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Universidade Federal de Minas Gerais - Curso de História

Beatriz Gomes Guimarães - Prova de História Moderna - 17/11/2021


QUESTÃO 1
As grandes cidades europeias são contaminadas pelas prensas rapidamente durante o século
XV, sendo que são instalados 200 ateliês antes de 1500 apenas no Sacro Império Romano. No
próximo século, o mercado de impressos se amplia ainda mais, contando com novas técnicas
que permitiram o barateamento do produto e com uma maior variedade desses.

A expansão do impresso se fez presente nos mais diversos grupos sociais, mesmo que de
forma desigual. Natalie Davis (1991) trata sobre as diversas formas como a palavra impressa
adentrou nas camadas populares, tanto no campo quanto nas cidades. Tendo em vista os
estudos da autora, é possível traçar o contato dessas comunidades com a nova tecnologia e os
impactos que foram deixados.

Entre os camponeses, a autora evidencia as grandes barreiras existentes para a disseminação


da palavra escrita. Entre elas podemos elencar as baixas taxas de alfabetização; os custos para
se adquirir materiais impressos; a língua em que estavam os escritos, já que o meio rural tinha
seus próprios dialetos; a necessidade e o desejo dessa forma da palavra. Entretanto, apesar de
todos esses empecilhos, diversas comunidades camponeses entraram em contato com os
impressos, sendo que Davis aponta para as veillées (reuniões em aldeias francesas, realizadas
entre o dia de Todos os Santos e a Quarta-Feira de Cinzas, em que muitos camponeses
interagiam entre si) como importante meio de encontro com a palavra escrita, principalmente
por meio da leitura em voz alta de livros (DAVIS, 1991, p. 166).

Ademais, eram publicados almanaques de sabedoria tradicional que visavam instruir os


camponeses sobre a ciência agrícola e de previsão do tempo, por exemplo. Apesar de não não
terem alcançado muito sucesso, essas publicações expressam um caráter importante da forma
como os impressos adentraram no meio camponês: o caráter vertical. O contato com os livros
e outros materiais produzidos pela prensa se dava através de vendedores vindos da cidade e os
escritos eram, em sua maioria, produzidos pelas elites urbanas letradas. Assim, diferente do
que veremos acerca da relação do povo citadino com a palavra, os camponeses tinham pouco
espaço e interferência na produção dos escritos.

Além disso, também chegam no mundo rural as bíblias impressas e outros livros de oração.
Tal acontecimento é uma evidência importante dos impactos religiosos causados pela prensa,
apesar de não ter sido muito expressivo entre os camponeses. A autora pontua, de forma
pertinente, que a despeito dos corriqueiros vendedores ambulantes desses produtos religiosos,
o livre exame da bíblia tão pregado entre os protestantes não encontra muito espaço entre os
aldeãos. O Calvinismo se faz presente muito mais por imposição dos nobres sobre seus
servos, do que por apoio aos ideais reformadores, sendo que a nova fé era pouco compatível à
cultura oral e ritualística em que se baseava a vida religiosa dessas comunidades.

Entretanto, apesar de não ter encontrado muito espaço no meio rural, a simples presença
desses vendedores demonstra o enorme impacto da prensa na disseminação da fé protestante,
principalmente entre as elites e o meio urbano. É por meio dos textos sagrados traduzidos para
as línguas vulgares e impressos em grande volume que se faz possível a livre leitura e
interpretação da bíblia, rompendo com o monopólio do saber religioso detido pelo clero
católico. Dessa forma, a nova tecnologia de Gutenberg se torna uma imprescindível aliada do
luteranismo e do calvinismo, cujas doutrinas se estabelecem na leitura individual das
escrituras.

Adentrando, então, nos meios urbanos, são evidentes os inúmeros impactos da impressão. A
própria presença dos ateliês da prensa nas cidades já promove efeitos sociais, ao passo que as
muitas pessoas que participam do processo gráfico estabelecem um enorme contato com a
palavra escrita, sendo que a autora cita a frequente leitura em voz alta nessas oficinas
(DAVIS, 1991, p.176), além dos altos índices de alfabetização desses trabalhadores. Ainda
relativo às implicações sociais, é possível fazer uma associação lógica entre a difundida
presença da palavra escrita e o crescente letramento da população. Davis fala sobre um
estímulo à educação promovido entre os grupos de comerciantes, nas oficinas artesãs
(dependendo muito do tipo de produto artesanal) e até mesmo em orfanatos municipais
(DAVIS, 1991, p.172, 173).

