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19 DE ABRIL DE 2024 POR TA D E U B R E D A

Breve história do progressismo antipático


Por Pedro Rocha de Oliveira
Entrevista a Tadeu Breda

Que, diante da ascensão da extrema direta, as forças progressistas e de esquerda brasileira se


transformaram em ferrenhas defensoras da institucionalidade injusta e desigual que vigora
no país — e que até pouco tempo criticavam ferrenhamente —, todo mundo sabe. Mas
ninguém ainda havia explicado esse processo ao grande público como Pedro Rocha de
Oliveira, que está lançando Discurso filosófico da acumulação primitiva: estudo sobre as
origens do pensamento moderno — “um livro do barulho”, segundo Paulo Arantes —, que
chega às livrarias em abril pela Elefante.
O professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) recorre aos
principais pensadores do Renascimento inglês — Francis Bacon, Thomas More e Thomas
Smith, cuja vida e obra destrincha em seu livro — para interpretar o fenômeno que levou à
eleição e à quase reeleição de Jair Bolsonaro, e para entender como Alckmin, Globo e
Alexandre de Moraes se tornaram, repentinamente, aliados do progressismo. Como
resultado, o autor vê uma linha direta entre os ideais que fundaram o capitalismo no século
XVI e a realidade política do Brasil no século XXI.
“Bacon queria agredir o populacho com sua concepção de ciência; More queria submeter as
pessoas comuns involuntariamente a uma engenharia social bizarra. E o que os iluministas
chamavam de ‘povo’ era uma fração da população como um todo: a que podia simpatizar
com suas ideias”, explica. “Aí a intelectualidade progressista da contemporaneidade pega os
conceitos fundamentais desses autores e pretende usá-los para falar com as pessoas comuns
— apenas pretende, porque de fato não faz isso. As pessoas comuns são historicamente os
inimigos dos autores modernos clássicos; passaram-se séculos, e elas continuam
indiferentes aos intelectuais progressistas, com as suas ideias de laicidade, igualdade formal,
racionalidade econômica, diferença entre o público e o privado etc. Essas ideias foram todas
originalmente forjadas como armas contra a multidão.”
Na entrevista a seguir — que conseguiu a proeza de ser profunda e descontraída ao mesmo
tempo —, Pedro Rocha Oliveira mobiliza suas pesquisas sobre as origens do pensamento
moderno para torcer e retorcer a análise sobre a política brasileira da atualidade, com
destaque para o fracasso popular dos valores progressistas, vistos com cada vez mais
antipatia pelas maiorias. Além de lamentar, como temos feito inutilmente nos últimos anos,
agora podemos começar a entender por quê. O avesso do avesso.

Por que estudar história da filosofia moderna no Brasil do século XXI?

Pois é, Thomas More a essa altura do campeonato?! Bom, teve algo que me marcou na
graduação em filosofia e nunca mais saiu da minha cabeça. E isso não é uma experiência
única, só minha: é o comum, o usual, na filosofia acadêmica, em qualquer lugar, nos centros
de excelência ou nas periferias que se espelham neles. A gente abre lá os autores clássicos, o
Kant, o Platão, e aí dá dois minutos lendo qualquer coisa deles e você encontra lá o sujeito
sendo misógino, racista, defendendo autocracia etc.
O Kant sempre que pode fala alguma coisa sobre como as mulheres são intelectualmente
incompetentes, sobre como as pessoas comuns são estúpidas como bichos. O Platão,
na República, no meio daquelas coisas lindas sobre o Bem e o Verdadeiro etc., tem mil
ideias sobre como as pessoas comuns pertencem a uma cepa rude e estão destinadas a serem
governadas por uma raça superior inteligentíssima. O Aristóteles, sujeito enciclopédico,
também contribui lá com seu argumento sobre a inferioridade das mulheres e diz,
basicamente, que se você foi escravizado é porque você não é realmente humano. E aí é
aquilo, o Heidegger, no caso, bateu os calcanhares para o regime nacional-socialista… e por
aí vai.
