidráulica, sendo


a última mais comum no Brasil. Já as energias não renováveis são recursos
naturais que não se renovam em curto espaço de tempo, como por exem-
plo o petróleo e o carvão.
Fontes do governo brasileiro estimam que 83% da matriz elétrica no
Brasil vem de fontes renováveis, a maior parte de hidroelétricas, que re-
presenta mais de 60% da energia brasileira — na sequência, eólica, bio-
massa, solar e biogás. A energia solar representa, desse percentual, 1,4% da
fonte energética (Brasil, 2020).
Além das citadas, outras fontes são estudadas e desenvolvidas, e as
existentes são aprimoradas, como a marítima, utilizando como recurso a
água do mar e o biogás, que é obtido com a biomassa obtida em dejetos
e esgotos, possibilitando além da geração de energia uma contribuição ao
meio ambiente ao diminuir a emissão de gases que geram efeito estufa e,
consequentemente, aumento do aquecimento global.
No entanto, a energia gerada através de fontes não renováveis ainda é
muito utilizada, não só no Brasil como no mundo, a exemplo do carvão,
que mesmo sendo uma fonte de energia poluente (fonte de energia que
mais gera Gases do Efeito Estufa — GEE) possui forte influência no setor,
garantindo subsídios generosos do governo, a exemplo da Lei 10.438 de
2002 para usinas termelétricas a carvão mineral nacional, para sua aquisi-
ção e utilização, como não ocorre com outras fontes energéticas (Viana;
Tavares; Lima, 2015).
Além da geração, é necessária a distribuição e transmissão da energia
elétrica. Dados do IBGE — Instituto apontam que 99,8% de domicí-
lios no país têm acesso à energia elétrica, sendo acesso pela rede geral ou
através de fontes alternativas. Para que ocorra a distribuição dessa energia
gerada, se faz necessário investir e pensar em redes de transmissão de ener-
gia elétrica, para que a totalidade da população tenha acesso a esse bem
precioso com constância.
Dados levantados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) dão
conta de um modelo de estratégia da matriz energética que é questionável,
pois o Estado busca sanar a demanda por energia com a construção de
novas usinas hidrelétricas, que continuam sendo a principal fonte, mes-

292
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mo podendo utilizar outros recursos frente à escassez de chuvas regulares,


como efeito das mudanças climáticas, sem estruturar o sistema de distri-
buição, além de gerar um alto custo aos cofres públicos, pois as usinas hi-
drelétricas são caras e de grande impacto socioambiental (Viana; Tavares;
Lima, 2015).
É impreterível promover a diversificação da matriz energética e im-
pulsionar fontes renováveis. Existe um movimento no mundo para buscar
um equilíbrio entre as exigências da vida moderna e os impactos ambien-
tais vivenciados, portanto, para além de uma matriz diversificada, pautada
em fontes renováveis, é necessário pensar nos impactos socioambientais na
geração e distribuição (Viana; Tavares; Lima, 2015).

2. A ENERGIA SOLAR: REGULAMENTAÇÃO E


INCENTIVOS NO BRASIL

A biodiversidade brasileira permite a geração de energia por diversas


fontes, sendo uma das fontes a energia solar. O sol é uma das principais
fontes energéticas do nosso planeta, sendo uma fonte inesgotável (Silva;
Araújo, 2022).
Os painéis fotovoltaicos surgiram nos anos de 1950, e desde então
tivemos grande desenvolvimento, com painéis mais eficientes e com me-
lhores custos, e a cada momento novos estudos e novas formas de gerar
energia através do sol surgem, como telhas fotovoltaicas.
No Brasil, é recente a regularização e incentivo dessa fonte de ener-
gia. No ano de 2012 o Brasil firmou acordo internacional com a Alema-
nha de cooperação bilateral relacionada a energias renováveis e eficiência
energética. As condições para acesso à energia solar no país foram objeto
de regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL),
através da Resolução Normativa 482 de 17 de abril de 2012, regulamen-
tando a micro e mini geração distribuída, pouco tempos após a promulga-
ção do acordo internacional firmado com a Alemanha.
Através de sistemas fotovoltaicos, que podem ser instalados em ca-
sas, comércios, industriais, entre outros, o usuário pode gerar sua pró-
pria energia através da captação da radiação solar por painéis fotovoltaicos.
Uma vantagem da energia solar é a possibilidade de gerar energia sem a

293
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

necessidade de linhas de transmissão, o que traz benefícios em comunida-


des isoladas e, poderíamos pensar, seria uma forma de geração indepen-
dente de energia, sem a dependência do governo.
Para uma geração independente, é necessário o armazenamento de
energia produzida pelo sistema fotovoltaico em baterias, o que denomi-
namos sistema off-grid, sem a ligação com a rede pública. Esse sistema é
utilizado em comunidades isoladas, por pessoas que não tem acesso à rede
pública, visto ser um sistema de alto valor para aquisição e manutenção.
Em um sistema interligado à rede pública, o on-grid, o usuário que
instale sistema de energia solar para geração de energia em sua residência,
comércio, indústria, entre outros, efetiva um projeto elétrico para geração
de energia que supra seu consumo, levando em consideração o período
noturno, quando não há geração de energia, e dias de baixa incidência
solar — e, consequentemente, baixa produção, injetando o excedente de
produção na rede de distribuição de energia. Com esse excedente, o con-
sumidor garante créditos em sua fatura de energia, descontando valores
pela energia que consome da rede de distribuição pública quando não está
gerando sua própria energia.
Quanto aos tributos e taxas, tivemos um marco importante com a
Lei 14.300, de 6 de janeiro de 2022. Aquele que deseja instalar sistema
fotovoltaico para geração elétrica deve apresentar projeto elétrico citado
no parágrafo anterior junto à concessionária de energia, que são diversas
em nosso país — conforme o Estado são empresas públicas, sociedades
de economia mista ou até concessões, em que a iniciativa privada explora
obedecendo regras gerais da agência reguladora.
As concessionárias possuem certa autonomia para estabelecer regras
e interpretações próprias a par das regulamentações da ANEEL, e aquele
que instala um sistema fotovoltaico em sua residência, comércio, entre
outros, deve pagar uma taxa mínima em sua fatura de energia — deno-
minada de custo de disponibilidade — prevista na Resolução 414 de 2010
da ANEEL. Em resumo: você paga uma taxa que envolve os custos da
infraestrutura elétrica, pelo fato de ter uma fonte de energia disponível,
mesmo que você gere a sua própria energia.
Como citado, esse sistema possibilita a geração de energia de forma
independente, basta ter uma bateria para armazenar energia, o sistema of-
f-grid, sistema que funciona sem estar ligado em rede de distribuição de

294
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

energia, torna-se inviável, sendo vantajoso o pagamento de taxa de dispo-


nibilidade em razão de altos custos.
Outro ponto que gerava insegurança para o setor é a possibilidade de
cobrança de Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS)
sobre a energia solar. A possibilidade de cobrança por diversos estados
trouxe um retardo na ampliação de instalações no país, sendo celebrado
em 2015 o Convênio 16/15 do CONFAZ (Conselho Nacional de Política
Fazendária), visando isenção de ICMS sobre a energia solar para incen-
tivar o setor. Em cada estado da federação a cobrança era feita de forma
diferenciada. No Paraná, por exemplo, que foi um dos últimos a aderir
ao convênio do CONFAZ, no ano de 2018 houve a isenção, concedida
de forma parcial, nos primeiros 48 meses para unidade consumidora com
geração de energia fotovoltaica.
Com a publicação da Lei 14.300 de 6 de janeiro de 2022, instituindo
o marco legal da microgeração e minigeração distribuída, estabeleceu-
-se algumas mudanças no Sistema de Compensação de Energia Elétrica
(SCEE). Se o sistema fotovoltaico gerar um excedente de energia, gera
energia além do que é consumido na unidade consumidora; esse exce-
dente é “jogado” na rede de distribuição da concessionária que utiliza essa
energia e devolve em créditos ao usuário. O usuário poderá utilizar esses
créditos para compensar consumo de energia da concessionária, quando
ele não estiver utilizando a que ele produz.
Até a publicação da lei esse crédito era taxado de acordo com cada
concessionária e algumas nem sequer cobravam. Mas a partir do início do
ano de 2023 passarão a ser cobrados. Aqueles que já possuíam projeto até
o início de janeiro de 2023 não serão taxados de imediato e os novos terão
uma taxação gradativa que varia de 15% até 90% em 2028, conforme
previsto no artigo 27 da Lei 14.300 de 2022.
Muitos pontos ainda devem ser discutidos, e a lei está em vigência
há pouco mais de um ano e passa a gerar impactos efetivos na taxação em
janeiro de 2023. As normas já existentes são utilizadas como uma fonte de
regulamentação da lei, mas a instituição de uma lei impondo regra geral
traz segurança jurídica e gera discussões sobre o impacto financeiro para
quem investe em um sistema fotovoltaico (Lopes; Andrade, 2022).
Outro ponto importante para fomentar a energia solar refere-se ao cus-
to dos equipamentos, importados e não fabricados em nosso país. Em 2004

295
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

foi firmado acordo de cooperação técnico-científico para implantar a CB


Solar — Centro Brasileiro para Desenvolvimento de Energia Solar Fotovol-
taica junto a PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul). Com a economia gerada na produção de energia elétrica, setores eco-
nômicos poderão ampliar empregos e gerar impactos positivos ao meio am-
biente, reduzindo, inclusive, a necessidade de construir mais hidrelétricas.
De outro lado, a discussão versa sobre direitos dos consumidores, se
não teriam que arcar com custos dos incentivos concedidos aos que ado-
tem a geração distribuída.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há discussão sobre a necessidade ou não da energia elétrica para


a vida humana. A energia tornou-se bem necessário e precioso nos dias
atuais. Mais do que nunca necessitamos da energia para que hospitais,
escolas, indústrias e nossos lares funcionem, a produção seja contínua e
serviços sejam prestados. Nossos antepassados viveram sem a energia, mas
com a nossa evolução, difícil nos imaginarmos sem ela.
Existem estudos e discussões que fazem jus a fontes de energia renová-
veis e incentivos que não privilegiem alguns. Como bem cita Galimberti
(2016): “A economia ainda controla a ciência, no sentido de que somente
promove pesquisas com incidência econômica imediata”, ou seja, estamos
à mercê de interesses econômicos diante da necessidade de evolução e
cuidado ambiental.
Como fonte de energia renovável, sem dúvidas a energia solar é a al-
ternativa mais promissora, tendo como vantagem não ser poluente e não
gerar ruídos. Ademais, os equipamentos fotovoltaicos possuem vida útil
estimada em 20 anos e são ainda resistentes a variações climáticas (Silva;
Araújo, 2022).
O Brasil tem a seu favor os recursos naturais, podendo obter ener-
gia de diversas fontes não limitadas à solar nem a hidrelétricas, devendo
a análise ser não somente econômica, mas também sob a ótica do desen-
volvimento sustentável, considerando questões ambientais e sociais que
envolvem o empreendimento (Viana; Tavares; Lima, 2015).
Com a publicação da Lei de 2022, considerada um marco para a ener-
gia solar no Brasil, iniciamos uma regulamentação mais isonômica no país,

296
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

que mostra ser vantajoso investir em energia solar mesmo com a tributação
imposta, somente demorando um tempo maior para que os consumidores/
investidores tenham retorno financeiro (Lopes; Andrade, 2022).
Para além de uma regulamentação, incentivos para fomentar o in-
vestimento — como a redução de taxas de juros — também parecem ser
importantes para que seja atraente a aquisição de um sistema fotovoltaico.
Investir em energia é garantir que vivemos crises energéticas como vive-
mos no passado, e, para tal, políticas públicas e incentivos podem ser bem-
-vindos, cabendo o desenvolvimento de mais discussões sobre a temática.
Já percebemos que é necessário o investimento em energia, visto que
consumimos cada vez mais; carros elétricos já são uma realidade e neces-
sidade no futuro, sendo importante discutir e incentivar o investimento
em energias renováveis, em especial a energia solar, pelos breves motivos
expostos com relação a seu impacto ambiental e a sua viabilidade.
Espera-se, no futuro, maiores discussões sobre essa rica fonte de ener-
gia, para que pensemos no meio ambiente e no futuro da nossa e das demais
gerações. O Direito pode contribuir para fomentar a discussão sobre formas
de incentivar a energia solar cada vez mais em nosso país, criando mecanis-
mos para implementar e trazer segurança aos consumidores e investidores.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto 7.685, de 1 de março de 2012. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/
del7685.htm. Acesso em: 20 jul. 2021.

BRASIL. Lei 10.438, de 26 de abril de 2002. Disponível em: https://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10438.htm. Acesso em:
10 maio 2023.

BRASIL. Lei nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/
l14300.htm. Acesso em: 20 abr. 2023.

BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Agência Nacional de Energia


Elétrica. Geração distribuída. ANEEL, 2022. Disponível em: ht-
tps://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/geracao-distribuida. Acesso
em: 20 abr. 2023.

297
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. Resolução 482, de 17 de abril de 2012. http://www2.aneel.


gov.br/cedoc/ren2012482.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.

BRASIL. Resolução Normativa 414, de 9 de setembro de 2010.


Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/cedoc/bren2010414.pdf.
Acesso em: 22 jul. 2021.

FONTES DE ENERGIA renováveis representam 83% da matriz elétrica


brasileira. Gov.br, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/
noticias/energia-minerais-e-combustiveis/2020/01/fontes-de-ener-
gia-renovaveis-representam-83-da-matriz-eletrica-brasileira. Aces-
so em: 16 jul. 2021.

GALIMBERTI, Umberto. O Ser Humano na Era da Técnica. Cadernos


IHUideias, v. 13, n. 218, 2016. Disponível em: http://www.ihu.
unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/218cadernosihuideias.
pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.

GIMENES, Diego. Como o marco legal da energia solar pode im-


pactar a sua conta de luz. Veja.com, 2021. Disponível em: https://
veja.abril.com.br/economia/como-o-marco-legal-da-energia-solar-
-pode-impactar-a-sua-conta-de-luz. Acesso em: 22 jul. 2021.

IBGE. Domicílios brasileiros. IBGE Educa Jovens, c2023. Disponível


em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/
21130-domicilios-brasileiros.html. Acesso em: 22 jul. 2021.

JÚNIOR MOREIRA, Orlando; SOUZA, Celso Correia de. Aprovei-


tamento fotovoltaico, análise comparativa entre Brasil e Ale-
manha. Disponível em: https://doi.org/10.20435/inter.v21i2.1760.
Acesso em: 23 jul. 2021.

LOPES, Alysson Michele do Nascimento; ANDRADE, Judson Toscano.


O marco legal da geração de energia fotovoltaica no Brasil:
uma análise da lei nº 14.300/2022 e seus impactos tributários. Tra-
balho de Conclusão de Curso (Direito) — Universidade Potiguar,

298
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

2022. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/


handle/ANIMA/22377. Acesso em: 29 abr. 2023.

PINTO, Tales dos Santos. O apagão energético de 2001. Brasil Escola,


c2023. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/apa-
gao.htm. Acesso em: 10 jun. 2021.

SERAFIM, Ingrid. Sistema off-grid: como funciona? Canal Solar,


2022. Disponível em: https://canalsolar.com.br/sistema-off-grid-co-
mo-funciona/. Acesso em: 20 abr. 2023.

SILVA, Heitor Marques Francelino da; ARAÚJO, Francisco José Costa.


Energia solar fotovoltaica no Brasil: uma revisão bibliográfica. Re-
vista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Edu-
cação, v. 8, n. 3, p. 859–869, 2022. Disponível em: https://doi.
org/10.51891/rease.v8i3.4654

SILVA, Rayssa Guimarães; CARMO, Marlon José do. Energia solar fo-
tovoltaica: uma proposta para melhoria da gestão energética. Inter-
national Scientific Journal, n. 2, v. 12, article n. 8, apr./jun. 2017.
Disponível em: http://coloquio.srvroot.com/isp/index.php/isp/arti-
cle/view/649/403

TOLMASQUIM, Mauricio. As origens da crise energética brasi-


leira. Disponível em: https://www.scielo.br/j/asoc/a/47YNhcd-
Z9PXxNfHg7kDgdsy/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 19 jul.
2021.

VIANA, Maurício Boratto; TAVARES, Wagner Marques; LIMA, Pau-


lo César Ribeiro. Sustentabilidade e as Principais fontes de energia.
Políticas setoriais e meio ambiente. Câmara dos Deputados, Edi-
ções Câmara, 2015. p. 131–175. Disponível em: https://play.google.
com/books/reader?id=XRfhDwAAQBAJ&pg=GBS.PA5&hl=p-
t-BR&lr=&printsec=frontcover

299
ARTIGOS — POLÍTICA,
DESIGUALDADE E SOCIEDADE

301
VOTO DISTRITAL MISTO, UMA
ALTERNATIVA NA SOLUÇÃO DA
CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
PARLAMENTAR
Jorge Antonio Lopes Ferreira46
Alderico Kleber de Borba47

INTRODUÇÃO

O artigo aborda o estudo do voto distrital. A problematização se dá


na crescente insatisfação do povo/nação com a representatividade pelos
parlamentares.
O sistema eleitoral brasileiro adota o sistema majoritário nas eleições
para mandatos no Poder Executivo. Para mandatos no Poder Legislativo,
adota-se o sistema proporcional.
Para o alcance do resultado da problemática proposta, expõe-se como
objetivo geral deste trabalho analisar a viabilidade da substituição do siste-
ma proporcional pelo sistema distrital misto nas eleições para vereadores,
deputados federais e estaduais.

46 Graduando em Direito pelo CESG.


47 Mestre em Direiro — FUMEC. Pós-graduado em Direito e Processo Constitucional na
ABDCONST, e em Direito Processual na PUC/MG. Professor do CESG. Advogado.

303
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Para atingir objetivo geral foram traçados outros objetivos específicos


(teóricos e empíricos). Os específicos teóricos resumem-se em demons-
trar que no sistema proporcional ocorre uma distorção na manifestação
de vontade do eleitor, visto que, ao votar, é possível acabar elegendo outro
candidato para o parlamento pelo simples fato de integrar o mesmo par-
tido do candidato escolhido pelo eleitor. Os específicos empíricos, em
demonstrar que não raras vezes o candidato mais votado em determinada
região acaba não se elegendo, mesmo tendo recebido milhares de votos
a mais do que outros parlamentares que foram eleitos com uma votação
menor.
Foi utilizada a pesquisa bibliográfica, constituída principalmente de
livros e artigos científicos. A fonte principal de consulta consistiu na legis-
lação brasileira relacionada direta ou indiretamente com o sistema propor-
cional nas eleições, além das obras de autores da área do Direito, Filosofia
e afins, que foram objeto de profunda análise e estudo.
A escolha do tema se justifica em razão não apenas na preocupação de
resguardo de direitos e representatividade parlamentar a grupos de mino-
rias, mas também em razão da relevância do tema e do campo de interesse
social, uma vez que a adoção do sistema distrital misto leva à correção da
distorção no resultado das eleições, em relação aos candidatos votados em
determinadas regiões.
Inicialmente, foi abordada a viabilidade da substituição do sistema
proporcional pelo sistema distrital misto, nas eleições para mandatos par-
lamentares. Foi analisado, em seguida, o Poder Legislativo, abordando
como os representantes são eleitos. Nesse viés, o distanciamento entre
os representantes eleitos e a forma como são eleitos são evidenciados nos
capítulos seguintes. Assim, identificar e analisar o sistema distrital, sobre-
tudo o sistema distrital misto, foi o objetivo desta pesquisa, que conduziu
para a conclusão de que a substituição do sistema proporcional pelo sis-
tema distrital misto apresenta desafios e oportunidades para o aprimora-
mento da representatividade democrática no Brasil.
Diante disso, deve haver um amplo debate e diálogo entre os diver-
sos atores políticos e sociais, buscando encontrar soluções que garantam a
representatividade e a legitimidade das instituições políticas, bem como a

304
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

participação e engajamento da sociedade na construção de uma democra-


cia mais justa e efetiva.

1. DEMOCRACIA E REPRESENTAÇÃO

Derivada de “demokratia” — demos (povo) e kratos (poder) — a palavra


democracia tem origem em 500 a. C., na Grécia antiga. Foi em Atenas
que as experiências iniciais de um governo democrático ocorreram, atra-
vés de reuniões em que o povo, pela maioria e através de debates públicos,
tomava as decisões. Tal sistema ficou conhecido como democracia direta.
Na democracia direta, também conhecida como democracia parti-
cipativa, os cidadãos tomam decisões diretamente, sem intermediários.
Embora essa forma de democracia possa parecer atraente em teoria, a sua
implementação em sociedades complexas pode ser bastante desafiadora.
Uma das principais dificuldades é o tamanho da população. Em socieda-
des complexas, a população, geralmente, é grande e diversificada, o que
torna difícil reunir e organizar todos os cidadãos para tomar decisões co-
letivas. Além disso, muitas vezes as pessoas têm interesses e opiniões dife-
rentes, o que pode dificultar ainda mais a tomada de uma decisão.
Outra dificuldade é a falta de conhecimento e habilidades para
tomar decisões. Em sociedades complexas, as questões políticas podem
ser muito técnicas e especializadas, exigindo conhecimentos e habili-
dades específicos para compreender e debater. Muitos cidadãos podem
não ter esses conhecimentos e habilidades, o que pode limitar sua ca-
pacidade de participar efetivamente na democracia direta. Por essas e
outras razões, a democracia direta é quase impossível de se implemen-
tar nas sociedades contemporâneas. Assim, foi desenvolvida a ideia de
democracia representativa.
A democracia representativa consiste em um sistema político no qual
os cidadãos elegem representantes para tomar decisões em seu nome. No
Brasil, a democracia representativa é exercida através do sistema eleitoral,
no qual os cidadãos elegem seus representantes para o Poder Executivo e
para o Poder Legislativo. A Constituição brasileira dispõe no parágrafo
único do seu art. 1º que todo poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Consti-

305
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tuição. Além disso, mescla mecanismos da democracia direta, como refe-


rendos e iniciativas populares, que permitem que os cidadãos participem
diretamente da tomada de decisões políticas. O art. 14 da Constituição
estabelece, dentre outras disposições, que a soberania popular será exer-
cida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa
popular.
No livro A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, Jessé Souza expõe
como a história da democracia no Brasil é marcada por períodos de avan-
ços e recuos, resultantes de crises políticas e institucionais, golpes e di-
taduras, e da complexidade de se estabelecer um sistema político mais
representativo e participativo em um contexto de desigualdade social e
econômica profundas (Souza, 2017).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88)
restabeleceu o regime democrático, positivando em seu texto eleições li-
vres e regulares para todos os cargos eletivos, incluindo presidente, gover-
nadores, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores.
O Estado democrático de direito (art. 1º da CRFB/88) é a base da
formatação do modelo adotado no Brasil. É um regime político fundado na
soberania popular, com eleições livres e governo da maioria, bem como em poder
limitado, Estado de direito e respeito aos direitos fundamentais de todos, aí incluído o
mínimo existencial (Barroso, 2022, p. 505).
No Brasil, os detentores de mandatos eletivos para os Poderes Exe-
cutivo e Legislativo são escolhidos pelo voto popular. Os políticos eleitos
representam a vontade popular na tomada de decisões. Na democracia
ideal todos participam e tomam decisões em prol da coletividade, direta
ou indiretamente, levando em consideração o ponto de vista de todos os
grupos existentes.

2. PODER LEGISLATIVO

A democracia direta é uma forma de governo em que as decisões po-


líticas são tomadas diretamente pelos cidadãos, sem a intermediação de
representantes eleitos. O Brasil, país de dimensões continentais, adotou

306
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

como regra a democracia representativa, embora tenha previsto mecanis-


mo de democracia direta (art. 14 da CRFB/88).
A democracia representativa é a forma mais adequada de participação
popular em países mais populosos e de diversidades culturais, em que os
cidadãos elegem representantes que os representam nas tomadas de deci-
sões políticas. Como destacou Audálio José Pontes Machado (2016), “por
meio da representação, os cidadãos escolhem as pessoas que levarão suas
demandas para um outro nível, onde essas preferências são discutidas e
podem ser tornadas agenda governamental ou não”.
A Constituição dispõe no art. 45 que a Câmara dos Deputados com-
põe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em
cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. Nesse contexto, o
Poder Legislativo possui grande relevância, por representar o povo. É um
dos poderes fundamentais de qualquer Estado democrático, juntamente
com o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Na democracia representati-
va o Poder Legislativo desempenha um papel crucial, pois é o responsável
por representar a vontade popular e elaborar as leis que regem a sociedade.
O Poder Legislativo é essencial para a democracia representativa, pois
é por meio dele que as pessoas podem expressar suas opiniões e interesses,
e essas opiniões são convertidas em leis que afetam a vida de todos. Não
há democracia sem Parlamento. O Legislativo é o local em que as ideias
e demandas da sociedade são debatidas, e onde os representantes eleitos
buscam soluções para os problemas enfrentados pelos cidadãos.
Os representantes do Poder Legislativo são escolhidos por meio de
eleições, e, como destacado anteriormente, garantem a representação de
uma maior diversidade de ideias e opiniões, permitindo que minorias e
grupos que não teriam espaço em um sistema majoritário possam ter suas
reivindicações pautadas.
No Brasil, o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional,
que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 44 da
CRFB). O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do
Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário (art. 46 da CRFB).
A principal diferença entre as duas casas está relacionada à forma
como são escolhidos os representantes. Na Câmara dos Deputados, os

307
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

representantes são eleitos por meio do sistema proporcional, em que a


votação é dividida entre os partidos políticos e a formação de federações
de partidos. Já no Senado Federal, cada estado e o Distrito Federal elegem
três senadores, que são escolhidos por meio do voto direto e majoritário.
Jairo Nicolau (2004, p. 10) define sistema eleitoral como “o conjunto
de regras que define como em determinada eleição o eleitor pode fazer
suas escolhas e como os votos são contabilizados para serem transformados
em mandatos”.
Essa diferença de método de escolha dos representantes entre as duas
casas do Poder Legislativo tem algumas implicações importantes. En-
quanto na Câmara dos Deputados há uma maior diversidade de partidos
políticos e ideias, já que a votação é dividida proporcionalmente entre as
legendas, no Senado Federal é possível que haja uma maior polarização
entre as principais forças políticas de cada estado, já que a escolha é feita
de forma majoritária.
No entanto, é importante ressaltar que ambas as casas do poder le-
gislativo têm o mesmo peso e a mesma importância dentro do sistema
político brasileiro. Enquanto a Câmara dos Deputados é responsável por
representar a população em geral, o Senado Federal tem como função
representar os estados e o Distrito Federal. Ambas as casas possuem atri-
buições fundamentais para a democracia representativa e a construção de
uma sociedade mais justa e igualitária, bem como na defesa do Estado
Democrático de Direito.
Por fim, é importante destacar que o Poder Legislativo é independen-
te e atua de forma autônoma, bem como não deve se submeter a interesses
particulares ou de grupos específicos. É por meio da representação e do
debate democrático que o Poder Legislativo pode cumprir seu papel na
democracia representativa, contribuindo para a construção de uma socie-
dade mais justa, igualitária e democrática.

3. DISTANCIAMENTO DOS REPRESENTANTES E


REPRESENTADOS

O Brasil, apesar de episódios de crises políticas, vive um período de-


mocrático caracterizado por eleições livres e periódicas. Todavia, a insatis-

308
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

fação da população com a classe política cresce a cada eleição, em especial


com o poder legislativo. A causa inclui, dentre outros fatores, a corrupção
e a falta de representatividade dos parlamentares eleitos, bem como a falta
de concretização das promessas feitas durante as campanhas.
A democracia brasileira “derivou-se de um longo processo de lutas e eferves-
cência popular dos movimentos sociais e sindicais, das camadas médias trabalhadoras
e da pequena burguesia, pela democratização do País ao longo das décadas de 1970
e 1980” (Silva, 2021).
Em geral, os políticos no Brasil são frequentemente criticados por se-
rem vistos como distantes da população e pouco sensíveis às necessidades
e preocupações do povo. Isso se dá pela falta de transparência e respon-
sabilidade, bem como à falta de mecanismos eficazes para que a popula-
ção possa se envolver e influenciar nas decisões políticas. Além disso, a
desigualdade econômica e social no Brasil pode contribuir para a falta de
representatividade, já que os grupos mais ricos e poderosos tendem a ter
mais influência na política do que os grupos mais pobres e desfavorecidos.
Por essa razão, são corriqueiras as acusações de que apenas os interesses
dos mais ricos são favorecidos em detrimento dos interesses da maioria da
população.
A situação se agrava quando se trata do Poder Legislativo, visto que
tal poder ocupa o local considerado a “casa do povo”, mas com atuação
distante das ideologias partidárias e de representatividade da vontade po-
pular.
A corrupção é um problema histórico no Brasil e tem sido fonte de
insatisfação entre os eleitores. Muitos parlamentares são acusados ​​judi-
cialmente de desviar verbas públicas para seus próprios interesses ou para
beneficiar amigos e aliados48. Isso tem um impacto negativo na confiança
dos eleitores e na credibilidade do sistema político como um todo.

