Livro Final Deslocamentos&Permanências

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Deslocamentos e permanências:

trabalho, educação e interseccionalidades

Lorena Lima de Moraes


Larissa de Pinho Cavalcanti
(Organizadoras)
Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.
Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia
sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

M827d Moraes, Lorena Lima de; Cavalcanti; Larissa de Pinho (org.).


Deslocamentos e Permanências: trabalho, educação e interseccionalidades /
Organizadoras: Lorena Lima de Moraes e Larissa de Pinho Cavalcanti. – 1. ed.
Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.
tabs.; gráfs.;

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-453-6.

1. CODEG. 2. Educação. 3. Gênero e Sexualidade. 4. Mercado de Trabalho.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadoras.
Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:


1. Grupos sociais: Homens. 305.31
2. Grupos sociais: Mulheres. 305.4
3. Educação. 370
4. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
Deslocamentos e permanências:
trabalho, educação e interseccionalidades
Lorena Lima de Moraes
Larissa de Pinho Cavalcanti
(Organizadoras)
Copyright © 2022 – Das organizadoras representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Fernanda Schimanski Bernardes
Editoração: Vinnie Graciano
Desenho e concepção: Mariane Alves
Arte Digital: Cleiton Vieira

CONSELHO EDITORIAL:

Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

Os textos passaram por avaliação e aprovação de dois ou mais pareceristas ad hoc.

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas – SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

Impresso no Brasil – 2022


Sumário

Apresentação 7
Eixo 1
Desigualdades Sociais e Trabalho

Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho: atualizações para o


presente  17
Danièle Kergoat
Divisão sexual do trabalho: permanência e variabilidade 31
Helena Hirata
As mulheres nas ocupações relacionadas aos cuidados: uma análise do setor
de saúde no contexto da pandemia de covid-19 45
Cristiane Soares
Hildete Pereira de Melo
Teorizações negras sobre a divisão sexual do trabalho 71
Carine de Jesus Santos
Vivian Delfino Motta
Quanto vale o tempo das mulheres rurais nordestinas para o acesso às
políticas sociais do Cadastro Único? 93
Shana Sieber
Lorena Lima de Moraes
Bárbara Cristina Vieira da Silva
Nicole Pontes
Rebeca Barreto
Tatiane Vieira Barros
Caminhando com crianças. Mobilidades e itinerários a partir de redes de
cuidado em favelas 127
Camila Fernandes
Eixo 2
Educação para Transgredir

Interseccionalidades na Educação: histórias e memórias negras na


construção do conhecimento escolar 159
Iamara da Silva Viana
Educação para sexualidade: o aprendizado como valor 181
Nathália Diórgenes Ferreira Lima
Cenas sobre gênero e sexualidade: a juventude em contextos escolares 203
Roseane Amorim da Silva
Jaileila de Araújo Menezes
“A ferro e fogo”: questionamentos à linguagem e aos corpos educados 223
Marcio Caetano
Esmael Alves de Oliveira
Letícia Carolina Nascimento
Lorena Moraes
Pedagogia feminista para ensino de língua inglesa 243
Jussara Barbosa da Silva
Larissa de Pinho Cavalcanti
Fechamento de escolas do campo e a presença das classes multisseriadas no
Território do Sertão do São Francisco, Bahia 265
Jackeline Maciel de Azevedo
Edmerson dos Santos Reis
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Apresentação

A presente coletânea é fruto das atividades acadêmicas do II


Congresso Dadá de Estudos de Gênero (II CODEG), evento promovido
pelo Dadá: Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero, Sexualidade
e Saúde, em 2021, financiado pelo Consulado Geral da França em Recife
mediante a Chamada Pública de Apoio a Eventos Científicos Franco-
Brasileiros no Nordeste. Por meio do referido edital, entre agosto e se-
tembro de 2021, o II CODEG fortaleceu a produção acadêmica e cien-
tífica na área dos estudos de gênero, sexualidade e saúde em diálogo
com discussões relativas a políticas públicas, feminismos, maternidade,
trabalho (remunerado e não remunerado), movimentos sociais, relações
étnico-raciais, desigualdades, educação e interseccionalidades. Esses
diálogos constituem e são constituídos no cotidiano da sociedade bra-
sileira, tornando urgente a ampla discussão de suas questões pela co-
munidade acadêmica, pela sociedade civil e pelos movimentos sociais.
Em sua organização, o II CODEG esteve atento à articulação
de crises (sanitária, econômica, política e humanitária) que se apresen-
tava e as suas implicações para as relações e as condições de traba-
lho, bem como sobre a configuração do cenário educacional no país.
Por isso, o evento escolheu como grande tema “Educação, Trabalho
e Perspectivas Libertadoras” e abraçou discussões fomentadas pela
pandemia no Brasil e no mundo. Nessa conjuntura, o II CODEG foi rea-
lizado de modo inteiramente virtual e gratuito para estudantes, profis-
sionais e docentes que participaram apresentando trabalhos, assistin-
do a palestras, a minicursos e a lançamentos de livros. Outrossim, o II

7
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

CODEG reafirmou seu compromisso com a ampliação da acessibilidade


em eventos acadêmicos, garantindo a tradução em Libras sem deixar
de enfatizar a responsabilidade das universidades públicas brasilei-
ras de construírem espaços democráticos de partilha e de produção
de saberes.
A presente coletânea, também custeada pelo Consulado Geral
da França em Recife, conta com textos de várias pesquisadoras, incluin-
do as professoras Danièle Kergoat e Helena Hirata, convidadas de honra
da mesa de abertura do II CODEG e que concretizaram a articulação
França-Brasil/Nordeste, por meio do referido edital. Dentre as autoras
do presente volume, conta-se também com professoras e pesquisa-
doras do Grupo DADÁ, palestrantes do II CODEG, integrantes da Rede
Interdisciplinar de Mulheres Acadêmicas do Semiárido (RIMAS) e ou-
tras parcerias acadêmicas. A partir do tema amplo do evento, este vo-
lume está dividido em dois eixos temáticos: i) Desigualdades Sociais
e Trabalho e ii) Educação para Transgredir.
A primeira parte do presente volume está dedicada ao eixo
Desigualdades Sociais e Trabalho, e como poderá ser constatado pelo
público leitor, o tema é abordado de modo diverso em cada capítulo,
mostrando com clareza pungente as várias faces das desigualdades
sociais no Brasil e no mundo e como elas afetam as relações e a produ-
ção do trabalho, principalmente para mulheres negras e pobres. Dessa
maneira, iniciam as discussões nesse eixo as duas convidadas de honra
do II CODEG em textos individuais: Danièle Kergoat (GTM/CNRS) assi-
na “Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho: atualizações
para o presente”, em que retoma desenvolvimentos anteriores sobre
a divisão sexual do trabalho para pensar como a desigualdade na quali-
ficação ou na especialização das mulheres para o mercado de trabalho
configura um dos obstáculos às diferentes lutas das mulheres. Nesse
enquadre, é feito menção, ainda, à pandemia e ao efeito de acentua-
ção das violências contra as mulheres na sociedade e nas relações
de trabalho.
Na sequência, Helena Hirata (GTM/CNRS) assina o capítulo
“Divisão sexual do trabalho: permanência e variabilidade”, que parte

8
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de questões apresentadas pela primeira autora para discutir variabilida-


des e permanências da divisão sexual do trabalho, no Brasil, na França
e no Japão, no contexto do trabalho do cuidado. A discussão evidencia
as desigualdades presentes desde as questões de saúde e de salário
até as mobilizações femininas, olhando, em particular, para suas articu-
lações durante a pandemia.
Um terceiro texto que olha relações de trabalho remunerado em ar-
ticulação à pandemia de covid-19, com atenção especial para suas im-
plicações na atuação de mulheres, é intitulado “As mulheres nas ocu-
pações relacionadas aos cuidados: uma análise do setor de saúde
no contexto da pandemia de covid-19”, assinado por Cristiane Soares
(IBGE) e Hildete Pereira de Melo (UFF). Valendo-se de dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), a discussão
expõe a precarização do trabalho de cuidado remunerado realizado
por mulheres e as desigualdades advindas não somente da remunera-
ção, mas também do acúmulo de jornadas de trabalho, principalmente
no setor de cuidado mais afetado durante a crise sanitária: a saúde.
No roteiro das discussões sobre trabalho, Carine Santos (UFRN)
e Vivian Motta (IFSP) propõem “Teorizações negras sobre a divisão se-
xual do trabalho”, assumindo centralmente a perspectiva interseccional
de gênero, cor e raça para analisar categorias importantes para a di-
visão sexual do trabalho. Após uma apreciação histórica, a discussão
enfatiza a relacionalidade de categorias sociais para uma construção
teórica a partir dos femininos negros e decoloniais, e defende que as
discussões sobre divisão sexual do trabalho se realizem em sintonia
com contextos e experiências de mulheres em realidades diferentes da-
quelas que originaram o campo de investigação.
Seguindo a reflexão sobre precarização e desigualdades sociais,
a pergunta “Quanto vale o tempo das mulheres rurais nordestinas para
o acesso às políticas sociais do Cadastro Único?”, proposta por Shana
Sieber (UNICAMP), Lorena Moraes (UFRPE-UAST), Bárbara da Silva
(UNIVASF), Nicole Pontes (UFRPE-UAST), Rebeca Barreto (UNIVASF)
e Tatiane Barros (IFCE), nos leva a refletir sobre desigualdades geográ-
ficas e sociais que dificultam o acesso, pelas populações mais vulne-

9
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ráveis, às políticas públicas que visam a qualidade de vida. A constru-


ção do Cadastro Único, os métodos e os dados da pesquisa de campo
apresentados no capítulo nos ajudam a entender, em uma perspectiva
interseccional, as consequências desumanizadoras das desigualdades
geográficas, econômicas e sociais enfrentadas pelas mulheres rurais
para acesso ao referido programa social.
Por fim, ainda na esteira dos estudos voltados para populações
socialmente marginalizadas por desigualdades sociais diversas, chega-
-se a “Caminhando com crianças. Mobilidades e itinerários a partir de re-
des de cuidado em favelas”, assinado por Camila Fernandes (PPGAS/
MN/UFRJ). A exposição de um estudo etnográfico realizado com crian-
ças de classes populares no Rio de Janeiro, além de constituir fonte ím-
par de compreensões sobre os papéis exercidos por crianças em suas
relações sociais próximas, evidencia valores no âmbito familiar que re-
lacionam o trabalho de cuidado que crianças exercem umas com as ou-
tras a uma série de tensões e de transgressões em suas vidas e ativida-
des. O texto, portanto, proporciona uma transição entre as perspectivas
de trabalho e educação, permitindo, portanto, chegar à próxima parte
desta obra.
A fim de olhar para a educação e as perspectivas libertadoras na se-
gunda parte deste volume, os textos concentram-se na Educação para
Transgredir como concepção que aproxima textos tão distintos e suas
várias reflexões sobre questões emergentes nas propostas, nas práticas
e nas instituições de educação. Dessa maneira, abre-se a segunda par-
te do livro com o capítulo “Interseccionalidades na Educação: histórias
e memórias negras na construção do conhecimento escolar”, assina-
do pela professora Iamara Viana (UERJ/PUC-Rio). Por meio de levanta-
mento histórico dos tempos coloniais aos dias atuais, a autora discute
questões de acesso e de permanência de pessoas negras na trajetória
de escolarização, olhando, em particular, a condição feminina pelo viés
interseccional de gênero, classe e raça. No texto, recebem destaque
a relevância e a contribuição das intelectuais negras para a produção
de conhecimento científico no Brasil, transgredindo, em várias dimen-

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

sões, as exclusões e os silenciamentos das práticas racistas institucio-


nalizadas na educação escolar.
A perspectiva interseccional para análise e o olhar cuidadoso para
a condição das mulheres negras se faz presente também no segundo
capítulo deste eixo, assinado por Nathália Diórgenes (UFPE), intitulado
“Educação para sexualidade: o aprendizado como valor”. Com olhar crí-
tico para a educação que não se constrói de modo democrático e laico
sobre as sexualidades, dados de pesquisa de campo da autora revelam
como o atendimento para planejamento familiar, destinado a mulheres
negras advindas de zonas rurais do sertão pernambucano, reforça a ex-
clusão e preterimento da decisão informada por essas mulheres. Essa
discussão se volta à educação para a sexualidade como forma de mu-
lheres transgredirem as representações e preconceitos que sobre elas
se constroem.
A discussão sobre gênero e sexualidade é retomada no capítulo
“Cenas sobre gênero e sexualidade: a juventude em contextos escola-
res”, assinado por Roseane Amorim (UFRPE-UAST) e Jaileila Menezes
(UFPE). As autoras se voltam para cenas no contexto escolar expondo
desigualdades de gênero e sexualidade por meio de relatos de experiên-
cia com jovens estudantes da periferia urbana. As narrativas apresenta-
das no capítulo expõem o cenário de preconceito e violência vivenciado
por estudantes que rompem com o padrão cis-heteronormativo, tornan-
do urgente, portanto, um processo pedagógico que transgrida o tradicio-
nal opressivo e negligente que se replica nas comunidades escolares.
Propostas educacionais que divergem da educação democráti-
ca e libertadora são debatidas também no artigo assinado por Márcio
Caetano (UFPEL), Esmael Oliveira (UFGD), Letícia Carolina Nascimento
(UFPI) e Lorena Lima de Moraes (UFRPE-UAST), intitulado “‘A ferro e fogo’:
questionamentos à linguagem e aos corpos educados”. A partir de uma
detalhada construção teórica sobre gênero e sexualidade, sem dispen-
sar o viés interseccional, o capítulo mostra como a linguagem se torna
palco de embates políticos, quando, na esteira das concepções de “es-
cola sem partido” e “ideologia de gênero”, tenta-se deslegitimar trans-

11
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

gressões das normas linguísticas que valorizam a manifestação de di-


ferentes identidades.
Quando todos os debates do eixo parecem convergir para
a compreensão interseccional dos debates de gênero, sexualidade, raça
e classe, buscando na educação e, principalmente, nas instituições for-
mais de educação o espaço para validarem e valorizarem identidades
e diversidades, o capítulo de Jussara Barbosa (UFRPE-UAST) e Larissa
Cavalcanti (UFRPE-UAST) assume a empreitada de transgredir na prá-
tica de sala de aula. A proposta de “Pedagogia Feminista para Ensino
de Língua Inglesa”, portanto, revela a elaboração de materiais e proce-
dimentos pedagógicos que não somente ensinam a língua adicional,
mas educam linguisticamente para combater a violência de gênero
no sertão pernambucano.
É justamente o Semiárido e a educação no campo que articulam
o trabalho de Jackeline de Azevedo (UNEB) e Edmerson Reis (UNEB)
aos demais do eixo. Cientes das políticas existentes para a educação
no campo, o capítulo intitulado “Fechamento de escolas do campo
e a presença das classes multisseriadas no Território do Sertão do São
Francisco, Bahia” busca problematizá-las a partir de dados quantitativos
relativos às constantes paralisações ou fechamentos de escolas no se-
miárido da Bahia. Além disso, o capítulo traz um convite à transgressão
quando se questiona a imposição de modelos de gestão do tempo e do
rendimento acadêmico centrados na lógica urbana e impostos às pesso-
as do campo sem respeito às condições específicas de seus contextos.
Se, por um lado, os textos aqui unidos mostram como seres huma-
nos são preteridos e violentados no espaço escolar, pelo currículo e na
gestão das relações interpessoais da comunidade escolar, por outro,
fica evidente que o próprio espaço escolar é local de reprodução de ex-
clusões. Esperamos que as pessoas envolvidas com pesquisa e práticas
educacionais em perspectivas libertadoras, críticas e transgressoras
se beneficiem do cabedal de experiências e de reflexões aqui organiza-
do, mas, principalmente, que levem adiante o propósito de construir de-
mocracia e equidade para uma sociedade mais justa e menos violenta.

12
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Por fim, resta-nos fazer a ressalva de que as ideias, as reflexões


e os dados aqui presentes são de exclusiva responsabilidade das/os res-
pectivas/os autoras/es de cada capítulo da coletânea Deslocamentos
e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades, cabendo
às organizadoras agrupar um conjunto de docentes e pesquisadoras/
es que abarcassem a diversidade de referências e pontos de vista para
a construção do conhecimento científico pautado nas categorias de gê-
nero, raça, classe, sexualidade, território, trabalho e educação que orien-
tam as nossas preocupações acadêmicas.
Boa leitura!

Lorena Lima de Moraes


Larissa de Pinho Cavalcanti

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Eixo 1

Desigualdades Sociais e Trabalho


Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Relações sociais de sexo e divisão


sexual do trabalho: atualizações
para o presente1 2

Danièle Kergoat3

Trata-se de retomar na primeira parte deste texto os três momentos


que construíram meu quadro teórico: a divisão sexual do trabalho,
as relações sociais de sexo e a consubstancialidade. Num segundo
momento, abordaremos a seguinte questão: como esta conceitua-
ção, e mais particularmente o conceito de divisão sexual do traba-
lho, permite entender a natureza das diferentes lutas das mulheres
que nós vemos surgir neste período?

A gênese dos conceitos

A divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo são con-


ceitos que foram forjados entre o final dos anos 1970 e o início dos anos
1980. Tratava-se de repensar o recorte disciplinar. A partir do momento
em que damos ao trabalho doméstico o status de trabalho, o trabalho
1 Uma primeira versão deste artigo foi publicada em colaboração com Helena Hirata, com
o título “Atualidade da divisão sexual e centralidade do trabalho das mulheres” na revista
Política & Trabalho. Trata-se aqui de uma versão consideravelmente desenvolvida da parte
que redigi deste artigo.
2 Este texto foi escrito originalmente em francês e contou com a tradução para o português
de Inês Fontenelle, com revisão final de Helena Hirata.
3 Diretora de pesquisa honorária do Centro Nacional de Pesquisa Cientifica, Gênero Trabalho
e mobilidades (CNRS-GTM – Paris 8 – Paris 10)

17
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

doméstico e o trabalho assalariado se situam num continuum que inva-


lida, por um lado, a sociologia da família pensada em termos de papéis
sociais, e, por outro lado, o recorte entre sociologia da família e sociolo-
gia do trabalho. E para nós, era evidente que a divisão sexual do trabalho
era uma das modalidades, provavelmente uma das mais importantes,
da divisão social do trabalho.
Falamos a propósito desta reconceitualização do trabalho, de
“revolução copernicana” (DELPHY; KERGOAT, 1982). Esta teoriza-
ção se construiu em um período peculiar: o movimento de libertação
das mulheres, evidentemente, mas também o movimento maciço de as-
salariamento feminino: pela primeira vez na história do capitalismo (a
de 1974-1975, que prenunciava a dos anos 1980), não provocou a sa-
ída das mulheres do campo da produção. Mais ainda, a taxa de ativi-
dade feminina era crescente, paralelamente às taxas de assalariamen-
to. Simultaneamente, a evolução tecnológica e a divisão internacional
do trabalho transformavam a composição da mão de obra feminina
(HIRATA, 1993). Porém, também era claro o movimento de liberação
das mulheres que afirmavam que o privado é político e que “Le Torchon
Brûle”4.
Tal posicionamento, representado pelo laboratório que criamos,
o Grupo de Estudo da Divisão Social e Sexual do Trabalho (GEDISST)
chamava a atenção em três níveis: no nível social, ele permitia, por exem-
plo, romper a aparente uniformidade das condições de trabalho dos ope-
rários e das operárias; no nível epistemológico, questionávamos a uni-
versalidade de conceitos tais como a mobilidade social ou a noção
de consciência de classe; no nível metodológico, isto permitiu apontar
a pobreza conceitual das disciplinas que raciocinam em termos de “mo-
delo geral” e a absoluta necessidade de levar em conta os grupos so-
ciais de sexo.
Sendo assim, que definição poderíamos dar? A divisão sexual
do trabalho tem como características a designação prioritária das mu-
lheres à esfera reprodutiva, ao passo que os homens são designados

4 Le Torchon Brûle (literalmente, “o pano de prato está queimando”) foi um dos primeiros
jornais feministas da segunda onda.

18
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

para a esfera produtiva. Paralelamente, os homens apoderam-se das fun-


ções com alto valor social agregado (políticas, religiosas, militares).
Quanto à estrutura propriamente dita da divisão sexual do trabalho, tra-
ta-se em primeiro lugar da separação entre “trabalho de homem” e “tra-
balho de mulher”. Todas as sociedades conhecidas operam conforme
essa separação. Separação, mas também, e sobretudo, hierarquização:
um trabalho de homem vale mais do que um trabalho de mulher, tanto
no plano simbólico quanto no plano econômico (KERGOAT, 2000).
Entretanto, se esses princípios organizadores se encontram em to-
das as sociedades conhecidas, a história e a antropologia mostraram
a variabilidade extrema das modalidades da divisão sexual do trabalho
no tempo e no espaço: tal profissão masculina numa sociedade será
considerada feminina em outro; assim, os professores do ensino primá-
rio do século XIX se tornaram professoras no século XX. A mesma cons-
tatação pode ser feita em relação às empresas.
Contarei uma anedota sobre essa variabilidade. Há alguns anos,
visitei duas vezes uma empresa metalúrgica. Antes da automação, a fun-
ção do pontoneiro5 era exercida somente por homens, que assim o jus-
tificavam: é um trabalho cansativo, de alta responsabilidade (podia-se
esmagar os operários deixando cair as cargas de uma altura elevada),
um trabalho que demandava atenção a todo instante. Alguns anos mais
tarde, voltei à empresa: tendo a automação passado por ali, somente
algumas funções manuais, exatamente as mesmas de antigamente, ain-
da existiam, mas eram exercidas por mulheres. Quando expressei minha
surpresa, explicaram (quer dizer, os homens) muito seriamente que era
um “trabalho de mulher”: como o trabalho proporcionava momentos
de ócio, um homem, isolado em seu pontão, ficaria entediado, ao passo
que as mulheres, por sua vez, podiam… tricotar! O trabalho e a carga
de trabalho, entretanto, mantiveram-se iguais. Em contrapartida, a fun-
ção havia sido fortemente rebaixada na hierarquia das qualificações e o
salário havia sido cortado em aproximadamente pelo terço. E, que eu
saiba, sem reivindicação sindical.

5 Pontoneiro é aquele que opera os pontões, tipo de guindaste que serve para transportar
cargas pesadas de um lugar para outro dentro das oficinas.

19
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Quanto às relações sociais, elas estão na origem desta ou daquela


forma de divisão social do trabalho. As relações sociais organizam, isto
é, nomeiam e hierarquizam as divisões da sociedade: privado/público,
trabalho manual/trabalho intelectual, capital/trabalho, divisão interna-
cional do trabalho etc. As modalidades materiais dessas bicategoriza-
ções antagônicas são o que está em jogo nas relações sociais: assim,
a divisão social do trabalho entre os sexos é o que está fundamental-
mente em jogo nas relações sociais de sexo.
Assim como a divisão sexual do trabalho, as relações sociais pos-
suem princípios organizadores. Distinguimos três deles: a exploração
(extorsão do sobretrabalho de um grupo social por outro), a dominação
(ou violência simbólica), a opressão (que abarca todas as formas de vio-
lência física)6. Apenas quando uma relação social acumula essas três
propriedades se pode afirmar que se trata de uma relação transversal
e estruturante de toda a formação social em consideração. E as relações
sociais de sexo ilustram perfeitamente desse tipo de relação social.

Uma distinção importante: rapport social e relation sociale

Enquanto no português, em espanhol, em inglês e em muitas ou-


tras línguas só temos uma expressão, “relação social”, o francês propõe
duas, rapport social e relation sociale, que são, na verdade, dois con-
ceitos distintos. A meu ver, esta distinção é indispensável. As relations
sociales são imanentes aos indivíduos concretos (e não entre grupos
sociais) entre os quais elas aparecem. Os rapports sociaux, por sua vez,
são tanto anteriores ao encontro quanto posteriores a ele (as práticas
sociais podem fazê-lo mudar). Por mais que as relations sociales pos-
sam devastar um indivíduo, elas não alteram em nada as relações en-
tre os grupos sociais aos quais o indivíduo pertence. Porém, estes gru-
pos (aqueles formados pelas relations sociales) são também produtos
de pertencimento, de solidariedade, de reconhecimento mútuo, ainda

6 Estas três modalidades foram desenvolvidas por Marx (exploração), Bourdieu (dominação,
1978), Mathieu (opressão, 1985).

20
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que os processos desta produção sejam bem diferentes conforme per-


tençamos ao grupo dos dominados ou ao grupo dos dominantes.

Outra pergunta: as relações sociais (rapports sociaux) podem


ser hierarquizadas?

Antes de passar para a definição e aos princípios que organizam


a relação social (rapport social), formularei uma pergunta, muito impor-
tante a meu ver e cuja resposta permite dissipar vários equívocos. Esta
pergunta tem a ver com uma frase que escrevi em 19847: “Eu me recu-
so a hierarquizar as relações sociais; para mim não há nem uma linha
de frente principal nem um inimigo principal. Uma relação social (rapport
social) não pode ser um pouco mais viva do que outra. Ela é ou não é.”
Esta frase, frequentemente retomada por outros, deve, evidente-
mente, ser recolocada em seu contexto político (afirmar isto, era, naque-
la época, contestar a hegemonia da relação capital/trabalho, mas tam-
bém contestar a designação de um “inimigo principal”8, neste caso
o patriarcado). Durante anos essa frase continuou a ocupar meu pensa-
mento: certamente, seria improvável decidir no lugar dos atores sociais
qual relação social (rapport social) é para eles mais viva que outra, aque-
las que eles contestam prioritariamente (ou “devem” contestar) nesta
ou naquela luta. Neste plano, sim, todas as relações sociais de domina-
ção são de igual importância, todas as revoltas contra a ordem instituí-
da são legítimas. No entanto, podemos sustentar a ideia de que na so-
ciedade francesa, a relação social (rapport social) relacionada à idade,
por exemplo, por mais importante que seja para alguns, tenha a mes-
ma capacidade explicativa, o mesmo poder de produção da sociedade,
o mesmo poder subversivo, que, por exemplo, a relação social (rapport
social) de sexo. Em suma, eu me encontrava em plena contradição.
Trabalhei para superar esta aporia.
7 “Plaidoyer pour une sociologie des rapports sociaux. De l’analyse critique des catégories
dominantes à la mise en place d’une nouvelle conceptualisation” In: Collectif, Le sexe du
travail. Structures familiales et système productif. Presses universitaires de Grenoble, 1984,
p. 207-220. Em português, traduzido pela Ed. Paz e Terra, 1987. Reeditada em Se battre,
disent-elles…, La Dispute, 2012, p. 85-98.
8 DELPHY, Christine., “L’ennemi principal”, Partisan, nov. 1970

21
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A noção de prática social é o mediador necessário para obser-


var concretamente a ação das relações sociais (que são abstratas)
e sua implementação pelos atores sociais. Estes últimos hierarquizam
as relações de poder segundo suas estratégias coletivas ou identitárias.
O observador exterior, por sua vez, não pode hierarquizá-los, sob pena
de se reivindicar como vanguarda. Porém, a pergunta se coloca a nível
teórico. Em si, este problema não tem sentido algum, porque tal relação
social (rapport social), fundamental para uma sociedade, será secun-
dária para outra; a idade e a geração para os baruyas, da Nova Guiné9,
as castas na Índia, a nacionalidade em Riad e em Dubai10 não são ope-
rantes, ou em todo caso, não da mesma forma e com a mesma potência
que na França. Entretanto, o problema se coloca no âmbito de uma de-
terminada sociedade. Se podemos avançar a hipótese de que existem
relações de poder em todas as sociedades, estas variam em potência
de acordo com as formações sociais e até, em uma mesma sociedade,
conforme o período histórico considerado11. É por isso que proponho
diferenciar as relações sociais (rapports sociaux), reservando este termo
para relações sociais transversais, essenciais para entender o funciona-
mento da sociedade na qual elas se desenvolvem, e chamar “relações
de poder” todos os outros. Assim, fica claro que as relações sociais (ra-
pports sociaux) são relações de poder, mas que nem todas as relações
de poder são relações sociais (rapports sociaux).
O método científico pode e deve criar uma sequência nas relações
sociais (rapports sociaux) para poder analisá-las. Mas esse “sequencia-
mento” não pode ser só uma operação preliminar, uma vez que na rea-
lidade nenhuma relação social tomada isoladamente é suficiente para
explicar a totalidade da realidade social. É a imbricação das relações
sociais (rapports sociaux) que tem valor explicativo.

9 GODELIER. La production des grands hommes. Pouvoir et domination masculine chez les
Baruya de Nouvelle-Guinée, Fayard, 1982
10 LE RENARD, Amélie. “Travail et genre : approches intersectionnelles et postcoloniales” In:
MARUANI, M. (Org.). Je travaille, donc je suis. Perspectives féministes. La Découverte,
2018, p. 177-185.
11 E é aliás por isso que essa comunicação adquire sentido prioritariamente no contexto
francês.

22
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Logo, são os atores sociais e somente eles que devem decidir,


numa perspectiva estratégica, qual relação social (rapport social), aqui
e agora, eles querem prioritariamente colocar em dúvida ou ressal-
tar. O recurso identitário é, estrategicamente falando, completamente
legítimo12.
Porém, a história é outra quando nos situamos no nível da teo-
ria sociológica. Não podemos juntar sem maiores precauções as no-
ções de raça/gênero/classe em três identidades que seriam distintas
ao mesmo tempo que se misturariam. Entretanto, parece-me haver
frequentemente uma confusão nestes dois níveis, ação militante e te-
oria sociológica, e às vezes até colusão política. Sendo assim, por falta
de diferenciação entre relação de poder e relação social (rapport social),
os estudos franceses que reivindicam a interseccionalidade equiparam
muito frequentemente, a meu ver, as relações de dominação, afirmam
que elas se co-constroem e exigem, em nome do politicamente correto,
que a sociologia e os estudos de gêneros sejam feitos sem se pergun-
tar se, em tal situação e em tal temporalidade, uns não são mais fortes
que outros, não exercem maior domínio, e se não deveriam portanto
ser cientificamente distinguidos.
Em outros termos, e para concluir esta parte, se é preciso, na me-
dida do possível, integrar as lutas em torno da deficiência, por exemplo,
às lutas femininas, isso não permite, porém, que na análise sociológica
possamos dizer e fazer como se a relação de poder ligada à deficiência
fosse equivalente à relação social (rapport social) de sexo.

Conceitualizar o trabalho de outra forma

Levar isso em conta de forma central é indispensável para poder


elaborar o conceito de trabalho em toda sua extensão. Como já obser-
vamos (KERGOAT, 2018), o trabalho é uma “atividade paradigmática”
(VINCENT, 1987), no sentido em que é central sociologicamente, por ser
12 Ainda que, evidentemente, as identidades coletivas possam ser perigosas, na medida em
que criam a alteridade. Cf. MAALOUF, Amin., Les identités meurtrières. Paris, Grasset, 1998.
Pensemos igualmente no grupo “Génération identitaire” (literalmente, “geração identitária”)
ou na expressão Français de souche (que poderia ser traduzida como “francês da gema”).

23
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

um mediador privilegiado das relações entre indivíduo e sociedade,


e central politicamente, porque é ele que organiza a produção do viver
em sociedade (HIRATA; ZARIFIAN, 2000), e é por meio dele que pode-
mos colocar o problema da emancipação.
Essa centralidade do trabalho parecia evidente quando em torno
dele se organizava a maior parte dos movimentos sociais significativos
e o movimento operário era forte na França. Contudo, a centralidade
do trabalho permanece nestes tempos de desemprego, de globalização,
de empreendedorismo e de uberização do emprego, pois é de acordo
com essas mediações que a sociedade – tanto francesa quanto brasi-
leira – reconfigura-se atualmente. São mediações que permitem a repro-
dução ampliada do capital.
Compreender as sociedades atuais e sua evolução passa, por-
tanto, pelo reconhecimento da centralidade do trabalho. Entretanto,
não é a partir de qualquer conceitualização do trabalho. Ela necessita
levar em conta o “trabalho reprodutivo”, como teorizou a escola fran-
cesa da divisão sexual do trabalho, o “trabalho doméstico”, entenden-
do que ele abarca tanto o trabalho doméstico quanto o trabalho paren-
tal ou o trabalho doméstico de saúde, assim como demonstra a obra
coletiva O sexo do trabalho. Estruturas familiares e sistema produtivo
(COLLECTIF, 1984). Essa conceitualização foi elaborada em um contex-
to particular, aquele que, desde os anos 1960, testemunhou a explosão
do assalariado feminino.
Logo, o que importava para nós, era, sociologicamente, dar um
estatuto dinâmico à articulação entre trabalho assalariado e trabalho
doméstico, seguindo assim o espírito do feminismo da segunda onda,
que afirmava que o “privado é político” e proclamava seu cansaço e in-
dignação com o trabalho doméstico gratuito e invisível.
O trabalho torna-se, assim, central. Todavia, levar em conta a di-
visão sexual do trabalho é indispensável para pensar a divisão social
do trabalho, tanto como conceito quanto como realidade empírica.
No período atual passa-se por uma reestruturação profunda
do aparelho produtivo. Assim como em todos os períodos similares

24
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que o precederam, notamos movimentos muito fortes de redefinição


das qualificações e de redistribuição da mão de obra: profissões novas
estão surgindo, inúmeras qualificações tornaram-se obsoletas e não po-
dem mais servir de base para uma equivalência de diploma – qualifica-
ção – classificação. Esse movimento é acompanhado de uma bipolari-
dade acentuada entre trabalho manual e trabalho intelectual.

A divisão sexual do trabalho: um instrumento poderoso para


entender as mutações do período atual

Simultaneamente, a nível mundial, populações migram, seja


por motivos climáticos, econômicos ou políticos, para tentar encontrar
um abrigo, um trabalho, um ganha-pão. Mas se estas populações conse-
guem se mudar para um país “rico”, elas se defrontam com um mercado
de trabalho degradado, precarizado, uberizado e desregulado e a oferta
de trabalho desqualificado.
As formas da (super)exploração são renovadas e intensificadas
na prática, e esta situação é comum aos homens e às mulheres. É sobre
este pano de fundo que a divisão sexual do trabalho evolui. Se, neste
novo contexto, as modalidades mudaram, as estruturas são surpreen-
dentemente perenes. “Trabalho de homem” e “trabalho de mulher” é uma
oposição que permanece atual, ainda que os trabalhos de umas e de
outros tenham mudado. O mesmo se aplica à hierarquização das profis-
sões: se é reconhecido que o manuseio de armas necessita um mínimo
de aprendizagem, não se pode dizer o mesmo dos trabalhos femininos
em plena expansão nos países do Norte. Penso em particular nos ser-
viços às pessoas (crianças, pessoas idosas, manutenção de edifícios
e locais de trabalho) (FALQUET, 2006). É que estas profissões requerem
qualidades supostamente inatas (em razão do sexo, mas também da ori-
gem étnica – cf. a “doçura” das babás negras) e não adquiridas por um
aprendizado, supostamente dons da natureza e não adquiridos pela
cultura. Não há necessidade de reparti-los de forma adequada. Como
se a menina e a jovem das classes populares, pela educação específica
de futuras reprodutoras e o exercício cotidiano do trabalho doméstico,

25
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

não tivessem adquirido as qualificações necessárias para exercer de-


terminada profissão. Logo, estas mulheres não são babás ou empre-
gadas domésticas porque foram malformadas ou não foram formadas
pela instituição escolar, e sim porque são bem formadas pelo conjun-
to do trabalho reprodutivo que precisam assegurar, levando em conta
sua posição na divisão sexual do trabalho e, de modo mais amplo, na di-
visão social em seu conjunto.
A aquisição de saberes-fazeres femininos exigidos pelo mercado
do trabalho se dá amplamente fora dos canais institucionais de qualifi-
cação e sempre em referência à esfera privada; logo, tem-se a impressão
de ser uma aquisição individual, natural, e não coletiva; são inúmeras
as mulheres que interiorizam a banalização da própria qualificação e se
encontram, assim, pouco preparadas para negociar salários razoáveis.
Este é um dos obstáculos principais à mobilização coletiva das mulhe-
res. Porém, como veremos posteriormente, as formas atuais do neolibe-
ralismo, se são antes de tudo um dos efeitos opressivos da mão de obra
mundializada, também exercem efeito em termos de mobilização.

Centralidade dos trabalhos das mulheres: suas mobilizações

Convém também questionar a realidade em outro nível: le-


var em conta o trabalho feminino é central para entender o funciona-
mento das sociedades desenvolvidas atuais. Tal como foi salientado
por um jornalista em seu artigo “O poder insuspeitado das trabalhado-
ras” (RIMBERT, 2019), as sociedades simplesmente parariam de funcio-
nar se não houvesse o trabalho de todas essas mulheres, professoras,
puericultoras, enfermeiras, cuidadoras, empregadas domésticas, agen-
tes de manutenção etc.
Os sindicatos têm dificuldade de se dar conta da importância
deste fenômeno, visto que a história deles se construiu em torno da fi-
gura do trabalhador, operário, homem, branco, minerador ou metalúrgi-
co. Por conseguinte, não se dão conta do poder subversivo potencial
das trabalhadoras mulheres. Esses empregos, não transferíveis para ou-
tros países, são atribuídos às mulheres e somente a elas.

26
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Dito isto, movimentos que se desenham em escala mundial tor-


nam urgente esse reconhecimento, pois novas formas de conflituali-
dade aparecem. Foi este o testemunho que quis dar o livro Feminismo
para os 99%. Um manifesto (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER,
2019). No Brasil, na Índia, em Israel, no Líbano, é a luta das trabalhado-
ras domésticas. Na Espanha, em 2018, cinco milhões de manifestantes
marcharam contra as violências, tanto patriarcais quanto capitalistas;
há também o movimento mundial do #MeToo. Na França, o Dia contra
as Violências Feitas às Mulheres, 23 de novembro de 2019, reuniu 49 mil
manifestantes em Paris. Por fim, a participação maciça das mulheres
no movimento dos Coletes Amarelos (gilets jaunes).
O que é esse movimento? Seu nome se originou nos coletes ama-
relos usados pelos manifestantes. Este movimento social espontâneo
surgiu da difusão, principalmente nas redes sociais, de apelos para ma-
nifestar-se contra o aumento do preço da gasolina; a contestação orga-
nizou-se em torno de bloqueios de estradas e rotatórias e manifestações
todos os sábados. Esses protestos mobilizaram sobretudo moradores
das zonas rurais e periurbanas, mas se organizaram igualmente nas me-
trópoles, onde ocorreram diversos episódios de violência, em especial
na avenida dos Champs-Elysées. Durante as manifestações, milhares
de pessoas ficaram feridas.
Este movimento incandesceu a França durante vários meses,
a partir do dia 17 de novembro de 2018, chegando até a colocar, em cer-
tos momentos, o governo em dificuldade. Tratava-se de um movimento
de radicalização das classes populares, no qual se encontravam lado
a lado múltiplas categorias socioprofissionais modestas: empregados
assalariados, precários ou não, mas em todo caso mal remunerados,
pequenos empresários, microempreendedores individuais, desempre-
gados, mas também sem-teto, aposentados, deficientes etc.
A mídia francesa se referiu a esse movimento quase unicamente
através das violências, reais ou supostas, que acompanharam as mani-
festações. Contudo, não poderíamos parar por aí: assembleias gerais
foram organizadas regularmente nas regiões francesas e pautas de rei-
vindicações foram elaboradas. Rapidamente, as reivindicações do movi-
mento se expandiram para os campos social e político.

27
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

As mulheres, como já foi dito, foram muito ativas nesse movimen-


to. Não se tratava, aqui, de mulheres quaisquer, mas de mulheres de clas-
ses populares que se revoltaram contra a precariedade de seus empre-
gos, seus baixos salários, a diminuição da proteção social, a supressão
programada dos serviços públicos, sua condição (no caso das mães
solteiras), mas também contra o desprezo do poder público pelos pe-
quenos, pela “gentalha”.
Se todas contestam o peso do sistema político diante da sua
vida profissional (ou ausência dela, no caso das desempregadas) e à
sua vida privada, algumas foram mais longe, denunciando o lado sistê-
mico das violências exercidas contra as mulheres (na França, dia sim
dia não, uma mulher é morta vítima da violência doméstica), a violência
das relações sociais de classe e das relações sociais de sexo, a apro-
priação singular do trabalho das mulheres e de seus corpos através
da supressão programada dos serviços públicos. Tudo isso revelou-se
violentamente com a pandemia.
É, portanto, a divisão sexual do trabalho que permite dar conta
da mobilização dessas mulheres e de muitas outras no mundo inteiro,
bem como das modalidades dessa mobilização.
Colocar a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo
no centro dos dispositivos de análise permite não apenas tornar visí-
vel um grande número de fenômenos que passariam desapercebidos,
mas igualmente dinamizar os conceitos de trabalho e de divisão so-
cial do trabalho e abordar de maneira inclusiva os movimentos sociais
em toda a sua amplitude e diversidade. Colocar esses conceitos no cen-
tro da reflexão cidadã e feminista é uma necessidade.

Referências

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Féminisme pour les


99%. Un manifeste. Paris: La Découverte, 2019.
BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.
DALLA COSTA, Mariarosa. Le pouvoir des femmes et la subversion sociale.
Genebra: Librairie Adversaire, 1973.

28
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

DELPHY, Christine; KERGOAT, Danièle. Les études et les recherches féministes


et sur les femmes en sociologie. Femmes et recherche, pour quel féminisme.
In: Rapport sur les recherches féministes du collectif parisien du colloque
“Femmes, féminisme, recherche”, Toulouse, dez. 1982.
FALQUET, Jules. Hommes en armes et femmes ‘de service’: tendances
néolibérales dans l’évolution de la division sexuelle et internationale du travail.
Cahiers du genre, n. 40, 2006/1.
FEDERICI, Silvia. Le capital et la gauche (1975), republicado em Le capitalisme
patriarcal. Paris: La Fabrique éditions, 2019.
GUILLAUMIN, Colette. Pratique du pouvoir et idée de Nature. (1) L’appropriation
des femmes. Questions féministes, n. 2, fev. 1978.
HIRATA, Helena. Division sexuelle et internationale du travail. Futur Antérieur,
1993, n. 16, p. 27-40.
HIRATA, Helena; ZARIFIAN, Philippe. Travail (le concept de). In: HIRATA, Helena;
LABORIE, Laborie; LE DOARÉ, Hélène; SENOTIER, Danièle (Orgs.). Dictionnaire
critique du féminisme. Paris: PUF, 2000.
KERGOAT, Danièle. Division sexuelle du travail et rapports sociaux de sexe. In :
BISILLIAT, Jeanne ; VERSCHUUR, Christine (ed.). Genre et économie: un premier
éclairage. Genève : Graduate Institute Publications, 2001, pp. 78-88, DOI :
10.4000/books.iheid.5419.
KERGOAT, Danièle. Le travail, un concept central pour les études de genre ?. In:
MARUANI, Margaret (Org.). Je travaille, donc je suis. Perspectives féministes.
Paris: La Découverte, 2018.
MATHIEU, Nicole-Claude, L’arraisonnement des femmes. Essais en
anthropologie des sexes. Paris: Ed. de l’EHESS Les Cahiers de l’Homme, 1985.
MOVIMENTO dos Coletes Amarelos. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. [São
Francisco, CA: Fundação Wikipédia], 2022. Disponível em: https://fr.wikipedia.
org/wiki/Mouvement_des_Gilets_jaunes. Acesso em: 03 abr. 2022.
VINCENT, Jean-Marie. Critique du travail. Le faire et l’agir. Paris: PUF, 1987.

29
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Divisão sexual do trabalho:


permanência e variabilidade1

Helena Hirata2

Danièle Kergoat apresentou no seu artigo para este livro a proble-


mática da divisão sexual do trabalho e das relações sociais de sexo e a
atualidade desses conceitos para compreender os movimentos sociais
que se desenvolvem no mundo inteiro. Eu vou discutir as variabilidades
e as permanências da divisão sexual do trabalho a partir do exemplo
do trabalho do cuidado. E em contraponto à análise de Danièle Kergoat
sobre as mulheres participantes do movimento dos coletes amarelos,
apresentarei a mobilização das enfermeiras e auxiliares de enferma-
gem nas instituições de longa permanência de idosos e a mobilização
das cuidadoras domiciliares.
Podemos aprender as diferenças no espaço da divisão do tra-
balho entre mulheres e homens pela metodologia das comparações
internacionais e examinar que as permanências no tempo da divisão
sexual do trabalho têm a ver com a correlação de forças entre mulhe-
res e homens na sociedade, isto é, com as relações sociais de sexo.

1 Uma primeira versão desse artigo foi publicada em colaboração com Danièle Kergoat, com
o título “Atualidade da divisão sexual e centralidade do trabalho das mulheres” na revista
Política & Trabalho, n. 53, p.131-143, Junho-Dezembro de 2020. Trata-se aqui de uma versão
consideravelmente desenvolvida da parte que redigi desse artigo.
2 Diretora de pesquisa emérita do Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS), França e
pesquisadora colaboradora do Departamento de Sociologia da USP, Brasil.

31
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Assim, a partir da metodologia das comparações internacionais, vamos


utilizar outra chave para a compreensão da divisão sexual do trabalho:
as variabilidades no espaço e a permanência no tempo da divisão sexu-
al do trabalho.
Já tínhamos conceitualizado, num artigo de 1995 traduzido para
o português na revista Em Aberto de Brasília3, a permanência e as variabi-
lidades na divisão sexual do trabalho em termos de sincronia e diacronia
Dizíamos, nesse artigo, que tanto a variabilidade quanto a persistência
da divisão sexual do trabalho podem ser encontradas no tempo e no es-
paço, mas que a diacronia é a dimensão privilegiada para compreensão
da permanência, assim como a sincronia para apreender a variabilidade.
A comparação de diversos espaços nacionais permite apreender as di-
ferenças entre os sexos, assim como a comparação no tempo permite
constatar o que permanece nas relações sociais entre os sexos. Esse
paradoxo aparente – persistência na variabilidade – remete à imbrica-
ção, na divisão sexual do trabalho, de relações sociais que não são pe-
riodizáveis da mesma maneira. As dimensões constitutivas do tem-
po das relações sociais de sexo (evolução, rupturas e continuidades)
não são as mesmas que as dimensões constitutivas do tempo das re-
lações sociais capital-trabalho. Assim, esses dois tempos não são pe-
riodizáveis da mesma forma. Poderíamos levantar a hipótese de que
as mudanças na divisão sexual do trabalho remetem às conjunturas
econômicas e às relações de classe, o que não quer dizer que as cor-
relações de força entre os sexos não desempenhem um papel nessas
mudanças, e que as permanências remetem mais às relações sociais
de sexo, ou a uma das dimensões temporais dessas relações.
Também no texto citado afirmávamos a importância dos mo-
vimentos sociais, e em particular dos movimentos feministas, para
a criação de uma correlação de forças que fosse no sentido de uma
modificação ou não das relações sociais entre os sexos. A partir de um
olhar sobre o que muda na divisão sexual do trabalho, poderíamos di-
zer que o que parece ser determinante é o tipo de correlação de forças
entre homens e mulheres na sociedade, correlações de forças institu-

3 cf. Hirata (1995).

32
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cionalizadas ou não, que são frequentemente o resultado de amplas lu-


tas sociais, de movimentos sociais, e, sobretudo, da existência ou não
de movimentos feministas e de atividades conscientes em vista de uma
transformação das relações sociais.

Um exemplo de permanência da divisão sexual do trabalho é a


centralidade do trabalho das mulheres no cuidado

Uma primeira permanência notável nos três países (Brasil, Japão


e França) em que foi desenvolvida pesquisa sobre o trabalho de cuidado
é a centralidade do trabalho das mulheres (HIRATA, 2021). Elas têm um
papel central porque são provedoras de cuidados gratuitos no domicílio
e cuidados profissionais em instituições e residências fora de sua famí-
lia. Nessa área, as mulheres têm um papel central porque a sociedade
atribui o trabalho doméstico e de cuidado a um dos sexos, cristalizando
a divisão sexual do trabalho, tanto profissional quanto doméstico, entre
homens e mulheres.
O cuidado pode ser definido como um trabalho material, técnico
e emocional atravessado por relações sociais de sexo, de classe, de raça,
entre diferentes protagonistas: os provedores e as provedoras do cui-
dado, de um lado, os beneficiários e beneficiárias do cuidado de outro,
assim como todos os que administram, supervisionam ou prescrevem
o trabalho. O cuidado não é apenas uma atitude atenciosa, ele recobre
um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em dar
uma resposta concreta às necessidades dos outros. O cuidado é uma
disposição, portanto contendo um aspecto ético, e é igualmente prático.
Também podemos defini-lo como uma relação de serviço, de apoio ou de
assistência, remunerada ou não, implicando um sentido da responsabi-
lidade em relação à vida e ao bem-estar do outro. O trabalho de cuidado
diz respeito às pessoas em situação de dependência, mas todos os se-
res humanos são vulneráveis em algum momento de suas vidas. O cui-
dado, foi exercido e continua a sê-lo no espaço doméstico, na esfera
dita “privada”, e realizado “por amor” junto a pessoas idosas, crianças,
doentes, pessoas com deficiências físicas e intelectuais.

33
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A centralidade do trabalho das mulheres pode ser constatada


também no quadro da nova divisão sexual e internacional do trabalho.
O que pode ser confirmado por meio da análise do trabalho do cuidado
nas instituições e no domicílio, realizado gratuitamente ou a título de ati-
vidade remunerada. A despeito das diferenças societais, esse trabalho
é realizado pelas mulheres, com algumas exceções a que apresentarei
adiante, e provavelmente continuará sendo, por se tratar de um trabalho
precário, com baixos salários, pouco reconhecido e valorizado. A orga-
nização social do cuidado (OSC) atribui um papel central à mulher e à
família.
Para além das grandes diferenças entre os países pesquisados,
tanto pelo seu nível de desenvolvimento econômico e tecnológico quan-
to por sua história sociopolítica e cultural, e face ao envelhecimento
rápido de sua população e à falta de mão de obra gratuita feminina,
as mulheres desses três países estão cada vez mais presentes no mer-
cado de trabalho e não podem mais se ocupar das pessoas dependen-
tes no seio de sua própria família. É esse duplo fenômeno que engen-
dra o que é chamado de “crise do cuidado”. Um terceiro componente
dessa crise, sublinhado por Nancy Fraser (2017) no livro coletivo Social
Reproduction Theory, é a privatização e a supressão de políticas públi-
cas de cuidados. A crise do cuidado enquanto “crise de reprodução” está
relacionada, de acordo com a autora, ao desmantelamento dos serviços
sociais e dos serviços públicos de cuidado, assim como a uma transfor-
mação da socialização em uma privatização do cuidado. Segundo a pe-
riodização de Fraser, o desengajamento do Estado é amplamente en-
corajado no regime atual do capitalismo financeiro globalizado. A crise
do cuidado teve assim como consequência o desenvolvimento das pro-
fissões relacionadas ao cuidado e à mercantilização e externalização
crescentes desse trabalho.
A centralidade do trabalho das mulheres é tanto quantitativa, pela
inserção maciça das mulheres no mercado de trabalho, quanto quali-
tativa, pois seu investimento é essencial para o trabalho reprodutivo
e pelo fato de que se encontram nas profissões de produção do viver,
as profissões do cuidado. Podemos observar a centralidade do trabalho

34
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

das mulheres tanto realizado gratuitamente quanto como atividade re-


munerada, nas instituições e nos domicílios.
As principais atrizes e os atores do cuidado, além das cuidadoras,
isto é, o Estado, o mercado, a família e a comunidade, agem em cada país
de maneira desigual e assimétrica, mas as mulheres continuam a realizar
majoritariamente o trabalho do cuidado em domicílio. No Brasil, são as
trabalhadoras domésticas e as diaristas sem registro; na Europa, as mu-
lheres imigrantes e muitas vezes sem documentos; no Japão são as
mulheres que acumulam frequentemente o cuidado em relação aos pais
idosos e o trabalho de cuidado remunerado em domicílio. A imbricação
das relações sociais se faz diferentemente em cada país, mas a organi-
zação social do cuidado atribui de maneira constante um papel central
às mulheres e à família nos três países estudados.
Um exemplo da variabilidade no espaço da divisão sexual do traba-
lho é a organização do trabalho das cuidadoras domiciliares nos países
pesquisados. A similitude é que elas cuidam somente do idoso e tudo
o que diz respeito ao idoso (alimentação, roupas, limpeza do quarto e do
banheiro), mas sem cuidar do entorno dos outros membros da família.
A grande diferença com a profissionalização do cuidado é que o traba-
lho de cuidado é realizado em horários predeterminados na França e no
Japão (1 a 2 h em cada casa, cerca de 5 visitas por dia) enquanto que no
Brasil as cuidadoras domiciliares têm a mesma organização do tem-
po de trabalho que as empregadas domésticas: de segunda a sábado,
8h por dia, conforme legislação (BRASIL, 2015) e, portanto, substituição
segundo o momento do dia, mas nem sempre as famílias cumprem essa
legislação. Essa variabilidade mostra a importância das trabalhadoras
domésticas na sociedade brasileira, ausentes na França e no Japão.

Um outro exemplo da variabilidade no espaço da divisão sexual


do trabalho é o caso dos homens no trabalho de cuidado no Japão

O grande número de homens que trabalham como cuidadores


nas instituições japonesas (shisetsu) é bastante surpreendente, quando
se sabe o quanto o cuidado é considerado um trabalho feminino no espa-

35
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ço doméstico. Na França, nas Instituições de Longa Permanência Para


Idosos (ILPI), pouco mais de 10% dos profissionais de cuidados eram
homens. Em instituições similares no Brasil, eles eram menos de 5%.
Já nos shisetsu do Japão os homens chegam a quase 40%. Em núme-
ros absolutos, do total de 265 cuidadores entrevistados nos três países,
215 eram mulheres (81%) e 50 eram homens (19%). No Brasil, foram
entrevistados 82 mulheres e 4 homens; na França, 82 mulheres e 13 ho-
mens; no Japão, 51 mulheres e 33 homens. Mais de 95% dos cuidadores
no Brasil eram mulheres. Na França, eram quase 90%.
Os homens e as mulheres japoneses entrevistados consideram
que o ambiente misto é um aspecto positivo de suas atividades. Os de-
poimentos de alguns deles se assemelham aos ouvidos em pesqui-
sas efetuadas na indústria. “É melhor ter um homem. Existem tarefas
que exigem força física. E a atitude dos homens também se modifica
quando há mulheres presentes” (cuidador japonês de 42 anos).
Entretanto, outras considerações foram menos previsíveis: “De
uma maneira geral, é melhor ter os dois, homens e mulheres. Pode-se
beneficiar da maneira diferente de ver as coisas” (cuidador japonês
de 50 anos). Ou ainda, “pode-se, assim, ter o bom lado de cada um, ho-
mens e mulheres” (cuidador japonês de 26 anos). Há um paradoxo evi-
dente nesse investimento feito pelos homens em tarefas consideradas
tradicionalmente como femininas – tomar conta de pessoas idosas,
dar banho, alimentar, levá-las ao banheiro, vestir, mas também, conver-
sar com elas e interagir –, se levarmos em conta a tradição, ainda muito
machista, da divisão do trabalho profissional e doméstico na sociedade
japonesa.
Diversas explicações podem ser encontradas para essa varia-
bilidade na divisão sexual do trabalho do cuidado que a comparação
internacional revela. A mais importante parece ser a crise econômica
que atingiu o Japão com a falência do banco de investimento Lehman
Brothers, em 2008, o que provocou desemprego em massa de homens
que estavam no setor industrial ou no setor financeiro (bancos e com-
panhias de seguros). O governo japonês propôs a formação gratuita
para a profissão de cuidador com garantia de emprego uma institui-

36
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ção de longa permanência de idosos ao final da formação profissional.