Mas o que acontece é que, a todo momento, esses “pequenos detalhes” sobre os autores
clássicos são academicamente tratados como se fossem assunto periférico: não é a filosofia
propriamente dita. Vamos ler os textos aqui, vamos entender o argumento, olha que difícil,
olha que sutilezas. É assim que se lê. E eu ficava encafifado pensando: não é possível, deve
haver alguma conexão entre o racismo da página 172, a misoginia explícita da página 335 e
o argumento transcendental da página 284…
Afinal, o Platão foi se meter na política de Siracusa, certo? O primo dele foi um dos Trinta
Tiranos que dissolveu a democracia ateniense e tomou o poder com ajuda dos Espartanos,
ou não foi? O Aristóteles, com todas as finuras sobre a virtude, foi o preceptor de um cara
que parece que mandou matar o próprio pai pra virar rei, e daí montou no Bucéfalo e foi
subjugando povo atrás de povo da Macedônia até a Índia. Será que esses caras, que estavam
no olho do furacão, iam ter tempo de parar pra escrever umas coisas completamente
desconectadas desses contextos superimportantes em que viviam? Não. A filosofia deles
deve dizer respeito ao contexto em que foi escrita — e diz!
O fato de que a gente não a estuda assim se deve a um problema intrínseco ao
desenvolvimento das ciências humanas, o “progresso do saber”, que tende à especialização.
A gente estuda história, sociologia, filosofia, como disciplinas com abordagens estanques e
objetos independentes. Sob esse aspecto, a filosofia é legível por qualquer um em qualquer
época — é o “discurso universal”, ela se dirige “ao humano” etc. etc. — justamente porque
é tornada completamente desimplicada das questões específicas do seu tempo e da classe
que a produziu. A gente lê o texto do Heidegger, estuda o raio do alemão, a filologia dos
prefixos e os escambaus, mas o fato de que o Hitler vira chanceler da Alemanha em janeiro,
e o Heidegger reitor de Freiburg em abril, a gente deixa de lado.
Ou seja: a gente aprende a tomar a filosofia como algo completamente inofensivo. Mas,
assim como seus autores não foram inofensivos — na maioria, aliás, foram sujeitos
realmente horríveis, pelos quais não deveríamos ter a menor simpatia —, seu pensamento
também não era inofensivo lá no seu lugar e tempo de origem. Imagina que daqui a 1.700
anos alguém resolve estudar os poemas do Michel Temer desde o ponto de vista das
sutilezas gramaticais que ele emprega. Talvez, retirados de seu contexto, os poemas
ficassem até bons, imagine só! Claramente, o mais relevante no caso não seria a estrutura
dos versos, mas o fato de que uma figura como o Temer escreveu poemas. Isso seria o
fundamental, isso é que teria que ser entendido! Isso é tudo que não somos ensinados a
fazer com a obra dos grandes filósofos — mas é o que eu tento fazer nas minhas aulas, e
também no livro Discurso filosófico da acumulação primitiva.
E aí ocorre que, com os filósofos do renascimento, isso é mais fácil de fazer, porque a
renascença é exatamente o momento em que aparece uma classe intelectual
preocupadíssima em ter relevância na política. A querela desses primeiros modernos com os
medievais — a crítica à preocupação desses últimos com o “sexo dos anjos” etc. — diz
respeito justamente a isso: a uma classe que não quer ficar apenas especializando-se em
exegese, mas que quer usar o que sabe para influenciar o curso do mundo. Notavelmente, na
Inglaterra em particular — mas não só ali! —, a direção dessa influência é hedionda: são
todos agentes do capitalismo agrário-mercantil, no tenebroso período da acumulação
primitiva, da destruição dos últimos resquícios do modo de vida comunal no velho mundo, e
do começo da destruição disso no mundo novo.
Veja bem, estamos falando de gente que realizou a tradução da Bíblia pro vernáculo,
investiu nas companhias coloniais, formulou os alicerces do método científico, sedimentou
a burocracia estatal monetizada, ressuscitou a terminologia da democracia clássica, militou
no cercamento dos campos combatendo os camponeses rebeldes, estabeleceu as bases para
o contratualismo e para o liberalismo… Intelectuais mais orgânicos do que esses,
impossível. O que essas duas ou três gerações de pensadores têm de especial é que se
tratavam de membros letrados das classes proprietárias, a quem coube, num momento
crucial e particularmente infeliz da história humana, formular um monte de coisas pela
primeira vez. O brilhantismo da filosofia que produziram se deve à total inerência dessa
filosofia a um processo histórico absurdamente determinante para o destino da humanidade
nos séculos seguintes — inclusive no nosso, e sabe-se lá por quantos mais.