48 São exemplos alguns episódios nacionalmente conhecidos e analisados pelo Poder Judi-
ciário, como o caso do Mensalão; a operação Lava Jato; a apreensão pela Polícia Federal de
51 milhões de reais escondidos em malas num apartamento usado pelo ex-ministro do pre-
sidente Michel Temer, Geddel Vieira Lima (PMDB); e caso do senador Chico Rodrigues, que
foi acusado dos crimes de peculato, advocacia administrativa, obstrução de investigação
e lavagem de dinheiro após ter sido flagrado com vultuosa quantia em dinheiro na cueca.

309
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

A falta de transparência é outro fator que distancia representantes elei-


tos do eleitorado. Muitos parlamentares não compartilham informações
sobre suas atividades e decisões com seus eleitores. Isso dificulta a avalia-
ção do desempenho, bem como a participação dos eleitores nas escolhas
durante o processo eleitoral.
A falta de compromisso com seus eleitores e suas comunidades tam-
bém é uma fonte de insatisfação. Muitos deputados parecem estar mais
interessados ​​em seus próprios interesses e de aliados do que em representar
os interesses de seus eleitores e melhorar as comunidades que compõem
sua base eleitoral.
A complexidade do sistema eleitoral também contribui para a insatis-
fação do povo com a representatividade política.

4. SISTEMA PROPORCIONAL

O sistema proporcional é bastante complexo. Nele, os votos são con-


tabilizados por partidos políticos. Para que o candidato seja eleito, há que
se identificar, antes, o partido político ao qual faz parte. A votação indi-
vidual não é decisiva, mas sim o número de votos obtidos por cada sigla
partidária.
O sistema proporcional é um sistema eleitoral no qual os eleitores vo-
tam em uma lista de candidatos de um partido político, e os representantes
são eleitos de acordo com a proporção de votos obtidos pelo partido. Isso
significa que quanto mais votos um partido recebe, mais representantes
ele terá no Poder Legislativo.

O sistema eleitoral de representação proporcional é adotado apenas


para eleições legislativas. Por ele cada partido elege um número de
parlamentares proporcional ao número de votos dados à legenda.
Com isso objetiva-se que a composição de uma câmara de repre-
sentantes reflita diretamente os pontos de vista, interesses e ideo-
logia dos diversos segmentos da sociedade organizada em partidos
políticos. (Dantas, 2006, p. 117).

310
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Os partidos políticos têm uma importância crucial no sistema propor-


cional, pois eles são os responsáveis por organizar as listas de candidatos e
garantir que os eleitores tenham opções para escolher. Assim, um partido
político com mais votos terá mais representantes eleitos e, portanto, mais
influência. Isso significa que um partido político pode ganhar a maioria
de uma câmara com menos votos do que outro partido, dependendo da
proporção de votos.
Além disso, os partidos políticos também atuam na formação de coa-
lizões e alianças, o que pode influenciar a forma como as leis e políticas
públicas são elaboradas e implementadas. Eles também podem desempe-
nhar um papel importante na formação de governos, como no caso de
partidos que formam uma coalizão para governar.

Com o advento do multipartidarismo, a lógica da governabilida-


de no presidencialismo se torna complexa. Como amostra desse
sistema, os países latino-americanos ofereceram diferentes e múl-
tiplos exemplos de presidentes eleitos cujos partidos não obtiveram
maioria no Legislativo. A solução dada a esse problema foi a de
formação de uma coalizão de diferentes partidos, detendo a maio-
ria no Legislativo quando juntos. Seria possível, claro, governar de
forma minoritária, com o próprio partido do presidente e com ne-
gociações ad hoc. (Couto; Soares; Livramento, 2021, p. 16).

O governo coalização ocorre em cenários políticos muito fragmen-


tados e, visando assegurar uma maioria parlamentar, vários entes políticos
cooperam para a tomada das decisões políticas fundamentais. Pode-se di-
zer que o governo de coalizão é um modelo de governabilidade no qual
diferentes partidos políticos se unem em torno de um projeto comum,
dividindo responsabilidades e poder de decisão (Teixeira, 2019, p. 17).
O sistema proporcional é baseado na representação proporcional dos
votos dos eleitores, tendo os partidos políticos como os principais res-
ponsáveis por
​​ organizar as candidaturas e formar coalizões e alianças. Isso
significa que os partidos políticos têm um papel crucial no sistema eleito-
ral proporcional, pois eles determinam a proporção de representação e a

311
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

lista dos candidatos a serem votados. Não raras vezes as candidaturas são
deferidas de modo a beneficiar políticos mais influentes dentro do partido.

5. SISTEMA DISTRITAL

O sistema distrital pode ocorrer tanto por representação majoritária,


quanto por representação proporcional. Seu principal aspecto é a ocorrência
de distritos, que são os espaços territoriais, ou também nomeados círculos
(circunscrições) eleitorais, delimitados para a eleição de candidatos a um
determinado cargo. Se cada grupo de eleitores, definido por porção territo-
rial (distrito), elege somente um candidato, infere-se que o sistema, além de
distrital, seja majoritário, pois será eleito o mais votado naquele território.
Se forem eleitos mais de um candidato por distrito (plurinominal), a vota-
ção poderá ocorrer por escolha majoritária, no qual poderão ser eleitos os
mais votados, ou serão eleitos conforme alguma fórmula eleitoral.
O sistema distrital misto é um sistema eleitoral no qual parte dos de-
putados é eleita por meio de distritos eleitorais individuais (sistema dis-
trital puro) e parte por meio de listas de candidatos de partidos políticos
(sistema proporcional).

[...] o puro e o misto. No primeiro, é eleito um candidato em cada


distrito e as circunscrições são divididas de acordo com o número
de cadeiras. Em alguns países utiliza-se a escolha pela maioria sim-
ples, ou seja, vence aquele que obtiver o maior número de votos,
independente da proporção. Em outros, a eleição é feita em dois
turnos, quando um dos candidatos não alcança a maioria dos votos
ou uma proporção prevista do número de eleitores. Na etapa final,
disputam os dois mais votados e vence o que for mais votado. O
sistema eleitoral misto mescla características dos dois sistemas, o
majoritário e o proporcional. (Araújo, 2009).

O voto distrital puro é uma forma de eleição em que os eleitores vo-


tam exclusivamente em candidatos que representam uma região específi-
ca, geralmente chamada de distrito eleitoral. Isso significa que cada dis-
trito eleitoral elege apenas um candidato para o cargo em questão. Esse

312
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

sistema é diferente do voto proporcional, em que os eleitores votam em


listas de candidatos e a representação é dada de acordo com a proporção
de votos obtidos pelos partidos ou coligações. O voto distrital puro é am-
plamente utilizado em países como Estados Unidos e Reino Unido para
eleger membros do parlamento.
As principais vantagens do sistema distrital puro incluem aumento da
representatividade, pois os eleitores votam diretamente em candidatos locais
que melhor representam seus interesses e preocupações; maior transparência,
pois os eleitores sabem exatamente quem está representando-os; e maior es-
tabilidade, pois os distritos eleitorais são geralmente menos propensos a mu-
danças significativas do que os distritos eleitorais de sistemas proporcionais.
As principais desvantagens do sistema distrital puro incluem o risco
de minorias políticas serem excluídas do processo político, já que as mino-
rias podem ser superadas por uma maioria; tendência à polarização políti-
ca, já que os eleitores podem votar em candidatos de um único partido; e
maior risco de corrupção, já que os candidatos eleitos podem se beneficiar
de doações de campanha e outros favores.
O sistema distrital puro é um sistema eleitoral no qual os eleitores vo-
tam diretamente em candidatos individuais em uma determinada região
geográfica.
O voto distrital misto é uma forma de eleição que combina caracte-
rísticas do voto distrital e do voto proporcional. Nesse sistema, os elei-
tores votam tanto em candidatos de sua região quanto em candidatos de
lista nacional. Isso significa que a representação é dada tanto por meio
de cadeiras eleitas diretamente em distritos específicos, quanto por meio
de cadeiras atribuídas de acordo com a proporção de votos obtidos pelos
partidos. O voto distrital misto é amplamente utilizado em países como
Alemanha e Japão para eleger membros do parlamento.

6. PAÍSES QUE ADOTAM O SISTEMA DISTRITAL EM


SUAS ELEIÇÕES

O sistema eleitoral japonês utiliza o voto distrital misto, em que parte


dos parlamentares é eleita em distritos uninominais e outra parte é eleita
por um sistema proporcional.

313
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

No Japão, o sistema eleitoral para a Câmara Baixa do parlamento é


baseado no voto distrital misto, conhecido como o sistema de “duplo
voto”. Cada eleitor tem dois votos: um para um candidato em seu distrito,
e outro para o partido de sua escolha em uma lista proporcional. O país é
dividido em 295 distritos eleitorais, cada um representando um assento na
Câmara Baixa, e cada distrito tem um número de assentos alocados com
base em sua população.
No caso específico do Japão, um estudo de Reed e Thies (2001) des-
tacou que o sistema de duplo voto no Japão tem permitido a entrada de
partidos menores no parlamento, o que pode ser benéfico para a repre-
sentação de uma variedade de perspectivas políticas, mas pode dificultar a
formação de uma coalizão de governo estável.
Já o sistema eleitoral alemão, adotado em 1949, é conhecido como
voto distrital misto (mixed-member proportional system-MMP), que
combina características do voto distrital e do voto proporcional (Bowler,
1994).
O sistema eleitoral alemão tem como objetivo principal garantir a
representação proporcional dos partidos políticos e, ao mesmo tempo,
manter uma forte conexão entre os eleitores e seus representantes (Scar-
row, 2001).
O sistema eleitoral alemão apresenta algumas vantagens em relação
aos sistemas eleitorais adotados em outros países. Uma das principais van-
tagens é a capacidade de garantir uma representação mais justa e equili-
brada dos partidos políticos no parlamento. Além disso, o sistema eleitoral
alemão também permite que os eleitores escolham seus representantes
tanto por meio de candidaturas locais quanto por meio de listas partidárias
nacionais.
O sistema eleitoral alemão também apresenta algumas desvantagens.
Uma das principais críticas é a complexidade do sistema, o que pode difi-
cultar o entendimento por parte dos eleitores e, consequentemente, dimi-
nuir a participação eleitoral. Além disso, o sistema eleitoral alemão pode
levar à formação de coalizões instáveis e ao fortalecimento de partidos
pequenos e extremistas (Bowler, 1994).

314
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

No entanto, apesar das críticas, o sistema eleitoral alemão tem se mos-


trado eficaz na garantia de uma representação proporcional dos partidos
políticos e na manutenção da conexão entre os eleitores e seus represen-
tantes. Com isso, pode servir como modelo para outros países que buscam
aprimorar seus sistemas eleitorais e garantir uma representação mais justa
e equilibrada no parlamento.

7. VANTAGENS E DESVANTAGENS DO SISTEMA


DISTRITAL

O voto distrital misto é uma opção que oferece aos eleitores a opor-
tunidade de votar tanto em candidatos locais quanto em partidos na-
cionais, o que pode levar a uma maior representação e conexão com os
eleitos. Além disso, o voto distrital misto pode incentivar a competição
entre os partidos e candidatos, o que pode levar a uma maior qualidade
dos candidatos eleitos e melhorar a representação dos eleitores (Mat-
thew; Shugart, 1995).
Araújo, Ferreira e Sales (2009) salientam que o voto distrital misto
pode ser uma alternativa interessante para países que desejam equilibrar
a representação de interesses locais e nacionais, reduzir a fragmentação
partidária, melhorar a qualidade da representação dos eleitores, facilitar
o controle de gastos com campanhas, bem como o fortalecimento dos
partidos políticos.
A implementação do voto distrital traz como benefícios a represen-
tatividade local e regional alicerçada com as diversidades do colégio elei-
toral, redução da fragmentação partidária, maior competitividade entre
os candidatos e partido, bem como maior representatividade regional e
nacional das circunscrições eleitorais.
Na representação local, os eleitores têm a oportunidade de eleger can-
didatos que representam diretamente sua região, o que pode aumentar
a sensação de representação e conexão com os eleitos. Na representação
nacional, os eleitores também têm a oportunidade de eleger candidatos de
lista nacional, o que pode aumentar a representação de diferentes perspec-
tivas e interesses nacionais.

315
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

O voto distrital misto pode ajudar a equilibrar a representação entre


interesses locais e nacionais, evitando que um supere o outro. Também
reduz a fragmentação partidária e aumenta a governabilidade, pois incen-
tiva a formação de federações partidárias maiores e mais estáveis.
O voto distrital misto pode incentivar a competição entre os partidos
e candidatos, o que pode aumentar a qualidade dos candidatos eleitos e
melhorar a representação dos eleitores.
Ocorre que o sistema distrital misto não é isento de críticas.

Um grande problema que existe em alguns países que adotam o


sistema distrital é a prática do gerrymandering, que nada mais
consiste na divisão do colégio eleitoral em distritos que venham
a favorecer este ou aquele partido, ou seja, uma área que tende a
votar no partido “A” é dividida em vários distritos e outra que
tende a votar no partido “B” é fatiada e suas partes incorpora-
das a outros distritos que tem uma tendência maior a votar no
partido adversário, dessa forma mesmo que o partido “B” con-
siga maioria de votos na contagem geral do colégio eleitoral não
conseguira maioria no parlamento porque perderá nos distritos.
(Furlan, 2014, p. 426).

O voto distrital não garante a proporcionalidade entre os votos obti-


dos pelos partidos e o número de representantes eleitos. Isso porque, em
alguns distritos, o partido mais votado pode levar todas as vagas, deixando
de fora outros partidos que tiveram muitos votos, mas não conseguiram a
maioria em nenhum distrito.
Portanto, embora possa ter algumas vantagens, como a aproximação
entre eleitor e representante, o voto distrital também tem suas desvan-
tagens e deve ser analisado cuidadosamente antes de ser adotado como
sistema eleitoral.

CONCLUSÃO

Diante das análises realizadas neste estudo, conclui-se que a subs-


tituição do sistema proporcional pelo sistema distrital misto apresenta

316
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

desafios e oportunidades para o aprimoramento da representatividade


democrática no Brasil. Embora o sistema proporcional tenha sido con-
siderado mais representativo e democrático do que o sistema distrital
puro, não se pode ignorar as críticas e desafios enfrentados por esse
modelo eleitoral.
O sistema distrital misto, por sua vez, apresenta vantagens como
maior aproximação entre eleitores e eleitos, mais responsabilidade dos re-
presentantes e mais clareza na definição dos mandatos, além de garantir a
representação das minorias e a possibilidade de renovação política.
Contudo, é importante ressaltar que a adoção do sistema distri-
tal misto deve ser analisada com cautela, uma vez que requer mudanças
significativas no processo eleitoral e nas estruturas partidárias e políticas
do país. Além disso, é fundamental que sejam garantidos mecanismos de
controle e transparência, bem como o fortalecimento da educação política
e o engajamento da sociedade civil, para evitar possíveis distorções e ma-
nipulações no processo eleitoral.
Um dos maiores desafios enfrentados pela democracia brasileira é a
falta de representatividade, já que muitos cidadãos se sentem distantes das
decisões políticas tomadas pelos seus representantes eleitos. Além disso,
o financiamento de campanhas é um problema recorrente, visto que os
políticos acabam sendo financiados por grandes empresas e grupos eco-
nômicos, comprometendo sua independência e fidelidade aos interesses
públicos.
Nesse contexto, uma reforma política se faz necessária para enfrentar
esses desafios e construir um sistema político mais justo, transparente e
representativo. Dentre as medidas propostas estão a reforma do sistema
eleitoral.
Dessa forma, a viabilidade da substituição do sistema proporcional
pelo sistema distrital misto deve ser avaliada considerando-se as especifi-
cidades e desafios de cada contexto político e eleitoral. É necessário um
amplo debate e diálogo entre os diversos atores políticos e sociais, buscan-
do encontrar soluções que garantam a representatividade e legitimidade
das instituições políticas, bem como a participação e o engajamento da
sociedade na construção de uma democracia mais justa e efetiva.

317
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Fabrício Veloso Silva; FERREIRA, Luciene Luzia da Silva;


SALES, José Carlos Garuti. Sistema Distrital Misto: uma opção
para reduzir a crise da representação. 2009. Monografia (Programa
de Pós-Graduação em Poder Legislativo) — PUC MG e Escola do
Legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Belo Hori-
zonte, 2009.

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-


temporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. São Paulo: Saraivajur, 2022.

BOWLER, Shaun; LANOUE, David J.; SAVOIE, Paul. Electoral sys-


tems, party competition, and strength of partisan attachment: ev-
idence from three countries. The Journal of Politics, v. 56, n.
4, p. 991–1.007, 1994. Disponível em: https://www.jstor.org/stab-
le/2132070. Acesso em: 15 mar. 2023.

CAREY, J. M.; SHUGART, M. S. Incentives to cultivate a personal


vote: A rank ordering of electoral formulas. Electoral studies, v.
14, n. 4, p. 417–439, 1995. Disponível em: https://web.pdx.edu/~-
mev/pdf/PS410_Readings_2014/CareyShugart.pdf. Acesso em: 11
mar. 2023.

COUTO, L.; SOARES, A.; LIVRAMENTO, B. Presidencialismo


de coalizão: conceito e aplicação. Revista Brasileira de Ciên-
cia Política, v. 34, e241841, 2021. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/0103-3352.2021.34.241841.

DANTAS, Sivanildo de Araújo. Sistema Eleitoral Proporcional: uma


proposta técnico-política para o Brasil. 2006. 202 f. Monografia
(Programa de Pós-Graduação em Direito) — UFRN, 2006.

FURLAN, F. A reforma política e o voto distrital. Colloquium Hu-


manarum, v. 11, n. Especial, jul./dez. 2014. Disponível em: https://
www.researchgate.net/publication/289932168_Germany_The_Mi-

318
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

xed-Member_System_as_a_Political_Compromise. Acesso em: 10


mar. 2023.

MACHADO, Audálio José Pontes. A democracia representativa no Bra-


sil: problemas e questionamentos. Estação Científica (UNIFAP),
Macapá, v. 6, n. 1, p. 9–18, jan./abr. 2016.

NICOLAU, Jairo. Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: Editora FGV,


2004.

REED, Steven R.; THIES, Michael F. Thies. The causes of electoral


reform in Japan. Mixed-member electoral systems: The best
of both worlds, p. 152–172, 2001. Disponível em: https://academ-
ic.oup.com/book/12676/chapter-abstract/162677439?redirected-
From=fulltext. Acesso em: 22 mar. 2023.

SCARROW, Susan E. Germany. The Mixed-Member System as a Politi-


cal Compromise. Mixed-member electoral systems: The best of
both worlds, p. 55–69, 2001. Disponível em: https://academic.oup.
com/book/12676/chapter-abstract/162675983?redirectedFrom=-
fulltext

SILVA, Sabrina Aparecida. Autoritarismo e crise da democracia no Brasil:


entre o passado e o presente. Katálysis, Florianópolis, v. 24, n.1, p.
119–126, jan./abr. 2021.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Ja-


neiro: Leya, 2017. E-book.

TEIXEIRA, Felipe Gutemberg. Governos de coalizão no DF: a expe-


riência do governo Rollemberg (2015–2018). 2019. 38 f. Monogra-
fia (Trabalho de Conclusão de Curso) — UNB, 2019.

319
RACISMO ESTRUTURAL E INJÚRIA
RACIAL: A SUPERAÇÃO DE UM
PARADIGMA LEGAL E SOCIAL SOB A
ÓTICA DA LEI 14.532/2023
Gustavo Henrique de Freitas49

INTRODUÇÃO

A forma como as relações sociais foram constituídas ao longo dos sé-


culos é objeto de estudo tanto das Ciências Sociais quanto da Antropolo-
gia, pois dão ensejo e explicação para a forma como essas mesmas relações
chegaram na configuração que hoje se encontram socialmente.
Dessa forma, serão apresentadas discussões pertinentes ao corpo ne-
gro no Brasil e à maneira como se deu o tratamento durante, aproximada-
mente, quatro séculos do regime escravocrata brasileiro e sua repercussão
mundial.
Além disso, se objetivará destacar a maneira de construção do pen-
samento racial brasileiro, visto que a normalização de posicionamentos
racistas é um problema em escala nacional que não deve ser trabalhado de

49 Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Estagiário de Gradua-


ção no Ministério Público do Estado do Paraná e Membro do Projeto de Extensão “O Direito
Pensa” da UEM, com enfoque na produção de Podcasts sobre assuntos relacionados ao
Direito em sua contemporaneidade.

320
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

forma individual, por não estar restrito a determinados indivíduos, mas


sim de maneira coletiva no subconsciente da população.
Nessa toada, é de suma importância diferenciar os tipos de racismo
existentes — individual, institucional e estrutural —, mostrando as fra-
gilidades e incongruências das modalidades individual e institucional, no
que se refere à construção e à estigmatização históricas. Concomitante-
mente, parte-se do pressuposto de que as desigualdades precisam ser su-
peradas, aliadas à constitucionalidade do Estado Democrático de Direito
vigente. Tal conceituação ganhou destaque pela criminalização do racis-
mo a partir da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988,
o que ensejou a publicação de leis penais esparsas que cumprissem com a
função social de igualdade.
Dessa maneira, a Lei 7.718/89, conhecida como Lei Caó, representa
importante instrumento de combate antirracista no país, tipificando di-
versas condutas como crime de Racismo.
No entanto, o debate trazido por este artigo alicerça-se no fato de
que a Injúria Racial, outrora tipificada no Código Penal em seu artigo
140, § 3º, somente foi inserida na Lei de Combate ao Racismo neste ano
de 2023, enfatizando a incongruência do legislador em diferenciar tais
condutas.
Portanto, é a partir dessa tardia — porém necessária — mudança le-
gislativa que se constata que o Racismo Estrutural tem raízes profundas
no comportamento social, ao ponto de construir posicionamentos legais
justificadores da não classificação da Injúria qualificada pelo preconceito
como crime de Racismo.

1. GESTÃO DO CORPO NEGRO

O processo de formação do Brasil como nação não é datado logo


após o seu descobrimento, pois esta nacionalidade foi construída como
propriedade de Portugal. Diante disso, é de extrema importância destacar
o modo de produção empregado nacionalmente entre os séculos XV e
XIX, sendo este o escravagista.
Foram inúmeros navios negreiros que trouxeram diversos escravos,
firmando-se uma verdadeira economia racializada. Essa vexatória situação

321
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

deu início ao processo de animalização dessa parcela populacional que,


outrora, não pleiteava sequer o título de cidadania.
A imperatividade Ibérica de domínio dos mares foi papel fundamen-
tal para a efetivação desse comércio negreiro, sendo assim:

Os reinos ibéricos foram pioneiros neste comércio de cativos, do-


minando os mares e os mercados até ao segundo quartel do século
XVII. Nestes casos, o Estado exerce desde cedo um forte controlo
sobre o tráfico de escravos, sobretudo depois da abertura efetiva
das Américas à colonização europeia. Os aparelhos fiscais apro-
veitaram-se sobremaneira das receitas deste comércio, através dos
impostos, subsídios ou concessões de monopólios e contratos, mas
o que é certo é que o tráfico paralelo foi tão ou mais forte do que o
dito legal. (Osório, 2015, p. 88).

Esse sistema, do ponto de vista jurídico, também se caracterizava pela


desigualdade de tratamento no acesso à Justiça. Aliás, a população negra
não era uma preocupação governamental no âmbito civil, pois não podia
exercer seus direitos, diferentemente dos portugueses que aqui estavam
instalados.
No entanto, a efervescência das discussões sobre o reconhecimen-
to dos direitos naturais de liberdade e igualdade na Inglaterra do século
XVII, que proibiu as diferentes formas de racialização, fez com que as
nações que comercializavam e que mantinham relação de amizade com o
governo inglês fossem também obrigadas a seguir essa mudança.

1.1. LEIS RACIAIS DURANTE OS REGIMES COLONIAL E


IMPERIAL DO BRASIL

No Brasil governado por Portugal as mudanças ocorreram de ma-


neira lenta e gradual, a partir de Leis e Códigos que se transvestiam
com o ideal de igualdade e que, no entanto, davam continuidade à
escravidão brasileira, efetivando-se com a abolição da Escravatura no
ano de 1888.

322
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1.1.1 LEI EUSÉBIO DE QUEIRÓS

A Lei Eusébio de Queirós, por exemplo, publicada no ano de 1850,


foi de suma importância para encerrar um ciclo duradouro iniciado no
século XVI por Portugal, que foi o tráfico transatlântico de pessoas em
navios, a população negra.
Entretanto, a eficácia dessa Lei foi comprometida pelo fato de que
os navios negreiros passaram a chegar em menor quantidade, restando
somente aqueles que realizavam o “transporte” clandestino. Passou a ser
comum, no território nacional, o translado e comércio de escravos inter-
namente. Dessa maneira, asseveram que:

Em algumas regiões do país, houve uma diminuição do número de


escravos, pois estes passaram a ser vendidos para outras províncias.
Isso fez aumentar o tráfico interno de escravos, onde as regiões
que estavam fracas economicamente passaram a vender cativos
para aquelas que estavam mais ricas, e assim supriam a demanda
de mão de obra das regiões de economia aquecida. Esse cresci-
mento do tráfico interno, principalmente em meados do século
XIX, intensificou a “crioulização” dos cativos, trazendo consigo a
possibilidade de generalizar a ideia de “cativeiro justo”, reforçan-
do a legitimidade da dominação escravista. (Machado; Machado,
2020, p. 260).

1.1.2 LEI DO VENTRE LIVRE

Outra modalidade do famigerado e ambíguo processo de liber-


tação dos escravos foi a publicação, em 1871, da Lei do Ventre Livre,
que dava caráter de escravo liberto nascido de escrava a partir daquele
momento.
No entanto, tal legislação deixava a critério do “proprietário” do es-
cravo se ele seria liberado, ou se deveria continuar prestando serviços no
local onde havia nascido. Eram raras as exceções que optavam pela liber-
tação (Zero, 2003).

323
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

1.1.3 LEI ÁUREA

Já a Lei Áurea, assinada no ano de 1888, marcou um novo momento


da história e economia brasileiras, pois ao pôr fim ao regime escravocra-
ta brasileiro revelou-se extremamente prejudicial para aquela e as futuras
gerações que seriam oriundas da população negra. Isso porque tal parcela
populacional não tinha propriedades, tampouco qualquer grau de escola-
ridade, haja vista que tais direitos eram adstritos aos cidadãos. Dessa ma-
neira, mesmo sendo libertos, tiveram de voltar a trabalhar para as mesmas
pessoas em condições ainda piores, além de toda a carga de preconceito
que continuou a existir.
Diante da perspectiva em alusão ao princípio de igualdade social, a
abolição se baseou no seu aspecto formal de legalização, principalmente
para prosseguir nas relações comerciais que alertavam o Brasil sobre essa
situação colonialista.
No entanto, a situação interna foi marcada pela propagação dos
ideais de desrespeito e de não dar aos negros as mesmas oportunidades
que eram dadas aos europeus que aqui se encontravam, pela política de
branqueamento.
Por conseguinte, é preciso ter mente que as relações de desigualdade
ainda representam a maior parte da história brasileira e devem servir de
argumento para que diferentes ações sejam tomadas no campo do Direito.

2. DEFINIÇÃO DE RACISMO ESTRUTURAL

O racismo, em sentido amplo, refere-se ao preconceito direcionado a


um determinado grupo — não sendo uma análise individual —, baseado
nos traços fenotípicos e na cor de pele. A raça/etnia é utilizada no debate
para diferenciar grupos a partir de uma classificação que imputa uma po-
sição subalternizada dos negros em relação às pessoas de pele branca ou
clara.
Inicialmente, faz-se necessário demonstrar diferentes conceituações
de racismo, tendo em vista que ele pode ser entendido tanto no âmbito
individual como também no institucional.

3 24
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

No entanto, as definições citadas não exprimem a exata forma de


construção do pensamento racista em âmbito nacional, visto que ou preo-
cupam-se em identificar condutas racistas individualizas ou as identifi-
cam no âmbito das instituições e do mercado de trabalho, baseando-se na
tentativa de explicar a existência de uma preferência por pessoas de pele
branca nessas situações.

2.1. RACISMO INDIVIDUAL

Tal modalidade de racismo segue uma linha de desconsideração do


processo histórico. Dessa maneira, destaca Silvio Almeida:

Sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas,


mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo.
Desse modo, o racismo, ainda que possa ocorrer de maneira in-
direta, manifesta-se, principalmente, na forma de discriminação
direta. [...] No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o
racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato
de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas
sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos,
líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”. (Almeida,
2019, p. 32).

Essa modalidade define muito bem o imaginário da população brasi-


leira, que acredita existir racismo no país, mas que não acredita ser racista.
Isso se concretiza pela crença no racismo como algo relacionado a uma
pessoa e o seu comportamento, nada tendo que ver com as relações desi-
guais que se construíram no país. Nessa modalidade, o que importa são
somente as ações isoladas do indivíduo contra o negro.

2.2. RACISMO INSTITUCIONAL

Já a modalidade institucional se desprende da análise individual de


casos isolados e parte para a definição de racismo a partir da maneira como
as instituições organizam seu quadro de funcionários, por exemplo.