Trabalhar em uma atividade tradicionalmente feminina era uma alterna-
tiva melhor do que o desemprego. Entre o não trabalho ou o desempre-
go e o trabalho no setor do cuidado, a escolha dos homens japoneses
foi clara. A despeito das dificuldades e da penosidade ligadas a essa ati-
vidade, o emprego nesse setor em expansão abriu perspectivas de car-
reira e certa estabilidade, frente à terrível experiência do desemprego.
Também desde 2000, com a implantação do Long Term Care Insurance
(LTCI)4 houve, por parte do governo, uma propaganda maciça nas mídias
quanto à nova profissão de cuidador de idosos como perspectiva para
os jovens formandos de ambos os sexos. Foram as instituições de lon-
ga permanência de idosos que acolheram os candidatos homens ao tra-
balho de cuidador, pois no cuidado a domicílio, que requer a realização
simultânea do trabalho doméstico e de cuidados, são as mulheres es-
sencialmente que o realizam.

Um outro exemplo de permanência na divisão sexual do trabalho:


“teto de vidro” e desigualdades salariais

Como em pesquisas realizadas nos anos 1980 e 1990 no setor


industrial, pudemos constatar que os postos de direção e de supervi-
são são geralmente ocupados por homens nos três países, e que o fato
das mulheres serem majoritárias entre as cuidadoras não garante a elas
o acesso aos postos de “líder” ou de diretoras. A feminização dos pos-
tos de direção era mais importante na França do que no Japão ou no
Brasil, o que seríamos tentadas a atribuir à força dos movimentos femi-
nistas pela igualdade entre os sexos no primeiro país.
Uma segunda permanência notável, apesar das diferenças de tra-
tamento entre homens e mulheres nos três países, diz respeito às desi-
gualdades salariais. Já foi constatada a permanência da desigualdade
de remuneração entre os sexos a partir de uma perspectiva diacrônica,
na temporalidade de um século: a economista francesa Rachel Silvera
(2016) declara que o salário das mulheres na França é de ¼ a menos

4 Sobre essa política pública para idosos no Japão, conferir Chizuko Ueno (2017).

37
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(27%) do que o dos homens, tanto em 2017 quanto em 19175. No Brasil,


essa diferença é hoje por volta de 30%.
Podemos afirmar que as mulheres profissionais do cuidado re-
cebem, nas instituições, salários inferiores aos dos seus homólogos
masculinos. Para além das desigualdades salariais entre homens e mu-
lheres, há desigualdades salariais substanciais entre os países: salários
maiores no Japão para os dois sexos, salários inferiores no Brasil para
os dois sexos, a França ficando em uma situação intermediária. Os salá-
rios mais altos no Japão se explicam principalmente pela existência do
“bônus”: um salário suplementar pago duas vezes ao ano, representan-
do três a quatro salários mensais e beneficiando os assalariados regula-
res na empresa. Outra desigualdade entre os países que repercute sobre
os salários é a prática de horas extras sem remuneração, que era cons-
tante no setor de cuidados nos anos 2000, como era usual nos anos
1980 no setor industrial, quando da minha pesquisa sobre firmas multi-
nacionais no Brasil, na França e no Japão6.

Similitudes na atividade de cuidado e nas percepções do cuidado

A partir de um pequeno grupo de entrevistadas/os, pude levantar


alguns pontos sobre as diferenças e similaridades na atividade de cui-
dado no Brasil, França e Japão. Analisando em profundidade nove entre-
vistas, seis mulheres e três homens, sendo três em cada país, encontrei
várias semelhanças entre mulheres e homens, e entre os trabalhadores
e trabalhadoras dos três países, na maneira de conceber o cuidado e a
realização da atividade de cuidado.
Na atividade de cuidado, há uma série de convergências entre
a disposição das cuidadoras e cuidadores dos três países. Uma primei-
ra é a ideia de presença associada ao cuidado. Cuidar é estar presente,
e a presença é sempre para um indivíduo, e não para uma multiplici-

5 Sobre a questão da permanência das desigualdades salariais entre homens e mulheres no


tempo, ver Hirata (2018) e Rachel Silvera (2016).
6 Sobre essa pesquisa sobre multinacionais realizada nos anos 1980 cf .Hirata, 2002, primei-
ra parte, p. 29-130.

38
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

dade de pessoas. Quando se trata de muitas pessoas, a possibilidade


de garantir a presença se esvai. Uma segunda convergência é a dife-
rença na resposta sobre “o que é o cuidado” e “em que consistem suas
atividades”. A questão sobre o que é o cuidado remete à disposição,
e coloca o cuidador na dimensão da ética e do trabalho concreto. O cui-
dado é pensado em relação a um indivíduo singular, as “atividades”
pressupõem a presença de um coletivo, à necessidade de cooperação,
e a níveis de dependência diferentes segundo os indivíduos. A tercei-
ra convergência: o cuidado e as “atividades” são pensados como ajuda
por três cuidadoras mulheres e por um cuidador homem. A noção de
“ajuda” relacionada ao “cuidado” aparece de maneira recorrente. A quar-
ta convergência: as atividades se referem não apenas à dimensão fisio-
lógica, mas também à dimensão psicológica e, entre as disposições,
a paciência é necessária para realizar essas atividades.
Embora as diferenças societais entre os três países considerados
sejam significativas na definição do que é o cuidado e nas diferentes
atividades, tais como elas são expressas pelas trabalhadoras e trabalha-
dores entrevistados, não foi possível constatar diferenças importantes,
e sim similitudes nas disposições e nas práticas.

Similitudes nas percepções do salário e dos problemas de saúde

As cuidadoras e cuidadores têm a mesma percepção dos salá-


rios, considerados baixos nos três países, a despeito das desigualda-
des salariais entre eles. A ideia de um não reconhecimento do valor
monetário do trabalho do cuidado é recorrente no Japão, assim como
na França e no Brasil, e expressa por mulheres e homens. A diferen-
ça entre os sexos se encontra no argumento sobre as consequências
dos baixos salários: os homens empregados, sobretudo no Japão, con-
sideram que eles não poderiam se casar e fundar uma família com os
salários que recebiam.
Outro ponto de semelhança é relativo aos problemas de saúde
no trabalho, sobretudo lombalgias e hérnias de disco, declarados como
males muito frequentes nos três países, tanto pelas mulheres quanto

39
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

pelos homens. Não há, por parte da direção dos estabelecimentos, ne-
nhuma prática preventiva para evitar essas dores incapacitantes de que
praticamente todos os trabalhadores, homens e mulheres, se queixam.

Divisão sexual do trabalho e mobilizações femininas no setor


do cuidado

A variável sindical deve ser levada em conta para explicar a dife-


rença nas mobilizações no setor de cuidado. Quando avaliamos as en-
trevistas realizadas nos três países, é preciso notar que as respostas
das/os entrevistadas/os são mais uniformes e padronizadas no Japão.
Neste país, há pouca contestação da organização do trabalho e da ati-
tude da direção. Na França, os sindicatos estão mais presentes e os
discursos manifestam mais frequentemente desacordos com a direção.
O setor de cuidado se mobilizou recentemente na França –
em 2017 e 2018 – e não constatamos movimentos similares no Japão
ou no Brasil. No Japão não tivemos conhecimento da presença de sindi-
catos nas instituições pesquisadas. Já no Brasil, ainda há poucas asso-
ciações de cuidadoras, e são os sindicatos de trabalhadoras domésticas
que representam as cuidadoras. A profissão ainda não é regulamentada,
pois o Projeto de Lei nº 284/2011 lei, aprovado pelo Parlamento, não foi
sancionado pela presidência da República em 2019.
Se as mulheres francesas que fazem parte do movimen-
to dos Coletes Amarelos pertencem a vários setores da sociedade
que formam as “classes populares”, como mencionou Danièle Kergoat
em seu artigo, a mobilização das cuidadoras e auxiliares de enfermagem
nas instituições de longa permanência de idosos na França nos anos
de 2017 e 2018 são movimentos que partem de uma categoria socio-
profissional. Essas mobilizações foram realizadas contra as restrições
orçamentárias do Ministério da Saúde daquele país, que provocaram
intensificação do trabalho e um cuidado de má qualidade. Que sejam
as mulheres o contingente maciço de grevistas na França não é de es-
tranhar, sendo a categoria composta em quase 90% de mulheres neste
país. Trata-se de uma greve de 117 dias em um estabelecimento situado

40
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

em Foucherans, no leste da França (greve descrita em livro por Anne-


Sophie Pelletier, 2019). A reivindicação, que visa diretamente o Estado,
foi de conceder financiamentos significativos ao setor da saúde, para
a criação de mais postos de trabalho que permitam às cuidadoras rea-
lizarem adequadamente o seu trabalho junto aos idosos. A questão do
“valor de uso” do seu trabalho remete à análise feita por Danièle Kergoat
(1992) do movimento das enfermeiras na França em 1988 e 1989 e a
emergência de uma “nova figura salarial feminina”. As trabalhadoras
do cuidado na França poderiam ser vistas como uma emergência des-
sa nova figura esboçada no movimento social das enfermeiras do fim
dos anos 1980.
Assistimos a mobilizações recentes de enfermeiras, auxiliares
de enfermagem e cuidadoras domiciliares no contexto da pandemia,
quando essas categorias profissionais foram expostas à contaminação
e assoberbadas de trabalho nos hospitais, com baixas remunerações
e com condições inadequadas de trabalho.
As enfermeiras da França são uma das mais mal pagas de toda
a Europa. Comparado com o salário médio no país, as enfermeiras fran-
cesas têm 90% desse salário, enquanto na maior parte dos países mem-
bros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) elas recebem mais do que o salário médio, com uma média
de 110% para 32 países da OCDE em 20197. Além disso, sabemos que na
França as cuidadoras domiciliares estão entre as categorias profissio-
nais cujas condições de emprego e de salários são as mais precárias.
Em maio de 2020, as enfermeiras francesas reivindicaram um au-
mento salarial de 300 euros, dizendo que não se contentariam com prê-
mios, medalhas e saudações do governo na festa nacional do 14 de ju-
lho de 2020. Elas reivindicavam um aumento que fosse considerado
no momento da aposentadoria. Não obtiveram o aumento de 300 euros,
e sim de apenas 180 euros em duas parcelas, a primeira parte do au-
mento no fim de 2020 e a segunda em 2021. Porém, com a segunda

7 Dados sobre o salário das enfermeiras francesas coletados junto à OCDE por Nina Sahraoui,
socióloga pós-doutoranda no laboratório CRESPPA-GTM, CNRS.

41
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

onda da pandemia o governo francês voltou atrás e prometeu dar a tota-


lidade do aumento até o fim de 2020.
No Japão, as enfermeiras conscientes da precariedade das suas
condições de trabalho e de sua baixa remuneração sem relação com os
riscos sofridos nesse período de pandemia se mobilizaram, tanto indivi-
dualmente pedindo demissão, quanto coletivamente por meio da demis-
sões de 400 enfermeiras do hospital universitário de mulheres de Tóquio
contra a supressão do “bônus”, parte variável, mas importante do salário
dos trabalhadores japoneses. Greves de médicos também foram regis-
tradas contra a supressão dos “bônus” por problemas de rentabilidade
dos hospitais.
No Brasil, não foram vistas mobilizações similares do pesso-
al hospitalar, mas houve forte mobilização das trabalhadoras do-
mésticas, que cuidam de idosos e crianças nas famílias. A campa-
nha “Cuida de quem te cuida”, coordenada pela Federação Nacional
das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), teve forte repercussão
no ano de 2020 e as trabalhadoras domésticas brasileiras continuam
mobilizadas contra o desemprego, pelo auxílio emergencial e por condi-
ções decentes de trabalho (GUIMARÃES; HIRATA, 2020).

Conclusão

Analisamos os conceitos de divisão sexual do trabalho e de rela-


ções sociais de sexo com o objetivo de mostrar a sua atualidade, tan-
to teórica quanto política, tentando pensar através delas movimentos
de resistência e de emancipação, como os das cuidadoras de institui-
ções no interior da França. Somos tentadas a considerar atual a reflexão
de Hélène le Doaré segundo a qual “as condições respectivas do traba-
lho dos homens e das mulheres mudam segundo o contexto histórico,
cultural, econômico, mas não se transformam, elas seguem obstinada-
mente a mesma linha de demarcação dos espaços masculinos e femi-
ninos” (LE DOARÉ, 1994, p. 65)
Colocar a divisão sexual do trabalho (DST) e as relações sociais
de sexo (RSS) no centro dos dispositivos de análise permite não apenas

42
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tornar visíveis um grande número de fenômenos que passariam desa-


percebidos, mas igualmente dinamizar os conceitos de trabalho e de
divisão social do trabalho, e de abordar de maneira inclusiva os movi-
mentos sociais em toda a sua amplitude e diversidade. Proponho co-
locar esses conceitos de DST e de RSS no centro da reflexão cidadã
e feminista.

Referências

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contrato de trabalho doméstico... Brasília, DF: Diário Oficial da União. 02 de
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43
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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44
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

As mulheres nas ocupações


relacionadas aos cuidados: uma
análise do setor de saúde no
contexto da pandemia de covid-19

Cristiane Soares1
Hildete Pereira de Melo2

Introdução

Há um ano, em março de 2020 o Governo Federal decretou estado


de emergência em saúde pública como medida para conter a propaga-
ção do novo coronavírus no Brasil. Passados doze meses, o país conta-
bilizou mais de 10,5 milhões de casos e 255,8 mil óbitos, sendo que em
22% dos municípios brasileiros a covid-19 matou mais pessoas do que
o total registrado em 2020 (O GLOBO, 2021, p. 11). Já em 2021, nos me-
ses de março a maio a pandemia explodiu e, em setembro, esses núme-
ros foram contabilizados em quase 600 mil óbitos e milhares de casos
registrados. Os efeitos dessa grave crise sanitária e de saúde pública
têm assumido dimensões inimagináveis em curto tempo no Brasil e em
todo o planeta.
1 Doutora em Economia pela Universidade de Brasília (UnB), Técnica do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Endereço eletrônico: csoares_rj@hotmail.com.
2 Doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professora
Associada da Universidade Federal Fluminense. Endereço eletrônico: hildete43@gmail.com.

45
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

No Brasil, a resistência do governo em adotar as políticas de iso-


lamento social e efetivar a compra de vacinas trouxe graves consequên-
cias para o povo brasileiro. Buscou-se ainda polemizar entre interesses
econômicos e a preservação da vida. Embora não explicitada aberta-
mente para a população, a temerária estratégia adotada pelo governo
de obter a imunidade de rebanho colocou o país no topo das mortes
mundiais. Assim, nos primeiros meses de 2021 houve uma escalada
das contaminações e mortes no Brasil, cujo ápice foi a crise sanitária
vivida pela cidade de Manaus/AM e a propagação de uma variante bra-
sileira que alarmou o mundo.
A crise sanitária provocou pequenos “lockdowns” nas capitais
e ao longo dos meses a pandemia foi avançando. Somada às múltiplas
crises instauradas no país, tais como a econômica e a política, e ao am-
biente de incerteza, repercutiu no cenário nacional um quadro de reces-
são técnica, aumento do desemprego, inflação e a ampliação dramáti-
ca da pobreza. A situação social foi atenuada, no entanto, pelo “auxílio
emergencial” que impactou de forma positiva os domicílios com os me-
nores Rendimentos (IPEA, 2020).
Em abril de 2021, segundo as estatísticas de acompanhamento
da evolução da covid-19,3 o país viveu o pior momento desde o início
da pandemia. Em plena segunda onda da propagação da doença, foi re-
gistrado uma média de óbitos diários superior a 3.700. Houve uma enor-
me pressão em setores de atendimento à saúde e para os profissionais
da saúde com o aumento da demanda dos seus serviços e as limitações
estruturais do setor, em particular do Sistema Único de Saúde (SUS) que,
nos últimos anos, tem passado por um processo de sucateamento.
Além desse contexto, um aspecto pouco destacado na mídia
é que as mulheres se viram no centro das respostas à crise sanitária
seja pela sua presença no atendimento à saúde ou pelo isolamento so-
cial que exigiu cuidados com toda a família. Com efeito, a crise sanitá-
ria potencializou ainda as desigualdades no mundo do trabalho, tanto
sob a perspectiva do trabalho remunerado como pela ótica do trabalho
não remunerado, que é fundamental para a reprodução econômica e so-
cial. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
3 Ver Óbitos por covid-19 por data de notificação em: https://covid.saude.gov.br/.

46
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(CEPAL, 2021), a pandemia de covid-19 impactou a região não somen-


te com baixo crescimento econômico, aumento da pobreza e das de-
sigualdades, mas repercutiu fortemente sobre a autonomia econômica
das mulheres, agravando as desigualdades de gênero.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo é analisar a dinâmica do em-
prego feminino em ocupações relacionadas aos cuidados com base
nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (PNADC) do terceiro trimestre de 2019 e de 2020 para ava-
liar os efeitos da pandemia.4 As ocupações da área da saúde e o setor
de saúde são destacados, visto que, apesar desse grupo ocupacional
estar no centro das respostas à pandemia, identificou-se uma carência
de estudos que abordassem as relações de desigualdade de sexo e cor/
raça no setor.

A importância do cuidado no contexto da pandemia de Covid-19

Nos estudos de gênero relacionados à divisão sexual do trabalho,


os cuidados, assim como os afazeres domésticos, sempre estiveram
no centro das análises como o trabalho realizado no âmbito da família
e majoritariamente pelas mulheres, voltado à reprodução social e econô-
mica da vida. Tradicionalmente, no campo da Sociologia e da Economia,
esse tipo de trabalho tem sido denominado como trabalho reprodutivo
em contraponto ao trabalho produtivo, voltado à produção para o merca-
do. Mais recentemente, seguindo uma abordagem economicista do tra-
balho e alinhada a conceitos internacionais, têm sido adotados os ter-
mos trabalho remunerado e trabalho não remunerado.
A partir da perspectiva do que é trabalho remunerado e trabalho
não remunerado e as tensões geradas para um número crescente de mu-
lheres que se divide entre o trabalho não remunerado, realizado na esfe-
ra doméstica, e o trabalho remunerado, ofertado no mercado, as ativida-
des relacionadas aos cuidados assumiram uma perspectiva mais ampla
e ganharam uma dimensão que extrapola a esfera doméstica.

4 Resultados processados em março de 2021 a partir dos microdados disponíveis em www.


ibge.gov.br.

47
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Embora não haja uma terminologia amplamente aceita sobre


o que são os cuidados, e dada a complexidade que envolve o termo
e suas diferentes dimensões, grande parte dos pesquisadores tem ado-
tado formas mais abrangentes de conceituação a partir de múltiplas
perspectivas de análise ou sistematização (IPEA, 2016). Sem pretensão
de estabelecer um conceito específico, Soares (2021) parte da lógica
sobre oferta e demanda de cuidados para estabelecer um arcabouço
analítico em que toda a população carece de cuidados e que sua estru-
tura etária, assim como a condição de saúde e de deficiência transitó-
ria ou permanente, afeta essa relação de demanda. Fatores externos,
como uma pandemia, podem afetar essa estrutura de cuidados dadas
as caraterísticas da população. A forma como os cuidados são oferta-
dos e o tipo de trabalho associado (remunerado ou não) reflete padrões
de desigualdade na sociedade, exacerbados pela pandemia de covid-19
e reafirmando a importância dos cuidados para a reprodução da vida
(Figura 1).
Contudo, não é de hoje que a emergência de uma política nacio-
nal de cuidados vem sendo propagada por pesquisadores. O Brasil,
nas décadas de 1970 e 1980, ainda com uma população relativamente
jovem, tinha como uma das principais bandeiras do feminismo a ofer-
ta de creches para que as mulheres pudessem ingressar no mercado
de trabalho. Nesse período, a escolarização feminina avançou assim
como a entrada das mulheres no mercado de trabalho. No entanto,
as tensões e relações de desigualdade permaneceram e os cuidados
seguem sob responsabilidade feminina, seja no domicílio ou nas esco-
lhas profissionais. A articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo
tem resultado em uma sobrecarga de trabalho para as mulheres que,
na maioria das vezes, as coloca em posição de conflito com a forma
de organização do tempo social.
A socialização das mulheres na família e na escola permanece
um elo importante na definição de suas escolhas profissionais. Assim
como sua posição no mercado de trabalho reproduz o seu papel social,
a importância e o lugar das mulheres em todas as sociedades contem-
porâneas (MARUANI, 2008). Portanto, a entrada das mulheres no mun-
do do trabalho não significou uma igualdade, embora a elevação da es-

48
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

colaridade feminina tenha sido um dos fatos mais marcantes do século


passado e, na década de 1970, as mulheres já representassem 42,5%
dos estudantes universitários do Brasil (MELO; THOMÉ, 2018). Todavia,
nessa mesma década as mulheres ainda eram maioria entre os anal-
fabetos, embora a distribuição por sexo entre todos os níveis de ensi-
no tenha sido mais equilibrada. Apesar desses avanços, a construção
das carreiras femininas ainda era embrionária, cujas trajetórias escola-
res eram determinadas em função do sexo e das características sociais
dos estudantes, como classe social e raça (SOARES; MELO; BANDEIRA,
2014).
O avanço no processo de envelhecimento populacional nas últi-
mas décadas é um aspecto adicional que tende a pressionar essa ar-
ticulação entre o trabalho reprodutivo e produtivo. Nas próximas três
décadas, o país terá quase 51 milhões de idosos, dentre os quais 57%
serão mulheres. Se mantidos os padrões de gênero e de participação
econômica atuais, haverá uma “crise de cuidado” de grande magnitude,
cujo impacto será maior para as mulheres. São gerações de mulheres
voltadas para o cuidado e reprodução da vida sem perspectivas futuras-
de cuidado.

Figura 1 – Arcabouço analítico dos cuidados

Fonte: SOARES (2021). Elaboração própria.

49
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Sem políticas públicas de cuidado e com a perspectiva de gêne-


ro, a inserção e a permanência das mulheres no mercado de trabalho
têm sido restringidas, tanto em termos de participação quanto de uma
inserção de qualidade, em postos com maior remuneração, formaliza-
dos e em setores que não sejam extensões domésticas5.

A dinâmica do emprego feminino nas atividades relacionadas


ao cuidado durante a pandemia de covid-19

No mercado de trabalho brasileiro, os efeitos da pandemia foram


bastante expressivos e repercutiram não somente sobre o desempre-
go, visto que o número de desocupados saltou de 11,6 milhões para
14 milhões, assim como houve também um incremento de 13,7 mi-
lhões no número de pessoas que saíram da força de trabalho, atingindo
o nível de 78,5 milhões de pessoas no terceiro trimestre de 2020. Além
disso, o desalento teve um crescimento de 25,1% no primeiro trimestre
de 2021 e a subocupação por insuficiência de horas aumentou 34,4%
no segundo trimestre de 2021 na comparação com o mesmo período
do ano anterior.
Entretanto, para compreensão dos efeitos da pandemia sobre
o emprego feminino, um aspecto importante que precisa ser analisado
é o fluxo de pessoas dentro e fora da força de trabalho sob a perspec-
tiva de gênero. O segundo trimestre de 2020 já apresentou os efeitos
da pandemia no mercado de trabalho, mas seguindo essa abordagem
comparativa do terceiro trimestre de 2020, que foi o período mais agudo
no primeiro ano da pandemia, os resultados indicaram que a população
na força de trabalho teve uma retração de -9,2% em relação ao mes-
mo trimestre do ano anterior. Contudo, para a população feminina essa
variação foi ainda maior (-10.9%), passando de 47,9 milhões para 42,6
milhões. A população feminina fora da força de trabalho ultrapassou
a população no mercado de trabalho (50,5 milhões), aspecto que não
se observava há pelo menos duas décadas. Esse impacto pode ser evi-
denciado também na taxa de participação feminina no mercado de tra-

5 Estudo da Cepal estima que 57% das mulheres da região estão concentradas em setores
que foram fortemente impactados com a pandemia de covid-19 (CEPAL, 2021).

50
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

balho que, no terceiro trimestre de 2020, foi de 45,8%, o que representou


uma redução de 14,1% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.
Entretanto, a taxa de participação feminina não ficava abaixo de 50%
desde o início da série da PNAD Contínua. E se for considerada a série
da PNAD Anual, desde 2001 não se verificava também uma taxa de par-
ticipação tão baixa para as mulheres.
As mulheres que buscavam uma posição no mercado de traba-
lho somavam 7,2 milhões no terceiro trimestre de 2020, um contingente
maior do observado para a população masculina (6,9 milhões). Embora
as mulheres apresentassem uma taxa de desocupação mais elevada
que a masculina (16,8% contra 12,8%), a variação no período foi maior
para os homens. Isso porque as mulheres deixaram de pressionar
o mercado de trabalho saindo da força de trabalho. Caso contrário
a taxa de desocupação feminina seria mais elevada. Como a pandemia
exigiu ainda mais cuidados, considerando os vários contextos sociais
de cuidados de crianças, idosos, enfermos e outros, muitas mulheres
não tiveram oportunidade para buscar uma colocação no mercado
de trabalho. Os resultados da PNAD Contínua para esse trimestre apon-
tavam que quase 26% das mulheres fora da força de trabalho afirmaram
não buscarem trabalho por conta dos afazeres domésticos e cuidados.
O trabalho não remunerado realizado no âmbito dos domicílios
são fundamentais para a reprodução social e econômica, mas o encar-
go atribuído à maioria das mulheres faz com que muitas delas não te-
nham a oportunidade de buscar uma posição no mercado de trabalho
ou condições melhores no mesmo. Ademais, a inserção precária de par-
te das mulheres no mercado de trabalho pode ser explicada por essa
necessidade de articulação entre vida familiar e profissional, bem como
pela dificuldade de inserção em atividades com maior prestígio social
e diferentes daquelas que remetem “à natureza feminina”6.
A análise dos dados gerais do mercado de trabalho, no entanto,
não permite visualizar o quanto as desigualdades, principalmente as de

6 Um dos paradoxos do mercado de trabalho é explicar os padrões de inserção feminina


apesar da maior escolaridade das mulheres. É nesse sentido que a literatura sobre traba-
lho com a abordagem de gênero tem contribuído não somente para a compreensão dos
padrões de inserção laboral, bem como para dar visibilidade às desigualdades que se so-
brepõem (interseccionalidade).

51
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

gênero e raça, se agravaram neste período pandêmico. As desigualda-


des se agravaram não somente porque as mulheres são maioria nos in-
dicadores de desocupação, subocupação, desalento, informalidade, en-
tre outros, mas também por conta do aumento da carga de trabalho
não remunerado imposta pela pandemia. Uma das medidas adotadas
para evitar a propagação do vírus foi o fechamento das escolas e a in-
trodução do ensino remoto, o que levou a uma intensificação de tarefas
dentro dos domicílios. Antes da pandemia, em 2019, segundo os dados
da PNAD Contínua, as atividades de cuidados e afazeres domésticos
estavam a cargo de 36,8% dos homens e 92,1% das mulheres, e elas
dedicavam, em média, 21,3 horas semanais nessas atividades, pratica-
mente o dobro da jornada dos homens (10,9 horas semanais).
A pandemia trouxe a necessidade de intensificar as medidas sani-
tárias e de higiene, assim como as de cuidado em geral e são as mulhe-
res, sejam as ocupadas, não ocupadas, em trabalho remoto e aquelas
em atividades essenciais, que têm integrado a linha de frente em res-
posta à pandemia. Embora não haja ainda estatísticas oficiais sobre
as outras formas de trabalho no período pandêmico, estudos realizados
na atualidade têm apontado para a sobrecarga de trabalho das mulheres
nos domicílios face aos novos desafios impostos pelo contexto da pan-
demia (Biblioteca del Congreso Nacional de Chile, 2021; CEPAL, 2021).
O que fica claro é que houve uma maior demanda por cuidado em sen-
tido amplo e a realização destes, seja remunerado ou não, é realizado
majoritariamente por mulheres. Contudo, a intensificação das relações
de desigualdade do trabalho não remunerado no período possivelmente
não será visibilizada por conta das limitações das estatísticas oficiais.
Por outro lado, os efeitos da pandemia no trabalho remunerado nas ati-
vidades relacionadas com os cuidados já podem ser identificados.
Na Tabela 1, os resultados da PNAD Contínua mostraram que as
mulheres nas ocupações de dirigentes em atividade de cuidados7 ti-
veram uma redução da ocupação na categoria de 26,3 mil, passando
de 166,8 mil para 140,5 mil. Vale ressaltar que embora as mulheres se-
jam minoria nas atividades de direção e gerenciais, nas ocupações rela-
7 A categoria dirigente em cuidados inclui: Dirigentes de serviços de cuidados infantis;
Dirigentes de serviços de saúde; Dirigentes de serviços de cuidado a pessoas idosas;
Dirigentes de serviços de bem-estar social; Dirigentes de serviços de educação.

52
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cionadas ao cuidado o percentual de mulheres é superior a 70%, ainda


que se tenha verificado uma redução entre 2019 e 2020. Os serviços
pessoais, os serviços de cuidados e serviços domésticos sofreram forte
retração no período e somaram mais de 2,5 milhões de empregos femi-
ninos perdidos. Essas categorias empregam um contingente expressivo
de mulheres e em grande parte o trabalho é realizado por conta própria
ou sem registro em carteira. O baixo rendimento é também uma caracte-
rística dessas categorias ocupacionais. Essa inserção precária das mu-
lheres no mercado de trabalho, deixa as mulheres mais suscetíveis às di-
nâmicas negativas do mercado de trabalho. As mulheres nos serviços
pessoais sofreram uma redução no emprego de 399,9 mil entre o tercei-
ro trimestre de 2019 e o de 2020. Nas atividades de cuidados pessoais
a redução do emprego foi ainda maior (665,6 mil), ficando abaixo ape-
nas das perdas de emprego nos serviços domésticos (1,5 milhão).
Fazendo um balanço do emprego desse grupo de ocupações rela-
cionadas aos cuidados no primeiro ano da pandemia, os resultados indi-
caram que apesar do aumento do emprego na área da saúde, o emprego
feminino relacionado aos cuidados sofreu uma queda expressiva (2,3
milhões). Esse impacto deve-se em grande parte às perdas de postos
de trabalho nos serviços domésticos. Os serviços domésticos nos do-
micílios foram restringidos seja pelas medidas de proteção ao vírus, vis-
to que muitas das trabalhadoras domésticas necessitam do transporte
público e esse tem sido um grande gargalo na pandemia, pois os ges-
tores públicos e empresariado não conseguiram garantir um transporte
seguro segundo as recomendações sanitárias. Além disso, a crise eco-
nômica acirrada pela pandemia fez com que muitas famílias perdessem
renda e a contratação de serviços domésticos em alguns casos ficou
inviável. Do ponto de vista dos serviços domésticos prestados às em-
presas, o trabalho remoto e o fechamento de várias empresas também
impactaram essa categoria8.
Na educação, que é um setor altamente feminizado, houve
um saldo positivo no emprego, puxado principalmente pelas contrata-
ções no ensino fundamental, visto que no ensino pré-escolar e no ensi-
8 No contexto latino-americano a redução do emprego doméstico foi ainda mais acentuada
em países como Chile (46,3%), Costa Rica (45,5%), Colômbia (44,4%), México (33,2%), todos
com percentuais acima do observado para o Brasil (24,7%) (CEPAL, 2021).

53
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

no médio o emprego feminino teve uma retração. A adoção do ensino


remoto exigiu novas habilidades para esses profissionais, assim como
uma sobrecarga de trabalho. Contudo, os impactos não se restringiram
às modalidades de ensino e de trabalho, mas o acesso à tecnologia in-
tensificou as desigualdades.

Tabela 1 – Mulheres em ocupações relacionadas ao cuidado: variação do


emprego – Brasil – 3º trimestre de 2019 e 3º trimestre de 2020

Ocupação no trabalho principal 03_2019 03_2020 Variação


Dirigentes em ocupações de cuidados 166.813 140.503 -26.310
Médicas 186.948 228.243 41.295
Profissionais de enfermagem 329.939 389.190 59.251
Professoras do ensino pré-escolar 658.167 655.756 -2.411
Professoras do ensino fundamental 1.275.358 1.359.497 84.139
Professoras do ensino médio 440.824 437.190 -3.634
Psicólogas 202.328 205.626 3.298
Assistentes sociais 114.143 118.491 4.348
Profissionais de enfermagem de nível médio 827.991 905.595 77.604
Outras profissionais e técnicas da saúde de nível
105.285 122.897 17.612
médio
Trabalhadoras assistentes sociais de nível
67.229 77.679 10.450
médio
Cabeleireiras 698.769 587.398 -111.371
Especialistas em tratamento de beleza e afins 1.049.379 760.825 -288.554
Trabalhadoras de cuidados pessoais 1.946.217 1.280.568 -665.649
Trabalhadoras dos serviços domésticos
4.517.774 3.288.811 -1.228.963
em geral
Trabalhadoras de limpeza de interior de edifícios 1.753.185 1.519.915 -233.270
Outras trabalhadoras de limpeza 81.894 41.899 -39.995
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria.

Na economia como um todo, o emprego teve forte retração; con-


tudo, sob a perspectiva do emprego das mulheres, a redução em ocu-
pações relacionadas aos cuidados representou 40,3% de toda a per-
da do emprego feminino. A pandemia afetou o trabalho das mulheres
de forma expressiva e, se é possível afirmar que trouxe alguma coisa

54
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

positiva, esta tornou mais evidente a urgência de se ter uma política na-
cional de cuidados, assim como políticas de gênero como mecanismo
de redução das desigualdades, em particular as relacionadas ao traba-
lho remunerado e não remunerado.
Vale ressaltar que nas ocupações relacionadas aos cuidados
as mulheres são maioria, exceto na ocupação de médicos que, em 2019,
era inferior a 50% e em 2020 passou para 50,3%. A análise desses gru-
pos ocupacionais relacionados aos cuidados evidencia também as de-
sigualdades intragrupos. Essa menor representatividade das mulheres
na categoria de médicos, comparadas as demais categorias das ativi-
dades de cuidados, revela, em parte, a dificuldade das mulheres de se
inserirem em ocupações de maior prestígio social e dominadas por ho-
mens9. É nesse sentido que a próxima seção aborda as relações de desi-
gualdade de gênero e raça nas ocupações do setor da saúde. No Brasil,
como em todo o mundo, estes profissionais continuam na linha de fren-
te do combate à pandemia e têm uma massiva presença feminina, visto
que cerca de 70% das equipes de trabalho em saúde e serviço social
são mulheres (HERNANDES; VIEIRA, 2020). Contudo, os rendimentos
médios por sexo do setor seguem a tradição centenária da sociedade
capitalista de que os “salários femininos são inferiores aos masculinos”
(FEDERICI, 2021).

O emprego feminino em ocupações da área da saúde

Segundo a PNAD Contínua, as ocupações de atendimento à saúde


podem ser agrupadas em: 1) dirigentes de serviços de saúde; 2) mé-
dicos(as); 3) profissionais de enfermagem e partos; 4) profissionais
de medicina tradicional e alternativa; 5) paramédicos(as); 6) veteriná-
rios(as); 7) outros profissionais da saúde; 8) técnicos médicos e farma-
cêuticos; 9) profissionais de nível médio de enfermagem e partos; 10)
profissionais de nível médio de medicina tradicional e alternativa; 11)
técnicos e assistentes veterinários e 12) outros profissionais de nível
médio de saúde.

9 As primeiras mulheres a exercerem a medicina no Brasil foram Maria Augusta Generoso


Estrela (1860-1946) e Rita Lobato (1866-1954) no final do século XIX.

55
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

No terceiro trimestre de 2020, a população ocupada da área


da saúde contabilizava 3,9 milhões de profissionais, o que representava
4,8% da ocupação total nacional. As profissionais mulheres contabiliza-
vam 2,9 milhões (72% de todos os profissionais da saúde) e represen-
tavam 8,2% do emprego total feminino. Na comparação com o terceiro
trimestre de 2019, o total de ocupados em profissões da área da saúde
teve um aumento de 5%, o que representou um incremento na ocupa-
ção de quase 200 mil profissionais no período. Vale ressaltar que no
caso das profissionais mulheres o incremento foi de 7%, o que significou
um ligeiro aumento em relação aos profissionais masculinos.
A distribuição do emprego feminino nas ocupações da saúde
apresenta algumas especificidades interessantes. No contexto da pan-
demia, a distribuição do emprego por sexo nas ocupações de dirigen-
tes de serviços de saúde e médicos é praticamente equitativa. Por ou-
tro lado, entre os profissionais de enfermagem, seja de nível superior
ou médio, a predominância feminina é superior a 80%. Portanto, ser “en-
fermeira” é uma tradição das gerações passadas femininas, dos quais
os exemplos marcantes e inspiradores remontam a inglesa fundado-
ra da enfermagem moderna Florence Nigthtingale (1820-1910) e da
brasileira Ana Neri (1814-1880), heroína e precursora da enfermagem
na Guerra do Paraguai chamada de a “mãe dos brasileiros”. Entretanto,
essa áurea não se reflete no exercício da profissão no mercado de traba-
lho. Pois, no que se refere ao rendimento, no caso de médicos e profis-
sionais de enfermagem de nível superior, embora haja uma discrepância
salarial significativa entre as duas categorias, as relações entre os ren-
dimentos por sexo são praticamente equivalentes. Porém, na posição
de dirigentes do serviço de saúde, cuja remuneração é a mais elevada
entre os profissionais da saúde, a desigualdade salarial entre homens
e mulheres é a mais significativa do mundo do trabalho. As mulheres
nessa categoria recebem em média 37% do rendimento dos homens
na mesma posição. Entre os profissionais de enfermagem de nível mé-
dio, que correspondem 27% do emprego total da área (maior grupo ocu-
pacional em número absoluto), as mulheres recebem em média 76%
do rendimento dos profissionais de enfermagem homens, embora re-
presentem 86% da categoria.

56
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Em relação as desigualdades salariais, o relatório da CEPAL apon-


ta que o Brasil apresenta a segunda maior brecha salarial entre homens
e mulheres no setor da saúde (27,3%), cujo percentual é menor apenas
que o do Panamá (32,9%). Com a pandemia, novas atividades e respon-
sabilidades foram impostas a esses profissionais que, muitas vezes, ti-
veram que se adequar à falta e à precariedade de recursos, além das de-
sigualdades inerentes ao exercício da profissão (CEPAL, 2021).

Tabela 2 – Distribuição da população ocupada da área da saúde por sexo –


Brasil – 3º trimestre de 2020

Ocupação no trabalho principal Total Homem Mulher


Dirigentes de serviços de saúde 44.937 51,0 49,0
Médicos 453.553 49,7 50,3
Profissionais de enfermagem e partos 439.941 11,5 88,5
Profissionais da medicina tradicional e alternativa 1.838 33,2 66,8
Veterinários 75.906 49,8 50,2
Outros profissionais da saúde (a) 825.476 22,4 77,6
Técnicos médicos e farmacêuticos (b) 224.104 47,2 52,8
Profissionais de nível médio de enfermagem
1.060.003 14,1 85,9
e partos
Profissionais de nível médio de medicina tradicional
30.563 66,3 33,7
e alternativa
Técnicos e assistentes veterinários 8.424 43,9 56,1
Outros profissionais de nível médio da saúde (c) 778.995 31,0 69,0
(a) Compreende os(as) profissionais dentistas, farmacêuticos, profissionais de saúde e da higiene
laboral e ambiental, nutricionistas, fonoaudiólogos, optometristas e outros profissionais não
clasificados.
(b) Compreende os(as) técnicos em aparelhos de diagnósticos e tratamento médico, técnicos de
laboratóris, técnicos e assistentes farmacêuticos e técnicos de prótese médicas e dentárias.
(c) Compreende os(as) ajudantes de odontologia, técnicos em documentação sanitária,
trabalhadores comunitários da saúde, técnicos em optometria, técnicos e assistentes
fisioterapeutas, assistentes de medicina, inspetores de saúde laboral e ambiental, ajudantes de
ambulancias e outros profissionais de nível médio não classificados.
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

57
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 3 – Rendimento médio da população ocupada da área da saúde por


sexo e razão de rendimentos – Brasil – 3º trimestre de 2020

Ocupação no trabalho principal Homem Mulher Razão


Dirigentes de serviços de saúde 25.073 9.215 0,37
Médicos 16.190 15.344 0,95
Profissionais de enfermagem e partos 4.145 3.974 0,96
Profissionais da medicina tradicional e alternativa 6.000 4.533 0,76
Veterinários 6.286 3.325 0,53
Outros profissionais da saúde (a) 6.076 4.828 0,79
Técnicos médicos e farmacêuticos (b) 2.457 2.429 0,99
Profissionais de nível médio de enfermagem
2.208 1.680 0,76
e partos
Profissionais de nível médio de medicina tradicional
2.794 1.793 0,64
e alternativa
Técnicos e assistentes veterinários 1.747 1.142 0,65
Outros profissionais de nível médio da saúde (c) 2.656 2.430 0,92
(a) Compreende os(as) profissionais dentistas, farmacêuticos, profissionais de saúde e da higiene
laboral e ambiental, nutricionistas, fonoaudiólogos, optometristas e outros profissionais não
clasificados.
(b) Compreende os(as) técnicos em aparelhos de diagnósticos e tratamento médico, técnicos de
laboratóris, técnicos e assistentes farmacêuticos e técnicos de prótese médicas e dentárias.
(c) Compreende os(as) ajudantes de odontologia, técnicos em documentação sanitária,
trabalhadores comunitários da saúde, técnicos em optometria, técnicos e assistentes
fisioterapeutas, assistentes de medicina, inspetores de saúde laboral e ambiental, ajudantes de
ambulancias e outros profissionais de nível médio não classificados.
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

Os resultados por sexo e cor ou raça dos profissionais da saú-


de indicaram uma maior concentração de profissionais pretos e pardos
em ocupações de nível médio, tais como técnicos médicos e farma-
cêuticos e profissionais de nível médio de enfermagem. Por outro lado,
verificou-se que mais de 80% dos profissionais médicos e dirigentes
de serviços de saúde são de cor branca. Esses resultados são reflexo
das desigualdades raciais expressas no processo de escolarização
brasileiro, em que as ocupações de maior prestígio social têm maioria
de pessoas de cor branca. Na área da saúde não é diferente, há uma
maior concentração da população de cor preta ou parda em ocupações
de menor prestígio social e com menor remuneração.

58
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Entre os dirigentes de serviços de saúde, a desigualdade de ren-


dimento por sexo indicou que as mulheres brancas nessa posição rece-
biam em média 36% do rendimento médio dos homens de cor branca
nessa posição. A desigualdade é ainda mais elevada entre as mulheres,
visto que o rendimento médio das mulheres de cor preta ou parda como
dirigentes da saúde corresponde a 31% do rendimento das mulheres
de cor branca nessa posição.
Na categoria de médicos, a maior desigualdade de rendimentos
por sexo era no grupo de pretos e pardos. As médicas de cor preta
ou parda em média recebiam 78% do rendimento dos médicos com a
mesma cor ou raça. O mesmo ocorre entre os profissionais de enferma-
gem, porém a desigualdade é um pouco menor (82%). No caso de pro-
fissionais de enfermagem de nível médio, a maior desigualdade, por sua
vez, foi observada entre homens e mulheres de cor branca, visto que as
mulheres nessa categoria recebiam 73% do rendimento dos homens
na mesma posição.
As brechas salariais entre os profissionais em cargos de direção
no mercado de trabalho são altas, porém, nada próximo do que acon-
tece no setor de saúde. As mulheres em posição de liderança no se-
tor de saúde ganhavam, em média, 37% do que recebiam os homens
em cargos equivalentes. Enquanto, no mundo do trabalho as mulheres
em cargos de dirigentes ou gerentes ganhavam 66% da remuneração
média masculina. É interessante que a distribuição nos cargos de chefia
mostra-se equitativa, embora o salário seja bem diferente.
Além das jornadas e pressões no mercado de trabalho, 40%
das mulheres profissionais da saúde são pessoa de referência do do-
micílio e contam com uma jornada de afazeres domésticos e cuidados
que em média supera cerca de 5 horas o tempo gasto por estes mes-
mos profissionais homens. As profissionais médicas têm uma jornada
com afazeres domésticos e cuidados de 24,1 horas semanais e a se-
gunda categoria com a maior jornada nessas atividades são as técnicas
de nível médio médicas e farmacêuticas (19,2 horas semanais). As de-
sigualdades de gênero no trabalho desses profissionais ficam latentes
em um contexto de elevada demanda e crise nos sistemas de saúde.

59
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 4 – Distribuição da população ocupada da área da saúde por sexo e


cor ou raça – Brasil – 3º trimestre de 2020

Homem Mulher Homem preto Mulher preta


Ocupação no trabalho principal
branco branca ou pardo ou parda
Dirigentes de serviços de saúde 41,5 38,2 9,5 10,8
Médicos 41,7 41,0 6,8 8,4
Profissionais de enfermagem
5,1 51,1 6,4 35,2
e partos
Profissionais da medicina
0,0 33,7 33,2 33,2
tradicional e alternativa
Veterinários 44,5 37,5 5,2 3,6
Outros profissionais da saúde
16,0 52,7 5,8 20,6
(a)
Técnicos médicos
24,2 22,3 22,8 29,8
e farmacêuticos (b)
Profissionais de nível médio
5,0 37,5 9,1 48,1
de enfermagem e partos
Profissionais de nível médio
de medicina tradicional 30,5 27,3 35,8 4,5
e alternativa
Técnicos e assistentes
38,7 13,9 5,2 42,3
veterinários
Outros profissionais de nível
12,3 28,8 18,7 40,1
médio da saúde (c)
(a) Compreende os(as) profissionais dentistas, farmacêuticos, profissionais de saúde e da higiene
laboral e ambiental, nutricionistas, fonoaudiólogos, optometristas e outros profissionais não
clasificados.
(b) Compreende os(as) técnicos em aparelhos de diagnósticos e tratamento médico, técnicos de
laboratóris, técnicos e assistentes farmacêuticos e técnicos de prótese médicas e dentárias.
(c) Compreende os(as) ajudantes de odontologia, técnicos em documentação sanitária,
trabalhadores comunitários da saúde, técnicos em optometria, técnicos e assistentes
fisioterapeutas, assistentes de medicina, inspetores de saúde laboral e ambiental, ajudantes de
ambulancias e outros profissionais de nível médio não classificados.
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

60
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 5 – Rendimento médio da população ocupada da área da saúde por


sexo e cor ou raça e razão de rendimentos – Brasil – 3º trimestre de 2020

Homem Mulher
Homem Mulher Razão Razão Razão
preto preta
Ocupação no trabalho principal branco branca MB/ MPP/ MPP/
ou pardo ou parda
(HB) (MB) HB HPP MB
(HPP) (MPP)

Dirigentes de serviços de saúde 29.976 10.873 3.725 3.386 0,36 0,91 0,31
Médicos 11.687 10.676 12.196 9.470 0,91 0,78 0,89
Profissionais de enfermagem
3.942 4.146 4.297 3.541 1,05 0,82 0,85
e partos
Profissionais da medicina
- 7.029 6.000 2.000 0,33 0,28
tradicional e alternativa
Veterinários 6.553 3.677 4.003 4.070 0,56 1,02 1,11
Outros profissionais da saúde (a) 5.694 4.905 5.718 3.767 0,86 0,66 0,77
Técnicos médicos e farmacêuticos
2.503 2.369 2.308 2.578 0,95 1,12 1,09
(b)
Profissionais de nível médio
2.381 1.736 2.110 1.640 0,73 0,78 0,94
de enfermagem e partos
Profissionais de nível médio
1.903 2.011 3.556 778 1,06 0,22 0,39
de medicina tradicional e altern.
Técnicos e assistentes veterinários 1.897 984 625 1.180 0,52 1,89 1,20
Outros profissionais de nível médio
3.495 2.719 2.465 1.767 0,78 0,72 0,65
da saúde (c)
(a) Compreende os(as) profissionais dentistas, farmacêuticos, profissionais de saúde e da higiene
laboral e ambiental, nutricionistas, fonoaudiólogos, optometristas e outros profissionais não
clasificados.
(b) Compreende os(as) técnicos em aparelhos de diagnósticos e tratamento médico, técnicos de
laboratóris, técnicos e assistentes farmacêuticos e técnicos de prótese médicas e dentárias.
(c) Compreende os(as) ajudantes de odontologia, técnicos em documentação sanitária,
trabalhadores comunitários da saúde, técnicos em optometria, técnicos e assistentes
fisioterapeutas, assistentes de medicina, inspetores de saúde laboral e ambiental, ajudantes de
ambulancias e outros profissionais de nível médio não classificados.
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

61
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 6 – Média de horas semanais em afazeres domésticos e cuidados por


sexo segundo as ocupações da área da saúde – Brasil – 2019

Média de horas semanais


em afazeres domésticos
Ocupação no trabalho principal
e cuidados
Homem Mulher Diferença
Dirigentes de serviços de saúde 7,4 17,2 9,8
Médicos 17,6 24,1 6,5
Profissionais de enfermagem e partos 13,6 16,5 2,9
Profissionais da medicina tradicional e alternativa 14,8
Paramédicos 5,5
Veterinários 10,2 15,8 5,7
Outros profissionais da saúde (a) 9,5 13,8 4,3
Técnicos médicos e farmacêuticos (b) 12,2 19,2 7,0
Profissionais de nível médio de enfermagem e partos 11,7 17,6 6,0
Profissionais de nível médio de medicina tradicional
14,5 15,4 0,9
e altern.
Técnicos e assistentes veterinários 13,1 9,1 -4,1
Outros profissionais de nível médio da saúde (c) 10,4 18,4 8,0
(a) Compreende os(as) profissionais dentistas, farmacêuticos, profissionais de saúde e da higiene
laboral e ambiental, nutricionistas, fonoaudiólogos, optometristas e outros profissionais não
clasificados.
(b) Compreende os(as) técnicos em aparelhos de diagnósticos e tratamento médico, técnicos de
laboratóris, técnicos e assistentes farmacêuticos e técnicos de prótese médicas e dentárias.
(c) Compreende os(as) ajudantes de odontologia, técnicos em documentação sanitária,
trabalhadores comunitários da saúde, técnicos em optometria, técnicos e assistentes
fisioterapeutas, assistentes de medicina, inspetores de saúde laboral e ambiental, ajudantes de
ambulancias e outros profissionais de nível médio não classificados.
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

As desigualdades no setor de saúde

A análise por setor buscou identificar o ramo em que a atividade


de atenção à saúde humana é exercida, tais como hospitais, consultó-
rios, clínicas etc. A ocupação no setor era de 4,7 milhões de pessoas
no terceiro trimestre de 2020, o que representou um incremento de 4%
em relação ao mesmo período do ano anterior. Em todas as categorias

62
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

dos setores da saúde, a representação feminina era de 70% ou mais, cujo


maior percentual foi evidenciado nas atividades relacionadas à saúde,
exceto médicos e odontólogos (80,4%). A maior desigualdade de rendi-
mentos entre homens e mulheres foi registrada nos setores de comple-
mentação diagnóstica e terapêutica e atenção ambulatorial, visto que as
mulheres nesses setores recebiam em média 41% e 44% do rendimento
dos homens, respectivamente. O setor de complementação diagnóstica
e terapêutica apresentou o maior percentual de mulheres pretas ou par-
das (42,1%); contudo, foi nesse setor que se observou a maior desigual-
dade de rendimentos entre homens e mulheres na população branca
(41%) e na população preta ou parda (52%). A desigualdade entre mulhe-
res também é elevada principalmente no setor de atenção ambulatorial,
considerando que as mulheres pretas ou pardas neste setor recebiam
em média 46% do rendimento das mulheres brancas no mesmo setor.
Os resultados mostraram um aumento da ocupação entre profis-
sionais da saúde no setor no ano de 2020 em virtude da pandemia. Sob a
perspectiva ocupacional ou setorial, a presença feminina é significativa
visto que a saúde é uma área que remete aos cuidados, cuja caracte-
rística é vista socialmente como uma atribuição feminina. Com efeito,
a pressão por esses profissionais implica uma pressão sobre as mulhe-
res que, além de lidar com os desafios da profissão, evidenciam rela-
ções de desigualdade, seja por sexo ou cor. O trabalho de menor prestí-
gio e remuneração na saúde está a encargo das mulheres de cor preta
ou parda.
Vale ressaltar, no entanto, as limitações das pesquisas domicilia-
res para uma análise do setor de saúde com a perspectiva de gênero.
Não há um detalhamento, por exemplo, acerca das especialidades exer-
cidas por estes profissionais. Nas últimas décadas houve uma feminiza-
ção da força de trabalho na saúde e embora se tenha uma distribuição
mais equitativa na categoria de médicos10 as escolhas das áreas de atu-
ação reproduzem padrões de gênero na sociedade. Há um maior núme-
ro de médicas atuando nas áreas de clínica geral, pediatria, ginecologia
e obstetrícia; por outro lado, em áreas consideradas mais complexas

10 Segundo Wermelinger et al (2010), em 2000, os homens eram maioria na categoria de mé-


dicos (64%).

63
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

e com maior remuneração, tais como cirurgia, anestesia e ortopedia


há uma maior presença masculina11.

Tabela 7 – Distribuição da população ocupada no setor de saúde por sexo –


Brasil – 3º trimestre de 2020

Setores Total Homem Mulher


Atividades de atendimento hospitalar 2.213.020 27,2 72,8
Atividades de atenção ambulatorial executadas
1.750.206 22,0 78,0
por médicos e odontólogos
Atividades de serviços de complementação
190.034 23,0 77,0
diagnóstica e terapêutica
Atividades de profissionais da área de saúde,
411.339 19,6 80,4
exceto médicos e odontólogos
Atividades de atenção à saúde humana
134.346 30,1 69,9
não especificadas anteriormente
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

Tabela 8 – Rendimento médio da população ocupada no setor de saúde por


sexo e razão de rendimentos – Brasil – 3º trimestre de 2020
Setores Homem Mulher Razão
Atividades de atendimento hospitalar 4324,10 3037,12 0,70
Atividades de atenção ambulatorial executadas
7392,59 3255,51 0,44
por médicos e odontólogos
Atividades de serviços de complementação
5090,13 2078,63 0,41
diagnóstica e terapêutica
Atividades de profissionais da área de saúde,
5021,75 3990,54 0,79
exceto médicos e odontólogos
Atividades de atenção à saúde humana
4376,93 4043,50 0,92
não especificadas anteriormente
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

No mercado de trabalho em geral, os pesquisadores têm busca-


do justificar a inserção das mulheres em atividades com menor remu-

11 Segundo Zaidman (2009), as feministas, ainda nos seus primórdios, também denunciaram
a hierarquia dos sexos pela educação diferenciada entre meninos e meninas. Assim como
escreveu a precursora dessa abordagem, a francesa Madeleine Pelletier (1874-1939) que,
em 1914, publicou a brochura “l´education féministe des filles”, onde destaca o papel da
família e da educação na construção da submissão das mulheres na sociedade.