De forma ainda mais impressionante, pode ser visualizada a forma como artesãos, mulheres e
trabalhadores de ofício produziram diversos materiais impressos que liam, como poemas,
contos, questões técnicas do ofício, entre muitos outros. O povo em geral não era um mero
receptor das publicações das elites letradas, pelo contrário, utilizava também da prensa como
instrumento tanto em círculos mais restritos, como para se fazer ouvido politicamente. A
produção escrita esteve disponível para os grupos sociais à margem do poder, dando a eles
chance de tornarem públicas suas várias queixas (sobre questões trabalhistas, a pobreza, a
nobreza, entre muitos outros) (DAVIS, 1991, p.179, 180). Além disso, a disseminação de
panfletos favorecia a maior propagação de notícias e informações, o que contribuía para que a
população se tornasse cada vez mais ciente do quadro político, social e religioso em que
estavam inseridos.

Apesar das inúmeras formas como a prensa permitiu uma certa emancipação da população
comum, permitindo, por exemplo, a destruição do monopólio da Igreja sobre as escrituras, ou
dando voz pública a esse grupo, ela se tornou, essencialmente, um instrumento das elites. As
impressões em larga escala eram bastantes dispendiosas, sendo muitas vezes necessário um
sistema de patronagem, como uma espécie de mecenato aos impressores. Assim, eram os mais
abastados que decidiam o que seria amplamente publicado, determinando também aqueles
textos direcionados ao povo, que podiam ser almanaques de caráter utilitário; alguns textos
religiosos com ilustrações para estabelecer o sentido a ser atribuído à leitura; textos sobre
curiosidades e alguns saberes médicos tradicionais,que traziam novas informações sobre a
saúde que contrariavam o saber popular; e, principalmente, as imagens, que alcançavam
também o grande público iletrado.

Além de se estabelecer na cultura popular, se fazendo presente com leituras orais públicas,
panfletos e ilustrações nos mais diversos ambientes (comuns, religiosos, de ofício, nas
tavernas, entre muitos outros), os impressos também tiveram papel fundamental na cultura e
na atividade social das elites. Os humanistas fazem da prensa um importante instrumento para
a disseminação do movimento intelectual pela Europa, se unindo ainda na “República das
Letras” para estimular a leitura de determinadas obras e compartilhar ideias. É importante ter
em vista, ainda, a contribuição dessa tecnologia para se ampliar o contato dos eruditos com os
mais diversos textos universitários, entre eles os filosóficos, teológicos e de gramática, alguns
dos quais eram utilizados no studia humanitatis, que se estabelece como base do próprio
movimento humanista e que influencia no movimento renascentista.

BIBLIOGRAFIA:

DAVIS, N. Z. “O Povo e a palavra impressa”. In: Culturas do Povo: sociedade e cultura no


início da França Moderna. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990. p. 157-185
QUESTÃO 2

Um renascimento é um movimento múltiplo, tendo ocorrido em várias culturas e em


momentos distintos, sendo caracterizado por elementos comuns às suas diversas
manifestações. Jack Goody (2011) propõe como fundamentos dos renascimentos o olhar para
o passado e a florescência cultural (os avanços e desenvolvimentos). Pensando nessas bases, o
antropólogo coloca a cultura letrada e a prosperidade econômica como essenciais para a
ocorrência desse movimento. A presença da escrita nas sociedades possibilita que antigos
conhecimentos registrados sejam guardados e posteriormente sejam retomados por outros
indivíduos, resgatando ideias, estilos, técnicas e outros mais. Entretanto, o autor acentua que
apenas o retorno ao passado não produz um renascimento, lembrando dos olhares
retrospectivos a escritos tradicionais religiosos que ocorreram em múltiplas culturas e que
proporcionaram um impacto conservador, e não de florescência. Assim, para que haja esse
movimento, é também importante que o retorno de antigos saberes seja utilizado para a
revitalização dos conhecimentos contemporâneos, não sendo uma simples cópia do passado,
mas utilizando esse para promover avanços. Dessa forma, para que ocorra um
desenvolvimento cultural e científico, a existência de um contexto econômico propício se faz
essencial, ao passo que torna disponível uma grande riqueza de materiais e produtos, além de
haver capital excedente para o investimento nas artes e na ciência. Somado a tudo isso,
podemos ainda acrescentar o fato de que o letramento e a riqueza são elementos que permitem
a expansão das novas ideias renascentistas, sendo que o primeiro promove a difusão através
da comunicação escrita, estendendo o pensamento a uma elite alfabetizada, e o segundo ao
estimular o consumo das artes e promover a circulação dos produtos artísticos por meio do
comércio.