325
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Constata-se o diferente tratamento dado aos negros e a preterição


empregada, no ilusório de que pessoas de pele branca — homens e mu-
lheres — seriam mais capacitadas e aptas a realizarem suas funções, tor-
nando-se, assim, um problema que afeta negativamente diversas gerações,
pois acabam aceitando, por falta de opção, aquelas posições mais baixas e
com salários defasados em relação aos brancos.
Tal modalidade é de extrema importância para entender o motivo
pelo qual os negros, após tantos anos na condição de liberdade, ainda não
alcançaram a condição material de igualdade.

2.2. RACISMO ESTRUTURAL

Já a concepção estrutural amplia ainda mais a visão racista reverbe-


rante nos comportamentos sociais, em que a imensa maioria dessas rela-
ções possuem características imperceptíveis de racismo, o que dificulta sua
identificação e combate.
Nessa modalidade, reconhece-se que as instituições operam para criar
empecilhos para a entrada de negros no mercado de trabalho, mas relacio-
na-se isso às próprias pessoas que compõem essas mesmas instituições.
O que se afirma na concepção estrutural do racismo é que a sociedade
é racista porque as pessoas também são racistas, não de maneira isolada,
mas de modo sistêmico e, praticamente, inidentificável.
Diante dessa perspectiva, são normalizados comportamentos como
piadas referentes ao fenótipo negro e também de invenções sobre a cultura
e religião africanas. Além disso, o sistema de justiça recebe importante e
nefasta parcela nessa clandestina segregação, a partir de diferentes aborda-
gens sofridas pelos negros.
Com o devido lugar de fala, o professor Silvo Almeida explica por-
que o racismo deve ser considerado pela ordem social, tendo em vista a
sua materialização no cotidiano das pessoas de pele preta. Dessa forma,
segundo ele:

Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma es-


trutura social previamente existente — com todos os conflitos que
lhe são inerentes —, o racismo que essa instituição venha a ex-

326
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

pressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são


apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo
de socialização que tem o racismo como um de seus componentes
orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas
porque a sociedade é racista. Esta frase [...] tem uma série de im-
plicações. A primeira é a de que, se há instituições cujos padrões
de funcionamento redundam em regras que privilegiem determi-
nados grupos raciais, é porque o racismo é parte da ordem social.

Diante disso, é imprescindível, no momento em se analisa as desi-


gualdades sociais e a visão pejorativa do negro por parte da sociedade,
utilizar-se da concepção estrutural, pois dessa maneira é possível analisar a
formação país, tendo em vista a pujante segregação outrora imposta.
Com isso, tem-se tanto a condição histórico-material quanto a con-
dição formal, sendo essa última aquela que impunha aos negros um tra-
tamento diferenciando, que os colocava na situação de ser semovente, à
época.
Além disso, a falta de assessoramento estatal pós-abolição deixou a
antiga população escrava em outra condição de escravidão: aquela que não
é institucionalizada, mas que se apresente vorazmente nos intercâmbios
sociais.

3. O MANDADO CRIMINALIZATÓRIO DO RACISMO

Retratando o período imperial brasileiro, percebe-se a visão do legis-


lador, que não possuía nenhum caráter de igualdade ao propor tratativas
aos escravos que residiam no Brasil. Sobre isso fica clara a criminalização
e forte punição dos negros:

O Código Penal de 1830 estabelecia penas diferentes para os cati-


vos que incorressem em rebeldia contra a ordem. Para eles e para
os livres que ousassem concorrer para a suas rebeliões, conforme
demonstrou Mônica Dantas, foi estabelecida a tipificação de in-
surreição, punida com a morte. Também cometiam o crime de
insurreição os livres que concorressem para que os escravos se re-

327
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

belassem e, sendo cabeças da ação, deveriam ser punidos, quando


em grau máximo, com a morte, do mesmo modo que os escravos.
(Vellozo; Almeida, 2019, p. 2.154).

Essa situação foi revista com a abolição da escravatura, porém foi ne-
cessário um século após esse feito histórico para que a criminalização do
Racismo fosse constitucionalizada.

3.1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A LEI 7.716/1989 (LEI


CAÓ)

Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, a discrimi-


nação racial era considerada uma simples contravenção penal no orde-
namento jurídico brasileiro, mas isso não era verdadeiramente aplicado,
deixando essa população sem um amparo legal eficaz de seus direitos.
Tal entendimento foi superado a partir do mandado criminalizatório
que considerou o racismo como crime inafiançável e imprescritível (Art.
5º, inc. XLII, CRFB). No entanto, faltava uma Lei própria que definisse
quais ações poderiam ser consideradas racistas e a forma como deveriam
ser punidas. Havia, portanto, um hiato que precisaria ser suprido, o que
foi feito com a promulgação daLei nº 7.716/1989 — conhecida como Lei
Caó.
Dentre os vários dispositivos elencados nessa lei, são destaque os
seguintes:

Essa lei tipificou como crimes (sujeitos a pena de um a três anos


de reclusão): impedir ou obstar acesso; recusar ou impedir acesso
a estabelecimento comercial, de ensino, restaurante, hospedagem,
transporte público, cargo da administração pública ou Forças Ar-
madas; negar emprego, impedir ascensão na carreira, proporcionar
tratamento diferenciado no trabalho; impedir o acesso a entradas
sociais em edifícios públicos ou residenciais; e impedir ou obstar
o casamento ou convivência familiar e social, por preconceito de
raça ou cor. (Lima; Machado; Neris, 2016, p. 13).

328
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Dessa maneira, percebe-se que são diversas as condutas tipificadas em


tão importante Lei, tutelando as mais diversas formas em que o racismo
pode se apresentar, principalmente naquelas em que os indivíduos norma-
lizam e acreditam não constituir um ilícito penal.

4. A INJÚRIA RACIAL E A LEI 14.532/2023

A análise sobre a Injúria racial coaduna-se com a conclusão de que o


racismo deve ser analisado pela ótica estrutural, isso pois a opção legislativa
em manter a Injúria Qualificada pelo preconceito representou um erro ao
próprio combate antirracista no país.
A doutrina, no entanto, realiza grande esforço na diferenciação dos
tipos penais constantes na Lei Caó, da Injúria, que, anteriormente, estava
catalogada no art. 140, § 3º, do Código. De acordo com Cézar Bitten-
court, a última representa uma ofensa à própria pessoa contra quem a in-
júria é dirigida. Em suas palavras:

Embora a injúria racial e o crime de racismo sejam crimes distin-


tos, praticados por condutas igualmente diferentes, a criminaliza-
ção de ambos tem, como finalidade, a pretendida igualdade cons-
titucional, e, dessa forma, o legislador procura coibir toda forma
de discriminação, preconceito e intolerância, que acompanha a ci-
vilização através dos tempos. O crime de injúria racial (§ 3° do art.
140 do CP) ofende a honra e a dignidade de pessoa determinada.
(Bittencourt, 2022, p. 248).

No entanto, data venia, a análise do doutrinador deve ser vista com


cautela, pois, se um indivíduo pratica esta modalidade de Injúria, utilizan-
do-se de termos relacionadas à cor, raça, etnia ou procedência nacional,
não o faz de maneira isolada, mas sim a partir de um sistema que cons-
truiu a normalização de comportamentos discriminatórios e criminosos
contra a população negra.
A entrada em vigor da Lei 14.532/2023, que deslocou a Injúria Racial do
Código Penal para a Lei de Combate ao Racismo, criando o art. 2º–A com a
seguinte redação “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro,

329
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2


(dois) a 5 (cinco) anos, e multa”, aponta para o fim da dicotomia existente.
Dessa forma, ainda que o tipo penal se materialize com a ofensa à
honra de uma pessoa, tal ação está diretamente ligada com o pensamento
racista que não é percebido naturalmente e que precisa ser combatido com
veemência.
Além disso, essa atividade legiferante em recrudescer a pena e alocar o
tipo penal em outro diploma legal trará consequências também no âmbito
processualista penal, haja vista que os crimes da Lei Caó são processados
por meio de Ação Penal Pública Incondicionada.
É, portanto, um mecanismo eficaz que deixa ainda mais remota a
possibilidade do sujeito ativo do delito não ser responsabilizado pelo seu
delito, o que poderia acontecer nos Crimes contra a honra, em que é pos-
sível operar-se a prescrição.
Nessa toada, além de o delito não necessitar da condição específica de
procedibilidade, a representação do ofendido, também não prescreverá e
será inafiançável, haja vista a existência do mandado criminalizatório do
racismo na Constituição vigente. Tal posicionamento, no entanto, já havia
sido referendado pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus (HC)
154248, em 28 de outubro de 2021, ao considerar a preponderância do
Racismo Estrutural. Entretanto, pela promulgação da Lei 14.532/2023,
tal posicionamento está expresso em Lei.
Portanto, a partir do momento que o legislador realiza essa imperiosa
mudança, dá-se maior seriedade à conduta injuriosa do preconceito, que
não pode ser diferenciada dos outros tipos penais de Racismo.
A Injúria Racial também é crime de Racismo, pois, quando um indi-
víduo ofende uma pessoa negra, por exemplo, faz com que a coletividade
dessa parcela populacional também se sinta atingida. Porque, ao utilizar-se de
termos racistas para injuriar a vítima, o agressor faz reverberar os mais de três
séculos de escravidão e de coisificação do corpo negro na sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, percebe-se que o Brasil foi construído a partir da


ótica segregacionista de boa parcela de sua população, onde os indivíduos

330
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

negros não eram considerados cidadãos e não podiam gozar de direitos


básicos como ir e vir, estudar, ser possuidor de algo etc.
Desse modo, o comportamento de exclusão e de vilipêndio na gestão
do corpo negro no Brasil for normalizado, ou seja, criou-se no subcons-
ciente da sociedade a normalidade de se ter pessoas negras escravizadas,
bem como, posteriormente, em posições subalternas de uma nação “livre”.
Urge, portanto, a necessidade de se conceituar o racismo construído nes-
te país, haja vista que esse não pode ser analisado em sua esfera individual,
apontando para atos isolados de discriminação da população negra, pois é des-
sa forma que o status quo de racialização se fortalece e se reproduz vivamente.
Faz-se necessário, pois, utilizar da modalidade Estrutural de racismo,
pois é nela em que se encontra a verdadeira caracterização do racismo
atual, haja vista que a análise não deve se perfazer de comportamentos
individuas ou da forma como as instituições são formadas e de como as
vagas no mercado de trabalho são preenchidas.
É estrutural, pois os próprios indivíduos da sociedade são racistas,
mas não por discriminarem veementemente contra pessoas negras, mas
sim por não se considerarem como racistas, ao passo que materializam
brincadeiras, expressões e comportamentos que fazem excluir boa parte
da população brasileira, de maneira inconsciente.
Portanto, mostrou-se de grande valia a discussão sobre a mudança do
crime de Injúria Racial do Código Penal para a Lei de Combate ao Ra-
cismo, haja vista que se um indivíduo ataca alguém por questões de cor ou
etnia, faz isso munido de um pensamento estruturante de racismo que não
é percebido comumente, mas faz perpetrar a desigualdade racial e social
no país que precisa ser combatida com o rigor da Lei.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra,


2019.

BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte especial:


crimes contra a pessoa — arts. 121 a 154–B. Volume 2. São
Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. Disponível em: https://app.

331
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553622920/. Acesso em: 20


mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resul-


tantes de preconceito de raça ou de cor. Brasília, DF: Diário Oficial
da União, 1989.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. 56. ed. Brasília: Câmara dos Deputados:
Edições Câmara, 2020. 189 p.

LIMA, Márcia; MACHADO, Marta Rodriguez Assis; NERIS, Natália.


Racismo e insulto racial na sociedade brasileira. Revista Novos es-
tudos CEBRAP, São Paulo, v. 35, n. 3, p. 11–28, nov. 2016.

MACHADO, Laryssa da Silva; MACHADO, Lucas da Silva. A Desobe-


diência a Lei Eusébio de Queirós. Revista Faces de Clio, Juiz de
Fora, MG, v. 6, n. 11, p. 249–271, jan./jun. 2020.

OSÓRIO, Inês Marinho. Sobre regiões e desenvolvimento: o pro-


cesso de desenvolvimento regional brasileiro no período 1999–2010.
2015. Dissertação (Mestrado em História). São Paulo, 2015.

VELLOZO, Júlio César de Oliveira; DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O pac-


to de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e
Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 2.137–2.160, jul. 2019.

ZERO, Arethuza Helena. Ingênuos, libertos, órfãos e a Lei do Ventre


Livre. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECO-
NÔMICA, 5.; CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HIS-
TÓRIA DE EMPRESAS, 3., 2003, Caxambu. Anais. Varginha:
ABPHE, 2003.

332
A VIOLÊNCIA CONTRA AS
MULHERES: À LUZ DA INEFICÁCIA
DO AMPARO LEGAL FORNECIDO
PELA LEI MARIA DA PENHA
Yaskara Valéria Ferreira Quirino de Mélo50

INTRODUÇÃO

As mulheres avançaram paulatinamente na luta pelos seus direitos,


de forma que em 1827 as mulheres brasileiras alcançaram o direito à edu-
cação. Em 1871 sobreveio a Lei do Ventre Livre, e, portanto, os filhos de
escravas seriam nascidos livres. Um pouco mais tarde, a Lei Áurea, em
1888. Em 1919, foi promulgada uma resolução pela Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) que representa até hoje um marco na his-
tória da evolução dos direitos das mulheres, pois instituiu salários iguais
para homens e mulheres. Em 1934, as mulheres conseguiram o direito de
votar, visto que em 1932 o voto estava condicionado à anuência de seus
maridos. No ano de 1962 surgiu o Estatuto da Mulher Casada, que ins-
tituiu a liberdade trabalhista para a mulher, haja vista que anteriormente
ela só poderia trabalhar com a permissão do marido. A partir daí a mulher
passou a ter o direito de pedir a separação e, nesse caso, também a guarda
completa dos filhos, mas somente em 1977 a Lei do Divórcio foi sancio-

50 Acadêmica de Direito na UFPE.

333
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

nada, possibilitando às mulheres a solicitação de separação, ainda que se


tornassem malquistas pela sociedade. Por conseguinte, somente em 1985
surge a primeira delegacia da Mulher, em São Paulo, em resposta à pressão
da sociedade quanto a violência contra a mulher, responsável por proteger
e investigar os casos de violências doméstica e sexual contra mulheres.
Para representar as mulheres na luta pela igualdade, o movimento fe-
minista surgiu na França, por volta dos anos 1970, e logo se expandiu pelo
mundo, com o principal objetivo de alcançar a igualdade entre homens e
mulheres. Nesse sentido, a igualdade, que é escopo do movimento, não
se refere somente à igualdade no aspecto profissional, mas principalmente
à igualdade de direitos e à liberdade individual. É válido ressaltar que as
raízes da sociedade patriarcal, antes completamente disseminada na cul-
tura brasileira, ainda mostram a existência de vestígios no pensamento
comum. Até pouco tempo atrás, a mulher era tida como posse, isto é,
enquanto mulher solteira ela deveria obedecer ao pater família, e enquanto
mulher casada devia obediência ao seu marido e seu senhor.
O movimento feminista expandiu-se gradativamente, até que boa
parte das mulheres aderisse à luta das sufragistas como sua. Contudo, sua
chegada ao Brasil foi um tanto conturbada, a julgar que o Brasil tem raízes
históricas coloniais patriarcais e uma constituição relativamente jovem,
sendo uma característica comum de países que instalaram a democracia
como regime político e ainda estão se adaptando ao novo regime, o que
torna evidente a existência de características intrínsecas ao regime ante-
rior. Devido a isso, ainda há resquícios de uma sociedade patriarcal ma-
chista e escravocrata, o que naturalmente torna o Brasil um dos países
mais desiguais no que tange aos direitos entre homens e mulheres.
A desigualdade social de gênero tornou-se gritante ao ponto de que
foi necessária uma Lei que protegesse as mulheres da violência doméstica.
Por conseguinte, em 2006 foi sancionada a Lei Maria da Penha (LMP),
que a princípio tinha por objetivo principal a proteção das mulheres víti-
mas de violência doméstica. No entanto, no decorrer dos anos verificou-
-se que a lei era ineficaz devido a falhas em sua aplicabilidade, percebeu-se
que muitos casos de violência contra a mulher sequer chegavam a ser de-
nunciados, ou seja, a violência é silenciada, fazendo com que a lei seja além

334
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

de ineficaz, inaplicável. Ao analisar a Lei Maria da Penha e sua inaplica-


bilidade, percebe-se que, a priori, é necessária uma reforma multidiscipli-
nar para evitar o silenciamento das vítimas, e para que, posteriormente, a
aplicação dessa e de outras leis torne-se possível.
Dado o exposto, o objetivo da pesquisa é analisar a violência contra
a mulher, a evolução paulatina de suas relações históricas e a eficácia do
enfrentamento a essa violência sob a ótica da Lei Maria da Penha. Nesse
sentido, a metodologia aplicada é bibliográfica, conforme proposto por
Lakatos e Marconi (1992, p. 43–44), sendo aquela que levanta sua bi-
bliografia referencial em forma de livros, revistas, publicações avulsas e
imprensa escrita, com a finalidade de colocar o pesquisador em contato
com tudo aquilo que foi escrito sobre o assunto.
Além disso, utilizou-se também a metodologia documental, visto que
foram encontradas uma quantidade grande de documentos que não pos-
suem uma análise aprofundada no tema, mas possuem dados relevantes
(Gil, 2008).

1. UMA ABORDAGEM HISTÓRICA DA VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER

A princípio, cumpre destacar que de acordo com Simone de Beauvoir


(1949) a mulher é uma construção social, de modo que ninguém nasce
mulher, torna-se mulher, e a partir disso a sociedade se constitui de forma
a colocar cada um em seu suposto devido lugar. Percebe-se que desde
sempre a mulher foi posta como o outro, o outro ser existente, a segunda
possibilidade de ser, e ser não significa necessariamente a forma como
você se identifica, mas sim o que você representa, ainda que ambos sejam
divergentes.
E assim tem sido em todos os âmbitos da vida cotidiana, a exemplo
o próprio português, que veio do latim. No latim havia três sujeitos: o
masculino, o feminino e o neutro. Na tradução do latim para o português,
o masculino incluiu o neutro, por isso, quando falamos: “Boa tarde a to-
dos!”, no “todos” inclui-se também a mulher, ainda que a palavra esteja
no masculino. Devido a isso, recentemente surgiu o pronome neutro, que
embora não tenha sido devidamente positivado pela ortografia da Língua

335
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Portuguesa, é frequentemente utilizado para se designar grandes públicos,


de forma que o cumprimento mencionado anteriormente passou a ser
“Boa tarde a todes!”. Todavia, há controvérsias quanto a sua utilização
devido à redundância gerada pelo “todes”; no entanto, isso por si só deve
ser objeto de pesquisa num futuro próximo pela área de Letras.
Segundo Poulain de La Barre, escritor francês, filósofo e feminista
cartesiano, “tudo que os homens escreveram a respeito das mulheres pode
e deve ser considerado suspeito, haja vista que os homens são, há muito
tempo, juiz e parte”. Como prova que corrobora com o postulado de
La Barre, a sociedade demonstra ser essencialmente patriarcal. Até pouco
tempo atrás, considerava-se o assassinato de uma mulher que tivesse traído
seu marido como lícito, tendo sido este cometido em tese, em legítima
defesa da honra. Além desta, há várias outras questões que corroboram
com o pensamento de que o feminino sempre foi o Outro na relação entre
homem e mulher. Há anos a mulher vive entre a tentativa de se constituir
ser essencial e viver na situação que a torna ser “inessencial”: alcançar a
independência, no bojo da dependência, e, ainda, alcançar a igualdade de
gênero, quando o que se vê é a desigualdade social, econômica e até bio-
lógica entre ambos (Beauvoir, 1949).
Além disso, cumpre dizer que as questões discutidas e suscitadas
em O segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, todas foram por si só de-
masiadamente inovadoras à época. No entanto, as mesmas discussões
trazidas em 1949 por Beauvoir são discutidas ainda hoje, em 2023, e
a partir daí nota-se que as sociedades evoluíram significativamente no
que tange à medicina, à economia e ao direito, mas no que tange ao
aspecto social, muitas questões essenciais para a formação do indiví-
duo enquanto ser ainda continuam sem respostas. Dentre elas, a mais
inquietante, a violência, naturalmente é uma característica de socie-
dades emergentes, porém, a violência contra a mulher persiste devido
às raízes históricas do patriarcado na sociedade brasileira. Logo, como
combater essa violência de forma efetiva? As moças deixaram de ser so-
mente dona de casa e passaram a adentrar todos os setores do mercado
de trabalho, contudo, a igualdade plena ainda não foi alcançada, e no
que tange à desigualdade, que soluções o aparato legal oferece para as

336
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mulheres que sofrem violência em decorrência dos vestígios persisten-


tes de uma sociedade patriarcal?

2. TRATAMENTO DOS CASOS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA ANTES DO ADVENTO DA LEI MARIA DA
PENHA, VIDE A LEI DOS JUIZADOS CRIMINAIS (LEI
9.099, DE 1995)

Anteriormente ao surgimento da Lei Maria da Penha, os casos de


violência contra a mulher eram julgados sob a égide da Lei 9.099 de 1995,
também conhecida como a Lei dos Juizados Criminais, que surgiu no
contexto de democratização e facilitação do acesso à justiça. Importante
destacar que a Lei não trata especificamente dos casos de violência contra
as mulheres, mas vinha sendo aplicada na maior parte dos casos que sur-
giam nas Delegacias de Defesa da Mulher; quando aplicadas, as penas para
quem comete a conduta de violência contra a mulher eram mais brandas,
como detenção, cestas básicas e serviço comunitário. Logo, a lei dos Juiza-
dos Criminais não contribuía com a punição dos agressores, muito menos
com as políticas de prevenção e proteção das vítimas, de forma que ao
ocorrer a banalização das queixas, criou-se um sentimento de impunidade
diante da violência doméstica, o que por sua vez foi fator preponderante
para o silenciamento das vítimas (Pasinato, 1998).
A impunidade dos casos que eram levados aos Juizados Especiais Cri-
minais foi um dos fatores responsáveis para o silenciamento das vítimas,
bem como para a reprivatização do conflito — ou seja, o conflito que
iniciou em casa foi para o judiciário para ser resolvido, no entanto o ju-
diciário não pune a conduta do agressor, que retorna a casa, ainda com o
conflito existente — de forma a enfatizar o ditado, mais que ultrapassado:
“em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Uma vez que os
juizados mantinham a política do não encarceramento, não se extinguia o
conflito, ao contrário, o conflito se tornava ainda maior, de modo que o
homem que cometeu violência contra a mulher continuaria impune e li-
vre para cometer mais atrocidades em forma de retaliação à denúncia feita
por ela. Assim, a vítima continuaria a conviver num ambiente hostil com
o seu agressor (Pasinato, 1998).

337
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Além disso, no que tange ao tipo de ação penal, a Lei 9.099 de


1995 considerava que nos casos de violência doméstica a ação penal seria
condicionada à representação do ofendido, ou seja, a mulher precisaria
de um advogado para representá-la judicialmente. Com o advento da Lei
Maria da Penha, a ação penal passou a ser pública incondicionada, o que
tornou responsabilidade da Delegacia de Polícia e bastaria que a vítima
prestasse queixa-crime para que o caso fosse levado adiante — o que con-
tribuiu de certa forma no caráter punitivista do crime de violência do-
méstica, uma vez que a mulher, quando coagida pelo agressor, acabava por
vezes mudando o seu depoimento prestado à polícia, tentando justificar os
ferimentos causados pela agressão, dizendo que os hematomas foram con-
sequências de uma queda ou ainda diminuindo a gravidade dos ferimentos
a fim de retratar o seu depoimento anterior, o que contribuía para que a
Delegacia não oferecesse denúncia ao Ministério Público (Meneghel et
al., 2013).

3. ADVENTO DA LEI MARIA DA PENHA

A princípio, é válido relembrar que a Lei Maria da Penha surgiu em


2006, após Maria da Penha Maia Fernandes sofrer e lutar por mais de
15 anos contra a violência desferida contra ela por seu ex-marido. Maria
era farmacêutica e sofreu violência doméstica durante seis anos. Ela conta
que, primeiro, em 1983, ele tentou assassiná-la com um tiro que a deixou
paraplégica, e, após isso, tentou matá-la por eletrocussão e afogamento.
No entanto, à época o Brasil ainda não tinha leis suficientes para prote-
ger as vítimas de agressão doméstica, haja vista que sequer a Constituição
Cidadã havia sido promulgada. Sua promulgação sobreveio somente cin-
co anos depois, em 1988, mas ainda restavam lacunas na legislação brasi-
leira para defender as mulheres vítimas de violência doméstica.
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha surge com o objetivo principal de
proteger as mulheres da violência sofrida em seus lares, vide a Lei 11.340
de 2006, que teve como objetivo a criação de mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, com o fim de prevenir,
punir e erradicar a violência contra a mulher. A LMP definiu a violência
doméstica como sendo aquela cometida no ambiente doméstico ou em

338
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

convivência com a mulher, podendo ainda haver vários tipos de violência,


dentre elas: violência patrimonial, violência sexual, violência psicológica
e violência física. Dessa forma, qualquer conduta que cause lesão, dano
moral ou morte, cometida no ambiente conjugal ou em convivência, em
qualquer relação íntima de afeto com a mulher, configura o tipo penal do
art. 5º da Lei 11.340/2006.
Sendo assim, dentre os tipos de violência mais fáceis de se identificar
encontra-se a violência física e sexual, haja vista que é possível identificar
possíveis hematomas ou marcas causadas em decorrência da tentativa de
resistência à violência. No entanto, ainda que seja mais fácil a identificação
desse tipo de violência, há grande dificuldade até chegar à queixa-crime de
fato. Isso se deve ao fato de que a violência física no ambiente doméstico
é comumente praticada em conjunto com outras condutas, como a vio-
lência psicológica ou patrimonial — de forma que a mulher encontra-se
psicologicamente incapaz de denunciar o seu agressor, seja pela existência
de filhos no relacionamento ou somente pelo relacionamento abusivo que
ela possui com o agressor. Em decorrência desse relacionamento abusivo,
por medo as vítimas optam por não denunciar.
No que tange às ações previstas na Lei Maria da Penha, organizam-se
em três nichos de intervenção: o primeiro trata das medidas criminais para
coibir a violência, a efetiva punição, que inclui a retomada do inquérito
policial, a possibilidade prisão em flagrante, a restrição da representação
criminal para o crime de violência doméstica — que tornou a ação penal
em pública incondicionada — e o veto para a aplicação da Lei 9.099/95,
que foi um passo muito importante para a mudança do sentimento de
impunidade e trivialização do crime de violência doméstica. No segundo
nicho há medidas de proteção da integridade física e dos direitos da mu-
lher, e no terceiro nicho as medidas de prevenção e de educação, com a fi-
nalidade de impedir a ocorrência da violência e da discriminação baseadas
no gênero (Meneghel et al., 2013).