64
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

neração, com jornada mais flexível, em categorias pouco formalizadas,


apesar da maior escolaridade delas e da necessidade de conciliação
com as responsabilidades domésticas e a família. Não muito diferente
das demais categorias de trabalho, as mulheres ocupadas nos setores
da saúde apresentam também uma elevada jornada com afazeres do-
mésticos e cuidados superior à observada para os homens. A maior jor-
nada foi identificada para as mulheres em atividades hospitalares (17
horas semanais), cujo tempo dispendido excede o tempo médio dos ho-
mens nessa atividade em 6,1 horas.
As escolhas profissionais das mulheres (se é que se pode di-
zer “escolha”) historicamente tem sido restringida pela “não escolha”
das responsabilidades que são atribuídas a elas. Dessa maneira, o mer-
cado de trabalho brasileiro reflete um modelo de reprodução social per-
meado por preconceitos, sexismo e relações de desigualdade. A pande-
mia de Covid-19 impactou fortemente o mercado de trabalho brasileiro
e, principalmente, as mulheres dentro e fora deste. Assim, com uma
gestão sem comprometimento com as políticas de gênero, as mulhe-
res se viram não somente na linha de frente em resposta à pandemia,
mas na dianteira das desigualdades e piora nas condições de vida.

Tabela 9 – Distribuição da população ocupada no setor de saúde por sexo e


cor ou raça – Brasil – 3º trimestre de 2020

Homem Mulher
Homem Mulher
preto preta
Setores branco branca
ou pardo ou parda
(HB) (MB)
(HPP) (MPP)
Atividades de atendimento hospitalar 13,3 35,3 13,3 37,0
Atividades de atenção ambulatorial
13,1 42,3 8,5 35,4
executadas por médicos e odontólogos
Atividades de serviços de complementação
15,7 34,6 7,2 42,1
diagnóstica e terapêutica
Atividades de profissionais da área
13,4 55,6 5,4 24,4
de saúde, exceto médicos e odontólogos
Atividades de atenção à saúde humana
18,5 35,4 11,6 13,6
não especificadas anteriormente
Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

65
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 10 – Rendimento médio da população ocupada no setor de saúde por


sexo e cor ou raça e razão de rendimentos – Brasil – 3º trimestre de 2020
Homem Mulher
Homem Mulher Razão Razão Razão
preto preta
Setores branco branca MB/ MPP/ MPP/
ou pardo ou parda
(HB) (MB) HB HPP MB
(HPP) (MPP)
Atividades de atendimento
5.657 3.654 2.972 2.407 0,65 0,81 0,66
hospitalar
Atividades de atenção ambulatorial
executadas por médicos 10.275 4.321 2.970 1.967 0,42 0,66 0,46
e odontólogos
Atividades de serviços
de complementação diagnóstica 5.853 2.416 3.454 1.811 0,41 0,52 0,75
e terapêutica
Atividades de profissionais
da área de saúde, exceto médicos 5.813 4.462 3.547 2.970 0,77 0,84 0,67
e odontólogos
Atividades de atenção à saúde
humana não especificadas 5.146 3.380 3.153 1.467 0,66 0,47 0,43
anteriormente

Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

Tabela 11 – Média de horas semanais em afazeres domésticos e cuidados


por sexo segundo os setores de saúde – Brasil – 2019

Média de horas semanais


Setores em afazeres domésticos e cuidados
Homem Mulher Diferença
Atividades de atendimento hospitalar 10,9 17,0 6,1
Atividades de atenção ambulatorial executadas
10,5 16,3 5,9
por médicos e odontólogos
Atividades de serviços de complementação
11,5 16,5 5,0
diagnóstica e terapêutica
Atividades de profissionais da área de saúde,
12,1 15,8 3,7
exceto médicos e odontólogos
Atividades de atenção à saúde humana
15,1 16,7 1,6
não especificadas anteriormente

Fonte: IBGE, PNADC. Elaboração própria a partir dos microdados.

66
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Considerações finais

As mulheres estão na linha de frente da crise sanitária, como


trabalhadoras da saúde e no âmbito das famílias como trabalhadoras
domésticas, cuidadoras e donas de casa. Elas tiveram e têm que lidar
com a maior parte do aumento da carga de trabalho relativa ao traba-
lho não remunerado e de cuidados, principalmente nesses períodos
de restrições sanitárias e de isolamento social. Diferente de outros gru-
pos ocupacionais relacionados aos cuidados, em que o risco de perda
do emprego tem sido elevado, os profissionais da saúde, pelo contrário,
viram um crescimento da oferta de vagas. Entretanto, com uma deman-
da aquecida além da capacidade de atendimento, estes profissionais
têm sido fortemente afetados com aumento da carga de trabalho e,
em muitos casos, com condições de trabalho inadequadas. Estudos re-
centes têm alertado sobre os efeitos da pandemia na saúde desses pro-
fissionais decorrente da sobrecarga de trabalho, que tem potencializado
situações de estresse e cansaço. As mulheres envolvidas com os cuida-
dos em geral têm sofrido ainda com o aumento da violência doméstica,
que se tornou mais frequente e severa desde o início da pandemia.
Outro setor relacionado aos cuidados bastante impactado pela
pandemia, porém, cujo risco de perda de emprego não foi tão inten-
so, é o setor de educação. Houve um saldo positivo do ponto de vista
do emprego nessa categoria, embora se tenha verificado uma redução
do emprego feminino na educação infantil e no ensino médio. A pande-
mia obrigou ainda a implantação do modelo de trabalho remoto na edu-
cação. A preparação de aulas virtuais exigiu novas habilidades e gerou
uma sobrecarga de trabalho, além da atividade essencial de ensinar.
Não se pode deixar de mencionar também que muitas professoras
são mães, esposas e donas de casa e no contexto de isolamento social
se viram no desafio de conciliação das atividades.
Acerca do teletrabalho, o que parecia ser uma mudança tempo-
rária, agora parece ser permanente e foi inserida em várias modalida-

67
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

des profissionais, inclusive a telemedicina. Entretanto, o acesso à inter-


net e à tecnologia revelou novas desigualdades e potencializou outras,
visto que esses novos modelos de trabalho podem provocar impactos
diferentes para mulheres e homens. Além disso, a estrutura adequada
de trabalho em casa nessa nova modalidade pode fazer a diferença.
E essa estrutura envolve não somente equipamentos, mas um contex-
to familiar que não gere conflito com esse tipo de trabalho. No caso
de mulheres com filhos menores, por exemplo, a conciliação das tarefas
cotidianas de cuidados com o trabalho remoto exige escola em tempo
integral da creche ao ensino fundamental. Portanto, esta nova forma
de trabalho deve ampliar as desigualdades entre os sexos no mercado
de trabalho, inclusive para aquela que rompeu a barreira conhecida como
“teto de vidro” presente nas carreiras femininas, sobretudo das mulheres
brancas e com diploma de ensino superior.
O setor de saúde não foge à regra e já vive uma situação de desi-
gualdade expressiva, entre as relações de gênero e raça, como mostrou
esse estudo. A definição das mulheres como as responsáveis exclusi-
vas pelos cuidados, presente na visão dicotômica de homem-provedor
e mulher-cuidadora, manifesta-se de modo contundente no mercado
de trabalho a partir de hierarquizações das quais não escapa o setor
de saúde.
As disparidades no emprego e inserção entre os dois sexos per-
manecem e estão enraizadas no tecido social, fazendo com que mesmo
em um processo de feminização do setor da saúde e de valorização pro-
fissional destes na defesa da vida, as desigualdades de gênero e raça
sejam naturalizadas e até acentuadas, como observado neste período
pandêmico. Este é mais um elemento que descortina para a sociedade
que o mundo patriarcal continua presente, mesmo diante da ameaça
à vida humana, e as discriminações têm se mantido intocáveis nas suas
diversas relações de gênero e raça.

68
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Referências

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cuidados en el Uruguay: En busca de consensos para una protección social
más igualitaria. CEPAL Serie Políticas Sociales, n. 192. Nações Unidas, abril de
2014.
AZEVEDO, Evelin; GARCIA, Rafael. Em 22% das cidades brasileiras, Covid-19 já
matou mais em 2021 do que em todo o ano passado. O Globo. 12 mar. 2021,
p. 11
BARCOS, Virginia Guzmán et al. Mujeres en tiempos de esperanza, crisis y
pandemia. Prólogo Adriana Muñoz D’Albora; Apresentação Alfonso Pérez
Guíñez. Santiago de Chile: Ediciones Biblioteca del Congreso Nacional de Chile,
2021.
CEPAL. La autonomía económica de las mujeres en la recuperación sostenible y
con igualdad. Informe Especial n. 9 COVID-19. Naciones Unidas. 10 Fev. 2021.
FEDERICI, Silvia. O Patriarcado do Salário. São Paulo: Boitempo, 2021.
HERNANDES, E.S.C.; VIEIRA, L., “A guerra de rosto de mulher: trabalhadoras
da saúde no enfrentamento à Covid-19”. In: Boletim ANESP – Associação
Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental,
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HIRATA, Helena. Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero:
divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparativa. São Paulo: Friedrich
Ebert Stiftung Brasil. Análise, n. 7, 2015. Disponível em: https://library.fes.de/
pdf-files/bueros/brasilien/12133.pdf. Acesso em: 28 mar. 2022.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Vários trimestres,
microdados.
IPEA. Nota Técnica. A queda recente das taxas de ocupação e participação
no mercado de trabalho e sua dinâmica. In: Carta de Conjuntura, n. 48, jul.-set.
2020, p. 5-6.
IPEA. Relatório de Pesquisa da Economia dos cuidados: marco teórico-
conceitual. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro 2016.

69
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

KERGOAT, D. O trabalho, um conceito central para os estudos de gênero?. In:


MARUANI, M. (org.). Trabalho, logo existo – perspectivas feministas. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2019.
MARUANI, Margaret, Emprego, desemprego e precariedade: uma comparação
europeia. In: COSTA, A. de O.; SORJ, B.; BRUSCHINI, C; HIRATA, H; (orgs).
Mercado de Trabalho e Gênero – Comparações Internacionais. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2008, pp. 35-52.
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Debora. Mulheres e Poder, Histórias, Ideias
e Indicadores. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.
MELO, Hildete Pereira de; MORANDI, Lucilene. Cuidados no Brasil, conquistas,
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SOARES, Cristiane; MELO, Hildete P. de; BANDEIRA, Lourdes M. O trabalho das
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1872 a 2010. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS POPULACIONAIS, XIX. Anais... São
Pedro/SP de 24 a 28 de novembro de 2014.
SOARES, Cristiane. O Brasil Precisa de Cuidados: O Trabalho das Mulheres
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WERMELINGER, Mônica et al. A Força de Trabalho do Setor de Saúde no Brasil:
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ZAIDMAN, Claire, “Educação e socialização”. In: HIRATA; H. LABORIE, F.; LE
DOARÉ, H.; SENOTIER, D. (orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo,
Editora UNESP, 2009, pp. 80-84.

70
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Teorizações negras sobre a divisão


sexual do trabalho

Carine de Jesus Santos1


Vivian Delfino Motta2

Introdução

O campo dos feminismos exige criticidade no uso de conceitos


e análises vinculadas a pesquisas, em grande parte situadas em rea-
lidades historicamente eurocêntricas e também dos Estados Unidos
da América (EUA). No Brasil, país com 57% da população composta
por pessoas negras, observa-se que as bases analíticas utilizadas para
elaboração de pesquisas e trabalhos são produzidas por uma intelectu-
alidade branca e eurocêntrica, cujos caminhos de interpretação da reali-
dade não são capazes de abarcar a realidade das mulheres negras.

1 Doutoranda em Ciências Sociais (PGCS/UFRN); Integrante do Coletivo Angela Davis


(UFRB); Integrante do Laboratório de Estudos Rurais (UFRN); Integrante do GT de Mulheres
da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).
2 Doutoranda em Ciências Sociais- IFCH/ Unicamp; Docente do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de São Paulo- Campus São Roque; Membra da Coordenação Ampliada
da Associação Brasileira de Agroecologia- ABA.

71
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Carolina de Assis, editora do portal “gêneronumero.midia”, reali-


zou uma pesquisa3 a partir do acesso às bolsas disponibilizadas pelo
CNPq em que fez um levantamento da presença das mulheres bran-
cas e negras nas grandes áreas de conhecimento no período de 2013
a 2017. Para o tema tratado neste trabalho, Carolina teve acesso ao ban-
co de dados do CNPq, no qual sistematizou o perfil das pessoas benefi-
ciadas com as bolsas de pesquisa nas seguintes categorias: doutorado,
mestrado, iniciação científica, iniciação científica/PIBIC e produtivida-
de de pesquisa. Os dados coletados possibilitaram análises referentes
a gênero, idade e cor/raça. A pesquisa mostra que não há registros so-
bre a inclusão de mulheres pretas e indígenas entre as beneficiadas.
As mulheres pardas foram computadas na base de dados, mas estas
acessam menos da metade das bolsas (42.655) que foram direciona-
das a mulheres brancas (102.613):

Tabela 1: Acesso a bolsa por gênero/raça nas Ciências Humanas de 2013 a 2017.

Área do Mulheres Mulheres Mulheres Mulheres


conhecimento brancas pretas pardas indígenas

Ciências Humanas 21.162 Sem dados 8.696 Sem dados

Ciências Agrárias 17.131 Sem dados 8.780 Sem dados

Ciências da Saúde 28.327 Sem dados 8.824 Sem dados

Ciências Biológicas 27.340 Sem dados 9.842 Sem dados

Ciências Aplicadas 12.456 1.225 3.927 Sem dados

Engenharias 16.158 886 4.450 53

Linguística/Letras e
7.379 851 2.586 Sem dados
Artes

Total 102.613 2.962 42.655 53

Fonte: Dados do CNPq analisados pelo portal Gênero e Número. Mídia, 2017.

Os dados da tabela mostram que a questão da raça não é “en-


carada” como um fator central/histórico de organização da sociedade

3 Acesso ao portal com os dados da pesquisa: https://www.generonumero.media/


grafico-genero-e-raca-na-ciencia-brasileira/

72
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

na América Latina e Caribe, resultando em um apagamento das diversi-


dades e das especificidades estruturantes, o que posiciona as mulheres
não brancas na sociedade em um lugar de invisibilidade e marginalidade.
Sobre a organização social, observa-se que durante o período
da colonização/escravização no Brasil havia diversas funções vincula-
das ao mundo do trabalho, mas boa parte delas era exercida por seres
cuja humanidade era questionada, sobretudo em função da questão
racial. Esse fator extinguia totalmente a possibilidade de serem consi-
derados(as) como trabalhador/trabalhadora. A sociedade era dividida
em castas, separada entre polos bem-definidos, tendo de um lado o se-
nhor das terras, dono do poder econômico e político, e do outro escravos,
força efetiva de mão de obra. Entre esses dois polos existia um grupo
composto por mulheres e homens livres, sem ocupação, fundamentado
na égide patriarcal, incidindo drasticamente sobre a vida das mulheres.
Com ênfase no patriarcalismo e no paternalismo, atribuía-se à mulher
branca o lugar de esposa, mãe, submissa ao homem, e à mulher negra
era reservado, enquanto escrava e trabalhadora, a função de produtora
de alimentos, ativa nas atividades de corte e de engenho e, além dis-
so, era determinada a ser reprodutora de mão de obra para o mercado
(NASCIMENTO, 2021). É sabido o impacto desse histórico sobre a po-
pulação negra, sobretudo as mulheres negras, nos dias atuais, retirando
e dificultando as oportunidades de acesso ao poder.
A perspectiva feminista, inicialmente liberal e depois articulada
aos ideais socialistas, preocupou-se com bandeiras associadas a direi-
tos políticos e civis e com a questão econômica. Essas mobilizações
e reivindicações foram encabeçadas por uma totalidade de mulheres
brancas que lutavam por igualdade de direitos entre homens e mulheres
e contra o patriarcado, entretanto ignoraram que as mulheres negras
e indígenas tinham realidades e demandas específicas. Dentro desse
contexto, as categorias raça/cor/etnia foram tratadas como marcado-
res complementares impedindo que fossem percebidos os impactos
da racialização sobre as mulheres, contribuindo de certa forma para
a manutenção de um sistema racista composto por diversas e cruéis

73
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

estratégias de morte/exclusão e de privilégios materializados a partir


da branquitude.
As reflexões sobre a realidade das mulheres negras estão total e in-
dissociavelmente imbricadas com a materialidade da vida, e só uma mu-
lher negra é capaz de aprofundar a compreensão sobre como as cons-
truções teóricas se conectam com o seu cotidiano. Consideramos
que não é possível teorizar a vida das mulheres negras sem a presença
da intelectualidade negra e, como já vimos anteriormente, a intelectua-
lidade que abarca a discussão feminista e o debate sobre a divisão se-
xual do trabalho é formada majoritariamente por acadêmicas brancas,
originárias ou localizadas no Norte Global, que não incorporam as teóri-
cas negras em seus escritos.
Com base nesse cenário e a partir de estudos realizados, pode-
mos dizer que as narrativas, trabalhos, discursos e pesquisas que envol-
vem, desde os anos 70, a questão da divisão sexual do trabalho (assim
como as construções apresentadas pela economia feminista4) têm sua
interpretação parcial desconectada do impacto estruturante do racismo
sobre a maior parte das mulheres brasileiras5, as negras, que integram
de maneira expressiva o mundo do trabalho no Brasil.
Tratar da divisão sexual do trabalho sem racializar as relações
sociais demonstra uma parcialidade nas análises e nos avanços pro-
postos. Essa fragilidade resulta em pontos de vista únicos, semelhantes
à narrativa discutida por Chimamanda Adichie (2019), ao tratar do pe-
rigo da história única, em que um povo é visto apenas como um ob-
jeto do discurso de outros, desconsiderando as diferentes condições
e especificidades da diversidade das mulheres. A partir dessa lógica,
percebe-se que mesmo entre as mulheres existe uma disputa desigual
e contraditória em relação aos acessos e distribuição de poder.
4 A economia feminista é um campo das ciências econômicas e sociais que compreende
o estudo do pensamento econômico a partir da invisibilidade das mulheres, bem como
a ressignificação do trabalho como responsabilidade de todos, considerando o mercado
informal, o trabalho doméstico, a divisão sexual do trabalho na família e fundamentalmente
agregando a esfera reprodutiva como essencial à existência humana (NOBRE, 2002).
5 Segundo o Censo realizado em 2010, 51,8% das pessoas que compõem a população são
mulheres e, desse percentual de mulheres, 27,8% se declaram pretas ou pardas. Ver: ht-
tps://www.ibge.gov.br/

74
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Este artigo se propõe a elucidar como as questões de raça, cor e


gênero são indissociáveis e fundamentais para analisar categorias im-
portantes para a divisão sexual do trabalho. Nesse contexto, o feminis-
mo interseccional e decolonial amplia a lente essencial para essa com-
preensão em uma sociedade estruturada por hierarquizações sociais,
constituída a partir de processos de violência e escravização da popu-
lação negra.

Divisão sexual do trabalho e o mito da mulher universal

O trabalho, analisado dentro da sociedade capitalista com base


no enfoque de classe, constrói sua narrativa sobre a questão da acumu-
lação, exploração, concentração de capital dentre outros fatores vincu-
lados à perspectiva marxista. Sérgio Gaspar (2021), pesquisador ligado
aos estudos sobre afroempreendedorismo das mulheres negras, afirma
que “quando a raça é centralizada, a reflexão desnuda as estratégias
de reprodução da pobreza, da exploração e das diversas facetas do ca-
pitalismo”. Esse autor afirma ainda que: “A população negra, no período
pós escravista, acumulou uma série de barreiras à educação, empregos
de melhor remuneração, cerceamento à formação, ausência de políticas
de acesso à terra e a outros meios de produção” (GASPAR, 2021).
Tais barreiras limitaram historicamente homens negros e mulhe-
res negras no que se entende por trabalho, principalmente em relação
ao acesso e tipo de atividade a ser executada. Essa diferenciação se ma-
terializa quando está destinada a determinados grupos sociais, traba-
lhos específicos de acordo com o grupo social do qual faz parte, em que
“inúmeros fatores funcionam como causa para que se perpetuem as di-
ferenças, e como não poderia deixar de ser numa sociedade constituída
de diferentes grupos étnicos, o fator racial sobressai” (NASCIMENTO,
2021, p. 57). Isso porque

o critério racial constitui um desses mecanismos de seleção,


fazendo com que as pessoas negras sejam relegadas aos lu-
gares mais baixos da hierarquia, através da discriminação. […]
A mulher negra, elemento no qual se cristaliza mais a estrutura

75
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de dominação, como negra e como mulher, se vê, deste modo,


ocupando os espaços e papéis que lhe foram atribuídos desde
a escravidão. As sobrevivências patriarcais na sociedade bra-
sileira fazem com que ela seja recrutada e assuma empregos
domésticos, esteja em menor grau na indústria de transforma-
ção, nas áreas urbanas, e que permaneça como trabalhadora
nas áreas rurais (NASCIMENTO, 2021, p. 58).

Essa realidade na qual as mulheres negras ainda ocupam, em sua


maioria, postos de trabalho semelhantes aos do período colonial, tem uma
profunda relação simultânea entre sua origem de mulher, negra, além
da carga de seus ancestrais serem escravos(as). De acordo com dados
da PNADC6 (2021), atualmente a maioria absoluta de desempregados
se encontra entre a população preta e parda, cerca de 60%, e quase me-
tade desse contingente, 48,2%, não tem Ensino Médio. Segundo siste-
matização realizada por Fernanda Cavalcante (2020), sobre o mercado
de trabalho, nas plataformas da PNAD e IBGE:

O mercado de trabalho não reflete o que é a sociedade brasi-


leira, pois as mulheres negras e pardas totalizam apenas 0,4%
nos cargos de lideranças, segundo a PNAD. Em 2019, 20%
das mulheres negras e pardas trabalhavam com serviços do-
mésticos, contra 10% entre as mulheres brancas, e neste ano,
por causa da quarentena, o país teve a maior perda do setor
doméstico, depois de nove anos. A população negra e parda
representa menos de 30% nos cargos de liderança, não sendo
por acaso que a inclusão da população negra e parda ao mer-
cado de trabalho foi o tema considerado mais urgente na pes-
quisa elaborada pelo Google Brasil em 2019, pois a população
negra e parda representou 65% dos desempregados em 2018,
segundo o IBGE. A pesquisa Estatísticas de Gênero, elabora-
da pelo IBGE em 2018, indica que as mulheres entre 25 e 44
anos se formam 37,9% a mais na graduação que os homens.
As mulheres negras e pardas representam 10,4% e as mulhe-
res brancas, 23,5%, pouco mais da metade. Em contrapartida,

6 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

76
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

as mulheres negras e pardas se formam mais que os homens


negros e pardos, 7%, porém recebem menos que todos e são a
maioria dos desempregados (CAVALCANTE, 2020, p. 3).

Refletindo sobre os números apresentados, é fundamental o apro-


fundamento de um olhar histórico atento sobre os impactos da escra-
vidão e a estruturação do sistema racista atual brasileiro, assim como
é urgente a inclusão das mulheres negras como parte importante
nos debates sobre a divisão sexual do trabalho. De acordo com dados
contidos no relatório do Fundo de População das Nações Unidas, pu-
blicado em 2017, as mulheres estão mais suscetíveis ao desemprego
do que os homens e, sob essa perspectiva, ganham em média 23%
a menos, além de serem maioria em índices de analfabetismo, e as
maiores vítimas de violência. É inegável que o movimento feminista pre-
sente em todo o mundo tem apontado as injustiças sofridas pelas mu-
lheres e também contribuído para a produção de elementos e reações
de enfrentamento à realidade machista. Entretanto, apenas o feminismo
interseccional e decolonial tem se preocupado com as análises que im-
pactam a vida das mulheres negras.
Neste artigo, buscamos apontar a existência de feminismos que se
preocupam com outras realidades além das “brancas”, em que se toma
como fundamental a abordagem do feminismo decolonial e interseccio-
nal para desvelar como raça, gênero, classe e outras intersecções pos-
síveis e necessárias influenciando a ocupação feminina nos espaços
da sociedade, sobretudo no campo do trabalho, mais especificamente
na divisão sexual do trabalho.
Para Danièle Kergoat e Helena Hirata (2007), a definição de divi-
são sexual do trabalho está pautada em dois fatores: a) como a socie-
dade organiza e separa o trabalho de modo a determinar e naturalizar
a existência de trabalhos de homens e trabalho de mulheres; b) a so-
ciedade patriarcal naturaliza a valoração e hierarquização do trabalho
a partir do gênero: trabalhos realizados por homens são mais valoriza-
dos do que os trabalhos realizados por mulheres. É fato e concordamos
com ambas as autoras expoentes dessa categoria de análise que, para

77
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

organizar e possibilitar a exploração das mulheres, há a determinação


e a naturalização do que é trabalho de homem e o que é trabalho de mu-
lher, mas “que homem?” e “que mulher?”. Sobre essa pergunta, Lélia
Gonzalez nos afirma que:

O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade


brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande beneficiá-
rio da exploração, especialmente da população negra. E não
estamos nos referindo apenas ao capitalismo branco, mas
também aos brancos sem propriedade dos meios de produção
que recebem seus dividendos do racismo. Quando se trata de
competir para o preenchimento de posições que implicam em
recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os negros
possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre fa-
voráveis aos competidores brancos. E isto ocorre em todos os
níveis dos diferentes segmentos sociais. O que existe no Brasil,
efetivamente, é uma divisão racial do trabalho (GONZALEZ,
1979, p. 2).

No sentido que a autora nos convoca a pensar, é preciso localizar


a existência das pessoas negras na composição da sociedade, estrutu-
rando a modernidade e a colonialidade na base da pirâmide. As mulhe-
res negras estavam desde sempre nas trincheiras do trabalho nas con-
dições mais precárias e de subordinação, ainda quando nem eram
consideradas humanas, e em paralelo as mulheres brancas estavam
se dando conta de questões que elas poderiam almejar por se conside-
rarem detentoras de direitos.
Com apoio da ciência e da religião, a humanidade das pessoas ne-
gras foi questionada de maneira a possibilitar que as sequestradas e os
sequestrados de África fossem tratados pelo sistema jurídico como
“bens” possibilitando a venda, a troca e até o descarte quando não exer-
ciam “suas funções” a contento dos senhores brancos. Tal processo
de desumanização é fator primordial para a “justificativa” da escravidão
negra no Brasil e acentua fortemente o subjugo da população negra
(com a sua humanidade desconsiderada) frente à população branca

78
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(detentora da racionalidade declarada pelo Iluminismo – penso, logo


existo!). Assim, podemos afirmar também que:
a) Se existem trabalhos determinados e naturalizados pelo siste-
ma patriarcal para homens e mulheres, também há trabalhos determi-
nados e naturalizados pelo sistema racista para homens negros e mu-
lheres negras. Exemplo clássico é o trabalho doméstico remunerado
exercido em grande maioria pelas mulheres negras, no Brasil;
b) O trabalho naturalizado para o gênero masculino tem alto valor
social quando exercido por um homem branco, assim o trabalho do ho-
mem branco vale mais que o do homem negro, e similarmente o trabalho
das mulheres brancas vale mais que o das mulheres negras. Com isso,
o sistema de divisão sexual do trabalho é permeado não apenas pela
questão de gênero, mas é estruturado pela raça, que quando ocultada
não explicita a realidade imposta à totalidade das mulheres, como iden-
tificamos nos trabalhos que referenciam autoras expoentes desse tema
e que acabam refletindo uma realidade inadequada do Norte para o Sul
Global, mais especificamente para realidade brasileira.

Divisão sexual do trabalho e os feminismos

Mesmo nos dias atuais, em que se constatam melhorias quan-


to ao nível de educação de uma minoria de mulheres negras,
o que se observa é que, por maior que seja a capacidade que
demonstre, ela é preterida. Que se leiam os anúncios dos jornais
na seção de empregos; as expressões “boa aparência”, “ótima
aparência” etc. constituem um código cujo sentido indica que
não há lugar para a mulher negra. As possibilidades de ascen-
são a determinados setores da classe média são praticamente
nulas para a maioria absoluta. (SOARES; RODNEY, 2020, p. 31)

Lélia Gonzalez, referência no estudo e na elaboração de conceitos


que hoje são a base da intelectualidade negra brasileira, mostra que a
concretização do estereótipo “boa aparência” está conectada essencial-
mente com as características de mulheres brancas. Mesmo nos traba-

79
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

lhos com menor remuneração, as mulheres negras estão em desvan-


tagem quando comparadas às mulheres brancas. A ideia de aparência
– cor da pele, dos olhos, textura dos cabelos, nariz, boca – revela como
esses fatores são utilizados pelo racismo para alocar as mulheres na so-
ciedade, em especial, brasileira.
No Brasil, tem-se o fenômeno do colorismo que acaba comple-
xificando ainda mais os efeitos do racismo sobre as pessoas negras.
“A questão do colorismo, termo americano usado pela juventude hoje
para falar da hierarquia da cor, e aqui me refiro à cor da pele mesmo,
se mais claros ou mais escuros, é algo que sempre fez parte da cultura
racial brasileira” (FIGUEIREDO, 2020, p. 8), ou seja, quanto mais escuro
o tom da pele e traços físicos, mais grossos e largos, maiores são as
opressões enfrentadas. A conjunção de fenótipo e cor são uma união
que potencializa ainda mais os efeitos desse sistema.
Tal processo não pode ser analisado pelas questões de classe
e nem pelas de gênero, apenas a raça é capaz de vislumbrar o refina-
mento estratégico e as atualizações que o racismo estrutural sofre
ao longo do tempo e da história, ficando cada vez mais sofisticado
sem perder a eficiência. As atualizações sofridas pelo racismo explici-
tam, por exemplo, a condição das mulheres negras na análise da pre-
carização do trabalho e no falso uso do termo empreendedorismo para
escamotear a crise no acesso a vagas de trabalho formal. Por isso, é tão
fundamental abordar as discussões vinculadas à divisão sexual e racial
do trabalho a partir da lente analítica e política da interseccionalidade
articulada com as contribuições do feminismo decolonial.
A intenção desse trecho não é recontar a história do feminismo
ou dos feminismos, mas destacar alguns pontos importantes para com-
preender as problematizações apresentadas. Compreendemos que a
história do feminismo não começa a partir do momento em que esse
termo é cunhado, e sim com a organização das mulheres que come-
çaram a resistir às opressões e injustiças. Considerando a perspecti-
va das ondas, sistematizamos alguns pontos importantes no quadro
a seguir:

80
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Quadro 1: Sistematização Ondas do Feminismo

Feminismo Região Período Pautas Ideal Crítica

Perspectiva refletida na
experiência de mulheres
brancas, burguesas
e heterossexuais.
Contradições: Mulheres
brancas reivindicavam
1ª Onda/
sua presença no espaço
Liberal
Final do Luta pelo direito público, enquanto
Narrativas
século ao trabalho e Indivíduos as mulheres negras
de Mulheres Europa/
XIX e direitos políticos/ dotados de lutavam pela abolição da
Negras EUA
início do presença no direito. escravatura. Associação
Americanas
século XX espaço público. entre o feminismo
(Soujourner
tradicional e o liberalismo
Truth)
e a modernidade. A
desigualdade entre
homens e mulheres é
considerada apenas
sob o ponto de vista da
desigualdade de direitos.

Apesar das
Luta para
diferenças entre
superação
as mulheres,
da pobreza
2ª Onda/ todas sofrem
Europa/ 1960 e e exploração Enfoque essencialmente
Socialista/ pela questão
EUA 1980 capitalista que na variável econômica.
Radical do gênero.
incide sobre a
Luta contra a
vida de homens e
dominação do
mulheres.
patriarcado.

Compreensão sobre as
diferentes identidades e
experiências existentes
entre as mulheres. O
As variáveis de feminismo decolonial
raça, classe, etnia, afirma que múltiplos
sexualidade, entre sistemas de opressão
3ª Onda/ outras, marcam incidem de modo
Feminismo 1960 e a Problematização as diferenças simultâneo fortalecendo
EUA
Negro/ partir do sobre a noção da entre as mulheres a desigualdade de
Feminismo século XX mulher universal. e formam suas gênero e aponta como
Decolonial identidades, a interseccionalidade é
trajetórias e fundamental para ampliar
contextos de o entendimento sobre
opressão. as diversas variáveis
de diferenciação
existentes em uma
sociedade marcada pela
colonialidade.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Débora Machado, Maria Luisa
Costa, Delia Dutra (2018).

81
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A divisão realizada em ondas desassocia a existência de iniciati-


vas do feminismo negro desde o início da formação do movimento, na 1ª
onda, assim como só teremos publicizações mais consistentes do fe-
minismo interseccional e decolonial na 3ª onda, em que isso não quer
dizer que já não se tinha iniciativas e articulações em curso. Importante
compreendermos que existem práticas anteriores à formação de uma
terminologia e nesse sentido é preciso que sejam visibilizadas as exis-
tências das ações e discursos, como podemos observar na denúncia
feita por Soujouner Truth, já em 1852, ao perguntar se também ela não
era uma mulher. O breve resumo do retrospecto das ondas feministas
nos mostra a distância das realidades de mulheres brancas e negras
de maneira muito emblemática. Enquanto as mulheres brancas estavam
lutando por direitos e para poder fazer parte da esfera pública e eco-
nômica, as mulheres negras lutavam por sobrevivência e pelo fim do
processo de escravização.
A centralidade da análise do feminismo interseccional e decolonial
gira em torno da práxis das mulheres em defender a vida e o território,
da materialidade do dia a dia e das opressões que são marcadas ances-
tralmente em seus corpos-memória, em seu sentir-pensar, que se inicia
muito antes da movimentação pelo sufrágio, ou pelo direito de adentrar
ao mercado de trabalho. Mesmo que as sujeitas não utilizem o termo fe-
minismo para se localizar no espaço, suas ações estão em consonância
direta com os princípios feministas e de (re)existências.
As mulheres estadunidenses não brancas e pobres não estavam
lutando pelos direitos civis e nem pelo sufrágio. E quando, porventura,
colocavam-se nesses espaços eram ignoradas. Koa Beck (2021), em seu
livro “Feminismo Branco: das sufragistas às influenciadoras e quem elas
deixaram para trás”, descreve:

Quando a ativista Alice Paul começou a organizar a Washington


Woman Suffrage Procession (Procissão pelo Sufrágio Feminino
de Washington) em 1993, as imagens eram de extrema impor-
tância. Paul e a NAWSA fizeram bandeiras brancas, roxas e
douradas e prepararam 24 carros alegóricos para a procissão.
Elas recrutaram mulheres de todo o país para marchar e condu-

82
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ziram o desfile com uma imagem marcante de Inez Milholland,


vestida em uma túnica branca grega, de capa e coroa […] uma
nova mulher do século XX: independente, forte, mas também
elegante e bonita. Essa construção intencional de marca foi
comprometida quando as sufragistas negras começaram a
perguntar se elas também estavam convidadas para o desfile.
O Women´s Journal publicou a carta da editora perguntando se
as manifestantes negras eram bem-vindas. A pedido de Paul,
uma colega da organização entrou em contato com a editora
solicitando: “se abstenha de publicar qualquer coisa que possa
suscitar esse tópico [Negro] nesse momento”. Essa tática aca-
bou se transformando em uma estratégia mais ampla, quan-
do as estudantes da Universidade de Howard, uma instituição
exclusiva para pessoas negras, escreveram para Paul, dizendo
que gostariam de comparecer. As organizadoras da Procissão
receberam a ordem de “não dizer absolutamente nada sobre a
questão [do negro] para mantê-la fora dos jornais, e para tentar
fazer com que essa fosse uma manifestação puramente sufra-
gista sem complicações causadas por outros problemas”. O
silêncio perduraria como tática feminista branca em casos de
discussões sobre exclusividade. (BECK, 2021, p. 60).

O relato acima, sobre como eram organizadas as atividades pú-


blicas a favor do sufrágio feminino nos EUA e de qual a imagem cons-
truída como marca do movimento, mostra que além de não considerar
nas pautas de luta a materialidade da vida das mulheres pobres, em sua
maioria não brancas, as mulheres negras intelectuais, e que poderiam
ser incluídas no movimento pelo sufrágio, não eram bem-vindas, pois
sua presença (apenas sua presença) já evidenciava outras pautas tiran-
do da procissão a característica de “puramente sufragista”. Tal processo
de invisibilização não morre com o ato público, amplia-se no movimento
da dita primeira onda e se perpetua até hoje. E essa mesma invisibiliza-
ção da diversidade das mulheres cria uma narrativa que muitas vezes
não condiz com a realidade vivida no Brasil e em outros países da América
Latina no processo de colonização. O artigo escrito por Kimberly Farias
Monteiro e Leilane Sarratine Grubba, “A luta das mulheres pelo espaço

83
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

público na primeira onda do feminismo: de suffragettes às sufragistas”


(2017), aponta que:

Desse modo, a luta das mulheres pelo reconhecimento de seus


direitos, tanto no Brasil, quanto no mundo, perdura ao longo
da história. No Brasil, inicialmente no ano do descobrimento,
as condições das mulheres na sociedade chegavam à quase
nulidade, pois a sociedade era governada por um sistema pa-
triarcal, reportando a submissão das mulheres pelos homens.
(MONTEIRO; GRUBBA, 2017. p. 261. Grifo nosso).

Essa breve análise aborda a presença das mulheres e aponta


a base das reflexões que tendem a se conectar com a visão eurocên-
trica da chegada dos portugueses ao Brasil. As autoras continuam nar-
rando que, nesse momento, “inicialmente no ano do descobrimento”
as mulheres eram nulas, submissas aos homens e orientadas por um
sistema patriarcal. Mas as mulheres que pertencem aos povos originá-
rios não contam essa história, nem narram essa experiência patriarcal
pré-colonização. Lideranças indígenas e o próprio feminismo indígena
resgatam uma vivência em que muitas etnias tinham as mulheres ocu-
pando espaços de extrema importância na relação social7. As autoras
continuam:

Durante o Brasil Colônia a mulher era vista como alguém in-


capaz, devendo os seus atos serem tutelados pelos seus pais
ou familiares, e no caso do casamento, pelos seus cônjuges.
Essas condições perduraram pelo Brasil Império e, até mes-
mo, pela chegada do Brasil Republicano, o qual foi marcado
pela Revolução Industrial, que permitiu o ingresso da mulher
no mercado de trabalho, ainda que em condições precárias
e sempre inferiorizadas em relação ao trabalho dos homens.
Mesmo após muitos anos de incansáveis manifestações, o
Código Civil Brasileiro de 1916 ainda referia-se à mulher, en-

7 Podemos citar como teóricas e ativistas na luta das mulheres indígenas: Elisa
Pankararu, Lorena Cabinal, Sonia Guajajara, Alejandra Aguilar Pinto, Potyra Tê
Tupinambá, Joenia Wapichana dentre muitas outras. Ver: https://www.geledes.org.br/
existe-feminismo-indigena-seis-mulheres-dizem-pelo-que-lutam/

84
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

quanto casadas, como alguém incapaz a determinados atos


da vida civil, tal como o direito ao voto. (MONTEIRO; GRUBBA,
2017. p. 261. Grifo nosso).

Ao ler esse trecho, pensamos: “quais mulheres tinham essa rea-


lidade no Brasil Colônia?” Mulheres negras e indígenas foram escravi-
zadas, estupradas e mortas pela estrutura escravista construída pela
colonização, e as que conseguiram sobreviver ainda foram tidas como
“protagonistas da miscigenação brasileira”. Elas não eram tuteladas,
nem eram consideradas incapazes para o trabalho, nem tiveram um “in-
gresso” no mercado de trabalho, e apesar de o voto feminino ter sido
conquistado no Brasil em 1932, as mulheres não brancas não fizeram
uso desse direito, muito por conta das barreiras sociais de gênese racis-
ta, como por exemplo: o analfabetismo. Não é preciso muita elaboração
para compreender que as necessidades das mulheres eram diferentes
porque as condições a que eram submetidas também o eram.
Os movimentos feministas hegemônicos dialogam com as lutas
e bandeiras das mulheres rurais, ribeirinhas, pescadoras, extrativistas,
dentre outras categorias, conectando-se principalmente com as ques-
tões vinculadas ao gênero e à classe. As questões de raça são mencio-
nadas, entretanto, não são vistas por esses movimentos como estrutu-
rantes do racismo que sustenta a modernidade/colonialidade na nossa
sociedade.
Nesse sentido, reafirmamos a capacidade da interseccionalidade
ser um instrumento político analítico capaz de evidenciar o conjunto
de opressões e desigualdades que incide no cotidiano das mulheres ne-
gras, assim como de potencializar suas cosmovisões e propomos o uso
dessa lente para compreender de modo mais abrangente a divisão se-
xual do trabalho.

Contribuições da interseccionalidade para divisão sexual


do trabalho

Intelectuais negras brasileiras vêm utilizando a noção de intersec-


cionalidade mesmo antes de esse termo ter sido cunhado academica-

85
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

mente. Neusa Santos, Beatriz Nascimento, Márcia Lima, Lélia Gonzalez,


Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Luiza Bairros, Ângela Figueiredo, entre
outras importantes pensadoras negras, a partir de suas experiências
e trajetórias, têm contribuído para a qualificação dessa abordagem, es-
sencial para a compreensão da realidade que permeia a vida das mulhe-
res negras, como reveladora de opressões e discriminações e também
de potencialização de agências e (re) existências.
Kimberlé Crenshaw (2002) caracterizou a interseccionalidade
como um sistema múltiplo de subordinação. Ângela Davis (2016), mes-
mo sem nomear, já anunciava o sentido da interseccionalidade ao tra-
tar das situações de desigualdades e opressões das quais as mulhe-
res negras vivenciam historicamente. Carla Akotirene (2019) comparou
a interseccionalidade a uma encruzilhada de avenidas identitárias. Lélia
Gonzales (1984) já denunciava o efeito da interação entre o racismo
e o sexismo na vida das mulheres negras e informava a interseccio-
nalidade na conjunção das opressões. Luiza Bairros (1995) se apoiou
na ideia de matriz de opressão para expressar como raça, gênero e clas-
se formam um combinado multidimensional e defende que a dimensão
de gênero e raça nunca poderão ser consideradas separadamente “pois
do ponto de vista da reflexão e da ação política, uma não existe sem a
outra”. Núbia Moreira (2020) articula a perspectiva da interseccionali-
dade com a pedagogia feminista para compreender o protagonismo
das mulheres negras e o entrelaçamento de tipos de diferenciação e de-
sigualdade que o conceito de interseccionalidade afirma sobre a inexis-
tência da hierarquia de opressões. Jurema Werneck (2010) assertiva-
mente afirma que gênero, raça e classe impactam de forma simultânea
e sincrônica, tornando impossível classificar em uma escala de opres-
sões e separá-los ao longo da experiência concreta de cada indivíduo
ou povo. Sueli Carneiro (2003) menciona a integração de um olhar femi-
nista e antirracista com o propósito de incorporar a luta do movimento
negro e do movimento de mulheres, representando a identidade espe-
cífica de ser mulher negra. Patrícia Hill Collins (2020) pondera que a
interseccionalidade é uma ferramenta heurística ou de resolução de pro-
blemas de inúmeras situações, que sai do mundo acadêmico e tem sido

86
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

acionada para instrumentalizar políticas públicas, políticas educacio-


nais e até políticas neoliberais.
Além dessas autoras, podemos trazer muitas outras contribuições
também importantes de outras mulheres negras que se dedicam a ela-
borar reações de enfrentamento às diversas faces do racismo e da co-
lonialidade, que pesam sobre suas vidas e de outras mulheres negras
cotidianamente, demonstrando ser preciso reconhecer que as mulheres
que sofrem com o processo de racialização não podem ter suas deman-
das e especificidades colocadas no mesmo bojo que as mulheres bran-
cas, pois pesam sobre elas a pele, o fenótipo e a invisibilidade, sobretudo
em se tratando de Brasil, remetendo-as a um lugar inferior na sociedade,
abaixo de homens e mulheres brancas, e também de homens negros.
Em síntese: “As singularidades vividas pelas mulheres negras não são
parecidas com as mulheres brancas quando são atingidas pelo sexismo
e não é parecido com o homem negro quando eles são atingidos pelo
racismo”.
Na divisão sexual do trabalho esse contexto não é diferente, no qual
se faz necessário esboçar o desenho da pirâmide em que mulheres ne-
gras sustentam a base e mulheres brancas, ainda que mal remuneradas,
ocupam lugares de mais vantagens. Concordamos com Luiza Bairros
(1995), quando diz que “se você especifica o racismo, tem uma possibili-
dade maior de dar conta das questões das mulheres negras mais do que
quando você especifica o sexismo”.
A filósofa japonesa Helena Hirata (2018), no texto intitulado
“Divisão internacional do trabalho, precarização e desigualdades inter-
seccionais”, tece uma crítica a Kimberlé Crenshaw, ao afirmar que a ju-
rista americana, que cunhou o termo interseccionalidade, concentrou-se
basicamente nas intersecções entre raça e gênero e relegou a segundo
plano, ou de menos importância, a classe. Ao contrário dessa análise,
a interseccionalidade de maneira alguma pretende hierarquizar marca-
dores de desigualdades sociais. O que prevalece nas análises intersec-
cionais é a relacionalidade e não a “geométrica variável” como mencio-
na a autora. Concordamos que para uma estudiosa branca certamente
é difícil compreender que raça estrutura a condição das mulheres negras

87
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

em qualquer contexto, pois só uma mulher negra pode falar do seu lu-
gar de enunciação sobre suas experiências e vivências práticas, de suas
dificuldades e potências. Também defendemos que raça não deveria
ser uma variável considerada como marcador, comparada da mesma
forma que gênero, classe, sexualidade, em se tratando de uma realidade
como a brasileira, que retirou a humanidade de uma população e condu-
ziu ao seu “holocausto”. A escravidão que afetou a população africana
deveria ser, para o mundo, como o nazismo é para a população alemã,
que abomina tal tragédia civilizatória marcada na sua história.
Não podemos negar que socialmente somos medidos(as) de acor-
do com a raça, o gênero, a classe, nas relações que estabelecemos
uns(as) com os(as) outros(as), e que a sociedade já traz esse marcador
de quem vale mais, de quem vale menos, quem ganha mais e quem
ganha menos. Por isso, acreditamos que a interseccionalidade é um po-
tente instrumento político e analítico que pode contribuir com uma len-
te apurada, para ampliar e visibilizar as mulheres negras na sociedade.
Nesse mesmo sentido

as feministas negras introduziram novos desafios teóricos,


metodológicos e políticos, explicitando diferenciações na iden-
tidade das mulheres e nos fatores de subordinação aos quais
estamos submetidas, demonstrando como mecanismos polí-
ticos e ideológicos produzem experiências distintas de opres-
sões. Racismo e sexismo se articulam e são vivenciados de
forma desigual entre as mulheres, não só porque são mulheres,
mas em virtude de sua raça e de outros marcadores sociais. A
interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica
que estilhaça o espelho da mulher universal, transformando
em prismas de mulheres no universo, que como um abebê de
Oxum permite que todas as mulheres, qualquer mulher, sejam
vistas diante do reflexo. Pela lente da interseccionalidade,
termo cunhado por feministas negras, ninguém fica de fora
(GOES, 2019, p. 6).

É preciso que as pesquisas considerem as questões de gênero,


raça e cor, sobretudo quando se aplicar a realidade brasileira, como in-

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

dissociáveis. Quando a divisão sexual do trabalho foi forjada como con-


ceito a ser estudado, o principal objetivo era visibilizar que o trabalho
doméstico era também um trabalho que precisava ser valorizado. Ainda
que esse conceito tenha sido originado em países europeus, deveria
ter sido considerada a existência de diferentes realidades e experiên-
cias de mulheres que sempre realizaram esse tipo de trabalho, inclusive
dando condições às mulheres brancas, cuidando de seus lares e filhos,
para que pudessem fazer parte do mercado de trabalho formal.

Questões para pensar

As análises e problematizações compartilhadas neste tex-


to têm como principal objetivo contribuir com o debate sobre a di-
visão sexual e racial do trabalho, possibilitando um processo de am-
pliação que aponte de maneira efetiva o impacto do racismo na vida
das mulheres negras. Vale salientar que a superação das desigualda-
des visibilizadas pelos estudos vinculados à divisão sexual do trabalho
não serão superadas sem o olhar sobre a realidade das mulheres ne-
gras, e esse olhar só será potencializador se a intelectualidade produzi-
da por elas for incorporada de modo estrutural ao processo de constru-
ção de conhecimentos.
Mudanças estruturais para a vida da realidade das mulheres só se
materializarão em estratégias transformadoras quando as questões ra-
ciais e de cor forem consideradas tão estruturais quanto as análises
de classe e gênero. Este texto é um esforço para que as análises vincu-
ladas à realidade das mulheres no mundo do trabalho ecoem uma ação
feminista, mas também antirracista, pois para as mulheres negras
a categoria trabalho perpassa a vivência histórica da escravidão, o que
requer um olhar mais profundo não apenas de como ampliar as boas
oportunidades no mercado de trabalho, mas de como reparar histori-
camente a conceituação do que é “trabalho” e de quem é considerada
“trabalhadora”.