Mas aí, como é que a gente é ensinado a estudar esses caras? Filosoficamente — ou seja,
sem qualquer preocupação com o contexto. Olhem esses argumentos. Olha que bonita essa
ideia de utopia, o não lugar. Mas é aquilo, o inventor da palavra “utopia”, Thomas More, foi
xerife de Londres. Quer dizer: era chefe de polícia, gente. Chefe de polícia. E isso num
período em que Londres vivia em estado de sítio, por causa dos sem-terra expulsos pelo
cercamento dos campos e dos soldados empobrecidos que lutavam nas guerras absurdas do
Henrique VIII, que aliás era amigo íntimo do More. Imagine, daqui a quinhentos anos, ler
um livro do Sérgio Paranhos Fleury, o delegado do DOPS de São Paulo, desconsiderando
completamente o contexto em que foi escrito. E lembre-se que, por calamitosa que tenha
sido a ditadura brasileira (1964-1985), não se compara nem de perto ao período em que
More atuou como xerife: ali foi, afinal, um ponto de virada na história da humanidade — o
nascimento do capitalismo e do imperialismo, simplesmente. O cara é chefe de polícia,
burocrata, parlamentar, presidente da Câmara dos Comuns no momento em que a
modernidade está nascendo e o pau está comendo. Escreve um livro. Cunha o conceito de
“utopia”. A gente vai pegar o conceito e achar bonito? Tem alguma coisa errada nisso, não
tem não? A gente não pode ler um livro desses fora do contexto, e tomar os conceitos para
nós, para dizer as nossas coisas. Se esses conceitos foram compatíveis com o projeto social
e político de gente como Thomas More, eles deveriam ser incompatíveis com o projeto
social e político de alguém que pretendesse pensar contra o capitalismo. Dialética tem
limites!

Mas por que a Inglaterra do século XVI?


Eu compartilho da percepção, defendida por alguns pensadores críticos do capitalismo, de
que o século XVI inglês é o momento certo para se assistir ao nascimento do capitalismo. É
ali que o dinheiro começa a suplantar as relações de honra e favor tipicamente medievais; é
ali que a comida vai sendo transformada sistematicamente em mercadoria, o que é um
marco importantíssimo — e terrível — na história da humanidade; é ali que as formas
tipicamente modernas de administração, representação e opressão passam a funcionar de
modo sistemático; e é ali, também, que o modo de vida moderno europeu começa a se
difundir pelo mundo, na base de tiro, porrada e bomba. Enfim, é um momento fulcral,
justamente porque é um momento de transição.
Deixa eu falar um pouco melhor sobre isso, sobre transição. Trata-se do fim de uma era, e o
início de uma outra, é o ponto de encontro entre duas formas de viver, a forma não moderna
e a forma moderna. Antes da generalização da mercadoria, as pessoas viviam do que
plantavam, caçavam, colhiam, com as próprias mãos, num mundão que não era de ninguém.
Dependendo de onde você estivesse, o acesso à terra poderia ser mediado por uma classe de
administradores — como no chamado “feudalismo”, por exemplo; mas havia uma relação
imediata entre a vida ativa, o engajamento com as coisas, o trabalho, os costumes etc. e a
satisfação de necessidades. Isso está muito claro no material histórico mobilizado por
autores como Peter Linebaugh ou Marshall Sahlins. Os seres humanos se juntavam
basicamente para isso, para viver juntos, para viabilizar a vida. Com a mercadoria, o
dinheiro, o trabalho assalariado — ou seja, com o capitalismo pleno —, a vida como ponto
de partida e de chegada vai para o beleléu. A vida humana deixa de ser algo em prol do que
os humanos podem se esforçar diretamente. O fato de que você existe não garante que você
vai conseguir se engajar em processos para tentar satisfazer suas necessidades. Não há
garantia de que você vai trabalhar, porque tudo depende de uma contabilidade complicada
que mede quanto trabalho de que parcela da população é realmente necessária para que
possa ser produzida uma riqueza que reverta em lucro etc.
Bom, quando a gente estuda Revolução Industrial — século XIX e tal — para entender o
que é capitalismo, a gente está olhando para uma época na qual, em grande medida, a
transição do não moderno para o moderno já se completou. Na Europa e no Novo Mundo,
as formas tradicionais de vida já foram em grande medida derrotadas: a perspectiva de
voltar para a satisfação de necessidades através da lida direta com a natureza já não existe
mais, na prática. É por isso que uma figura como o Marx, quando fala do fim do
capitalismo, e apela ao comunismo — que é um termo que evoca as sociedades
“primitivas”, não modernas, destruídas pelo capitalismo moderno —, também insiste que
não há caminho de volta, que o único caminho possível é adiante, para frente, no progresso,
aprofundando as relações modernas, desenvolvendo a sociedade burguesa ao máximo, até o
ponto em que ela possa ser destruída por suas próprias contradições internas.