4. LIMITAÇÕES DA LEI MARIA DA PENHA

Segundo Meneghel et al. (2013), no entanto, ao decorrer dos anos


percebeu-se que os mecanismos criados a fim de coibir a violência tem

339
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

limitações. Dentre elas, antes do advento da Lei Maria da Penha, quando


a Lei 9.099 ainda era aplicada aos casos de violência doméstica, os juízes
não concediam medida protetiva de urgência para as vítimas, caso elas
optasse por não representar o seu agressor, o que significa que a obtenção
da medida protetiva estava condicionada a representação em juízo do seu
agressor, e muitas mulheres não estavam dispostas a aguardar o sistema
judiciário tomar as medidas cabíveis a julgar que, enquanto isso, ainda es-
tariam morando com o seu agressor. Por conseguinte, no hodierno ainda
se verifica certa dificuldade na aplicação da Lei Maria da Penha, em fun-
ção da insistência do judiciário na manutenção dos discursos machistas e
sexistas. Logo, há um hiato entre o depoimento em defesa da Lei Maria
da Penha e a aplicação da mudança na prática.
Nesse sentido, no que tange a concessão de medidas protetivas, há
duas limitações: a primeira reside na insuficiência de informações no rela-
to circunstanciado para que o juiz conceda a medida protetiva de urgência
à vítima; a segunda limitação reside na fiscalização do efetivo cumprimen-
to dessas medidas protetivas. Haja vista que há possibilidade de o agres-
sor não respeitar a medida protetiva e tentar retaliar a mulher, representa
também outra deficiência do sistema policial, que reside na demora de
resposta dos agentes policiais.
Dessa forma, ao passo em que a mulher liga para a delegacia e diz
que seu agressor desobedeceu a medida protetiva, solicitando urgência no
atendimento, até que uma viatura chegue na residência dessa mulher, ela
já está morta, então não há mais que se falar em violência contra a mulher,
mas sim em feminicídio. Nesse sentido, a medida protetiva tem apenas
um valor simbólico, trata-se de uma mera formalidade, o que por conse-
guinte indica que o Estado não consegue garantir a segurança e liberdade
das mulheres, tampouco consegue punir os agressores de forma que não
voltem a delinquir, o resultado dessa ineficiência e ineficácia de agir do
Estado é o silenciamento das vítimas.
Além disso, outra dificuldade na aplicação da Lei Maria da Penha
é que para que ela seja efetivada é necessária sua execução de forma in-
tersetorial, ou seja, não depende somente da polícia civil, mas da polícia
militar, de órgãos da área da saúde, da assistência social e da assistência

340
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

jurídica. No que tange ao setor policial, verificam-se questões quanto à


estrutura e à carência de profissionais capacitados para lidar com as víti-
mas de violência contra a mulher, o que torna o atendimento vagaroso
e ineficiente. De outra maneira, em relação aos profissionais da saúde e
assistência social, é necessário que o atendimento seja ágil. Em muitos dos
casos de violência doméstica a mulher sofre mais de uma violência, seja
física e sexual, seja física e psicológica, e em ambos os casos a vítima pre-
cisa de assistência psicossocial e médica imediata, a fim de que seja capaz
de decidir se vai optar por denunciar ou não seu agressor. No que tange
a assistência social, na maioria dos casos de violência doméstica a mulher
depende financeiramente do homem, logo, se denunciá-lo teria que sair
de casa, e a situação se torna mais difícil ainda quando há filhos envolvidos
no relacionamento.
No que concerne aos casos em que há filhos na relação conjugal, a
mulher comumente é instruída por sua mãe, mulheres da família e até
amigas a continuar com seu marido, sob o argumento de que “ruim com
ele, pior sem ele” ou “como você pretende criar seus filhos sozinha?”.
Tal pressão sofrida pela mulher tende a fazê-la desistir de denunciar seu
agressor e continuar, ainda que em um ambiente hostil, convivendo com
seu marido ou namorado. Como se nota, as raízes da sociedade patriar-
cal estão tão enraizadas, de forma que as mulheres acabam banalizando
ou diminuindo o significado da violência por ela sofrida, o que por si só
termina sendo suficiente para que a mulher não denuncie o seu agressor,
visto que ela é convencida por essa argumentação falaciosa de que sem o
seu marido, ainda que violento, não seria possível criar seus filhos ou se-
quer sobreviver sem ele.
Nesse sentido, há uma sólida construção cultural que persiste devido
a suas raízes histórico-culturais, que normalizam a existência de violência
em relacionamentos amorosos, o que corrobora a existência do tal “crime
passional”, que é aquele cometido por amor ou por paixão. Entretanto,
acredita-se que não existe crime passional, o que motiva os homens a se
tornarem agressores é o sentimento de ódio, não de amor, muito menos
paixão, de modo que tal ato não se justifica e muito menos serve como
excludente do crime que foi cometido, como outrora era possível ocorrer.

341
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Por fim, no que tange ao sistema jurídico, convém ressaltar que este,
por sua vez, não é capaz de fazer cumprir o objetivo da pena, haja vista que
a lotação do sistema prisional estatal acaba desvirtuando o agente do ob-
jetivo primordial do sistema, a ressocialização. No entanto, a maior parte
dos agressores que se enquadra nesse tipo penal não chega a cumprir pena
privativa de liberdade. A maioria cumpre a pena restritiva de direitos, e
por isso não ocorre de fato a reabilitação do sujeito, ocasionando, assim,
possível reincidência. Parafraseando Meneghel et al. (2013), isso ocorre
porque o sistema de justiça funciona como um dispositivo de controle
social e de violência institucional, discriminando, humilhando e revitimi-
zando as vítimas.

5. CARÁTER PUNITIVISTA DA LEI MARIA DA PENHA

Nesse sentido, o que se vê na prática quanto à Lei Maria da Penha


é que há uma supervalorização do caráter punitivista do crime contra a
mulher e completa negligência dos outros aspectos que são tão importan-
tes quanto. Isto é, aumentam-se as penas nos crimes cometidos contra a
mulher, no entanto há completa negligência no tange às outras assistências
que são tão importantes quanto à assistência do judiciário, ou seja, a as-
sistência social e o amparo psicológico necessário. Muitas vezes também
é necessário que o Estado ofereça amparo financeiro para que a mulher
possa sair do ambiente tóxico em que vive sob a dependência de seu ma-
rido/namorado/companheiro agressor, dentre outras redes de apoio que a
mulher necessita nesse momento.

6. A COR DAS VÍTIMAS E AS LIMITAÇÕES DA LEI MARIA


DA PENHA

Para além dos dados que foram expostos anteriormente, é importante


destacar que a maioria esmagadora das vítimas são negras e de classe baixa,
o que por sua vez acentua todas as limitações. Isso se deve ao fato de que os
casos de atendimento policial às mulheres que vivem na periferia são ainda
mais difíceis, visto que a polícia não chega a determinados locais, devido
a sua localização e à blindagem feita pelos chefes do morro, o que acaba

342
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

reafirmando que o Direito consuetudinário é que prevalece em determi-


nados locais. É válido ressaltar, ainda, que no que tange a violência contra
as mulheres negras há uma grande diferença nas estatísticas: no cerne, a
tendência é que a violência contra mulheres brancas diminua, enquanto
em relação às mulheres negras a tendência é na contramão do desenvolvi-
mento, muito maior (Santos, 2016).
Nesse sentido, a maior quantidade de casos que chegam ao conhe-
cimento da justiça são aqueles cujas vítimas são em sua maioria de baixa
escolaridade, baixo poder aquisitivo e majoritariamente negras ou pardas,
além de possuírem idades variadas — o que, por conseguinte, ratifica que
a maior parte das vítimas são mulheres negras e em vulnerabilidades so-
cioeconômicas. Estas por sua vez, são reflexos de uma sociedade que ape-
sar do tempo mantém suas raízes históricas raciais de preconceito, e nessa
toada o racismo desumaniza as pessoas — e, quando o faz, as vitimiza
duplamente. Assim sendo, as mulheres que estão nessa condição e sofrem
violência acabam muitas vezes não denunciando seu agressor, somente em
casos de extrema urgência (Universidade Católica de Pernambuco, 2018).
Da análise do supramencionado, cumpre destacar que é necessário
que as mudanças no sistema multidisciplinar de atendimento aos casos de
violência doméstica sejam aplicadas de forma especial nesses casos, haja
vista que historicamente já há uma tendência de exclusão da comunidade,
e por isso a aplicação da lei deve ocorrer de forma que consiga incluir e
abarcar todas as vítimas de violência, sem que haja distinção ou seleção,
independentemente da cor das vitimas. Todas são vítimas e aqui não se
deve fazer juízo de valor, ou, melhor dizendo, juízo de cor, mas deve-se
aplicar um tratamento isonômico garantido constitucionalmente a todos
os cidadãos, independentemente de raça, cor, etnia ou classe social (San-
tos, 2016).

7. DA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA HOJE

A aplicação da Lei Maria da Penha tem sido entendida pela doutri-


na e jurisprudência em relação a diversos casos em que ocorre violência
dentro do lar, casos como violência por filho contra a mãe, filha contra a
mãe, pai contra a filha, irmão contra irmã etc., o que acaba de certa forma

343
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

modificando o entendimento acerca da aplicação e abrangência da lei, que


a princípio foi criada somente para combate ao preconceito de gênero e à
violência sofrida devido a este.
Previamente, é válido ressaltar que no que tange ao objetivo da Lei
Maria da Penha, pelo menos a princípio, era coibir a violência contra a
mulher devido ao gênero, muito presente no histórico brasileiro. No en-
tanto, o judiciário não faz juízo subjetivo quanto ao enquadramento da
LMP, e, portanto, adotou uma postura mais abrangente quanto à acei-
tação e ao enquadramento dos delitos contra as mulheres, independen-
temente de motivação, causa e condição. Portanto, se um pai agride a
filha por motivos de discussão política ou divergência quanto à identidade
de gênero, aplica-se a LMP. Qualquer pessoa pode ser o agressor, mas a
vítima precisa necessariamente ser mulher, e aqui se incluem também as
mulheres trans.
Recentemente houve novas mudanças na Lei Maria da Penha, como
dito anteriormente, a concessão da medida protetiva estava condicionada
à representação do ofendido, portanto, a mulher teria que denunciar o
marido; agora, diante da palavra da mulher a medida protetiva deve ser
deferida, mesmo que não haja boletim de ocorrência. Como o juiz está
sempre exercendo a cognição sumária, a partir de agora quase todas as
medidas serão deferidas. Portanto, a palavra da mulher tem mais peso,
não havendo necessidade de se provar nada: apenas o relato de violência
da mulher já basta, objetivando mais agilidade e eficiência em relação às
medidas protetivas. Diferente de anteriormente, não haverá prazo e esten-
der-se-á também aos dependentes da mulher vítima de agressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, é possível concluir que a lei exige uma aplicação


multidisciplinar para sua efetividade, envolvendo a polícia civil, militar,
unidades de assistência médica e assistência social. Na prática, essa multi-
disciplinaridade é quase inexistente, uma vez que há grandes descompassos
entre a prática dos policiais, a prática dos juízes e o discurso jurídico, bem
como há um descompasso entre o que a lei fixa ser direito das mulheres e
o direito que elas de fato alcançam. Isso denota uma supervalorização do

344
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

caráter punitivista da lei e uma completa negligência aos outros aspectos,


o que, por sua vez, causa tamanha ineficiência legislativa.
Logo, para fazer a lei valer, é necessário o aumento dos recursos hu-
manos, materiais e financeiros, bem como um trabalho social na descons-
trução dos resquícios característicos de uma sociedade machista, sexista
e patriarcal, que insiste em manter grande parte das desigualdades sociais
provenientes das relações assimétricas de força e poder entre os gêneros.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: ninguém nasce mulher:


torna-se mulher. A experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2
v. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2019.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: o mundo sempre pertenceu


aos machos. Fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 2 v. 5. ed.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2019.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha.


Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10
abr. 2023.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo:


Atlas, 2008.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho


científico. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1992.

MARÇO DELAS: Conheça a Trajetória das Lutas pelos Direitos das


Mulheres no Brasil. Sesc RJ, Rio de Janeiro, 3 mar. 2021. Dispo-
nível em: https://www.sescrio.org.br/noticias/assistencia/marco-de-
las-conheca-a-trajetoria-das-lutas-pelos-direitos-das-mulheres-no-
-brasil/. Acesso em: 10 abr. 2023.

MENEGHEL, Stela Nazareth et al. Repercussões da Lei Maria da Pe-


nha no enfrentamento da violência de gênero. Ciência & Saúde

345
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Coletiva [online], v. 18, n. 3, p. 691–700, 2013. Disponível em:


https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000300015. Acesso em: 20
abr. 2023.

PASSINATO, W. Justiça e Violência contra a mulher: o papel do


sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: An-
nablume, 1998.

SANTOS, Vanilda Honória dos. A violência contra as mulheres na pers-


pectiva do Direito Achado na Rua: a cor das vítimas. Revista de
Movimentos Sociais e Conflitos, Brasília, v. 2, n. 1, 2016. Dispo-
nível em: https://indexlaw.org/index.php/revistamovimentosociais/
article/view/314. Acesso em: 10 abr. 2023.

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO. Entre prá-


ticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os
avanços e desafios do Poder Judiciário. Relatório analítico pro-
positivo, Brasília: CNJ, 2018. 300 p. (Justiça Pesquisa). Disponível
em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/283.
Acesso em: 20 abr. 2023.

346
O CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA E SEU AUXÍLIO AO PODER
JUDICIÁRIO NA SOCIEDADE
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Rafael Menguer Bykowski dos Santos51

INTRODUÇÃO

O projeto integrador como objetivo analisa o Conselho Nacional de


Justiça (CNJ) e seu auxílio no trabalho do Poder Judiciário, através da
utilização dos conhecimentos obtidos com as disciplinas de: Organização
do Estado e Instituições Judiciárias, Práticas do Processo Civil e Processo
do Trabalho e Normas do Direito Brasileiro.
O estudo como metodologia utiliza uma extensa fonte de pesquisa
bibliográfica e documental, bem como do método dedutivo, do mesmo
modo os métodos analíticos e indutivos na busca da solução para proble-
mas no que se refere ao raciocínio lógico-sistemático, da mesma forma
que serão usados para uma análise ampla coadunando as posições doutri-
nárias estudadas.

51 Bacharelando em Direito na Faculdade de Direito de Franca (SP). Graduando em Supe-


rior de Tecnologia em Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro na Universidade
Paulista (SP).

347
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

A disciplina Organização do Estado e Instituições Judiciárias tem


como escopo a análise sobre a organização político-administrativa brasi-
leira, nas esferas de nível federal, estadual e municipal, do mesmo modo
o estudo da tripartição dos poderes, ou seja, Executivo, Legislativo e Ju-
diciário, explorando os seus órgãos e os reflexos no corpo social brasilei-
ro, da mesma forma investigando a instituição da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) e o Ministério Público (MP), suas organizações e os
princípios inerentes à atividade profissional, relacionando com a Admi-
nistração Pública e o Estado Democrático de Direito. Na esfera temática,
a estrutura e a função da instituição são abordadas neste tópico.
As Práticas do Processo Civil e Processo do Trabalho têm como fi-
nalidade a busca do acompanhamento prático dos processos cíveis e tra-
balhistas dentro dos escritórios de advocacia, departamentos jurídico-
-empresariais, bem como a relação com o direito notarial e registral. Na
análise são explorados o sistema de serviços, a gestão de justiça, a questão
de governança em gestão de pessoas, o Processo Judicial Eletrônico (PJ-e)
e seus requisitos de acesso, o Programa Nacional de Gestão Documental
e a Memória do Poder Judiciário (Proname) e sua estrutura.
As Normas do Direito Brasileiro têm como intuito explorar as fontes
do direito brasileiro e as lacunas jurídicas, a introdução da hermenêutica
jurídica, a norma em sua vigência, aplicação e eficácia, bem como a inter-
pretação das normas nacionais e internacionais ao paradigma brasileiro.
No que se refere à relação interdisciplinar, a interpretação jurídica, as me-
tas específicas estabelecidas pelo CNJ para o ano de 2020, bem como as
convicções que levaram a tais decisões são ressaltadas no tópico.
Como referencial teórico, o estudo investiga o CNJ e seu auxílio
no trabalho do Poder Judiciário, a estrutura, o sistema de serviços,
a gestão de Justiça, a sistematização de informações, a sua função,
características, elementos, formação, as questões de governança em
gestão de pessoas, PJ-e, o Proname e sua estrutura, as metas espe-
cíficas estabelecidas no ano de 2020, as convicções que levaram ao
estabelecimento desses objetivos e, concluindo, suas vantagens e des-
vantagens, envolvendo com as disciplinas propostas para a atividade e
desenvolvimento deste projeto.

348
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

1. ORGANIZAÇÃO DO ESTADO E INSTITUIÇÕES


JUDICIÁRIAS

No que se refere à Organização do Estado e Instituições Judiciárias


temos a seguinte definição, conforme o Wild (2020, p. 7), in verbis:

A disciplina Organização do Estado e Instituições Judiciárias é re-


levante na medida em que nos possibilita estudar a divisão espacial
no Poder no Brasil. Na noção de Poder, está a ideia de soberania,
característica da própria ordem jurídica, a preservação do bem co-
mum, de um determinado povo em um determinado território.
Desse entendimento, é possível identificar os elementos constituti-
vos do Estado: soberania, finalidade, povo e território.

Portanto, é notável a importância da disciplina, o estudo da organi-


zação do Estado brasileiro, o poder federativo e seus entes, as esferas de
autonomia político-administrativa, suas competências legislativas, a tri-
partição de poderes e seus órgãos reguladores, inspirados na doutrina de
Charles-Louis de Secondat, conhecido como Barão de Montesquieu, são
essenciais para o conhecimento e serviço diário de um Gestor de Serviços
Jurídicos, Notariais e de Registro. Dessa forma, a disciplina também se
relaciona com o ponto teórico do presente estudo através da análise do
CNJ, sua função, estrutura e sua formação dentro do Poder Judiciário,
devendo a instituição, portanto, ser analisada.
Nessa perspectiva, o CNJ é parte da estrutura do Poder Judiciário,
conforme o art. 92 da Constituição Federal (CF):

Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:

I — o Supremo Tribunal Federal;

I — A o Conselho Nacional de Justiça;

II — o Superior Tribunal de Justiça;

II–A — o Tribunal Superior do Trabalho;

III — os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;

349
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

IV — os Tribunais e Juízes do Trabalho;

V — os Tribunais e Juízes Eleitorais;

VI — os Tribunais e Juízes Militares;

VII — os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e


Territórios.

§ 1º O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça


e os Tribunais Superiores têm sede na Capital Federal.

§ 2º O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm


jurisdição em todo o território nacional.

Nessa senda, a instituição foi acrescentada no art. 92, inc. I–A,


pela Emenda Constitucional (EC) nº 45, de 30 de dezembro de 2004,
denominada como Reforma Constitucional. Curial observar que, além
da criação do CNJ, foi estabelecido o instituto da Súmula Vinculante,
utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa realidade, Pinheiro
(2016) comenta em seu magistério sobre o fato histórico do surgimento
do dispositivo:

A Súmula Vinculante foi uma das novidades consagradas na Emen-


da n. 45/2004. Como o próprio nome indica, ela tem o condão de
vincular diretamente os órgãos judiciais e os órgãos da Administra-
ção Pública, abrindo a possibilidade para que qualquer interessado
faça valer a orientação do Supremo, não mediante simples interpo-
sição de recurso, mas por meio de apresentação de uma reclamação
por descumprimento de decisão judicial (CF, art. 103–A). Através
dela evita-se que milhares de ações judiciais com o mesmo objeto
cheguem ao conhecimento do STF para que ele declare, em cada
uma, o seu entendimento já inúmeras vezes manifestado. É um
instrumento que contribui, portanto, com a celeridade da presta-
ção jurisdicional.

Em contrapartida, o órgão institucional tem competência adminis-


trativa, não sendo, portanto, um tribunal, conforme a decisão da Ação

350
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.367 – DF do STF, ementa


que segue:

Ementa: 1. AÇÃO. Condição. Interesse processual, ou de agir.


Caracterização. Ação direta de inconstitucionalidade. Propositura
antes da publicação oficial da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Publicação superveniente, antes do julgamento da causa. Sufi-
ciência. Carência da ação não configurada. Preliminar repelida.
Inteligência do art. 267, VI, do CPC. Devendo as condições da
ação coexistir à data da sentença, considera-se presente o interesse
processual, ou de agir, em ação direta de inconstitucionalidade de
Emenda Constitucional que só foi publicada, oficialmente, no cur-
so do processo, mas antes da sentença. 2. INCONSTITUCIO-
NALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004.
Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e dis-
ciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de
controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura.
Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos
Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio.
Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Ine-
xistência. Subsistência do núcleo político do princípio, median-
te preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das
condições materiais do seu exercício imparcial e independente.
Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação
dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Vo-
tos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela
Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, insti-
tuem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão
administrativo do Poder Judiciário nacional. 3. PODER JUDI-
CIÁRIO. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle
administrativo, financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo.
Conselho de Justiça. Criação por Estado membro. Inadmissibili-
dade. Falta de competência constitucional. Os Estados membros
carecem de competência constitucional para instituir, como órgão
interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle

351
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva


Justiça. 4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justi-
ça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições
de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da
magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes si-
tuados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal.
Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário,
sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu con-
trole jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra r, e
§ 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma
competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros,
sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que
aquele está sujeito. 5. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacio-
nal de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício.
Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em tex-
to aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto
que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão
pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade.
Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e
promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofen-
deria o disposto no art. 95, I, parte final, da CF. Ofensa ao art.
60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes.
Não precisa ser reapreciada pela Câmara dos Deputados expressão
suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na reda-
ção remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não
perdeu sentido normativo. 6. PODER JUDICIÁRIO. Conselho
Nacional de Justiça. Membro. Advogados e cidadãos. Exercício do
mandato. Atividades incompatíveis com tal exercício. Proibição
não constante das normas da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Pendência de projeto tendente a torná-la expressa, mediante acrés-
cimo de § 8º ao art. 103-B da CF. Irrelevância. Ofensa ao princípio
da isonomia. Não ocorrência. Impedimentos já previstos à conju-
gação dos arts. 95, § único, e 127, § 5º, II, da CF. Ação direta de
inconstitucionalidade. Pedido aditado. Improcedência. Nenhum
dos advogados ou cidadãos membros do Conselho Nacional de

352
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Justiça pode, durante o exercício do mandato, exercer atividades


incompatíveis com essa condição, tais como exercer outro cargo
ou função, salvo uma de magistério, dedicar-se a atividade polí-
tico-partidária e exercer a advocacia no território nacional. STF -
ADI: 3367 DF. Relator: CEZAR PELUSO. Data de Julgamento:
13/04/2005. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJ 17-03-2006.
PP-00004 EMENT VOL-02225-01 PP-00182. REPUBLICA-
ÇÃO: DJ 22-09-2006 PP-00029.

Nessa mesma realidade, apenas os órgãos taxados no art. 92 são


instituições do Poder Judiciário, sendo o CNJ então parte da estrutura
jurisdicional brasileira com competência administrativa de controle in-
terno. O art. 103–B, com a atual redação dada pela EC nº 61, de 11 de
novembro de 2009, insere a estrutura do CNJ, com 15 (quinze) membros,
conforme Wild (2020, p. 88), sendo os seguintes:

• presidente do Supremo Tribunal Federal (STF);


• ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que será o corre-
gedor nacional de justiça;
• ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST);
• desembargador de Tribunal de Justiça (TJ);
• juiz estadual;
• juiz do Tribunal Regional Federal (TRF);
• juiz federal;
• juiz de Tribunal Regional do Trabalho (TRT);
• juiz do trabalho;
• membro do Ministério Público da União;
• membro do Ministério Público do Estado;
• advogados (duas vagas);
• cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada (duas vagas).

Nessa linha, Pansieri (2017) comenta sobre a composição:

Nesta composição, garantiu-se ainda a diversidade de instâncias,


sendo três ministros (STF, STJ e TST), três juízes de segundo

353
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

graus (indicados cada qual pelo STF, STJ e TST) e três juízes de
primeiro grau (indicados cada qual pelo STF, STJ e TST). Na
mesma linha seguem as duas indicações do Ministério Público,
ambas realizadas pelo Procurador Geral da República, sendo um
membro do Ministério Público da União e outro dos Estados. A
advocacia como instituição indispensável à administração da Justi-
ça e imprescindível para garantia do Estado Democrático e repre-
sentação da sociedade civil indica dois nomes via votação direita
do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Note-se
que a participação do Procurador Geral da República, bem como
do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil na composição
do Conselho, com direito a voz, mas sem direito a voto, possui
natureza de política democrática. Não há, todavia, obrigatorieda-
de de suas presenças em todas as sessões, o que significa dizer que
sua ausência não gerará quaisquer nulidades nos julgamentos (STF
– Ag. Reg. em MS – 25.879-9/DF). Por fim, dois cidadãos de
notório saber jurídico indicados respectivamente um pela Câmara
dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

Em decorrência da formação, atualmente a composição atual tem o


Min. Luiz Fux como dirigente das reuniões do CNJ, conforme o sítio
eletrônico e o Manual de Organização do CNJ (2019, p. 24):

A Presidência do Conselho Nacional de Justiça é exercida pelo


Presidente do Supremo Tribunal Federal, e, nas suas ausências e
impedimentos, pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal Fe-
deral. As atribuições do Presidente estão previstas na Seção II do
Capítulo III do Título I do Regimento Interno do Conselho Na-
cional de Justiça.

Não se olvida, por outro lado, que a composição é duramente criti-


cada pelas mais diversas concepções, sendo a formação do CNJ majorita-
riamente composta por magistrados, o que leva a comentários como o de
Pinheiro (2016), que entende a formação como uma forma de proteger o
interesse dos juízes:

354
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Apesar de atualmente o CNJ representar um forte instrumento de


controle do Poder Judiciário, ele não é estruturado de uma manei-
ra favorável ao exercício de suas atribuições em todo o território
nacional, pois não contém unidades auxiliares em cada Estado da
Federação. Além do mais, seus integrantes são em grande parte
magistrados. Isso leva, por exemplo, a que o Conselho evite aplicar
aos magistrados a pena de demissão (Art. 42, inciso VI, da Lei Or-
gânica da Magistratura Nacional) mesmo nos casos que envolvem
graves delitos.

De outro bordo, no seguir, a função da instituição está no já citado


art. 103–B, em seu § 4º, ou seja, atuação administrativa e financeira refe-
rente às organizações do Poder Judiciário, bem como da fiscalização do
cumprimento dos deveres dos magistrados, ou seja, dos agentes institucio-
nais, da mesma forma das atribuições dadas pelo Estatuto da Magistratura,
como expedir atos regulamentares, elaborar relatórios semestrais sobre o
andamento dos procedimentos jurisdicionais das unidades da federação e
um relatório anual sobre o Poder Judiciário brasileiro. Do mesmo modo,
é implícito ressaltar pelo cumprimento das disposições do Código de Éti-
ca da Magistratura Nacional, a fim de trazer a confiança social à Justiça e
reforçar os princípios constitucionais. Nesse mesmo paradigma estão as
considerações de Souza (2019) sobre a importância das funções do CNJ,
que visam o aperfeiçoamento da tutela jurisdicional:

No início dos anos 2000, foi aprovada a Emenda Constitucional


nº 45 de 2004, que instituiu o CNJ como um órgão público se-
diado em Brasília e ligado ao Poder Judiciário. Implementado em
2005, o Conselho tem como objetivo melhorar a atuação admi-
nistrativa e financeira do judiciário brasileiro, além de controlar o
cumprimento dos deveres por parte dos juízes. Tudo isso buscando
melhorar a atuação desse Poder, de modo que ele possa atender
melhor às necessidades dos cidadãos no país.

Curial observar que é atribuição do CNJ receber e conhecer as recla-


mações referentes aos magistrados, aos órgãos do Poder Judiciário e inclu-

355
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

sive as Serventias Extrajudiciais; ou seja, queixas contra as atividades dos


tabeliões, profissionais notariais e de registro, serão recebidas pela institui-
ção, conforme redação dada pela EC nº 103, de 12 de novembro de 2019.

2. PRÁTICAS DO PROCESSO CIVIL E DO TRABALHO

Sendo as Práticas do Processo Civil e Processo do Trabalho essenciais


tanto na área de gestão quanto na jurídica, Barboza (2019, p. 9) dá rele-
vância ao estudo da disciplina:

O estudo desta disciplina compreende as principais inovações e


institutos recentemente incorporados ao nosso ordenamento ju-
rídico, atualizado pelo Código de Processo Civil de 2015 e pela
Lei nº 13.467/2017, chamada de Reforma Trabalhista, que alterou
muitos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943.
Esta disciplina permite ao aluno a construção do conhecimento
a partir da discussão de problemas e casos práticos, com o intuito
de proporcionar-lhe uma formação crítica e, com isso, atender às
necessidades do mercado profissional na atualidade.

Dessa forma, é evidente a importância dos fundamentos da teoria da


prática do processo cível e trabalhista, o estudo do Código de Processo
Civil e da Consolidação das Leis do Trabalho e a Reforma Trabalhis-
ta preceituada pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, bem como
relacionando ao Código Civil brasileiro e aos princípios específicos de
Direito Processual e aos preceitos da CF; portanto, essencial para a apren-
dizagem e profissionalismo de um Gestor de Serviços Jurídicos, Notariais
e de Registro.
Consequentemente, é relevante afirmar que o sistema de serviços e a
gestão de pessoas são de essencial relevância para o andamento processual,
sendo o CNJ contribuidor para melhor capacitação dos meios processuais
em conformidade com os princípios da celeridade e da razoabilidade do
andamento do processo, seja ele cível ou do trabalho. Portanto, é essencial
tratar sobre os serviços, a gestão e as metas estabelecidas pela instituição
para melhor atender a sociedade brasileira.

356
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Primeiro, o CNJ estabeleceu gradativamente diversos serviços e


metas na questão de governança de pessoas, como a Portaria nº 138, de
23 de agosto de 2013, emendada pela Portaria nº 59, de 23 de abril de
2019. Dessa forma, foram estabelecidas a Rede de Governança Cola-
borativa do Poder Judiciário, composta pelos Subcomitês Gestores dos
Segmentos de Justiça, Comitê Gestor Nacional e Comitês Gestores dos
Segmentos de Justiça. A justificativa utilizada para estabelecer esses órgãos
administrativos internos é o aperfeiçoamento da avaliação, da organiza-
ção, do monitoramento dos projetos, metas e informações do instituto, ou
seja, busca-se supervisionar sua funcionalidade, bem como ajudar o CNJ
a cumprir sua função de monitoramento e disciplinamento dos tribunais,
motivo de criação do próprio instituto, como salienta o STF (2018):

Na exposição de motivos da EC 45/2004, constou a necessidade


de fiscalização do Judiciário e de maior transparência. Enquanto o
Executivo era fiscalizado pelo Legislativo, este pelo povo e ambos
pelo Poder Judiciário, este último não se submetia a qualquer mo-
dalidade de controle externo. Para cumprir essa missão, outra ino-
vação da EC 45/2004 foi a criação do CNJ, órgão responsável pelo
controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário
e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. O Conselho
zela pela autonomia do Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto
da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbi-
to de sua competência, ou recomendar providência, sendo ainda
responsável pela elaboração de políticas estratégicas e pelo exame
de questões disciplinares de magistrados. Formado não apenas por
juízes, mas também por representantes da sociedade, da advocacia
e do Ministério Público, o Conselho é um órgão plural.

