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EMPIRICISMO ONTOLÓGICO E CONSTRUCIONISMO

EPISTEMOLÓGICO – UMA NOTA


Roberto Lobato Corrêa
PPGG/UFRJ
NEPEC/UERJ

É corrente em bancas de defesa de dissertação de Mestrado e de


tese de Doutorado ouvir um avaliador argumentar ao mestrando ou
doutorando que “teria sido interessante que você tivesse considerado
em seu trabalho este ou aquele tema, pois isto teria contribuído muito
para que pudéssemos aprender mais sobre o seu tema”. E continua, em
muitos casos, “E para isto tais e tais autores ou teorias seriam
fundamentais. O que foi considerado está aceitável, mas o seu estudo
não dá conta do seu objeto”.

Estas duas observações são problemáticas e, ao mesmo tempo,


inscritas em uma mesma matriz teórica, partindo do ponto de vista de
que é possível “dar conta do real” e que outro caminho teria sido
interessante ou mais interessante; pelo menos para o avaliador. As
duas observações estão inscritas em uma perspectiva, segundo Mary
1
Jane Spink , denominada empiricismo ontológico, a qual se opõe à
perspectiva do construcionismo epistemológico.

A primeira perspectiva parte da ideia, intimamente calcada no


empiricismo, de que o real se dá a conhecer e que o que devemos fazer
é apreendê-lo com os nossos sentidos e informações obtidas com base
em diversas fontes. É possível, segundo esta perspectiva, dar conta do
real e um bom pesquisador pode realizar esta tarefa.

1 Linguagem e Produção de Sentidos no Cotidiano. Porto Alegre, Editora da PUC-RS, 2003.


Isto não é verdadeiro e outro avaliador poderia argumentar pela
necessidade de ir por outro caminho, com outros autores e quadros
teóricos. Deixando de lado um certo caráter exibicionista do avaliador,
que desse modo exibe experiência e erudição, esta argumentação deixa
o mestrando ou doutorando sem resposta ou leva-o a uma resposta
evasiva, quem sabe dizendo que isto ficará para uma pesquisa futura.
Este argumento, por outro lado, está calcado na pretensão positivista
de abarcar o real e, ao mesmo tempo, reconhece a impossibilidade de
assim fazer.

A perspectiva do empiricismo ontológico associa-se à ausência de


uma problemática [teoria + empiria] no projeto de pesquisa que
resultou no trabalho de conclusão, de questionamentos/objetivos
derivados da relação entre a problemática e o empírico e em um
conhecimento fragmentado, em diversas direções, e em uma fraca base
em metodologia da pesquisa, epistemologia em geral e teorias sobre a
organização ou produção do espaço. A pobreza de leituras acompanha,
via de regra, os estudos realizados nesta perspectiva. As narrativas
cronológicas ou recorrência excessiva ao passado também
acompanham tais estudos.

A segunda perspectiva, o construcionismo epistemológico, parte


da ideia de que o conhecimento produzido constitui uma construção
intelectual [situado no tempo e no espaço], envolvendo relações muito
complexas entre sujeito e objeto do conhecimento [contexto]. Há uma
relação de mão dupla entre ambos e o resultado é dinâmico, passível de
mudanças porque ambos, sujeito e objeto, mudam ao longo do tempo.

Na perspectiva em tela, o conhecimento deriva do esforço do


pesquisador em interpretar o objeto que o informa, mas que não se dá
a conhecer em sua plenitude. A problematização parece ser o ponto de
partida. Por que o objeto nos incita a que nós o interpretamos,
decodificando-o, tornando-o inteligível? A problemática deriva da
nossa capacidade em ressaltar, enfatizar, um aspecto que à luz de uma
referência teórica nos pareça importante para a inteligibilidade do
objeto. Um aspecto social, político ou econômico [cultural e ambiental]
pode ser o ponto de partida para a problematização, mas este necessita
de um fundamento teórico para que esteja completo. Sem teorias, por
mais incompletas ou pouco estruturadas que sejam, não é possível
produzir sem que caiamos no senso comum. É necessário que nos
situemos no âmbito do conhecimento científico, qualquer que seja a
matriz que sustente a teoria.

