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I

Do primeiro ao último homem

Hoje eu nasci e o ar puro respiro pela primeira vez. Tudo está verde e
as borboletas pousam de flor em flor. Os animais vem ao meu encontro
procurando saber quem sou e de onde vim. Os esquilos, as antas, serpentes,
todos os felinos e muitos pássaros de cores inconcebíveis. Todos ao meu
redor. Eu não sinto medo deles, nem eles de mim. É maravilhoso. Apesar
disso, sinto-me só e adormeço.
Segundo dia do meu nascimento quando acordo dos meus sonhos no
meio da paisagem verde e límpida, como o córrego cristalino que corre ao
meu lado. Vejo alguém junto as aves e aos animais fito bem o vulto e sinto
pela primeira vez a fragrância feminina. Olhamos um para o outro e como por
magnetismo, dirigimo-nos ao encontro de nossos corações. Estávamos nus e
não nos envergonhávamos. Ficamos ali horas e dias conversando só por
olhares. Pois olhos sinceros tudo falam e nos compreendemos e ali vivemos
muitos anos tirando daquela maravilhosa natureza o nosso sustento. Nossa
vida nômade nos dava alegrias e conhecíamos imensos pomares, riachos e
cachoeiras daquela mata virgem e adorávamos a vida.
Dois anos se passaram e vimos todos aumentando em número e
continuávamos dois. Casamo-nos e depois de vários entendimentos tivemos
um filho e o adoramos e todos os animais também.
Anos se passaram e tivemos muitos filhos. A velhice apareceu devagar
e levou a nós dois.
II

Do primeiro ao último homem

Hoje nasci no meio do meu fim. O ar está mais rarefeito mas respirável.
Nem tudo está verde. Poucas borboletas pousam de flor em flor. Os animais,
raramente se vê. Só em lugares inóspitos onde os caçadores caçam-nos por
esporte. Ou em museus onde os mesmos esquilos, antas, serpentes, todos
os felinos e muitos pássaros de cores inconcebíveis se encontram
empalhados e vivos. Poucos ainda restam. E quando me veem correm ou os
vejo, corro de vergonha de ser humano. E com isso, sinto-me só e
adormeço. No segundo dia do meio do meu fim, quando acordo dos meus
pesadelos, no meio daquela ressecada, obscura, como o córrego que está
sendo poluído, que corre ao meu lado, vejo alguém junto com os outros, fito
bem o vulto, não consigo sentir a fragrância feminina pela primeira vez. Olhei
para ela e ela não olhou pra mim, porque haviam outros ao seu redor. Não
estávamos nus mas nos envergonhávamos das roupas que usávamos. Fui lá
de dez a trinta segundos, conversamos só duas palavras. Pois palavras
bruscas pouco falam e compreendi, vim a viver poucos anos. Não
conseguindo tirar nenhum proveito e nem sustento daquela horrorosa vida
sem natureza. Minha vida sedentária não me dava alegrias, não conhecia
pomares, riachos ou cachoeiras daquela terra batida e adorava a vida.
Dois anos se passaram. Vi os humanos aumentando os índios e os
animais diminuindo. Cansei de ver entendimentos mas não de ver crianças e
as adorava e os animais também.
Poucos anos se passaram e vi milhares de crianças, a velhice veio e
de repente e levou a mim e muitos outros
III

Do primeiro ao último homem

Hoje sou o último a nascer. O ar está poluído, irrespirável. Nada está


verde. Não existem borboletas nem flores. Os animais não mais se veem.
Nem em zoológicos construídos em uma vã tentativa de salvá-los, nos
museus muitos se estragaram. E os de pelos, os mesmos caíram. Os de
escamas, as mesmas esfarelaram-se. Os de penas, não mais possuem o
colorido inconcebível, não mais os vejo e deles lembro-me. Quase morro de
vergonha de ser humano e com isso sinto-me só. A noite vem e não
adormeço.
No antepenúltimo dia de meu fim, sem dormir mas cheio de pesadelos,
no meio daquela fumaça estagnada e podre como esgoto, que corre ao meu
lado. Não vejo ninguém. Fito bem ao meu redor e não consigo ver nenhum
vulto e pela segunda vez não sinto fragrância feminina.
Olhei e não olharam para mim porque não haviam outros ao meu redor.
Estava nu e não me lembrava da existência de vergonha e sim do frio. Não
fiquei ali nem mais um segundo. Compreendi que ninguém mais viveria
naquela terra de poluição. A vida nômade não me dava alegrias os pomares,
riachos ou cachoeiras, aquela terra queimada não mais os possuía e eu não
mais adorava a vida.
Os minutos se passaram e vi muitos humanos morrendo e os índios ha
muito não existiam. Cansei de ver desentendimentos e já não via crianças
nem animais, mas os adorava. Os últimos segundos estão passando e via
milhões de pessoas morrendo. E a morte veio subitamente e levou-me. O
último a morrer mas o verdadeiro animal
O roçado