Nessa mesma perspectiva, para alcançar o preceituado na Exposição


de Motivos (EM) da EC nº 45/2004, o CNJ, procurou estabelecer um
instrumento revolucionário no procedimento processual brasileiro, o PJ-
e, criado pela Resolução nº 185, de 18 de dezembro de 2013. A fim de
facilitar o seu uso, o instituto anexou em seu sítio três Guias Rápidos
do Processo Judicial Eletrônico: um para advogados, um para indivíduos

357
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

comuns e outro para os tribunais. Portanto, cada guia inclui requisitos


mínimos de acesso, como possuir em seu dispositivo instalado o navega-
dor Mozilla Firefox em sua versão mais recente, o plugin Oracle Java Runtime
Environment em sua versão mais recente, o plugin Adobe Flash em sua versão
atual e possuir driver de acesso a dispositivo criptográfico, sendo este para
acesso ao certificado digital do advogado.
Portanto, é correto afirmar que a instituição tem como objetivo al-
cançar a celeridade e a razoabilidade processual. Através de suas metas
anuais, o CNJ criou diversos outros incentivos como campanhas sociais,
sistemas de conciliações, programas de ressocialização prisional, entre ou-
tros. Assim, foi nessa visão que criou-se o Proname.
O Proname objetiva a padronização da digitalização dos documen-
tos guardados e mantidos pelo Poder Judiciário. Para tanto, foi criada a
Comissão de Avaliação Documental e para serem aplicadas as disposições
do programa, com intuito de reforçar o mesmo, o CNJ publicou a Re-
comendação nº 37, de 15 de agosto de 2011, para aprimorar as normas do
programa perante os tribunais, bem como a Resolução nº 65, de 16 de
dezembro de 2008, que institui a numeração nos processos desde 2010.

3. NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO

Não obstante, a relação entre o tema da disciplina é extenso. As nor-


mas do direito brasileiro, parte fundamental na qual se insere a introdução
para interpretação do ordenamento jurídico nacional, são de notável aná-
lise e estudo, por parte do presente estudo. Wild (2020, p. 7) conceitua os
principais objetos da disciplina:

A disciplina Normas do Direito Brasileiro tem relevada importân-


cia na medida em que trabalha com dois ilustres assuntos, que são:
a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB e
a Hermenêutica Jurídica. A importância para a comunidade jurídi-
ca da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LIN-
DB repousa na questão de consistir em um direito sobre direito,
regendo a atuação do ordenamento jurídico.

358
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Nessa mesma linha, é essencial para o serviço diário de um Gestor


de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro possuir conhecimentos en-
volvendo a hermenêutica jurídica, seus princípios e interpretações, bem
como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que
regula as leis do ordenamento jurídico pátrio, regulando, portanto, os atos
diários de um profissional, conhecimento basilar para a compreensão e
aplicação dos princípios e normas do mundo jurídico.
Nessa realidade, muito do que se envolve na disciplina são as questões
interpretativas, sendo o CNJ responsável por emanar atos regulamentares,
de acordo com o já citado art. 103–B. É curial observar que essas normas
administrativas são formas de interpretação complementar das legislações
do ordenamento jurídico.
Nessa toada, o CNJ, por ser órgão do Poder Judiciário conforme o
art. 92 da CF, pode atribuir interpretação pública jurisdicional, afinal,
além de ser uma de suas atribuições regulamentar, é essencial a interpre-
tação jurídica e administrativa dos provimentos e resoluções emanadas
dos membros da instituição, sendo esta, como aludido, composta pelos
membros das principais cortes superiores do país, dando por óbvio com-
plementação fundamental para sanar lacunas jurídicas.
Nessa toada, o Procedimento de Controle Administrativo (PCA) nº
0006869–13.2017.2.00.0000 do CNJ, expõe em sua ementa a inter-rela-
ção com a LINDB e a interpretação da instituição:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATI-


VO. QUESTÃO DE ORDEM. TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. RETIFICAÇÃO DE
JULGADO DO CNJ. EXCEPCIONALIDADE. ANULAÇÃO
DE CONVÊNIO. REEXAME DO MÉRITO. IMPOSSIBI-
LIDADE. ARTIGOS 21 E 24 DA LINDB. RESPONSABILI-
DADE ADMINISTRATIVA DOS GESTORES PÚBLICOS.
AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE CONDUTA DOLOSA OU
CULPOSA. ADMINISTRADOR MÉDIO. JURISPRUDÊN-
CIA DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. 1. Questão
de ordem suscitada para retificar julgado do CNJ que deixou de
examinar as consequências da anulação de convênio firmado en-

359
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tre Tribunal e entidade sem fins lucrativos, conforme disposto nos


artigos 21 e 24 da LINDB. 2. Excepcionalmente e em razão das
singularidades do caso concreto, o Conselho Nacional de Justiça
deve retificar julgado que não examinou as consequências da anu-
lação de convênio à luz do disposto nos artigos 21 e 24 da LINDB.
3. Na medida em que os reflexos da anulação do ato administrati-
vo se projetam para a esfera pessoal dos gestores públicos, deve-se
verificar a presença de elementos mínimos para configuração de
responsabilidade subjetiva. 4. A identificação da conduta dolosa ou
culposa do agente público tem como base o conceito de adminis-
trador médio - jurisprudência do Tribunal de Contas da União.
Desde que seguido o rito prescrito em lei, a conduta esteja dentro
de padrões razoáveis e fundada em pareceres jurídicos e técnicos,
não é exigível daquele que pratica atos de gestão profundo conhe-
cimento das filigranas da burocracia estatal e o exame minucioso
de todo o processo administrativo, sob pena de descaracterização
da responsabilidade subjetiva. 5. A renovação de convênio firmado
entre Tribunal e entidade sem fins lucrativos seguiu o trâmite cos-
tumeiro e foi submetida à Corte de Contas estadual, que não in-
dicou qualquer irregularidade, inclusive quanto aos valores dos re-
passes financeiros. Inexistência de indícios de prática de atos lesivos
ao erário estadual. 6. Excepcional retificação do acórdão do CNJ
por erro material. 7. Questão de ordem acolhida. CNJ - PCA:
00068691320172000000. Relator: LUCIANO FROTA. Data de
Julgamento: 06/11/2018.

Dessa forma, as atuais discussões ocorrem em face das modificações


dadas pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. A função administra-
tiva do CNJ tem como base os seus atos regulamentares, o Estatuto da
Magistratura e o Código de Ética da Magistratura Nacional, bem como
deve atender aos princípios constitucionais referentes à Administração
Público pelo art. 37 da CF. Dessa forma, as modificações trouxeram
certas discordâncias sobre os limites de atribuições e competências,
principalmente referentes aos artigos 21 e 24, acrescentando o termo de
“valores jurídicos abstratos” na LINDB. Portanto, as discussões dificul-

360
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tam o atendimento entre o controle administrativo e jurisdicional dos


atos das instituições como o CNJ, sobre as competências jurídico-ad-
ministrativas desses órgãos.
De outro bordo, fundamental a gestão estratégica aparente da institui-
ção na estrutura do Poder Judiciário, para o estabelecimento, em confor-
midade e consonância aos outros órgãos, metas, projetos e serviços, o que
estabelece fortemente a tutela jurisdicional e o princípio do acesso à Justi-
ça, em face das dificuldades como falta de recursos e o atraso tecnológico
dentro do paradigma de transformação da sociedade brasileira contempo-
rânea em constante conflito e mudança, gerando a grande quantidade de
demandas às portas dos tribunais regionais e superiores, desafios que mo-
tivaram o estabelecimento de metas e serviços do CNJ. Nessa perspectiva,
Merieverton (2018) salienta o principal objetivo da instituição:

Oficialmente, o CNJ é uma instituição pública que visa aperfeiçoar


o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que
diz respeito ao controle e à transparência administrativa e proces-
sual. Lembrando que todas as atribuições do órgão estão definidas
na Constituição Federal, mais precisamente no § 5º do art. 103–B,
e regulamentadas no artigo 31 do Regimento Interno do CNJ.

Não obstante, no mesmo paradigma estão as metas estabelecidas pelo


CNJ para o ano de 2020 no XIII Encontro Nacional do Poder Judiciário,
que estabeleceu diversos pontos distintos em cada ramo da justiça para a
solução de uma porcentagem de processos até o final de 2020.
Curial observar que, com o Decreto Legislativo nº 6, de 2020, as
intenções do CNJ podem sofrer certas dificuldades em decorrência da
pandemia, e pelo home office, nessa perspectiva, a instituição tinha como
convicção os princípios da razoabilidade e da celeridade para estabelecer
as metas propostas de grande relevância para a sociedade brasileira con-
temporânea.
Portanto, o princípio da rápida solução do processo foi o principal
motivo escolhido nas metas específicas de 2020 pela instituição, sendo
relevante também nas próprias metas nacionais em relação às metas de
números 1 e 2. Gradativamente o CNJ foi estabelecendo mais serviços e

361
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

se utilizando da tecnologia para cumprir o que foi preceituado na EM da


EC nº 45, o que, conforme o período, irá tornar o andamento dos proces-
sos jurídicos em cumprimento total ao ideal da celeridade e razoabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo como ponto teórico analisou o CNJ e seu auxílio ao traba-


lho do Poder Judiciário, bem como salientou a interdisciplinaridade entre
as disciplinas de Organização do Estado e Instituições Judiciárias, Práticas
do Processo Civil e Processo do Trabalho e Normas do Direito Brasileiro.
O projeto em sua metodologia se fundamentou em uma extensa fonte de
pesquisa documental e bibliográfica, coadunando com as posições doutri-
nárias sobre o respectivo tema. Da mesma forma, utilizou para a resolução
de problemas de raciocínio lógico-sistemático os métodos dedutivo, in-
dutivo e analítico.
A pesquisa se baseou na concepção de investigar a instituição em co-
laboração a estrutura judiciária nacional, a estrutura, o sistema de serviços,
a gestão de Justiça, a sistematização de informações, a sua função, carac-
terísticas, elementos, formação, as questões de governança em gestão de
pessoas, o PJ-e, o Proname e sua estrutura, as metas específicas estabele-
cidas no ano de 2020 e as convicções que levaram a estabelecerem esses
objetivos, sendo estas relacionadas às disciplinas propostas para o desen-
volvimento da atividade.
A Organização do Estado e Instituições Judiciárias analisou a estru-
tura e a função da instituição. As Práticas do Processo Civil e Processo
do Trabalho explorou o sistema de serviços, a gestão de justiça, a questão
de governança em gestão de pessoas, PJ-e e seus requisitos de acesso, o
Proname e a sua estrutura. As Normas do Direito Brasileiro analisou,
no que se refere ao estudo, a interpretação jurídica, as metas específicas
estabelecidas pelo CNJ para o ano de 2020 e as convicções que levaram a
tais decisões.
Dessa forma, após analisar a concepção e expor as vantagens e des-
vantagens do instituto, analisando as suas convicções e metas, bem como
analisando as dificuldades como a grande quantidade de demandas no sis-
tema judiciário brasileiro e a tentativa de aplicar perfeitamente o princípio

362
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

da celeridade, do mesmo modo a sua eficiência em relação ao estabeleci-


mento de serviços para tornar o andamento processual mais célere e de-
safogando as vias judiciárias, possibilitando a conclusão da pretensão dos
indivíduos em colaboração e consonância com os outros órgãos do Poder
Judiciário.
Conclui-se que o instituto foi fundamental para modificar a estrutura
judiciária brasileira, essencial para se aproximar da tentativa de aplicar o
princípio da razoabilidade e celeridade para a rápida solução do processo,
bem como gradativamente colabora para desafogar a extensa quantidade
de demandas dirigidas aos magistrados, que se acumulam gradativamente,
enchendo as portas dos tribunais regionais e superiores. Dessa forma, a
instituição tem como principais objetivos a celeridade e a eficiência, da
mesma forma que respeita o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e
os direitos fundamentais do escopo constitucional.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, Maria Tereza de Souza. Práticas do Processo Civil e


Processo do Trabalho. 1. ed. São Paulo: Editora Sol, 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Dispo-
nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/consti-
tuicao.htm. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Rede de Governança


Colaborativa do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.
cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/rede-de-governanca-colaborativa-
-do-poder-judiciario/. Acesso em: 21 mar. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Atribuições. 2020. Disponível


em: https://www.cnj.jus.br/atribuicoes/. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Código de Ética da Magistra-


tura Nacional. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/codigo-de-
-etica-da-magistratura/. Acesso em: 15 set. 2020.

363
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Composição Atual. 2020.


Disponível em: https://www.cnj.jus.br/composicao-atual/. Acesso
em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Em 11 anos, CNJ aplica 87


punições a magistrados e servidores. Notícias CNJ. Disponível
em: https://www.cnj.jus.br/em-11-anos-cnj-aplica-87-punicoes-a-
-magistrados-e-servidores/. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Guia Rápido do Processo


Judicial Eletrônico — Para Advogados. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/dl/manual-pje-advogados.pdf. Acesso em: 15
set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Guia Rápido do Processo Ju-


dicial Eletrônico — Para tribunais, varas e outros órgãos desperso-
nalizados. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/manual-p-
je-tribunais-varas-outros-orgaos.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Guia Rápido do Processo Ju-


dicial Eletrônico — Para Usuário Simples. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/dl/manual-pje-usuarios-simples.pdf. Acesso
em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Histórico. 2020. Disponível


em: https://www.cnj.jus.br/historico-4/. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual da Organização. 9.


ed. Distrito Federal: Departamento de Gestão e Estratégia (DGE),
2019.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Metas Específicas 2020. XIII


Encontro do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.
br/wp-content/uploads/2020/01/Metas-Espec%C3%ADficas-apro-
vadas-no-XIII-ENPJ.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Metas Nacionais 2020. XIII


Encontro do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.

364
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

br/wp-content/uploads/2020/01/Metas-Nacionais-aprovadas-no-
-XIII-ENPJ.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Organograma do Conselho


Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
-content/uploads/2019/08/1652480f23c1a66f90ae138e8c87150d.
pdf. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Portaria nº 138, de 23 de


agosto de 2013. Institui Rede de Governança Colaborativa do Po-
der Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/
atos-normativos?documento=1828. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Portaria nº 59, de 23 de abril


de 2019. Regulamenta o funcionamento e estabelece procedimentos
sobre a Rede de Governança Colaborativa do Poder Judiciário. Dis-
ponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/03/
portaria_59_23042019_24042019104402.pdf. Acesso em: 15 set.
2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Procedimento de Controle


Administrativo n.º 0006869-13.2017.2.00.0000. Disponível em:
https://cnj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/654002599/procedimen-
to-de-controle-administrativo-pca-68691320172000000. Acesso
em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 37, de 15


de agosto de 2011. Recomenda aos Tribunais a observância das
normas de funcionamento do Programa Nacional de Gestão Do-
cumental e Memória do Poder Judiciário — Proname e de seus ins-
trumentos. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/846.
Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 185, de 18 de


dezembro de 2013. Institui o Sistema Processo Judicial Eletrônico
— PJ-e como sistema de processamento de informações e prática de
atos processuais e estabelece os parâmetros para sua implementação

365
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

e funcionamento. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/deta-


lhar/1933. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 65, de 16 de


dezembro de 2008. Dispõe sobre a uniformização do número dos
processos nos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências.
Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-re-
solucao-65-2008-cnj/rybena_pdf?file=http://www.justicaeleitoral.
jus.br/arquivos/tse-resolucao-65-2008-cnj/at_download/file. Acesso
em: 15 set. 2020.

BRASIL. Decreto-Legislativo nº 6, de 2020. Reconhece, para os fins


do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a
ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solici-
tação do Presidente da República encaminhada por meio da Men-
sagem nº 93, de 18 de março de 2020. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm#:~:text=DE-
CRETO%20LEGISLATIVO%20N%C2%BA%206%2C%20
DE,18%20de%20mar%C3%A7o%20de%202020. Acesso em: 15
set. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de


Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm.
Acesso em: 13 set. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a


Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 15 set.
2020.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de


2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de
transição e disposições transitórias. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc103.ht-
m#art1. Acesso em: 15 set. 2020.

366
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

BRASIL. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de


2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99,
102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128,
129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-
A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/
emc45.htm#art1. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 61, de 11 de novembro de


2009. Altera o art. 103-B da Constituição Federal, para modificar a
composição do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc61.
htm#art1. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Dis-


põe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp35.htm. Acesso
em: 15 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Códi-


go Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Pro-


cesso Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação


das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a
fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/
l13467.htm. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei


nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do

367
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência


na criação e na aplicação do direito público. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13655.
htm. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionali-


dade nº 3.367. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurispruden-
cia/765314/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3367-df?ref=ju-
ris-tabs. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EC 45/2004 trouxe mais transpa-


rência e eficiência ao sistema judiciário brasileiro. Notícias STF, 24
out. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNo-
ticiaDetalhe.asp?idConteudo=393561. Acesso em: 15 set. 2020.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Numeração dos processos —


Resolução-CNJ nº 65. Disponível em: http://www.tse.jus.br/
eleitor/cartorios-e-zonas-eleitorais/numeracao-da-resolucao-cnj-
-no-65. Acesso em: 15 set. 2020.

MERIEVERTON, Robson. O que é qual a função do Conselho Nacio-


nal de Justiça (CNJ). Terra —Educação, 12 jan. 2018. Disponível
em: https://www.estudopratico.com.br/o-que-e-e-qual-a-funcao-
-do-conselho-nacional-de-justica-cnj/. Acesso em: 15 set. 2020.

PANSIERI, Flávio. Conselho Nacional de Justiça. In: CAMPILONGO,


Celso Fernandes; GONZAGA, Álvaro de Azevedo; FREIRE, An-
dré Luiz (coord.). Enciclopédia jurídica da PUC-SP. 1. ed. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Dispo-
nível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/52/edicao-1/
conselho-nacional-de-justica. Acesso em: 15 set. 2020.

PINHEIRO, Karina Bezerra. O Poder Judiciário através da história: re-


flexões sobre as principais transformações ocorridas na Nova Re-
pública. Âmbito Jurídico, 1 ago. 2016. Disponível em: https://
ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o-poder-ju-

368
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

diciario-atraves-da-historia-reflexoes-sobre-as-principais-transfor-
macoes-ocorridas-na-nova-republica/. Acesso em: 15 set. 2020.

SOUZA, Isabela. O que faz o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Po-


litize!, 2019. Disponível em: https://www.politize.com.br/cnj-o-
-que-faz/. Acesso em: 15 set. 2020.

WILD, Andréa. Normas do Direito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Edi-


tora Sol, 2020.

WILD, Andréa. Organização do Estado e Instituições Judiciárias. 1.


ed. São Paulo: Editora Sol, 2020.

369
RESUMOS

371
EDUCAÇÃO EM E PARA DIREITOS
HUMANOS NO ENSINO MÉDIO: A
BUSCA PELA EMANCIPAÇÃO
Fernando César Domingos Marcili52

INTRODUÇÃO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, denominada


por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã, justificada pela extensa
participação popular para sua elaboração e pela busca permanente da efe-
tivação da cidadania, atribuiu-se ao Estado e à família o poder-dever de
educar, a fim de que fosse garantido o pleno desenvolvimento da pessoa
humana, com a intenção de predeterminá-la a exercer a cidadania e o
trabalho.
Dessa forma, a Constituição Federal especificou a educação como
um direito fundamental e social. Então, seguindo os preceitos da redemo-
cratização, o Congresso Nacional procedeu à edição da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), que foi publicada na data de 20 de
dezembro de 1996.

52 Mestrando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Pontifícia Univer-


sidade Católica de Campinas (PUC–Campinas). Graduado em Direito pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de Minas Gerais (PUC–Minas). Advogado.

373
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Através da referida legislação, extrai-se que a educação básica será pú-


blica, gratuita e obrigatória dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de ida-
de, constituindo-se por três etapas, quais sejam: educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio (Brasil, 1996).
Posteriormente, em meados de 2003, foi lançado o Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), uma política pública que
caracterizou a Educação em Direitos Humanos como um processo sis-
temático e multidimensional, que visa orientar a formação do sujeito de
direitos (Brasil, 2003).
A fim de seguir tais preceitos, por meio do Decreto nº 7.037 de 21 de
dezembro de 2009, foi aprovada a terceira versão do Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH–3), estruturado em Eixos Orientadores,
nos quais foram fixadas diretrizes para a efetivação dos princípios da po-
lítica nacional, dispondo o Eixo Orientador V sobre Educação e Cultura
em Direitos Humanos, elencadas nas diretrizes 18 a 22, com o objetivo de
fortalecer uma cultura de direitos pautada pelos princípios da democracia
(Brasil, 2009).
No entanto, aos 16 de fevereiro de 2017 promulgou-se a Lei Federal
nº 13.415, que alterou a redação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Brasil, 2017).
Em decorrência da referida legislação, o Ministério da Educação, por
meio da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação,
publicou a Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018, que atualizou as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Brasil, 2018).
Portanto, como objeto, especifica-se o ensino médio, pautado na Re-
solução nº 3/2018, que estabeleceu o dever do ensino à transdisciplinari-
dade, vinculando a educação ao mundo do trabalho e à prática social.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A presente pesquisa em desenvolvimento tem como referenciais teó-


ricos Theodor W. Adorno e Paulo Freire.
Ao dispor sobre a finalidade de discutir a educação, Adorno pontua a
seguinte questão: “para onde a educação deve conduzir?” (Adorno, 2022,
p. 152). Dessa forma, Adorno traz a ideia da emancipação, defendendo

3 74
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

que a mesma precisa estar inserida na prática educacional, para além do


pensamento.
No mesmo sentido, Freire afirma que “a sectarização é um obstáculo
para a emancipação dos homens”, uma vez que a caracteriza como mítica,
razão pela qual é alienante, de modo que a radicalização é crítica, por isso,
libertadora (Freire, 2022, p. 34).
A partir dos referenciais teóricos, tem-se que atualmente é necessário
averiguar se a educação como direito humano é essencial para a formação
de alunas e alunos da educação básica, especificamente que estejam cur-
sando o ensino médio, bem como se o Estado desempenha as diretrizes
estabelecidas.
Como hipótese, compreende-se a educação em direitos humanos
como práxis da formação cultural, possibilitando às alunas e aos alunos
reconhecerem-se como titulares de direitos fundamentais e sociais, na in-
cessante busca pela emancipação.

METODOLOGIA

Adotou-se como metodologia a análise qualitativa de dados, através


de estudos bibliográficos e documentais, assim como o método dedutivo,
a partir dos referenciais teóricos.
Em relação ao aspecto empírico, o tema-problema partiu da expe-
riência ao desenvolver o projeto “OAB vai à Escola”, aplicado em três es-
colas públicas estaduais, que teve o intuito de disseminar conceitos relati-
vos ao Estado Democrático de Direito.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio das análises qualitativas realizadas, bem como, consideran-


do os resultados empíricos obtidos, tem-se como resultado que desde a
edição do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, além da
edição da Resolução nº 3/2018 do Ministério da Educação, o Estado não
implantou de forma efetiva as diretrizes previstas nas legislações, no que
tange ao objeto da pesquisa; logo, a transdisciplinaridade prevista não está
sendo aplicada.

375
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Nesse sentido, discute-se a efetividade das legislações sob o ponto de


vista da educação como direito, vez que educar para direitos humanos e em
direitos humanos pode ser a solução, ou pelo menos o início, a fim de que
grandes problemas sociais enfrentados no cenário nacional atual possam
ser direcionados através de uma reconstrução emancipadora na formação
educacional. Isso porque, através dos resultados empíricos obtidos, ficou
clara a necessidade de tais conceitos serem ensinados a partir da educação
básica, especificamente a partir do ensino médio, vez que os conteúdos
abordados na prática foram repassados de forma simples, em linguagem
cotidiana.
Daí, verificou-se que com a apreensão dos conteúdos houve o des-
pertar de ideias, que geraram discussões sobre as demais áreas jurídicas e
das Ciências Sociais, caracterizando de fato a transdisciplinaridade per-
quirida.

CONCLUSÕES

A partir dos resultados parcialmente obtidos, conclui-se pela necessi-


dade de educar em e para direitos humanos, como forma de emancipação,
para que se tenha a obtenção de uma cultura cidadã que garanta a apreen-
são da democracia, seu fortalecimento e o desenvolvimento social.
Conclui-se também que a emancipação através da educação — esta
como objeto do direito — é capaz de capacitar adolescentes para que se
tornem críticos e formadores de opiniões, para que se sintam integrados
num Estado que é regido por princípios, direitos, deveres e obrigações.
Tais preceitos do Estado só podem ser compreendidos por meio da forma-
ção prática educacional em direitos humanos.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolf-


gang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.

BRASIL. Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Disponível


em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d7037.htm. Acesso em: 24 abr. 2023.

376
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,


2018. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-
-temas/educacao-em-direitos-humanos/DIAGRMAOPNEDH.
pdf. Acesso em: 24 abr. 2023.

BRASIL. Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018. Disponí-


vel em: http://portal.mec.gov.br/docman/novembro-2018-pd-
f/102481-rceb003-18/file#:~:text=LEGAL%20E%20CONCEI-
TUAL-,Art.,CNE%2FCEB%203%2F2018. Acesso em: 24 abr.
2023.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


2022.

377
REFLEXÕES SOBRE O
FINANCIAMENTO PÚBLICO NA
SEGURANÇA DO RIO DE JANEIRO
Stefany Pereira Batalha53

INTRODUÇÃO

A proteção dos Direitos Humanos deriva de diversos instrumentos e


mecanismos positivados e declarados com a finalidade basilar de garantir
a aplicação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse
sentido, evidencia-se a abordagem sobre o financiamento público na se-
gurança dentro do estado do Rio de Janeiro.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O direito à segurança pública é um tema complexo e crucial para a


sociedade como um todo, especialmente em locais como o estado do Rio
de Janeiro, que enfrenta desafios significativos em relação à criminalidade
e à violência. Para entender melhor a essencialidade desse direito e seu ver-
dadeiro custo é preciso considerar uma abordagem multidisciplinar, que
envolva diferentes áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Ciência

53 Bacharelanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), bolsista pelo PROUNI


e assistente Jurídica na brMalls.

378
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Política e o Direito. Além disso, é fundamental levar em conta a realidade


específica do estado do Rio de Janeiro, considerando suas particularida-
des sociais, culturais, econômicas e políticas. Com uma metodologia de
pesquisa sólida e bem estruturada, é possível avançar na compreensão da
importância do direito à segurança pública e dos desafios envolvidos em
garantir esse direito de forma efetiva e sustentável.

METODOLOGIA

Far-se-á uso do método hipotético-dedutivo para analisar a relação


entre financiamento e controle do direito à segurança e sua garantia. Para
isso, serão utilizados como base os dados disponibilizados pelo Instituto
de Segurança Pública (ISP) e pela Secretaria de Estado de Fazenda do Rio
de Janeiro, bem como a análise de doutrinadores renomados no assunto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Pois bem, tendo em vista as questões trazidas à baila, entende-se que


para que seja assegurado o direito à segurança precisa-se de uma série de
atuações por parte do Estado. As políticas públicas são uma importante
ferramenta para a promoção de mudanças na sociedade, e podem ser utili-
zadas como meio de financiamento para proporcionar segurança pública.
A participação da população também é uma importante ferramen-
ta para o funcionamento da segurança pública. Como destaca Teixeira e
Rocha (2016), os governos têm de promover a participação ativa da po-
pulação, por meio de consultas públicas, audiências e outras formas de
envolvimento, a fim de garantir que as políticas públicas atendam às ne-
cessidades e demandas reais da sociedade. Tal consideração se apresenta
de forma interessante sob a ótica da correta aplicação dos investimentos
destinados à garantia da Segurança Pública. Isso pois, embora a verba de-
signada para o setor de segurança tenha aumentado, fato esse que facilita,
ou deveria facilitar, o papel de assegurar à população o real direito à segu-
rança, o reflexo desse ato não chega no cotidiano da sociedade brasileira.
É o que se pode observar no estado do Rio de Janeiro. No ano de
2022, utilizando a delimitação territorial de todo o estado, verificaram-se

379
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

expressivos números de vítimas nos crimes contra a vida, contra a liber-


dade sexual e nos crimes de roubo. Segundo o Instituto de Segurança
Pública (ISP), foram registrados 3.059 casos de homicídio doloso e 1.894
de homicídio culposo de trânsito, 5.627 casos de estupro, 4.229 roubos
de carga, 62.092 roubos de rua e 25.198 roubos de veículos. Esses foram
alguns dos casos que tiveram o registro de ocorrência lavrados nas delega-
cias de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.54
Tendo em vista o recorte do estado do Rio de Janeiro, é imprescindí-
vel olhar as formas de financiamento de políticas públicas de cunho asse-
curatório, bem como seu controle, por meio de fiscalizações pelos órgãos
responsáveis em conjunto com a sociedade. De acordo com a Secretaria
de Estado de Fazenda do Rio de Janeiro, o gasto orçamentário com se-
gurança pública no ano de 2022 foi de R$ 14.763.426.270,66 (quatorze
bilhões, setecentos e sessenta e três milhões, quatrocentos e vinte e seis
mil, duzentos e setenta reais e sessenta e seis centavos) — um valor dema-
siadamente alto.55
Diante desse cenário, é crucial questionar a efetividade dos investi-
mentos em segurança pública na região e a forma como esses recursos
estão sendo utilizados. É preciso considerar que a segurança pública não é
uma questão apenas de policiamento ostensivo e repressão ao crime, mas
também envolve a prevenção da violência por meio de políticas públicas
que promovam a justiça social, a igualdade de oportunidades e a proteção
dos direitos humanos.
Além disso, é importante averiguar se os recursos estão sendo em-
pregados de maneira adequada, valendo-se de processos de auditoria —
que são procedimentos que têm como objetivo apurar se os recursos estão
sendo aplicados corretamente e de acordo com a legislação — realizados
pelo órgão de controle interno ou mesmo pelo Tribunal de Contas, que
possui a função de fiscalizar a gestão dos recursos públicos; ampliando as

54 Disponível em: http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/. Acesso em: 10 abr. 2023.


55 Disponível em: http://www.fazenda.rj.gov.br/transparencia/faces/OrcamentoTemati-
co/SegurancaPublica;jsessionid=B0KwiYed_DgRUE1uasJ-wQBv8V-Vf_7nptt1UjAIdFWxHh-
-sY7C7!-37462377?_afrLoop=94211601005169937&_afrWindowMode=0&_afrWindowI-
d=null&_adf.ctrl-state=vfujinbij_1. Acesso em: 10 abr. 2023.

