É corrente em bancas de defesa de dissertação de Mestrado e de
tese de Doutorado ouvir um avaliador argumentar ao mestrando ou doutorando que “teria sido interessante que você tivesse considerado em seu trabalho este ou aquele tema, pois isto teria contribuído muito para que pudéssemos aprender mais sobre o seu tema”. E continua, em muitos casos, “E para isto tais e tais autores ou teorias seriam fundamentais. O que foi considerado está aceitável, mas o seu estudo não dá conta do seu objeto”.
Estas duas observações são problemáticas e, ao mesmo tempo,
inscritas em uma mesma matriz teórica, partindo do ponto de vista de que é possível “dar conta do real” e que outro caminho teria sido interessante ou mais interessante; pelo menos para o avaliador. As duas observações estão inscritas em uma perspectiva, segundo Mary 1 Jane Spink , denominada empiricismo ontológico, a qual se opõe à perspectiva do construcionismo epistemológico.
A primeira perspectiva parte da ideia, intimamente calcada no
empiricismo, de que o real se dá a conhecer e que o que devemos fazer é apreendê-lo com os nossos sentidos e informações obtidas com base em diversas fontes. É possível, segundo esta perspectiva, dar conta do real e um bom pesquisador pode realizar esta tarefa.
1 Linguagem e Produção de Sentidos no Cotidiano. Porto Alegre, Editora da PUC-RS, 2003.
Isto não é verdadeiro e outro avaliador poderia argumentar pela necessidade de ir por outro caminho, com outros autores e quadros teóricos. Deixando de lado um certo caráter exibicionista do avaliador, que desse modo exibe experiência e erudição, esta argumentação deixa o mestrando ou doutorando sem resposta ou leva-o a uma resposta evasiva, quem sabe dizendo que isto ficará para uma pesquisa futura. Este argumento, por outro lado, está calcado na pretensão positivista de abarcar o real e, ao mesmo tempo, reconhece a impossibilidade de assim fazer.
A perspectiva do empiricismo ontológico associa-se à ausência de
uma problemática [teoria + empiria] no projeto de pesquisa que resultou no trabalho de conclusão, de questionamentos/objetivos derivados da relação entre a problemática e o empírico e em um conhecimento fragmentado, em diversas direções, e em uma fraca base em metodologia da pesquisa, epistemologia em geral e teorias sobre a organização ou produção do espaço. A pobreza de leituras acompanha, via de regra, os estudos realizados nesta perspectiva. As narrativas cronológicas ou recorrência excessiva ao passado também acompanham tais estudos.
A segunda perspectiva, o construcionismo epistemológico, parte
da ideia de que o conhecimento produzido constitui uma construção intelectual [situado no tempo e no espaço], envolvendo relações muito complexas entre sujeito e objeto do conhecimento [contexto]. Há uma relação de mão dupla entre ambos e o resultado é dinâmico, passível de mudanças porque ambos, sujeito e objeto, mudam ao longo do tempo.
Na perspectiva em tela, o conhecimento deriva do esforço do
pesquisador em interpretar o objeto que o informa, mas que não se dá a conhecer em sua plenitude. A problematização parece ser o ponto de partida. Por que o objeto nos incita a que nós o interpretamos, decodificando-o, tornando-o inteligível? A problemática deriva da nossa capacidade em ressaltar, enfatizar, um aspecto que à luz de uma referência teórica nos pareça importante para a inteligibilidade do objeto. Um aspecto social, político ou econômico [cultural e ambiental] pode ser o ponto de partida para a problematização, mas este necessita de um fundamento teórico para que esteja completo. Sem teorias, por mais incompletas ou pouco estruturadas que sejam, não é possível produzir sem que caiamos no senso comum. É necessário que nos situemos no âmbito do conhecimento científico, qualquer que seja a matriz que sustente a teoria.