Bom, já no início do século XX vão aparecer uns caras, tipo o Walter Benjamin, o Marcuse,
o Adorno, que vão dizer: olha, o capitalismo tolera muito bem contradições internas, tá? O
capital come dialética ensopada com batata no almoço e no jantar, ele não vai sucumbir à
crise e ao caos civilizatório: ele é a crise, ele é o caos civilizatório. E aqui estamos, em meio
ao colapso ambiental, crises econômicas infinitas, financeirização ficcionalizada de tudo,
esperando a próxima pandemia, num mundo de desigualdades impensáveis, com bilionários
high-tech brincando de Lex Luthor — e o capitalismo nada de mostrar nenhum sinal de
enfraquecimento… A crise capitalista não produz alteridade, é isso que os frankfurtianos,
nos seus melhores momentos, estavam dizendo. E isso parece que simplesmente se
verificou. Tem quem viva em negação contra essa ideia, mas, na prática, a desesperança
reinante entre as pessoas comuns, a inexistência de uma política radical viável para além da
falação dos ilustrados, reflete esse fato básico.
Mas aí, quando eu digo isso, a primeira objeção é geralmente: “Ah, seu pessimista, você
não vê saída, você se acomodou”. Não é isso que eu estou dizendo. Eu gosto muito de uma
frase do Kafka, é uma frase absolutamente genial, é uma ideia que, como é típico dos
escritos dele, interpela direta e brutalmente a alma da classe média letrada, que é a classe
moderna por excelência. O Kafka disse: “A esperança existe — mas não para nós!”. É
exatamente isso. Existe esperança, existe saída, mas não dentro da modernidade e para os
modernos…
Como assim? Bom, quando a gente olha para o século XVI, para o tal período de transição,
o que é que a gente vê? Justamente o confronto do capitalismo com a sua alteridade, a
sociedade não moderna, primitiva, comunal etc. Aquilo que, através de um malabarismo
histórico, o Marx queria colocar no fim do processo, mas que já estava ali no início. A gente
vê levantes populares organizando-se em torno de demandas e ideias que, para nós, soam
completamente esdrúxulas — justamente porque são ideias fundamentalmente
antimodernas, práticas, modos de fazer e de ver que pertenciam a um outro tempo, a um
outro modo de vida — um modo de vida que (surpresa, surpresa) era radicalmente
anticapitalista.
Você tem os cristãos radicais que pregavam sexo livre e propriedade comunal, os motins em
que as mulheres aprisionavam os mercadores e ditavam o preço justo das mercadorias, as
rebeliões em que o objetivo básico era simplesmente parar de trabalhar e passar o verão
assaltando os armazéns das classes proprietárias, os caras que fugiam das colônias para ir
viver com os índios, os escravizados fugidos que viravam pregadores de seitas milenaristas
abolicionistas… A maior salada, messianismo, balbúrdia, reorganização do trabalho,
distribuição de bens, abolição das fronteiras e de propriedade, democracia radical no
exército, monarquia divina eleitoral… Isso aparece na obra da Silvia Federici, do
Linebaugh, essa criatividade popular fervilhante que, no tal momento da transição, chegou
ao auge.
Segundo essa perspectiva, se você quer olhar para além do capitalismo, você deveria olhar
para tudo que existia antes dele. E aí a gente deparar com as estruturas sociais, os costumes,
as crenças, as ideias, os comportamentos, que são realmente incompatíveis com a
modernidade capitalista, que tiveram que ser varridos do mapa para que essa sociedade
viesse a existir. Isso é muito estimulante para o pensamento histórico e político: é deparar
com evidências incontornáveis de que a humanidade é capaz de viver de forma
completamente diferente deste jeito insano, doente, catastrófico que vivemos.

Por que você acredita que os estudiosos que te antecederam preferiram omitir
determinados acontecimentos da vida de pensadores como Bacon, More e Smith?

