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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


HISTÓRIA MODERNA

Trabalho acerca do “Tratado sobre a tolerância” de


Voltaire
Beatriz Gomes Guimarães

Belo Horizonte
2022
O trabalho tem como foco o “Tratado sobre a Tolerância” (1763) de Voltaire, sendo utilizado
a tradução de Ana Luiza Reis Bedê publicada em 2017 pela editora Martin Claret. A análise
da obra visa abarcar o contexto histórico, as relações de poder e ideias iluministas que podem
ser visualizados no livro, como a formulação de uma nova compreensão da razão e a
discussão acerca da democratização do saber.
O protagonista desse trabalho, o Príncipe das Luzes, foi, como o próprio nome já diz,
uma figura de destaque no Iluminismo europeu. François-Marie Arouet (1694 - 1778), de
pseudônimo Voltaire, nasceu em Paris e era filho de tabelião. Tendo consagrado-se como
escritor, membro da alta burguesia, o autor se dedica a diversos gêneros textuais, desde peças
de teatro e poemas épicos, até ensaios, contos filosóficos e panfletos.
Apesar de ter lançado-se a discussões de Filosofia em suas obras, John Gray (1999, p.
8) aponta para a fala de originalidade de Voltaire nessa área, estando seu pensamento
ancorado nas ideias de John Locke e Pierre Bayle. A despeito das contribuições na teoria
filosófica, Arouet se estabelece como importante crítico de seu tempo, apontando para o
caráter supersticioso e fanático das visões teocêntricas, além de propor incessantemente o uso
da razão para o combate de ideias infundadas (talvez por isso seus contemporâneos tenham o
taxado de cético).
São esses seus julgamentos e avaliações, por vezes ácidas e desdenhosas, que fizeram
dele um agitador público (Lopes, 2017). Assim, suas ideias um tanto afrontosas para a
mentalidade e o sistema da época serviram como ingresso para as suas estadias na bastilha e
para, então, se exilar na Inglaterra, onde deslumbrou-se com um convívio mais tolerante no
quesito religioso do que aquele que encontrava na França. Beneditti (2011, p. 22) apresenta
essas perseguições como importante elemento para se tratar da frequência com que Voltaire
trata do tema da intolerância. A autora explica que para viabilizar o projeto voltairiano de
reconstrução do saber, estabelecendo-o sobre bases racionais e empíricas e protegendo-o da
cegueira do fanatismo, é necessário uma maior tolerância de ideias, que permita o
florescimento de novos pensamentos, como os iluministas. Além de que a própria intolerância
se assenta sobre vertentes extremistas e sem respaldo racional ou rigoroso, como Arouet
aborda em seu tratado.
Ainda que o Príncipe das Luzes tenha sofrido com a inimizade de alguns poderosos, é
importante frisar que ele se fez frequente nas cortes francesa, graças à Madame de
Pompadour, e de Frederico, o Grande, da Prússia (Gray, 1999. p 13). As relações com a
nobreza e com o poder régio se tornam visíveis também quando Voltaire envia exemplares do
Tratado sobre a Tolerância para essas duas figuras citadas anteriormente, além dos ministros
de Estado da França e de príncipes da Alemanha ( Pomeau, 2000. p. xix).
O livro em questão é impresso em Genebra pelos irmãos Cramer (Pomeau, 2000. p.
xix) e, mesmo que algumas algumas cópias tenham sido endereçadas para grandes
personalidades, o tratado estava especialmente voltado para o grande público. Bedê (2017, p.
10) aponta para o título sucinto, para o pequeno tamanho da obra e para a clareza e
simplicidade de sua linguagem como indicadores do objetivo de Voltaire de divulgar o tratado
entre as massas. Ademais, a autora enfatiza o estado de clandestinidade em que o livro estava
na França, tendo sido difundido, logo após a sua publicação, no formato in-oitavo e sem
apresentar o nome do autor. Junto a isso, René Pomeau salienta os “[...] ditos espirituosos e
que apelam, no final, para a emoção” (Pomeau, 2000. p. xxii), de forma a atrair e influenciar o
público.
Embora o autor utilize desses apelos emotivos, são suas estratégias argumentativas
que recebem destaque na obra. Assim, Voltaire discute e critica os discursos intolerantes,
analisando e desconstruindo o embasamento bíblico que utilizam. É empregado também
contra-argumentos e réplicas, que antecipam os questionamentos e detalham melhor suas
ideias. Por fim, apresenta o tema da intolerância em outras culturas e momentos históricos, de
forma a propor comparações com a Europa.