380
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

informações sobre o andamento das ações realizadas com esses recursos,


bem como sua divulgação para que a sociedade possa acompanhar e fis-
calizar de perto o uso dos recursos públicos, tornando o processo mais
democrático e eficiente e, por fim, promovendo o Conselho Comunitário
de Segurança — RJ (CCS). Nessa toada, o CSS é um canal de comuni-
cação entre a sociedade civil e as Secretarias de Estado de Polícia Civil e
de Polícia Militar que possui o fito de obter a colaboração voluntária dos
cidadãos na redução da violência, da criminalidade e na manutenção da
paz social, para que dessa forma a população tenha conhecimento e, com
isso, a oportunidade de participar ativamente na gestão dos recursos des-
tinados à segurança pública.
Diante da análise superficial dos números trazidos pelo próprio estado
do Rio de Janeiro, verifica-se que há um investimento financeiro eleva-
díssimo no tocante ao tema, contudo, a falta de retorno do investimento
feito em segurança pública no referido estado evidencia a necessidade de
um trabalho conjunto de fiscalização nas políticas públicas e nas aplicações
das verbas adquiridas, por parte da Administração Pública, a fim de garan-
tir a proteção dos direitos essenciais da população, em evidência o direito
à segurança e consequentemente a redução dos índices de criminalidade.

CONCLUSÕES

É evidente o fato de que a situação de segurança pública no estado do


Rio de Janeiro é uma das mais críticas do país.56 Apesar dos altos investi-
mentos em segurança pública realizados nos últimos anos e de cuidarmos
de legislar, positivando a segurança como um direito basilar para uma vida
digna, o aumento da violência continua sendo um grande desafio para as
autoridades. A complexidade dos problemas de segurança pública na re-
gião é resultado de diversos fatores, como a desigualdade social, o tráfico
de drogas e a violência incitada por ele, a falta de efetividade das políticas
públicas e a ausência de fiscalização nas utilizações das verbas públicas,

56 Disponível em: https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2023/03/01/rondonia-foi-o-


-7-estado-mais-violento-em-2022-aponta-monitor-da-violencia.ghtml. Acesso em: 19 abr.
2023.

381
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

tendo a necessidade de que haja a implementação de políticas públicas que


atuem na raiz do problema bem como de medidas fiscalizadoras.

REFERÊNCIAS

INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO


DE JANEIRO. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso
em: 10 abr. 2023.

RONDÔNIA foi o 7º estado mais violento em 2022, aponta Monitor da


Violência. G1, 1 mar. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/
ro/rondonia/noticia/2023/03/01/rondonia-foi-o-7-estado-mais-
-violento-em-2022-aponta-monitor-da-violencia.ghtml. Acesso
em: 19 abr. 2023.

SECRETARIA DE ESTADO DE FAZENDA DO RIO DE JANEI-


RO. Disponível em: https://www.fazenda.rj.gov.br/. Acesso em: 10
abr. 2023.

TEIXEIRA, Ana Cláudia Ribeiro; ROCHA, André Luis. Políticas


Públicas e Direitos Sociais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

382
FUNDO DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE: POR QUE PODEM
SER IMPEDIDOS DE RECEBEREM
DOAÇÕES?
Karine Tomaz Veiga57

INTRODUÇÃO

Ainda que compostos por receitas de origens diversas, os recursos


doados aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCAs)
devem ser utilizados exclusivamente para o custeio de programas, ações
e serviços dirigidos ao atendimento dos direitos infantojuvenis, conforme
preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente, de acordo as deman-
das e prioridades apuradas pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
Acerca dos principais questionamentos que envolvem a dinâmica das
doações aos FDCAs, este estudo objetiva esclarecer como são operacio-

57 Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. É mestra


em Accountability Educacional, com MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades
e pós-graduação em Direito Público Aplicado, Direito Financeiro e Orçamentação, e Direito
Digital.

383
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

nalizadas as doações realizadas por pessoas físicas e jurídicas, de tal forma


que seja possível verificar a possibilidade de medir, identificar e acompa-
nhar os recursos que são repassados para cada ente federativo (Bassi, 2019).
Especificamente, busca identificar quais são as modalidades possíveis de
doações aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente e as suas
premissas; explicar quais são os critérios de aptidão para que os Fundos
recebam doações; além de medir quanto foi doado e repassado para cada
FDCA brasileiro.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

De acordo com a Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que insti-


tuiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), alte-
rações consideráveis foram realizadas no art. 260 e inseridas nos artigos
260–A, 260–B, 260–C, 260–D, 260–E, 260–F, 260–G, 260–H, 260–I,
260–J, 260–K e 260–L do Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto
à possibilidade de doações para o custeio de políticas públicas infanto-
juvenis.
Segundo o art. 260, inciso II, do ECA, contribuintes pessoas físicas
poderão deduzir integralmente do imposto de renda as doações feitas aos
Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, a depender do seu in-
teresse e escolha (se fundo nacional, distrital, estaduais ou municipais),
desde que devidamente comprovadas, em até 6% para doações feitas ao
longo do ano, com dedução no ano seguinte; ou até 3% no momento da
Declaração de Ajuste Anual (DAA), para dedução no mesmo ano.
Assim, esta pesquisa se justifica na medida em que se faz necessária a
verificação e constatação de lacuna de informações nas bases estaduais e
municipais mantidas pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Ado-
lescente (CDCA) referentes a arrecadações de doações pelos FDCAs (art.
52–A, parágrafo único do ECA), impedindo o conhecimento de quanto
foi recebido, quando e por quem.
Sobre a veracidade das informações prestadas sobre os Fundos, o art.
4º da Portaria MMFDH nº 2.006/2021 também estabelece que é de in-
teira responsabilidade dos respectivos Conselhos controlar a arrecadação e

384
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

execução desses recursos, não sendo possível manipular, incluir ou corri-


gir posteriormente qualquer dado informado.
Sobre esses aspectos, Pinto (2018) esclarece que a compreensão dessas
informações é essencial para a garantia de direitos fundamentais a crianças
e adolescentes, protegendo, mediante fiscalização orçamentária e finan-
ceira, alocações que são prioritárias.

METODOLOGIA

A pesquisa tomou por base dados de planejamento e execução orça-


mentária dos portais de transparência mantidos pelos entes públicos e pelos
Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, localizando as arreca-
dações dos Fundos via Secretaria da Receita Federal, descritas, comparadas
e analisadas na sua completude, desde o ano-calendário de arrecadação de
2013 até 2022; logo, desde a vigência da Lei nº 12.594/2012, que autorizou
a dedução do Imposto de Renda das doações feitas aos FDCAs.
Em relação ao problema, a pesquisa possui método epistemológico
dedutivo e apresenta abordagem qualitativa e quantitativa, apoiando-se
em conceitos apresentados em pesquisa bibliográfica e análise documen-
tal. Caracterizada enquanto estudo de caso, com dados primários coleta-
dos diretamente dos sistemas de administração financeira e orçamentária
do país, adota como ferramenta de análise visual software utilizado na
área de Business Intelligence, que permite o cruzamento e o detalhamento
das informações orçamentárias dos FDCAs de forma sistêmica (software
Tableau Desktop).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise e a discussão das informações e dos montantes ocorreram


a partir da compreensão do Orçamento Criança e Adolescente (OCA),
frente à lacuna de mecanismos de acesso às informações existentes nos
sistemas informatizados da Receita Federal do Brasil e dos Tribunais de
Contas brasileiros.
Sobre a realidade dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente em todo o país, o painel mantido pelo governo federal demonstrou

385
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

que 2.958 FDCAs estavam em situação regular, em outubro de 2022,


com 1.013 fundos inconsistentes e 1.597 municípios sem fundos, sendo
que em 688 localidades estavam “em regularização”.
Ainda sobre os resultados, enquanto o estado de Santa Catarina pos-
suía 89% dos seus fundos regulares, o Estado do Amazonas registrava
55% dos municípios sem fundos instaurados, portanto, impedidos de re-
ceberem recursos.
Sobre as localidades que não possuem FDCA, a maioria, em termos
absolutos, está localizada no estado de Minas Gerais (233 municípios), se-
guido da Bahia (170) e de São Paulo (141). Por ordem de inconsistências,
no estado do Maranhão 64,06% dos municípios não possuem FDCA ca-
dastrado, o que equivale a 139 Fundos; no estado do Piauí, 57,59% (129
Fundos); e no estado do Tocantins, 55,40% (77 Fundos).
Sobre os motivos que impedem os fundos de arrecadarem doações,
em 1.013 Fundos 47,55% dos erros correspondem a domicílio bancário
inválido, inexistente, ausente ou incompleto; 13,33% dos Fundos estão
com o favorecido incompatível; 34,47% possui CNPJ que não é de Fun-
do, ou seja, apresentou natureza jurídica incorreta; 2,87% dos Fundos
estavam cadastrados em bancos privados; 0,49% não apresentou CNPJ;
0,79% apresentou CNPJ inapto ou baixado; em 0,30% o domicílio já
existe para outro credor; e, em 0,20%, a agência bancária era inexistente.
Notadamente, frente ao exposto, a regularização dos Fundos dos Di-
reitos da Criança e do Adolescente se faz necessária e deve ser procedida
anualmente pelo respectivo ente federativo e Conselho. Sob a responsa-
bilidade da Secretaria da Receita Federal do Brasil, as doações procedidas
por meio do Programa Gerador da Declaração do Imposto de Renda da
Pessoa Física de 2021 evidenciaram que apenas 2.694 municípios estavam
aptos a receberem os recursos doados, ou seja, menos da metade dos mu-
nicípios brasileiros.

CONCLUSÕES

Conforme evidenciado, a desinformação reiterada acerca das doações e


da adimplência dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente exer-
ce forte impacto na credibilidade orçamentária dos entes públicos responsá-

386
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

veis por essas receitas. Permanece a cargo dos órgãos de controle (judiciais,
internos, externos e sociais) o controle quanto ao potencial de arrecadação e
das medidas adotadas para resolução das pendências existentes.
Dessa forma, mantida a proteção das informações econômicas e fi-
nanceiras dos contribuintes, torna-se necessário dimensionar o que exa-
tamente ingressou nos cofres estaduais e municipais, para todas as modali-
dades de doações. Tomando por referência Conselhos e Fundos analisados
neste levantamento, em nenhum deles há a identificação clara quanto aos
valores doados, muito menos há detalhamento quanto às demais origens
para cada modalidade de receita prevista nas suas leis de criação. Tal cir-
cunstância é bastante prejudicial para fins de controle, para o planejamen-
to das políticas públicas infantojuvenis, para a definição das prioridades
alocativas, para a transparência e gestão dos gastos, além da responsabili-
zação dos responsáveis.
Ademais, a manutenção dos erros demonstrados, quanto ao impedi-
mento de FDCAs receberem doações, prejudica direta e indiretamente
crianças e adolescentes que poderiam ser beneficiados com a prestação
de serviços custeados com recursos doados anualmente. De outro modo,
gravosamente, os motivos apresentados, no longo prazo, se não resolvi-
dos, ainda provocam desestímulo e desconfiança no cidadão contribuinte
e doador.

REFERÊNCIAS

BASSI, Camillo de Moraes. Fundos Especiais e Políticas Públicas:


Uma Discussão sobre a Fragilização do Mecanismo de Financia-
mento. Texto para Discussão IPEA, Rio de Janeiro, n. 2.458,
mar. 2019–A. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bits-
tream/11058/9088 /1/TD_2458.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Dispo-
nível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/cons-
tituicao.htm. Acesso em: 20 abr. 2023.

387
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema


Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a
execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que
pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho
de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de
dezembro de 1986; 7.998, de 11 de janeiro de 1990; 5.537, de 21 de
novembro de 1968; 8.315, de 23 de dezembro de 1991; 8.706, de 14
de setembro de 1993; os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro
de 1942; 8.621, de 10 de janeiro de 1946; e a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943. Brasília, 2000. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm. Acesso em:
20 out. 2020.

BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto


da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso
em: 20 out. 2020.

PINTO, Élida Graziane; SARLET, Ingo Wolfgang; PEREIRA JÚ-


NIOR, Jessé Torres; OLIVEIRA, Odilon Cavallari de. Política
Pública e Controle. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

388
DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA E LIBERDADE:
O DESENCADEAR DA SOCIEDADE
POLÍTICA BRASILEIRA, GUIADA
PELO SLOGAN TOTALITÁRIO, E SUA
OPOSIÇÃO À DEMOCRACIA
Maria Clara Oliveira Brandão da Rocha Abreu 58

INTRODUÇÃO

A política social e o desenrolar histórico caminham lado a lado em


uma linha demasiadamente tênue, onde o que é desenvolvimento para
uns, é retrocesso para outros. Misturam-se em todas as camadas sociais,
transformando o histórico e o social em um só. Ao olharmos a história, de
uma distância temporal, torna-se mais claro os acontecimentos e as conse-
quências daquela época. Entretanto, proponho aqui um olhar preventivo
e analítico da história brasileira e seu desenvolvimento social atual, como
já bem colocado por Marx no século XIX: “A história se repete, a pri-
meira vez como tragédia e a segunda como farsa” (Marx, 2011); todavia,
seria possível prevenir tais acontecimentos se houvesse uma percepção e
intervenção, como critica Arendt (2020).

58 Bacharela em Relações Internacionais, pela Pontifícia Universidade Católica.

389
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Tendo isso em mente, me fiz valer de escritos como O 18 de Bru-


mário de Luís Bonaparte, de Karl Marx (2011), e As origens do Totalitarismo,
de Hannah Arendt (2020), como um guia metodológico para entender o
passado remoto brasileiro e seus desmembramentos atuais, assim como os
acontecimentos lineares datados no Podcast da Folha de São Paulo (2022)
— Passado a Quente — e do livro Reconstrução: o Brasil nos anos 20 (2022),
além de fontes midiáticas e governamentais, buscando fazer uma reflexão
sobre o presente.
Objetivando um trabalho que se propõe a olhar para os aconteci-
mentos da última década e como repercutiram na sociedade e no Estado,
tendo ecoado socialmente o slogan “Deus, pátria, família e liberdade”,
de origem integralista, ressuscitado na ditadura militar e eleito em 2018,
concretizando-se em uma oposição para a nossa frágil democracia. Dito
isso, busca-se compreender os contratempos democráticos enfrentados
atualmente, graças aos desmembramentos de um passado recente, de 2013
a 8 de janeiro de 2023.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLOGIA

Ao lermos As origens do Totalitarismo com um olhar guiado pelo mate-


rialismo histórico e dialético, entendendo o contexto e extraindo a meto-
dologia de Arendt (2020), é possível perceber que o totalitarismo alemão e
russo, assim como o antissemitismo, só foi possível devido a um arcabouço
histórico de ódio e poder — sendo muitas vezes legitimado em seu tempo
— dado pela desinformação e individualidade social.
Para tal, o trabalho analisa momentos históricos e factuais, além da
construção de narrativas, à luz do materialismo histórico e dialético, assim
como a metodologia arendtiana. O nosso presente tem um longo cami-
nho histórico para ser explicado, todavia, se fizermos um recorte histórico
de dez anos, chegaremos a um fato que determinou o que vivemos hoje:
junho de 2013.
No início de 2013 o Brasil passava por um crescimento de 1,8% no
PIB e no início do ano o DATAFOLHA (2013) apontava um otimismo
de quase 60 % da população em relação ao seu rendimento e poder de

390
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

compra. Em março do mesmo ano, a aprovação da Presidenta Dilma era


de 65%. Mas as coisas começaram a mudar com o anúncio do aumento da
tarifa do transporte público em São Paulo, de R$ 3 para R$ 3,20, fato que
culminou na mobilização por meio do Movimento Passe Livre (MPL),
gerando uma onda de manifestações intensas, com confrontos entre ma-
nifestantes e policiais. Tal movimento foi sendo criticado pela mídia e pelo
governo, mas muito difundido nas redes sociais, se alastrando como um
movimento social em todo o país.
Junho de 2013 se tornou um mês decisivo para a história brasileira.
A socióloga Ângela Alonso (2023) demonstra como junho foi funda-
mental para que fosse possível o dia 8 de janeiro de 2023. Seguindo em
2013 e os pontos medulares da década, é possível traçar a linha na qual
o grito “Não é pelos 20” em manifestações sem partido se tornou a
volta do slogan de teor totalitarista “Deus, pátria, família e liberdade”
na direita brasileira.
No fim de junho a aprovação do governo havia caído para 30 %, e sua
reprovação subiu de 8% para 25%. No início daquele ano o Partido dos
Trabalhadores ( PT) havia celebrado 10 anos no poder, mas terminou o
ano com um governo abalado.
Contudo, após o ano de 2013 muita coisa aconteceu de maneira bas-
tante superficial; podemos citar, em ordem cronológica: A COPA 2014; o
início da operação Lava-Jato, que iria se desmembrar pelos anos seguintes
em diversas delações premiadas; vazamento de informações para a im-
prensa e a crescente do juiz Sérgio Moro; pedido de impeachment aceito;
um Brasil polarizado entre ‘’coxinhas’’ e ‘’mortadelas’’; a queda de uma
presidenta, um vice até pouco tempo decorativo entrando no poder com
uma coalizão de centro; um crescimento exponencial de antipetismo; a
volta às ruas dos manifestantes, mas, sem uma liderança, onde aos poucos
marchas pela “família” se tornaram marchas pela “família tradicional’’;
marchas por “Deus, Pátria e família” que, ao encontrarem em Bolsonaro
uma figura de liderança, tornam-se marchas por “Deus, pátria, família e
liberdade”; a prisão do atual presidente Lula e suas controvérsias; a eleição
de Bolsonaro; uma pandemia global; a volta de Lula ao cenário político
e suas repercussões; as ameaças ao regime democrático de direito feitas

391
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

pelo então Governo; crise sanitária; perda do Bolsonaro nas urnas, até a
renúncia em passar a faixa presidencial, tudo culminou nos atos terroristas
do dia 8 de janeiro de 2023.
São diversos os acontecimentos, que, assim como Arendt, me fazem
propor um olhar crítico para entender como chegamos até esta quadra da
história, e o mais importante: o que podemos retirar dela, tendo em vista
um breve recuo histórico para o entendimento do slogan principal, assim
como o papel de alguns atores para uma melhor análise e contexto. Além
disso, vale ressaltar que todos os conceitos são arendtianos, para o enten-
dimento do totalitarismo no último século e como ele se traduz para esta
realidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

À medida que se entende e analisa a linha do tempo dos últimos dez


anos, sob a luz do entendimento do totalitarismo e das raízes militares em
que a democracia brasileira está colocada, há um evidente crescimento de
ideias totalitaristas e antidemocráticas que só estão sendo possíveis atual-
mente devido a dois fatores: primeiro, pela construção histórica; e, se-
gundo, pela liberdade que a democracia trás. Tal fato abre a discussão em
torno da questão segundo a qual refletimos se a democracia não se tornou
um perigo para si mesma, onde, em nome de uma suposta liberdade, vân-
dalos cheguem a atos como os do dia 8 de janeiro, em que houve o maior
assalto à democracia brasileira.

CONCLUSÃO

O que podemos concluir é que há uma discussão muito importante


a ser aberta em volta dessa análise. O Brasil retrocedeu em uma narrativa
em que clama pela volta do regime militar e não considera o voto popular
válido, o que pode levar nossa história a evoluir para um regime totalitário
acalentado pelos militares.

392
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

REFERÊNCIAS

APPLEBAUM, Anne. O Crepúsculo da democracia: O fracasso da


política e o apelo sedutor do autoritarismo. Lisboa: Bertrand, 2020.

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: o livro mais influen-


te de sempre sobre o totalitarismo. Alfragide: Dom Quixote, 2020.

SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura. Recons-


trução: O Brasil nos anos 20. São Paulo: Saraiva, 2022.

393
POLÍTICAS AMBIENTAIS, SOCIAL E
GOVERNANÇA (ESG) INTRODUZIDAS
AO COTIDIANO DAS EMPRESAS: A
NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO
DE NOVAS PRÁTICAS PARA OS
DESAFIOS DA MODERNIDADE
Luís Henrique Bortolai59
Larissa Almeida Rodrigues60

O fenômeno da globalização, especialmente no início do século XXI,


aliado à necessidade de maior geração de energia para a produção em mas-
sa e prestação de serviços, trouxe consigo consequências ambientais per-
cebidas por todos. A produção de energia advinda do petróleo apresenta
consequências ambientais devastadoras, eis que a emissão de carbono na
atmosfera gera diversos problemas ambientais, sociais, econômicos e polí-

59 Professor Bolsista — Pesquisa Produtividade do Centro Universitário Unimetrocamp —


Wyden. Doutor e Mestre em Direito pela FADISP. Especialista em Direito Tributário pela
PUC-Campinas. Advogado. Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Uni-
Metrocamp — Wyden.
60 Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-Campinas. Advogada. Es-
pecialista em Direito Empresarial pela FGV. Coordenadora do Observatório Institucional de
Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes da OAB Campinas.

394
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

ticos, conforme comprovam estudos amplamente difundidos na RIO 92,


na Agenda 21 e na RIO +10 (Oliveira, 2021). Em razão de tais problemas,
se faz necessária a distribuição e facilitação ao acesso de novas fontes de
energia, a fim de contribuir com a redução da emissão de carbono e outros
gases poluentes no ambiente.
A popularização desses meios de produção não só auxilia na redução
da emissão de gases poluidores como também contribui com o desenvol-
vimento de forma sustentável, eis que tem por condão desenvolver tecno-
logia e inovação de forma que se atendam às necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias
necessidades. Somado a isso, não se pode ignorar a importância do cresci-
mento econômico — que também é parte do desenvolvimento de forma
sustentável —, e do qual grande parte dos entes responsáveis são empresas
nacionais e transnacionais, as quais devem disponibilizar para a criação de
medidas de governança e políticas de gestão capazes de otimizar a produ-
ção aliadas ao uso de energias renováveis, a fim de garantir o não exauri-
mento dos recursos naturais, cada vez mais escassos (Bijos, 2020).
Nesse sentido, tem-se as palavras de John Ruggie, professor de Har-
vard, que trabalhou pela governança socioambiental moderna, dando
origem aos chamados “Princípios de Ruggie”, que tratam das mudanças
sociais, políticas e culturais dentro da agenda de direitos humanos, espe-
cialmente das empresas:

As empresas multinacionais estão ultrapassando economias me-


ramente “nacionais” e suas transações internacionais [...] desde a
década de 1990 — considerada “época de ouro” para a mais re-
cente onda de globalização corporativa – as empresas multinacio-
nais emergiam de forma robusta em maiores quantidade e escala,
tecendo núcleos de atividade econômica transnacionais, sujeitos a
uma única visão global estratégica, operando em tempo real, co-
nectadas e de forma concomitante. (Ruggie, 2014, p. 17).

O Brasil detém meios tecnológicos para o desenvolvimento de meios


sustentáveis de produção que devem ser observados, não sendo razoável
um crescimento intenso do ramo econômico que esgote os recursos natu-

395
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

rais do local, ou se não forem observados os direitos humanos essenciais,


ou, ainda, se não for respeitado o princípio da livre concorrência, gerando
um entrave econômico no local e impossibilitando a circulação de bens,
sendo indispensável repensar muitas das ações, políticas públicas e legisla-
ções de modo a permitir uma nova leitura da realidade.
Para as empresas, especialmente as de grande porte, a disseminação
do conceito de responsabilidade socioambiental e não apenas políticas de
green washing (tradução livre: lavagem verde) reflete no resultado prático
e na produtividade empresarial, que podem ou não agravar ou atenuar
problemas sociais e ambientais de algumas comunidades, especialmente
com a não destinação correta dos resíduos da sua produção, especialmente
quando se fala dos contratos de outplacement (tradução livre: recolocação
dos resíduos), nos quais não só a empresa principal é responsável, como
também as suas subsidiárias (Oliveira, 2021).
Nesse aspecto, para a implementação de políticas de ESG (Envi-
ronmental, Social and Governance, em tradução livre: políticas ambientais,
sociais e governança), as companhias devem considerar suas operações,
bem como responsabilizarem-se pelo descarte dos resíduos. A adoção de
práticas ESG pode ajudar as empresas a reduzir esses riscos e garantir a
sustentabilidade a longo prazo. Eis que a atividade empresarial, como ex-
posto, abarca diversos interesses, não apenas os econômicos, mas também
diversos direitos essenciais que devem ser garantidos pela atividade empre-
sária não apenas em âmbito nacional, como em razão dos compromissos
firmados no sistema internacional.
As políticas ESG são indispensáveis para uma boa reflexão e delimitação
da competência das empresas, especialmente no que tange a área ambiental,
uma vez que se mostra essencial não só pensar no hoje, mas também no
amanhã. A busca pela emissão zero de poluentes é apenas uma das várias
atuações a que as organizações devem se ater, objetivando uma atuação mais
voltada às causas ambientais, de modo a permitir uma nova e necessária lei-
tura da realidade na qual estão inseridos (Oliveira, 2021).
Igualmente, a adoção dessas práticas é importante para garantir que
as empresas sejam sustentáveis e responsáveis em suas operações e atrair
investidores que estão cada vez mais interessados na incorporação de

396
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

companhias que levam em consideração esses critérios. As atividades


estão se tornando cada vez mais relevantes para os negócios, pois po-
dem melhorar a imagem e a reputação da empresa, aumentado a efi-
ciência operacional e reduzindo riscos financeiros e regulatórios (Fun-
dação Getúlio Vargas, 2021).
Além disso, as políticas de ESG também têm um impacto positivo na
sociedade e no meio ambiente, contribuindo para um futuro mais susten-
tável e justo. As empresas que adotam práticas modernas são capazes de
criar valor de longo prazo. A adoção de ações voltadas à sustentabilidade
ambiental, social e de governança são fundamentais para a sobrevivência
dos negócios em um mundo que demanda cada vez mais responsabilidade
socioambiental.
No que tange ao cenário brasileiro, as pesquisas demonstram que, no
território da América Latina, o Brasil é um país com grande desenvolvi-
mento na área de tecnologia e renovação energética, sendo necessária a
criação de políticas públicas, mudanças de cultura corporativa e governan-
ça, além de incentivos dos estados para que estas possam ser viabilizadas e
implementadas.

O Brasil é líder em PD&I em tecnologias de hidrogênio na Amé-


rica Latina, dispondo de diversos grupos de pesquisa e empresas de
base tecnológica. [...] Os investimentos brasileiros, de origem pú-
blica e privada, em tecnologias de hidrogênio, entre 1999 e 2007,
totalizaram cerca de R$ 134 milhões, o que corresponde de 25%
a 35% dos investimentos individuais realizados por Rússia, Índia,
China ou Coréia do Sul, e de apenas 3% a 5% dos investimentos
de Japão, União Europeia ou EUA. (CGEE, 2020, p. 17).

É nesse ponto que se enquadra o Brasil no cenário internacional


como país com grande potencial para desenvolvimento de fontes de
energia renováveis, destacando-se a descarbonização e o uso do hidro-
gênio, vez que os recursos hídricos têm se tornado cada vez mais es-
cassos. Contudo, é fato que a transação de fontes de energia não ocorre
com a rapidez e facilidade desejada, devendo a mudança ser realizada
de forma gradual, para que sejam deixadas as fontes de energia advin-

397
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

das de combustíveis fósseis e se priorize o uso de fontes de energia


limpa, e então a redução na produção de carbono. Por isso, a análise
deve ser feita de forma muito cuidadosa.