O lavrador fere a terra


Tenta encovar sua semente
E a terra a abraça ardente
Com o sangue vai fermentá-la
Por entre os pingos da chuva
Que molha em vão sua ferida
Pra que dali nasça vida
E o plantador arrancá-la

E a natureza observa
Atentamente tal cena
Vai contemplá-lo com pena
De sua família morrer
No monte olimpo prendeu
Assim mil luzes fecundas
Com as energias profundas
Que vão fazê-la nascer

Da terra o gume desponta c


Omo de vênus a manta
Ralhasse pedras do mar
Com tal venida destrói
A sua morada corrói
Pra no horizonte ir bradar

A haste aos poucos se expande


Ergue-se por demais grande
Pra por final vir florir
Na terra d’água rebento
Rouba do ar seu sustento
Esnobe, cresce com amir

Na qual paisagem luzente


E o firmamento inviolável
Nesta clareia imponível
Vindouros vão recordar
Que a purumã do riacho
A taperá come as frutas
Múrmures são nênias muitas
Nas compassadas bicadas
O desmate

A nébula, acúlea engoia


Clareia o cristal do futuro
E a plântula já qual sequoia
Vê préstito o atino da morte
Com passo pesado e forte
Fatal plantador se aproxima
E a mísera árvore inclina
A planta disse indagante
Vede precito agressor
A tua candeia não rubra
Pútridos charcos encuba
No teu carmíneo semblante
Da morte o címbalo cante
Com a qual prócer alevante
Fulmine-o pra mim viver
Sugador ínfimo ser…
Pantera

Nas corredeiras
Salto precipite
Espargiu o vulto
Fulgente rápido
Gotas nas ventas
No faro, a caça
Voa guache
Fifia a lontra
Pia régio
Pavão
Então
Corre
Assaz
Muito
Mais
Fome
Sente
Subitamente
Nutou
Calculando…

O apelo eidético
No furto babélico
Ouviu-se presto
Armou-se a fera
O ímpio obrageiro
Soergueu a lâmina
Num salto esdrúxulo
Lacerou-lhe as costas
Sorriu-lhe a sorte
O machado orbe
Destoando réquiem
O sangue mescla-se
Eivando os corpos
Na terra jaz
O bicho sagaz
O mistério

Vítreo córrego chula


Nas nascentes virginais
Onde homem nem mula
Pisaram em companhias

O velho da aldeia
Letargo mananga
No mesmo momento
Chamou cunhatã
Que toé sagrado
Me fez chegar lá
Na boca do rio
No pé de chibatã
Que fera já morta
Feriu um estranho

Diante da tarde
Revoam os pássaros
No purpúreo céu
E nas serranias
Ainda galopam
Tropeiros fiéis
Aos heris coronéis
No mato sem dono
Descansam os mansos
Que em noite horrifica
Saem os répteis
Inoculados pelo próprio veneno
A chuva

O sol cavalgando
Solveu a neblina
Feliz nas montanhas
As luas passaram
E bem de manhã
A certeza lucilava
Despedindo o desengano
Descerrando os olhos
Viu a formosura da silvícola egéria
O obrageiro desfalecido…

Volve
O vento
Vindo do
Vale
Verde
Faísca
Forte
Fazendo
Fugir
As folhas
Trovão
Toca
Trompa
Trompete
Tambor
Das tabas ninguém sai
Há chuva na mata…
Sem o empastamento
Já forte caminha
No aguaceiro torrente
Lavando as fissuras

Sem aperceber-se
Deu-se no lago
Da cachoeira
Assentou-se quieto
A chuva esvaiu-se
Trazendo-lhe o sono
O sertão

O alforje balançava
Nas ribanceiras… sofria
A perene e íngreme escalada
Um animal que já quase
Aniquilado pela viagem

Não é de ouro
Prata ou diamante
O sonho do campeiro
Já quase no topo
Da terra por sua coragem
Existir

Caindo ao seu lado


Um galho séquido
Ou fez despertar
Sentou assustado
Percebendo o ocorrido
Vendo o ramo boiar…

Num eflúvio fronteiro


Formou-se na mente
O inteligível
Desvendando inteiro
O mistério silente
Da existência o véu…

Nas raízes dos milênios


Vivi aqui nas luzes
Tresjurado nas sombras
Ouvi desmatando
E formando roçado
As folhas da floresta
Laivam os mapas
Da minha história
Com a vida sadia
Da fartura natural…

São das entranhas do barro


A natalícia singularidade
Que me trouxe a vida
Não descobrirás a terra
As folhagens ensilam
A senda da verdadeira integração…

Meus braços fortes


Insculpiram a inópia
O deserto entreabitou
Na paisagem morte-cor
Enunciando a realidade…
Paisagem

No plenilúnio
Cotovia no galho
Guará gemicava
Na relva rórida
Aroeira vermelha
Mostrava o vento

Dos papagaios a balbúrdia


Não fabulam a visão
Nem ouvidos exímios
Dum lacaio mateiro
Na orla do agreste
Longe aos inícios…

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