O livro de Voltaire não pode ser entendido dissociado de seu contexto histórico. As
oito guerras de religião que varrem a França são um bom ponto de partida para se
compreender a intolerância e o poder monárquico desse reino. Liebel (2021) nos fala que o
domínio francês se encontrava fragmentado diante do conflito de múltiplos grupos de
poderosos, associados à uma confissão específica, que faziam frente à monarquia. O quadro
de diversidade religiosa e de disputas para que outras fés tivessem espaço esbarrava, no
entanto, no lema da coroa: “uma fé, uma lei, um rei”. Tratava-se de um problema que atingia
as estruturas de uma autoridade que se assentava no catolicismo; além de poder representar
uma afronta a Deus tolerar tamanhas heresias. Após cercos, massacres e tentativas de
regicídio, Liebel (2021) aponta que é a monarquia que sai triunfante, sendo reconhecida a sua
capacidade de ordenar o reino. É, claro, uma monarquia católica, que não deixa de
estabelecer restrições aos protestantes; apesar disso, estabelece-se o Edito de Nantes, uma
“trégua” aos huguenotes, que passam a ter liberdade de culto, entendendo-se que o ambiente
privado poderia abarcar diferentes confissões se os costumes e as leis do reino fossem
respeitados. Entretanto, já que toda trégua tem seu fim, o refolgo dos protestantes não dura
muito quando o Rei Sol ascende ao poder. Luís XIV e sua imagem imponente ofuscam o
reino e promovem uma dominação sem precedentes que se estende até as consciências. As
ideias de Norbert Elias (1993) se apresentam com as tentativas de impor uma cultura e
civilidade à população e aos súditos. Liebel (2021) descreve uma marcha disciplinadora que
remodela os costumes e os pensamentos, não deixando de fora a religião. Em esforços de
perseguição e criminalização daqueles que se distinguem do plano mental e cultural da coroa,
os protestantes voltam a ser cerceados, tendo que lidar com múltiplas proibições e conversões
forçadas. A coroação desse processo se dá com a revogação do Edito de Nantes e a assinatura
do Edito de Fontainebleau, proibindo confissões diferentes daquela do rei. As reivindicações
do Tratado de Voltaire se dão, assim, em uma França tradicionalmente intolerante, marcada
por conflitos de religião e pela prescrição dos protestantes.
Traçando, agora, o imediato ambiente da obra, nos deparamos com o caso da família
Calas, que o próprio usa como ponto inicial para as suas discussões. O acontecimento em
questão se passa no ano de 1762, em Toulouse. Resumidamente, essa família protestante foi
acusada de matar um de seus membros, o filho Marc-Antoine, por querer se converter ao
catolicismo, sendo que diversos vestígios apontam para um suicídio e não para um homicídio.
Assim, diante da fatalidade,o povo de Toulouse passou a apontar aos gritos para Jean Calas, o
pai da família, como o assassino, auxiliado pela mãe; pelo irmão, Pierre Calas; pelo amigo do
falecido, Lavaisse; e pela criada católica. Diante do furor popular, os magistrados
responsáveis por julgar o caso acabaram, em sua maioria, influenciados pelas manifestações
enérgicas das massas, ao mesmo tempo que foram tomados pelo sentimento religiosos em um
período de tensões e opressões com os reformados. Jean Calas é, então, condenado à roda;
entretanto, os outros envolvidos, que deveriam ser punidos com rigorosidade proporcional,
acabaram tendo suas penas atenuadas. Assim, fica evidente que os juízes perceberam o erro
quando o pai manteve-se firme quanto a sua inocência, mesmo diante das torturas. Mas, os
magistrados não souberam reconhecer a falha, de forma que o caso foi parar na mais alta
corte do reino. É em meio às discussões que formam o quadro imediatamente anterior ao
resultado do julgamento em última instância que Voltaire publica seu livro, demonstrando o
caráter agitador da obra (Bedê, 2017. p. 10).
Essa primeira descrição, ainda no primeiro capítulo do tratado, deixa evidente algumas
das principais críticas e objetivos de Voltaire presentes nesse livro. Em primeiro lugar, pode
ser visualizado a opinião do autor quanto às massas populares, especialmente de Toulouse.
Arouet toma o povo como fanático, irracional e superticioso, sendo que passam, até mesmo, a
considerar Marc-Antoine um santo. Além disso, rejeita rigorosamente a postura parcial e
influenciável dos juízes, que ocorre mesmo “em um tempo em que a filosofia faz tantos
progressos”, nas palavras de Voltaire (p. 19). Dessa maneira, o tratado objetiva, entre outras
coisas, criticar esses comportamentos e, de certa forma, promover a instrução de seu público
(que não necessariamente coincide com essa massa “insensata”, como veremos mais tarde),
trazendo uma análise racional sobre a tolerância; além dos claros objetivos publicitários da
obra, que visa convencer a população em prol da absolvição dos Calas e pressionar as
autoridades responsáveis pelo caso.