89
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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91
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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92
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Quanto vale o tempo das mulheres


rurais nordestinas para o acesso às
políticas sociais do Cadastro Único?1

Shana Sieber2
Lorena Lima de Moraes3
Bárbara Cristina Vieira da Silva4
Nicole Pontes5
Rebeca Barreto6
Tatiane Vieira Barros7

1 Este artigo apresenta parte dos resultados da Pesquisa intitulada “Tempo, custo e deslo-
camento: um estudo sobre o acesso aos serviços de atualização de registros do Cadastro
Único no Nordeste brasileiro”, realizada em 2020, por meio da Chamada CNPq/Ministério
da Cidadania n. 30/2019–Estudos e Pesquisas em Avaliação de Políticas Sociais, sob a
coordenação da Profª. Drª. Lorena Lima de Moraes.
2 Doutora em Ciências Sociais (UFCG), doutoranda em Engenharia Agrícola (FEAGRI/
UNICAMP). Pesquisadora do Dadá–Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero, Sexualidade
e Saúde e do NEPPAS (UFRPE – UAST) e do Laboratório de Pesquisas Ambientais e
Agrícolas (UNICAMP). E-mail: shanasieber@yahoo.com.br
3 Doutora em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), docente da Universidade Federal Rural de
Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada e coordenadora do DADÁ: Grupo de
Estudo, Pesquisa e Extensão em Relações de Gênero, Sexualidade e Saúde (UFRPE-UAST).
E-mail: lorena.moraes@ufrpe.br
4 Graduada em Ciências Biológicas (Universidade Federal do Vale do São Francisco).
Pesquisadora- Grupo de estudos em análises de modelagem, etnobiologia, ecologia e eco-
feminismos (PRPPGI/Univasf). E-mail: barbaracristinavieiradasilva@gmail.com
5 Doutora em Sociologia (PPGS/UFPB), docente da Universidade Federal Rural de
Pernambuco- Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE-UAST), pesquisadora do Dadá–
Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero, Sexualidade e Saúde e membro do Advisory
Board–Centre for Fat Liberation & Scholarship (NZ). E-mail: nicole.pontes@ufrpe.br
6 Doutora em Ecologia e Evolução (PPGEE/UERJ), docente da Universidade Federal do Vale
do São Francisco (Univasf), coordenadora do Geames- Grupo de Estudos em Análise de
Modelagem, Etnobiologia, Ecologia e Ecofeminismos (PRPPGI/Univasf). E-mail: rebeca.
mfbarreto@univasf.edu.br
7 Doutora em Antropologia (PPGAS/UFSC), docente do Instituto Federal do Ceará Campus
Itapipoca (IFCE) e Vice coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas
(NEABI) na mesma instituição. E-mail: tatiane.barros@ifce.edu.br

93
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Introdução

Pensar as desigualdades sociais no Brasil não é algo novo, assim


como não é nova a tentativa de produzir políticas sociais para mitigar
a pobreza, ainda que de forma paliativa, sem de fato interferir nas es-
truturas que sustentam as desigualdades sociais em nossa socieda-
de. De acordo com Reinaldo Dias e Fernanda Matos (2012), a política
social é entendida como modalidade de política pública e, como ação
de governo, tem objetivos específicos relacionados à proteção social,
considerando as dimensões política e histórica de maneira sempre ar-
ticuladas. Contudo, a proteção social deve ser relativizada e localizada
no tempo e no espaço em função das estruturas político-institucionais
vigentes, que configuram modelos diferenciados de proteção social.
As políticas públicas têm como objetivos, pela concentração insti-
tucional do poder – do Estado –, sanar os conflitos e estabilizar a socie-
dade pela ação da autoridade, configurando um processo de construção
de uma ordem que prevê a pacífica convivência entre pessoas diferen-
tes, com interesses particulares na busca da felicidade individual – con-
dição assegurada (ou que pelo menos deveria ser) pela ação política
do Estado. Neste sentido, as políticas públicas devem ser entendidas
como um conjunto de procedimentos que expressam relações de poder
que se orientam para a resolução de conflitos (DIAS; MATOS, 2012).
No Brasil, os estudos tradicionais (FURTADO, 1974; 1979; PASTORE,
1979; LAVINAS, FONSECA, 2013; JANUZZI, 2016) sobre desigualdade
social, seguindo, sem dúvidas, o filão de interpretações clássicas foca-
das nas questões da distribuição de renda e riqueza, bem como na pro-
dução de condições de igualdade de oportunidades, constitui-se como
uma das áreas mais prolíficas em termos de produção de estratégias
de transformação da nossa realidade social.
Como resultantes disso, essas abordagens focadas na igualdade
de oportunidades, bem como no desenho de um Estado que as poten-
cialize, têm como objeto particular a promoção de ações articuladas
a partir de indivíduos como células e motores de transformação social

94
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

sem, no entanto, considerar, no mais das vezes, os aspectos multiface-


tados e relacionais da desigualdade.
Os índices e instrumentos de mensuração produzidos e imple-
mentados por meio de políticas sociais focalizam, consequentemente,
a realidade e seus efeitos sobre trajetórias individuais, ou seja, sobre
as “diferenças observadas nas chances individuais de acesso e posse
de bens socialmente valorizados” (PIRES, 2019, p. 15). Nesse sentido,
a discussão e a produção efetiva de políticas sociais seguem na obser-
vação e na acumulação de dados sobre os indivíduos de forma pouco
relacional e pouco interconectada aos elementos estruturais e às ques-
tões das suas posições sociais (como entes coletivos, participando
de grupos, classes, comunidades etc.), bem como a outros tipos de de-
sigualdades, afora a econômica, expressadas nas relações étnico-ra-
ciais, de gênero, regionalidades, sexualidades, dentre outras.
Deste modo, consideramos que para serem superadas as desigual-
dades sociais passam a requerer um enfoque mais ampliado e integra-
dor das questões econômicas (riqueza e renda; acumulação de capital
etc.) e dos elementos plurais voltados para as trajetórias coletivas e co-
munitárias a partir de valores e produção simbólica. Questões de parti-
cipação social, inclusão/exclusão e outros aspectos são significativos
para questionar os processos e instrumentos de produção e reprodução
da desigualdade, ultrapassando a busca apenas pela correção da distri-
buição de renda dos indivíduos.
Portanto, buscamos formas de compreender como as relações
de exclusão e a produção das condições de vulnerabilidade de certos
grupos ocorrem e a partir de quais mecanismos de transformação –
não apenas das oportunidades econômicas, mas também das estru-
turas de organização das relações sociais no capitalismo – podem
nos aproximar de uma situação ideal de igualdade social. Na esteira
dessa ampliação das formas de pensar o desenvolvimento humano
como um processo plural, o enfoque da capacidade (SEN, 1993; 2018)
emerge como central tanto para a compreensão das fronteiras dos parâ-
metros restritos das análises de redistribuição de riquezas e do acesso
a recursos essenciais para garantia da qualidade de vida, como para

95
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

o aprofundamento da necessidade de considerar o desenvolvimento


como uma combinação dos elementos de acesso aos recursos, às pos-
sibilidades e habilidades dos grupos sociais e dos indivíduos em esta-
belecer valores e suas formas de aquisição. Assim, as reflexões sobre
pobreza e extrema pobreza, bem como a elaboração de políticas públi-
cas para a erradicação de tais situações de vulnerabilidade social e eco-
nômica devem ser constituídas por elementos estruturais e históricos
que emergem situacionalmente e prescindem de “conjuntos de ativida-
des” e “modos de ser” (SEN, 1993), utilizados para avaliar a qualidade
de vida e ordenar o desempenho das funções sociais dos indivíduos.
Na abordagem das “desigualdades entrelaçadas” (YSTANES;
STRØNEN, 2017) esse esforço de compreensão histórica dos aspectos
estruturais das desigualdades aparece fundamentado na inter-relação
entre aspectos sociais e econômicos, tendo como foco a imbricação
de estruturas de ordenamento e distribuição de recursos, acesso, ativi-
dades, valores e modos de vida de pessoas e grupos, em um movimen-
to de produção e reprodução das desigualdades. O olhar sobre essas
categorias como fundamentalmente interligadas leva à maior centrali-
dade dos aspectos cotidianos da vida como instrumentos, tanto para
o diagnóstico dos problemas que emergem das desigualdades, como
para a sua solução.
Como consequência das mudanças sobre a noção de desenvol-
vimento vemos também o surgimento de uma discussão acerca do pa-
pel do Estado, assim como das suas formas de abordar o problema.
Nas duas últimas décadas, sob a batuta de governos de esquerda, acom-
panhamos essas tentativas de articulação na produção de políticas so-
ciais de Estado e a adoção de políticas de bem-estar social que pro-
moveram mudanças no posicionamento e na ação estatal com relação
à promoção de garantias de acesso das populações mais vulneráveis
aos serviços de educação, saúde, políticas identitárias, ordenamen-
to territorial etc., na tentativa de reduzir desigualdades, especialmente
os índices relacionados à pobreza e à extrema pobreza.
Essas políticas, embora indubitavelmente atreladas aos aspectos
econômicos (expressado pelo grande foco no Programa Bolsa Família),

96
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tiveram como motivação a ampliação do interesse nos estudos sobre


desigualdades (COSTA, 2019). Os esforços não apenas de melhorar
as condições financeiras, mas também de ampliar o acesso aos bens
e serviços públicos foram fundamentais na estruturação de um modelo
de Estado que se desenhava como mais inclusivo e atento às conse-
quências nefastas da situação de pobreza ou extrema pobreza de uma
parcela significativa da população brasileira. Ademais, os estudos para
a ampliação dos processos formativos e participativos da população
passam a apoiar-se na compreensão dos sentidos cotidianos das con-
dições reais de vida das populações afetadas. Agora, já não basta saber
e reconhecer quem são e onde estão situadas essas pessoas, grupos
e comunidades, é preciso aprofundar os olhares para os elementos
particulares que definem suas reais condições de acesso, ação e par-
ticipação nas políticas públicas voltadas para a transformação de sua
realidade.
Neste sentido, o presente texto tem como objetivo problemati-
zar o acesso de populações rurais e tradicionais do Nordeste brasilei-
ro às políticas públicas e sociais, tendo o Cadastro Único como princi-
pal sistema de organização e compilação dos dados, dando destaque
às desigualdades socioespaciais que afastam as populações mais po-
bres dos serviços básicos de garantia à qualidade de vida. Assim, colo-
caremos luz nos custos financeiros e de tempo que as mulheres rurais
beneficiárias de programas sociais possuem para acessar as políticas
públicas que lhes são de direito.

A trajetória do Cadastro Único

Os esforços para organização e operacionalização de um progra-


ma abrangente como o Bolsa Família produziram a necessidade de me-
canismos de inclusão e controle que gerassem melhor conhecimen-
to e acesso aos perfis dos cadastrados e beneficiários do programa,
além de possibilitar a ampliação e controle desse acesso e da conces-
são dos recursos financeiros. Devido a essas necessidades, foi criado
o Cadastro Único para programas sociais, que consiste em um conjun-

97
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

to de instrumentos operacionais centralizados, sob tutela do Governo


Federal e da Caixa Econômica Federal, tendo como objetivo a inserção
e o gerenciamento dos dados dos indivíduos que terão acesso aos pro-
gramas sociais nas esferas federal, estadual e municipal.
Para efetivar o funcionamento do Cadastro Único também se mos-
trou essencial o estabelecimento de parâmetros econômicos para inclu-
são de cadastros, sendo o mais importante deles a definição da renda
familiar mínima e máxima das pessoas cadastradas. Assim, os indiví-
duos e grupos cadastrados devem fazer parte de famílias com renda
de até meio salário mínimo per capita (inclusive para indivíduos em si-
tuação de rua e famílias unipessoais, constituídas de uma só pessoa)
ou renda total familiar de até três salários mínimos.
O fortalecimento do Cadastro Único como instrumento essencial
para a implementação de políticas públicas de cunho social fez parte
desses esforços de melhorias nos processos de inclusão e controle
de pessoas cadastradas, especialmente no que diz respeito ao seu per-
tencimento ao perfil definido pelo programa ao qual estariam vincula-
das, bem como ao acompanhamento/manutenção das informações for-
necidas por elas. “O percurso de consolidação do Cadastro Único como
pilar de articulação desta rede de proteção e promoção social não foi
trivial e exigiu expressivo esforço de articulação federativa e de defini-
ção de regras e mecanismos de cadastramento e atualização cadas-
tral” (BARTHOLO et al., 2010, p. 12). Temos então que o Cadastro Único
para programas sociais do governo federal se firmou como instrumento
essencial de mapeamento da população em situação de pobreza e ex-
trema pobreza no Brasil, passando a ser utilizado, cada vez mais, como
instrumental central na implementação e fortalecimento de políticas pú-
blicas voltadas a esses grupos.
Em seu período inicial de implementação, oficialmente em 2003,
o Cadastro Único ainda não tinha mecanismos que possibilitassem
o acesso de dados de todos os municípios que formavam a rede de apoio
às políticas nacionais de transferência de renda, muito embora estives-
se relegada aos municípios a tarefa de mapear e coletar os dados da po-
pulação de baixa renda no âmbito local. A coleta e a inserção dos dados

98
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

no Cadastro Único ainda sofriam de problemas relacionados também


à impossibilidade de atualização, não havendo sistematicidade acerca
da qualidade dos dados coletados e sua veracidade. Esta dificuldade
se acentuava devido à impossibilidade de acesso, por parte dos gesto-
res dos municípios envolvidos, ao banco de dados localizado na sede
da Caixa Econômica Federal em Brasília, além da subnotificação de al-
gumas informações cadastrais importantes, tais como escolaridade,
condição de moradia entre outras, invisibilizando aspectos importantes
sobre a situação de pobreza da população do país (BARTHOLO et al.,
2010).
O fato do Cadastro Único ter sido unificado ao Programa Bolsa
Família, nas suas tarefas de gestão, e que ambos passaram a pertencer
ao Ministério do Desenvolvimento Social, hoje Ministério da Cidadania,
fundamentou e esclareceu os deveres e as responsabilidades de cada
instância de poder estatal nos níveis federal, estadual e municipal, quan-
to à regulamentação do uso, assim como ao gerenciamento dos dados,
das informações e do acesso. Além disso, o decreto de 2007 regulamen-
tou também os procedimentos de cadastramento, de inclusão e atuali-
zação dos dados, com orientações específicas para as instâncias muni-
cipais responsáveis pelo processo (BARTHOLO et al., 2010).
Após a modificação dos aparatos legais que davam suporte à in-
tegração do sistema de coleta e atualização dos dados nos níveis mu-
nicipal, estadual e federal, o Cadastro Único passou por um conjunto
de atualizações, gerando novas possibilidades de operacionalidade
que incluíam acesso amplo e sistematização dos dados a partir de um
conjunto de variáveis disponíveis em seu banco de dados. Contudo, ape-
nas em 2010, o Cadastro Único passou a funcionar com potencial analíti-
co, sendo capaz de gerar relatórios nos três níveis distintos de operação,
bem como de garantir procedimentos de atualização cadastral online
diretamente acessados pelos municípios. Em termos de coleta dos da-
dos, realizada pela esfera municipal, foram também produzidas novas
estratégias, dentre elas a unificação do formulário de cadastramento,
assim como a inclusão de formulários específicos para populações an-
teriormente excluídas dos processos cadastrais, tais como comunida-

99
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

des quilombolas, comunidades indígenas, cidadãos em situação de rua,


assentados, populações ribeirinhas e pessoas provenientes de trabalho
em condição análoga à escravidão, entre outras.
Na sua versão atual, o Cadastro Único é definido como ferramenta
de identificação e caracterização das famílias em situação de pobreza
e extrema pobreza no Brasil, promovendo conhecimento mais adequa-
do das condições socioeconômicas desses grupos. As informações en-
contradas no Cadastro Único dizem respeito às condições de moradia,
identificação de cada indivíduo, incluindo suas características de iden-
tidade étnico-racial, religiosa etc., dados sobre a família, escolarida-
de, trabalho e renda, dentre outras. O Decreto n. 6.135, de 26 de junho
de 2007 regulamenta o acesso e o uso dessas informações e estabe-
lece quais os gestores responsáveis, sendo o Ministério da Cidadania
e a Caixa Econômica Federal os atuais gestores federais (MINISTÉRIO
DA CIDADANIA, 2020).
Para garantir o funcionamento adequado e o mapeamento atuali-
zado das famílias cadastradas no Sistema de Cadastro Único, os dados
de cada membro da unidade familiar devem ser atualizados na base
de dados todas as vezes que os dados, ou a composição, dos membros
da unidade familiar mudar. Levando-se em consideração as dificulda-
des relacionadas à atualização cadastral, foi implementado um proces-
so de atualização regular e obrigatória desses dados, que deve ser feita
a cada dois anos. A não realização de atualização dos dados cadas-
trais implica na possibilidade de cancelamento ou bloqueio do acesso
aos programas sociais pela unidade familiar ou membros da família.
Nas últimas duas décadas, além do Programa Bolsa Família, diver-
sos outros programas federais, estaduais e municipais passaram a usar
as informações contidas no Cadastro Único como base para a regula-
mentação do acesso aos seus programas sociais, tais como Programa
para a Erradicação do Trabalho Infantil, Tarifa Social de Energia Elétrica,
entre outros. Devemos levar em consideração que outros programas8
8 Em meio à pandemia de covid-19, a alternativa disponibilizada pelas políticas articuladas
pelo Cadastro Único teve como referência o Auxílio Emergencial (Lei n. 13.982, de 2 de abril
de 2020), assegurando uma renda mínima para as famílias em situação de vulnerabilidade,
sobretudo as que participavam do Programa Bolsa Família.

100
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ainda utilizam o Cadastro Único para fins de monitoramento de cober-


tura de seu público-alvo junto à população de baixa renda, incluindo
o Benefício de Prestação Continuada, Programa Brasil Quilombola etc.
(DIREITO, 2016).

Desafios e dificuldades na utilização do Cadastro Único hoje:


uma discussão étnico-racial, de gênero, de classe e socioespacial

Muito embora o Cadastro Único tenha se mostrado bastante efeti-


vo na sua tarefa instrumental de auxiliar nos processos de cadastramen-
to e monitoramento dos principais aspectos socioeconômicos das po-
pulações em situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil, servindo
de base de dados essencial na construção tanto de políticas públicas
quanto para as ações de controle social e monitoramento dos efeitos
e resultados de políticas sociais implementadas com fins de minimizar
as desigualdades sociais, não se pode negar que sua estrutura e funcio-
namento ainda apresentam um conjunto de fragilidades e desafios.
Entre eles, destaca-se a dificuldade de autodeclaração dos dados,
especialmente no que diz respeito à condição econômica das pesso-
as cadastradas. Tem-se observado que em alguns municípios são en-
contradas estratégias distintas de controle e verificação da veracidade
dos dados informados, porém, com o ônus agregado de constrangimen-
to social de pessoas cadastradas (LIMA, 2017).
Se levarmos em conta os aspectos da distância, do deslocamen-
to e dos custos desses procedimentos, não é difícil encontrar relatos
de pessoas cadastradas queixando-se da necessidade de realização
de múltiplas visitas aos locais de cadastramento, ter que obter do-
cumentação em lugares distintos e distantes do local de residência,
além da quantidade de horas dedicadas ao deslocamento até o ponto
de atendimento do Cadastro Único. Nas comunidades rurais essas di-
ficuldades são ainda maiores devido às distâncias geográficas e à au-
sência de transporte público, que aumenta o tempo e os custos deste
processo.

101
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

As pesquisas têm demonstrado que um número significativo


de pessoas residentes em áreas com alto índice de vulnerabilida-
de social acabam não sendo cadastradas, assim como habitantes
de cortiços, favelas e conjuntos habitacionais populares enquadrados
nos critérios sociais e econômicos de vulnerabilidade (GALLEGUILLOS
et al., 2010). Nesse sentido, maior eficiência e efetividade dos cadas-
tros são demandas importantes para os avanços conquistados pelos
programas na direção de um combate efetivo à pobreza e extrema po-
breza (GALLEGUILLOS et al., 2010; CAMARGO et al., 2013), principal-
mente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, sobretudo na área rural
(CAMARGO et al., 2013).
Uma vez inseridas no Cadastro Único e atendidas pelo programa
social, as mulheres são as responsáveis por manter os dados de toda
a família atualizados no sistema, por meio da atualização cadastral obri-
gatória a cada dois anos e, na medida que seja necessário, pelo deslo-
camento até o ponto de atendimento do Cadastro Único para atualiza-
ção de novas informações, como: mudança de endereço, casamento;
nascimento de filho/a; alteração dos dados escolares dos/as filhos/as,
etc. Assim, são as mulheres quem se deslocam até a sede do muni-
cípio ou até o local específico de atendimento mais próximo ou mais
viável, a depender do transporte disponível e/ou da situação da estra-
da. São elas quem se submetem aos transportes irregulares e às estra-
das inseguras; destinam tempo para o deslocamento e esperam na fila
de atendimento; realizam a organização intrafamiliar para se ausenta-
rem de casa por várias horas; preparam a alimentação da família e dos
animais de criação, às vezes desde o dia anterior, ou no raiar do dia;
além de gastar parte do benefício com o transporte, alimentação e foto-
cópias de documentos.
Sob a articulação do Cadastro Único, o Programa Bolsa Família
atuou como principal programa de transferência de renda do país, aten-
dendo cerca de 13,9 milhões de famílias com renda por pessoa entre
R$ 89,01 e R$ 178,00 mensais. O valor que a família recebe por mês
corresponde à soma de vários tipos e benefícios previstos no Programa
Bolsa Família a depender da composição familiar (número de pessoas,

102
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

idades, presença de gestantes, etc.) e do grau de pobreza da família


beneficiária9. As mulheres, enquanto prioritariamente titulares do bene-
fício, compreendem mais de 90% do público atendido, que previa como
desenho da política a titularidade feminina, corroborando as análises
empíricas que confirmavam que as mulheres administravam de forma
mais efetiva e eficiente os gastos domiciliares em prol do grupo familiar,
evitando desperdícios e usos indevidos do benefício (LAVINAS; COBO;
VEIGA, 2012; BARTHOLO; PASSOS; FONTOURA, 2017).
Vale salientar que são consideradas o público-alvo do Programa
Bolsa Família e, atualmente, do Programa Auxílio Brasil10 aquelas famí-
lias em situação de vulnerabilidade social, pobreza e extrema pobreza.
A pobreza é um problema social que acompanha mais de dois bilhões
de pessoas no mundo, que sobrevivem com menos de dois dólares
por dia (ANDRADE; MACHADO, 2018). No entanto, a pobreza se apresen-
ta de modo diferente a depender do território, cor, etnia, gênero, arranjos
familiares, idade, etc., sendo vários os marcadores que podem agravar
ou minimizar seus índices.

9 Dados do Ministério da Cidadania, relativos a novembro de 2020.


10 O Bolsa Família foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil (Lei n. 14.284, de 29 de de-
zembro de 2021). Sua cobertura chega a 17,5 milhões de famílias com aumento de cerca
de três milhões de famílias se comparado ao anterior. Embora tenha alcançado maiores
valores, os benefícios relacionados à linha da pobreza e da extrema pobreza, que passaram
a ser calculados em R$100 e R$200, respectivamente, são temporários, sem garantias or-
çamentárias a longo prazo (com validade até dezembro de 2022) e apresentam um formato
de financiamento tripartite, sendo 30% do governo federal, 20% do orçamento anual prove-
niente de impostos, e 50% indefinidos, com possibilidade de entrada de empresas, ONGs e
entidades privadas e paraestatais. Fundamentada em um reordenamento das prioridades
de dever do Estado em construir políticas públicas que possibilitem acesso pleno aos direi-
tos, o programa acaba privilegiando uma política da responsabilização dos cidadãos pelas
suas condições de pobreza e extrema pobreza, sob a lógica da moralização. Além disso, há
o claro desmantelamento da rede de Assistência Social, com a diminuição da centralidade
das condicionalidades de educação e saúde. Para mais informações Ver: Bartholo, Leticia;
Veiga, Rogério; Barbosa, Rogério Jerônimo. O que muda no “novo bolsa família”. Revista
Piauí, agosto de 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/o-que-muda-no-novo-
-bolsa-familia/; Bronzo, Carla et al. Auxílio Brasil não é o Bolsa Família melhorado: um salto
no abismo e o desmonte da proteção social no Brasil. Estadão Blogs: gestão, política e
Sociedade. 03 de novembro de 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blo-
gs/gestao-politica-e-sociedade/auxilio-brasil-nao-e-o-bolsa-familia-melhorado-um-salto-
-no-abismo-e-o-desmonte-da-protecao-social-no-brasil/.

103
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística (2020)11 mostrou que 11,8% da população brasileira vivia,
em 2019, com o valor de até ¼ de salário mínimo per capita mensal (cer-
ca de R$ 250,00) e quase 30% dos cidadãos brasileiros viviam com até ½
salário mínimo per capita (R$ 499,00) por mês. Na região Nordeste, qua-
se metade da população tinha até esse último patamar de renda mensal.
As mulheres pretas ou pardas se destacam entre a população eco-
nomicamente mais vulnerável no país, sendo 39,8% daqueles considera-
dos extremamente pobres e 38,1% dos pobres. Em relação à regionali-
dade, a extrema pobreza afeta mais da metade da população nordestina
(IBGE, 2020). Assim, é inevitável recorrer ao gênero e raça como catego-
rias de análise para pensar as relações sociais que reforçam as condi-
ções de submissão que as mulheres vivenciam.
Sob a perspectiva de Joan Scott (1990) compreendemos gênero
como construções sociais, históricas e políticas que criam represen-
tações do masculino e do feminino e são reproduzidas entremeadas
por relações de poder passíveis de modificar-se a depender dos inte-
resses do Estado. A categoria gênero, além de relacional, constitui-se
como instrumento de análise ao nos orientar para reflexões e denún-
cias de diversas formas de opressão e desigualdades que se organizam
e ganham coerência nas práticas sociais justificadas pelas diferenças
sexuais e biológicas. A autora defende que o gênero é a primeira forma
de significar as relações de poder, ou melhor, é um campo onde o po-
der é articulado estruturando a percepção e organização da vida social.
Assim, “as estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões gene-
ralizadas da relação pretensamente natural entre masculino e o femini-
no” (SCOTT, 1990, p. 73).
O gênero enquanto categoria relacional se constrói de acordo
com especificidades espaciais, territoriais e temporais, além de abarcar
marcadores sociais de diversos grupos, como: etnia, religião, raça/cor,
classe, identidade, etc. Assim, as desigualdades entre os sujeitos se per-
petuam em complexas redes de poder que hierarquizam os gêneros e as

11 Importante ressaltar que estes são dados anteriores à crise sanitária, política e econômica
provocada pela pandemia de covid-19.

104
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

múltiplas formas de feminilidades e masculinidades através das institui-


ções, dos discursos, dos códigos, práticas, símbolos etc. (LOURO, 2014).
Neste sentido, voltamos a chamar atenção para as mulheres pre-
tas, pardas, pobres, nordestinas, agricultoras e de comunidades tradicio-
nais para pensar as relações de gênero e de raça diante da sustentabili-
dade da vida em contextos permeados pela pobreza e extrema pobreza
no Brasil. Este grupo de mulheres, marcado pela dimensão racial, com-
preende o perfil mais vulnerável economicamente, estabelecendo-se
mais distante do mercado formal de trabalho, pois, além do desemprego
que assola homens e mulheres em tais contextos, as mulheres negras
se veem restringidas à esfera privada sob a responsabilidade das tare-
fas domésticas, do trabalho de cuidar de crianças, idosos e pessoas
com deficiência, além de garantir a única renda familiar por meio das po-
líticas sociais.
A vulnerabilidade que marca a vida das mulheres reforça a neces-
sidade do cruzamento entre raça, relações de gênero e políticas públicas
com o propósito de diminuir as desigualdades entre mulheres e homens,
reforçadas pela reprodução da divisão sexual do trabalho que direciona
os tipos de trabalho e suas esferas de atuação. É mister atentar para
as desigualdades raciais e étnicas na interseccionalidade com as ca-
tegorias de gênero e classe, pois, conforme apresentam os dados
do Censo Agropecuário 201712, as mulheres pretas, amarelas e indíge-
nas congregam os piores percentuais frente a posse de terra, e em re-
lação ao protagonismo na direção de estabelecimentos agropecuários.
A intersecção de categorias sociais que agravam as condições
econômicas, sociais e políticas das mulheres participantes da nossa
pesquisa constituem coletividades que agregam traços de exclusão,
marginalização e subalternidade. Por isso, fazem-se necessárias polí-
ticas de reconhecimento que contemplem as várias dimensões das in-
justiças econômicas, sociais e culturais, uma vez que as atuais, ao ne-

12 Conforme os dados do Censo, a direção dos estabelecimentos agropecuários se dá da


seguinte forma: homens brancos: 1.951.438 estabelecimentos; pretos: 319.380; amarelos:
25.593; pardos: 1.772.209; e indígenas: 41.830. Os menores números são direcionados às
mulheres: mulheres brancas: 345.575 estabelecimentos; pretas: 104.028; amarelas: 5.515;
pardas: 476.340; indígenas: 14.617.

105
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

gar direitos e ampla cidadania, se concretizam em forma de violência


de Estado. Tais políticas necessitam de reformulação e ajustes perma-
nentes com vistas a alcançar criticamente as várias formas de estere-
ótipos, preconceitos, violências e exclusão social que se abatem sobre
tais coletividades, causando-lhes a acumulação de sofrimento psíquico
e cívico (ITABORAÍ, 2017).

Caminho metodológico da pesquisa: conversando com as


mulheres rurais nordestinas

Nossa pesquisa abarcou 23 comunidades em 11 cidades interio-


ranas de três estados brasileiros, Bahia, Ceará e Pernambuco. Estes es-
tados contabilizam os maiores números de cadastrados no Cadastro
Único da região Nordeste e de taxa de atualização cadastral, de acor-
do com os dados da CECAD 2.0 (2020) (Tabela 1). Nos referidos es-
tados, alcançamos três perfis de comunidades tradicionais e rurais:
comunidades de fundo e fecho de pasto, comunidades quilombolas
e comunidades rurais de agricultura familiar, a fim de visibilizar a re-
alidade das populações que vivem distante dos centros urbanos e as
dificuldades existentes para acessar políticas públicas. Os municípios
em destaque na nossa proposta foram: Remanso, Curaçá, Juazeiro,
Sobradinho e Uauá, no estado da Bahia; Itapipoca e Tururu, no estado
do Ceará; Serra Talhada, Mirandiba, Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo,
em Pernambuco.

Tabela 1 – Número de pessoas cadastradas no Cadastro Único por região do


Brasil e por estado do Nordeste

Região N° de pessoas cadastradas %

Nordeste 32.610.289 40

Sudeste 26.034.017 32

Norte 9.770.703 12

Sul 7.745.365 9

Centro oeste 5.474.213 7

106
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Bahia 8.449.834 27

Ceará 5.303.466 17

Pernambuco 5.276.555 17

Maranhão 4.358.529 14

Paraíba 2.296.727 7

Piauí 2.017.261 7

Alagoas 1.816.877 6

Sergipe 1.261.640 4

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos dados do CECAD 2021.

O trabalho de campo foi realizado no contexto da pandemia de co-


vid-19, no início de 2020, época em que as recomendações eram de iso-
lamento e distanciamento social, afetando o planejamento metodoló-
gico da pesquisa, que se direcionou para o uso das tecnologias como
computador, telefone ou aplicativo de chamada de voz e internet. Diante
da desigualdade social e exclusão digital de muitas comunidades rurais
do interior do Nordeste, a estratégia adotada foi negociar e mapear, jun-
to às lideranças comunitárias, as quais denominamos de mobilizadoras,
as possibilidades de coleta de dados de forma remota, considerando
a compreensão do contexto e acesso tecnológico de cada comunidade.
As entrevistas foram realizadas apenas com mulheres, uma vez
que correspondem a 56% do número total de pessoas cadastradas
no Cadastro Único e público prioritário do Programa Bolsa Família
(CECAD, 2021). Realizamos um total de 85 entrevistas das quais 80 fo-
ram aptas para a coleta de informações e análise quantitativa, totalizan-
do 39 entrevistas em Pernambuco, 23 no Ceará e 18 na Bahia. Dentre
os grupos tradicionais estudados, 42 entrevistas foram de mulheres qui-
lombolas (52,5%), 24 de agricultura familiar (30%) e 14 de fundo de pas-
to (17,5%). Nos estados de Pernambuco e Ceará foram entrevistadas
mulheres de comunidades quilombolas e da agricultura familiar, já na
Bahia a pesquisa alcançou mulheres da agricultura familiar e de comu-
nidades de fundo de pasto.

107
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Quem são as mulheres entrevistadas?

As desigualdades sociais que, historicamente, acompanham


as comunidades tradicionais e rurais possuem sua origem no perío-
do colonial, seguido da constituição da regulação territorial que esta-
beleceu a concentração de terras e, consequentemente, o isolamento
socioespacial da população mais fragilizada economicamente. Ainda
que nas duas últimas décadas várias iniciativas de políticas públicas
tenham surgido de maneira a mitigar tais desigualdades, o acesso a es-
sas políticas ainda possui alguns entraves, como o custo monetário e o
custo de tempo investido pelas mulheres para acessarem as políticas
que lhes são de direito, sob as rédeas de uma divisão sexual do trabalho
que sobrecarrega as mulheres rurais aprofundando as desigualdades
de gênero, de raça/etnia, classe e socioespacial.
A maioria das mulheres que participou da pesquisa se autode-
clara como negra (29%), seguida de parda (23%), preta (18%), more-
na (17%), branca (12%) e amarela (1%). Em nossas análises optamos
por unir o quantitativo das autodeclarações negra, parda, morena e pre-
ta, em uma categoria de cor “negra”. Logo, verificamos que nossa amos-
tra é composta majoritariamente de mulheres negras (87%, n=68) e 84%
das participantes se consideram pertencer a alguma etnia, algo já espe-
rado devido as características populacionais dos territórios da amostra.
Sueli Carneiro (2011) chama a atenção para o fato de que des-
de os tempos da escravidão existe uma manipulação da identidade
do negro de pele clara, resultado de uma miscigenação que ocorreu
de forma violenta e carregada do estigma sobre a negritude. Ela aponta
que a sociedade brasileira se alicerçava em uma política de embranque-
cimento com base numa hierarquia cromática e de fenótipos, buscado
a brancura como ideal. Assim, a autora encontra uma forma de justificar
a diversidade de expressões que pessoas negras usam para se defini-
rem racialmente. Para fins de classificação oficial, o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza as classificações: “branca”, “pre-
ta”, “parda”, “amarela” e “indígena”. Já para fins de acesso da popula-

108
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ção negra brasileira às ações afirmativas como cotas raciais ou outras


políticas sociais com recorte racial, o termo “negro” apresenta-se como
a junção do montante de pretos e pardos.
Nesse sentido, a participação das mulheres pretas, pardas, po-
bres, nordestinas, agricultoras e de comunidades tradicionais na nossa
pesquisa nos convida a refletir sob uma questão de gênero de forma
interseccional em relação às desigualdades raciais e étnicas, bem como
de classe e socioespacial, provocando sobreposições de violências vi-
venciadas pelas mulheres negras em situação de pobreza. O viés da in-
terseccionalidade se torna fundamental para a reflexão das dinâmicas
sociais que se entrecruzam ao considerar os eixos de poder – raça,
gênero, classe e etnia, por exemplo – como elementos estruturantes
que se materializam diferencialmente sob a discriminação das mu-
lheres negras, conforme defende Kimberlé Crenshaw (2002). A gran-
de questão, para a autora, consiste na visão tradicional que diferencia
em categorias a discriminação racial, a de gênero e a de classe, como
se uma não tivesse relação com a outra. A intersecção de violências
experienciadas pelas mulheres racializadas é marcada pelo cruzamento
do racismo, da xenofobia, das relações de gênero e de classe que atra-
vessam as vulnerabilidades preexistentes.
Contudo, não podemos deixar de reconhecer que houve avan-
ços diante do programa social analisado, pois o aperfeiçoamento
do Cadastro Único levou em consideração as especificidades das co-
munidades quilombolas, indígenas, cidadãos em situação de rua, as-
sentados, populações ribeirinhas, entre outras, identificando e caracteri-
zando as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil
com a melhoria do levantamento das condições socioeconômicas des-
ses grupos. No entanto, dificuldades ainda são apontadas para o aces-
so das políticas articuladas pelo Cadastro Único, com custo e dispêndio
de tempo empenhado principalmente pelas mulheres. Para as mulheres
negras, pobres, nordestinas e isoladas dos postos de cadastramento
(e centros urbanos), qual é o custo para o acesso às políticas sociais?
Sendo, na nossa pesquisa, a maioria das entrevistadas casada ou em

109
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

união estável (70%) e referência financeira na família (50%), uma vez


que a sua principal renda estável é proveniente do Bolsa Família, a ques-
tão da divisão sexual do trabalho é problematizada no continuum do tra-
balho doméstico e de cuidado com a casa e com os filhos, aumentando
o custo despendido na escassez de tempo enfrentada pelas mulheres
para se ausentarem e se deslocarem de suas residências. Quase todas
as mulheres entrevistadas possuem filho (96%), sendo que a maioria
(76%) das mulheres possui de um a três filhos.
O trabalho de cuidado é entendido como fundamental para os pro-
gramas de combate à pobreza no Brasil por sua importância na sus-
tentabilidade da vida e na reprodução intergeracional, embora se tenha
indicações de um caráter reforçador das desigualdades de gênero des-
ses programas, por ter como referência as mulheres para a realização
(e atualização) do cadastramento, além do trabalho de garantia de que
as exigências burocráticas sejam cumpridas (GERMINE; PERES, 2021).
No âmbito do Programa Bolsa Família, as mulheres beneficiárias em-
pregam mais horas nas atividades domésticas e do cuidado do que
os homens e do que os grupos não beneficiários13, sendo a presença
de crianças de até cinco anos na unidade doméstica uma condição
que eleva o número de horas deste trabalho. Neste contexto abordado
pelas autoras, entre outras atividades, o trabalho das mulheres no cuida-
do doméstico compreende além do acompanhamento da saúde regular
e imunização, a garantia da presença escolar dos filhos. Apesar do avan-
ço na busca da redução das desigualdades econômicas ao estabelecer
a responsabilidade das mulheres no acesso às políticas sociais na uni-
dade familiar, a gestão do acesso da política vem implicando no aumen-
to de um custo na vida dessas mulheres na desigualdade dos seus pa-
péis sociais, na condição de mães e cuidadoras.

13 A análise das autoras sobre os dados da PNAD Contínua (2019) evidenciou, entre outros
resultados, maiores médias de horas semanais dedicadas pelas mulheres beneficiárias
de políticas sociais (ao trabalho doméstico e de cuidado, tendo como diferenças na com-
paração com os homens 16,7 horas para mulheres indígenas, 15,15 horas para mulheres
brancas, 14,76 para mulheres pardas, 13,17 para mulheres amarelas e 14,58 para mulheres
pretas (GERMINE; PERES, 2021).

110
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

As mulheres, enfrentando distâncias de 31,4km em média


para chegar ao ponto de atendimento do Cadastro Único, com casos
de 191km de distância, como no de uma das comunidades de fundo
de pasto da Bahia, fazem o deslocamento, na maioria das vezes, sob o
custo do transporte coletivo particular (van, kombi, pau de arara) ou do
transporte individual terceirizado (mototáxi, motocicleta alugada, carro
pequeno alugado) significando, para além do investimento monetário,
um desgaste físico e emocional.
Na ausência de transporte público ou privado e na escassez
de dinheiro para custear tal serviço, as alternativas para garantir o des-
locamento são: percorrer longos percursos a pé ou de bicicleta, sob o
sol quente e sobre a terra batida; solicitar carona nos ônibus escolares
disponíveis, ou confiar em pessoas desconhecidas etc. Quando o es-
paço imediato e o sistema de transportes não fornecem a assistência
necessária às oportunidades de trabalho, estudo e serviços em geral,
os indivíduos passam a percorrer distâncias maiores. Em consequência
dessa articulação, a distância entre a casa, o trabalho e outros espaços,
e o tempo necessário para percorrê-la, tornam-se indicadores preciosos
das desigualdades socioespaciais (MONT’ALVÃO, 2011).
É inevitável e necessário localizarmos tais desigualdades so-
cioespaciais no nosso passado histórico que segue se reproduzindo
no presente. A história colonial e escravocrata brasileira embasou a se-
gregação espacial que até hoje se evidencia, delimitando os acessos,
os deslocamentos e as fronteiras, controlando a circulação de pessoas,
embora histórias de resistência tenham sido contadas e experienciadas.
Grada Kilomba (2019, p. 168) afirma que tal divisão é um “lembrete ge-
ográfico acerca das fronteiras que o sujeito negro [e de origem tradi-
cional] não pode transgredir, para não contaminar o território branco”.
A autora também lembra que “áreas negras [e tradicionais] segregadas
representam lugares com os quais pessoas brancas não se importam,
ou não ousam ir, e dos quais mantêm uma distância corpórea específi-
ca” (KILOMBA, 2019, p. 167).

111
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

O lócus do presente trabalho, regiões interioranas do Nordeste


brasileiro que alocam populações tradicionais majoritariamente negra
e participantes de políticas públicas, como o Programa Bolsa Família,
alinha-se com a denúncia que adotamos de Kilomba em relação à se-
gregação espacial que também é racial e que limita o acesso da popu-
lação negra, de povos tradicionais e pobres aos serviços que garantem
cidadania e dignidade. Além disso, tal isolamento exibe o retrato de um
Brasil rural, preto e em situação de pobreza e extrema pobreza, invisibi-
lizado pelas estatísticas oficiais e pelas teorias que as analisam e defi-
nem categorizações.

O tempo e o custo do acesso ao Cadastro Único na vida


das mulheres rurais nordestinas

Norbert Elias (1998) afirma que diante das diversas definições,


sentidos e orientações sobre o tempo, há uma associação aos fenôme-
nos da natureza, à duração dos eventos e à linguagem. Elementos natu-
rais, biológicos, individuais e sociais embasam a construção de símbo-
los essenciais para a mensuração, compreensão e orientação do tempo.
Assim como Elias, Silva (2010) reconhece que o tempo não se reduz
a uma “ideia” particular e espontânea de determinado indivíduo; configu-
ra-se enquanto instituição social aprendida e compartilhada entre indiví-
duos em seu processo de desenvolvimento e racionalização no contex-
to do estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades.
Na concepção de Sorokin e Merton (1937), a impressão de sig-
nificados determinados pelo ritmo da vida social é o que torna o tem-
po qualitativo, sendo denominado pelos autores como “tempo social”.
Nesse sentido, o modo como as pessoas organizam, negociam e distri-
buem seu tempo e o tempo das pessoas ao seu redor afeta o bem-estar
econômico e social e acarreta impactos sobre a família e a comunidade
onde vivem (CAVALCANTI et al., 2010), pois, o tempo meramente quan-
titativo, se considerado sem as marcas da vida em sociedade, não tem
qualquer significado, ou seja, não passa de um elemento vazio.

112
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Ao perguntarmos quanto tempo as mulheres gastam no trajeto


até o ponto de atendimento do Cadastro Único as respostas evidencia-
ram um tempo médio de deslocamento de 1 hora e 18 minutos, com va-
lor máximo de 5 horas, apenas para ida. O tempo de deslocamento tam-
bém variou entre os estados, sobressaindo o estado da Bahia (Tabela 2)
com as maiores distâncias entre as casas e as sedes do Cadastro Único.

Tabela 2 – Média de tempo gasto durante o período de atualização cadastral


obrigatória e de atualização cadastral fora do período obrigatório por estado

Variável Bahia Ceará Pernambuco

Tempo médio de deslocamento (min) 177,78 (±20,32) 72,82 (±11,47) 48,72 (±4,69)

Tempo de espera na chegada (min) a 113,05 (±71,48) 205,75 (±67,03) 117,77 (±16,24)

Tempo de espera na chegada (min) b 71,25 (±16,47) 50,00 (±10,00) 74,82(±14,57)

Tempo de espera na abertura (min)a 113,72 (±14,12) 119,54 (±14,89) 99,34 (±12,29)

Tempo de atendimento (min) a 27,11 (±3,77) 34,22 (±5,39) 29,28 (±2,28)

Tempo de atendimento (min) b 13,87 (±2,57) 28,33 (±7,03) 18,29 (±2,23)

Tempo total (min) a 375,72 (±38,44) 352,43 (±76,13) 230,18 (±21,38)

Tempo total (min) b 323,87 (± 42,15) 230,00 (±39,88) 174,96 (±22,21)

Custo médio com deslocamento (R$) 39,61 (±7,98) 17,32 (±1,82) 18,28 (±1,95)

Fonte: Elaborado pelas autoras.


a – Tempo gasto durante período de atualização cadastral obrigatória;
b – Tempo gasto para atualizar cadastro fora do período obrigatório.

O tempo de deslocamento diferiu também entre os três perfis


de comunidades (Tabela 3), sendo as comunidades de fundo de pasto
com maior tempo de deslocamento do que as comunidades quilombolas
e de agricultura familiar. Dado o histórico de ocupação territorial das co-
munidades de fundo de pasto, estas possuem territórios amplos e na
maioria das vezes distantes das sedes dos municípios, refletindo des-
se modo na baixa mobilidade das mulheres baianas das comunidades
de fundo de pasto, que prevê a combinação de vários tipos de transporte
para acessar os serviços oferecidos nas áreas urbanas dos municípios.

113
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tabela 3 – Média de custo e tempo por perfil das comunidades tradicionais


estudadas

Fundo e
N Agricultura
Variável Fecho de Quilombola
amostral Familiar
Pasto

42,50 143,57 63,22


Tempo médio de deslocamento (min) 79
(±6,26) (±21,43) (±6,88)

100,41 102,50 181,81


Tempo de espera na chegada (min) a 74
(±13,67) (±14,51) (±39,41)

79,72 51,66 78,06


Tempo de espera na chegada (min) b 48
(±17,86) (±12,03) (±19,50)

84,54 102,56 122,63


Tempo de espera na abertura (min)a 74
(±12,19) (±13,58) (±12,63)

34,75 27,00 28,57


Tempo de atendimento (min) a 73
(±5,31) (±4,34) (±2,04)

20,39 14,75 16,78


Tempo de atendimento (min) b 44
(±3,81) (±3,30) (±2,37)

220,17 416,64 303,07


Tempo total (min) a 80
(±23,84) (±42,75) (±44,62)

181,26 366,42 196,11


Tempo total (min) b 58
(±27,67) (±49,20) (±24,29)

16,83 47,36 18,04


Custo médio com deslocamento (R$) 80
(±2,54) (±9,28) (±1,51)

30,58 60,42 28,59


Custo total (R$)a 80
(±4,46) (±10,90) (±2,39)

25,31 62,15 22,44


Custo total (R$)b 57
(±5,85) (±11,56) (±2,94)

Fonte: Elaborado pelas autoras.


a – Tempo e custos durante período de atualização cadastral obrigatória.
b – Tempo e custos para atualizar cadastro fora do período obrigatório.

O referencial teórico construído em torno da mobilidade – ou das


mobilidades – nos traz insights para pensar o esforço das mulhe-
res no trajeto em direção ao Cadastro Único. As mobilidades, dentro
das suas diversas formas de efetivação, além de sugerir deslocamentos

114
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

físicos ou simbólicos não ocorrem deslocadas da dimensão temporal.


No caso da presente pesquisa, que sistematiza os tempos e as condi-
ções de deslocamento frente ao acesso às políticas públicas por popu-
lações tradicionais e rurais, pensar em mobilidades espaciais ou geográ-
ficas e suas temporalidades se faz urgente para refletir sobre realidades
constantemente “esquecidas”.
As variações de mobilidade, bem como a noção de tempo, uma vez
interligados, cruzam-se com outros elementos que condicionam as espe-
cificidades e características de determinado tipo de mobilidade (e suas
limitações) e de determinada noção de tempo. As distâncias, as condi-
ções de transporte, as situações das estradas, a segurança, os recursos
financeiros, os tipos de trabalho, idade, número e idade dos filhos, redes
de apoio e divisão do trabalho doméstico são os elementos destacados
nesta pesquisa que orientam e caracterizam a mobilidade e o tempo
vivenciado por pessoas de comunidades tradicionais e rurais, especifi-
camente, das mulheres participantes de políticas sociais: populações
em situações de vulnerabilidade socioeconômica à mercê da violência
de Estado, limitando permanentemente acessos e movimentos.
Outro fator que influencia e reduz a mobilidade das mulheres
rurais é o alto custo para acessar a área urbana onde se concentra
a maioria dos serviços que garantem a qualidade de vida e podem pro-
porcionar a redução da desigualdade, como escola, serviços de saúde,
de segurança pública, de assistência social e o ponto de atendimento
do Cadastro Único. O custo médio de deslocamento foi de R$ 22,81,
variando significativamente entre os estados; e o maior valor relatado
foi R$ 100,00. E, novamente, a Bahia se destaca apresentando os maio-
res valores, uma vez que as distâncias e o tempo de deslocamento tam-
bém são superiores em comparação aos demais estados (Tabela 2).
O custo de deslocamento também variou entre os três perfis de comu-
nidades tradicionais e rurais estudados (Tabela 3), sendo que as comu-
nidades de fundo de pasto possuem um custo duas vezes maior que as
comunidades quilombolas e de agricultura familiar, uma consequência
nítida do isolamento socioespacial e das dificuldades de deslocamento
que as comunidades de fundo de pasto possuem.

115
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Os dados apresentados se referem especificamente às pergun-


tas sobre condições de deslocamento, tempo e custo para as mulheres
acessarem o local de atendimento do Cadastro Único, no entanto, es-
tes dados revelam o isolamento socioespacial das comunidades tradi-
cionais e da agricultura familiar da região Nordeste, as desigualdades
sociais e econômicas consequentes de tal isolamento e a segregação
racial que reforça estereótipos e condições de subalternidade.
Para se manter em conformidade com as regras do Cadastro
Único e, assim, acessar as políticas públicas e os programas sociais
dos governos municipais, estaduais e federal as mulheres precisam
ir até o ponto de atendimento de dois em dois anos em período pré-de-
terminado para atualizar os seus dados e de outros membros da família
e, na medida que haja qualquer modificação na situação ou configura-
ção familiar, a mulher, responsável familiar, deve atualizar os seus dados
e os dos demais membros da família a qualquer época, sem um perío-
do específico. Deste modo, ao questionar as mulheres sobre o tempo
de atendimento, o de espera e sobre os valores gastos nestes proces-
sos, diferenciamos os tipos de atualização como: atualização cadastral
obrigatória (de dois em dois anos e em período pré-determinado pelo
Programa Social) e atualização cadastral fora do período obrigatório
(em caso de alteração na situação ou configuração familiar).
Com relação ao tempo de espera, identificamos quatro padrões
que interferem no dado: i) mulheres que chegam ao ponto de atendi-
mento horas antes de abrir; ii) mulheres que chegam ao ponto de aten-
dimento no horário da abertura ou muito tempo após o início dos atendi-
mentos; iii) pontos de atendimento que abrem distribuindo senha às 7h
e iniciam o atendimento horas depois, entre 9h e 10h; e iv) mulheres
que não conseguem ser atendidas no dia que chegam para o atendi-
mento e precisam dormir na sede do município para serem atendidas
no dia seguinte, ou retornam para suas casas para então enfrentar no-
vamente o deslocamento rural-urbano no dia seguinte. Diante desses
fatores foram calculados dois valores relacionados ao tempo de espera.
O primeiro foi calculado a partir do horário que a mulher chega ao ponto
de atendimento (tempo de espera na chegada) e o segundo o tempo

116
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de espera a partir do horário que o ponto de atendimento abre (tempo


de espera na abertura).
Os dados referentes ao tempo de espera para atendimento da atu-
alização cadastral obrigatória no local onde funcionam os serviços
do Cadastro Único mostram valores muito discrepantes entre si. O tem-
po de espera na chegada variou de zero minuto (tempo mínimo) a 1440
minutos (24h), sendo no último caso relacionado às mulheres que se
deslocam até o ponto de atendimento e não conseguem ser atendidas
no mesmo dia necessitando retornar no dia seguinte, assim, o tempo
médio foi de 2h33 min. Já o tempo de espera na abertura teve mínimo
de zero minuto e máximo de 300 min (5h) com tempo médio de 150 min
(2h 30min), ou seja, igual ao tempo de espera na chegada.
O tempo de espera para atendimento a partir da hora que a mulher
chega variou entre os estados, sendo os estados da Bahia e Pernambuco
similares, porém diferentes do Ceará, cuja média do tempo de espe-
ra na chegada foi maior, somando 205,75 min (3h 43min) (Tabela 2).
Importante frisar que essa diferença nos resultados ocorreu sobretudo
para o estado do Ceará, uma vez que na Bahia e Pernambuco (principal-
mente Bahia) as mulheres não chegam cedo ao local de atendimento.
Na Bahia, devido à distância e dificuldades com transporte, as mulheres
chegam quando o local já se encontra aberto e, frequentemente, tarde
para o atendimento, tendo que recorrentemente dormir na sede do mu-
nicípio para serem atendidas no dia seguinte.
Nas situações em que as mulheres realizam a atualização cadas-
tral fora do período obrigatório, o tempo de espera é menor, com média
de 1h 20 min e valores variando de zero minuto a 6 horas. Não obstante,
o estado do Ceará apresente o menor tempo médio de espera (50 min)
durante a atualização cadastral fora do período obrigatório, essas mé-
dias não divergiram entre os demais estados (Tabela 2).
No período de atualização cadastral obrigatória, o tempo de es-
pera a partir do horário que o ponto de atendimento abre (tempo de es-
pera na abertura) chega a 113,72 min (1h 54min) na Bahia, 119,54 min

117
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(2h) no Ceará e 99,34 min (1h 39min) em Pernambuco, de acordo com a


Tabela 2.
Em relação ao tempo de atendimento para a atualização cadastral
no período obrigatório, a média foi de 30 minutos, com tempo de espera
variando de 2 minutos a 2 horas, não divergindo significativamente entre
os estados. No entanto, o Ceará apresentou maior quantidade de tempo
de atendimento (34,22 min) que os outros estados (Tabela 2). O tem-
po médio de atendimento para a atualização cadastral fora do período
obrigatório foi de 18 minutos, diferenciando-se entre os estados e de-
monstrando padrão divergente do observado no atendimento durante
o período obrigatório. Assim, as médias analisadas para cada estado
foram: 13,87 minutos para a Bahia, 28,33 minutos para o Ceará e 18,29
para Pernambuco (Tabela 2). O estado do Ceará apresentou o maior nú-
mero em tempo de atendimento, seguido pelo estado do Pernambuco.
A Bahia foi o estado que apresentou o menor número em minutos
de tempo de atendimento na modalidade.
O tempo total gasto para acesso ao atendimento da atualização
cadastral obrigatória no Cadastro Único foi calculado através da soma
dos tempos de ida e volta de deslocamento, tempo de espera e tem-
po de atendimento. O tempo médio total durante o período obrigatório
de atualização cadastral foi de aproximadamente 5 horas. O tempo total
mínimo foi de 56 min e máximo de 32 horas e 35 minutos, o que corres-
ponde a 1 dia, 8 horas e 35 minutos. Os estados diferem quanto ao tem-
po total demandado para as mulheres para acessarem o Cadastro Único,
sendo que o estado da Bahia apresentou maior tempo total, de 375,72
minutos (6h 16min) seguido do Ceará e Pernambuco (Tabela 2). As aná-
lises também apontam diferenças significativas entre os perfis das co-
munidades tradicionais e rurais estudadas (Tabela 3), com as comuni-
dades de fundo de pasto apresentando demanda maior de tempo total
416,64 min (6h 57min) em comparação com as comunidades quilombo-
las 303,07 min (5h 3min) e de agricultura familiar 220,17 min (3h 40min)
devido o maior tempo de deslocamento e distâncias percorridas.
O tempo médio total usado para acessar o serviço de atendimento
do Cadastro Único fora do período obrigatório de atualização cadastral

118
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

foi de 3 h 46 min, com espera mínima de zero minuto e máxima de 11


horas. Como esperado, a diferença entre os estados e as comunidades
no uso do tempo das mulheres para acessar o serviço de atendimen-
to do Cadastro Único se sobressai no estado da Bahia, apresentando
em média 323,87 min (5h 24min) de gasto de tempo entre as comunida-
des de fundo de pasto, que demandaram 366,42 min (6h 6min) (Tabelas
2 e 3).

Considerações finais

Quanto vale o tempo das mulheres rurais nordestinas para o aces-


so às políticas sociais do Cadastro Único? O título deste capítulo é uma
pergunta que importa para a problematização dessas realidades, evi-
denciando-se o dispêndio monetário e de tempo na vida das mulheres
e, sobretudo, reconhecendo as desigualdades de gênero vivenciadas
na sobrecarga do trabalho que envolve o deslocamento até o ponto
de atendimento, e o período anterior e posterior a esse deslocamento.
Essa sobrecarga vai além do próprio deslocamento, compreendendo
mobilidades específicas que extrapolam o tempo e o custo quantitati-
vo, no reconhecimento de fatos invisibilizados dos contextos de vida
das mulheres negras e rurais que transcendem o tempo do “relógio”
(SOROKIN; MERTON, 1937; MORAES et al., 2020). A sobrecarga do tra-
balho doméstico e de cuidado que envolve a organização das mulheres
para poder sair de casa e chegar ao ponto de atendimento também deve
ser contada, assim como a organização dos documentos necessários
para o cadastramento e/ou atualização. E ainda, o estresse do percurso,
das filas e do atendimento.
O custo, geralmente associado ao gasto monetário que seria utili-
zado para a sustentação da unidade familiar, também pode ser analisado
sob um deslocamento perspectivo para a problematização de uma visão
teórica e empírica utilitarista, mercadológica e economicista dominante.
Viviana Zelizer (1989) aponta para uma pluralidade de tipos de dinheiro
que ela chama de special monies orientados por influências extraeconô-
micas e simbólicas, diferentes redes de relações sociais e significados

119
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que extrapolam o seu pertencimento exclusivamente ao mercado, tendo


como exemplo o dinheiro doméstico. Moldado por influências culturais,
históricas relações de poder e marcadores de idade, gênero e classe,
o dinheiro recebido pela mulher se restringe às despesas domésticas
e à família, excluindo-as de gastos pessoais frequentemente carrega-
dos de culpabilidade.
Nesse sentido, o tempo perdido pelas mulheres no deslocamento
até o ponto de atendimento do Cadastro Único está associado a custos
que também não podem ser analisados de forma fragmentada. A trans-
ferência de renda possibilitada por programas como o Bolsa Família
(atual Auxílio Brasil) articulada pelo Cadastro Único é atravessada pelo
custo de uma rotina de vida dedicada à família, que envolve trabalho,
tempo e dinheiro. Quanto mais isolada a comunidade, mais reduzida é a
mobilidade desta população, uma vez que dispõem de estradas em pés-
sima qualidade, poucas opções e baixas qualidades dos transportes.
O tempo das mulheres rurais nordestinas, pobres, pretas, pardas, agri-
cultoras e de comunidades tradicionais, vale o preço que lhes é pago
com o acesso às políticas sociais do Cadastro Único? O que perdem
as mulheres no esforço deste acesso? Quais os tipos de trabalho que es-
tão sendo disponibilizados e transferidos?
As políticas sociais ainda precisam considerar a sobrecarga de tra-
balho das mulheres na gestão dos programas, somando-se às desigual-
dades de gênero, raça, etnia e classe vivenciadas na organização da uni-
dade familiar sob a condição de um custo monetário e de tempo. Além
disso, a depender da idade das crianças e da rede de apoio disponível
(formal e informal, no caso de escolas, creches e casa de familiares,
amigas etc), a mulher precisa levar consigo a(s) criança(s) ou outro(s)
dependente(s) quando não é possível deixá-lo(s) com algum familiar
ou pagar alguém por este trabalho de cuidado.
A partir de lentes críticas e feministas, é inegável constatar que os
programas sociais e políticas públicas ainda precisam avançar no que
tange a execução de iniciativas democráticas, justas e inclusivas. Neste
sentido, as mulheres precisam ser escutadas. Não estão previstas
ações de escuta ou participação ativa das beneficiárias dos programas

120
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

nos processos de implementação e ajuste do seu funcionamento para


populações específicas. Essa ausência efetiva de participação ativa e a
falta de um processo de escuta dessas pessoas pode causar um senti-
do de distanciamento efetivo entre o Estado, como gerador e ordenador
das políticas públicas, bem como de seus responsáveis diretos na hie-
rarquia de implementação local das políticas (agentes públicos locais
que organizam e efetivam o cadastramento e gerenciam seu funciona-
mento) e as pessoas cadastradas que acessam esses programas.