Ao construir a problemática, estamos selecionando alguns


aspectos e deixando outros de lado. É uma separação de aspectos
julgados relevantes e não o seu isolamento. Consideramos que os
aspectos separados, e não isolados, fazem parte de um conjunto misto
maior e mais complexo que dispõe, entre outras, de duas propriedades:
interrelação e, simultaneamente, relativa autonomia. Interrelação e
relativa autonomia são propriedades de todos os processos e formas da
natureza e construídos pela sociedade. São propriedades de qualquer
formação material. É possível, assim, separar a cada processo ou
forma, cada objeto de nossa pesquisa, sem isolá-lo. A partir dessa
problemática passamos a dar inteligibilidade ao objeto de nossa
pesquisa, articulando o conhecimento a ser produzido com outros
aspectos do mesmo objeto, integrando-o aos demais aspectos. Assim, a
pergunta feita pelo avaliador da dissertação ou tese só faz sentido
porque ele quer mais, porque não consegue separar aspectos, não
acredita na relativa autonomia de cada processo ou forma, admitindo
uma integração absoluta dos diversos aspectos do objeto pesquisado.

Devemos reconhecer, contudo, que a problematização constitui


uma tarefa difícil, complexa e árdua. Primeiro porque cada objeto
pode ser problematizado por meio de vários caminhos, não havendo
uma única possibilidade de problematizá-lo. Em segundo lugar, porque
a problematização pressupõe um conhecimento prévio do objeto,
conhecimento frágil, incompleto e inconsistente, com inúmeras lacunas
e dúvidas. Em terceiro lugar, porque a problematização pressupõe uma
base teórica, tanto em escala mais ampla, da sociedade ou do urbano,
da economia ou da política [do cultural, do ambiental], como em uma
escala menor a respeito do objeto da pesquisa, por exemplo, a teoria
dos lugares centrais, ou do uso da terra, da localização industrial, dos
movimentos sociais [da problemática ambiental], etc.

Sensibilidade e imaginação geográficas são ingredientes


importantes na construção da problemática. E nisto há uma razoável
dose de individualidade, pois o construcionismo epistemológico não se
constitui em uma receita de bolo. Reconheçamos que os geógrafos mais
importantes têm ou tinham forte sensibilidade e imaginação
geográficas e souberam colocá-las em prática. Mas é possível escrever
uma dissertação ou tese correta, bem elaborada, com dose mínima de
sensibilidade e imaginação.

Com base na problemática constroem-se os questionamentos, isto


é, as perguntas que fazemos ao nosso objeto de investigação. Eles
derivam da problemática e são seletivos, calcados na problemática e
limitados a ela. É com base nestes questionamentos que iremos
efetivamente estabelecer os procedimentos operacionais de nossa
pesquisa, envolvendo, por exemplo, a seleção de dados estatísticos,
modelos de questionários, uso de imagens e elaboração de mapas.
Enfatizemos que há um fio condutor articulando problemática,
questionamentos e procedimentos operacionais, e que esta articulação é
construída.

O construcionismo epistemológico permite ao pesquisador


construir a sua interpretação do espaço geográfico, construção esta,
assinada e datada, que combina o individual e o social, isto é, o
trabalho do pesquisador tem a sua marca, mas esta se inscreve na
produção intelectual geral, da ciência, e particular, do campo específico
do conhecimento. Assim, a produção é social, dela em parte
dependendo, sendo impossível a um pesquisador produzir algo fora do
contexto geral e particular, quer dizer, social. O universal, o particular,
o individual e o singular estão presentes no construcionismo
epistemológico, manifestando-se na produção individual. Difere assim
da perspectiva calcada no empiricismo ontológico e de sua dupla
crença, a da capacidade do objeto exibir em sua plenitude os seus
atributos, e a do pesquisador, onisciente, apreendê-los também
plenamente. E isto está presente em muitos mestrandos e doutorandos,
assim como em muitos orientadores e avaliadores. Em realidade,
ninguém está imune a isto, mas é preciso fazer um esforço para romper
com o empiricismo ontológico.

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