Ao construir a problemática, estamos selecionando alguns
aspectos e deixando outros de lado. É uma separação de aspectos julgados relevantes e não o seu isolamento. Consideramos que os aspectos separados, e não isolados, fazem parte de um conjunto misto maior e mais complexo que dispõe, entre outras, de duas propriedades: interrelação e, simultaneamente, relativa autonomia. Interrelação e relativa autonomia são propriedades de todos os processos e formas da natureza e construídos pela sociedade. São propriedades de qualquer formação material. É possível, assim, separar a cada processo ou forma, cada objeto de nossa pesquisa, sem isolá-lo. A partir dessa problemática passamos a dar inteligibilidade ao objeto de nossa pesquisa, articulando o conhecimento a ser produzido com outros aspectos do mesmo objeto, integrando-o aos demais aspectos. Assim, a pergunta feita pelo avaliador da dissertação ou tese só faz sentido porque ele quer mais, porque não consegue separar aspectos, não acredita na relativa autonomia de cada processo ou forma, admitindo uma integração absoluta dos diversos aspectos do objeto pesquisado.
Devemos reconhecer, contudo, que a problematização constitui
uma tarefa difícil, complexa e árdua. Primeiro porque cada objeto pode ser problematizado por meio de vários caminhos, não havendo uma única possibilidade de problematizá-lo. Em segundo lugar, porque a problematização pressupõe um conhecimento prévio do objeto, conhecimento frágil, incompleto e inconsistente, com inúmeras lacunas e dúvidas. Em terceiro lugar, porque a problematização pressupõe uma base teórica, tanto em escala mais ampla, da sociedade ou do urbano, da economia ou da política [do cultural, do ambiental], como em uma escala menor a respeito do objeto da pesquisa, por exemplo, a teoria dos lugares centrais, ou do uso da terra, da localização industrial, dos movimentos sociais [da problemática ambiental], etc.
Sensibilidade e imaginação geográficas são ingredientes
importantes na construção da problemática. E nisto há uma razoável dose de individualidade, pois o construcionismo epistemológico não se constitui em uma receita de bolo. Reconheçamos que os geógrafos mais importantes têm ou tinham forte sensibilidade e imaginação geográficas e souberam colocá-las em prática. Mas é possível escrever uma dissertação ou tese correta, bem elaborada, com dose mínima de sensibilidade e imaginação.
Com base na problemática constroem-se os questionamentos, isto
é, as perguntas que fazemos ao nosso objeto de investigação. Eles derivam da problemática e são seletivos, calcados na problemática e limitados a ela. É com base nestes questionamentos que iremos efetivamente estabelecer os procedimentos operacionais de nossa pesquisa, envolvendo, por exemplo, a seleção de dados estatísticos, modelos de questionários, uso de imagens e elaboração de mapas. Enfatizemos que há um fio condutor articulando problemática, questionamentos e procedimentos operacionais, e que esta articulação é construída.
O construcionismo epistemológico permite ao pesquisador
construir a sua interpretação do espaço geográfico, construção esta, assinada e datada, que combina o individual e o social, isto é, o trabalho do pesquisador tem a sua marca, mas esta se inscreve na produção intelectual geral, da ciência, e particular, do campo específico do conhecimento. Assim, a produção é social, dela em parte dependendo, sendo impossível a um pesquisador produzir algo fora do contexto geral e particular, quer dizer, social. O universal, o particular, o individual e o singular estão presentes no construcionismo epistemológico, manifestando-se na produção individual. Difere assim da perspectiva calcada no empiricismo ontológico e de sua dupla crença, a da capacidade do objeto exibir em sua plenitude os seus atributos, e a do pesquisador, onisciente, apreendê-los também plenamente. E isto está presente em muitos mestrandos e doutorandos, assim como em muitos orientadores e avaliadores. Em realidade, ninguém está imune a isto, mas é preciso fazer um esforço para romper com o empiricismo ontológico.