Basicamente, para poderem se relacionar com as ideias deles sem dor na consciência —
como se fosse possível, contudo, aplicá-las fora de contexto, num sentido diferente daquele
que estava embutido nelas originalmente. Um exemplo particularmente eloquente — para
pegar um dos temas de que eu trato diretamente em Discurso filosófico da acumulação
primitiva — é o conceito moderno de ciência experimental. O Francis Bacon, que é quem
formula esse negócio de maneira clara e sistemática pela primeira vez, diz com todas as
letras que, para alcançar a verdadeira ciência, cuja aplicação é realmente eficaz, é preciso
deixar de lado qualquer relação de amor e curiosidade para com a natureza. Ele diz que
essas são disposições infantis que impedem que o fazedor de ciências olhe para as coisas
desde o ponto de vista da repetição e da quantificação.
Bacon vai adiante e diz o seguinte: toda a linguagem das pessoas comuns está formada com
base em preconceitos, em concepções pré-científicas sobre como as coisas são: ele chama
essa linguagem de idólatra. Então, para lidar com a natureza de maneira repetitiva e
quantificadora, a gente tem que se livrar da linguagem das pessoas comuns, também. Em
resumo: a ciência é um troço onde os sentimentos não contam e que tem que ser, por
definição, incompreensível. Essa é a receita para se criar alguma coisa diante da qual as
pessoas comuns vão torcer o nariz, certo? Aí passam cinco séculos, e o que está
acontecendo? Os intelectuais progressistas se veem obrigados a defender a ciência de um
desprestígio social generalizado. Ué, qual é a surpresa? Olhando lá para a sua origem, não
tem nada de surpreendente nisso! O projeto era esse, mesmo.
Essa ciência que conhecemos nasceu num contexto de guerra civil, em que as pessoas
comuns estavam resistindo o quanto podiam à ação de classe dos proprietários letrados que,
com sua agrimensura, contabilidade, geologia etc. promoviam a conversão da terra onde se
produzia comida em terra onde se produziria mercadoria. É essa classe proprietária que vai
lá e formula um método científico, o qual tem que ser intrinsecamente antipático e
antagônico ao modo de vida das pessoas comuns. A gente poderia continuar esse raciocínio:
como será que uma sociedade baseada nessa ciência — uma sociedade inteirinha
cientificizada, onde o sexo é mediado pelas substâncias químicas, a guerra é feita pelos
tecnólogos e pelos homens de jaleco, e, como dizia o Trotski, o papa viaja pelas ondas de
rádio —, como será que uma sociedade assim acabou desencadeando um processo
provavelmente irreversível de destruição ambiental? Como será que foi, hein?
A partir daí, a grande pergunta é como diabos a esquerda acabou se encontrando na posição
de defender, diante das pessoas comuns, o trabalho intelectual de gente que via o povo
como uma ameaça, como uma turba de ignorantes. E acho que parte da resposta está
justamente na questão da ignorância. No fundo — às vezes explicitamente, às vezes
implicitamente —, nossos intelectuais estão situados diante das pessoas comuns nesse
mesmo lugar do Francis Bacon, que é o lugar iluminista: essas pessoas são estúpidas e
precisam de nós. No outro dia passou na minha time-line um vídeo de um intelectual
importante da nossa esquerda… Não vou citar nomes, já me disseram que parece que estou
de implicância… Mas é que tem pessoas que incorporam de forma resumida e sucinta o
espírito de seu tempo e de sua classe, e prestar atenção nelas é como prestar atenção em
toda uma coletividade. Enfim, no tal vídeo o cara dizia exatamente o seguinte — e estou
citando literalmente, eu anotei: o papel da “classe intelectual” é falar sobre “o que a
sociedade não gosta de falar”. Isso é a definição básica do papel da intelectualidade
progressista, é como essa classe se vê, e como ela espera ser vista.
A sociedade está confortável com os seus ídolos, nosso papel é vir aqui e desmistificar tudo.