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125
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Caminhando com crianças.


Mobilidades e itinerários a partir
de redes de cuidado em favelas

Camila Fernandes1

“Olha! Ela virou criança!”


Nataly, 9 anos.

São quase quatro horas da tarde e está na hora do lanche. As crian-


ças descem e ocupam seus lugares em três grandes mesas do salão
principal da instituição2. Elas falam e conversam, a zoeira corre solta.
Três professoras ao lado das mesas assistem a tudo de pé, rígidas e com
olhos bem abertos. Algumas crianças ensaiam um silêncio, outras con-
tinuam a falar. As professoras avisam que enquanto houver barulho
1 Camila Fernandes realiza pós-doutorado no Programa de Antropologia Social do Museu
Nacional (PPGAS/MN/UFRJ). Doutora em Antropologia Social no PPGAS/MN/UFRJ.
Mestra em Antropologia pelo PPGA/UFF). Pesquisadora associada ao NuSEX – Núcleo
de estudos em Corpos, Gênero e Sexualidades e ao LACED–Laboratório de Pesquisas em
Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (PPGAS/MN). E-mail de contato: fernandesv.cami-
la@gmail.com
2 Agradeço a Lorena Moraes e a Larissa Cavalcanti pelo convite para publicação deste artigo
na presente coletânea e os comentários preciosos feitos no processo de revisão. O artigo
é fruto da dissertação intitulada: “Ficar com: parentesco, criança e gênero no cotidiano”,
defendida no ano de 2017 no âmbito do Programa de Pós Graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense. O trabalho foi orientado pelo Prof. Jair de Souza Ramos.
Agradeço a orientação generosa de Jair e os comentários recebidos na ocasião da defesa
pelas Professoras Adriana Vianna e Simoni Lahud Guedes (in memoriam).

127
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

o lanche não será servido. O zumbido continua. Um menino sentado


próximo à janela faz careta para outro do lado oposto da mesa. Uma me-
nina observa ambos e não consegue controlar o riso; sua gargalhada
explode e como consequência recebe uma bronca. Jenifer pede para
ir ao banheiro, mas a professora não deixa; ela insiste dizendo que está
apertada e que sua bexiga vai estourar, mesmo assim não é autorizada
a ir. As professoras olham com reprovação para as crianças e quando
parece que o silêncio finalmente vai prevalecer, alguém faz uma nova
brincadeira e as risadas irrompem outra vez. Uma professora, já esgo-
tada, reitera que enquanto as vozes não cessarem ninguém lanchará.
O limite das brincadeiras fora alcançado. Gradativamente, as crianças
param de falar. O silêncio, enfim, predomina; em seguida, o som ambien-
te se altera quando as vozes dos professores iniciam o coro; “Pai nosso
que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso
reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu...”
A oração ganha outras vozes, algumas crianças voltam a rir bai-
xinho; outras, enquanto rezam, fazem caretas e pronunciam o “Pai
Nosso” mecanicamente ou de maneira jocosa. Jenifer está emburrada
e não fala nada, assim como os demais que também não se mobilizam.
Karolyne, distraída, balbucia a oração com a cabeça repousada sobre
os braços cruzados, enquanto olha para a mesa. Com o “amém” conclu-
ído, os três professores trazem as bandejas, servidas de café com leite
e pão com queijo. O falatório preenche novamente o lugar. Jenifer re-
cusa o lanche e pergunta se finalmente pode ir ao banheiro: sim, agora
ela pode.
Este artigo é fruto de uma pesquisa sobre redes de cuidado
de crianças nas classes populares. A etnografia foi realizada no Morro
do Palácio, uma favela situada na zona sul da cidade de Niterói no Rio
de Janeiro3. A instituição na qual ocorre a situação descrita é parte des-
sa rede ampla de atenções que envolve o engajamento de amigos, vizi-
nhos, parentes e instituições, incluindo as próprias crianças. Ao mapear
as ajudas transacionadas nesses circuitos, busquei acompanhar quem
3 O trabalho de campo teve duração de 11 meses, realizado ao longo do ano de 2010. A et-
nografia foi construída com base nas rotinas dos interlocutores, nos circuitos de cuidado e
nos trajetos percorridos pelas crianças.

128
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cuida de quem, tentando concentrar minha atenção nos embates mo-


rais relativos aos cuidados, na gestão do tempo envolvido, nas dinâmi-
cas de gênero e nas formas de pagamento envolvidas nessas relações.
Ao seguir esse fluxo de informações, fui apresentada a diferentes
contextos relacionais dos quais as crianças participavam. Durante esse
percurso, entendi que para compreender como os cuidados com elas
eram realizados eu precisaria “estar com” as crianças (WEBER, 2009)4.
Essa etnografia, portanto, busca investigar como se dão determinados
trajetos percorridos por elas e de que modo as vivências experiencia-
das nesses espaços permitem pensar acerca das noções de criança
elaboradas pelos interlocutores. Nessa experiência, tentei entendê-las
enquanto sujeitos ativos e produtores da sua própria realidade, tal qual
inspirado pelo trabalho de Clarice Cohn (2005). Com essas perspectivas,
procuro refletir sobre que tipo de agência é produzida pelas crianças
e quais os sentidos envolvidos nas categorias de “liberdade”, mobilida-
de e autonomia, termos importantes que surgem no decorrer da análise.
Para uma visão geral sobre as condições sociais das crianças
descritas, cabe enfatizar que são filhas de trabalhadores e moradores
de território de favela. Em relação à identificação racial, são majoritaria-
mente negras entre a presença de crianças brancas e racializadas como
“pardas” ou “morenas”. Meninas e meninos estão presentes nas ativida-
des realizadas, seja em casa ou na rua, ainda que determinadas ações
possuam diferenças relativas a expectativas sociais de gênero.
Os itinerários descritos nessa pesquisa se dão em diferentes es-
paços de presença das crianças e incluem: uma instituição não gover-
namental, uma creche comunitária, a rua, as festas à noite, a favela e as
casas. A partir desses lugares, procuro dar atenção aos feitos das crian-
ças e à forma como esses agires são percebidos pelos adultos, buscan-
do problematizar a ideia de “liberdade” evocada por profissionais e fa-
miliares. Ao final, proponho uma reflexão sobre as mobilidades tecidas

4 Weber (2009) realiza sua pesquisa em Montbard, uma pequena cidade operária localizada
na França. “Estar com” diz respeito à realização de um trabalho engajado no qual o pesqui-
sador participa ativamente do processo de elaboração das categorias mobilizadas pelas
pessoas no seu mundo social.

129
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

pelas crianças, entendendo-as como sujeitos que não apenas recebem


cuidados, mas também são expressivos provedores de atenções.

Com quem e em quais lugares ficam as crianças?

A passagem descrita na introdução deste artigo foi vivida em uma


das instituições nas quais as crianças permanecem5. Trata-se de uma
instituição não governamental financiada por uma grande igreja católica
da cidade, cujo propósito é a realização de diversas atividades socioe-
ducativas, aulas de música, inglês, capoeira, taekwondo, artes e religião.
Para conseguir uma vaga, em um processo muito disputado, é preciso
que “a mãe trabalhe”. Esse critério foi enfatizado tanto pelos familiares,
quanto pelas profissionais da instituição.
As famílias contam com o lugar para deixar seus filhos enquanto
trabalham: “Aprendem muitas coisas boas, apesar da disciplina forte”,
diz a mãe de Jenifer. Flávia, mãe de Vitor, se queixa do método “rígido”
oferecido: “lá é lugar de aprender disciplina, por isso às vezes as crian-
ças reclamam. Você tem que ver; eles pegam pesado com as crianças”.
Bianca, mãe de Jéssica, diz que a filha odeia ficar na instituição: “ela
não gosta de ficar lá, vive me pedindo pra sair”. Porém, a retirada dos fi-
lhos da entidade está fora de cogitação, pois isso implicaria outros ar-
ranjos de cuidados para essas famílias. Ao mesmo tempo, as famílias
se sentem especialmente privilegiadas por terem conseguido uma vaga
no lugar, dada a ausência de opções públicas para guarda das crianças.
Muitos filhos dos interlocutores adultos afirmam não gostar
de ficar na instituição. As crianças reclamam que não são ouvidas e que
se sentem “em um quartel”, como observa Karoline, de dez anos. Muitas
se queixam da “chatice” de algumas atividades, tais quais: pintar peças
de biscuit e reciclagem, que na opinião delas são “bobas e sem graça”,
segundo Nataly e Vitor. As crianças também reclamam da forma como
são tratadas, a exemplo de Jéssica, que fala com insatisfação sobre
a obrigatoriedade do café com leite: “eu gosto de café puro, mas a gente
não pode tomar; é só para eles, só para os adultos”. As queixas tam-
5 Com relação a faixa etária, as crianças possuem idade entre sete e dezesseis anos.

130
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

bém classificam os professores como “bravos” e “injustos”, conforme


protesta Vladimir. Os professores injustos são aqueles que “pegam im-
plicância”, nas palavras das crianças: “às vezes você não está fazendo
nada, mas ele já te olha com aquela cara, como se estivesse esperando,
sabe?” emenda o garoto. Outras crianças não problematizam o cotidia-
no na instituição; estas em geral acham “legal” e não sentem maiores
desconfortos.
Em conversa com as famílias e com as crianças acerca dos luga-
res de cuidado nos quais participavam, estas se referiram à ONG. O tem-
po que passavam na instituição fazia parte da rotina de muitas crianças
e familiares, portanto, era significativo acompanhar um pouco do coti-
diano estabelecido ali. Ao conversar com a diretora, ela afirmou que o
lugar tinha “tudo a ver” com minha pesquisa, uma vez que as crianças ti-
nham muita “liberdade” e eram muito “maduras”. Em suas palavras, elas
“fazem tudo sozinhas”, como andar pela rua, cuidar de irmãos e fazer
compras. A profissional também acrescentou que as crianças estavam
habituadas com “situações de conflito”, como “separações conjugais,
perda dos vínculos familiares e proximidade com a violência”. Citando
um “caso comum”, a diretora explica:

A filha dele estava apresentando muitos problemas aqui; o pai


dela era gerente do morro antes de morrer e a postura dela
dentro da sala de atividades era quase de liderança também;
ela centralizava as discussões, decidia quem ia e quem não
ia fazer as coisas, tinha jeito pra se impor e estava bem com-
plicado. Tive que conversar com fulano (pai da garota), e deu
tudo certo: ele conversou com ela e resolveu as coisas. Não
achou ruim. Também, olha só! A filha ficava na boca de fumo
com ele; teve até um dia que ela mostrou a foto no celular para
as outras crianças, uma pessoa que o pai matou e ela tirou as
fotos, o corpo estirado no chão coberto de sangue, aí você vê,
né… Mas depois que o pai morreu eles se mudaram e foram pra
outro lugar. Ela tinha nove anos nesta época. Então as crianças
daqui, de certa forma, estão acostumadas com esta realidade.
(Paloma, 40 anos e diretora da escola)

131
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A profissional fornecia uma situação ilustrativa da “liberdade”


das crianças. Na explicação da diretora, a “liberdade” advinha das fa-
mílias e da “realidade” em que seus filhos vivem. Assim, continuei fre-
quentando as aulas e, com o horário de saída, caminhávamos juntas
até a creche do morro. Portanto, tinha a oportunidade de fazer o mesmo
caminho que as crianças, sendo que estas iam para casa e eu para a cre-
che do morro, aproveitando ainda o momento de saída, muito produtivo
para conversas. Foi assim que passei a acompanhar o que a diretora
chamou de “liberdade” das crianças.
Essa “liberdade” se refere à expressiva mobilidade das crianças,
a como andam na rua sem a companhia de adultos, de que modo resol-
vem problemas sozinhas (brigas e hesitações sobre o que fazer), cuidam
dos irmãos (pegar e levar na creche e ficar com eles em casa), andam
de ônibus e fazem comida. A sensação de “liberdade” experienciada
inicialmente com as crianças exigia um esforço compreensivo acerca
dos cuidados operados entre os interlocutores. E foi nessa perspecti-
va que percebi a importância de acompanhar o itinerário delas, ou seja,
seria preciso “estar com” elas durante seus deslocamentos, procuran-
do atentar para como interagem com o seu entorno, fazem escolhas
e elaboram reflexões sobre sua própria realidade. Ao acompanhar tais
rotinas a partir da trajetória das crianças, busco mostrar como estas
não são apenas receptáculos de cuidados, tentando entender sua parti-
cipação ativa na gestão coletiva da vida.

Em casa: os ganhos da “moral” e a aquisição da “disciplina”

Eu amanhã quero ir à praia, mas se eu quiser vou ter que acordar


às seis, porque tenho escolinha de manhã e depois tenho que
arrumar a casa, então eu vou acordar cedo pra fazer isso e poder
ir pra praia. É muito ruim arrumar casa, eu odeio! Minha irmã
arruma durante a semana e final de semana sou eu. Quer coisa
mais chata que arrumar a casa? Você arruma e logo depois já
está tudo bagunçado!
Karoline, 8 anos.

132
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Jenifer é a mais velha de três irmãs. A menina tem 11 anos e não


vê a hora de sair da ONG, pois, segundo ela explica, “aqui só tem criança”.
A menina cursa o quarto ano de uma escola pública estadual do bairro
e seu lazer principal consiste em postar fotos novas nas redes sociais.
Por esse motivo, ganhar um novo celular de Natal é um dos seus so-
nhos. Jenifer é muito observadora e dona de um silêncio que vale mais
do que qualquer palavra. Durante o desenvolvimento da pesquisa, li um
rascunho do trabalho em sua presença, a fim de compartilhar minhas
anotações, e ela exclamou; “Meu Deus! Como você fez tudo isso de ca-
beça? Tá doido! Olha essas fotos! Que morro feio!”, em comentários
que ressaltam a sua atenção à cada detalhe do material de pesquisa
A rotina diária de Jenifer é extremamente corrida. Logo pela ma-
nhã, acorda por volta das sete horas, prepara o café, se arruma para
a escola e apressa as irmãs para que façam o mesmo. As meninas,
Jaqueline de oito anos e Jassiene de seis anos, vivem grudadas. As três
garotas saem juntas em direção à escola, dirigem-se à ONG à tarde
e no final do dia, por volta das cinco horas, retornam para casa, sem-
pre unidas.
Em casa, a menina “faz tudo”, conforme explica. Seus pais tra-
balham fora e boa parte da carga de serviços domésticos é realizada
por ela. Durante os momentos em que estivemos juntas pude presen-
ciar sua rotina de perto. Jenifer lava louça, faz comida e varre o quintal.
Também são de sua responsabilidade atividades de faxina como: lavar
o banheiro, passar roupas e arrumar a casa. Ela ainda ensina os deveres
da escola às irmãs mais novas e, de vez em quando, repreende a am-
bas quando fazem bagunça; “desce daí, senão você vai cair!” ou “essa
menina é louca, quantas vezes já falei para não mexer no fogão!”, alerta
a garota enquanto passa roupa.
Durante uma conversa entre amigas, ao explicar o motivo de não
poder sair no sábado, Jenifer justifica para sua colega: “É que de ma-
nhã tenho que arrumar a casa”. A amiga compreende e diz que durante
aquela semana ela também se encarregou da casa. No início da rela-
ção com as crianças, questionei-as sobre suas respectivas percepções
acerca das atividades em casa ao que afirmavam gostar de “arrumar

133
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tudo”. Segundo elas, não havia problema em fazer o serviço doméstico.


Lembravam que ao lavar roupas se divertiam com as bolhas de sabão:
“é bom lavar roupas, a gente faz espuma”. Ressaltavam que, quando ar-
rumam a casa, podem “ganhar moral” com os pais e que gostam, sobre-
tudo, de estar em uma casa “limpa”, o que significa viver em uma casa
organizada e arrumada. A aparente leveza inicial atribuída aos afazeres
domésticos sugeria que o contínuo de tarefas realizadas não consti-
tuía um fardo ou empecilho na vida delas e, apesar do que poderíamos
supor, não se incomodavam com suas extensas listas de demandas
domésticas.
Porém, com o decorrer do tempo, a sensação de tranquilidade
atribuída às tarefas domésticas se alterou. Fabíola, mãe de Jenifer, tra-
balha como empregada doméstica. Certo dia, a mulher cozinhava ma-
çãs do amor para a festa junina do morro e, enquanto anunciava seus
planos de venda, Fabíola disse à filha que esta teria que ficar com as
irmãs: “preciso que você fique com as meninas no sábado e domingo;
vou trabalhar, vender as maçãs”. Jenifer logo reagiu com inquietação
e, visivelmente irritada, quis saber quando suas irmãs poderiam “aju-
dar também”. Seu argumento sustentava que elas estavam crescendo
e que também poderiam “se virar sozinhas”. Jenifer seguiu protestando,
disse que não aguentava mais tanto trabalho e que não via a hora de as
irmãs arrumarem a casa também. Durante esse momento, a face ambi-
valente e árdua das obrigações com a casa e com as crianças tornou-se
explícita.
Outras crianças vizinhas de Jenifer também são responsáveis
por tarefas domésticas e falam sobre seus feitos com muitos detalhes.
Jéssica, uma menina de cabelos pintados de louro, tingidos por si pró-
pria, tem oito anos de idade e em sua casa é ela quem faz a comida, var-
re a casa, lava o banheiro e arruma as roupas. Ela ainda busca seu irmão
de quatro anos na creche e sobe de volta para casa no alto do morro.
Conta que cuidar de criança “dá muito trabalho” e explica que seu irmão
Jonatas é “chato e pirracento”. Com grande conhecimento do cotidia-
no ela resume: “você já viu coisa mais chata do que arrumar uma casa
e a criança vir e zoar tudo? Fico revoltada!”. Sua mãe também trabalha

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de empregada doméstica. A menina se orgulha de fazer um ótimo bolo


de banana e mostra com ostentação a queimadura que tem na perna:
“isso aqui eu queimei ano passado, quando estava passando café”.
No contexto das periferias e áreas pobres da cidade, o trabalho
doméstico feito por crianças é parte do conjunto de obrigações familia-
res relativas aos cuidados da casa e dos menores (RIZZINI; FONSECA,
2002).6 As atividades de atenção dispensadas aos irmãos e à casa
são feitas num misto de irritabilidade, diversão, distração e um profundo
senso de responsabilidade.7 Essa ambivalência frente às responsabili-
dades com a casa e às crianças é própria da experiência de trabalhado-
ras adultas com o universo dos cuidados.
Para trabalhar na casa de outras famílias, as mulheres adultas com-
partilham os serviços domésticos com suas filhas. A carga de trabalho
distribuída entre mães e filhas visa atender às necessidades do cotidia-
no de famílias pobres, formadas por trabalhadoras, negras e moradoras
de periferias, nas quais parte expressiva do serviço doméstico é realiza-
do pelos filhos, configurando um quadro de intensa desigualdade social
sustentado por meio de uma “reprodução estratificada” (COLEN, 2007).
Flávia, mãe de três filhos e cozinheira da creche, explica que em
sua casa os filhos aprendem a “disciplina” desde cedo. Entre os familia-
res, a “disciplina” consiste em saber se comportar e respeitar as regras
decididas pelos adultos. A “disciplina” é um valor que deve ser ensinado
às crianças e não se restringe apenas ao cumprimento de horários ou à
realização dos deveres de casa, mas está relacionada ao aprendizado
primeiro das atividades domésticas, do zelo pela casa e das pessoas:

6 Claudia Fonseca (2007) destaca, como tendência nos estudos contemporâneos sobre fa-
mílias, experiências que ressaltam tanto as manifestações de apoio, ajuda e solidariedade,
como os conflitos e tensões derivados do convívio familiar. Em seu estudo sobre as rela-
ções entre empregadas domésticas, Jurema Brites (2007) analisa o sentimento de ambiva-
lência que atravessa as relações entre patrões, empregadas e crianças.
7 A pesquisa de Fonseca e Rizzini examina a presença de meninas no trabalho doméstico
e mostra que uma das contingências para a entrada das meninas no emprego doméstico
se explica pela concepção do trabalho doméstico e o cuidado dos filhos como atividades
naturais e femininas.

135
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Meus filhos já fazem tudo: o maior arruma os quartos e varre,


Yasmim lava a louça quando chega do colégio, eles que arru-
mam as roupas deles, tomam banho sozinhos, se penteiam,
a minha filha lava a própria calcinha no banho, é porque o pai
ensinou, imagina? Vai pra casa de uma amiga e vai jogar a cal-
cinha no chão suja? Com os fundos pra cima? O pai dela fala
e ela lava a própria calcinha. Tem que ver meu menor, de três
anos! Bota o banquinho e lava uma louça; esses dias falei que
ia botar no youtube pra verem a criança lavando louça, lava di-
reitinho. Quem disse que não consegue fazer? Faz, sim.

A experiência lança às crianças a responsabilidade com o domés-


tico, as pessoas e os objetos, noção que deve ser incorporada o quanto
antes. Como Flávia sugere, a ideia de capacidade, geralmente própria
de muitas discussões relativas às crianças, adquire sentidos muito par-
ticulares, expressos em obrigações filiais destas para com as suas res-
pectivas famílias.
Mas o que as crianças ganham com a incorporação dessas res-
ponsabilidades? Por realizar diversas tarefas, Yasmim ganha “moral”
com sua mãe Flávia, um respeito que deve ser mantido no exercício
das tarefas cotidianas. Conforme analisado por Cíntia Sarti (2003)
e Luiz Fernando Dias Duarte (2008), a construção da legitimidade moral
no contexto das periferias não se restringe ao interior da esfera familiar,
mas é produzida a partir das relações de interdependência entre vizi-
nhança, amigos e parentes para além do núcleo doméstico.
Nesse sentido, a moral decorre do respeito adquirido como re-
compensa pela realização das atividades em casa e na atualização
contínua da posição de “bom filho”. Os “bons filhos” são identificados
pelos familiares de acordo com a grade de tarefas e atitudes que são
esperadas das crianças. Ao empreender tarefas domésticas de cuidado
da casa e das crianças é possível “ganhar moral” com a coletividade
das relações. Os ganhos da “moral” consistem na permissão para ficar
na rua à noite brincando com os amigos, em ganhar dinheiro, presentes
almejados (em geral, roupas e celulares), gozar de respeito com os adul-
tos e, de forma geral, ser considerado um “bom filho”, este significando

136
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

uma criança que dificilmente nega ajuda aos pais, que é responsável e,
sobretudo, consciente de suas obrigações com o universo dos cuidados.
Em texto clássico sobre sistemas de trocas, o antropólogo Marshal
Sahlins (1965) desenvolve um quadro analítico em torno de múltiplas re-
ciprocidades. Em seu esquema, a relação entre filhos e pais seria a única
forma livre de retribuição, na qual os constrangimentos derivados da ne-
cessidade de retorno da dádiva seriam obrigatórios somente quando
o filho atinge a vida adulta e os pais se tornam velhos, ou seja, dignos
de cuidados. Utilizo esse deslocamento para enfatizar que, no contexto
descrito, vemos que os filhos precisam retribuir aos pais ainda na infân-
cia e tal retribuição se faz por meio de gestos sistemáticos de cuidados.
Portanto, a “moral” constitui um código da reciprocidade crucial dos fi-
lhos para os pais.
No trabalho de Phillip Ariés (1973), vemos a construção da se-
paração entre o mundo das crianças e o dos adultos, no qual a ideia
de infância foi uma das fortes expressões dessa apartação. Em outro
sentido, Viviana Zelizer (1994) aprofunda reflexões em torno do valor
social delas. No contexto norte-americano, após as décadas de 30 e 40,
observa-se progressivamente a sentimentalização da vida da criança.
Entretanto, essas transformações apresentam inflexões distintas entre
a classe média e a trabalhadora. Na primeira, ela figura como centro
de decisões familiares, alvo dos projetos estabelecidos pelos adultos,
incluindo a exclusividade da formação escolar com o objetivo de pro-
duzir um sujeito em potencial ascensão financeira e profissional. Já na
classe trabalhadora urbana, é um membro ativo da reprodução social,
uma vez que está comprometida com a gestão das atividades domés-
ticas. É nesse contexto que Zelizer (1994) escreve sobre as diferenças
entre a “criança improdutiva” e “a criança útil”.
Todavia, se contextos e tempos distintos apresentam algumas
semelhanças, tais realidades também guardam profundas diferenças.
No Morro do Palácio, o lugar das crianças não é somente preenchido
com o trabalho doméstico, mas conciliam diferentes performatividades;
elas precisam realizar a carga de trabalho mencionada em coexistên-
cia às obrigações escolares acrescidas, ainda, das expectativas de uma

137
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

futura inserção no mercado de trabalho. Quero dizer que há um projeto


de vida para os filhos (VELHO, 2003) que envolve a produção de uma
pessoa trabalhadora e responsável pelas demandas domésticas, com-
prometida com a formação acadêmica escolar, futuramente universitá-
ria e/ou habilitada para inserção no mercado de trabalho atentando para
a autonomia individual e familiar.

Na rua e nos bailes: caminhadas de crianças

Moacyr é pai de duas meninas que vão sozinhas à escola. O trajeto


inclui a travessia de quatro quarteirões ligando a instituição e o morro.
Moacyr sente-se desconfortável com essa situação e por diversas vezes
criticou quem considera ser desleixo o fato de as crianças andarem so-
zinhas na rua; “devem achar que nossos filhos são largados, mas para
pra pensar: se a gente for levar eles todos os dias em tudo que é lugar,
não tem trabalho, entende? O bagulho fica doido!”. Ao permitir que as
crianças andem pelas ruas, as famílias ganham tempo e mobilidade
em atividades profissionais; no entanto, esse investimento implica sus-
tentar a angústia e a carga de tensão decorrentes das caminhadas fei-
tas pelos filhos.
Os itinerários são extremamente temidos pelas famílias: “não
gosto que minhas meninas andem na rua”, diz Fabiana, mãe destas.
“Não gosto que fiquem largados”, reforça Bianca, mãe de duas crianças.
Ambas enfatizam que se os filhos não estabelecem essas estratégias,
o comparecimento à escola e a necessidade de trabalho das famílias
são comprometidos. Trata-se, portanto, de um cálculo rigoroso feito
a partir da aposta entre confiança e medo, bem próprio daqueles que es-
tão engajados em circuitos de cuidados.
No trabalho do historiador Michel de Certeau (1994), as caminha-
das são formas de “praticar o espaço” ao mesmo tempo em que se trata
de um conjunto de relações estabelecidos com determinado território.
Caminhar envolve a “produção de uma geografia de ações” (DE CERTEAU
1944, p. 177), uma vez que durante o ato as pessoas estabelecem ex-
periências feitas de escolhas, hesitações e emoções. É nesse sentido

138
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que proponho incorporar o olhar para as caminhadas das crianças, visto


que durante esse processo elas criam formas particulares de apropria-
ção do espaço urbano ao reinventar determinados limites do que geral-
mente é considerado adequado a essa faixa etária.
Diz-se que as crianças andam sozinhas, mas na prática estão
sempre acompanhadas de outras. Na maioria das vezes, o caminhar
se faz junto, ou seja, entre crianças. Andar na companhia de outros
faz muita diferença, uma vez que juntas amenizam o peso de estar so-
zinho e fortalecem o sentimento de segurança entre si. Sua idade varia
de seis anos para cima, não por acaso, uma vez que nessa faixa etária
as famílias não contam mais com a creche pública em tempo integral.
Esse corte marca uma mudança significativa que implica registrar a in-
fluência da presença ou ausência dos equipamentos públicos no supor-
te de cuidado às famílias periféricas. Lembremos que a creche públi-
ca integral é um importante dispositivo de mobilidade entre as classes
populares, em especial, com maior impacto para as mulheres (SORJ;
FONTES; MACHADO, 2004).
Durante as caminhadas, as crianças maiores são responsáveis
pelo grupo. Quando caminham, elas relembram feitos e situações vivi-
das nos recantos do bairro. Ao atravessar a rua, procuram dar atenção
aos carros, embora, como elas próprias dizem: “sempre tem um engra-
çadinho” que sai correndo na frente desafiando o trânsito. Em geral,
são os meninos que agem assim e, quando o fazem, são repreendidos
pelos demais com histórias de amigos que foram atropelados, ou quase.
As repreensões das crianças incluem diversos xingamentos, e os mais
utilizados são: “cabeção”, “debiloide”, “gay”, “transtornado”, “comédia”,
“recalcado”, “crackudo” e “zica”.8 Os xingamentos são proferidos em tom
jocoso e na maioria das vezes a “zoação” entre crianças não intenta hu-
milhar, embora às vezes o sentimento de ofensa aconteça.
Enquanto andam juntas, “em bonde”, as crianças cantam muitas
músicas; o repertório é repleto basicamente de funk, munido de uma
sequência generosa de “proibidões” ou músicas “românticas”, segundo
definido pelas meninas. A cantoria é especialmente sonora e atrai olha-
8 “Zica” significa uma pessoa invejosa, ruim, que tem “olho grande” e atrai azar.

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

res de todos os tipos; por diversas vezes, foi possível perceber reações
de estranhamento e receio de pessoas passando, que ora se afastavam,
ora atravessavam a rua rapidamente como se estivessem com medo.
A imagem de crianças, em sua maioria negras, cantando alto na rua
e vestidas com uniforme de escola pública mobiliza os racismos ordiná-
rios presentes nas formas de enquadramento social (GOFFMAN, 2012)
e indica como a mobilidade de crianças periféricas e negras é vista en-
quanto uma ameaça à segurança dos outros.
Além das diversões em grupo, as crianças aprendem que a
rua guarda seus perigos. Dos meninos, não escutei nenhum relato de ris-
co, porém em relação às garotas é comum ouvir histórias sobre “tara-
dos”: “Tem um homem lá no Pão de Açúcar (supermercado) que fica
mexendo com a gente; ontem a gente foi lá comprar comida e ele fica
por trás das prateleiras e aparece e faz assim (passa a língua na boca),
e fica olhando assim (olha com cobiça), sabe?”, explica Jaqueline,
de nove anos ao narrar uma situação de assédio sexual público.
Na rua, algumas meninas recebem muitas interpelações mascu-
linas e contam situações comuns nas quais homens passam falando
“sacanagens”, como na seguinte ocasião narrada: “ontem um japonês
passou do outro lado da rua e ficou tirando fotos nossas, a gente gri-
tou, gritou e o tio Anderson veio lá de cima e correu atrás do cara, e fez
ele apagar as nossas fotos”, conta Renata, de sete anos. Os relatos
são sobre homens que param de carro e assediam as meninas, seja
com “elogios” ou “cantadas”: “é que aqui tem muita criança, aí os ho-
mens fazem isso”, explica Jéssica, 12 anos. Nessas situações, algumas
fingem não escutar, outras ignoram, mas a maioria costuma reagir e res-
pondem em voz alta, gritam e saem correndo pela rua. As meninas ex-
plicam a importância de “não se deixar intimidar” e enfatizam que “ficar
quieta é pior”. Esse fato atesta a densa assimetria de gênero presente
em nossa cultura, na qual desde muito cedo, meninas e adolescentes
periféricas e racializadas devem aprender a manejar, responder e reagir
a situações de violência de gênero perpetradas no espaço público.
Nas festas do morro, em noites de baile funk ou de forró, a pre-
sença de crianças é constante. Noite e crianças não se apresentam

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

como propriedades antagônicas. Além de pular na cama elástica, sem-


pre incluída nas festas, as crianças maiores preferem dançar e “zoar”
o baile: “adoro quando tem baile funk, a gente fica acordada até tardão”
diz Jackeline, toda feliz em transpor o horário de dormir. Durante o dia
inteiro, as meninas vivem a expectativa da festa e gostam muito de se
arrumar vestindo a melhor roupa, que, por sua vez, deve ser decotada
e justa, porque assim “todo mundo olha e sabe que a gente está chegan-
do, o baile para!”, conta Flávia, de 13 anos.
No decorrer do baile funk, o ponto alto da festa é dançar no meio
das rodinhas de gente, nas quais meninas e meninos esbanjam malemo-
lência. Durante esses eventos é comum que homens armados passem
entre os participantes. As crianças e principalmente os meninos sabem
diferenciar um calibre 38 de um 44. Elas também emitem opiniões sobre
drogas e conhecem as mercadorias vendidas na “boca de fumo” do mor-
ro, discutindo sobre o uso das substâncias e as implicações do comér-
cio local nas suas famílias, “meu pai às vezes fica doidão de pó! E vai
trabalhar e tudo!”, diz Igor de dez anos. “Minha mãe reclama que meu
pai fuma mais de dois maços numa noite. Ela fala pra ele pra fumar um,
que é melhor, faz menos mal.”, diz Franciely, rindo com alusão ao cigarro
de maconha feito por sua mãe.
As crianças também conversam muito sobre “pegação, ficar e na-
moro”, categorias relacionadas aos agenciamentos dos vínculos afeti-
vos e sexuais. Assim, contam histórias de beijos, “sarradas” e outros
contatos com amigos, primos ou irmãos. Esses atos são presentes ain-
da quando pequenas, entre três e cinco anos, mas, como elas dizem,
nessa época é diferente: “porque a gente fazia de sacanagem, não era
por amor e nem por vontade, sabe?”, diz Tainá de dez anos. Em geral,
as crianças começam a “ficar” por volta dos oito anos de idade, tempo
em que muitos dão “o primeiro beijo”, sempre contado de modo icônico.
Leo, de oito anos, conta sobre a namorada da escola que ele “beija
muito na sala”. Pergunto quais são os lugares em que ele namora, e o
menino responde que “é quando a turma tem educação física, a sala
de aula fica vazia e a gente combina de se ver lá”. Os lugares de exercí-
cio da afetividade/sexualidade são em casa, quando as famílias não es-

141
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tão, na escola e principalmente nos becos. É muito comum se referir


aos namoros que ocorrem no beco de fulano, no beco de ciclano.
As crianças consomem horas refletindo sobre como devem se re-
lacionar com as pessoas de que gostam. Calculam gestos, formulam
táticas de encontro e criam jogos de sedução, sempre com a sagaz pre-
ocupação de que as famílias não descubram. Wesley escreve um bi-
lhete para Larissa com a mensagem: “você foi a novinha que conquis-
tou meu coração”. Ela não sabe o que fazer, pois gosta mesmo é de
Bruninho, “são muitos meninos querendo ficar comigo e eu fico confu-
sa”, diz a menina de dez anos. Em meio ao aprendizado da sexualidade
(HEILBORN, 2006), outras situações dizem respeito a violências sexuais.
Melissa conta que “perdeu a virgindade” com 12 anos e lembra que sua
primeira vez foi “horrível”:

A minha primeira vez foi com o Danilo; eu tinha doze anos, a


gente estava no baile, daí eu tava chapando, né? Ele também
tava me dando bastante cachaça; daí ele falou, vamos ali que
eu quero te mostrar uma coisa, e eu falei: o quê? E ele falou,
vamos! Eu sabia que ele ia querer fazer alguma coisa... A gente
chegou na casa dele e ele me levou pro quarto, ele começou a
me alisar e eu não queria, daí eu disse pra ele que não queria
fazer aquilo, e ele falou: ah não, agora, você vai, e me empur-
rou na cama, e ficou em cima de mim e transou comigo... Eu
tenho um nojo dele... E olha, isto já tem dois anos, a gente se
fala sabe? Mas é só assim: oi, Danilo, oi, Melissa. Meu outro
namorado, este meu ex, meu segundo cara, ele foi muito res-
peitador, esperou mesmo, sabe, a gente só transou depois de
três meses, na hora até saiu sangue, mas era dele, eu falei para
ele que estava saindo um sangue; quando ele olhou era dele;
daí ele falou, vamos pra casa, tenho que ir embora... eu não
sabia que acontecia isso, de sair sangue em homem também,
deve ser que dizem que tem um fio, né? Depois eu falei pra ele:
você era virgem; ele disse não; eu falei você era, ele disse não,
no outro dia ele me disse, posso te contar uma coisa? Eu disse
que podia; e ele disse: eu era virgem sim! Eu comecei a rir, daí
ele disse: Viu? Tá vendo! Por isto que não tinha te contado!

142
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

O estupro perpetrado por meio de sexo não consentido é narra-


do em meio a uma conversa cotidiana com as meninas mais novas.
A vivência da primeira relação sexual de Melissa ocorrida pelo uso da
força é descrita a partir dos sentimentos de nojo e repulsa provocados
pelo rapaz, seu vizinho e namorado. Importante registrar que essas situ-
ações são corriqueiras e fazem parte do aprendizado sexual de meninas
e meninos. Por serem vividas em redes de proximidade social, nas quais
a possibilidade de uma denúncia ou problematização coletiva é com-
plexa, essas situações agudizam as assimetrias de gênero com mais
intensidade e conservam uma rede de silêncios e não ditos favoráveis
à reprodução da violência sexual (LANGDON, 1993).
Em um sentido semelhante, a preocupação em esconder os na-
moros e “ficadas” dos familiares diz respeito à moralidade local. Como
as crianças contam, em alguns casos os familiares até permitem
que elas namorem, mas recomendam que isso não ocorra com ninguém
da localidade. Melissa explica:

Os meninos são muito safados, às vezes você não faz nada


com eles e eles falam que fizeram tudo; eles também já que-
rem ir logo no créu. Já querem ir furando logo! Por isto que meu
pai fala que eu até posso namorar, mas que não seja ninguém
aqui do morro, porque senão fica isto, todo mundo comentan-
do e falando.

Em um território onde as redes de proximidade social são den-


sas, as relações para fora da vizinhança são preferíveis, pois os fami-
liares intentam evitar fofoca entre moradores e amigos. Essa estratégia
possui uma inflexão particular no que diz respeito à circulação das re-
putações femininas, passíveis de serem ameaçadas a partir da possi-
bilidade da difamação (PETROSILLO, 2016). Entre os familiares, existe
um relativo consentimento de namoro entre as crianças maiores, a partir
de 12 anos; contudo, nele não deve conter penetração, uma vez que, nes-
ses termos, a relação sexual configura a possibilidade da concepção,
a temida “gravidez na adolescência”. A maioria dos familiares prefere
que os filhos não pensem em namoro, já que, segundo estes, as crian-

143
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ças têm muito o que fazer antes de namorar; “têm que trabalhar, estudar
e crescer”, como diz Murilo, pai de Melissa.

Na creche: obediências, limites e transgressões

O namorado da minha avó é meu padrinho; a minha avó tinha


um outro namorado que morreu e ele não era o meu avô. Minha
avó trocou de namorado, quis ficar com esse de agora, que ela
gostava mais. Mataram ele. E sabe quem matou ele? Foram os
índios. Os índios chegaram lá em casa e mataram ele, entraram
devagarinho, eu corri e me escondi, fiquei escondido embaixo
da cama e o índio enfiou a flecha assim, no peito dele. A minha
avó gritava, falava não... (Ruan simula a avó chorando e faz uma
pequena pausa até recomeçar) O índio mora longe daqui, mora
lá na oca, você sabia? O nome da casa dele é oca. Eles vieram
porque meu avô guardava uma coisa que é segredo, que eu não
posso contar, ele guardava uma arma... (coloca a mão na boca)
e a polícia não pode saber, por isso ele morreu.
Ruan, 5 anos.

Enquanto eu fazia anotações sentada na escada da creche, Ruan


anunciou que me contaria “uma coisa”. O trecho acima foi narrado
com muitos detalhes pelo menino de seis anos e mistura relações fami-
liares, troca de namorados, índios, morte e polícia. Demorei para assimi-
lar a quantidade de informações trazidas por Ruan de uma só vez duran-
te um momento casual. Ele ainda terminava de contar a “coisa”, quando
uma professora surgiu na varanda onde estávamos e lhe interrompeu:
“que tanta besteira você está falando pra ela, hein, Ruan? Para de inven-
tar história e vai agora pra sua sala!”. O menino obedeceu e seguiu.
Ruan quase sempre circula pelo ambiente da creche, além das sa-
las de aula. Esse fato é visto como um problema porque: “as crianças
não devem ficar soltas e Ruan e Samara vivem soltos”, explica a diretora
da unidade. Mesmo diante das interdições, ele transita entre a cozinha,
a secretaria, o pátio e as escadas. O menino gosta de brincar com as

144
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

crianças, porém sempre que consegue, prefere permanecer ao lado


de algum adulto. Enquanto as professoras arrumam a sala a fim de pas-
sar de uma atividade para outra, Ruan quer sempre ajudar, e quando
deixam, auxilia na organização dos objetos.
O garoto é um “problema” para as professoras da creche, pois,
como ressaltado, “ele não obedece e nem se comporta”. Nas reuniões
de equipe, muitas horas são dedicadas a resolver questões envolven-
do o menino. As professoras se queixam, com a assistente social e a
pedagoga da Fundação de Educação, que Ruan: “bate muito nos ami-
gos, não aceita ficar na sala, não respeita as regras e as professoras”.
Ademais, outro assunto tenso relacionado ao menino diz respeito a um
episódio no qual, segundo as professoras, ele teria “arriado as calças
de Samara”. As professoras sussurram sobre o feito, uma vez que a te-
mática da sexualidade infantil é de difícil manejo na instituição e ganha
ares de tabu. As professoras explicam as atitudes de Ruan argumentan-
do para as técnicas que esse comportamento vem de casa: “Também,
né? Fulano disse outro dia pra beltrano que o pai dele deixa ele ver filme
pornô em casa! Aí a criança fica deste jeito. Vê se pode! Deixar o filho
ver pornô!”. Numa instituição como a creche, o cuidado com as crian-
ças é um importante eixo de regulação das moralidades familiares e de
vizinhança local, nas quais profissionais, parentes e crianças atualizam
diariamente um fluxo de informações produtoras de responsabilidades,
constrangimentos e legitimidades.
Ana Paula é a mãe de Ruan e trabalha em uma padaria do bairro,
para a qual se dirige bem cedo e deixa os três filhos na creche. O pai
dele também trabalha durante grande parte do dia. Alice, prima de Ruan,
tem 16 anos e é responsável por pegar as crianças na creche e ficar
com os três irmãos até a chegada dos pais em casa. Aos sábados, o ca-
sal também trabalha e, sendo assim, os irmãos ficam sob os cuidados
dela, que recebe uma ajuda de R$ 100,00 para ficar com os primos.
Ao conversar com Ana Paula, a mãe conta que Ruan é uma criança mui-
to “responsável”: “ele fica muito sozinho em casa porque nem sempre
minha sobrinha pode ficar com eles. Ruan é atentado? Sim! Mas tam-
bém tem muito cuidado com os irmãos e sabe se virar muito bem em
casa”.

145
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Em conversa com Ruan, diz que Alice faz “muitas coisas”: “ela
apronta nossa janta, pega a gente na creche, brinca com a gente, deixa
a gente fazer bagunça, mas depois a gente arruma, corta laranja, arru-
ma a casa, ela faz tudo”. Durante um de nossos encontros, ele exibia
rindo um corte na palma da mão, feito enquanto preparava um lanche
em casa. Não é banal que duas crianças ao longo dessa descrição te-
nham exibido acidentes domésticos em seus corpos, mostrando que os
compromissos com o universo da casa estão entranhados nos corpos
e na sociabilidade infantil.
Na creche, os feitos de Ruan são percebidos como dignos de preo-
cupação. As narrativas falam de um menino que “deixou de ser criança”:
“esse menino é triste, responde de igual pra igual e só faz o que quer”,
lamentam as professoras. Os comentários não inspiram a docilidade
passiva comumente atribuída à condição genérica de criança, ainda
que esse referido imaginário se reitere nos trabalhos de desenho ou pin-
tura pendurados no mural da instituição. Decerto, Ruan virou um “caso”
e, como tal, extrapolou os muros da creche, de sua família e da vizinhan-
ça, chegando até o gabinete da Fundação de Educação na Prefeitura
de Niterói. A coordenadora da Educação Infantil na Prefeitura já conhece
Ruan: “já discutimos muito o caso desse menino nas reuniões”, em tom
de desabafo durante um encontro inesperado fora da creche.
Ao observar o menino, muitas vezes, tive a impressão de que Ruan
se aproximava da posição de outsider, categoria cunhada por Howard
Becker (2008). Seus feitos tensionam as expectativas normativas ela-
boradas no espaço institucional, de modo que quase todas as ações re-
alizadas pelo garoto são lidas como desviantes. Para Becker, “se um ato
é ou não desviante, portanto, depende de como outras pessoas reagem
a ele” (2008, p. 24). Logo, cabe expor brevemente o conjunto de regras
e normas presentes na sociabilidade local com o objetivo de acessar
quais são os valores que atravessam as relações entre crianças, profes-
soras e avaliadoras das políticas públicas infantis.
A creche, enquanto unidade física e inserida num determinado
território, opera como uma matriz relacional constitutiva de cuidados
entre profissionais, famílias e crianças. Fato muito compreensível,

146
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

uma vez que se trata de uma creche comunitária circunscrita num cam-
po relacional fortemente territorializado e interdependente; as professo-
ras são moradoras do lugar, pais e mães são vizinhos uns dos outros,
as famílias se conhecem; logo, as relações da creche têm forte impacto
no contexto dessas relacionalidades (CARSTEN, 2004).
Por esse motivo, cabe discorrer de modo breve sobre como
uma criança se tornou “um caso”. O menino alcançou a posição de out-
sider por meio de inúmeros eventos sequenciais e diversas narrativas
cotidianas. O “caso Ruan” exprime linhas de tensão entre registros diver-
sificados que passam pela produção de “liberdade”, mobilidade, autono-
mia e autoridade. Esses distintos registros em ação se referem ao uni-
verso de valores presentes entre as pessoas que cuidam das crianças.
Para as professoras, mulheres de origem popular e moradoras
da comunidade, a noção de educação diz respeito à obediência arbitrá-
ria às regras impostas pelos adultos. Cabe destacar que estas são pro-
fissionais que se envolvem com tarefas de cuidados compulsórios,
como banhos, dar comida, fazer atividades em sala, pentear cabelos,
arrumar mochilas, organizar os materiais e todo um conjunto de tarefas
que se aproximam da ideia de trabalho “sujo”, conceito cunhado por te-
óricas feministas para falar do trabalho de cuidado, incluindo tarefas
bem como empregos desqualificados e estigmatizados socialmente
(HIRATA; GUIMARÃES, 2012).
Durante a rotina institucional, presenciei diversas vezes impaciên-
cia e irritação por parte das professoras em ter que executar uma deter-
minada tarefa ou outra. Mesmo diante de minha presença, o sentimento
de irritação não acompanhava nenhum esforço em ser evitado, prova
de tamanha exaustão emocional em que se encontram. Essas formas
de tratamento às crianças, somadas às trajetórias pessoais das profis-
sionais, nos auxiliam a delinear uma imagem, ainda que relativa, acerca
da noção de criança que emerge nesse contexto. Um trabalho que, cabe
destacar, é realizado em condições institucionais precárias.
Lorraine, uma menina de quatro anos, comenta: “tia Rosa passa
a toalha espetando”. A menina se refere ao momento em que a profes-
sora seca as crianças após o banho. Sozinha e apressada, Rosa banha

147
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cerca de quinze crianças no lavatório, uma de cada vez. Não foi raro
acompanhar a exaustão dessa profissional ao realizar esse procedimen-
to. Em outro momento, é a professora Joana quem ordena que Gustavo
desenhe cobrindo um círculo pontilhado de lápis, mas ele está mais inte-
ressado em desenhar nas bordas da folha. Ela insiste, diz que o menino
deve cobrir os pontos e ele continua desenhando bolinhas nas margens
do papel. Joana, já visivelmente irritada, segura os punhos do meni-
no e puxa-os para baixo. Ele estava segurando um lápis na mão, as-
sim se machuca com a escoriação do movimento e começa a chorar.
Fatigada, Joana justifica em tom de desabafo: “esse menino chora à toa;
ele não era pra estar na minha turma; elas fizeram de sacanagem, por-
que ele atrasa os meus alunos que já estão adiantados”.
Na hora do descanso, a professora Janaína reúne as crianças
na sala e anuncia a hora de dormir; durante esse processo é comum
que algumas relutem contra o sono e se revirem nos pequenos col-
chonetes. Felipe, “a criança que não dorme”, segundo as professoras,
não consegue cochilar e está em movimento no colchão. Janaína alerta
com a voz entre os dentes; “eu já falei que é pra dormir; vira pro lado
e dorme logo! Vira e dorme. É pra dormir”. Depois de muito relutar, o me-
nino dorme, quase na hora de acordar novamente.
As profissionais se esforçam para ser respeitadas, manter a orga-
nização dos objetos e das crianças. O “jeito” de educar passa pelo res-
peito às regras elaboradas pelos adultos. Essas regras giram em torno
da execução das atividades de sala, dos horários para dormir, acordar,
brincar no pátio, desenhar “certo”, ouvir a história na hora “correta”9.
Ao lado das professoras, o registro moral da autoridade, situam-se
as profissionais da equipe da Fundação de Educação, que, por sua vez,

9 Cabe enfatizar as condições de trabalho em que as professoras atuam. A creche funciona


em regime integral, de 8 horas da manhã até 17 horas da tarde, de segundas às sextas-fei-
ras. Cada turno possui uma professora responsável. As turmas são formadas por cerca de
quinze crianças. A creche tem três turmas divididas por idade, de 2 a 3 anos, 3 a 4 anos e 4
a 6 anos, totalizando aproximadamente 45 crianças. Cada turma tem uma professora res-
ponsável e uma professora auxiliar; no entanto, devido a cortes de financiamento público,
as professoras da tarde muitas vezes permanecem sem auxiliar durante todo o ano e ficam
responsáveis por uma turma de 15 crianças. Em relação à formação profissional delas, a
maior parte das mulheres cursou o ensino médio. Três professoras ingressaram recente-
mente no curso de Pedagogia em faculdades privadas. A equipe é basicamente composta
de mulheres. Somente um professor é homem.

148
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

também possuem o seu “jeito” de tratar as crianças e de concebê-las.10


Estas são profissionais avaliadoras das ações da creche, responsáveis
por transmitir ideias sobre “autonomia”, expressas em atividades e jar-
gões que enfatizam: “cuidar também é educar”, segundo veiculado pela
equipe constantemente em diversos momentos.11
Em conversa com as profissionais da equipe, foi-me explicado
que seu trabalho tem inspiração “construtivista” e visa à “autonomia”
das crianças.12 As narrativas das avaliadoras anseiam por relações si-
métricas entre professores e crianças, nas quais o diálogo e o respeito
mútuo seriam os pilares da interação. A criança “deve ser considerada
como uma pessoa”, conforme sempre repetido às professoras nas reu-
niões da equipe.

Linhas de tensão: liberdades, mobilidades, autoridades


e autonomias

Com base nas trajetórias expostas, podemos refletir sobre os sen-


tidos de “liberdade” que estão em jogo. A dita condição de liberdade,
da qual as crianças aproveitam, envolve a necessidade da realização
de tarefas obrigatórias, de trabalho compulsório com a casa e as crian-

10 A Fundação de Educação é uma autarquia da Prefeitura de Niterói responsável pelo


“Programa Criança na Creche”. A equipe de avaliação tem em sua coordenação uma soci-
óloga e o restante de psicólogas, assistentes sociais e pedagogas. Todas as técnicas têm
especialização (lato sensu) em educação e duas profissionais são mestres em universi-
dades públicas. Parte da equipe é concursada no município e outra metade ocupa cargos
comissionados. A gestora do programa é professora na Faculdade de Educação de uma
universidade pública.
11 A premissa “cuidar é educar” consiste no estabelecimento de princípios de especialização
da educação infantil. Isso envolve, por exemplo, o debate acadêmico e profissional que
defende a educação como ciência. Sobre esses aspectos ver Sônia Kramer (2006).
12 O construtivismo tem inspiração em autores como Paulo Freire, Vygotsky e Piaget. A ideia
de autonomia preza por relações simétricas entre adultos e crianças, nas quais estas são
pensadas como protagonistas do processo de aprendizado, como seres plenos e capazes
de interagir com os processos de cognição. O construtivismo também é uma corrente res-
ponsável pela ênfase na contextualização das condições sociais e históricas das crianças
no aprendizado escolar. Embora as ideias desses autores se aproximem, cabe ressaltar
que o sócio-construtivismo de Vygostky tem a intenção de ser uma alternativa à concep-
ção construtivista de Piaget, esta que por sua vez está centrada no indivíduo. Já em Paulo
Freire, temos a ideia do construtivismo crítico. Agradeço a Larissa Cavalcanti pelas indica-
ções com relação às diferenças importantes entre os autores e suas epistemologias.