Ingressando definitivamente na argumentação do autor, nos deparamos com severas
críticas à Igreja Católica e à cruel perseguição encabeçada por certos monarcas da França, já
nos capítulos II e III. As confrarias são apontadas como, muitas vezes, danosas à sociedade,
ao passo que promovem a segregação e são tomadas pelo entusiasmo. Essas críticas são
visualizadas no caso Calas, em Marc-Antoine, mesmo tendo morrido calvinista, se torna um
mártir, do qual são tiradas até mesmo relíquias; além de alguns magistrados que faziam parte
dos penitentes brancos, se submetendo a uma autoridade fanática. Já no terceiro capítulo,
Voltaire ataca a moralidade de papas que possuíam bastardos e traficavam indulgências, além
das pilhagens e dos lucros com o purgatório obtidos pelo alto clero. Ademais, o autor destaca
a barbárie que tomou a França na luta contra os valdenses e huguenotes, acentuando a
crueldade com que a própria coroa combateu esses hereges.
É em meio a esses relatos sobre as guerras civis religiosas que Arouet propõe uma de
suas teses: não é a tolerância que leva à desordem. Fora os evidentes conflitos que a
intolerância proporciona, o autor enfatiza que a própria liberdade de consciência pode trazer
benefícios à monarquia, como os impostos obtidos de grandes fortunas protestantes, ou das
colheitas de camponeses antes perseguidos (Voltaire, 2017. cap. V). Voltaire afirma, no
capítulo XI, que a ordem depende dos comportamentos em conformidade com os costumes do
reino, e não da fé de cada um. Por fim, ainda concernentemente à paz, o autor inicia uma
argumentação que se estenderá por mais vários capítulos: a comparação da França com outras
sociedades. Gregos, romanos, judeus, ingleses, chineses, entre muitos outros, são empregados
para demonstrar tanto a viabilidade de tolerância, quanto a rudeza e a ignorância que tomaram
partes da Europa. Junto a isso, penso que, ao abordar a situação desses outros povos, Voltaire
constrói aos poucos a noção de tolerância universal, desestruturando a crença de uma
gigantesca superioridade europeia; sem, é claro, tirar do catolicismo o exclusivo papel de
religião divina.
Em hora nenhuma o autor abre mão de acentuar a verdade de que a doutrina católica e
seus dogmas são portadores. Ao tratar dos direitos naturais dos perseguidos, isso se torna
evidente. Ao mesmo tempo que Arouet reivindica direitos civis para essa população, como o
casamento, a legitimação dos nascimentos, a propriedade e a liberdade de consciência, ele não
reclama pelo livre acesso à cargos e instituições, ou por templos e manifestações públicas, por
exemplo, destacando ainda o caráter herético dessas crenças. Desse modo, Voltaire torna
inquestionável a primazia do catolicismo, o que pode ser um indício tanto das suas crenças
pessoais e atreladas à mentalidade da época, quanto das relações de força presentes no
contexto em que ele estava inserido. Para não ser morto ou perseguido nesse reino de fé única
e ,ao mesmo tempo, ser escutado pelas massas e autoridades, se fazia necessário reiterar a
todo tempo a sacralidade dos dogmas e promover reivindicações plausíveis ao quadro de
grande intolerância.
Diante desse grande valor que o autor atribui ao catolicismo, seus argumentos não
poderiam deixar de utilizar as escrituras sagradas. Para além das refutações dos discursos dos
perseguidores, estabelecidos sobre textos bíblicos utilizados de forma descontextualizada e
pouco rigorosa, Voltaire faz uso dos ensinamentos do Cristo e do Novo Testamento para
justificar a tolerância. Os discípulos de Jesus, mesmo com suas diferenças doutrinárias, se
respeitavam e se amavam. As palavras do FIlho de Deus eram de indulgência e benevolência,
sendo afirmado que: “se querem parecer com Jesus Cristo, sejam mártires, e não carrascos”
(Voltaire, 2017. p. 70).
Em outra parte de sua análise, Arouet comenta sobre as superstições e falsas lendas.