Mas, gente, vamos ouvir com cuidado essa fala do intelectual progressista, vamos ouvir
com muita atenção! O papel ao qual ele se arvora é profundamente antipático e antagônico,
não é? Não há nesse intelectual empatia nenhuma para com seu suposto público. Ele gosta
do que o público não gosta, ele quer o que o público não quer — e ele se orgulha disso. No
que é mais essencial, no gostar mesmo, na esfera do desejo, o intelectual é diferente do
público. E o intelectual então não tem preocupação com o conforto das pessoas que vão
ouvir, não há o desejo de deixá-las bem, não há desejo de ouvi-las e entendê-las…
Quer dizer, entendê-las intelectualmente, sobre isso ele vai dar uma aula, mas entendê-las
empaticamente, na sua necessidade intrínseca, no seu lugar que é o lugar possível, o nicho
onde deu pra cavoucar uma existência no meio dessa desgraceira moderna, isso não vai
rolar. Seus ídolos, sua religião, seu voto errado, suas distrações, seus confortos precários,
seus gostos acessíveis, suas pequenas satisfações… não há nenhuma empatia para com nada
isso — como não havia em Platão, em Kant, em Bacon. Existe o imperativo da hierarquia
cognitiva: eu tenho aqui o dever de destruir as suas crenças! O intelectual progressista é
como o psicanalista de um analisando involuntário, que não pediu pra ser analisado, mas vai
ter seu inconsciente esfregado na sua cara, quer queira, quer não. A eficácia disso,
clinicamente, seria zero — e essa é também a relevância do intelectual progressista para o
grosso da sociedade.
Tipo: a rapaziada da escola pública na comunidade, na frente de onde eles estudam, a
polícia vai e mata um cara, o corpo fica ali, isso acontece toda semana. Aí o intelectual
chega para esse público e diz, então, eu quero falar com vocês do que vocês não gostam de
falar, eu tenho uma verdade incômoda pra vocês. Mais incômodo, mano? Esse público
precisa ser mais incomodado do que já está, é isso mesmo? A tiazinha passa duas horas no
transporte público pra chegar no trabalho, duas horas pra voltar pra casa. E aí o que está
faltando na vida dela é falar do que ela não gosta de falar? É escutar verdades
inconvenientes? Isso não faz nenhuma espécie de sentido. Mas o antagonismo das ideias
modernas, seu aspecto repugnante diante das pessoas comuns, não é um acidente: é,
originalmente, um projeto de classe. Bacon queria agredir o populacho com sua concepção
de ciência; More queria submeter as pessoas comuns involuntariamente a uma engenharia
social bizarra. E o que os iluministas chamavam de “povo” era uma fração da população
como um todo: a que podia simpatizar com suas ideias. O resto eram traidores, eram o
“sangue impuro” cantado na Marseillaise, a ser derramado impiedosamente pelos
verdadeiros cidadãos. O público original dos autores modernos clássicos é um público
segregado, é a oligarquia inteligente, culta: eu procuro mostrar isso em Discurso filosófico
da acumulação primitiva.
Aí a intelectualidade progressista da contemporaneidade pega os conceitos fundamentais
desses autores e pretende usá-los para falar com as pessoas comuns — apenas pretende,
porque de fato não faz isso. As pessoas comuns — a multidão, a plebe, o populacho — são
historicamente os inimigos dos autores modernos clássicos; passaram-se séculos, as pessoas
comuns estão aí indiferentes aos descendentes contemporâneos daqueles autores: os
intelectuais progressistas, com as suas ideias de laicidade, igualdade formal, racionalidade
econômica, diferença entre o público e o privado etc. Essas ideias foram todas
originalmente forjadas como armas contra a multidão; pensando assim, no senso comum
que resiste aos intelectuais progressistas, reside uma sabedoria histórica preciosa. Pensar
contra o capitalismo precisa ser, também, se conectar a essa sabedoria.
Enfim, resumindo, o que eu tento construir em Discurso filosófico da acumulação
primitiva é a percepção de que a postura antagônica e antipática da intelectualidade
progressista não é uma coincidência, ou um acidente; é uma questão de classe, mesmo. Ela
diz respeito à ingrata, desgraçada, infeliz e irrefletida continuidade que existe entre as ideias
do Sérgio Paranhos Fleury do século XVI, as ideias dos iluministas do século XVIII, e as
ideias dos revolucionários dos séculos XIX e XX.
Por que seu livro tem tanto a ver com a ascensão da nova direita no Brasil?

Por duas razões principais. Primeiro, porque fala de um alheamento, e até de uma inimizade
histórica, entre os progressistas e as pessoas comuns, a despeito das eventuais juras de amor
daqueles por estas. Isso torna inteligível o fato de que, de uns tempos para cá, socialmente
falando, vêm acontecendo coisas absolutamente inaceitáveis desde o ponto de vista dos
progressistas, mas que, como as últimas eleições presidenciais mostraram, são
completamente “ok” para boa parte da população — a metade dela, e possivelmente mais da
metade. Além disso, Discurso filosófico da acumulação primitiva fala dos limites da
imaginação política moderna — limites esses que são justamente o combustível da nova
direita, que é, em seu discurso, antimoderna.