Uma maior inserção do hidrogênio na matriz energética brasi-


leira pode vir a ser um fator relevante na redução de emissões de
GEE no Brasil, principalmente no setor de óleo e gás. Isso porque
a substância pode ser gerada tanto a partir de fontes de energia re-
nováveis (hidrogênio verde), como pelo abatimento de carbono de
combustíveis fósseis (hidrogênio azul). Uma vez gerado, o hidro-
gênio pode desempenhar várias funções passíveis de reaproveita-
mento econômico, dentre elas a geração e o armazenamento de
energia. (Silva; Dana, 2020, p. 2).

Logo, o presente trabalho busca estudar a aplicação das políticas mo-


dernas em empresas nacionais, transnacionais e internacionais que te-
nham políticas de uso de energia limpa, e analisar, especialmente, a relação
de tais gestões no que se refere às políticas de descarbonização entre seus
meios produtivos. Ainda, pretende-se realizar a análise de direito compa-
rado entre as Políticas Públicas para fomento da descarbonização e políti-
cas de ESG no Brasil, de modo a trazer novas leituras e interpretações para
problemas modernos.

REFERÊNCIAS

BIJOS, Leila. Deslocamentos forçados por questões ambientais: haitianos


no Brasil. In: PAES, J. E. S. Terceiro setor e tributação. Rio de
Janeiro: Forense, 2020. p. 111–135.

CGEE (CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS).


Hidrogênio energético no Brasil: subsídios para políticas de
competitividade, 2010–2025. Brasília: CGEE, 2020. Disponível em:
https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/Hidrogenio_
energetico_completo_22102010_9561.pdf/367532ec-43ca-4b4f-
-8162-acf8e5ad25dc?version=1.5. Acesso em: 3 fev. 2023.

398
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Webinar Conecta FGV: ESG


— ambiente — Presente e Futuro: o que é possível, desejá-
vel e urgente? 30 jun. 2021. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=W-QRFSDZA04&t=2964s. Acesso em: 5 fev. 2023.

OLIVEIRA, Rosa Malena Gehlen Peixoto de. A função social da empre-


sa, a responsabilidade social e a sustentabilidade sob a luz dos fato-
res ESG: Environmental, Social and Governance. Revista Cientí-
fica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, ano 6, 12. Ed.,
v. 6, p. 69–96, dez. 2021. Disponível em: https://www.nucleodo-
conhecimento.com.br/lei/a-funcao-social. Acesso em: 3 fev. 2023.

RUGGIE, John Gerard. Quando os negócios não são apenas negó-


cios: as corporações multinacionais e os direitos humanos. Trad. Isa-
bel Murray. São Paulo: Planeta Sustentável, 2014.

SILVA, Larissa Tavares da; DANA, Manuela Carneiro. Regulação


de hidrogênio no Brasil: descarbonização do setor de óleo e gás
para metas climáticas. In: RIO OIL & GAS EXPO E CON-
FERENCIE, 2020. Anais. Disponível em: https://icongres-
so.ibp.itarget.com.br/arquivos/trabalhos_completos/ibp/3/final.
IBP0737_20_26112020_203039.pdf. Acesso em: 1 abr. 2023.

399
O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO
DO RETROCESSO AMBIENTAL
E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA
A EFETIVIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DIANTE DAS
MUDANÇAS CLIMÁTICAS: ANÁLISE
DE CASOS DO STF E DO ACORDO
MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA
Rhadson Rezende Monteiro61

INTRODUÇÃO

A proteção do meio ambiente é uma das principais preocupações da


sociedade atual, especialmente em relação às mudanças climáticas, que
podem ter impactos catastróficos na vida humana e no planeta como um
todo. Nesse sentido, o Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental
surge como uma importante ferramenta para garantir a proteção ambien-

61 Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Doutorando


em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Mestre em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Graduado em Direito e em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

400
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tal já conquistada e a efetividade dos direitos fundamentais, em especial no


combate às mudanças climáticas.
A justificativa para a realização deste estudo reside na importância de
se compreender as bases teóricas e práticas do Princípio da Proibição do
Retrocesso Ambiental, a fim de garantir a proteção ambiental e a efetivi-
dade dos direitos fundamentais em um contexto de crescente degradação
ambiental.
Diante disso, surge a seguinte questão problema: como o Princípio
da Proibição do Retrocesso Ambiental pode contribuir para a proteção
ambiental e para a efetividade dos direitos fundamentais, no contexto das
mudanças climáticas?
Para responder a essa questão, este artigo tem como objetivo geral
discutir o Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental, abordando
seus fundamentos teóricos e sua evolução histórica à luz do estado da arte
das pesquisas em Direito.
A metodologia utilizada para a realização deste estudo será a revisão
bibliográfica, a partir da análise de artigos, livros e outras fontes relevantes
sobre o tema. Serão destacadas as principais contribuições dos autores que
tratam do tema, bem como possíveis caminhos para o aperfeiçoamento do
princípio e sua aplicação em casos julgados pelo Superior Tribunal Federal
(STF) e na recente minuta de acordo estabelecida entre Mercosul e União
Europeia.

1. O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO


AMBIENTAL E SUA APLICAÇÃO PRÁTICA

O Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental tem sido objeto


de estudo por diversos autores que buscam compreender seus fundamen-
tos, aplicações e desafios. Benjamin (2011) argumenta que o Princípio
da Proibição do Retrocesso Ambiental é uma decorrência do Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana e do Princípio da Precaução, devendo
ser aplicado com base na proteção da vida e da saúde humana e da bio-
diversidade, e não apenas nos interesses econômicos. Leal e Rodrigues
(2013), por sua vez, destacam a importância do princípio para garantir a

401
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

estabilidade e a continuidade das políticas públicas de proteção ambiental,


evitando retrocessos em relação aos avanços já conquistados.
Canotilho (2010) destaca que o princípio da sustentabilidade ambien-
tal é um princípio estruturante do constitucionalismo no Brasil, previsto
no art. 225 da CF/88, e acrescenta que sua observância é uma exigência
do Estado Democrático de Direito e da defesa dos direitos fundamen-
tais. Nesse sentido, o princípio da proibição ao retrocesso ambiental seria
também um desdobramento do próprio conceito fundante da sustentabi-
lidade. Prieur (2014) ressalta que a proibição do retrocesso é um princípio
fundamental do Direito Ambiental e deve ser aplicado em todos os casos
em que haja risco de degradação ambiental, independentemente da von-
tade das partes envolvidas. Já Ramacciotti, De Souza e De Souza Dantas
(2020) concordam com essa visão e destacam que o princípio é uma ga-
rantia fundamental da proteção ambiental e da preservação dos direitos
humanos, sendo além de tudo necessário para a continuidade de políticas
públicas ambientais, evitando os retrocessos de governo e de pautas ideo-
lógicos sem lastro científico.
Pensando a aplicação a nível nacional do princípio da Proibição do
Retrocesso Ambiental, o mesmo tem sido aplicado em diversos casos pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2012, a aplicação do princípio foi
vista na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.029, em que o
STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de um decreto esta-
dual do Rio Grande do Sul que permitiam a realização de atividades de
extração mineral em uma área de proteção ambiental (ADI 4.029, 2012).
Outro caso ocorreu em 2019, quando o STF julgou a Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.323, que questionava a constitucio-
nalidade de uma lei estadual do Rio de Janeiro que permitia a criação
de parques urbanos em áreas que haviam sido desafetadas de unidades de
conservação ambiental. Nesse caso, o STF aplicou o Princípio da Proibi-
ção do Retrocesso Ambiental para declarar a inconstitucionalidade da lei
estadual (ADI 5.323, 2019).
Esses casos demonstram a importância do Princípio da Proibição do
Retrocesso Ambiental para garantir a proteção do meio ambiente e a ma-
nutenção dos níveis de proteção já estabelecidos. O princípio é funda-

402
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

mental para evitar retrocessos em matéria de proteção ambiental e para


garantir a efetividade das normas ambientais.
Já no que tange a aplicação do princípio ao nível internacional, pode-
-se citar a minuta do acordo entre Mercosul-União Europeia, pois esta-
beleceu uma série de cláusulas ambientais que visam promover a proteção
ambiental, a conservação da biodiversidade e a luta contra as mudanças
climáticas. Entre essas cláusulas, destacam-se o compromisso de aderir ao
Acordo de Paris, a cooperação em questões ambientais e a proibição do
comércio de produtos ilegais que possam afetar o meio ambiente. Nesse
sentido, a aplicação do Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental
pode garantir que as cláusulas ambientais do acordo sejam cumpridas e
que não ocorra um retrocesso na proteção ambiental estabelecida. É im-
portante ressaltar que, como o acordo ainda não entrou em vigor, é funda-
mental que sejam estabelecidos mecanismos de monitoramento e fiscali-
zação para garantir que as cláusulas ambientais sejam cumpridas e que não
ocorra nenhum retrocesso na proteção ambiental (Monteiro et al., 2021).
Assim, o Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental pode ser
um importante instrumento para garantir a implementação e o cumpri-
mento das cláusulas ambientais do Acordo Mercosul-União Europeia,
contribuindo para a proteção do meio ambiente e a luta contra as mudan-
ças climáticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, pode-se concluir que o Princípio da Proibição do


Retrocesso Constitucional Ambiental/Ecológico é uma importante ferra-
menta jurídica para a proteção do meio ambiente e a efetividade dos di-
reitos fundamentais, especialmente no contexto das mudanças climáticas.
A sua aplicação impede retrocessos ambientais, garantindo a manutenção
dos níveis de proteção já estabelecidos, bem como aprimoramentos neces-
sários em termos de políticas públicas e medidas protetivas.
Nesse sentido, o STF já tem formada jurisprudência com a com-
preensão desse princípio como desdobramento do princípio da dignida-
de da pessoa humana e do princípio da substancialidade ambiental. Os
casos citados já julgados comprovam a importância da aplicação desse

403
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

princípio para a efetividade das normas e a proteção do meio ambiente,


demonstrando que retrocessos em questões ambientais podem ser
impedidos por sua aplicação.
No contexto do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o Prin-
cípio da Proibição do Retrocesso Ambiental é essencial para que a imple-
mentação do acordo seja feita de forma responsável e sustentável, evitando
retrocessos nas normas ambientais já existentes nos países envolvidos. Da
mesma forma, a previsão do acordo se alinha ao Princípio da Sustentabi-
lidade Ambiental sob a ótica da indissociação entre economia, trabalho e
meio ambiente.
Portanto, é necessário que a sociedade e os governos estejam cons-
cientes da importância desse princípio para a proteção ambiental e para a
garantia dos direitos fundamentais, bem como da necessidade de imple-
mentar políticas públicas e medidas protetivas em conformidade com esse
princípio.
Assim, respondendo a questão-problema formulada na introdução,
pode-se afirmar que o Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental é
uma importante contribuição para a proteção ambiental e para a efetivi-
dade dos direitos fundamentais no contexto das mudanças climáticas, ga-
rantindo a manutenção dos níveis de proteção já estabelecidos e evitando
retrocessos prejudiciais à sociedade e ao meio ambiente.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Antonio Herman. Princípio da proibição de retrocesso


ambiental. In: BRASIL. O princípio da proibição do retroces-
so ambiental. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumi-
dor e Fiscalização e Controle. Brasília, DF: Senado Federal, 2011. p.
55–73.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Princípio da sustentabilidade


como Princípio estruturante do Direito Constitucional. Revista de
estudos politécnicos, v. 8, n. 13, p. 7–18, 2010.

LEAL, Carla Reita Faria; RODRIGUES, Débhora Renata Nunes. A


aplicação do princípio da proibição de retrocesso no âmbito do di-

404
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

reito ambiental do trabalho. Revista Direitos Fundamentais &


Democracia, v. 24, n. 2, p. 253–282, 2019.

MONTEIRO, Rhadson Rezende et al. Aspectos ambientais do acordo


entre União Europeia e Mercosul. Research, Society and Devel-
opment, v. 10, n. 15, p. e489101523038–e489101523038, 2021.

PRIEUR, Michel. O princípio da proibição de retrocesso no cerne do


direito humano ao meio ambiente. Revista direito à sustentabili-
dade, v. 1, n. 1, p. 20–33, 2014.

RAMACCIOTTI, Barbara Lucchesi; DE SOUZA, Camila Queiroz;


DE SOUZA DANTAS, Luís Rodolfo Ararigboia. O princípio
da proibição do retrocesso ambiental aplicado às políticas públicas
ambientais. Revista Estudos Institucionais (REI), v. 6, n. 2, p.
685–706, 2020.

405
PANDEMIA DA COVID-19,
LIBERALISMO ECONÔMICO E
DESENVOLVIMENTO HUMANO:
ESTUDO DIANTE DA EXPANSÃO
EMPRESARIAL E O DIREITO DA
PERSONALIDADE
Letícia Vermelho Obici62
Andryelle Vanessa Camilo Pomin63
Dirceu Pereira Siqueira64

INTRODUÇÃO

O livre mercado, como sendo a cooperação entre indivíduos influen-


ciados pela ordem mercadológica sem uma intervenção estatal, atua se-
guindo princípios sociologicamente intrínsecos, como a lei da oferta e da
procura, o avanço mercadológico e a competitividade.

62 Discente do Curso de Direito da Unicesumar, Campus Maringá (PR). Pesquisadora do


CNPq.
63 Doutoranda em Ciências Jurídicas, professora do curso de graduação em Direito da Uni-
cesumar e de pós-graduação lato sensu. Pesquisadora do CNPq. Advogada.
64 Pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal); Universidade Cesumar.

406
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Com o Código Civil de 2002, constataram a empresa como uma


figura dinâmica, multifatorial, organizada pelo empresário, que é carac-
terizado no art. 966 do CC. A partir dele, há o primeiro passo para a
expansão empresarial, possibilitando ao setor privado a busca por novos
mercados e/ou produtos, outros lugares e a melhoria em sua qualidade,
além de impulsionar o crescimento econômico, o livre mercado e a livre
concorrência.
Além disso, a relação entre a liberdade econômica e o desenvolvimen-
to humano traz como consequências o bem-estar social coletivo e indivi-
dual, a fomentação de empregos e renda per capita, a circulação de capital,
dentre outras. Destaca-se a teoria de Amartya Sen, que alega a possibilida-
de de o livre mercado corroborar com o desenvolvimento humano, visto
que reconhece os benefícios da ordem mercadológica.
Ademais, tem-se a pandemia da Covid-19, que impactou significati-
vamente as empresas, fazendo com que o empresário se encontrasse obri-
gado a agir e pensar meios que sobressaíssem tal situação, havendo menor
incentivo para o crescimento da empresa, ficando a expansão empresarial
em segundo plano ou até mesmo desaparecida.
A relevância social e jurídica é uma das justificativas para a realização
desta pesquisa, vez que a expansão empresarial faz parte da realidade de
todos os empresários, sem que haja, explicitamente, um dispositivo legal
que a regule. Mesmo assim, percebe-se a importância da expansão em-
presarial como um meio administrativo-estratégico para o crescimento de
uma empresa e o desenvolvimento humano.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Todo o trabalho está embasado em leis, artigos e notícias lidos sobre


os impactos sociais e jurídicos da expansão empresarial, principalmente
em Diniz (2018), a qual permitiu estudar os sustentáculos da atividade
empresarial, entendendo que a junção dos princípios da propriedade pri-
vada, função social e boa-fé objetiva culminam no desenvolvimento social
e econômico.
Ademais, o estudo pauta-se também em Iorio (2011), o qual se propôs
desenvolver um estudo sobre a Escola Austríaca de Economia, esclarecen-

407
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

do sobre a origem do liberalismo econômico e evidenciando o essencial


papel do indivíduo livre. Para trabalhar a Teoria de Amartya Sen, tomou-
-se como base Pompeu e Melo (2016), correlacionando o desenvolvimen-
to humano e a liberdade econômica, reconhecendo a desigualdade, social
e econômica, e como a capacidade de cada indivíduo prevalece.
Por fim, com base nas constatações de Bezerra (2006), discutiu-se os
conceitos sobre o Direito da Personalidade, relacionando-o com a expan-
são empresarial e seus reflexos na sociedade.

METODOLOGIA

O método de procedimento utilizado na pesquisa foi o bibliográfico,


que consiste na pesquisa bibliográfica e documental de obras doutriná-
rias, de legislação nacional e internacional pertinente e documentos ele-
trônicos. Quanto aos objetivos, o método de pesquisa foi o exploratório, e
quanto à abordagem o método foi o hipotético-dedutivo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os entendimentos iniciados com Adam Smith, “pai da economia po-


lítica”, procederam um desenrolar de questões relacionadas à autonomia
do mercado sobre as influências de ordem pública, tendo o Estado o dever
de deixar a atividade econômica se desenvolver nos seus próprios termos,
formalizando a teoria econômica-filosófica: o Liberalismo Econômico.
Notou-se o papel fundamental que o indivíduo exerce sobre a econo-
mia mercadológica, enfatizando a liberdade consciente; além do valor éti-
co, foi também considerada uma precondição para a distribuição e geração
de riqueza. Portanto, para alcançar a expansão empresarial, determinou-se
necessário que o indivíduo pudesse exercer sua liberdade, garantindo a
democracia.
O estudioso Iorio (2011, p. 86) determina que “Não se elimina a
pobreza combatendo a riqueza, mas motivando a geração de riqueza de
maneira generalizada”, ou seja, a adoção dos menos afortunados pelo
Estado não culminaria no fim da pobreza, mas, sim, o favorecimento
dos ambientes empresariais para que não haja impedimentos para o de-

408
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

senvolvimento das atividades econômicas, com a finalidade de se gerar


lucros. Isso porque a criatividade, conjuntamente com a capacidade hu-
mana de se reinventar, propicia o efetivo funcionamento da função em-
presarial; se estimulada corretamente, emancipa o indivíduo de auxílios
institucionais e propicia a maior auferição de lucros empresariais puros
(Iorio, 2011, p. 44).
A pobreza se dá, portanto, com a privação de capacidade, quando é
cerceada a liberdade dos indivíduos de realizar escolhas individuais, já que
é a partir disso que o indivíduo conquista recursos financeiros para o seu
próprio bem-estar, desenvolvimento e progresso, rendimento e riqueza.
Perante a Teoria de Amartya Sen, o mercado empresarial, em espe-
cial a expansão empresarial, deve ser composto por tal liberdade, a fim de
expandir o lucro e as oportunidades econômicas. Assim, verificou-se a
necessidade de intervenção estatal para algumas regularizações, para que
a comunidade pudesse participar do processo de expansão econômica.
Noutro viés, a Escola Austríaca considera que é com a não intervenção
estatal que se tem o efetivo crescimento da atividade empresarial. Diante
das duas perspectivas, a liberdade individual é fator indispensável para que
cada indivíduo se desenvolva.
A partir disso, observa-se os impactos da expansão empresarial no
marco histórico dado no início de 2020, a pandemia da Covid-19.
Ocorreu que empresas físicas foram obrigadas a fechar as portas e/ou
restringir o número de pessoas, além de que todos eram incentivados a
permanecer em casa, fatos que impediram e dificultaram a circulação
do capital.
Os mais afetados foram as empresas tradicionais que não puderam se
adaptar ao meio digital, encontrando-se em inadimplemento, sendo que
pelo menos 5,5 milhões de micro e pequenas companhias estavam ne-
gativadas, conforme dados expostos pelo Seara (Jornal da Globo, 2022).
De acordo com o IBGE, no Estudo Especial nº 99/2021, constatou-se
que 33% das empresas participantes desta amostra haviam encerrado suas
atividades de forma temporária ou definitivamente em julho de 2021. No
campo da exportação e importação, houve aumento de 3,4% de empre-
sas exportadoras do ano de 2019 para 2020. Porém, quando se trata de

409
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

empresas importadoras, observa-se um tombo de 13,4% do ano de 2019


para 2020.
A tecnologia auxiliou para que muitas empresas não fechassem as
portas, possibilitando que o comércio seguisse o isolamento social. Nessa
toada, houve um aumento de diversos produtos sendo oferecidos à venda
online de janeiro a março do ano de 2020, conforme Rezende et al. (2020).

Gráfico 1 — Percentual (%) de consumidores realizando a primeira compra online


(01/02/2020 — 18/03/2020)

Fonte: Rezende et al. apud Ebit |Nielsen COmpany Online Sales (2020).

Nesse ínterim, percebeu-se a dificuldade dos empresários em sobre-


viver com a suas empresas, devido às dificuldades em se implementar me-
canismos de expansão empresarial durante o período de recessão.
Além disso, é cabível a aplicação dos direitos da personalidade no ins-
tituto da expansão empresarial, uma vez que refletem no âmbito da prote-
ção do nome empresarial, de sua marca e símbolo, sua identidade frente às
outras empresas, como também nas tratativas, segredo, sigilo e privacida-
de, que devem ser igualmente protegidos. Por isso, a expansão empresarial
é amparada pelas normas do Direito Empresarial, detendo ainda a prote-
ção dos Direitos da Personalidade.

CONCLUSÕES

Dessa forma, a presente exposição teve como objetivo analisar


os impactos jurídicos e sociais da expansão empresarial, consideran-

410
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

do os princípios do Liberalismo Econômico, de sua relação com o


desenvolvimento humano, bem como a realidade das empresas du-
rante a pandemia da Covid-19 e a aplicação das normas do Direito
da Personalidade. Assim, ancorados na Teoria da Empresa, filosofia
liberal, e na Teoria de Amartya Sen, explicitada por Diniz (2018); em
Iorio (2011), em Pompeu e Melo (2016) e Bezerra (2006), discutiu-
-se o reconhecimento da empresa enquanto fator de evolução social,
a relevância do liberalismo econômico e dos fundamentos da Escola
Austríaca da Economia para a possibilidade de mudança de estrato
social e crescimento econômico.
Concomitantemente, observou-se a correlação entre o desenvolvi-
mento humano e a liberdade econômica, com vistas a capacidade de cada
indivíduo de exercer seu direito de escolha e com a análise dos impactos
econômicos e sociais causados pela pandemia, de forma que foram verifi-
cadas diversas dificuldades perpassadas pela figura do empresário. Por fim,
debateu-se como os reflexos da expansão empresarial atingem os direitos
da personalidade. A partir disso, concluiu-se como e qual a relevância do
empresário ao aumentar seu capital, expandindo sua empresa tanto geo-
gráfica quanto mercadologicamente.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, I. C. de O. Os direitos da Personalidade. Revista Jurídica


da FA7, v. 3, n. 1, 2006, p. 11–23.

DINIZ, M. H. Importância da Função Social da Empresa. Revista Jurí-


dica, Curitiba, v. 2, n. 51, p. 387–412, set. 2018.

IORIO, J. U. Ação, tempo e conhecimento: A escola austríaca de


economia. 1. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2011. p.
11–234.

POMPEU, G. V. M.; MELO, R. V. C. A contraditória relação entre li-


vre-mercado e desenvolvimento humano: possíveis soluções a partir
do conceito de capacidades em Amartya Sen. Direito, Estado e
Sociedade, n. 49, p. 188–207, jul./dez. 2016.

411
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

REZENDE, A. A. de; MARCELINO, J. A.; MIYAJI, M. A reinvenção


das vendas: as estratégias das empresas brasileiras para gerar receitas
na pandemia de Covid-19. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa
Vista, v. 2, n. 6, p. 53–69, 2020.

412
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
(CONVENÇÃO-QUADRO DA ONU
SOBRE MUDANÇA DO CLIMA,
LEI Nº 12.187/2009, DECRETO Nº
2.783/1998 E LEI ESTADUAL Nº
13.798/2009, DECRETO ESTADUAL
Nº 55.947/2010 E RES. 267/2000)
Ana Paula Silva Borgomoni 65

INTRODUÇÃO

Desde o século XIX, a temperatura do planeta Terra teve um acrés-


cimo médio de 1°C. Frise-se que as áreas continentais tendem a aquecer
mais que as áreas oceânicas. São inúmeras as consequências ambientais,
sociais e econômicas dessa alteração climática. Espécies vegetais e animais
poderão ser extintas em decorrência da perda dos seus hábitats, gerando o
desequilíbrio nos ecossistemas. O nível médio do mar tende a subir como
resultado da expansão do volume dos mares, bem como do derretimento

65 Mestranda em Direito da Saúde na Universidade Santa Cecília em Santos. Graduada em


Direito pela Universidade Católica de Santos. Advogada.

413
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

de geleiras. O ser humano estará mais sujeito a eventos climáticos catas-


tróficos, como tempestades torrenciais, inundações e secas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Digno salientar que, de forma natural, a atmosfera retém o calor do sol


para manter o ambiente em uma temperatura habitável. Todavia, a ação
humana intensifica esse processo, gerando o denominado “efeito estufa
antrópico”, corolário, principalmente da queima de combustíveis fósseis,
do desmatamento e da atividade agropecuária. Tais condutas aumentam
a concentração de gases do efeito estufa, tais como o dióxido de carbono
(CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O).

METODOLOGIA

O método utilizado na elaboração do presente trabalho é baseado em


pesquisas bibliográficas, buscando identificar os prejuízos causados ao sis-
tema climático, assegurando que a produção de alimentos não seja amea-
çada e permitindo que o desenvolvimento econômico prossiga de maneira
sustentável.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No contexto de busca global por um modelo de crescimento econô-


mico e social aliado à preservação ambiental e ao equilíbrio climático em
todo o planeta, foi aberta à assinatura durante a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento a Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, sendo que, no Brasil, ela
foi promulgada pelo Decreto nº 2.652/1998.
A Convenção tem o objetivo de estabilizar as concentrações de gases
de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência hu-
mana perigosa no sistema climático. Dentre os princípios que regem sua
aplicação, destaca-se o das “responsabilidades comuns, mas diferenciada”.
A Convenção ONU sobre Mudanças de Clima resultou na assinatura
do Protocolo de Kyoto em 1997, sendo propostas metas a fim de conter

414
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

as emissões de gases de efeito estufa e ações necessárias para tal finalidade.


Em 2002, o Brasil aderiu voluntariamente ao Protocolo de Kyoto, e em
2009, anunciou meta para reduzir entre 36,1% e 38,9% suas emissões até
2020.
Foi instituída a denominada Política Nacional sobre Mudança do
Clima — PNMC (Lei nº 12.187/2009), trazendo conceitos, objetivos,
diretrizes e instrumentos, indicando no art. 3º os princípios da precaução,
da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e
das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
Encontra-se vigente o Decreto nº 9.578/2018, que dispõe so-
bre o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, previsto pela Lei nº
12.114/2009 e sobre a Política Nacional sobre Mudança do Clima. Ainda,
o Decreto nº 2.783/1998 proíbe a aquisição de produtos ou equipamentos
que contenham ou façam uso das Substâncias que destroem a Camada de
Ozônio (SDOs) pelos órgãos e pelas entidades da Administração Pública
Federal direta, autárquica e fundacional, excluindo apenas os produtos ou
equipamentos considerados de usos essenciais.
Já a Resolução CONAMA nº 267/2000 dispõe sobre a proibição no
Brasil da utilização das substâncias controladas especificadas nos Anexos
A e B do Protocolo de Montreal sobre as SDOs.
No âmbito do Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 13.798/2009
instituiu a Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC), trazendo
princípios, objetivos e instrumentos de aplicação. Em seu art. 32, § 1º,
dispõe que o Estado terá a meta de redução global de 20% das emissões
de dióxido de carbono (CO2), relativas a 2005, em 2020, o que será fis-
calizado pelo Conselho Estadual de Mudanças Climáticas, regulamentada
pelo Decreto Estadual nº 55.947/2010.

LICENCIAMENTO DE ATIVIDADES IMPACTANTES

A competência para o licenciamento ambiental no Brasil é, em regra,


comum entre os entes da federação (art. 23 da CRFB/1988). A Lei Com-
plementar nº 140/2011, todavia, definiu que caberá à União promover o
licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades localizados ou

415
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe ou localizados


ou desenvolvidos em dois ou mais Estados.

FISCALIZAÇÃO

Tratando-se de alterações climáticas, a fiscalização mostra-se de gran-


de relevância. O tema está em destaque diante das queimadas desordena-
das que assolam a Amazônia e o Pantanal. A atividade de fiscalização é
de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, que devem proteger o meio ambiente e combater a poluição
em quaisquer de suas formas, preservar as florestas, a fauna e a flora (art.
23 da CRFB).