Primeiramente, em uma análise religiosa, afirma que as fábulas católicas põem em risco a
própria fé, colocando em dúvida os verdadeiros milagres. Assim, abre espaço para o debate
em torno da razão, a qual floresce os espíritos do povo e esclarece os fanáticos. É tratado,
ainda, das superstições não católicas, que não chegam a ser mais danosas que o ateísmo e o
ódio aos irmãos apenas pela discordância de opiniões. Sobre essa última frase, é importante
ter em vista um dos objetivos do autor com a obra: tratar sobre a liberdade de ideias, não
apenas da liberdade religiosa. Dessa forma, como foi dito no início deste trabalho, essa
proposta serve ao pensamento iluminista e às próprias ideias de Voltaire, clamando por
espaço e não por censura.
Por fim, a partir dos pós-escritos, encontramos o desfecho do caso dos Calas, em que
foi determinada a inocência desses. A descrição do ocorrido não se dá sem que o autor tenha
dirigido aos responsáveis pelo julgamento e ao rei inúmeros elogios. Tais exaltações podem, é
claro, serem frutos das ações em consonância com a justiça, mas o teor desses enaltecimentos
(como em: “o rei, por essa bondade, mereceu, como por tantas outras ações, o epíteto que o
amor da nação lhe atribuiu” p. 103) abre caminho para a análise de mais uma relação de
poder. As liberdades de opinião e expressão não podem ser aplicadas quando o assunto é o
monarca.
Após analisar o contexto histórico e as relações de força presentes nesse quadro, é
importante traçar também a configuração do mundo iluminista que tomava lugar no século
XVIII e, assim, promover uma compreensão mais profunda do tratado de Voltaire.
Em primeiro lugar, é necessário ter em vista as transfigurações mentais que ocorrem
entre os eruditos. O próprio significado da palavra razão se modifica do século XVII para o
XVIII, de acordo com Ernst Cassirer (1992). Esse autor assegura que esse termo passa a ser
empregado de forma a designar uma força empregada para conhecer o mundo e a si mesmo,
sendo assim um movimento para se adquirir o saber, e não mais a simples acumulação de
conhecimento. Dessa forma, a sede pelo saber é tida como um direito natural pela maioria dos
iluministas, que deve ser promovido, de acordo com Kant (1783), mediante uma certa
liberdade de expressão.
Outro ponto importante da análise de Cassirer se refere às mudanças nos métodos para
conhecer. O Século das Luzes promove, com as ciências da natureza e as contribuições de
Hume, uma revisão do método dedutivo, em que a dinâmica do saber se dava a partir de uma
ideia inata, inquestionável, e eram estabelecidos pressupostos com base nessa afirmativa.
Assim, era formada uma cadeia de deduções que só poderiam ser compreendidas junto aos
elos a que se ligavam. O século XVIII, então, critica o uso de algumas presunções como
verdades absolutas, ou como dogmas, da forma como D'Alembert propõe (Cassirer, 1992. p.
26). Kant relaciona muito bem essa questão ao próprio conhecimento teológico. O filósofo
prussiano critica o caráter imutável imputado às doutrinas religiosas, em especial, a católica.
Assim, afirma que essa incontestabilidade fere a razão e o progresso humano, impedindo que
os homens exerçam avaliações e exames, que são inerentes ao seu esclarecimento. Por fim,
essa invariabilidade doutrinária também é questionada por Voltaire, que sustenta a
impossibilidade de todos concordarem sobre a metafísica, contrastando com as verdades da
geometria, já que toda a experiência as comprova. Assim, o autor francês abre espaço para a
tolerância religiosa ao admitir que podem ser aceitas diferentes confissões, já que são
pressupostos dificilmente comprováveis pelo método indutivo, que exige testes e provas. A
visão de Voltaire acena para a possibilidade de fés individuais, que não podem ser entendidos
como fatos ou ideias inatas, mas sim como crenças.
Entretanto, apesar dessa base praticamente comum entre os iluministas, o Século da
Razão também foi marcado por uma dicotomia no seu próprio seio intelectual. Jonathan Israel
(2013) opõe duas vertentes do Iluminismo: a radical e a moderada. O primeiro defende
intensas reformas, propondo igualdades jurídicas e um sistema de governo democrático. Junto
a isso, levantam a ideia e o plano de esclarecer a todos, sem distinção. A segunda vertente se
opõe diametralmente a essa outra, sendo caracterizada pelo tradicionalismo. Se amparando no
status quo, os moderados sugerem mudanças pequenas e que não alterem a estrutura da
sociedade. Dessa forma, se tornava mais fácil obter o apoio da classe dirigente. Portanto, esse
grupo mais tradicionalista propunha esclarecer apenas uma minoria; é a providência divina
que comanda o progresso, o esclarecimento de todos deve ser regulado pelo fluxo natural das
coisas. Israel afirma, assim, que Voltaire era um exímio participante do Iluminismo
moderado, o que pode ser discutido quando se tem em vista a publicação e a produção do
Tratado sobre a Tolerância, que foram feitas visando uma grande dispersão desses escritos
entre a população. No entanto, apesar do Príncipe das Luzes dialogar com um público menos
intelectualizado, isso não significa que ele tenha uma visão mais igualitarista; a obra visa,
sobretudo, uma minoria letrada.