149
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ças, em meio às demandas de lazer e aquisição de diversas responsa-


bilidades. Esse conjunto de obrigações forja expertises que as tornam
habilitadas para assunção de tarefas relacionadas a cuidados.
Em outro sentido, a acepção de liberdade evocada sugere que as
crianças perderam o traço da inocência. Na condição pejorativa de “pre-
coces”, são muitas vezes consideradas transgressoras, pois ultrapassam
determinadas fases de desenvolvimento, borrando os critérios etários
de idade e os limites do que é considerado para crianças e adolescen-
tes. Uma outra face da ideia de “liberdade” apresenta forte carga acusa-
tória, na qual crianças “soltas”, que “andam sozinhas”, podem ser vistas
como “largadas” se tornando objeto do falatório local e institucional.
Essas representações exprimem o pânico moral dirigido às crian-
ças moradoras de territórios negros e periféricos. Apresentam a ur-
gência de controlar crianças que podem “se tornar futuros marginais”,
tal qual analisado por Adriana Vianna (1999) na figura do “menor” ou na
promessa do “mal que se adivinha”. Frente à ideia de inocência poten-
cialmente em perigo, situam-se as ações de ocupação do tempo, como
a da ONG, que mesmo diante da “disciplina rígida” cumpre um papel
precioso ao proporcionar a mobilidade social na vida dos familiares
e trabalhadores.
No entanto, a partir dos itinerários estabelecidos com as crian-
ças, vemos que a ideia de liberdade extrapola os sentidos menciona-
dos anteriormente. Por esse motivo, ao lado da “liberdade”, proponho
acrescentar que elas produzem mobilidades. A mobilidade das crianças
não se restringe à concepção meramente geográfica, mas diz respeito
à forma como habitam o cotidiano a partir de uma agência produtora
de cuidados. As mobilidades se forjam nas ruas, em passos caminha-
dos na companhia uns dos outros, onde elas conhecem o morro, o bair-
ro, as quitandas, mercados, os trajetos dos ônibus.
Um mapa físico e afetivo, feito de memórias e saberes, se desdo-
bra nas narrativas das crianças: “foi ali, na pedra da Boa Viagem que o
Pedro quebrou o braço e a gente correu pra ajudar”. Lugares silenciados
ganham voz e sentimento: “homens tarados que mexem com a gente,

150
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

sinto nojo”, corporificam os primeiros aprendizados sobre assédio se-


xual no espaço público e as duras violências de gênero. Carros velo-
zes inspiram cuidado ao atravessar as ruas, e são mãos de crianças
que seguram outras pequenas mãos ao caminhar. Noções de econo-
mia são discutidas e negociadas: “lá, naquele mercado que tudo é caro”.
Escolas “melhores”, colégios particulares, figuram como utopias em ho-
rizontes que parecem inacessíveis: “queria estudar neste colégio, olha
como ele é bonito”. Estas são mobilidades capazes de construir uma au-
tonomia gerada a partir do dia a dia, feita entre crianças que se apro-
priam de coisas, espaços e responsabilidades de que até então só adul-
tos poderiam se incumbir.
Os lugares por onde as crianças transitam são significados a partir
das noções de intimidade, território, responsabilidade e pertencimento,
tensionando a oposição entre casa e rua. A existência da criança na rua
desafia a crença na casa como o espaço primeiro de socialização, ideia
que reifica o ideal de família nuclear e da criança atomizada. É, afinal,
no espaço da casa que muitas crianças entram em relação com o apren-
dizado das tarefas domésticas, o que para algumas pode se apresen-
tar como uma experiência extremamente exaustiva, bem mais do que,
talvez, caminhar em direção à escola “na rua” e na companhia de ou-
tros colegas. Nesses termos, a rua não consiste em um lugar de ausên-
cia de regras, mas, ao contrário, é onde mais se produz a autonomia
das crianças.
Uma autonomia que decorre da experimentação cotidiana com a
responsabilidade de conduzir a si mesmo e aos outros. Esse aprendiza-
do atualiza a experiência de grupos racializados na preocupação e ma-
nutenção do espaço da casa, junto à vivência ativa nas ruas enquanto
espaços cruciais das condições de garantia da vida em meio a contex-
tos de racismo estrutural, exploração econômica e violência de Estado
(HOOKS, 1990; DAVIS, 2016).
Nas casas, vimos as obrigações com o cuidado dos irmãos
e com o universo doméstico. Os ganhos de “moral” garantem recom-
pensas significativas permitindo que as crianças criem lugares de exis-
tência; os celulares e álbuns exibidos meticulosamente nas redes so-

151
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ciais, a compra de cremes para cabelos identificados como “rebeldes”,


o acesso às festas à noite e às cantorias dos “proibidões” entoados em
“bondes” de crianças durante os trajetos na rua.
Ainda nas casas, as obrigações com os deveres escolares, a frequ-
ência nas aulas e as demandas familiares de ascensão escolar e profis-
sional engrossam os objetivos a serem alcançados por filhos de famílias
trabalhadoras. Crianças que devem “crescer para estudar e trabalhar”,
conforme reforçam as indicações dos pais em diversos momentos.
Levar à creche, colocar o irmão para dormir, cozinhar e manter a casa
dentro dos padrões de limpeza e organização estabelecidos compõem
o conjunto de ações realizadas por crianças.
Na creche, a invenção das crianças incomoda e perturba porque
colide com o registro da autoridade exercido pelas professoras. Estas
(lembremos que também são mães, tias, avós) desejam ensiná-las
a ser “responsáveis” em sala de aula. A autonomia desejada pelas ava-
liadoras não consegue penetrar facilmente na multidão das trajetórias
populares em seus múltiplos e delicados “jeitos” de educar e criar, en-
quanto as crianças continuam querendo correr fora das salas, desenhar
nas bordas e ouvir histórias “fora da hora”. A autonomia que as avalia-
doras buscam transmitir na creche considera meninos e meninas como
sujeitos de seu próprio conhecimento. Mas, levando em conta o modo
como as professoras pensam as crianças, a autonomia ainda soa es-
tranhamente artificial. O aspecto refratário dessa interação é compre-
ensível, uma vez que as próprias professoras são também infantiliza-
das nas avaliações empreendidas; são os questionários para marcar
com giz de cera, dinâmicas alienígenas, lições pausadas e transmitidas
para facilitar a compreensão de pessoas que possuem seus saberes
legítimos sobre cuidado e autoridade.
Essas são as crianças que, um pouco mais crescidas, vão iniciar
um aprendizado e exercício da responsabilidade intensa com o coti-
diano. Já maiores, passam, lavam, esperam adultos em casa, cuidam
da rede de parentesco e olham, inclusive, os bebês. Elas criam ações
para substituir uma cobertura precária e ineficiente dos serviços públi-

152
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cos, em um país onde a demanda por cuidados pagos e especializados


cresce e se agudiza todos os dias.
Podemos sugerir que as crianças em suas mobilidades geram
um tipo de autonomia produzida no concreto, experienciada na vivên-
cia do cotidiano em coexistência com os ambientes normativos e ins-
titucionais. A autonomia das casas, da rua, dos becos e das situações
de intimidade é obliterada quando elas cruzam os portões da escola,
da creche e da ONG.
“Virar criança”, como apontado na epígrafe deste artigo, alude
à possibilidade de performar momentaneamente a condição de crian-
ça. Com base, no entanto, nos espaços relacionais que habitam, pro-
curo mostrar que elas reinventam limites demonstrando que o mundo
dos adultos pode ser incorporado segundo os feitos das crianças. Nesse
sentido, a agência não se retém pelo tamanho, capacidade ou idade,
mas pela força das relações em tensionar tais limites. Apesar de algu-
mas vezes serem evocadas como um “problema” na vida dos adultos,
enquanto produtoras de cuidados, as crianças oferecem ações capa-
zes de melhorar o ambiente em que vivem. Não são apenas receptácu-
los de cuidados, mas materializam resultados permanentes em meio
às corridas agendas trabalhadoras e adultas.
Por que foi necessário expor o itinerário das crianças? Porque
é preciso indicar que o cuidado não se restringe às casas, tampouco
se polariza entre instituições formais como a creche ou a escola. O cui-
dado também se faz na rua, nas caminhadas, nas soleiras das institui-
ções e nas brincadeiras pelo morro. Não advém somente de adultos,
mas é vivido entre crianças, expressivamente provedoras de cuidados.
Elas não se encontram olhadas freneticamente por alguém, mas se
distribuem em mobilidades urbanas e domésticas. São crianças parti-
lhadas. E só é possível entender os sentidos dos cuidados realizados
quando compreendemos quais são as noções de criança que atraves-
sam as relações. Entretanto, a noção de criança se reparte em distintas
dimensões e é somente quando esses registros coexistentes aparecem
que podemos ter uma breve ideia do que significa cuidar de alguém.

153
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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155
Eixo 2

Educação para Transgredir


Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Interseccionalidades na Educação:
histórias e memórias negras na
construção do conhecimento
escolar

Iamara da Silva Viana1

Introdução

Terça-feira, dia 8 de junho de 2021, comunidade de Lins


de Vasconcelos, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Com um tiro
de fuzil no tórax, morre Kathlen Romeu, jovem negra de 24 anos. Recém-
formada em Design, trabalhava como vendedora de uma loja na Zona
Sul do estado, local comumente conhecido pelo alto valor de seu metro
quadrado. Grávida de 14 semanas, a jovem havia mudado recentemente
seu endereço, juntamente com seus pais, numa tentativa de fugir da vio-
lência que caracteriza o cotidiano dos que moram em locais distantes
desse território que detém maior poder econômico, político e cultural.
A mudança, contudo, deixou para trás parte da família: sua avó, a quem
1 Professora Dra. do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Departamento de História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Credenciada ao Programa de Pós-
Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);
Coordenadora do Programa Residência Pedagógica (CAPES) de História e Coordenadora
da Pós-Graduação em História e Cultura Afrodescendente ambas da PUC-Rio.

159
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

visitava, no momento em que fora atingida pelo trágico tiro2. Mais


uma família desfeita. Mais sonhos interrompidos. Menos uma mulher
preta que, mesmo irrompendo as barreiras sociais impostas pelos anos
de escravização de seus ancestrais e tendo se formado numa univer-
sidade, fora vencida pelas marcas dessa história em seu corpo preto,
o fenótipo que baliza uma das muitas violências contra a mulher na so-
ciedade brasileira.
Histórias como a da jovem negra acima mencionada infelizmente
se tornaram parte do cotidiano de quem ocupa os locais desprivilegiados
de poder, na cidade do Rio de Janeiro. Locais geograficamente segrega-
dos pela conformação histórica e não por definições legais. Lugares,
historicamente, compostos por pretos e pardos, descendentes de his-
tórias e memórias da escravização de africanos em diáspora a partir
do século XVI, por meio das práticas racistas, tendo em comum os fato-
res gênero, raça e classe. Afinal, “no Brasil, o racismo – enquanto cons-
trução ideológica e um conjunto de práticas – passou por um processo
de perpetuação e reforço após a abolição da escravatura, na medida
em que beneficiou e beneficia determinados interesses” (GONZALEZ,
2020, p. 34).
Enquanto construção ideológica, como mencionado por Lélia
Gonzalez, o racismo se apresenta por meio das marcas perpetradas
na sociedade brasileira pelos mais de 350 anos de escravização de afri-
canos e seus descendentes, podendo igualmente ser percebido na de-
sigualdade social, no racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) e cotidiano
(KILOMBA, 2019), de modo a impactar vidas negras, no que tange à edu-
cação, saúde, cultura e emprego. Nesse sentido, este artigo tem como
principal mote refletir acerca da relevância da Lei n. 10.639/2003, na res-
significação do currículo histórico escolar (GABRIEL; LIMA, 2020, p.
e23857). A percepção é apresentada por meio dos dados de pesquisas
do IBGE, em que pretos e pardos constituem o maior número de analfa-
betos, e meninas negras as que mais engravidam entre os 15 e 19 anos,
compondo o maior quantitativo de evasão escolar. Esses elementos es-

2 Sobre o assassinato da jovem Kathlen Romeu, ver: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/


noticia/2021/06/10/o-que-se-sabe-sobre-a-morte-da-jovem-kathlen-romeu-no-rio.ghtml

160
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tão em estreita relação dialógica com os mundos do trabalho, logo, esse


mesmo grupo ocupa empregos subalternos, recebem menores salários
e não alcançam postos de liderança em seus ofícios e ocupações.
A análise histórica das pesquisas recentes aponta a relevância
de observação específica para a condição feminina, sendo o gênero,
a classe e a raça conceitos fundamentais para perscrutar a realidade
de exclusão das mulheres negras dos bancos escolares, nos seus dife-
rentes níveis, e, principalmente, nos mundos do trabalho, no qual um nú-
mero ínfimo alcança lugares de poder (GONZALEZ, 2020). Com o con-
ceito de interseccionalidade aqui mobilizado, entendo que o “ser negra
e mulher no Brasil” constitui-se em um “objeto de tripla discriminação,
uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a co-
locam no nível mais alto de opressão” (GONZALEZ, 2020, p. 58). Mesmo
quando mulheres negras rompem paradigmas sociais e concluem o en-
sino universitário, como a jovem Kathlen Romeu, muito raramente con-
seguem romper o estigma do fenótipo, acabando por ocupar cargos
subalternos e subempregos, auferindo, assim, menores salários e con-
sequentemente piores condições de vida e saúde, física e mental.
Proponho, então, como reflexão fundamental, as histórias e as
memórias negras no processo de construção do conhecimento esco-
lar, momento de constituição identitária, em que se pode ressignificar
a visão de mundo acerca dos corpos negros femininos, colaborando,
sobretudo, para apropriações positivas às descendentes de africanas
escravizadas, minhas ancestrais. Considerar essa ancestralidade e seus
protagonismos, suas histórias e memórias na educação, certamente
possibilitará novos olhares e pensamentos, de modo que os patrimô-
nios negros, como o samba, o jongo e religiosidades de matriz africana,
constituindo elementos de resistência, evidenciem a força do protago-
nismo feminino no processo histórico, ao romper o mundo da escravi-
dão e adentrar nos mundos da liberdade3.

3 Sobre a questão ver: VIANA, Iamara. 2021; GOMES, Flávio. 2005.

161
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Corpos negros femininos, educação e trabalho: histórias


e memórias negras, laces e enlaces

A história da formação da sociedade brasileira tem, no corpo fe-


minino africano, e de suas descendentes, papel significativo, enquanto
produtora e reprodutora, na conformação do escravismo, principalmen-
te após as leis de fim de tráfico4. Mulheres negras produziam riquezas
nas diferentes províncias do Império do Brasil, tais como bens de servi-
ço, cuidados e sobrevivência – elas eram responsáveis pela produção
de alimentos, roupas, chás curativos, pelos partos, pela alimentação
nos espaços rurais e urbanos –, mas também reproduziam propriedade
escravizada, ao gerar filhos e filhas que constituiriam parcela significati-
va da mão de obra, base daquela sociedade. Muitas não tiveram o direito
à maternidade ou à amamentação. O alimento produzido e fornecido pelo
seu corpo seria vendido ou alugado para crianças brancas, em detrimen-
to da alimentação de seus próprios filhos e filhas5. De modo que pode-
mos apontar as diferentes violências que aquelas mulheres vivenciaram
durante o período colonial e pós-colonial, das físicas, às psicológicas
e sexuais6. Tais violências, contudo, não impediram que muitas dessas
mulheres subvertessem a ordem estabelecida desde o período colonial,

4 Sobre as leis de 1831 e 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queirós ver: SCHWARCZ, Lília
Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos
críticos. São Paulo Companhia das Letras, 2018; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. O Estado
nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a Lei de 1831 e a matrícula dos escravos
de 1872. Almanack. Guarulhos, n. 2, p. 20-37, 2º semestre de 2011.
5 Sobre maternidade africana ver: Ventre Livres? Gênero, maternidade e legislação, orga-
nizado por Maria Helena Machado et al. São Paulo: Editora Unesp, 2021.; VIANA, Iamara;
GOMES, Flavio. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e cor-
pos. In: Ventre Livres? Gênero, maternidade e legislação, organizado por Maria Helena
Machado et al. São Paulo: Editora Unesp, 2021; MACHADO, Maria Helena P. T. Entre dois
Benditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: Mulheres Negras no
Brasil Escravista e do Pós-Emancipação, organizado por Flavio Gomes et al. São Paulo:
Selo Negro, 2012; COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e
a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2018.
6 Trabalhos recentes desenvolveram reflexões acerca das violências físicas e sexuais sofri-
das por escravizadas africanas e suas descendentes, dos quais sugerimos: VIANA, Iamara;
GOMES, Flávio. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e cor-
pos. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. (orgs.) Ventres livres? Gênero, maternidade e
legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

162
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

fosse desconsiderando a Pragmática de 1749 – promulgada pelo rei de


Portugal, que proibia o uso de tecidos de luxo, ouro e prata por negras
e negros –, ou fugindo, formando quilombos, negando-se a engravidar,
ou, até mesmo, aprendendo as primeiras letras.
O domínio dos códigos de escrita e leitura, na sociedade escra-
vista do século XIX, consistia em questão muito além do ler e escrever,
possibilitava acesso a um mundo de poder restrito a um número ínfimo
de pessoas, incluindo as não negras, mas ainda assim um mundo “bran-
co e livre”. O acesso à informação perpassava os jornais, mas também
as conversas no ir e vir cotidiano, no qual negros ao ganho7, lavadeiras,
quitandeiras, carregadores, estavam todos presentes. As escolas insti-
tucionalizadas atendiam a um pequeno número de pessoas, mas, africa-
nos, mesmo livres, não podiam acessá-las. A questão posta se encontra
nas formas como esses sujeitos desenvolveram habilidades de ler, es-
crever e pensar o mundo. Sendo proibidos de adentrar os espaços ins-
titucionalizados de instrução das primeiras letras, como, então, escravi-
zados, libertos e livres, africanos e seus descendentes desenvolveram
o domínio dessas habilidades?
Se a Lei n. 1 de 1837, e o Decreto n. 15 de 1839, que versavam so-
bre a instrução primária no Rio de Janeiro, constituíram a impossibilida-
de de entrada e frequência de africanos em instituições escolares, nada
foi feito após o fim da escravidão e a Proclamação da República. O ca-
pítulo 1 da referida lei, denominado “das escolas de instrução primária”,
especificava, em seu Artigo 1º, as chamadas classes de ensino. Assim,
temos a primeira classe composta por “leitura, e escrita; as quatro ope-
rações de aritmética sobre números inteiros, fracções ordinárias, e deci-
mais, e proporções: princípios de Moral Cristã e da Religião do Estado;
e a Gramática da Língua Nacional”. Na segunda classe destacavam-se
as “noções gerais de Geometria teórica e prática” e, na terceira, os “ele-
mentos de Geografia” (BRASIL, 1837, p. 1999).

7 Como eram comumente conhecidos os escravizados que viviam sobre si, ou seja, exerciam
diferentes ofícios (vendedores de alimentos, sangradores, barbeiros, etc.) e pagavam um
jornal (valor) no fim do dia ao seu proprietário. Geralmente moravam em residência diferen-
te de seu senhor ou senhora, o que lhes permitia uma pequena margem de “liberdade”.

163
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Portanto, os alunos que ingressassem nas escolas do estado im-


perial teriam acesso a amplos conhecimentos reconhecidamente im-
portantes no âmbito social, cultural e político. Mas esse ensino não al-
cançava toda a população, posto que a própria lei delimitava, com todas
as letras, aqueles que seriam excluídos da instituição escolar. Em seu
Artigo 3º, assim impunha a lei, como proibidos de frequentar as Escolas
Públicas, primeiro as pessoas que padecessem de moléstias contagio-
sas. Ora, em se tratando da sociedade escravista do século XIX, tanto
no mundo rural quanto no urbano, escravizados africanos e seus des-
centes eram as maiores vítimas da mortalidade. Em segundo, “os es-
cravos, e os pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos” (Idem).
Em outras palavras, mesmo rompendo o estigma da escravidão, pretos
e pardos carregavam consigo as marcas da sua cor e condição jurídi-
ca presente ou pretérita, e, portanto, também não poderiam ter acesso
às primeiras letras.
Em relação às escolas femininas, o Artigo 17 determinava que
“nas escolas públicas de instrução primaria de meninas serão ensinadas
as matérias compreendidas nos números primeiro e terceiro do Artigo
primeiro, menos decimais e proporções, e, além disso, a coser, bordar,
e os mais misteres próprios da educação doméstica” (BRASIL, 1837, p.
202). Escolha nada aleatória para uma sociedade formada com base
patriarcal. Embora as escolas fossem direcionadas ao público femini-
no branco, ele aponta o ambiente privado, doméstico e familiar como
o único a ser vislumbrado por mulheres. Durante a vigência da escravi-
dão, tais ofícios foram delimitados às africanas e suas descendentes.
As fontes e a historiografia apontam ter sido a mão de obra escraviza-
da fundamental para o desenvolvimento econômico, político e cultural
da sociedade brasileira8. Portanto, esse passado colonial é importante
na reflexão desenvolvida neste texto.

8 Sobre a importância do trabalho escravo para a economia, política e sociedade imperial


brasileira no oitocentos, ver: MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. São Paulo:
Hucitec, 2004; CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; SALLES, Ricardo Henrique. E o vale
era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

164
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Na sociedade escravista, acreditavam os proprietários serem


os africanos escravizados os responsáveis por “realizar todas as ativi-
dades manuais e servir de bestas de cargas da cidade” (KARASH, 2000,
p. 259). Cativos não serviam apenas como máquinas e cavalos na ca-
pital e em diferentes províncias do império do Brasil, foram além disso
produtores da riqueza e do capital de seus donos (Idem). Na escravidão
rural não foi diferente, posto escravizados exercerem todos os ofícios
manuais, na casa grande e na lavoura, produzindo diferentes tipos de ri-
quezas. Em Vassouras, município do Rio de Janeiro, e principal cidade
produtora de café9 para o império do Brasil, mulheres escravizadas afri-
canas e suas descendentes desenvolviam cotidianamente tarefas es-
pecíficas, o que certamente contribuiu para a produção de mão de obra
qualificada, destacando-se, na década de 1840, os ofícios de costureira
(60,19%), cozinheira (18,44%), engomadeira (6,60%), lavadeira (5,82%),
rendeira (1,95%), mucama (1,95%) e de roça (4,85%)10. 11As costureiras
representavam quantitativamente a maioria daquelas trabalhadoras
isentas de liberdade. Inversamente, as que desempenhavam trabalhos
ligados à plantação, colheita, capina, não chegavam a 5% do total de es-
cravizadas que tiveram seus ofícios descritos nos inventários de seus
proprietários12.
Mudança significativa ocorreu após a promulgação da Lei Eusébio
de Queirós, em 1850. Com o tráfico de africanos posto na ilegalidade,
a mão de obra escravizada precisava ser utilizada racionalmente, afinal
o preço de escravizados havia aumentado e a dificuldade de compra,
igualmente. De modo que, nas décadas entre 1850 e 1880, africanas

9 O café, produto que no século XIX tornou-se o mais importante do Império do Brasil, contri-
buiu para tornar o tráfico uma atividade lucrativa, mesmo após 1830 com a sua ilegalidade.
Continuará lucrativa após 1850, momento ainda de expansão de sua cultura, e o fim definiti-
vo das operações atlânticas. Sobre a produção cafeeira no Vale do Paraíba Fluminense, ver:
VIANA, Iamara da Silva. SALLES, Ricardo Henrique. E o vale era o escravo: vassouras, sé-
culo XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
10 Inventários post mortem, 1840-1849. Centro de Documentação Histórica, Vassouras/CDH.
11 Foram selecionados os ofícios mais significativos onde a mão-de-obra escravizadas femi-
nina fora mais empregada no âmbito doméstico ou no trabalho nas plantações.
12 Inventários post mortem, 1840-1850. Centro de Documentação Histórica de Vassouras/
CDH.

165
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

e suas descendentes tiveram como principais ofícios, descritos nos in-


ventários post mortem de seus proprietários, os de roça (34,95%); costu-
reira (17,40%), mucama (10,19%), doméstica (7,20%), serviços domésti-
cos vários (7,05%), cozinheira (6,97%), engomadeira (2,50%) e lavadeira
(3,75%).13 Observamos aqui transformação e inversão nos quantitativos
de escravizadas assentes nos ofícios associados aos cuidados domés-
ticos, tanto da casa grande como aqueles realizados nas plantações
de café.
O corpus documental analisado para a produção da pesquisa cita-
da evidencia o trabalho feminino escravizado predominante em ofícios
14

associados aos cuidados da casa, alimentação e vestuário, entre os anos


de 1840 e 1850, para o município de Vassouras, o que também pode
ser observado para a corte, como mencionado acima. A promulgação
da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, promoveu, muito antes de ser assi-
nada, debates intensos entre os homens de poder político e econômico
que se recusavam a aceitar intervenção do Estado em seu patrimônio
pessoal. Não obstante, ainda que africanos escravizados continuassem
adentrando o território do império do Brasil até 1856 (SLENES, 2018), re-
pensar a administração da mão de obra escravizada tornou-se elemento
fundamental para a continuidade do sistema escravocrata. Os fatores
foram muitos, como o aumento do seu valor, a dificuldade de entrada
ilegal de novos carregamentos vindos da África, posto o maior controle
dos portos, incidindo diretamente em novos cuidados com o corpo es-
cravizado. A utilização racional de sua força de trabalho passou a ser
considerada fundamental, bem como os cuidados com alimentação,
vestimentas e limites aos castigos físicos.
Nesse novo cenário, os números apontam a maior utilização
da mão de obra feminina escravizada, a partir de 1850, nos serviços

13 Os ofícios apresentados foram selecionados tendo como objetivo ilustrar a relevância dos
mesmos no cotidiano de mulheres escravizadas e a utilização dessa mão-de-obra pelos
proprietários de escravizados e de fazendas em Vassouras no século XIX, não totalizam os
100% de todos os ofícios desenvolvidos dentro das Casas grandes e fazendas.
14 Pesquisa desenvolvida durante o mestrado na Faculdade de Formação de Professores da
UERJ. VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-
1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro:
Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009.

166
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de roça e não mais nos serviços de costuras. A mudança é significati-


va. Se, no primeiro período analisado, costureiras representavam 60,19%
do total das escravizadas que tiveram um ofício mencionado nos in-
ventários post mortem de seus senhores, elas passaram a ser 17,40%
a partir de 1850. Por outro lado, as de roça, até a década de 1850, so-
mavam 4,85%, contra 34,95% nos anos posteriores. Se na escravidão
rural as mulheres estavam ligadas a diferentes trabalhos, fosse na casa
grande ou nas plantações, no mundo urbano, trabalhos como quitutei-
ras, vendedoras, amas de leite, possibilitaram maior contato com o mun-
do das letras. Vejamos, então, o que os documentos nos mostram sobre
essa questão.
O Censo de 1872 (CENSO, 1872), um dos mais completos do perí-
odo imperial, nos ajuda a visualizar o quantitativo de homens e mulhe-
res que dominavam os códigos de escrita e leitura. Entre os livres, te-
mos, para o Rio de Janeiro, 69.997 (27,36%) homens e 44.603 (19,29%)
mulheres que sabiam ler e escrever. Os analfabetos somavam 185.809
(72,64%) homens e 189.078 (80,71%) mulheres, a maioria da população.
No município neutro, temos 65.164 (48,67%) homens e 33.992 (36,87%)
mulheres, entre os que dominavam os códigos de escrita. Os analfa-
betos consistiam em 68.714 homens e 58.101 mulheres. As análises
possíveis são múltiplas, mas, mesmo sendo aquela uma sociedade
patriarcal, ter quase 20 por cento de mulheres livres que sabiam ler e
escrever é significativo. Já a diferença entre os analfabetos por gênero
chega a quase 11 mil pessoas, e as mulheres eram a minoria em ambos
os espaços, e a maioria entre os analfabetos.
Escravizados assinalaram presença entre os que sabiam ler e
escrever, de modo que, para o Rio de Janeiro, o documento aponta 79
(0,04%) homens e 28 (0,02%) mulheres. Analfabetos, por sua vez, so-
mavam 162.394 (99,96%) homens e 180.243 (99,98%) mulheres. Para
o município neutro, havia 220 (0,88%) homens e 109 (0,45%) mulheres
com domínio da escrita e leitura bem como 24.666 (99,11%) homens
e 23.944 (99,55%) mulheres consideradas analfabetas (CENSO, 1872).
Efetivamente, o que esses números informam? Se considerarmos
os totais gerais para homens e mulheres, respeitando o recorte jurídico,

167
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

os dados corroboram a leitura e a escrita como parte do mundo da liber-


dade e dos livres, logo, da população branca. Entretanto, ainda que em
quantitativos ínfimos, o número de alfabetizados escravizados não pode
ser considerado insignificante, tendo em vista que o censo provavel-
mente não tenha conseguido alcançar a todos os escravizados, homens
ou mulheres, alfabetizados. Principalmente após a Revolta dos Malês,
em 1835, na cidade de Salvador15, cuja participação de escravizados
que sabiam ler e escrever teria sido como organizadores e principais
atores. Fato é que escravizados, mesmo com a imposição e a proibição
de acesso à instituição escolar, por meio da Lei n. 1 de 1837, citada
anteriormente, criaram formas de acesso ao aprendizado. Romperam,
transgrediram e protagonizaram suas trajetórias.
O fim da escravidão, por meio da Lei Áurea, tornou mais fácil
a inserção de ex-escravizados no mundo dos livres. Para os que viviam
por conta própria nos mundos urbanos, a inclusão poderia ter sido mais
fácil, como aponta a historiografia, mas a exclusão ainda se perpetrava.
Contudo, eles representavam uma pequena parcela na escravidão ur-
bana. Africanos e seus descendentes, outrora escravizados, passaram
a ser cidadãos, mas sem a devida inclusão nos mundos do trabalho e do
letramento, ainda desempenhando, no caso das mulheres negras, ofí-
cios relacionados ao mundo doméstico, principalmente atuando como
domésticas. Portanto, seriam essas pessoas “quase cidadãos”16 no fim
do império e início da República brasileira? A relação entre os ofícios
desempenhados por escravizados e cidadãos pretos e pardos ficara
evidente, uma vez que estavam relacionados às profissões manuais,
que exigissem força física e com os menores salários.
No período posterior à abolição, na qual se iniciava o processo
republicano brasileiro, grupos negros acreditavam na necessidade e na
“responsabilidade de conscientizar a população de ascendência africa-

15 Sobre a Revolta dos Malês, ver: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
16 Discussão contundente acerca do acesso à cidadania por ex-escravizados após a Abolição
pode ser acessada em: CUNHA, Olivia Maria Gomes; GOMES, Flávio dos Santos (orgs).
Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2007.

168
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

na dos benefícios provenientes da ‘instrução’” (GOMES; DOMINGUES,


2003, p. 282). Na primeira república, “a alfabetização era tida como có-
digo de deciframento do mundo e, de acordo com o habitus vigente, ti-
nha o poder de mudar a vida das pessoas. Como símbolo de distinção,
fazia o negro se sentir bem, capaz, orgulhoso de si próprio e conectado
com a gramática da civilização e do mundo moderno” (Idem). Nesse pe-
ríodo histórico, existia a crença de que, por meio da educação, os negros
teriam mobilidade social, poderiam ser respeitados, reconhecidos, ou,
até mesmo, dizimar o preconceito racial. E, voltando os olhos para o ce-
nário presente, no qual ainda vemos se reproduzir esse pensamento,
qual seria o papel da escola, para a ressignificação da visão de mundo
dos diferentes sujeitos que fazem parte da sociedade brasileira de modo
geral, e dos negros, especificamente?
As diferenças históricas perceptíveis pelos diferentes grupos
e movimentos negros17 que surgiram no pós-abolição incentivaram
o surgimento de propostas políticas que pudessem, em alguma medida,
modificar a realidade daquela população. A educação vista e pensada
como grande possibilidade de romper barreiras historicamente constru-
ídas, só entraria na agenda dos movimentos negros após a primeira ba-
talha ter sido, ao menos em parte, vencida, qual seja, a denúncia da não
existência da tão aclamada democracia racial. Isso porque, como plei-
tear igualdade racial sem o reconhecimento da existência do racismo?
Foram décadas para que ao menos se admitisse esse fato. E, eviden-
temente, em um processo de transformação cultural lento, ainda há os
que defendam publicamente ser o Brasil um país sem racismo.

Educação como processo de ressignificações

No novo cenário surgido com a República brasileira, a tentativa


de manutenção da ordem vigente na sociedade anterior foi impositiva.
Não por acaso, vimos, nos tempos atuais, a jovem Kathlen, com quem
iniciei este artigo, mesmo formada em Design, curso superior, não exer-

17 Sobre o Movimento Negro ver: GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes
construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

169
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

cendo o ofício de sua formação, mas trabalhando como vendedora


em uma loja na Zona Sul carioca. Nenhum demérito quanto a isso, pelo
contrário, levando em consideração que se trata de um país que apre-
sentava, segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2021, 13,5 milhões
de desempregados, o que corresponderia a 12,6% do total da população
(IBGE, 2021). Educação, trabalho e renda são correspondentes na so-
ciedade capitalista e, ao analisarmos dados relativos à escolarização
da população negra, de modo geral, e da mulher preta, de modo específi-
co, podemos ratificar a necessidade urgente do desenvolvimento de po-
líticas públicas voltadas para a educação no Brasil.
Os jovens brasileiros, entre 14 e 29 anos, somavam, aproximada-
mente, 50 milhões de pessoas em 2019; destes, 20,2% não concluíram
o Ensino Médio, por abandono ou por nunca o terem frequentado, so-
mando 10,1 milhões de jovens na situação mencionada. Dentro desse
recorte, 58,3% são homens e 41,7%, mulheres. Ao considerarmos a raça
ou a cor, teremos 27,3% brancos e 71,7% pretos (Idem). Impressiona
a distância quantitativa entre jovens pretos e brancos que não têm um
diploma de conclusão da educação básica completa, ou seja, quase
36 milhões são negros, indiscutivelmente a maioria. Elemento igualmen-
te significativo na relação dialógica entre anos de escolarização e em-
pregabilidade é a análise dos dados da pesquisa do IBGE, quanto aos jo-
vens entre 15 e 29 anos, brasileiros, no ano de 2019. Esse grupo somava
46,9 milhões de indivíduos, e destes, 14,2% estudavam e trabalhavam;
22,1%, ao contrário, não estudavam, nem trabalhavam; enquanto 28,1%
estudavam, mas não trabalhavam e 35,6%, diametralmente em situação
oposta, trabalhavam, mas não estudavam.
Para a mesma faixa etária, quando analisamos, tendo por base
o critério de gênero, mulheres somam 27,5% sem estudar, nem traba-
lhar; já entre os homens, temos o percentual de 16,6%. Entre os que so-
mente trabalhavam, são 28,8% de mulheres e 42,3% de homens. No gru-
po daqueles que podiam se dedicar exclusivamente aos estudos, temos
29,9% de mulheres e 26,4% de homens. Se, no final do século XIX, as mu-
lheres, livres ou escravizadas eram minoria no acesso à escolarização,
temos outra realidade no início do século XXI: mulheres são maioria

170
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

no acesso e permanência nas instituições de ensino, contudo, ainda se-


gundo os dados do IBGE, recebem os menores salários, de modo que as
negras (pretas e pardas) permanecem na base da desigualdade de ren-
da no Brasil.
A pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, publicada
pelo IBGE, apresenta dados referentes ao ano de 2018, no qual mulheres
pretas ou pardas receberam em média 44,4% menos do que os homens
brancos. Importa mencionar que estes estão no topo da pirâmide social,
sendo seguidos pelas mulheres brancas, depois pelos homens negros.
As diferenças não param por aí. Em se tratando de cargos de gerên-
cia, pretos e pardos ocupam somente 29,9% e, quanto mais alto o ren-
dimento, menor é o número de pretos e pardos. Ainda no ano de 2018,
a diferença salarial entre pretos e não pretos chegou a 73,9% e, entre
os que possuíam nível superior, a diferença era de 45%. Esse cenário
dos números demonstra que, apesar do acesso ao ensino universitário,
pretos e pardos continuam em desvantagem salarial. Inserindo o ele-
mento gênero, a reflexão racial aponta que as mulheres negras, mesmo
obtendo maior escolarização ao concluir um curso universitário, conti-
nuam na base da pirâmide salarial, recebendo os salários mais baixos
(IBGE, 2018).
A raça, assim como no passado, continua permitindo tecer análi-
ses acerca da relevância de se pensar a interseccionalidade na educa-
ção brasileira, de modo que 17,0% das pessoas brancas trabalhavam
e estudavam, percentual bem maior do que o referente às pessoas
pretas ou pardas (12,4%). O percentual de pessoas brancas apenas tra-
balhando (37,1%) e somente estudando (28,8%) também superou o de
pessoas de cor preta ou parda, 34,6% e 27,7%, respectivamente (IBGE,
2021). Importa observar, como já sublinhamos anteriormente, a relação
dialógica entre anos de escolarização e os mundos do trabalho. Elevar
o nível de instrução e qualificação das mulheres negras pode ser uma
forma de combater a desigualdade educacional brasileira, que ain-
da se mostra expressiva, principalmente entre as mais pobres. Dentro
do contexto econômico desfavorável, com milhões de desempregados,
aumentar a escolaridade das mulheres, ampliando sua qualificação pro-

171
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

fissional, pode tornar maiores as possibilidades de acesso ao emprego


e à igualdade salarial.
Mas a condição da jovem Kathlen Romeu, dentro da faixa etária
dos 15 a 29 anos, abaliza trajetórias de mulheres negras na socieda-
de brasileira. Estaríamos, nós negras, “na lata de lixo da sociedade bra-
sileira, pois assim determina a lógica da dominação”, como afirmara
Lélia Gonzalez? Afinal, mesmo quando uma mulher preta rompe bar-
reiras construídas historicamente e adentra uma universidade, enfren-
tará outros desafios, como permanecer nesse espaço, por exemplo.
Uma vez alcançada a formação universitária, as dificuldades permane-
cem, ao tentar se inserir no mercado de trabalho. Quais seriam os ele-
mentos vigentes a impossibilitar mulheres negras de exercerem seu ofí-
cio por formação? E quando ocupam vaga destinada à sua profissão,
por que as promoções e os postos de liderança com os mais altos salá-
rios ficam distantes da sua realidade?
Se, no século XX, as diferentes organizações negras centraram
esforços na alfabetização e, posteriormente, no ensino universitário,
no início do século XXI, uma vez tendo acesso e concluindo formação
de nível superior, a mulher, preta e pobre, ainda não ocupa os espaços
de poder, no que tange aos diferentes cargos no universo do trabalho.
Ainda somos a maioria das trabalhadoras domésticas, minoria entre re-
presentantes política e entre as professoras universitárias bem como
nos cargos de liderança, conforme destacamos acima. Importa avultar
as diferentes e plurais ações dos grupos negros da sociedade brasileira,
para garantir o acesso à escolarização, chegando às políticas de cotas
raciais nas universidades.
A educação certamente não pode resolver todas as questões re-
lativas ao racismo na sociedade brasileira, mas, evidentemente, ajuda
no processo, ao se afirmar antirracista. Questão nada fácil. Afinal, a co-
munidade escolar deve abraçar tal projeto, caso contrário, não avança-
remos. Isso porque as leis, que resultam da luta do movimento negro
por décadas, ao serem promulgadas, não garantem sua efetivação
na prática escolar, ao esbarrarem em resistências de professores, edu-
candos, pais e funcionários. Ora, numa sociedade plural e democrática,

172
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

acredito que seja normal a existência de pensamentos e posicionamen-


tos políticos divergentes, mas quando falamos em crime – e o racismo
é crime inafiançável, a partir da promulgação da Constituição Federal
de 1988, pela Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989 – por que não entra-
mos em consenso sobre a questão do negro, de modo geral, e da mulher
negra, especificamente? Quais os impeditivos de se pensar a mulher
preta e parda em ofícios que não sejam os ligados à “casa grande” ou a
atividades domésticas?
A obrigatoriedade do ensino da história da África e da cultura afro-
descendente, posta por meio da Lei n. 10.639, e fruto de anos de luta,
apresenta-se como basilar no processo de ressignificações de pensa-
mentos amalgamados, de culturas racistas e visões de mundo negati-
vas acerca da África e dos seus descendentes. Conhecer histórias de re-
sistência, para além do quilombo de palmares18, comumente presente
nos diferentes livros didáticos da educação básica, faz-se premente,
tal como apresentar trajetórias de mulheres negras que transgrediram,
ressignificaram suas culturas e religiosidades, línguas, laços familiares
e foram protagonistas de suas próprias histórias.
Histórias de intelectuais negras, nesse processo de ressignifica-
ções, tornam-se capitais, tendo em vista que são minoria nas represen-
tações dos materiais didáticos e, quando lá estão, as vemos em conte-
údos curriculares quase exclusivos: colonização, escravidão e abolição.
Mas essas mulheres que produziam e reproduziam aquela sociedade
deixaram de existir? Os censos do IBGE insistem em demonstrar que elas
são maioria. As imagens de mulheres negras no tronco, no pelourinho
ou navios negreiros devem continuar a ser mostradas? Certamente, afi-
nal, são parte de uma história que não podemos esquecer. Todavia, his-
tórias do seu protagonismo também devem compor os materiais didáti-
cos. A historiografia da escravidão, desde a década de 1980, apresenta
pesquisas significativas sobre mulheres negras na sociedade escravista
e no pós-abolição. Nesse sentido, por que essas pesquisas ainda não en-
cheram as salas de aula das diversas escolas na educação básica?
18 Importante pesquisa e reflexão sobre quilombos pode ser lida em: GOMES, Flávio dos
Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

173
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Dois grandes nomes vêm à mente, quando pensamos em inte-


lectuais negras que devem constar nos currículos da educação básica.
Na verdade, temos muitas outras, mas o espaço aqui proposto nos im-
põe escolhas. Para o século XIX, recorte temporal em que inicio minhas
reflexões, temos Maria Firmina dos Reis. Primeira romancista negra bra-
sileira e antiescravista19. Nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 11 de
outubro de 1825, filha de Leonor Felipe dos Reis e de João Pedro Esteves.
Mudou-se, aos cinco anos de idade, para a pequena vila de Guimarães
(SILVA, 2017), local onde construiu sua identidade, trajetória e história.
A primeira professora concursada de sua cidade é considerada a primei-
ra romancista brasileira, com sua obra Ursula (1859), na qual apresentou
visão dissonante da então sociedade escravista. Suas descrições acer-
ca dos escravizados, e até mesmo da África, apresentam a perspectiva
peculiar de uma mulher negra que transgrediu, ao romper com a visão
de mundo dominante do período. Não foi limitada pela aposentadoria,
ao contrário, criou uma escola mista e gratuita para atender aos des-
tituídos pelo Estado brasileiro do direito à alfabetização. Essa mulher,
preta e oriunda das classes não abastadas, demonstra a capacidade
intelectual, antes negada pela medicina do século XIX, e, principalmente,
a envergadura do alcance de suas potencialidades, que iam muito além
das funções domésticas.
Outra mulher negra, que, neste artigo, nos serve de referência, foi pro-
tagonista de sua história. Lélia Gonzalez nasceu de uma mulher indíge-
na, empregada doméstica, analfabeta, Urcinda Serafim de Almeida, e de
um homem negro, operário, Acácio Joaquim de Almeida. Nasceu em fe-
vereiro de 1935, período em que empregadas domésticas negras “eram
tratadas como mucama (antiga escrava doméstica)”; nessa mesma “si-
tuação enquadravam-se as cozinheiras, as lavadeiras e as amas de lei-
te”. Embora no ano do seu nascimento “as mulheres tivessem acabado
de conquistar o direito ao voto, seu acesso à escola e ao mercado de tra-
balho ainda era muito precário” (RATTS; RIOS, 2010, p. 23). Percebemos
assim, tentativa de manutenção do status quo da sociedade escravista,

19 Sobre essa perspectiva, ver: SILVA, Régia Agostinho da. Maria Firmina dos Reis e sua escri-
ta antiescravista. Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS), São Luís–v. 3 – n.
2. jul./dez. 2017.

174
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

como apontamos antes. Penúltima dos 18 filhos, teve a oportunidade


de estudar, quando seu irmão se tornou jogador em um time de futebol
carioca. A mudança de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro apresentou
possibilidades plurais20. Seu irmão Jaime de Almeida, jogador de futebol
do Clube Atlético Mineiro, foi convidado para jogar no Clube de Regatas
do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. O início como babá não impe-
diu que Lélia continuasse estudando, assim foi aluna do Pedro II, onde
cursou o Científico (antiga modalidade do atual Ensino Médio), e sua
mobilidade social ocorreu por meio da educação. Concluiu bacharelado
e licenciatura em História e Geografia, no ano de 1958, na Universidade
Estadual da Guanabara, atual UERJ” (RATTS; RIOS, 2010, p. 40). Tornou-
se professora universitária em 1963, atuando em instituições públicas
e privadas. Sua trajetória de menina pobre a professora universitária
não ocorreu sem os “jogos das relações raciais”, mas Lélia atuou como
educadora e militante, de modo que sua atuação se revela importante
na ressignificação do currículo da escola básica.

***

Pelo até aqui exposto, tentei demonstrar a relevância do papel


da mulher negra na construção da sociedade brasileira, da colonização
ao pós-abolição, no sentido de lançar luz sobre questões econômicas,
políticas e culturais. Se, durante a sociedade escravocrata, a mulher ne-
gra rompeu barreiras para acessar os códigos de escrita e de leitura,
no pós-abolição, a sua luta continua. As leis da república brasileira ga-
rantem o acesso à educação básica, mas e quanto a sua permanência?
O que também pode ser pensado, no que tange ao acesso à educação
universitária. Certamente, foi um passo importante. Contudo, mulheres
negras ainda permanecem recebendo salários menores do que homens
e também do que mulheres brancas. Sobre as mulheres pretas e par-
das, mesmo atingindo “níveis mais altos de escolaridade, o que se ob-
serva é que, apesar de sua capacitação, a seleção racial se mantém”

20 Sobre a biografia de Lélia Gonzalez ver: RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São
Paulo: Selo Negro, 2010.

175
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(GONZALEZ, 2020, p. 57), e, assim como a jovem Kathlen, não realizam


o ofício para o qual foram formadas.
Nesse sentido, Maria Firmina dos Reis e Lélia Gonzalez, mulheres
negras que romperam paradigmas sociais, uma no século XIX, durante
a escravidão, e a outra no século XX, no pós-abolição, ambas por meio
do domínio de práticas de letramento, moveram barreiras, não sem so-
frerem violências distintas, por terem a pele preta – apesar de “a histó-
ria oficial, assim como o discurso pedagógico internalizado por nossas
crianças, fala do brasileiro como um ser ‘cordial’ e afirma que a história
do nosso povo é um modelo de soluções pacíficas para todas as ten-
sões ou conflitos que nela tenham surgido” (Ibidem, p. 50).
Na verdade, as pesquisas têm revelado quão significativas são as
imagens lidas pelos nossos alunos em sala de aula, e que, em muitos
dos casos, permanecem até a maturidade. Ressignificar os olhares
acerca dos corpos negros femininos perpassa a sala de aula, pelas
imagens e textos em que mulheres pretas possam ser vistas para além
de diaristas, domésticas, em trabalhos intermitentes, mulatas (hiper se-
xualizadas) ou em quaisquer outras profissões de menor qualificação
e que exijam menor escolarização. Esses fatores incidem diretamente
em “baixíssimas condições de vida em termos de habitação, saúde, edu-
cação, etc.” (GONZALEZ, 2020, p. 58).
Conhecer o passado nos permite compreender o presente,
mas também possibilita imaginar e trabalhar em prol de um futuro mais
igualitário. As tramas da escravidão produziram uma sociedade desi-
gual e racista, em que mulheres negras e pobres sofrem um processo
de tríplice discriminação, segundo Gonzalez, mas não ficaram indife-
rentes diante dos fatos. Negros e negras foram protagonistas das suas
histórias, cujas memórias nos chegam por meio de suas resistências
e sobrevivências. Ser mulher, preta e pobre, na sociedade brasileira,
ainda hoje, constitui luta cotidiana para existir em melhores condições
de educação, saúde e economia.

176
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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179
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Educação para sexualidade:


o aprendizado como valor

Nathália Diórgenes Ferreira Lima1

Introdução

O campo do exercício dos direitos sexuais e dos direitos repro-


dutivos é permeado por disputas, tensões e falhas. Na verdade, esse
conjunto de direitos é construído em contraste a uma rede de injustiças
reprodutivas que constituem a manifestação da sexualidade e da ca-
pacidade reprodutiva das sujeitas e sujeitos. Os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos despontam com intensidade na década de 1990
a partir das Conferências do Cairo (1994) e de Beijing (1995). Esses
dois momentos se dedicaram a discutir valores a nível mundial sobre
liberdade, autonomia e capacidade reprodutiva. Momento crucial para
afirmar que a sexualidade não se reduz à reprodução. Assim, os direitos
reprodutivos remetem aos princípios de igualdade e de liberdade na es-
fera da procriação; os direitos sexuais à vivência livre e igualitária da se-
xualidade. Ou seja, sexualidade e reprodução estão inseridas na esfera
da democracia e a positivação dos direitos nessas dimensões é salutar
para a democratização da vida social (ÁVILA, 2003).

1 Doutora em Psicologia (UFPE)

181
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Tanto a Plataforma do Cairo quanto a de Beijing relacionam a au-


tonomia, a liberdade e o consentimento no exercício da sexualidade e da
reprodução com a informação para realizar decisões nestas esferas.
Ousamos afirmar ser impossível o exercício de tais direitos sem as de-
vidas práticas pedagógicas inerentes a esse processo. Historicamente,
as mulheres passaram por diversos processos de alienação do seu
próprio corpo (FOUCAULT, 2006), nos quais a invisibilidade dos seus
cuidados, apagamento de suas práticas e de seus saberes foram de-
terminantes para esta alienação. Por exemplo, o advento da medicina
moderna apartou as mulheres do protagonismo dos seus partos impon-
do um modelo medicalizante ancorado na dor, sofrimento e poder-mé-
dico. Esse caminho só foi possível por meio de práticas pedagógicas
subalternizantes empreendidas pelo racismo, relações patriarcais e pro-
jeto colonial do poder, do saber e do ser (MALDONADO-TORRES, 2019)
em relação ao corpo das meninas e mulheres.
Nesse contexto, é necessário resgatar a centralidade da infor-
mação com qualidade para os direitos sexuais e direitos reprodutivos
das mulheres. A educação sexual é condição básica para a retomada
do protagonismo das mulheres em relação aos seus corpos e ao en-
frentamento das injustiças reprodutivas. Entretanto, a educação precisa
ser descolonizada e ir além das prescrições formais. Por isso, tomamos
aqui educação sexual no sentido de educação para a sexualidade, des-
tacando o aprendizado como um processo complexo e multidimensio-
nal. A educação libertadora articula “a vontade de saber e a vontade
vir-a-ser” (HOOKS, 2017, p. 32) respeitando o desenvolvimento dos su-
jeitos e reconhecendo os atravessamentos de raça, classe, gênero, ge-
ração, território. Partindo da educação engajada de bell hooks (2017)
e a necessidade de desenvolvimento de pedagogias em sintonia com a
multiplicidade de sujeitos de Miguel Arroyo (2014), empreendemos crí-
ticas aos espaços formais de planejamento familiar e educação sexual.
As reflexões que aqui se seguem são frutos de inquietações
que despontaram durante o trabalho de campo da pesquisa de douto-

182
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

rado2, no qual nos dedicamos a ouvir narrativas sobre aborto que me


conduziram a diversas outras narrativas sobre violências, esterilização,
poder-médico, planejamento familiar e educação sexual. A observação
participante no hospital geral em uma cidade do sertão pernambucano
foi a estratégia metodológica privilegiada. Nos 14 meses de pesquisa,
entre 2018 e 2019, acompanhamos o planejamento familiar que acon-
tecia duas vezes por mês no hospital. Neste texto discutimos sobre
as práticas pedagógicas empreendidas neste serviço, ressaltando
as experiências das mulheres jovens com o objetivo de compreender
as práticas pedagógicas relacionadas à educação sexual em um serviço
institucional.

Raça, classe e gênero: a teia de intersecções na sexualidade

A sexualidade é uma dimensão fundamental da vida humana,


por meio da qual expressamos como sentimos e manifestamos desejo
e afetos. Uma forma pela qual conduzimos as nossas relações com as
outras pessoas e com nós mesmos. Longe de representar uma pretensa
naturalidade, a sexualidade expressa um conjunto de comportamentos
e práticas sociais construídas por diversas relações de poder.
Osmundo Pinho (2007), ao analisar as relações afetivo-sexuais
entre jovens em uma periferia, destaca o funcionamento dos sistemas
de gênero e da racialização das relações. Jovens vivenciam suas sexu-
alidades e as constroem a partir de uma tensão entre as relações so-
ciais que estão inseridos e a forma como vão processando as regras
sociais, ora adequando-se a elas, ora cedendo e as reiterando. São su-
jeitos de gênero em contextos empobrecidos e racializados experien-
ciando os limites e possibilidades da construção de suas sexualidades.
“Entregues à própria sorte no mundo das regras sempre em mutação,
os sujeitos padecem vulneráveis aos próprios apetites” (PINHO, 2007,
p. 144).

2 A tese intitulada “Entre Silêncios, Interdições e Pessoalidades: uma análise racial das his-
tórias sobre aborto no sertão” foi defendida em 2020 no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, sob a orientação da Profª Drª Rosineide Lourdes Meira Cordeiro e aprovada pelo
Comitê de ética em 2018, CAAE n° 85980318.7.0000.5208.