PRINCIPAIS IMPACTOS À SAÚDE HUMANA

As alterações climáticas impactam de forma negativa a vida dos se-


res humanos, principalmente daqueles que habitam países subdesenvol-
vidos em situação de vulnerabilidade. O aumento das temperaturas acima
do nível suportável pode resultar em insolação, afetando o mecanismo
de transpiração e impossibilitando o corpo de resfriar, além do ocasionar
aumento no risco de problemas respiratórios causados por alergias, asma,
doenças pulmonares crônicas e câncer de pulmão decorrentes das subs-
tâncias químicas que contaminam o ar. Estudos realizados por ecologistas
da Universidade de Liverpool identificaram a denominada “infertilida-
de térmica”, isto é, a infertilidade masculina induzida pelo aumento da
temperatura terrestre, o que fará com que algumas espécies sucumbam
aos efeitos da mudança climática. Ainda que indiretamente, há o risco de
doenças cardiovasculares e de acidente vascular cerebral. A destruição da
camada de ozônio na estratosfera reduz a proteção em face da radiação ul-
travioleta proveniente da luz solar, aumentando o risco de câncer de pele,
cataratas e outras doenças. A saúde mental das pessoas pode ser afetada:
estudo publicado na revista Nature Climate Change, mostra que há forte
evidência de que o clima mais quente aumenta tanto as taxas de suicídio
quanto o uso de linguagem depressiva nas redes sociais. Fala-se também
na “Ecoansiedade”, termo cunhado em 2017 pela Associação de Psico-

416
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

logia dos EUA e definido como “medo crônico de sofrer um cataclismo


ambiental que ocorre ao observar o impacto, aparentemente irrevogável
das mudanças climáticas, gerando uma preocupação associada ao futuro
de si mesmo e das próximas gerações”. Salienta-se que o aquecimento
global afeta a produção de alimentos diante da piora da qualidade do solo,
alteração na precipitação e nos níveis do mar, propagação de contamina-
ções, eventos climáticos extremos, dentre outras situações que encarecem
o cultivo e geram insegurança alimentar.

CONCLUSÕES

As alterações climáticas impactam de forma negativa a vida dos seres


humanos, principalmente os que habitam em países subdesenvolvidos e
já se encontram em situação de vulnerabilidade, causando doenças e afe-
tando a produção de alimentos em decorrência de eventos climáticos ex-
tremos.
Diante do estado de emergência climática, o tema está cada vez mais
presente nas legislações e textos constitucionais, tornando obrigatório ao
Estado o controle de instrumentos e restrições importantes em face do
risco do bem ambiental.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Antonio Herman . Mudanças Climáticas. In: BENJA-


MIN, Antonio Herman; NUSDEO, Ana Maria (org.). Conflitos
Ambientais e Respostas Jurídicas. (V. 2 — Teses de estudantes
de pós-graduação e profissionais). São Paulo: Instituto O Direito por
um Planeta Verde, 2019. Disponível em: http://www.planetaverde.
org/arquivos/biblioteca/arquivo_20191202122107_5387.pdf. Acesso
em: 29 abr. 2023.

FACHIN, Luiz Edson. Agenda 2030, emergência climática e o papel das


instituições públicas. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v.
10, n. 3, dez. 2020. Disponível em: https://www.publicacoesacade-

417
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

micas.uniceub.br/RBPP/article/view/7119/pdf. Acesso em: 29 abr.


2023.

FIORILLO, C. A. P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 22. ed.


São Paulo: Saraiva, 2021. E-book.

418
QUALIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO:
UM ESTUDO SOBRE A PERCEPÇÃO
DAS FAMÍLIAS BENEFICIADAS NO
PROGRAMA CRIANÇA FELIZ (PCF) E
PRIMEIRA INFÂNCIA MELHOR (PIM)
Andreia da Silva de Souza66

INTRODUÇÃO

A qualidade no serviço público envolve a comparação das expectati-


vas do cidadão com a percepção do serviço posto, ou seja, deve atender a
real necessidade dos usuários. Assim, programas e políticas públicas com
foco no atendimento à criança começaram a vir à tona, com o acom-
panhamento e avaliação contínua do crescimento e do desenvolvimento
infantil, com programas de visitas domiciliares, as quais são consideradas
estratégias efetivas no desenvolvimento infantil (Silva, 2021).
Adentrando no viés, surge o programa Criança Feliz (PCF) e Primei-
ra Infância Melhor (PIM), que articula as políticas públicas voltadas para
a primeira infância com assistência social. Portanto, o programa Criança
Feliz é uma iniciativa que foi criada para reforçar a implementação do

66 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Administração Pública da Universidade


Federal de Santa Maria (UFSM).

419
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

Marco Legal pela Primeira Infância. Segundo Young (2010), o objetivo


do programa é contribuir para a quebra do ciclo da pobreza, com a redu-
ção da violência e a diminuição da evasão escolar.
O programa Primeira Infância Melhor (PIM) foi criado em 2003, no
estado do Rio Grande do Sul, e é direcionado a crianças de zero a seis anos
de idade e gestantes, principalmente as mais necessitadas e que vivem em
risco de vulnerabilidade social.
Assim, o PIM enfoca o desenvolvimento abrangente da primeira in-
fância em atividades que possam promover o desenvolvimento cognitivo,
psíquico e social da criança, além do fortalecimento dos laços da família
em que elas se inserem, a cidadania e a participação social. Busca-se apoiar
as famílias a partir da gestação até os seis anos de idade da criança, a partir
de sua cultura e experiência na promoção do desenvolvimento integral das
crianças (Brasil, 2020).
Ambos os programas atuam por meio de visitas domiciliares realiza-
das por visitadores capacitados que orientam as famílias sobre a importân-
cia do desenvolvimento integral das crianças na primeira infância, ofere-
cendo informações sobre saúde, nutrição, educação, estimulação precoce,
proteção e fortalecimento de vínculos familiares.
Nessa linha, observa-se que a essência dos programas é apoiar as famí-
lias em relação à natureza social e emocional na qual estão situadas. Para
tanto, as famílias são assistidas por agentes que desenvolvem atividades
lúdicas específicas, destinadas a promover o desenvolvimento da criança,
criando condições de integração (Silva, 2021). Assim, o município e o
estado têm buscado utilizar instrumentos para monitoramento do progra-
ma, assim como as ações estratégicas de avaliação das famílias a respeito
dos serviços prestados na área de atuação (Aguiar, 2018).
Para isso, faz-se importante investigar como os usuários do PCF e do
PIM avaliam as atividades dos programas junto ao município. Portanto, o
presente projeto está vinculado às Políticas Públicas para a Primeira Infân-
cia, especificamente estará focado nas famílias beneficiárias dos Programas
Criança Feliz e Primeira Infância Melhor.
A abordagem proposta para a pesquisa propõe uma avaliação da quali-
dade do serviço público, em específico, os resultados, ao buscar investigar

420
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

de forma exploratória os indicadores dos Programas Criança Feliz e Pri-


meira Infância Melhor. Assim, optou-se por uma metodologia qualitativa
e quantitativa, a fim de se verificar a percepção das famílias beneficiadas
quanto ao serviço realizado pelo programa, por meio de uma pesquisa de
campo com as beneficiárias.
Referindo-se ao critério da viabilidade, serão obtidas informações
juntamente ao fomento com o Projeto da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), com acesso às informa-
ções pertinentes a pesquisa de campo que será trabalhada e coordenada
pela professora Doutora Kalinca Léia Becker, das quais pode-se considerar
uma pesquisa viável para a sua realização. Assim, evidencia-se a oportu-
nidade de fazer parte do grupo de pesquisa do projeto A satisfação dos bene-
ficiários dos programas Primeira Infância Melhor (PIM) e Criança Feliz (PCF):
uma análise sob a ótica das famílias gaúchas, o qual será executado no ano de
2023 pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), proporcionan-
do um conhecimento aprofundado sobre a análise dos problemas sociais
relevante ao país, à UFSM e ao Programa de Mestrado em Administração
Pública.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Este breve resumo trata do projeto de dissertação que busca identifi-


car os programas PIM e PCF e qual é a percepção das famílias beneficiadas
por tais programas. Inicialmente é apresentada uma visão geral sobre os
aspectos a serem investigados por meio da introdução, do problema de
pesquisa, dos objetivos e da justificativa, no primeiro capítulo. Em se-
guida, no segundo capítulo, é exposto o referencial teórico, que oferece
embasamento para fundamentar a temática Primeira Infância Melhor, e
assim expor um panorama acerca da qualidade do serviço público dentro
da temática acerca das políticas públicas voltadas à primeira infância.
O terceiro capítulo descreve os procedimentos metodológicos, apre-
sentando o estudo abordado e as estratégias de pesquisa, o método ado-
tado, a população e a amostra da pesquisa, os aspectos éticos do estudo,
além do instrumento de pesquisa seguido da técnica de coleta e análise

421
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

de dados. Por fim, no quarto capítulo será apresentada uma proposta de


cronograma de execução da pesquisa.

METODOLOGIA

Tendo em vista o objetivo que conduz este estudo, a forma de aborda-


gem metodológica caracteriza-se como qualitativa e quantitativa. As duas
abordagens se complementam e permitem uma melhor análise acerca da
qualidade do serviço público por meio da percepção das famílias benefi-
ciadas no Programa Criança Feliz e Primeira Infância Melhor. Combinar
métodos qualitativos e quantitativos pode contribuir com o potencial de
cada uma delas, além de suprir suas deficiências. Isso proporciona respos-
tas mais amplas às questões de pesquisa, indo além das limitações de uma
única abordagem (Bervian; Cervo, 2015).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A população do presente estudo compreende as famílias usuárias dos


Programas Criança Feliz e Primeira Infância Melhor residentes no mu-
nicípio de Cacequi, no estado do Rio Grande do Sul. Marconi e Laka-
tos (2017) definem população com um conjunto de seres que apresentam
pelo menos uma característica em comum, a amostra só ocorre quando a
pesquisa não é de censo, ou seja, não abrange a totalidade da população,
que pode ser classificada em dois grandes grupos: amostragem probabi-
lística e não probabilística. Após a coleta de todos os questionários e das
entrevistas, daremos início ao trabalho final da dissertação.

CONCLUSÕES

Este estudo aborda a qualidade do serviço público por meio de dois


programas regionais do estado do Rio Grande do Sul, das quais há uma
política pública federativa que compõe um dos projetos prioritários da Se-
cretaria Estadual da Saúde (SES), além de integrar programas estrategistas
do governo do estado.

422
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Espera-se que os resultados desta pesquisa oportunizem uma com-


preensão acerca da percepção das famílias usuárias dos programas, ao
buscar o serviço intersetorial com visitas domiciliares realizadas semanal-
mente aos beneficiários em situação de risco e vulnerabilidade social, o
fortalecimento de cuidar de suas crianças. Estima-se que o estudo possa
servir como instrumento de gestão capaz de demonstrar para a sociedade
os resultados alcançados no município, a fim de delinear novas ações.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, B. G. Estratégias de gestão pública no setor energéti-


co: um ensaio acerca das racionalidades econômicas. 2018. 65 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Políticas Públi-
cas) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Ale-
gre, 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/han-
dle/10183/194360/001093384.pdf?sequence=1&isAllowed =y.
Acesso em: 26 jan. 2023.

BRASIL. Ministério da Cidadania. Primeira infância — com adaptações


e cuidados, Criança Feliz promove seis milhões de visitas durante
a pandemia. Notícias Diretoria de Comunicação — Brasília,
2020. Disponível em: Ministério do Desenvolvimento e Assistência
Social, Família e Combate à Fome (www.gov.br). Acesso em: 8 fev.
2023.

SILVA, L. A. Os programas Primeira Infância Melhor, Criança Fe-


liz e o Sistema Nacional de Intervenção Precoce português:
aproximações e distanciamentos. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) — Programa de Pós-Graduação em Educação, Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do
Sul, 2021.

YOUNG, M. E. Do Desenvolvimento da Primeira Infância ao De-


senvolvimento Humano: investindo no futuro de nossas crianças.
São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2010.

423
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS
POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A
EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL
Leidiane Pires Rodrigues67
Daniella Couto Lôbo68

INTRODUÇÃO

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento que


busca compreender as trajetória das políticas educacionais na Educação
Superior, como também dos programas de assistência estudantil nas duas
últimas décadas. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e
documental, com vistas a compreender, de forma crítica e reflexiva, os
aspectos históricos e legais do processo de implementação, após a promul-
gação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/96) entre os
anos de 2000 e 2020. A escolha dessa temática também passa pela ten-
tativa de analisar as ações orquestradas com a finalidade do desmonte da
educação brasileira, com ênfase nos últimos dez anos, período em que se

67 Mestranda em Educação do Mestrado Acadêmico em Educação da Faculdade de Inhu-


mas (FacMais). Bolsista do Programa de Concessão de Bolsas da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).
68 Doutora em Educação. Atua como professora do quadro permanente do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Inhumas (Facmais).

4 24
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

tornaram rotineiros os cortes no orçamento, a redução das verbas para os


programas de assistência estudantil, a intensificação da mercantilização do
ensino superior etc. Desta forma, a pesquisa buscará referências teóricas e
pesquisas que auxiliem na compreensão acerca da educação superior e da
realidade que a circunda.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para a fundamentação teórica buscou-se, inicialmente, analisar as po-


líticas educacionais desenvolvidas na educação superior nas duas últimas
décadas. Nota-se que nas últimas décadas as políticas educacionais têm
favorecido o ingresso de estudantes das classes populares por meio da cria-
ção de programas e projetos com o objetivo promover a democratização
desse nível ensino. Entretanto, essas políticas vêm sendo historicamen-
te alteradas, dificultando sua efetivação no campo da educação superior
(Moreira; Moreira; Soares, 2018).
Para Gomes e Silva (2003) as ações afirmativas podem ser definidas
como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsó-
rio, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à dis-
criminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional,
bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efeti-
va igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.
Nessa direção, Behring e Boschetti (2009) nos dizem que: as políticas
sociais são concessões/conquistas mais ou menos elásticas, a depender da
correlação de forças na luta política entre os interesses das classes sociais e
seus elementos envolvidos na questão.
O princípio de igualdade consagrado na Constituição Federal de
1988, no seu artigo 5º, dispõe que todos são iguais perante a lei. Essa igual-
dade pode ser chamada de igualdade formal que se relaciona a igual diante
da lei, enquanto a igualdade material representa os mecanismos para que
esta igualdade seja plenamente exercida. Para Pronko (2014), nas últimas
décadas houve uma evolução na educação nos países em desenvolvimen-
to, que apesar de ser importante não foi suficiente e requer uma estratégia
para a próxima década. De acordo Streck (2003), as Constituições trazem

425
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

no seu escopo os direitos fundamentais e sociais, o judiciário é a forma de


efetivar direitos garantidos pela lei e não efetivados pelo Estado.
A democratização da educação faz referência a um processo impul-
sionado pelos movimentos sociais, pesquisadores da área da educação,
professores, pais e toda a sociedade, para participarem na condução da
educação pela garantia do acesso e da permanência dos estudantes.

METODOLOGIA

O estudo será de caráter essencialmente qualitativo explorátorio, ten-


do como tema as políticas para a Educação Superior nos últimos vinte
anos. Realizou-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico e do-
cumental. Para tanto, foram utilizados livros, artigos, teses e dissertações
relacionados ao assunto. Além disso, empregou-se a análise documental,
visto que o objeto de estudo é permeado pelo tema “políticas públicas
educacionais”.
Assim, com o objetivo de esclarecer questões relacionadas com o tema,
o estudo amparou-se em: Moreira e Soares, (2018), Fávero, (2006), Casali e
Matos (2015), Araújo (2017), Lima e Gimenez (2016), dentre outros.
Com relação à análise documental, foram utilizados documentos
que compõem as políticas públicas relacionadas com a educação supe-
rior, destacando-se: Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — Lei nº 9.394 (Brasil,
1996), Lei nº 10.861/2004 — SINAES, Lei 12.711/2012 (Lei de Co-
tas), Lei 12.288/2010 (conhecida como Estatuto da Igualdade Racial),
dentre outros.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com o desenvolvimento do trabalho foi possível compreender que a


educação superior passou por grandes mudanças a partir dos anos 1990,
com a expansão da rede privada e com incentivo governamental para ofer-
ta de novas vagas na tentativa de garantir o acesso do direito à educação
das pessoas de meios populares. No Brasil, as políticas afirmativas foram
criadas para tratar uma desigualdade histórica. A Constituição dispõe que

426
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

todos têm direito à educação, assim como leis que a complementam: a Lei
12.711/2012 (Lei de Cotas), dentre os programas PROUNI e FIES.
A análise do Programa Universidade para todos identificou que esse
programa foi efetivo movimento voltado para alunos de escola pública,
bem como cotistas. Era um anseio social para dar oportunidades às pessoas
que sem este programa não conseguiriam entrar em um curso superior. A
efetivação das ações afirmativas tem contribuído com o processo de de-
mocratização do acesso e da permanência na educação superior.

CONCLUSÕES

A pesquisa permitiu compreender que a educação superior passou


por mudanças que foram direcionadas pelo momento político e social.
Nas últimas décadas, é possível perceber o processo de democratização
do acesso à educação superior por meio de ações governamentais, com a
consequente ampliação do número de vagas nas diversas regiões do país e
uma significativa melhoria dos índices de equidade social e cultural.
Embora as políticas afirmativas sejam uma forma de inserir as pessoas
menos favorecidas no mundo acadêmico, apesar da Constituição Federal
garantir o direito à educação para todos, foi necessária a criação de leis
complementares para efetivamente garantir esse direito, como a Lei de
Cotas. Segundo tal lei, existem três tipos de cotas: sociais, raciais e por de-
ficiência física. As cotas sociais são preenchidas por pessoas de baixa renda
e que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública, ou como
bolsista em escola particular. Pôde ser constatada a expansão do ensino su-
perior privado, sendo uma forma de aumentar a oferta de vagas oferecidas.
A educação superior de qualidade é o único caminho para solucionar
diversos problemas sociais, sendo ferramenta capaz de promover o desen-
volvimento social.

REFERÊNCIAS

BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política social:


fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

427
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


tiva do Brasil. Brasília, 1988.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Lei de Cotas. Dis-


põe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições fe-
derais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes


e Bases da Educação Nacional.

BRASIL. Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema


Nacional de Avaliação da Educação Superior — SINAES e dá outras
providências.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da


Igualdade Racial.

FÁVERO, Maria de Lourdes de A. A Universidade no Brasil: das origens


à Reforma Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n. 28, p. 17–
36, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/er/n28/a03n28.
pdf. Acesso em: 27 abr. 2023.

GOMES, J. B. B.; SILVA, F. D. L. da. As ações afirmativas e os pro-


cessos de promoção da igualdade efetiva. In: Seminário interna-
cional — as minorias e o direito, 1999.

MOREIRA, Larici Keli Rocha; MOREIRA, Laine Rocha; SOARES,


Marta Genú. Educação superior no Brasil: discussões e reflexões.
Educação Por Escrito, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 134–150, jan./
jun. 2018. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/in-
dex.php/ porescrito/article/view/29594. Acesso em: 29 abr. 2023.

PRONKO, Marcela. O Banco Mundial no Campo Internacional da


Educação. In: PEREIRA, João Márcio Mendes (org.). A Demoli-
ção de Direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a
educação e a saúde (1980–2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio, 2014. p. 89–112.

428
DESIGUALDADES ECONÔMICAS E
SOCIAIS: O ESTADO TEM UM PAPEL
RESPONSÁVEL?
Carla Maria de Bastos Borrões69

INTRODUÇÃO

Com a tomada de consciência da humanização dos direitos funda-


mentais nas sociedades da contemporaneidade Ocidental, a temática da
desigualdade salarial entre gêneros tem sido colocada na agenda política
(Cantante, 2014). Os referenciais têm sido diferentes, muitos de soft law,
que priorizam a questão do salário igual para as pessoas, independente-
mente do gênero feminino ou masculino, no exercício da função ou da
atividade profissional (OIT, 2021). Os dados existentes mostram que o
combate à desigualdade salarial entre gêneros, em Portugal, tem conheci-
do uma evolução lenta (OIT, 2021; Borrões, 2022).
Assim, propomo-nos apresentar alguns contributos reflexivos sobre
os fatores que podem explicar a diferença salarial entre homens e mulheres
e indicar medidas que, nas políticas públicas e nas empresas, podem con-
tribuir para atenuar a desigualdade de gênero e a desigualdade de salários

69 Licenciada em Direito, em Ciências Sociais e em Educação. Docente Universitária e Inves-


tigadora em Teorias Historiográficas, em Sociologia e em Políticas Públicas.

429
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

entre pessoas — que não é mais do que o reflexo econômico e social da


desigualdade como forma de discriminação positiva da Identidade de Ser.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Um dos aspectos do sucesso e do bem-estar pessoal radica no tra-


balho, a equiparação na quantificação do retorno pela prestação laboral
é uma questão de direitos humanos (Borrões, 2022). Estes implicam o
reconhecimento da liberdade, e esta tem subjacente a humanização e o
respeito pela diferença do Outro (Carmo; Matias, 2019; Borrões, 2022).
O cerne de ambos os paradigmas fundamentadores, em sociedades de
comunidades democráticas, é a dignidade da pessoa humana, e esta, sob
pena de manifesta desigualdade econômica e social, advoga, na ação, a
igualdade de gêneros e a igualdade de salários (Cantante, 2014; Borrões,
2022).
Portugal, país da União Europeia, caminha para a projeção reivindi-
cada por um dos objetivos do desenvolvimento (econômico e social), ao
lado dos demais parceiros desse projeto (OIT, 2021). Ainda que lento, o
processo de mitigação da desigualdade salarial entre gêneros, em Portugal
e na Europa, o combate, pelo menos no circuito da comunidade acadê-
mica e dos programas governamentais, tem tido aceitação (Carmo; Can-
tante, 2014; Borrões, 2022). Atendendo ao passado relativamente recente
de instrumentalização do trabalho no feminino, o qual apenas emergiu
por escassez de mão de obra no êxodo metropolitano para as cidades em
prol de melhores condições de vida — como complemento do salário do
chefe da família, o homem, a quem cabia exercer o papel de dominus de re-
colector do sustento, através da sua profissão, para a família, ficando afeto
o papel de cuidadora do lar e da educação dos filhos ao outro membro da
família, a mulher —, pouco restaria, com a alternância de cenário e con-
texto social, que não a sujeição à réstio do quantum possível, e não reivindicá-
vel, do seu préstimo colaborativo no exercício de tarefas circundantes do
bem-estar do todo coletivo, em prol do acréscimo, para a complementa-
ridade da sua empresa familiar (Cantante, 2014; Carmo; Cantante, 2015;
Carmo; Matias, 2019; Borrões, 2022).

430
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

Assim, a diferenciação de salários entre homens e mulheres tem a sua


substancial perspectiva de olhar no social, ou seja, no papel de inferiori-
dade enquanto ser e de vulnerabilidade enquanto saber (Borrões, 2022).
Com a entrada acessível às mulheres na educação e na profissionalização,
houve aumento na equiparação intelectual e independência na sociedade,
ainda que de forma gradual e pouco facilitada (Borrões, 2022). A cons-
ciencialização da liberdade e dos direitos humanos fundamentais sediados
na abertura mental pelo conhecimento permitiu às mulheres irem rei-
vindicando um lugar, equiparando-se aos homens nas comunidades hu-
manas. Preconceitos, medos e superstições aliadas a desconhecimentos e
aproveitamentos desmesurados pela permanência no ter cargos e poderes
representativos aos olhos das instituições seculares, ainda na contempo-
raneidade, têm permitido a reiteração continuada da prevalência da dis-
criminação, no salário e no acesso a cargos e posições de maior relevo
na Administração Pública portuguesa e empresas (Carmo; Matias, 2019;
Borrões, 2022). Ainda que se tenha vindo a implementar referenciais de
boas práticas, de quotas e ditames legais sancionatórios, a implícita so-
negação de parte significativa do quantum salarial não tem, de todo, sido
afastado (Cantante, 2014). Muitas das vezes o problema da diferença sala-
rial é logo resolvido na fase antecedente da diferenciação no acesso (Car-
mo; Matias, 2019). Se antes era explícita a segregação social de gênero, e,
consequentemente, de meritocracia de Identidade, hoje continua a sê-lo
apenas dissimulada (Carmo; Matias, 2019; Borrões, 2022).

METODOLOGIA

Os métodos que utilizamos para desenvolver o trabalho que apresen-


tamos foi basicamente a pesquisa de fatos constantes das leituras realiza-
das, de forma a compreender a fenomenologia da diferença salarial entre
homens e mulheres, e de que forma as políticas públicas e as empresas, se
foram tomadas e implementadas medidas, podem contribuir para atenuar
essa forma de desigualdade econômica e social, na contemporaneidade.
Com efeito, o trabalho apresenta, de forma reflexiva, os fatores que po-
dem explicar a diferença salarial entre homens e mulheres, e indica me-

431
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

didas que, nas políticas públicas e nas empresas, podem contribuir para
atenuar essa forma de desigualdade econômica e social.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A mudança para essa consequência de afastamento da diferença im-


plica tomada de consciência da aceitação, integração e reconhecimen-
to da (inter)identidade das pessoas e da equiparação de papéis na vida,
com reflexos na identificação e efetivação de medidas que, nas políticas
públicas e nas empresas, podem contribuir para aumentar a inclusão da
equiparação entre pessoas, como ações de sensibilização de levantamento
de pensamentos e ideias, políticas inclusivas de gênero e de diferença, de
reconhecimento do olhar sobre o Outro no Eu (Cantante, 2014; Carmo;
Cantante, 2015; Carmo; Matias, 2019; Borrões, 2022). Acrescem ainda
possibilidades de recolha mensal de contributos no feminino, de incen-
tivos ao recrutamento e manutenção de pessoas do gênero feminino no
espaço comunitário contributivo de desenvolvimento econômico e social
e de sanções por discriminação por atos que retratam exclusão em razão
de gênero, bem como de não permissão de despesa pública em ações ju-
diciais pelos órgãos públicos contra atos de entidades administrativas in-
dependentes, sem caráter vinculativo, tornando estes atos, de imediato,
vinculantes e sancionatórios para o Estado como “medida” exemplar de
“advogar” o que advoga e não pratica (Cantante, 2014; Carmo; Cantante,
2015; Carmo; Matias, 2019; Borrões, 2022).
O Estado, no seu papel de igualitário social, tem, ainda, um longo
caminho a percorrer, não fosse pelo acesso privilegiado na influência, não
meritória, de casta política, de executar a política da igualdade, quando do
acesso a Altos Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos (Borrões, 2022).
Esse referencial de atuação na ação, pelo exemplo, poderia e deveria ser a
fonte inspiradora da atuação empresarial de cariz fortemente familiar em
Portugal (Carmo; Cantante, 2015; Carmo; Matias, 2019). Ora, sem uma
alteração, quer do olhar perspectivado, no visionário saber de gestão es-
tratégica, muito pouco, ou apenas no nada de merceeiro, em pleno século
XXI, respeitador do Estado regulador, permitiria a alternância do papel
dos seres humanos nos aspectos do viver das comunidades, permitindo-

432
DARLAN ALVES MOULIN, KARINE TOMAZ VEIGA, TELSON PIRES,
THIAGO RODRIGUES PEREIRA (ORGS.)

-lhes reinventarem-se em si mesmos, redescobrirem-se e renascerem,


enquanto mulheres e homens e enquanto seres produtivos, integrantes e
diferenciadores, alicerçados na criatividade e na inovação; e, dessa forma,
potencializadores da grandeza e do desenvolvimento econômico e social,
sustentável e eficiente (Cantante, 2014; Carmo; Cantante, 2015; Carmo;
Matias, 2019). Ou seja, mais uma questão de desigualdade humana que é
inaceitável numa comunidade de pessoas, na Europa livre e democrática;
é o fato de ser, antes, totalmente inadmissível existir, mas ainda é, infeliz-
mente, o que existe por cá (OIT, 2021; Borrões, 2022).

CONCLUSÕES

Os dados estatísticos e os relatos de histórias de vida, bem como os


estudos da academia, concluem a realidade da atualidade portuguesa (OIT,
2021; Borrões, 2022). Contra fatos, não há argumentos que os afastem.
Portugal é um país europeu que vive espelhado nos predeterminismos dos
papéis da representatividade pré-contemporânea, em matéria de desempe-
nho funcional e profissional, no acesso e na retribuição pela feitura reflexiva
de uma gestão de mercearia, arcaica e sem prospectiva de visão integrada,
inclusiva e sustentada, para permitir a efetiva igualdade, o desenvolvimento
e a sustentabilidade em termos econômicos, sociais e emocionais às gera-
ções futuras; apenas egoísta e utilitarista, reflexiva de influências de interes-
ses, sem coragem para extermínio e efetiva responsabilização.

REFERÊNCIAS

BORRÕES, Carla Maria de Bastos. “Eu também sou filha de alguém”:


O assédio sexual e a discriminação em razão do sexo na academia e
nas funções públicas laborais na contemporaneidade. In: BOTTE-
GA, Clarissa et al. Ensino e direitos humanos. Volume 2, E-book.
Pembroke Collins: CAEduca, 2022. p. 401–405.

CANTANTE, Frederico. Desigualdades económicas multi-escalares:


Portugal no contexto global. Análise Social, Lisboa, n. 212, p.
534–566, 2014.

433
HORIZONTES INTERDISCIPLINARES

CARMO, Renato Miguel; CANTANTE, Frederico. Desigualdades, re-


distribuição e o impacto do desemprego: tendências recentes e efei-
tos da crise económico-financeira. Sociologia: Problemas e Prá-
ticas, Lisboa, n. 77, p. 33–51, 2015.

CARMO, Renato Miguel; MATIAS, Ana Rita. As dimensões existen-


ciais da precariedade: jovens trabalhadores e os modos de vida. Re-
vista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, n. 118, p. 53–78, 2019.

OIT (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO).


Estudos sobre a diferença salarial entre homens e mulheres
em Portugal, COIT, 2021.

434

Você também pode gostar