A teoria de Kant (1783) pode servir para uma melhor compreensão dessa situação. De
acordo com o filósofo, o uso da razão, a liberdade de expressão, deve se dar no meio público,
ou seja, o espaço de raciocínio deve estar limitado à escrita. Em uma proposta bastante
tradicionalista, esse autor afirma que a criticidade não deve ser de uso privado, desempenhado
nos postos civis, por exemplo. Nos cargos de submissão hierárquica, ou de interesse da
coletividade, é a passividade que deve reinar, e não a racionalidade. Assim sendo, é a partir
dos escritos que os sábios devem se expressar e incentivar o esclarecimento ao seu público. O
progresso da sociedade, que resulta da saída da minoridade da sua população, conta com o
esforço dos eruditos voltado apenas para os letrados. Isso se deve ao fato de que o
esclarecimento é um processo natural e gradual, que depende simplesmente do esforço de
cada um e da liberdade de raciocinar (que é limitada, como vimos). O autor ainda acrescenta
que não há perigos nessa liberdade; enquanto o monarca cumprir o seu papel de estabelecer a
ordem e o respeito aos costumes mediante um exército preparado, todos podem “raciocinar o
quanto quiserem e sobre o que desejarem” (Kant, 1783. p. 8).
Não podemos, assim, deixar de relacionar o pensamento de Kant às propostas de
Voltaire. A falta de esforço para promover uma saída igualitária da menoridade também se faz
presente nos escritos do francês. As massas de Toulouse são tidas como são tidas como
supersticiosas e coléricass (Voltaire, 2017. p. 17 ), culpados pelo assassinato de Jean Calas.
Ao mesmo tempo, a população de Paris (por suposto mais letrada), se compadece com a
vítima. Além disso, apesar de dizer que as autoridades estão erradas em perpetuar
superstições, a sua solução para isso não é educar e promover a democratização do saber,
levando-os a maioridade, mas apenas sugerir aos religiosos que parem de encobri-los com
irracionalidades. É a partir da liberdade, que permite que a razão adentre o reino, que a
população é esclarecida; sempre no seu tempo e de forma natural, como algo que
“desabrocha” (Voltaire, 2017. p. 84). O progresso e a tranquilidade da sociedade decorrem,
assim, da proteção da liberdade e dos costumes pelo monarca (Voltaire, 2017. cap. V). É
evidente que essa liberdade de expressão de Voltaire é limitada pelo seu tradicionalismo, o
esclarecimento e o progresso são desejados, mas de forma gradual.

REFERÊNCIAS:
BEDÊ, Ana Luiza Reis. Prefácio. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São
Paulo: Martin Claret, 2017. p. 7-11.
BENEDETTI, Priscila Sansone. Pela legitimação da tolerância: uma leitura da
obra Tratado sobre a Tolerância de Voltaire. 2011. 80 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992. p.
19-50.
ELIAS, N. Sugestões para uma teoria de processos civilizadores. In: O Processo
Civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993. Vol. 2: Formação do Estado e civilização. p. 193-
207.
GRAY, John. Voltaire: Voltaire e o iluminismo. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
Tradução de: Gilson César Cardoso de Souza.
ISRAEL, Jonathan. A Revolução das Luzes. O Iluminismo radical e as origens
intelectuais da Democracia moderna. São Paulo: EDIPRO, 2013. Cap. I, p. 15-43.
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?. 1783.
LIEBEL, Silvia. Frondas e a construção de Luís XIV copy, 2022. Apresentação de
powerpoint.
LIEBEL, Silvia. Guerras de religião ERE, 2021. Apresentação de powerpoint.
LIEBEL, Silvia. O Processo Civilizador ERE, 2021. Apresentação de powerpoint.
LOPES, Marcos Antônio. Voltaire Político: espelhos para príncipes de um novo
tempo. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017.
POMEAU, René. Introdução. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância: a
propósito da morte de Jean Calas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. VII-XXXI.
Tradução de: Paulo Neves.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martin Claret, 2017.
Tradução de Ana Luiza Reis Bedê.

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