183
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Assim, pensar juventudes e sexualidades é necessariamente


pensar em uma teia interseccional de hierarquias sociais. De acordo
com Kimberlé Crenshaw (2004), a interseccionalidade é uma categoria
que permite reconhecer a atuação simultânea de diversas estruturas
de discriminação; uma vez que possibilita superar a concepção de que
as opressões afetam os indivíduos em uma soma mecânica. Tal catego-
ria qualifica o debate ao abordar a subordinação estrutural das mulheres
negras como um processo resultante da confluência entre raça, gêne-
ro, classe e globalização. A interseccionalidade propicia a ampliação
das categorias de raça e gênero e aborda a diferença na própria diferen-
ça, visibilizando contextos de opressão específicos.
Assim, partimos do pressuposto de que os sistemas de gênero
são racializados. A racialização do gênero é importante para compreen-
der como as políticas sexuais são articuladas a partir da interseccionali-
dade dos marcadores sociais. Os sujeitos experimentam sua sexualida-
de, gênero e geração através da raça. As políticas sexuais estruturadas
no racismo patriarcal prescindem de um nó indissociável entre raça, gê-
nero e classe de tal forma que torna a conceituação dessas categorias
apartadas improvável (COLECTIVA DEL RÍO COMBAHEE, 1988).
Analisar a informação sobre sexualidade de mulheres jovens
desde esse caminho requer atenção aos contextos de especificidades.
Como nos alude Lélia Gonzalez (1983), o corpo das mulheres negras
possui uma trajetória histórica social marcada pela ideologia escravo-
crata, violência colonial, estereótipos e hipersexualização. Ao relacionar
com contextos e territórios empobrecidos, encontramos reatualizações
modernas dessas violências costurando invisibilidades e naturaliza-
ções. Os estereótipos escravocratas como mãe preta, ama de leite, mu-
cama e dama de companhia, sempre dóceis e passivas, desempenha-
ram um papel estratégico nas diferentes visões acerca da mulher negra
na sociedade atual (CARNEIRO, 2019).
Qualificando o olhar da diferença na construção dos siste-
mas de gênero racializado, consideramos interessante a perspectiva
de Teresita de Barbieri (1993) acerca das etapas da vida: “A dominação
dos homens sobre as mulheres nem sempre é igual ao longo das etapas

184
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

da vida socialmente definidas” (BARBIERI, 1993, p. 8). Nas diversas eta-


pas do ciclo de vida, as hierarquias de gênero têm mais ou menos força
e intensidade normativa. Como a reprodução é um elemento importante
na perspectiva de gênero, as etapas da vida em que homens e mulhe-
res possuem maior capacidade reprodutiva se configuram como peças-
-chave para a compreensão do modo como se exerce o poder e as repre-
sentações imaginárias que respaldam tal exercício.
Apoiados nesses pressupostos é possível pensar que as relações
de gênero que incidem na juventude possuem uma lógica específica,
haja vista que esta etapa se edifica nas figuras de mãe-esposa-dona
de casa, cruciais para analisar a esfera da reprodução. O controle da ca-
pacidade reprodutiva das mulheres se faz mais fortemente nessa etapa
da vida. Segundo Barbieri (1993), os deveres, as normas de conduta,
as capacidades de decisão e autonomia apresentam relevos diferencia-
dos na juventude.
Apesar de apresentar uma discussão fundamental acerca
da intersecção entre gênero, capacidade reprodutiva e juventude, Barbieri
não avança no que tange a análise racial. As imagens de controle que or-
bitam em torno das mulheres negras não se cristalizam na mãe-espo-
sa-dona de casa. A mulata carnavalesca, prostituta, empregada domés-
tica, auxiliar de serviços gerais, as usuárias da assistência social, entre
outras imagens de controle estereotipadas agem em conjunto de modo
multifacetado para justificar o lugar de subordinação das mulheres ne-
gras. A política sexual que as atinge é a da hipersexualização, afetando
diretamente como vivenciam o exercício dos seus direitos sexuais e di-
reitos reprodutivos, ou seja, a partir de um contexto de injustiças sociais.
A violência sexual colonial, conforme Sueli Carneiro (2003), constitui
as hierarquias de gênero e raça, o que possibilita a erotização das desi-
gualdades entre homens e mulheres, bem como a romantização da vio-
lência sexual. O mito da fragilidade feminina não encontra repouso so-
bre a vida das mulheres negras, pois essas nunca foram consideradas
frágeis, tampouco rainhas do lar.
Ressaltamos que esses pressupostos estão presentes quando
analisamos a vivência da sexualidade por mulheres jovens. Ao aprender-

185
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

mos sobre sexualidade estamos aprendendo gradualmente sobre os jo-


gos de poder e as regras morais atravessadas por gênero, raça e classe
que constituem o mundo que vivemos. Educação sexual não se reduz
a saber utilizar métodos contraceptivos e quais infecções sexualmen-
te transmissíveis devemos evitar. Educação sexual é, sobretudo, apren-
der sobre autonomia, liberdade e decisões subsidiadas com as devidas
informações.
A gestão da vida sexual e reprodutiva em todas as suas etapas
“não se trata de uma experiência linear, racional, facilmente adminis-
trável; ao contrário, envolve emoções, desejos, determinação e relação
de poder entre os gêneros” (BRANDÃO, 2009, p. 1070). Segundo Maria
Luiza Heilborn et al. (2006), o exercício da sexualidade na juventude
se caracteriza pelo aprendizado gradual das regras que organizam os re-
lacionamentos entre os casais heterossexuais, como as posições dife-
renciadas no campo da fecundidade, na divisão do trabalho reprodutivo.
Nesse contexto, as desigualdades de gênero se exercem de maneira
mais contundente na capacidade reprodutiva das jovens, favorecendo
a supremacia masculina. As jovens têm pouca autonomia diante do par-
ceiro. Se estes se negam a usar preservativo, geralmente essa vontade
é acatada. Os parceiros não são implicados na contracepção.
A contracepção, por exemplo, é comprometida por diversos fato-
res, tais como: a mudança de método, o uso irregular, a pílula do dia se-
guinte, o uso de álcool e possivelmente a utilização ou o armazenamento
incorreto da camisinha, que aumenta as possibilidades de danos ao pre-
servativo na hora do uso. Elaine Brandão (2009) indica que a contracep-
ção juvenil se constitui como um desafio, pois como estando no âmbito
da sexualidade, é configurada por meio de classe, raça e gênero, que di-
ficultam e/ou facilitam o acesso aos métodos contraceptivos e sua as-
similação no cotidiano juvenil. Segundo a autora, há uma diversidade
de razões alegadas pelas/os jovens para justificar as irregularidades,
interrupções ou troca de métodos contraceptivos. Estas variam desde
a falta de uma rotina sexual, o que pressupõe um não uso rotineiro de al-
guns métodos até a falha do método em si. O contexto familiar emerge
como um elemento importante, pois, algumas jovens temem que suas

186
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

famílias descubram que já iniciaram a vida sexual. Isso compromete


a procura pelos métodos nos serviços de saúde, bem como a gestão
da contracepção dentro de casa, pois muitos jovens residem com a fa-
mília (BRANDÃO, 2009). Tal fato demonstra que a família não é o lócus
privilegiado para ter acesso a informações sobre sexo e prevenção.
Cristina Bruschini (1993) elucida que a transmissão de hábitos,
ideias, costumes, valores e padrões de comportamentos faz parte
da função ideológica da família, juntamente com a função de socializa-
ção primária das crianças, pois se configura como núcleo de procriação.
A família é também uma esfera relevante para a reprodução da vida so-
cial, pois é entre a família que acontece o trabalho reprodutivo.
A família é uma instituição que apresenta múltiplos modelos,
que se configura ao mesmo tempo como um espaço do acolhimento,
da confiança e do afeto, mas também como um espaço de reprodução
de desigualdade, de conflitos, divergências e violências. A família pode
também ser o espaço do medo e da não confiança, no qual falta diálogo
necessário entre pais, mães, filhos e filhas. Um espaço em que alguns
assuntos são permitidos e outros não. Em paralelo, a família ainda é um
dos mais importantes núcleos para a organização da vida de jovens,
sendo um espaço importante de aprendizados ou assimilações sobre
a sexualidade quase sempre interditada.
Entretanto, a dificuldade de diálogo sobre sexo e sexualidade
não está presente apenas na família. Diversas instituições sociais –
como a igreja, escolas e os serviços de saúde pública – têm visões
moralistas que restringem a discussão sobre sexo e prevenção a infor-
mações desconectas e esporádicas. Nathália Lima (2014), em estudo
sobre aborto realizado com mulheres jovens negras e brancas, de clas-
ses médias e populares, constatou que as gravidezes imprevistas que ti-
veram como desfecho o aborto foram resultado da omissão de diversas
instituições no que concerne a orientações sobre sexualidade. As jovens
alegaram viver um verdadeiro tabu dentro das famílias sobre tais ques-
tões, bem como não conseguirem acessar nenhum outro espaço sobre
educação sexual. Os serviços de saúde que procuraram para orientação
sobre prevenção de gestação se resumiram a fornecer o método con-

187
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

traceptivo sem fazer nenhuma discussão sobre o uso desses métodos,


os estilos de vida das jovens e o empoderamento frente às desigualda-
des de gênero.
As dificuldades de negociação com o parceiro no uso dos preser-
vativos de barreira (HEILBORN et. al., 2006) é uma realidade entre as jo-
vens. Elas acabam “cedendo” aos pedidos desses parceiros sem con-
dições de fazer acordos dentro de relações hierarquizadas. Wendell
Ferrari, Simone Peres e Marcos Nascimento (2018) discutiram o tema
da iniciação sexual na adolescência, com foco nas narrativas de dez jo-
vens, com idade entre 15 e 17 anos, com experiência de aborto induzido,
moradoras de uma favela do Rio de Janeiro. Essas jovens estavam de-
vidamente matriculadas na escola, moravam com a família e a maioria
declarou-se negra (apenas uma branca). Apesar do estudo não analisar
seus achados de campo a partir da discussão racial, a pesquisa propor-
ciona reflexões importantes sobre juventude, sexualidade, gênero, raça
e classe. O primeiro sexo se deu entre 11 e 15 em sua maioria com par-
ceiros mais velhos. Das dez jovens, sete transaram a primeira vez com
respectivos namorados. A maioria relatou pressão do parceiro para fa-
zer sexo com penetração. Alguns relatos demonstram violência e cha-
ma atenção um relato de uma menina de 12 que foi pressionada pelo
parceiro (aqui entendido como agressor) de 42 anos para fazer sexo e
“provar a virgindade”. Ao mesmo tempo que aprendem o exercício da se-
xualidade, as meninas aprendem também sobre a violência que consti-
tui a experiência de ser mulher.
O aprendizado do uso dos métodos contraceptivos se deu entre
12 e 14 anos. As meninas relataram o uso de uma série de métodos.
Entretanto, a escola e a família não são citadas como alternativa para
obtenção de informações. As adolescentes recorreram à internet para
obter as informações contraceptivas que necessitavam. As autoras
destacam a diferença de idade entre as jovens e os parceiros, sendo
naturalizado pelas jovens, pois esses homens têm mais experiência.
Além de estar associado ao aborto induzido entre jovens, a relação afe-
tiva sexual com parceiros bem mais velhos favorece a desigualdade

188
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de gênero, bem como dificulta as negociações e a autonomia na tomada


de decisões.
As jovens enfatizaram que, ao longo da trajetória sexual, os parcei-
ros se recusavam a usar o preservativo masculino. A insistência dos ho-
mens era difícil de driblar e o sexo desprotegido acabou se tornando
rotineiro (FERRARI; PAES; NASCIMENTO, 2018). Soma-se a isso o fato
de não obterem informações contraceptivas por meio das instituições
que deveriam acolher suas demandas, como a escola, os postos de saú-
de e a família, como dito anteriormente. Assim, a gravidez imprevista
é uma realidade entre mulheres jovens em uma sociedade que se recusa
a discutir educação sexual, direitos, relações de gênero e planejamento
reprodutivo.
Além da omissão da sociedade no que tange ao debate sobre con-
traceptivos com jovens, há a violência doméstica contra as mulheres.
Ferrari, Paes e Nascimento (2018) discutiram como de modo pretensa-
mente sutil os homens, em sua maioria mais velhos, se recusavam a uti-
lizar o preservativo durante o sexo desrespeitando a autonomia repro-
dutiva das jovens. Entretanto, Silvia Guimarães, Deusy Vieira Almeida,
Rosamaria Carneiro (2018) aprofundaram o entrelaçamento entre mé-
todos contraceptivos e violência doméstica, especificamente sexual.
Ao analisar o aborto a partir da história de vida de uma mulher negra
(declarou-se parda) que recorreu à prática na juventude, encontraram
uma gravidez imprevista resultado da violência que ela vivenciava: o par-
ceiro a proibia de tomar contraceptivo sob ameaças de espancá-la caso
ela não obedecesse.
A trajetória sexual e reprodutiva de meninas e mulheres é marca-
da por omissões, negligências e violências. Escolhas sexuais e repro-
dutivas só podem ser realizadas com autonomia em contextos de res-
peito aos direitos fundamentais. O aprendizado da sexualidade requer
práticas pedagógicas que fomentem a criticidade e autodeterminação
das sujeitas em relação a suas próprias vidas. Nesse ínterim, educar
para a sexualidade por meio de pedagogias emancipatórias é urgente.

189
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A educação para a sexualidade é aprender a transgredir

A educação sexual pode ser compreendida a partir da interface


entre dois principais campos: a educação e a saúde. Parto do princípio
de que a educação é um processo que não se restringe às instituições
de educação formal, como escolas, faculdades e demais estabeleci-
mentos de ensino. A educação como processo de encorajamento pode
e deve permear as nossas ações coletivas, materializando prática peda-
gógicas que rompam com silêncios e subalternidades.
Se olharmos para a educação sexual dentro das instâncias for-
mais, veremos um campo histórico de tensões e disputas que não cabe
aqui serem esmiuçados. Entretanto, é importante destacar que os jogos
políticos que circundam o campo da educação sexual são permeados
por uma moral conservadora e religiosa muito bem consolidada. A mo-
ralização das pautas políticas traduz o ataque ao Estado Laico e o reco-
nhecimento da diversidade. O resultado desse processo é a hegemonia
de práticas pedagógicas fragmentadas e alienantes, haja vista a inter-
dição do diálogo sobre corpo, sexualidade e direitos dentro do próprio
Plano Nacional de Educação 2014-2024, no qual foi suprimido o trecho
que abordava a igualdade de orientação sexual (AIRES, 2021).
Em 2011, um conjunto de materiais denominado Escola
sem Homofobia, que integrava o Programa Brasil sem Homofobia,
foi duramente atacado pelas bancadas religiosas e chamado pejorativa-
mente de Kit Gay. A pressão pública, sobretudo de grupos conservado-
res, foi tamanha que a então presidenta Dilma Rousseff recuou na imple-
mentação do programa. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro requisitou
o recolhimento das cadernetas de saúde do adolescente que continham
informações sobre prevenção, gravidez, ISTs e violências. Essa decisão
anunciava a política de abstinência como informação sexual para ado-
lescentes adotada pelo Governo Federal.
De fato, a relação entre escola e o processo de aprendizagem so-
bre sexualidade é permeada por ausências e contradições. Tal omissão
coletiva é parte de uma política conservadora que serve para a manu-

190
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tenção das desigualdades de gênero, LGBTFobia, violências sexuais, ex-


ploração sexual, negação da autonomia dos corpos (QUIRINO; ROCHA,
2015; RUSSO; ARREGUY, 2015). Diversas instituições participam desse
processo: escolas, serviços de saúde, igrejas, meios de comunicação.
O pacto coletivo em torno da desmoralização da educação sexual re-
sulta em uma série de desigualdades e violências, sendo parte delas
já retratadas no tópico anterior.
Assim, é preciso, dentre outros elementos, repensar as práticas
pedagógicas implementadas em diversas instituições no que tange
às informações em relação à sexualidade. Em nossa sociedade ex-
pomos muito o sexo, mas não discutimos sexualidades. Há um jogo
de contradições em torno desse campo, no qual práticas pedagógicas
repressivas e práticas pedagógicas afirmativas disputam narrativas e se
materializam nas instituições (ARROYO, 2014).
Para compreender as práticas pedagógicas repressivas partimos
de Michel Foucault (2006). A repressão acerca do sexo articula poder,
saber e sexualidade de forma fundamental. Então, é pelo sexo e sexua-
lidade que o exercício do poder também se institui. A repressão do sexo
é essencialmente política, não um mero acaso de um moralismo nas-
cente. Seguindo Foucault (2006, p. 10), “a repressão funciona, decerto,
como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção
ao silêncio, afirmação da inexistência e, consequentemente, constata-
ção de que em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para
saber”.
O pacto de silêncio em torno da sexualidade cria uma moral hege-
mônica que articula intimamente o exercício da sexualidade à reprodu-
ção e permite tanto a naturalização da violência quanto a marginaliza-
ção das sexualidades dissidentes. As práticas pedagógicas repressivas
servem para capilarizar os processos de opressão (QUIRINO; ROCHA,
2015; RUSSO; ARREGUY, 2015): as meninas não aprendem sobre violên-
cia; não conseguem negociar métodos contraceptivos; não vivenciam
as diversas formas de expressar prazer e desejo; não conseguem elabo-
rar estratégias de enfrentamento a hiperssexualização dos seus corpos;
não realizam escolhas informadas sobre a sua capacidade reprodutiva.

191
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Ao fim, os discursos de interdição à educação sexual servem para a ma-


nutenção das desigualdades de gênero e raça que recaem com mais
intensidade sobre as mulheres jovens.
Nesse cenário, a informação tem um destaque importante. É uma
peça-chave no processo de educação para sexualidade. Entretanto, a in-
formação não pode ser encarada como um conjunto de conhecimen-
tos transmitidos de modo mecânico e fragmentado, que não reconhe-
cem os saberes que os sujeitos produziram até aquele momento, suas
crenças, suas trajetórias de vida, seus contextos sociais e econômicos.
Um exemplo importante são as informações transmitidas para as mu-
lheres sobre métodos contraceptivos. É comum acusarem as mulheres
que se depararam com uma gravidez imprevista e decidirem pelo aborto
de pessoas que “não se cuidaram”, não procuraram métodos contracep-
tivos. Essa não é bem a realidade. As mulheres utilizam algum método
contraceptivo, mas de forma irregular ou utilizam métodos que não con-
dizem com seus contextos de vida. As mulheres trabalhadoras precisam
trabalhar mais de 8h por dia, utilizar um transporte precário, fazer longos
deslocamentos entre a residência e o trabalho, realizar todo trabalho
reprodutivo sozinha e ainda ser a única responsável pela contracepção.
Para essas mulheres não cabem alguns tipos de métodos contracep-
tivos e informações precárias não irão fazer diferença em suas vidas.
Ressalto que a desinformação não ocorre em um ponto específico
da vida das mulheres, mas faz parte de toda trajetória sexual e reprodu-
tiva de suas vidas.

Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o ape-


go à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de
mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana, nossa
capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente, as-
sim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias
de injustiça (HOOKS, 2017, p. 45).

O controle pedagógico em torno do corpo das mulheres é estra-


tégico para a manutenção das desigualdades de gênero e raça, como
já mencionado anteriormente. Assim, a pedagogia engajada ensinada

192
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

por hooks (2017) é um contraponto importante a esse processo ide-


ológico. Ensinar a partir das vivências das pessoas, fornecendo sub-
sídios para romper com as barreiras de gênero, de classes e raciais.
Práticas pedagógicas que não sirvam a uma ampla gama de sujeitos
e que não se conectem com suas vidas são subalternizantes e agem
como tutela e interdições. Os saberes estão além das instituições for-
mais de educação, muitas vezes, inclusive fora delas. O exercício para
ouvir e reconhecer é essencial para os agentes que estão em campos
responsáveis pela educação sexual.
Arroyo (2014) chama atenção para as outras pedagogias prati-
cadas pelos sujeitos subalternos. A partir do campo dos movimentos
sociais, diversos grupos questionaram a forma como o conhecimento
era produzido e repassado. Qual a legitimidade das práticas pedagógi-
cas que são hegemônicas? Elas servem para todos os sujeitos? Como,
por exemplo, podemos pensar pedagogias para a população negra his-
toricamente construída como o outro e colocada na periferia da huma-
nidade? Para outros sujeitos, outras pedagogias (ARROYO, 2014). É a
partir de campo que tomamos emprestado a concepção de pedagogias
afirmativas para pensar a educação para sexualidade.
De acordo com Arroyo (2014), pedagogias afirmativas presen-
tificam a pluralidade dos sujeitos, incomoda e desestabiliza as práti-
cas pedagógicas tradicionais. É um processo para construir saberes
que emancipam, visibilizando experiências diversas e instrumentalizan-
do os/as sujeitos/as no questionamento às diversas formas de opres-
são. Tais pedagogias contam com três traços principais, segundo
Arroyo (2014). O primeiro diz respeito à quebra do silenciamento. Essas
pedagogias não são ocultas e disputam de modo aberto a cena política,
forçam o campo discursivo com suas estéticas, formas de abordagem
e conteúdo. Fazem-se presentes. O segundo traço é serem coletivas.
Elas pronunciam a potencialidade coletiva de grupos historicamente
marginalizados, evidenciando a radicalidade do saber que é produzido
em comunidade e quais ações coletivas podem ser desmembradas des-
se processo. O terceiro traço é que essas pedagogias exigem políticas
afirmativas, desestabilizam o funcionamento do Estado e reivindicam

193
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

mudanças nas diversas esferas políticas. As pedagogias afirmativas


pensam o aprendizado como processo, a educação como campo estra-
tégico e os sujeitos como protagonistas das suas vidas.
Isto posto, analisamos que a educação sexual precisa ser dispu-
tada em seu núcleo pedagógico. É preciso transcender a concepção
de que educação sexual é a transmissão de conhecimentos sobre se-
xualidade de forma mecânica e fragmentada. Compreendo que diversas
práticas pedagógicas divergentes coexistem nesse processo. Para além
da interdição da educação sexual em diversos espaços institucionais,
as práticas pedagógicas em curso nos serviços e espaços de orienta-
ção no que concerne à contracepção e à saúde sexual e reprodutiva
são guiadas por práticas pedagógicas repressivas que servem à desin-
formação e à tutela das pessoas.

Práticas pedagógicas em um serviço de planejamento familiar

Como mencionado anteriormente, instituições como a família e a


escola se desresponsabilizam do processo de educação para sexualida-
de. O aprendizado de si e do mundo na adolescência e juventude é nor-
teado pela repressão e pelo silêncio. Nos estabelecimentos de ensino
formal, pouco avançamos em relação à educação sexual, relegando
a juventude à desinformação e à própria sorte.
Contudo, como esse processo acontece em instituições que con-
tém serviços cuja natureza é a orientação sobre prevenção e métodos
contraceptivos? Os serviços de planejamento familiar não promovem
educação sexual propriamente dita, haja vista que educar para sexu-
alidade significa muito mais do que fornecer informações e acesso
a métodos contraceptivos. Como dito, educar para sexualidade signi-
fica produzir conhecimentos sobre corpo, autonomia, liberdade e direi-
tos sexuais e direitos reprodutivos. Entretanto, os serviços de planeja-
mento familiar cumprem um papel importante nessa rede de omissões
e ausências, pois nesses serviços há a oportunidade de suprir em parte
as falhas pedagógicas no processo de aprendizado dos sujeitos no que
tange à sexualidade.

194
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

No trabalho de campo da pesquisa de doutorado, acompanhamos


durante nove meses o serviço de planejamento familiar de um hospital
localizado no sertão de Pernambuco. O planejamento familiar aconte-
cia quinzenalmente, conduzido pela assistente social, psicóloga e uma
enfermeira. Começava com uma explicação sobre os métodos contra-
ceptivos de um modo geral: camisinha, pílulas, diafragma, dispositivo in-
trauterino (DIU) e, por fim, as esterilizações. A primeira etapa da reunião
acontecia em grupo com as explicações acima. Em seguida, o grupo
saía e as pessoas eram atendidas individualmente; a ficha com a de-
manda do DIU, laqueadura ou vasectomia era preenchida. As pessoas
deixavam a sala com o encaminhamento para realizar alguns exames.
Depois dos exames feitos, com os resultados em mãos, retornavam
ao hospital para marcar o atendimento com a médica ou o médico (no
caso da vasectomia). Após este atendimento, eram agendadas cirurgias
de esterilização ou implante do DIU. Esse processo demorava cerca
de dois meses para laqueadura e vasectomia e um pouco menos para
o DIU.
No Brasil o planejamento familiar é regulado pela Lei n. 9.263,
criada em janeiro de 1996, com o fim também de normatizar as esterili-
zações cirúrgicas no país. Planejamento familiar requer uma dimensão
pedagógica que ofereça às usuárias do serviço (a maioria eram mu-
lheres) subsídios para pensar o exercício da sexualidade desvinculado
da reprodução. Porém, a forma como é conduzida a oferta das informa-
ções nos serviços não contribui para a tomada de decisões informadas.
Ressalto que as questões raça, classe e território marcam a diferencia-
ção das práticas pedagógicas implementadas pelos agentes profissio-
nais. Não há uma tentativa de desmistificar o uso de alguns métodos
e as mulheres negras, jovens pobres e das comunidades rurais são em-
purradas para a laqueadura.
A tônica do planejamento familiar era conceber as usuárias como
desprovidas de qualquer saber. A fala mais comum sobre as mulheres
usuárias do serviço é que elas “são ignorantes e demoram para entender
as informações”. A escuta da demanda das mulheres era comprometi-
da. Nenhum conteúdo em torno da sexualidade e da prevenção era tra-

195
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

balhado de forma cuidadosa, raros foram esses momentos. As mulheres


saíam do planejamento familiar perdidas em um manancial de informa-
ções técnicas e fragmentadas.
Uma situação emblemática desse processo ocorreu em uma de-
terminada reunião do planejamento familiar. A enfermeira explicava so-
bre os trâmites burocráticos para a laqueadura e a usuária não entendia.
Ela olha para mim e pergunta de modo impaciente: “tu pode explicar
a ela?”. Curvo-me um pouco sobre a usuária para explicar os trâmites
enquanto a enfermeira atende o restante das mulheres. A usuária olha
para mim e começa a se explicar: “é porque eu estudei pouco, aí mi-
nha mente é mais lenta, não entendo as coisas, desculpe”. Digo que os
processos burocráticos são difíceis para todo mundo. A impaciência
com as mulheres representa um pré-julgamento de que elas têm dificul-
dades de compreensão porque são ignorantes e sem estudos. Em vá-
rias situações não houve uma tentativa de traduzir a linguagem técnica
para uma linguagem mais acessível.
Assisti o planejamento familiar de cerca de 40 pessoas, dessas
30 eram mulheres, 28 negras e duas brancas, mais da metade da zona
rural e quase todas com idade entre 25 e 35 anos. A demanda principal
era pela esterilização e, quando persuadidas a optarem pelo DIU, de-
monstravam muita desconfiança. “É um aparelhinho, né?”; “sai do lugar?”;
“aumenta cólicas?”, eram dúvidas frequentes que mesmo quando res-
pondidas não desconstruíram a desconfiança por aquele procedimento.
Quando as mulheres chegam aos serviços de planejamento fami-
liar, suas trajetórias sexuais e reprodutivas já estão impregnadas pela
ausência da educação sexual. As demandas colocadas nesse momento
são, muitas vezes, resultados desse processo. Por exemplo, diversas
gravidezes imprevistas, abortos realizados em condições insalubres
e dificuldades de negociar a contracepção com o parceiro. Este último
é um ponto particularmente grave, muitas mulheres procuram o serviço
para realizar a laqueadura à revelia deles e para não ter mais uma crian-
ça dentro de uma relação precária, haja vista que o parceiro interdita
a negociação no uso de métodos contraceptivos reversíveis.

196
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

As pedagogias repressivas norteiam todo o atendimento, sen-


do desdobradas em suspeição e tutela. A primeira situa as mulheres
no campo da desconfiança e apela para o constrangimento. Esse tra-
tamento é comumente dispensado às mulheres rurais. De forma geral,
as pessoas das comunidades rurais respondem na ficha do planeja-
mento familiar que são agricultoras. Perceptivelmente, isso incomoda
as profissionais que conduzem o planejamento, salvo exceções. O incô-
modo ocorre devido ao entendimento equivocado de que os agricultores
usufruem de privilégios em relação às políticas assistenciais e previ-
denciárias. Em uma situação, a enfermeira conduzia um planejamento
em que uma das mulheres que participava tinha a demanda de laque-
adura, era negra retinta, com 23 anos, da zona rural. Ao ser perguntada
sobre sua ocupação, respondeu: “faço nada não, só fico em casa”. A pro-
fissional preencheu a ficha como dona de casa, mas depois a usuária
se arrependeu.

“O que você colocou em profissão?”. A profissional responde


que colocou dona de casa. Ela fala: “é que eu esqueci, coloca
agricultora”. “Mas você planta?”, pergunta a profissional. Ela
responde que sim. “Você planta o que?”, insiste. “Milho, fei-
jão...”. “Olha, não se preocupe. Essa ficha aqui não vai mais para
lugar nenhum, mas aqui temos que colocar a verdade”, explica.
“Tudo bem”, fala conformada (Diário de Campo, 20/02/2019).

O conhecimento sobre a realidade da vida das usuárias em pro-


cessos pedagógicos dá lugar ao constrangimento e à interdição. A tu-
tela é outro elemento subjacente a essas pedagogias. Não raro as mu-
lheres são colocadas pelas profissionais como pessoas ignorantes,
que não têm estudo e que “só sabem fazer filhos”. Ainda são compara-
das aos homens. Em determinado atendimento, uma das profissionais
me confessa que os homens são mais bem-informados que as mulhe-
res. As mulheres negras, pobres, jovens, de baixa escolaridade e das
comunidades rurais são relegadas ao lugar do não saber. Em diversas
situações as mulheres falaram muito pouco sobre sua situação e suas
demandas.

197
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

O caso de Eliane3 é emblemático da situação de tutela. Eliane é uma


jovem negra, de pele escura, de 27 anos, reside em um bairro periférico
e tem três filhos. Foi ao serviço acompanhada da prima do ex-parcei-
ro, uma mulher branca de 40 anos. Eliane não falou praticamente nada
durante o atendimento. A sua acompanhante o tempo todo dizia o que
ela tinha que fazer. “Vim aqui em nome de toda a população de Caixa
d’água4 que quer essa ligação, já para garantir. A rua inteira quer essa
ligação”, repetiu diversas vezes a acompanhante. Nenhuma intervenção
foi feita durante esse atendimento para frisar a autonomia da usuária
em torno da sua capacidade reprodutiva. A profissional que conduzia
o atendimento corroborou com a acompanhante diversas vezes. A rua
inteira quer o encerramento da vida reprodutiva de uma jovem negra por-
que o corpo dela não pertence a si mesma: esse corpo pertence à vio-
lência sexual, ao tráfico de mulheres, à cristalização da figura da mulata
nua no carnaval, ao trabalho doméstico mal remunerado. Assim, na hora
de “planejar” a capacidade reprodutiva esse corpo não fala.
De forma geral o serviço de planejamento familiar, que possui
como natureza prestar informações e orientações para que as pessoas
possam tomar decisões informadas sobre as suas vidas sexuais e re-
produtivas, dispensa um atendimento estritamente técnico e fragmenta-
do, lançando mão de práticas de constrangimento e tutela. Figura dentro
de uma lógica social de interdição aos processos de aprendizagem para
sexualidade. O resultado é o aprofundamento das assimetrias de gêne-
ro, das desigualdades raciais e a responsabilização das sujeitas acerca
dos contextos de pobreza.

Considerações finais

O exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos está


condicionado por elementos que garantam um contexto de justiça
social. Esta não é a realidade das sujeitas marcadas pelas estruturas
de classe e de raça e atravessadas pelas relações patriarcais. O campo

3 Todos os nomes são fictícios em respeito ao sigilo e anonimato.


4 Nome fictício para o bairro onde a usuária residia.

198
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

da reprodução e sexualidade é permeado por tensões e disputas políti-


cas que impedem avanços importantes, como implementação da edu-
cação sexual em instituições formais. Além da rede de ensino apresen-
tar resistências e dificuldades em relação ao tema, os serviços de saúde
que têm como natureza informar para a sexualidade e reprodução utili-
zam práticas pedagógicas repressivas que se desdobram em suspeição
e tutela.
A educação sexual é estratégica para a construção da autono-
mia das mulheres sobre os seus corpos. O aprendizado da sexualidade
de meninas e jovens é marcado pela naturalização da violência e coloni-
zação dos seus corpos por outros. Inspirada em hooks (2017), compre-
endemos a pedagogia engajada como caminho para transgredir. A edu-
cação para sexualidade propõe ênfase no processo de aprendizado,
compreende pedagogias afirmativas que promovam a autonomia e a
visibilidade das experiências de raça, classe, território e geração. A pe-
dagogia engajada possibilita uma mudança nos valores sociais que im-
pregnam as culturas institucionais.

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199
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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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201
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Cenas sobre gênero e sexualidade:


a juventude em contextos escolares

Roseane Amorim da Silva1


Jaileila de Araújo Menezes2

Introdução

No presente estudo refletimos sobre as cenas no contexto es-


colar que visibilizaram desigualdades de gênero e sexualidade a partir
dos discursos dos/as jovens que participaram da pesquisa intitulada:
Desigualdades e resistências entre jovens quilombolas e da periferia ur-
bana de Garanhuns/PE. O estudo foi realizado em três momentos e em
diferentes territórios. Nosso foco aqui serão as informações construí-
das em uma escola pública da periferia.
Ao longo da história democrática brasileira podemos locali-
zar algumas políticas que prezam pela garantia dos direitos sexuais

1 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Professora Adjunta da Universidade Federal


Rural de Pernambuco – UFRPE, Unidade Acadêmica de Serra Talhada – UAST. Integrante do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas – GEPCOL/UFPE e
do DADÁ – Grupo de Estudos, pesquisa e extensão sobre Relações de Gênero, Sexualidade
e Saúde da UAST-UFRPE.
2 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Professora Associada do Centro de Educação
– CE e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura
e Práticas Coletivas – GEPCOL/UFPE.

203
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

e dos direitos reprodutivos em articulação com o campo da educa-


ção: os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (1998), a Política
de Prevenção e Combate à Homofobia (CONSELHO, 2004), e o Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990). Os direitos sexuais
e reprodutivos são direitos humanos reconhecidos em leis nacionais
e documentos internacionais. Os direitos reprodutivos são os direitos
das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem
ou não ter filhos/as, quantos/as filhos/as desejam ter e em que momen-
to de suas vidas. E os direitos sexuais são os direitos de viver e expres-
sar livremente a sexualidade sem violência, discriminações, imposições
e com respeito pleno pelo corpo do/a parceiro/a (BRASIL, 2009).
A contextualização dos direitos sexuais e reprodutivos a partir
do campo feminista chama atenção para o fato de que estes precisam
estar alinhados com os quatro princípios éticos: integridade corporal,
autonomia pessoal, igualdade e diversidade, que podem ser violados
por meio da omissão, negligência ou discriminação por parte de auto-
ridades públicas, nacionais ou internacionais (CORRÊA; PETCHESKY,
1996).
A escola é considerada um lócus privilegiado para a valorização
da diversidade de expressões de gênero e sexualidade, além de sua
já reconhecida função social de promoção da cidadania e redução
da vulnerabilidade social da juventude brasileira (GESSER; OLTRAMARI;
PANISSON, 2015). No entanto, temos visto na literatura (SEFFNER, 2020;
COUTO JUNIOR; OSWALD; POCAHY, 2018) e na pesquisa que realiza-
mos, mencionada acima, que as práticas pedagógicas e o posiciona-
mento de alguns e algumas docentes têm contribuído para a produção
de preconceitos e discriminações em relação às pessoas que divergem
de uma orientação sexual e performance de gênero heteronormativos.
Compreendemos que existem diversas formas de expressão da se-
xualidade humana, mas muitas são oprimidas pela imposição de um
padrão de sexualidade considerado hegemônico e válido na socieda-
de. Ao falarmos sobre sexualidade, é importante pensarmos que esse
é um campo com relações de poder imbricadas, utilizado para regula-
ção da vida social por meio da construção do que é socialmente aceito,

204
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

em termos sexuais, bem como sobre o que deve ser excluído. A sexuali-
dade é um campo de articulação de políticas de discriminação, de regu-
lação sobre os corpos. É uma dimensão da vida importante para pensar-
mos na intersecção dos marcadores sociais de gênero, classe, geração,
raça, religião, entre outros, haja vista o quanto esses feixes relacionais
têm produzido efeitos sobre os corpos, controlando-os, estigmatizando-
-os, excluindo-os da sociedade, porque produzem fissuras na heteronor-
ma, seja indicando prazeres que a extrapolam ou transgredindo os tem-
pos determinados para as vivências sexuais conforme os gêneros.
No que se refere às escolas, no estudo realizado por Marivete
Gesser, Leandro Oltramari e Gelson Panisson (2015) temos que os dis-
cursos dos/as docentes estavam pautados na heteronormatividade.
Compreendida a partir do pensamento de Judith Butler (2003), essa
se caracteriza como uma prática que produz discriminação baseada
na suposição da normalidade da heterossexualidade e dos estereótipos
de gênero. E como consequência foi visto a pedagogização nas escolas
dos gêneros e sexualidades baseadas em uma norma sexista e hetero-
normativa, e a manutenção dos binarismos homem/mulher, homosse-
xual/heterossexual e sexo/gênero.
A noção de gênero foi desenvolvida e utilizada, num primeiro mo-
mento, em oposição ao sexo a fim de descrever o que é socialmente
construído sobre o masculino e o feminino, numa rejeição explícita
à ideia de justificar a partir da biologia, as raízes das diferenças entre
mulheres e homens. Falar em gênero implica considerar que as desi-
gualdades existentes entre mulheres-homens, mulheres-mulheres, ho-
mens-homens são perpassadas por processos históricos e relações
de poder que caracterizam um padrão na sociedade. Sendo uma cons-
trução social, as relações de gênero não somente são diversas entre
as sociedades ou em distintos momentos históricos, mas também po-
dem se diferenciar no interior de uma mesma sociedade, quando se con-
sideram os diferentes grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe, en-
tre outros) que a constituem.
Da mesma forma que gênero não se resume à diferença entre
os sexos, a sexualidade também não é sinônimo de sexo biológico.

205
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Falar de sexualidade vai muito além das mudanças físicas ou da relação


sexual, compreendendo, portanto, falar de sujeitos, da constituição des-
tes abarcando sua multiplicidade, sua dinâmica libidinal e seu processo
histórico (NASCIMENTO; MIGUEL; SOMBRIO, 2021). No presente estudo,
abordamos algumas das dimensões de gênero, sexualidade e geração
a partir das narrativas realizadas pelos/as jovens com os quais tivemos
contato durante a pesquisa. O relevo dado aqui às questões de gênero
e sexualidade não desconsidera a interseccionalidade destes com os
demais feixes de relações de poder, a exemplo de classe, geração e raça.
Abordamos a interseccionalidade desde a perspectiva do feminis-
mo negro, que ressalta o cruzamento de vários sistemas de opressão
na estruturação das desigualdades sociais, tais como gênero, classe,
raça, etnia, sexualidade, entre outros (COLLINS; BILGE, 2020). Um dos
objetivos da análise interseccional é visibilizar que uma abordagem fo-
cada apenas em um sistema de opressão pode deixar de fora o modo
como as relações de gênero, o racismo e a classe se interrelacionam
e posicionam as mulheres, a população LGBTQIA+, e os/as negros/
as em situação de subalternidade. Desse modo, vê-se a contribuição
dessa perspectiva para a educação ao visibilizar que os/as sujeitos/
as são constituídos/as por marcadores sociais que produzem efei-
tos nos processos subjetivos, no modo como esses/as se constituem
na sociedade, nas dificuldades enfrentadas e na possibilidade de per-
manência na escola, entre outras situações.

Caminhos percorridos na escola para a realização do estudo

O presente estudo foi realizado durante os anos de 2017 e 2018


em dois territórios diferentes: periferia urbana e área rural quilombo-
la da cidade de Garanhuns/PE. Nosso foco aqui são as informações
construídas em uma escola pública da periferia. O público da pesqui-
sa foi formado por jovens de ambos os sexos, com idades entre 15 e
18 anos, estudantes do ensino médio de uma escola de grande porte,
que recebe alunos/as de diferentes localidades da cidade.

206
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A pesquisa aconteceu em três momentos. Iniciamos com a ob-


servação participante na escola. Todos os dias, durante um mês, íamos
a escola e ficávamos nos corredores, no pátio, no refeitório, acompa-
nhando acontecimentos diversos do contexto escolar e conversando
com os/as estudantes. Todas as observações e conversas foram regis-
tradas no diário de campo. Depois desse período fizemos uma análise
do diário que serviu de base para planejarmos a segunda etapa da pes-
quisa, na qual realizamos oficinas abordando diversos temas a par-
tir do que havíamos destacado em nossos registros e dos interesses
que os/as jovens apresentaram. Nessa primeira etapa, fomos surpreen-
didas pela quantidade de vezes que os/as estudantes relataram situa-
ções de preconceito e discriminação, bem como situações de violências
vivenciadas por aqueles/as que possuíam uma orientação sexual dife-
rente da heteronormativa ou que apresentavam performances de gêne-
ro fora dos padrões esperados para homens e mulheres. Assim, a partir
das questões que os/as jovens narraram, realizamos oficinas, e uma es-
pecífica sobre gênero e sexualidade.
Analisamos o material construído durante as oficinas e observa-
mos que seria importante aprofundarmos algumas questões abordadas
com os/as jovens. Para isso elaboramos uma terceira etapa compos-
ta de quatro entrevistas semiestruturadas. Todo o material foi ana-
lisado a partir da perspectiva da interseccionalidade dos marcadores
sociais (gênero, geração, classe, raça/etnia, território e sexualidade)
(CRENSHAW, 2002; COLLINS; BILGE, 2020). Compreendemos que estes
marcadores constituem as experiências relacionadas ao gênero e se-
xualidade. Desse modo, operamos com a interseccionalidade nos dis-
cursos dos/as jovens, a fim de compreendermos os efeitos produzidos
por esses marcadores nas vivências deles.
Para fins desta publicação, elencamos quatro cenas do período
de observação e da oficina sobre sexualidade e gênero para refletirmos.
As cenas foram intituladas: 1) “Ninguém quis fazer o trabalho com ele,
porque ele é assim ‘alegre’”; 2)“Me chamam de bichona, me ameaça-
ram...”; 3) “Não, eu não queria estar mais aqui...”; 4)“É difícil sem a ajuda
dos professores”. A noção de cena, foco central da análise, privilegia

207
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

a dimensão performática e interativa da intersubjetividade. Desenvolvida


nos estudos sobre promoção da saúde sexual e reprodutiva, compreen-
de que cada “cenário” intersubjetivo mobiliza diferentes scripts– siste-
mas simbólicos que são traduzidos em códigos de conduta, compondo
repertórios que se traduzem em performances nas diferentes situações
e interações (PAIVA, 2012). Nessa vertente, a experiência concreta e sin-
gular da pessoa como “sujeito em cena” é a unidade de análise e o foco
das reflexões.

Cenas no contexto escolar: experiências narradas pelos/as jovens

Apresentaremos algumas cenas que observamos no contexto


escolar ou que foram narradas pelos/as jovens na oficina sobre sexu-
alidade que falam sobre como as relações de gênero e sexualidade
são vivenciadas na instituição em que realizamos o estudo. Percebemos
que há uma ausência da discussão sobre sexualidade por parte da ges-
tão e professores/as da escola, e em algumas situações os/as do-
centes têm produzido o preconceito e a discriminação, que também
acontece entre os/as estudantes, como pode ser visto na cena adiante.
Consideramos que a educação é um ato político e, como tal, acontece
sempre com intencionalidade, portanto, as práticas pedagógicas e po-
sicionamentos dos/as docentes que têm em suas bases a manutenção
das desigualdades e opressões na sociedade não reproduzem discrimi-
nações, e sim as produzem.

“Ninguém quis fazer o trabalho com ele, porque ele é assim


‘alegre’ ”

Em diálogo com os/as estudantes em uma das oficinas realizadas


na escola, um jovem de pele clara, cabelo cacheado e que se autodecla-
rou como heterossexual, narrou a seguinte cena:

Uma pessoa que é homossexual na minha turma queria entrar


no grupo pra fazer dupla com as pessoas, todo mundo estava
fazendo e a professora mandou fazer duplas, e ninguém quis

208
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ficar com ele, pela questão sexual, e aí essa professora pegou


e falou, mas será que a culpa não é sua, aí eu peguei: ô profes-
sora por que a culpa é dele? E ela: Porque ele é assim muito
alegre. Mas isso aí é a condição dele, o problema tá nas pesso-
as que não aceitam ele, as pessoas que têm que aceitar como
ele é. Comecei a falar assim, mas aí esse acontecimento teve
preconceito dos alunos que não quiseram fazer dupla com ele,
e teve o preconceito da professora que achava normal, por ele
ser alegre, as pessoas não querer fazer dupla com ele. Então
acho que isso acontece muito na escola. (Oficina realizada na
escola da periferia urbana).

No relato observamos várias questões acerca das relações de gê-


nero e sexualidade e que refletem acontecimentos que se fazem pre-
sentes a nível macro na sociedade. Logo no início da narrativa, o jovem
expõe o motivo de ninguém querer fazer o trabalho com o seu colega:
a homossexualidade. Isso nos remete à ideia de contágio existente
em relação às pessoas que têm uma orientação sexual diferente da he-
teronormativa. Segundo Guacira Louro (2007), na escola, os sujeitos
que fogem à norma sexo/gênero/sexualidade e destoam dos padrões
socialmente hegemônicos são colocados à margem. No âmbito escolar,
essa exclusão é refletida na elaboração do projeto curricular, no qual
a atenção é voltada para os/as que são vistos/as como “normais”, e a
homossexualidade é encarada como “contagiosa”, o que promove, con-
sequentemente, a exclusão dos/as estudantes que não seguem os pa-
drões heteronormativos, uma vez que a aproximação pode ser compre-
endida como uma identificação com a orientação sexual. O que contribui
para ocasionar a marginalização e o isolamento desse grupo (LOURO,
2007).
Em sua pesquisa com docentes sobre a temática sexualidade,
Marivete Gesser, Leandro Oltramari e Gelson Panisson (2015) narram
uma cena em que um professor se posicionou contra a exposição, no pá-
tio escolar, dos cartazes de divulgação do concurso sobre LGBTfobia
nas escolas que ocorria há cinco anos no município. Ele argumentou
que esse material não deveria ficar acessível a todos/as os/as estudan-

209
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tes da escola, pois poderia influenciar os/as discentes a terem práticas


homossexuais desde tenra idade. O que se percebe também é o imagi-
nário de “contágio” construído por esse e tantos/as outros/as docentes.
No relato, observamos também que a professora se refere ao es-
tudante como sendo muito “alegre”, essa forma de tachar o jovem reme-
te ao estudo realizado por Ramon Reis (2012), em que os homossexuais
disseram “ter medo de ficar afeminado”, pois, a depender das perfor-
mances e convenções corporais de gênero, homens “afeminados” so-
frem muita discriminação daqueles/as que internalizaram os preconcei-
tos da sociedade, podendo serem agredidos físico e verbalmente, e a
companhia deles ser considerada comprometedora.
Esse discurso da professora remete ainda ao que Judith Butler
(2003) chamou de “performance de gênero”, que é um processo perma-
nente de produção de gênero a partir das práticas discursivas que de-
marcam o que é feminino e masculino.

As performances de gênero produzem materializações, nem


o corpo, nem o sexo, existem a priori, a produção de ambos
ocorre na performance. A materialidade do corpo não é natural,
é ela também um processo de produção a partir dos sentidos
performados. Assim, o modo pelo qual designamos sexos aos
corpos é uma materialização de normas que produzem corpos
e performances de gênero. (NASCIMENTO; MIGUEL; SOMBRIO,
2021, p. 66).

Levando em conta essa noção de performance de gênero, pode-


mos observar que o modo da professora fazer referência ao estudan-
te homossexual diz da materialização das normas, do que se espera
dos meninos/homens e das meninas/mulheres. Elaine Souza, Joilson
Silva e Claudiene Santos (2017) ressaltam que em decorrência de uma
formação deficitária sobre as temáticas sexualidade, gênero e diver-
sidade sexual, dentre outros motivos, muitos/as docentes acabam
se omitindo ao invés de problematizarem a homofobia e todas as ex-
pressões de preconceito na instituição escolar, e até apresentando prá-

210
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ticas preconceituosas e discriminatórias, como pudemos ver na cena


descrita acima.
Ainda podemos refletir quando o estudante heterossexual questio-
na a professora: “ô professora porque a culpa é dele?”, e depois ressalta
“[…]o problema tá nas pessoas que não aceitam ele, as pessoas que têm
que aceitar como ele é”. Esse discurso contra-hegemônico do discente
é uma importante estratégia para combater as práticas discriminatórias
no contexto escolar, pois proporciona a reflexão e ressalta que ser ho-
mossexual não é um problema, e sim não saber respeitar e conviver
com a diversidade.
A busca constante de (in)formações significativas acerca des-
ses temas pelos/as professores/as, gestores/as e todos/as que fazem
a comunidade escolar, a problematização da LGBTfobia e o desenvolvi-
mento de ações pedagógicas podem contribuir para que os indivíduos
com identidades sexuais e de gênero, e orientações sexuais distintas
do modelo heteronormativo não sejam excluídos e violentados, confor-
me podemos observar na cena a seguir vivenciadas por outro estudante.

“Me chamam de bichona, me ameaçaram...”

Em uma das visitas à escola, no horário do intervalo fiquei cir-


culando pelo pátio, uma estudante, que eu havia a conhecido
na semana anterior, e um jovem amigo dela, ambos novatos,
vieram até onde eu estava e perguntaram se eu iria ficar todos
os dias na escola, expliquei que só durante o período da pes-
quisa.Questionei se eles estavam gostando da escola. A jovem
[branca, heterossexual] disse: “mais ou menos, estou sentido
falta da outra escola, dos meus amigos/as, aqui as pessoas
não aceitam a diversidade – olhou para o amigo e disse: pos-
so contar? –ele fez sinal de sim. Porque ele é homossexual e
os alunos não aceitam”. O jovem [branco] relatou: “eles ficam
dizendo coisa comigo, me chamam de bichona, me ameaçam,
dizem que vão me pegar, eu já contei tudo a minha mãe, ela
disse que eu não dê atenção, que não entrasse em confusão,

211
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

mas eu tô me sentindo apreensivo, com medo de vir pra aqui e


acontecer alguma coisa” (Diário de campo, 09/02/2017).

Podemos observar acima o quão violentas podem ser as atitudes


em relação ao jovem homossexual. Existe uma íntima relação entre
homofobia e relações de gênero, que pode gerar consequências drás-
ticas àqueles que ousem descumprir preceitos socialmente impostos
sobre o que significa ser homem e ser mulher. A noção de homofobia
pode ser entendida como situações de preconceito, discriminação e vio-
lência contra pessoas (homossexuais ou não), cujas performances e/
ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos, entre ou-
tros) não se enquadram nos modelos hegemônicos heteronormativos
(JUNQUEIRA, 2009). Na cena acima, observamos que o jovem relatou
várias situações de violências vivenciadas devido à homofobia, ao sofri-
mento e à apreensão de frequentar a escola, lugar que deveria garantir
o acolhimento, a diversidade e a proteção de todos/as os/as estudantes.
Existem discursos sociais que patologizam a homossexualidade,
mesmo com a retirada do termo “homossexualismo” dos grandes ma-
nuais de patologias (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais – DSM e Classificação Estatística Internacional de Doenças–
CID). Daniel Borrillo (2010, p.34) define a homofobia como “a hostilida-
de geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que, suposta-
mente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu
próprio sexo”, ou ainda, de forma mais sintética, o termo pode ser usa-
do para designar a “atitude de hostilidade contra as/os homossexuais”
(BORRILLO, 2010, p. 34). A essa definição podemos acrescentar as prá-
ticas de violência exercidas por aqueles/as que não aceitam a diversi-
dade e as várias formas de estar no mundo e de vivenciar a sexualida-
de – apenas a imposta pelos padrões heteronormativos. Os discursos
moralistas e religiosos na sociedade e o movimento “contra a ideologia
de gênero” nas escolas, que segundo Fernando Seffner (2016), adqui-
riu uma conotação predominantemente negativa no país, terminando
por englobar de modo um tanto confuso também as noções de sexu-
alidade, contribuem para essa violência na escola e em vários outros
espaços na sociedade.

212
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Outra questão que é possível observar quando a mãe diz ao jovem


“não dê atenção” é que essa é uma prática comum solicitada às víti-
mas: o silenciamento da violência vivenciada. Em alguns casos solici-
ta-se esse posicionamento como forma de proteção, em outros por ser
considerado que as práticas que diferem dos padrões heteronormativos
são errôneas na sociedade. O que ocorre é que o silenciamento é uma
revitimização que, no caso relatado acima, foi operada pela família, insti-
tuição que juntamente com a escola tem o dever de proteger adolescen-
tes e jovens. Dilto Couto Junior, Maria Luiza Oswald e Fernando Pocahy
(2018) chamam atenção para o fato de que incentivar o silêncio das prá-
ticas violentas referentes à expressão da sexualidade ou de um compor-
tamento tido como diferente é reiterar as normas regulatórias de gêne-
ro, e contribuir para evidenciar a suposta superioridade da supremacia
heterossexual.

“Não, eu não queria estar mais aqui...”

Cheguei por volta das 9h na escola e fiquei sentada na entrada


do refeitório, depois alguns estudantes começaram a sair das
salas. Duas estudantes sentaram-se próximas ao lugar em que
eu estava e começamos a conversar, se estavam gostando da
escola, das aulas. Uma das jovens foi logo falando: “não, eu
não queria estar mais aqui”. Perguntei se havia acontecido algo
e ela relatou: “essa semana um professor fez uma dinâmica na
sala, cada pessoa tinha um barquinho de papel, aí fora você es-
crevia as qualidades e dentro os defeitos, todo mundo escrevia
no barquinho de todo mundo. No meu escreveram sapatão, lés-
bica safada e um monte de coisa. Aí o professor pediu pra ler,
quando eu li, ele perguntou o que eu achava disso, eu disse que
achava muito errado, que era uma falta de respeito, de gente
que não tem nada na cabeça. Quando acabou a aula, o menino
que escreveu veio brigar comigo e me deu um soco (mostrou
a marca no rosto). Eu falei com a diretora, minha mãe veio, a
família dele não veio, e ninguém fez nada, ele tá aí, assistindo
aula, na minha sala. E é errado homem bater em mulher. A dire-

213
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tora não fez nada, e ainda disse que eu não deveria ter lido, ter
deixado pra lá, mas o professor que pediu pra todo mundo ler”
(Diário de campo, 14/02/2017).

Nesse relato de uma jovem negra, lésbica, observamos as várias


violências que ela sofreu, física, verbal, psicológica, e a não intervenção
da gestão escolar em relação à situação. Outras estudantes, em mo-
mentos distintos relataram essa mesma cena, indignadas com essa
violência. Consideramos os marcadores sociais, classe, raça, gênero
e sexualidade de modo interseccionados na situação relatada que con-
tribuiu para a violência ocorrida. Percebemos o quanto os direitos se-
xuais dessa estudante não foram garantidos, assim como de outros/
as que narraram as violências sofridas na escola por terem uma orien-
tação sexual não heteronormativa. Nas palavras de Maria Betânia Ávila
(2003, p. 466), “os direitos sexuais dizem respeito à igualdade e à liber-
dade no exercício da sexualidade. O que significa tratar sexualidade e re-
produção como dimensões da cidadania e consequentemente da vida
democrática”.
Desse modo, os direitos sexuais prezam para que todos/as te-
nham liberdades fundamentais para exercerem sua sexualidade. Além
da não garantia dos direitos sexuais, a cena narrada nos chama atenção
porque, mesmo diante de todas as violências que a jovem sofreu, a es-
cola não teve nenhuma intervenção no sentido de protegê-la, quando
é seu dever que isso fosse realizado. A escola junto à família precisa
funcionar como uma rede de proteção aos/as adolescentes e jovens,
mas essa rede para os/as estudantes que narraram às cenas mostrou-
-se fragilizada. As lacunas nessa rede têm aumentado o sofrimento des-
ses/as jovens e feito com que alguns e algumas não tenham mais o de-
sejo de frequentar a escola. Foi relatado por outra estudante, que sua
colega saiu da escola no meio do ano letivo devido às situações de dis-
criminação sofridas na instituição por ser lésbica, perdendo assim o ano
escolar.
A escola é uma instância importante na operacionalização dos di-
reitos sexuais e reprodutivos, extremamente relevante para romper o ci-

214
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

clo da pobreza que se expressa no analfabetismo, na evasão, no fracas-


so escolar de milhares de adolescentes e jovens que são excluídos/as
dos bancos escolares vítimas da política de descuido para com seus
corpos e desrespeito para com suas escolhas.
Ainda nos chama atenção na situação descrita o modo como
a própria jovem relata “é errado homem bater em mulher”, houve
um caso de violência contra a mulher e medidas precisavam ser toma-
das, inclusive a escola acionando o Conselho Tutelar. Um acontecimen-
to desses não podia ter passado impune. Importante lembrar que os
números de violência contra a mulher crescem a cada ano, essa é uma
problemática que precisa ser discutida e trabalhada, bem como a cultu-
ra sexista existente na sociedade que naturaliza tais práticas. Em 2020,
o número de mulheres que sofreram violência física, psicológica ou se-
xual no Brasil chegou aos 17 milhões, de acordo com pesquisa realizada
pelo Instituto Datafolha3.
É importante também ressaltarmos que a Lei n. 11.340/2006, co-
nhecida como Lei Maria da Penha, trouxe mecanismos de amparo e pro-
teção às mulheres vítimas de agressões, e não faz restrições de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, religião, nem idade das ví-
timas, o que abre brechas para a aplicação de seus modernos dispositi-
vos no caso de agressões contra crianças e adolescentes. Lembramos
que a violência foi sofrida por uma mulher jovem, negra, e que a maioria
das vítimas de violência no Brasil são as negras, consideradas histori-
camente inferiores as mulheres brancas, subalternas, que não recebem
o mesmo tratamento, os mesmos cuidados e proteção.