Isso é muito curioso, é interessantíssimo, porque até pouco tempo atrás era a esquerda que
monopolizava a crítica às instituições modernas. Mas a tal da sociedade dividida de hoje em
dia é isso: a esquerda defendendo a modernidade — Estado laico, democracia, ciência etc.
— e a nova direita batendo em tudo isso sem parar um segundo.
Quando a gente pensa no lema “a Globo mente” isso fica muito claro, e o que eu estou
dizendo aqui é óbvio, mas precisa ser sublinhado. Quando eu era moleque, nos anos 1980,
“a Globo mente” era um lema dos brizolistas, do pessoal que, no estado do Rio de Janeiro,
inventou a educação pública integral, que fez abolicionismo penal na prática fechando
presídio e controlando operação policial violenta: ou seja, um lema da esquerda. Quando o
Brizola foi eleito governador do Rio em 1982, a mídia e os institutos de pesquisa — hoje,
arqui-inimigos da nova direita, note-se bem! — diziam que ele não tinha chance, que era
Moreira Franco na certa, e ele passou o resto da vida lembrando disso, junto com o fato de
que a Globo tinha apoiado a ditadura.
Dez anos depois, no governo FHC, a esquerda metia o malho na propaganda unilateral que
a mídia fazia das privatizações: de novo, “a Globo mente”. Dez anos depois disso, o
lulopetismo e a esquerda da esquerda eram inimigos entre si, mas continuavam dizendo,
enquanto progressistas esclarecidos: “a Globo mente”. Uma década depois, Lava Jato,
impeachment e tal. “A Globo mente” significava que a mídia estava naturalizando um
processo de judicialização da política, apoiando golpe pela segunda vez etc. Mas, nos
tempos que correm, quando o jogo virou, o Bolsonaro se tornou inimigo público da
sociedade bem-pensante, e aí a Globo virou “nossa” aliada, junto com todas as chamadas
“instituições democráticas” — inclusive o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), o qual,
especialmente depois da Lava Jato, atua abertamente como um órgão de poder
discricionário, inalcançável por qualquer “freio e contrapeso”, árbitro último da democracia
eleitoral. Beleza, o jogo virou. Mas vamos pensar nisso com calma.
Na época das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e das ações policiais-
militares nas favelas cariocas do final do lulopetismo, na época do impeachment e dos
cinquenta anos da ditadura, o conceito de “estado de sítio” ou “estado de exceção” emergiu
como uma ferramenta de explicação para as barbaridades que vinham ocorrendo, a mistura
fina de autoritarismo e democracia que estávamos vendo. Passados dez anos, essa mesma
mistura — através dos chamados “excessos” do STF, a respeito dos quais até a Globonews
tem que falar, por desencargo de consciência, apenas para espanar o assunto pelos ares em
seguida — é a garantidora da manutenção do lulopetismo reeditado contra a nova direita. É
claro, os tais “excessos” dizem respeito a firulas processuais, sabe-se lá se os inquéritos de
ofício do Alexandre de Moraes são realmente legais ou não, a questão não é essa. Vai ter dez
especialistas com bons argumentos pra dizer que sim, dez pra dizer que não, e dez outros
pra dizer “talvez”. A questão é justamente que, por definição, como na época da Lava Jato,
não dá pra saber se os atos mais “polêmicos” do STF são legais ou não, porque o STF, como
qualquer corte suprema, opera no espaço de decisão a respeito da legalidade, foi feito para
operar nos limites da democracia mesmo, é o poder discricionário — no qual a vontade é
sinônimo de lei — sobre o qual repousa todo o resto. Isso é o arroz-com-feijão da teoria
crítica do republicanismo e do Estado moderno, Giorgio Agamben, Luciano Canfora etc.
Mas tá valendo autocracia e amizade com a reedição do Joaquim Barbosa se o assunto é
“barrar o fascismo”, como se diz.