Tendo em vista esses elementos definidores dos renascimentos, é possível traçar as


características que contribuíram para a emergência de um caso especial desse tipo de
movimento, a Renascença italiana. Em primeiro lugar, é de suma importância tratar das redes
intensas de comércio que se estabeleceram na península itálica. É em cidades como Veneza e
Florença que as trocas comerciais se estabelecem como elementos básicos do crescimento
econômico que vivenciam, estabelecendo a prosperidade tratada anteriormente. Dessa forma,
a aristocracia (como os Medici) e a Igreja se tornam ricos patrocinadores da florescência
cultural. Outra questão importante, é que a atividade comercial exige habilidades de ler e
escrever, o que faz com que a cultura letrada transponha o meio religioso e adentre ambientes
seculares, secularidade essa que será essencial para a renovação dos saberes, como veremos
adiante. Por fim, o comércio possibilita, ainda, as importantes trocas culturais e intelectuais
com outros povos, principalmente com aqueles que se situam no Mediterrâneo e no Oriente
Médio. Considerando que a Renascença italiana resgata o passado clássico pagão, é
necessário que esses conhecimentos tenham se resguardado junto a algum outro povo, já que
muitas obras já não eram mais encontradas na Europa. Assim, o contato com outras
sociedades que também compartilhavam da herança greco-romana é imprescindível para o
olhar retrospectivo.

É a partir desse redescobrimento de obras clássicas, em especial as gregas, que se estabelece o


Humanismo, movimento essencial para a formação da mentalidade e expressão renascentista.
Os humanistas, através da tradução, leitura e interpretação dos clássicos, introduzem no meio
intelectual italiano e europeu novas linhas de pensamento que estavam atreladas à antiguidade
pagã. Dessa forma, amparado pela revolução da prensa, o conhecimento de autores antigos
interpretado sob perspectiva dos humanistas ganha espaço no mundo das elites letradas e
acaba influenciando inúmeros estudantes, cuja formação secundária passa pela studia
humanitatis.

Dessa maneira, ainda é possível atrelar a disseminação dessas obras clássicas e não cristãs ao
aumento da secularização do pensamento. Em contato ainda maior com culturas pagãs, abre-
se espaço para questionar as acepções católicas que dominavam diversas áreas do saber.
Assim sendo, o conhecimento ultrapassa os objetivos de estudo do transcendental, e os
intelectuais passam a se debruçar sobre novos assuntos e concepções diferentes das religiosas.

Portanto, pode-se dizer que a emergência da Renascença italiana se deve ao contexto de


riqueza e intercâmbio presente na península; associado, ainda, às importantes redes de
comunicação viabilizadas pela prensa e pela urbanidade que possibilitaram a introdução do
pensamento clássico renovado nos meios acadêmicos e letrados. A esta conjectura, se pode
somar, também, a secularização do conhecimento, premissa básica para a florescência de
novos saberes.

Tendo atentado para as características do surgimento desse movimento italiano, é necessário


dissertar também sobre o papel dos artistas na Renascença. São esses importantes indivíduos
que incorporaram e se tornaram expoentes da mentalidade renascentista. Suas obras
apresentam a interação entre a antiguidade e a tradição cristã, imbuídos em grande renovação
técnica.

Ao tratar sobre o artifex, André Chastel (1991) enfatiza o papel social que assumem. Estes
indivíduos estavam a serviço da clientela, atrelados aos laços contratuais e jurídicos, além de
serem dependentes das estruturas das corporações de ofício. Apesar das inúmeras amarras,
muitos encontravam espaço para expressar a individualidade e, em raros casos, a genialidade.
Era na figura do artifex polytechnes que se congregavam inúmeras e diversas habilidades
artísticas, como a pintura, escultura, arquitetura e decoração, formando, assim, um homem
renascentista único. Dessa forma, carregando em si as reformadas capacidades técnicas e
apresentando em suas obras caráter matemático e científico, junto a personagens mitológicos
ou novas formas de representar imagens cristãs, os (poucos) distintos artista se destacam do
artesão e promovem uma arte cada vez mais valorizada (principalmente de forma comercial),
assim como seu papel na sociedade: se torna glorioso e estimado.

BIBLIOGRAFIA:

CHASTEL, André. “O Artista”. In: GARIN, Eugenio (dir.). O Homem renascentista. Lisboa:
Presença, 1991. p. 171-190

GOODY, Jack. “As renascenças foram apenas europeias?” In: Renascimentos: um ou muitos?
São Paulo: Unesp, 2011. p. 283-320

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