Olha, não estou dizendo que os progressistas estão sendo incoerentes, o problema não é
esse. A crítica marxista coloca claramente: o Estado é uma ferramenta de classe, ele serve
para oprimir, para exercer poder de forma concentrada, para fazer violência. A questão toda
é: qual é a classe que está usando o Estado, e para quê? Assim, na imagem da revolução
proletária, o “nosso” lado tomaria o poder e usaria contra a burguesia as mesmas armas que
a burguesia usou contra o proletariado anteriormente. Em termos formais, nada de errado
com isso. Mas a questão é a seguinte: qual é o setor da sociedade que apoia os excessos do
STF? Qual é o setor da sociedade que está empregando os órgãos do Estado, com o apoio da
mídia corporativa, para ajudar a enterrar a nova direita? Quem disser que é “o povo”, “os
trabalhadores”, ou está mentindo na cara de pau, ou está usando óculos cor-de-rosa. Metade
da população foi lá, viveu o bolsonarismo e votou no bolsonarismo de novo. Quando a
gente tem que mobilizar os dispositivos autocráticos, discricionários, para impedir que essa
metade da população vá lá e vote na nova direita pela segunda vez — e continue votando
para todo o sempre, como se delineia na Turquia e na Hungria —, o que a gente está
assumindo é que, na base do discurso racional e do voto, há um risco grande demais de ser
impossível deter a nova direita. Ou seja: os progressistas não estão dispostos a deixar a
democracia nas mãos do povo. Quando defendem usar qualquer recurso disponível para
“deter o fascismo”, estão assumindo que acabou o caqui, que a democracia moderna
fracassou, ela implodiu, ela está demasiado pronta para dar um passo em direção à própria
abolição — a não ser que a gente a defenda por meios possivelmente não democráticos,
como os inquéritos de ofício etc. É um paradoxo, né?
Não estou dizendo que os progressistas estão sendo incoerentes — não estou querendo
corrigir o Marcos Nobre quando ele diz que quem defende a democracia em abstrato acaba
tendo que engolir Hitler. Estou só querendo tirar as devidas consequências do fato de que
defender a democracia concretamente exige que façamos aliança com os tradicionais
inimigos da democracia brasileira — como a Rede Globo — e com os atores políticos que
operam por definição com um pé dentro e um pé fora dela — como o STF. O que isso
significa é que a democracia virou, para usar o vocabulário do século XVI, uma facção
entre muitas, está em descrédito, se tornou virtualmente o projeto político de uma minoria
— uma minoria que precisa apelar para meios antidemocráticos ou semidemocráticos para
sobreviver. Os intelectuais progressistas são os representantes autodeclarados dessa minoria.
E o resultado é que acaba ficando nas mãos da nova direita dizer aquilo que uma figura
como o Agamben poderia estar aqui dizendo, também: o STF é um órgão autoritário;
vivemos sob a ditadura da toga. Isso é mentira? Quando o Lula foi preso, e na época da
Lava Jato, achávamos que não. Que rolo, né, minha gente?
Então estamos falando de uma situação na qual a esquerda progressista, que
tradicionalmente representa os interesses do povo, tem que virtualmente se situar contra o
povo: não só contra a parte do povo que vota contra a democracia, mas contra a parte do
povo que poderia votar contra a democracia — e sabe-se lá em quantos brasileiros corre
esse perigoso “sangue impuro”! O que a gente tem que perguntar é: como chegamos até
aqui?
Pra responder a isso, eu sinceramente acho que tem que reescrever a história do Brasil
prestando atenção, desde os primórdios, na diferença entre como as pessoas comuns se
manifestaram politicamente e como as classes letradas progressistas — os intelectuais e os
políticos profissionais — se manifestaram politicamente. Imaginando essa história sendo
reescrita, antevejo que, chegando em tempos recentes, o conceito mais importante que a
gente vai ter que encontrar é o conceito de populismo. Populismo é alguma coisa que o
povo gosta, mas diante do que os progressistas torcem o nariz, porque fica aquém dos
critérios modernos de racionalidade administrativa, política e econômica. Percebe que
voltamos à imagem dos intelectuais antagônicos sem empatia, inimigos do senso comum,
cuja missão é despejar verdades desconfortáveis nos ouvidos das pessoas ignorantes?
Intelectuais que, para além de profissões de fé, não construíram, através dos séculos,
nenhuma aliança política sólida, nenhuma comunidade indissolúvel de interesses com as
pessoas comuns…
Pois bem, nenhum lugar melhor do que o século XVI para entender a gênese desses
intelectuais. Discurso filosófico da acumulação primitiva é sobre isso mesmo: sobre a
origem do progressismo. Hoje testemunhamos seu ocaso, na fogueira resplendente de
contradições e urgências em que a modernidade vai virando um amontoado de cinzas
estéreis. Esse espetáculo tenebroso é a propaganda que vende o meu peixe.

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