“É difícil sem a ajuda dos professores”

Aqui na escola é bem engraçado porque tem casal hétero e é


normal, você passa no corredor, normal, agora se tiver casal
homossexual, aí a confusão é grande na escola. A partir do
momento que aquele grupinho sabe que você é, você vai ser

3 Para acessar a matéria ver: https://ibdfam.org.br/noticias/8560.

215
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

mal falada. E o preconceito parte da direção.A direção ao in-


vés de sentar, de chamar a pessoa, faz uma confusão enorme,
prejudicando até pessoas que não têm nada a ver, só porque
anda com fulano quer dizer que é, amizade que influi.A gente
não concorda, fala com os colegas, explica que não é certo, já
tentamos organizar umas palestras no Grêmio, mas também
é difícil sem a ajuda dos professores, que são as autoridades,
que deveriam contribuir e não fazem isso. (Jovem branca, he-
terossexual, cena narrada na oficina).

Podemos observar nesse relato a ausência de uma discussão so-


bre gênero e sexualidade que valorize a diversidade na escola. A gestão
atua de modo proibicionista, preconceituoso e discriminatório em rela-
ção aos/as estudantes que não seguem as performances de gênero es-
peradas pela sociedade e/ou não possuem uma orientação sexual hete-
ronormativa. Os/as estudantes do Grêmio, do qual a estudante faz parte,
buscam por meio de um discurso contra hegemônico resistir às situ-
ações opressoras na instituição, mas sentem-se sozinhos nessa luta.
Fernando Seffner (2020) chama atenção para a importância do debate
sobre gênero e sexualidade em sala de aula, e na diferença que esse diá-
logo pode proporcionar na vida dos/as jovens. Segundo o autor, discutir
essas temáticas na escola é acionar

[…] os projetos de vida (casar, ter filhos, não casar, permane-


cer solteiro ou solteira, pensar acerca do agregado familiar em
que se vive e estabelecer um novo olhar sobre ele etc.) e suas
relações de amizade (compreender o colega, entender porque
me aproximo mais deste ou daquele, porque sinto aversão a
certos gestos de carinho entre pessoas do mesmo sexo etc.).
(SEFFNER, 2020, p. 78).

Esse debate antes de tudo é importante para que haja o respei-


to à diversidade, para que os/as estudantes possam refletir sobre suas
crenças, comportamentos, moralismos e compreendam que existem
várias formas de ser e estar no mundo. É relevante refletirmos também
que existem diferenças geracionais entre os/as discentes e os/as pro-

216
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

fessores/as, diferenças de classe, de religião, lacunas na formação dos/


as docentes, que dificultam o trabalho com essas temáticas. Há tam-
bém o receio sobre o que os familiares possam achar desse debate, e os
posicionamentos diferentes entre docentes e a gestão escolar, quando
essa última não proporciona espaços para tal discussão por não con-
siderar que a escola seja o lugar para se abordar essas questões, dele-
gando a responsabilidade à família e não exercendo a obrigação que a
escola possui de educar para a diversidade.
A questão geracional é um ponto a ser refletido, pois a idade, con-
forme nos lembra Dilton Couto Junior, Maria Luiza Oswald e Fernando
Pocahy (2018, p. 125) “é um dispositivo que opera de forma ampla na lo-
calização dos corpos, especialmente a partir da regulação e normaliza-
ção da vida, no que diz respeito especialmente à autonomia do sujeito
sobre seu corpo, desejos e prazeres”. Desse modo a idade está dire-
tamente relacionada sobre os modos como os sujeitos são pensados
e vistos como em condição ou não para uma discussão sobre sexualida-
de. A escola pode considerar os/as estudantes como não preparados/
as para esse debate, pois não teriam idade suficiente, enquanto alguns
profissionais e familiares julgam que falar sobre sexualidade pode es-
timular o desejo de conhecer e iniciar práticas sexuais com pessoas
do mesmo sexo ou do sexo oposto.
A escola deve investir em uma educação para as relações de gê-
nero e sexualidade que se paute pelos valores da diversidade no espa-
ço público, e não esteja presa às tradições familiares, pois as gerações
são atualizadas a cada época, em articulação com a dinamicidade
dos discursos e práticas sociais. É função da escola explicar aos pais
e mães que seu filho/a vai aprender conteúdos que nem sempre seguem
os padrões que ele/a aprendeu em casa, e isso não tem nada de errado,
pois a educação escolar não é a continuação da educação doméstica
ou familiar (SEFFNER, 2020). A escola deve estar comprometida com a
formação científica e com o preparo para a vida no espaço público. E,
como bem lembra Fernando Seffner (2020, p. 87), “esse é o delicado
ponto em que movimentos como o ‘escola sem partido’ e o movimento

217
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

‘ideologia de gênero’ atacam a cultura escolar, pretendendo que ela fun-


cione a reboque dos desejos das famílias e das religiões”.

Grupos conservadores de variados matizes passaram a enxer-


gar em qualquer abordagem de gênero a temível “ideologia de
gênero”, como se também não fosse ideologia o discurso que
professam na condenação do gênero. […] O movimento conhe-
cido por ser contra o que chamou de ideologia de gênero não
propunha a inclusão explícita de nada nos planos educacio-
nais, apenas a supressão dessa nomeação dos marcadores
sociais da diferença, mais fortemente gênero e sexualidade,
mas atingindo também raça, região, geração. Mas a supres-
são dessa nomeação ao combate da desigualdade em gênero
e sexualidade reinstala no seio dos processos educacionais a
naturalização dos tradicionais modos de ser homem e de ser
mulher, bem como naturaliza a instituição da família como
modo único de viver afetos, amores e reprodução biológica es-
tritamente entre homens e mulheres, ou melhor, biohomens e
biomulheres, aqueles nascidos biologicamente homens e mu-
lheres, e que desejam viver segundo a heteronormatividade.
(SEFFNER, 2016, p. 8)

É relevante abordarmos aqui que ideologia de gênero não é a mes-


ma coisa que os estudos de gênero. Enquanto que, os estudos de gênero
são um campo de estudos, segundo Letícia Nascimento, Raquel Miguel
e Paula Sombrio (2021, p. 75): “a ideologia de gênero é um slogan que foi
criado pela Igreja Católica e hoje já é utilizado por diversas igrejas (neo)
pentecostais ou não e por grupos políticos conservadores para comba-
ter os avanços dos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+”.
Com isso, os discursos e ideias distorcidas dificultam que a abordagem
desses temas aconteça de forma saudável e construtiva, pois minam,
proíbem e criam discursos que vão contra a diversidade no espaço es-
colar. Assim a religião e a família monogâmica heterossexual parecem
constituir as únicas fontes para o estabelecimento de princípios morais.
É importante ressaltar que a perseguição aos/as docentes ocasio-
nadas pelos movimentos “escola sem partido” e “ideologia de gênero” e a

218
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

proibição das temáticas gênero e sexualidade serem abordadas na es-


cola é inconstitucional, como já julgaram algumas ações do Supremo
Tribunal Federal (STF, 2020). Alguns e algumas profissionais da edu-
cação sentem certo receio em abordar essas questões, mas o direito
de cátedra é assegurado pela Constituição Federal em seu artigo 206,
o que permite que docentes trabalhem esses temas e produzam refle-
xões em sala de aula (NASCIMENTO; MIGUEL; SOMBRIO, 2021).

Considerações finais

Os/as jovens que relataram as cenas no presente estudo são estu-


dantes de uma escola pública, moradores/as da periferia de uma cidade
de médio porte, de classes sociais economicamente menos favoreci-
das, alguns e algumas negros/as e com a orientação sexual diferente
dos padrões heteronormativos, constituídos/as por marcadores sociais
que tentam serem apagados a todo instante pelos padrões construídos
pela sociedade.
Observamos na escola participante, várias situações de preconcei-
to, discriminação e violências devido à orientação sexual dos/as discen-
tes. Quando os/as profissionais se deparam com as cenas de agressão
contra os/as homossexuais, de desistência de alunos/as porque são ví-
timas de violências em virtude da orientação sexual ou de performances
de gêneros é frequente o silenciamento, não há uma discussão sobre
esse tema e intervenção nas situações de violência. Os direitos sexuais
e reprodutivos dos/as estudantes não são garantidos e a rede de prote-
ção que compreende a escola e a família encontra-se fragilizada no que
se refere à proteção dos corpos, desejos e orientações sexuais deles.
A escola é um ambiente inserido em um contexto maior e não
só reproduz, mas também produz arranjos capazes de favorecer e for-
talecer o preconceito e a discriminação frente às pessoas que esta-
beleçam uma relação homoafetiva ou apresentem características co-
mumente associadas a outro sexo. É importante lembrarmos o papel
da responsabilização que a escola deve ter como instituição social
de regime democrático. É preciso construir ações no sentido de romper
com as violências que ocorrem no âmbito escolar. Para isso é de suma

219
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

relevância a formação continuada dos/as docentes, as atividades na es-


cola que envolvam toda a comunidade escolar e a discussão sobre a te-
mática da sexualidade sem moralismos e discursos não condizentes
com a realidade.
Importante lembrar outros pontos que não foram discutidos,
mas que, quando falamos de gênero e sexualidade na escola são rele-
vantes refletir: a permanência de estudantes durante a gravidez e após
o puerpério, condição que contribui para a evasão escolar de muitas
jovens que não se sentem acolhidas na escola e por fragilidades na rede
de apoio; a pobreza menstrual, que é uma das causadoras da evasão
escolar, sobretudo das jovens em situação de vulnerabilidade social,
que afeta também sua saúde física e mental, entre outras questões
que precisam ser abordadas não somente em aulas de biologia, como
comumente ocorre, mas de modo coletivo por diferentes áreas do co-
nhecimento e em diversos momentos na instituição.
Ressaltamos a contribuição da psicologia para uma educação
inclusiva em todas as suas nuances. Essa deve ter como foco a po-
tencialização de todas as pessoas, considerando a interseccionalida-
de das questões de gênero e sexualidade na constituição dos sujeitos
e nos modos de ser e estar no mundo, de vivenciar a sexualidade, e da
construção de resistência aos sistemas de opressão impostos pela
sociedade.

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Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

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222
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

“A ferro e fogo”: questionamentos


à linguagem e aos corpos
educados

Marcio Caetano1
Esmael Alves de Oliveira2
Letícia Carolina Nascimento3
Lorena Moraes4

Introdução

Independente de nossas interações, possuímos representações


sobre os marcadores de gênero. Esta situação nos permite observar

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), docente na Faculdade


de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) onde lidera o POC’s–Grupo de
Pesquisa Políticas do Corpo e Diferenças e coordena o Centro de Memória João Antônio
Mascarenhas. E-mail: mrvcaetano@ufpel.edu.br
2 Doutor em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia (PPGAnt) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi) da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: esmaeloliveira@ufgd.edu.br
3 Mulher travesti, negra, gorda, nordestina e de Axé. Autora do livro Transfeminismo. Docente
da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutoranda em Educação (UFPI). Ativista do
Acolhe Trans e FONATRANS. E-mail: lecarolpereira@gmail.com
4 Doutora em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), docente da Universidade Federal Rural de
Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada e coordenadora do DADÁ: Grupo de
Estudo, Pesquisa e Extensão em Relações de Gênero, Sexualidade e Saúde (UFRPE-UAST).
E-mail: lorena.moraes@ufrpe.br

223
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que eles estão capilarizados e atravessaram a colonialidade criando


corpos e os tornando legíveis a partir da lógica binária ancorada na lin-
guagem (BUTLER, 2003a). O binarismo de gênero foi largamente mas-
sificado em nossas culturas e é atravessado pelos discursos religiosos,
científicos, políticos, culturais, sociais etc., sendo determinante na cons-
trução do estatuto de naturalidade que perpassa nossa subjetividade
e entendimento sobre o que somos e como percebemos e atuamos
em nossas relações sociais.
Integrado ao intenso debate promovido pelo movimento feminis-
ta, o conceito de gênero se disseminou rapidamente entre as ciências
humanas e sociais. A leitura desse conceito pelas feministas estava in-
serida em um momento de alterações sociais substanciais no contexto
de pós-guerra e com os movimentos sociais emergentes em inúmeras
partes do mundo entre os anos de 1960 e 1970. Ao considerar que as
redes de significados em torno do sexo seriam questionáveis, a cate-
goria gênero, com as feministas, atendeu ao propósito de questionar
as diferenças e desigualdades investigativas e políticas entre mulheres
e homens. Em síntese, o debate em torno da categoria “gênero” retirava
as redes de significados em torno do sexo do domínio privativo das ciên-
cias biológicas e orientava as suas análises às condições históricas, es-
paciais e sociais de produção de cultura. Ao retomar velhas questões (a
exemplo da participação de mulheres nos conflitos políticos e sociais),
o conceito de gênero deu lugar a uma perspectiva crítica sobre a produ-
ção de saberes em diversos campos disciplinares. Assim, a categoria
gênero emerge com as feministas como um conceito para problemati-
zar as desigualdades orientadas pelas diferenças sexuais e, sobretudo,
como um contrato epistemológico para a produção de um conhecimen-
to crítico frente aos saberes hegemônicos, que buscavam nos discur-
sos biológicos as justificativas para limitar a cidadania a determinados
tipos de homens: proprietários, brancos, classe-média, heterossexuais
e judaico-cristãos.
Não por acaso, dentro deste “cistema” normativo, o sexo foi en-
tendido pelo discurso biológico como um conjunto de características

224
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

genéticas, anatômicas e hormonais5. Todavia, também é usado para de-


signar o órgão anatômico e a relação sexo-genital, incluindo ou não a pe-
netração. Entretanto, entendemos sexo como um feito marcado pelo
significado cultural. Desse modo, se aceitarmos o entendimento sobre
o corpo como uma situação cultural, a noção de sexo natural se faz
cada vez mais suspeita. Se durante vários anos gênero (cultura) e sexo
(biologia) assumiram contornos distintos, Judith Butler (2003a) descre-
ve que o gênero é um modo de existir do próprio corpo e o corpo é um
campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas ao mes-
mo tempo. À vista disso, pensamos que tanto gênero como o sexo tor-
nam-se questões culturais.
Semelhante ao gênero, a sexualidade agora fala muitas lingua-
gens e se dirige a muitos tipos de pessoas oferecendo cacofonias
de distintos valores e possibilidades (WEEKS, 1998). A articulação entre
os discursos de gênero e sexualidade e seus modos de produzir subje-
tividades inventam identidades, desejos, práticas e acabam por fragi-
lizar certezas, denunciando que mesmo com toda a tentativa de regu-
lar os corpos e determinar suas práticas, os sujeitos, quando expostos
a graus de liberdade, são capazes de inventar experiências e se recons-
truírem por meio delas. Parafraseando Britzman (2001), as interpreta-
ções de gênero e sexualidade não seguem as determinações da cultura,
mesmo quando ela busca domesticar os corpos.
Podemos insistir que o corpo é a própria materialidade da alteri-
dade e, por isso, existe tanta preocupação com ele nas várias institui-
ções sociais, de modo geral, e nas escolas, de modo particular. Partindo
desse entendimento é que nos desafiamos a refletir sobre o modo
como a questão de gênero e sexualidade tem sido tensionada e dispu-
tada nas duas últimas décadas com o avanço de grupos conservado-

5 A existência de diferenças cromossômicas é bastante difundida. O problema reside em


que estas marcas não são absolutamente confiáveis, algumas vezes os cromossomos não
seguem a lógica esperada na divisão celular, originando esquemas de XXY, X, XXX ou XYY.
Outras vezes existem sujeitos cujos cromossomos dizem uma coisa e a aparência do cor-
po nos fornece outra mensagem. Aparentemente, isto nos sugere que a natureza se equi-
voca ou são equivocadas as várias generalidades que atribuímos à natureza do homem e
da mulher.

225
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

res, e como isso tem repercutido sobre o campo da Educação no Brasil


contemporâneo.
Para fins de organização de nosso pensamento, a partir do refe-
rencial teórico pós-estruturalista, o presente texto foi dividido em duas
partes. Na primeira, nos debruçamos sobre os modos como os mar-
cadores de gênero e sexualidade interagem com as dinâmicas escola-
res. Na segunda, problematizamos a linguagem como lugar de disputa
e controle. Para isso, nos voltamos para a análise de algumas iniciativas
de segmentos ultraconservadores presentes no interior da sociedade
brasileira contemporânea e que têm se dedicado a “combater” a pro-
palada “ideologia de gênero”, seja por meio da defesa de uma “escola
sem partido” seja pela demonização da linguagem inclusiva de gênero
ou não binária. Nas considerações finais, apontamos para a constata-
ção da existência de dispositivos que lutam para que tanto a linguagem
quanto o currículo e a escola (bem como os corpos, sujeitos e relações
que a enredam), enquanto artefatos culturais, sejam forjados a ferro
e fogo nas tramas de uma inteligibilidade cisheteronormativa.

Gênero e sexualidade na escola: sentidos criativos e tensões

Existe quem defenda que gênero e sexualidade não se configu-


ram nos movimentos curriculares e que eles não se encontram entre
as prioridades da escola. Essa afirmação nos revela uma situação ini-
cial: o desconhecimento das relações e práticas pedagógicas escola-
res. Historicamente, sexualidade e gênero, mesmo quando não verbali-
zados, estiveram presentes nas formas como as escolas estabeleceram
os seus discursos e orientaram suas práticas pedagógicas (LOURO,
1997; MÉIER, 2004; CÉSAR; DUARTE, 2013; CAETANO, 2016).
A situação em que se encontra o eixo gênero-sexualidade na es-
cola favorece os movimentos heteronormativos, as tensões curriculares
e acaba por consolidar a sexualidade como uma scientia sexualis, como
nos descreve Michel Foucault (1988). Na perspectiva do autor, have-
ria duas formas de apropriação da sexualidade por saberes, uma via
scientia sexualis, como já dito, e outra por meio da ars erotica. Enquanto

226
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que, na última, o prazer, a curiosidade e a subjetividade encontram-se


na agenda de discussão e na experiência; para a anterior, a narrativa
seria conduzida pela cientificidade com ênfase na preocupação com a
reprodução. Cotidianamente, ambas estão presentes e se tensionam
nos movimentos curriculares, entretanto, dada a forma moderna de or-
ganização da escola é indiscutível que a scientia sexualis goza de maior
prestígio e reconhecimento escolar.
Esta situação nos faz recordar que quando a sexualidade se con-
verte em objeto do conhecimento e, por sua vez, suas metáforas cientí-
ficas são aplicadas à população, ela gera outros movimentos de subal-
ternidades, de desigualdades, de controle e de fronteiras à felicidade e à
satisfação.

Quando tentamos mapear a geografia do sexo […] ou quando


tentamos ler a sexualidade através de uma teoria favorita, um
manual de instrução ou de acordo com as visões dos chama-
dos especialistas. Quando inserida no currículo escolar ou na
sala de aula universitária – quando digamos, a educação, a
sociologia, a antropologia colocam sua mão na sexualidade a
linguagem do sexo torna-se uma linguagem na sexualidade – a
linguagem do sexo torna-se uma linguagem didática, explica-
tiva e, portanto, dessexuada. Mais ainda: quando o tópico do
sexo é colocado no currículo, nós dificilmente podemos sepa-
rar seus objetivos e fantasias das considerações históricas de
ansiedades, perigos e discursos predatórios que parecem cata-
logar certos tipos de sexo como inteligíveis, enquanto outros ti-
pos são relegados ao domínio do impensável e do moralmente
repreensível. (BRITZMAN, 2001. p. 90)

Se contemplarmos a sexualidade como elemento da curiosidade,


uma potência de/das ideias, um dispositivo que desestabiliza as verda-
des identitárias, um desejo de ser amada/o e valorizada/o, que ao se va-
lorizar aprende a amar e a valorizar as e os demais, então, é possível
ampliar o conteúdo sobre a sexualidade em vez de limitá-la ao ato sexu-
al e, por sua vez, à reprodução dos seres humanos. Se assim a vemos,
o debate sobre ela se estenderá a toda a vida escolar, a todos os sujei-

227
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tos que buscam inventar e experimentar as possibilidades do mundo


(CAETANO, 2016).
Ao considerar que o corpo é o lócus de onde parte a produção
e as redes de significados em torno da cultura, as sexualidades e os
gêneros ganham significados e reafirmam a necessidade de problema-
tizar os currículos, à medida que eles são parte dos dispositivos pelos
quais as escolas orientam a formação de seus sujeitos. Com este en-
tendimento, partimos do princípio de que transitam discursos sobre
os gêneros nos currículos e estes projetam a cisheterossexualidade e a
masculinidade hegemônica6 como normas e referências. Não estamos
com isso atribuindo exclusivamente à escola a determinação e, tampou-
co, a responsabilidade de exprimir as identidades sociais, muito menos
sua sentença definitiva. Porém, as proposições e as interdições das es-
colas produzem sentidos, além de possuir “efeitos de verdade” nos e
com os sujeitos.
De forma mais ampla, o conjunto de discursos ou teorias do currí-
culo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante a partir
de descrições sobre o tipo de sujeito que elas consideram “ideal” para
constituir a sociedade e garantir o seu planejamento. Cada “teoria” leva,
em si, para determinado “modelo” de sujeito e corresponde a determina-
dos tipos de saberes presentes na organização curricular. Reconhecendo
as inúmeras instâncias socioeducativas por onde passam os sujei-
tos que integram as escolas e, por sua vez, os interesses implicados
nos seus fazeres pedagógicos, não limitamos a formação dos movi-
mentos curriculares à escola, e sim os ampliamos, entendendo-os como
tecnologias pedagógicas (arquitetura, livros didáticos, vestimentas, mí-
dia etc.), que significadas na cultura e obedecendo à determinada lógica
de planejamento, constroem, ensinam e regulam as corporalidades, pro-
duzindo modos de subjetivação e arquitetando formas e configurações
de estar e viver na escola e, mais amplamente, na sociedade. Portanto,
6 Pensar em masculinidade hegemônica é se ancorar em algo criado, construído, imaginado,
considerado como padrão e disseminado pelas experiências e pelos discursos e que, a
cada momento, busca ser consolidado nas performances ditas como masculinas. O que
queremos dizer, é que independente do contexto social, histórico e cultural, todos intuímos,
por meio das práticas educativas que nos formam, um modo de ser masculino. Esse, por
sua vez, é configurado, quase sempre, na negação do que é compreendido como feminino.

228
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

modelos de gêneros dicotômicos e complementares transitam nos mo-


vimentos curriculares e esses não se limitam aos conteúdos didáti-
cos, mas se expressam nos corpos e nas práticas pedagógicas dos e
das professoras. Em outras palavras, consideramos as corporalidades
como parte desses movimentos curriculares (CAETANO, 2016).
Como parte das instituições que interagem e se integram na so-
ciedade, a escola tem, em seu interior, sujeitos que trazem de suas re-
lações mais amplas os saberes que se configuram de modo desigual
– dadas as relações de poder – dos conhecimentos gerados com seus
movimentos curriculares. Isto significa assumir que, independentemen-
te das prescrições curriculares, a escola se caracteriza como espaço
privilegiado de encontro de diversas leituras e conhecimentos do mun-
do. Mesmo reconhecendo a legitimidade e a força dos conteúdos cur-
riculares prescritivos, a potencialidade e os saberes gerados por meio
das relações constituídas nos espaços escolares serão frutos de ten-
sões culturais. Assim, os movimentos curriculares, ainda que carentes
de reflexão, não são meras ações descritas ou magistérios neutros
sem resultados práticos na vida dos sujeitos da escola. Eles são confi-
gurados por sistemas de interesses, sejam estes elaborados pelos su-
jeitos diretamente envolvidos nas práticas escolares cotidianas ou por
aqueles que na gestão curricular orientam/determinam o que deve
ser ensinado na escola.
Os movimentos curriculares fazem parte das práticas educativas
que nos ensinam a cisheteronormatividade7 e o androcentrismo. Esses
dois dispositivos são constituídos por regras discursivas que uma
vez produzidas nas sociedades atravessam suas tecnologias educati-
vas e interpelam nossas subjetividades permitindo, com isto, o controle
ou a mediação do modo como vivemos nossos gêneros e sexualidades.
A cisheterossexualidade como norma junto ao androcentrismo
é a base do sistema político-subjetivo que alimenta as diferenças di-
cotômicas entre os sexos e busca naturalizar/estabelecer e valorizar
7 Aqui cisheteronormatividade é entendida como uma matriz de inteligibilidade que impõe aos
corpos e subjetividades tanto a heterossexualidade quanto a cisgeneridade como padrão ab-
soluto e exclusivo. É essa matriz que sustenta o discurso: “mulher-vagina-maternidade-procria-
ção-heterossexualidade” e “homem-pênis-racionalidade-paternidade-heterossexualidade”.

229
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

o governo do homem/masculino sobre os Outros (sobretudo, mulheres


e LGBTI8). A cisheteronormatividade não somente almeja manter a ló-
gica dicotômica e complementar entre homens e mulheres, como tam-
bém a degradação social daqueles/as que a subvertem. Ela é constituí-
da por normas produzidas amplamente nas sociedades e massificadas
por meio das pedagogias culturais e escolares, que controlam o sexo
dos sujeitos e que, para isso, precisam ser constantemente repetidas
e reiteradas para dar o efeito de substância, de natural e inquestionável.
Quanto ao androcentrismo, ele não representa somente a centralidade
e supremacia dos homens. Ele caracteriza-se pela cadeia de responsa-
bilidade que é cobrada dos homens e os levam a naturalizar o governo
de si, de outros (mulheres, filhos e filhas) e do público. O androcentrismo
se torna, assim, uma prisão que aliado à cisheteronormatividade é o pon-
to de partida da lesbofobia, homofobia, bifobia, transfobia e do sexismo.
Logo, existe uma aproximação que nos obriga a ver o androcentrismo
e a cisheteronormatividade como conceitos que se entrecruzam na ma-
nutenção das diferenças sexuais.
Neste sentido, a LGBTIfobia e o machismo são respostas da cishe-
teronormatividade destinada às sexualidades e gêneros dissidentes.
O sistema cisheteronormativo, para se manter na ordem das coisas, ne-
cessita se retroalimentar da lógica binária dos gêneros encabeçada pelo
governo androcêntrico. Daí, a necessidade de ideologicamente contro-
lar as tecnologias pedagógicas da escola e mais amplamente da cultu-
ra. Nestes pressupostos, articulam-se as identidades e as práticas cur-
riculares, ampliando para além dos processos familiares e/ou escolares
as tecnologias educativas que englobam a complexa rede no interior

8 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, pessoas trans e pessoas intersexo.

230
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

dos quais os sujeitos são transformados e aprendem a se reconhecer


como homem ou mulher ou inventarem seus desejos9.
Isto nos leva a afirmar que somos todos os dias interpeladas/os
por determinações regulamentares que nos ensinam sobre como deve-
mos avaliar, classificar e hierarquizar os sujeitos, produzindo em última
instância relações assimétricas. Os sistemas normativos operam verda-
des nos discursos e produzem modos de subjetivação que funcionam
como marcos regulatórios de nossos comportamentos e miradas sobre
o mundo.
A cisheteronormatividade se conecta diretamente com o an-
drocentrismo; primeiro, porque sustenta a ideia do governo homem/
masculino sobre a mulher/feminino; segundo porque ao exigir a tarefa
de governo do homem e de governada da mulher, impõe-lhes relações
intrínsecas e reprodutivas do sistema em uma lógica binária. Pensamos
que qualquer que seja a análise ou ativismo político das identidades
sexuais que não considere estes dois conceitos estará reduzindo e li-
mitando suas ações à superficialidade, sem contar, que estará reprodu-
zindo cadeias de governos alimentando a manutenção das estruturas
que abarcam um ou todos os dois conceitos.
As práticas educativas cisheteronormativas e androcêntricas
são tão legitimadas socialmente que raramente as questionamos. A par-
tir dos ensinamentos deixados por Monique Wittig (2006) sobre o papel
político das categorias mulher e homem, deveríamos nos interrogar so-
bre a oposição binária entre a heterossexualidade e a homossexualida-
de. Assim como o ideal de homem universal foi efeito de interesses po-
líticos que buscaram estabelecer ao longo da história uma hegemonia
branca, cristã, proprietária, adulta e heterossexual e a categoria “mulher”
9 Ainda que contraditório, não entendemos o desejo em uma dimensão ontológica. Não
cremos, em absoluto, que haja um desejo anterior a um conjunto de normas ou acordos
sociais que o faça livre. Nós o pensamos como criado singularmente, mas em redes de
relações. Vemos o desejo tal como a identidade, precedida de interpelações normativas.
Quando dizemos desejo, tal como fez Paul B. Preciado (2010), não nos referimos à noção
psicanalítica ou inconsciente de desejo, mas como o prazer e o corpo que se estrutura em
uma rede de relações de saber-poder. Desaprender ou questionar os “próprios” desejos,
aqueles que culturalmente aprendemos a desejar e a valorizar, é uma espécie de tarefa
muito longa e difícil, entretanto, fundamental à criação. É nesse complexo movimento que
inserimos nossa leitura de desejo e o chamamos de criativo.

231
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

(com suas implicações na ciência, nas políticas e, por sua vez, na es-
cola) como o outrem desse homem, a homossexualidade vem sendo
um corpo discursivo alimentado pela lógica heteronormativa e se carac-
terizando como o Outro absoluto da heterossexualidade.
Todavia, a homossexualidade não pode ser entendida como
o Outro absoluto da heterossexualidade, uma vez que a comunidade
LGBTI é bastante plural e diversa sendo constituída por pessoas que di-
vergem da Cisheteronorma tanto no âmbito da orientação sexual (gays,
lésbicas, bissexuais) como no âmbito das identidades de gênero (tra-
vestis, transexuais, transmasculinos, mulheres e homens transgêneros
e pessoas não binárias). Quando em discursos conservadores e fas-
cistas se resume a comunidade LGBTI a “um bando de homossexuais”,
a norma opera invisibilizando a nossa diversidade, retirando de nós o po-
der de nos definir, de afirmar nossas diferenças.
Ademais, dentro de uma perspectiva interseccional é importante
pontuar que a comunidade LGBTI está atravessada por questões de clas-
se, raça, nacionalidade, localização geográfica, geracionais, deficiências,
dentre outros marcadores sociais de diferença que, dentro de uma es-
trutura colonial de saber poder, produzem desigualdades. Desse mesmo
modo, é insuficiente analisar a cisheteronormatividade sem todos os de-
mais atravessadores que fortalecem o seu lugar como norma. Sobre es-
sas questões, a crítica transfeminista pensada por Letícia Nascimento
(2021) faz uso do termo “outreridades” para demarcar os diversos luga-
res que podemos ocupar em relação à norma. Afinal, a norma não é ape-
nas cisheterossexual, ela é branca, burguesa, cristã, urbana, de primei-
ro mundo, magra e sem deficiências. Deste modo, ao valer-se de uma
análise interseccional das opressões, a categoria “outreridades” busca
romper com binarismos reducionistas.
Na lógica binária não residem apenas os discursos LGBTIfóbicos.
Em seu outro extremo estão também os discursos favoráveis à ho-
mossexualidade. Como estratégia política, esses discursos revelam-se
limitados, à medida que não fragilizam, de fato, o sistema vigente he-
teronormativo ao mesmo tempo em que criam e alimentam outras di-
mensões de subalternidades. Deste modo, torna-se necessário atentar

232
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

para uma alteração epistemológica, política e subjetiva que efetivamen-


te destitui a lógica binária e seus efeitos.
Como bem nos lembrou Judith Butler (2003b), Michel Foucault,
ao criticar a configuração binária de poder e o modelo jurídico de opres-
sor e oprimido, nos oferece algumas estratégias para a subversão da hie-
rarquia de gênero e ao binarismo: práticas sexuais e afetivas dissidentes
(homossexualidade/lesbianidade/bissexualidade) versus heterossexu-
alidade, e cisgeneridade versus transgeneridade. Ainda que Monique
Wittig (2006), igual a Foucault, rechace o “sexo natural”, a subversão
dos opostos binários para Foucault não é a transcendência de Beauvoir
e Wittig, mas a sua proliferação até o ponto em que as oposições biná-
rias deixem de ter sentido em um contexto em que as diferenças múlti-
plas abundem e sejam difusas.
Sua tática, se assim podemos chamá-la, não é transcender as rela-
ções de poder, mas multiplicar suas diversas configurações de tal modo
que o modelo jurídico de poder como opressão e regulação deixe de ser
hegemônico. Talvez, desse ensinamento deixado por Foucault possa-
mos retirar as bases para proliferar inúmeras e ilimitadas formas de ser
homem e mulher, ou de não assumir gênero nenhum, a tal ponto que ne-
nhuma seja a “forma legítima” e, tampouco, alguma hegemonicamente
governe o fazer da escola. Assim, é importante fortalecer perspectivas
desconstrutivas, desde a escola, que possibilitem o questionamento
dos processos pelos quais um modo de sexualidade (a heterossexual)
e um governo de gênero (a cis-masculinidade) acabaram por se tornar
a norma e passaram a ser entendidas como “naturais”.

O lugar da linguagem na produção de diferenças

Se a escola, por meio de seus sujeitos, espaços, currículos, re-


lações, é um dos dispositivos institucionais produtores de normativi-
dades, acreditamos não ser mero acaso as inúmeras disputas tanto
em seu interior quanto em seu entorno. Nesse sentido, não podemos
ignorar a mobilização da organização de extrema direita autointitu-
lada de “Movimento Escola Sem Partido”, cuja atuação foi fundamen-

233
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tal para a eleição do atual presidente de extrema direita Jair Messias


Bolsonaro, em volta da atuação pedagógica de professoras e professo-
res Brasil afora.
Com o argumento de que profissionais da educação promoviam
uma “deturpação” ideológica na formação das/os estudantes brasi-
leiros, os partidários de tal “movimento” promoveram uma verdadeira
“caça às bruxas”, sustentada pela estratégia do pânico moral, por meio
da vigilância à prática docente e aos currículos escolares (MISKOLCI;
CAMPANA, 2017; JUNQUEIRA, 2017; 2018). Foram inúmeras as iniciati-
vas pelo país no sentido de estimular que estudantes, pais, mães e/ou
responsáveis pudessem gravar professoras/es em sala de aula e denun-
ciar possíveis tentativas de “cooptação ideológica”.
Tal “cooptação”, sustentada em uma agenda moral, dizia respeito,
sobretudo, a pautas relacionadas ao debate sobre questões de gênero
e sexualidade. De acordo com os defensores da “escola sem partido”,
tratava-se de “proteger” os/as estudantes da corrupção moral fomen-
tada pelos/as ideólogos/as de gênero. Na perspectiva de tais partidá-
rios, tais pautas seriam um verdadeiro atentado contra a “família” (não
qualquer família, mas a pequeno-burguesa cisheteronormativa), contra
os valores morais (exclusivamente os cristãos), contra as “regras da na-
tureza” (JUNQUEIRA, 2017).
Para tal, um verdadeiro “aparato de guerra” foi mobilizado. Foram
inúmeras as audiências promovidas por câmaras de vereadores e/ou
assembleias legislativas, reuniões de conselhos municipais e estaduais
de educação, conselhos tutelares, associação de pais e mestres etc.
Tratava-se de regular a prática docente a fim de que crianças e jovens
não fossem “vítimas” da “ideologia de gênero”. Nessa “caça às bruxas”,
a linguagem tornou-se o alvo privilegiado de disputa e controle.
Retomar todas as nuances que cercam o “escola sem partido” es-
capa ao escopo do presente trabalho. Vale lembrar que, no Brasil, inú-
meras pesquisas voltaram-se para o tema (MISKOLCI; CAMPANA, 2017;
JUNQUEIRA, 2017; 2018; OLIVEIRA; PASSAMANI; DUQUE, 2019). Para
o propósito do presente texto, interessa-nos pensar e problematizar o lu-

234
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

gar e a importância da linguagem na produção de corpos, subjetivida-


des e diferenças. Afinal,

não podemos perder de vista que a luta do “Escola sem parti-


do” em torno da proibição do falar não implica necessariamen-
te o “não falar”, mas o “falar de um determinado modo”. Em
outras palavras, é proibido falar de gênero quando se questio-
na o privilégio da heteronormatividade, mas não para reiterar o
binarismo assimétrico que justifica desigualdades. Mas, para
além disso, parece-nos que há um pressuposto fundamental já
apontado por Butler (2000, p. 111): […] o fato de que essa reite-
ração seja necessária é um sinal de que a materialização não
é nunca totalmente completa”. Nesse quadro, o sexo é apenas
“um efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual”
(BUTLER, 2000, p. 163). Entendido de outro modo, por que a
necessidade de proibir e ao mesmo tempo estimular? Porque
essa materialidade do sexo não é evidente como se pretende.
E mais do que isso, se precisa ser reiterada é porque não é na-
tural. (OLIVEIRA; PASSAMANI; DUQUE, 2019, p. 153)

Portanto, é na linguagem e pela linguagem que se produzem sen-


tidos, práticas, realidades e posições. Nessa perspectiva, acreditamos
não ser mero acaso o policiamento normativo promovido pelas/os de-
fensoras/es da “escola sem partido”. Ao contrário, ao policiar currículos,
livros didáticos e paradidáticos, discursos de estudantes e professoras/
es, e até mesmo termos utilizados em sala de aula (tais como “gêne-
ro”), era a linguagem como artefato político que estava sendo disputada.
Não por acaso, entre os anos de 2014 e 2016, uma série de discussões
em torno dos planos municipais e estaduais de educação mobilizou gru-
pos conservadores e religiosos para que o termo “gênero” fosse retirado
dos documentos.
A linguagem institui os lugares e marcas de gênero não apenas
pelos ocultamento dos sexos, mas pelas diferenciadas adjetivações
que são atribuídas aos corpos, pela escolha de verbos, associações
e analogias entre determinadas qualidades e/ou comportamentos.
Desse modo, no contexto educacional nada escapa à atividade criado-

235
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ra da linguagem. É na linguagem e pela linguagem que as diferenças


são produzidas, visões de mundo são estabelecidas, posições de sujeito
são instituídas.
A linguagem forjada em relações de saber-poder estabelece fron-
teiras, “normalidades”, acessos e/ou interdições. A partir desses pressu-
postos, das categorias utilizadas (por exemplo, “homem” como sinôni-
mo de “humanidade”), passando pelos termos escolhidos (por que uns
e não outros?), aos sentidos produzidos (ausências, presenças, ênfa-
ses), é na escola e, também, por meio dela (assim como na família e na
igreja) que o dispositivo de sexualidade é constantemente produzido
e reiterado.
Assim, tratando-se do avanço de discursos sexistas e discrimina-
tórios contra minorias sexuais (embora não de maneira exclusiva), deve-
mos trazer à baila como esses discursos se constroem por meio de uma
narrativa que absolutiza diferenças e naturaliza identidades e posições.
A escola, como um espaço político e de construção de subjetividades,
torna-se um lugar privilegiado de disputas que visam a uma definição
legítima (OLIVEIRA; PASSAMANI, DUQUE, 2019).
Do mesmo modo, mais recentemente o debate em torno da lin-
guagem não binária e inclusiva tem mobilizado importantes debates
na esfera social e política. Em decisão recente, o ministro do Supremo
Tribunal Federal Edson Fachin (2021) suspendeu uma lei do estado
de Rondônia10 que proibia o uso da linguagem neutra tanto em escolas
da rede de ensino do estado – sejam públicas ou privadas – quanto
em editais de concursos públicos. Um dos argumentos que embasou
a decisão de Fachin foi o de que a lei estadual seria um atentado contra
um dos direitos fundamentais da Constituição Federal (1988): a liberda-
de de expressão.
É importante ressaltar que os opositores ao uso da linguagem
não binária e/ou inclusiva afirmam tratar-se de mais um estratagema
da propalada “ideologia de gênero” (COVAS; BERGAMINI, 2021). Fabíola

10 De autoria do deputado estadual Eyder Brasil do Carmo vinculado ao PSL – partido da base
aliada do atual governo Bolsonaro.

236
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Covas e Lucas Bergamnini (2021) ao se debruçarem sobre as reper-


cussões na comunidade escolar – sobretudo protagonizada por pais
e mães e/ou responsáveis de estudantes – em torno da decisão do co-
légio carioca Liceu Franco-Brasileiro em utilizar a linguagem não binária,
evidenciam não apenas a importância em sua utilização para o reconhe-
cimento de direitos das pessoas LGBTI, mas sobretudo o caráter político
da linguagem. Assim, a linguagem, “enquanto instrumento de expressão
e reconhecimento” (COVAS; BERGAMINI, 2021, p. 54896), ou seja, en-
quanto produtora de realidades (nos termos de Butler, 2019), pode tanto
ser utilizada tanto como instrumento de reconhecimento quanto de não
reconhecimento – portanto, instrumento discriminatório.
Parafraseando Deborah Britzman (2005), o direito à liberdade
de exercer a sexualidade, inventar e viver o(s) gênero(s) não se com-
põe apenas de pequenas ações cotidianas, mas de profundo significado
na organização sociopolítica: o direito a inventar o Ser como possibili-
dade; o direito a elaborar e exercer o que lhe dá prazer e constituir-se
de forma singular o Estar no mundo; a dignidade; a informação adequa-
da às necessidades, a formulação de infinitas perguntas e a obtenção
de perguntas como respostas; a adesão ao que socialmente lhe fasci-
na; a curiosidade sobre o desconhecido e, sobretudo; o direito de amar
e com o amor transformar os dogmas do corpo e com o corpo o mundo.
Uma democracia sexual e de gênero necessariamente implica
um processo mais amplo de democratização em que seja desmantelado
definitivamente as barreiras que restringem o potencial e o crescimento
individual e coletivo, tais como: formas de expressão, a exploração eco-
nômica, a opressão racial e a desigualdade de gênero, o autoritarismo
moral e a desigualdade de acesso à educação. Isto não implica que de-
saparecerão ou deveriam desaparecer as dificuldades, as necessidades
e interesses, os conflitos de prioridade e de desejo. Ao contrário, a meta
seria o de obter o máximo de meios pelos quais estas diferenças e con-
flitos possam se resolver democraticamente.
A sonhada liberdade ou a opção de criar novas possibilidades
de liberdade e novas questões à vida são a base da sociedade demo-
crática e a possibilidade de construir o conceito de cidadania, de modo

237
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

a ajustá-lo às necessidades dos sujeitos e coletivos. Como na política


e na cultura, a sexualidade pode ser o lugar do impossível, em que o su-
jeito deixa suas contribuições e se torna autor de sua prática e invenção.
Com ela, em situações democráticas, o direito à linguagem é o limite
inegociável de criação e invenção de si.

Considerações Finais

Como sabemos, o currículo é o instrumento escolar que visuali-


za o corpo como a superfície em que ele inscreve ou imprime valores
culturais. Neste sentido, os movimentos curriculares que se realizam
no cotidiano não são elementos inocentes ou neutros de transmissão
desinteressada de conhecimentos, e sim elementos construídos a partir
dos interesses que são eleitos pelas escolas, pelos sistemas educativos
e, sobretudo, pelos e pelas professoras. Inúmeras pedagogias que en-
volvem a complexidade das identidades apontam para a noção de que
os sujeitos, ao longo do seu desenvolvimento físico e psíquico, por meio
das mais diversas instituições e ações sociais se constituirão como ho-
mem e mulher em etapas que não são sequenciais, contínuas ou iguais
e que de modo algum serão concluídas.
Essa configuração emerge porque os campos culturais e históri-
cos em que se formam os sujeitos são constituídos por disputas e con-
flitos e são capazes de produzir múltiplos sentidos e que nem sempre
esses são convergentes sobre as noções de gêneros ou identidades se-
xuais. Conhecimentos despolitizados, essencialistas, universais e des-
locados da história e dos espaços são simplistas porque as noções
de identidade de gênero e de identidade sexual destacam as diversida-
des das etapas pelas quais as culturas constroem e marcam os corpos
dos sujeitos a partir de processos históricos de classificação e hierar-
quização arbitrários.
Se levarmos em consideração os arranjos de gênero com outras
marcas sociais (classe, raça, geração, religião, nacionalidade, identida-
des sexuais) teremos um universo infinito de possibilidades e configu-
rações (DUQUE; OLIVEIRA; BECKER, 2020). No campo da engenharia

238
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

do corpo e do discurso são essas infinitas possibilidades de ser e estar


que se inscrevem as articulações entre gênero, sexualidade e as peda-
gogias críticas, ampliando a aprendizagem da sexualidade para além
dos processos familiares e escolares. A partir desses cenários, deverí-
amos nos perguntar, antes de tudo, como determinadas características
passaram a ser nomeadas e significadas como marcas legítimas de uma
identidade em detrimento de outras. Apresentamos alguns caminhos
analíticos que nos ajudam a compreender as arbitrariedades desses
processos ao longo do tempo e que são responsáveis por autorizar (ou
não) determinados corpos, existências e sentidos, mas é importante
destacar a necessidade de uma contínua reflexividade sobre as práticas
pedagógicas que, por vezes, funcionam como vontade de verdade e mo-
delam nossas subjetividades e modos de atuar no mundo a ferro e fogo.

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sexualidade. Rio Grande: FURG, 2017, p. 25-52.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência
de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária
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MEYER, Dagmar; SOARES, Rosângela. Corpo, gênero e sexualidade nas práticas
escolares: um início de reflexão. In: MEYER, Dagmar; SOARES, Rosângela
(orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 2004. p. 5-16.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para
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NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Editora
Jandaira, 2021.

240
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

OLIVEIRA, Esmael Alves de; PASSAMANI, Guilherme Rodrigues; DUQUE, Tiago.


Quando a “interdição” tenta invadir a escola e “ex-comungar” as diferenças:
algumas reflexões (in)discretas sobre o projeto “Escola sem Partido”. Revista
Periódicus, v. 2, p. 142-160, 2019.
PRECIADO, Paul B. Entrevista à Leonor Silvestri na Revista de Cultura Ñ. Disponível
em: http://edant.revistaenie.clarin.com/notas/2010/06/19/_-02203127.htm.
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WEEKS, Jeffrey. Sexualidad. Ciudad de México: UNAM/PUEG/Paidós género y
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WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Barcelona:
Egales, 2006.

241
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Pedagogia feminista para ensino


de língua inglesa

Jussara Barbosa da Silva1


Larissa de Pinho Cavalcanti2

Introdução

O presente artigo parte das experiências desenvolvidas no decor-


rer do projeto de pesquisa para iniciação científica PIBIC/PIC/CNPq “O
Papel Intercultural Da Mulher E Suas Implicações Para Ensino De Inglês
No Sertão Do Pajeú”, cujo objetivo geral era investigar questões de gê-
nero e valorização da mulher na educação básica em Pernambuco, mais
especificamente, em Serra Talhada, na relação de temas e propostas
para o ensino de inglês. A proposta de pesquisa foi construída a partir
da presença obrigatória da língua inglesa no currículo da educação bá-
sica, atenta aos altos índices de feminicídio, violência doméstica e con-
tra a mulher no Brasil, bem como apresenta a má colocação do Brasil
no ranking de igualdade de gênero. Com o objetivo de trabalhar a língua

1 Discente de graduação da Licenciatura em Letras da UFRPE-UAST. Ex-bolsista de PIBIC/


PIC-CNPq (2020-2021). Integrante do DADÁ – Grupo de Estudos, pesquisa e extensão so-
bre Relações de Gênero, Sexualidade e Saúde da UAST-UFRPE.
2 Docente Adjunta da Licenciatura em Letras da UFRPE-UAST. Coordenadora do DADÁ –
Grupo de Estudos, pesquisa e extensão sobre Relações de Gênero, Sexualidade e Saúde da
UAST-UFRPE.

243
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

inglesa integrada aos temas recorrentes em nossa sociedade, daremos


ênfase à realidade do estado de Pernambuco.
Em 2019, o Brasil já apresentava um desempenho insuficiente
em relação à desigualdade de gênero, ocupando a 92ª posição no ranking
global neste quesito, e o 130º lugar (em uma classificação de 153 paí-
ses) no quesito que analisa a igualdade salarial entre homens e mulhe-
res que desempenham trabalho semelhante, como descrito por Assis
Moreira (2019). Avanços como a Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher, a Lei Maria da Penha, o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres, o Programa Pró-Equidade de Gênero, a Política e o
Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres esbar-
ram na representatividade política limitada, e na inviabilização das ques-
tões de gênero e sexualidade na educação escolar. Exemplo dessa in-
viabilização é a Lei n. 32/2017 do município de Petrolina que proíbe
as atividades pedagógicas que visem a reprodução de conceito de ide-
ologia de gênero na grade de ensino de escolas públicas municipais
e particulares da cidade.
Além disso, um levantamento realizado pelo Observatório
da Segurança em Pernambuco revelou que o estado era o segundo
maior com relação aos números de feminicídios entre os anos de 2019
e 2020. Em nossa experiência docente, as várias reportagens centra-
das em agressões contra mulheres, na esfera privada e em locais pú-
blicos, que circulam em canais de mídia locais no território do Sertão
do Pajeú, adicionavam o senso de urgência para uma educação cen-
trada no respeito à mulher e em sua valorização pelos papéis sociais
que desempenha.
Partindo de nosso local de atuação, portanto, nos alinhamos com a
perspectiva do ensino crítico de língua inglesa, defendendo que uma edu-
cação linguística socialmente responsável comporta discussões perti-
nentes aos contextos culturais, sociais, políticos, emocionais em que
se situam os sujeitos da aprendizagem, como também propõe Daniel
Ferraz et al. (2019). Não assumimos tal compromisso sem a consciên-
cia de que o documento norteador da educação brasileira e das propos-
tas curriculares, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), publicada

244
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

em 2017, ou seu suplemento, os Temas Contemporâneos Transversais,


obrigatórios para as etapas de ensino desde 2018, quando foi publicado,
ignoram (ou silenciam) as oportunidades dentro da educação escolar
básica de se realizar um trabalho educacional para igualdade de gêne-
ros. De fato, a própria BNCC foi bastante criticada por remover a diversi-
dade de gênero e questões a ela pertinentes, preferindo o uso de termos
vagos como diversidade humana, diversidade de indivíduos, de grupos
sociais e diversidade cultural. Uma educação pautada em valores de-
mocráticos para formação cidadã, como apontado na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (BRASIL, 2017) não pode se eximir da discussão
direta dessas questões.
No que diz respeito ao ensino de língua inglesa, em particular,
entendemos que a confluência de diferentes realidades sociais e cul-
turas demanda um ensino de base crítica e intercultural que permita,
por sua vez, estudar e discutir a representação e o papel das mulheres.
Tal compreensão dialoga intimamente com a proposta de pedagogias
feministas que circulam pela América Latina. No artigo que se segue,
então, realizaremos uma discussão sobre a apresentação de perspecti-
vas feministas para educação e da perspectiva do ensino de inglês cri-
ticamente orientado, seguidas da exposição das conquistas do nosso
projeto de pesquisa.

O que significa uma pedagogia feminista

Para que a proposta que discutimos faça sentido, é preciso enten-


der que as pessoas que são e se tornarão docentes precisam se reco-
nhecer como elementos de socialização e compreender a responsabili-
dade que carregam a partir deste lugar na reprodução de desigualdades
de gênero. Com esse reconhecimento, é possível propor práticas de for-
mação docente que pensem uma educação feminista não patriarcal
e decolonial. Dessa maneira, discutir a necessidade de uma pedagogia
feminista é preciso reconhecer que a construção da sociedade ociden-
tal, notadamente, a brasileira, tem por base estruturas patriarcais basea-
das na distinção sexo/gênero e que valoriza o masculino, heterossexual,

245
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

branco, urbano e cristão. A partir dos diversos movimentos feminis-


tas, a construção social das categorias de gênero e sexo abre portas
para se questionar como uma educação feminista poderia transformar
e dinamizar a sociedade e as próprias relações entre diversos gêneros.
De acordo com Irene Martín (2018, p. 353),

As pedagogias feministas tomam como ponto de partida a vi-


sibilização das estruturas patriarcais que influenciam todas as
dimensões do desenvolvimento das pessoas, fazendo referên-
cia a: o individual, o político, o econômico, o laboral, o familiar,
o ócio, os corpos, o sexual, o afetivo, o público, os meios de
comunicação, etc.

Para a autora é fundamental que, por uma perspectiva feminista


de educação, possamos questionar as relações de produção e repro-
dução do sistema político e econômico, uma vez que a desvalorização
da mão de obra de mulheres no mercado de trabalho toma por base vá-
rios dos construtos de domesticidade, maternidade e docilidade da mu-
lher. Ao colocar em diálogo educação e feminismo, não se pode perder
de vista que ambos são conceitos plurais que envolvem diferentes posi-
cionamentos, ações, lutas e demandas e, por isso, alcançam várias esfe-
ras da sociedade: a política, a econômica, a cultural e a pessoal. De acor-
do com Nuria Varela (2003), não se trata de um novo campo teórico,
mas de um processo aberto de denúncia, resistência e transformação.
Nesse sentido, podemos pensar em uma aproximação de princí-
pios da pedagógica crítica com uma educação feminista, pois ambas
as perspectivas contemplam a emancipação, a reflexão e a produção
de saberes e conhecimentos pautados no amor, na tolerância e na con-
cepção do outro como pessoa situada em um contexto socioeconômi-
co e cultural, capaz de aprender e ensinar. Nos estudos de Luz Ochoa
(2008) esse posicionamento fica claro quando defende que a pedagogia
feminista é uma pedagogia crítica para a emancipação, surge e se cons-
trói em um contexto de enfrentamentos a distintas formas de opressão
(gênero, classe, raça, entre outras) envolvendo atores sociais do mundo

246
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

acadêmico, político e social. Citando Paulo Freire, esta autora aponta


que na prática de uma pedagogia feminista “é importante recuperar o di-
reito e o dever das pessoas de construir sua autonomia, o direito e o
dever das pessoas oprimidas, enganadas, etc. de resistirem” (OCHOA,
2008, p. 129).
Irene Martín e Gema Artiaga (2017) argumentam que uma concep-
ção feminista de educação pode converter a desigualdade em esperan-
ça de que as pessoas possam se reinventar e reformular, desaprenden-
do as lições de gêneros do patriarcado. Em sua preocupação com uma
educação plural e antirracista, Luiz Oliveira e Vera Candau (2010, p. 16)
sustentam que uma educação sob essa ótica foi impulsionada “a par-
tir do crescimento das lutas dos movimentos negros e da emergência
de novas produções acadêmicas sobre questões relativas à diferença
étnica, ao multiculturalismo e às identidades culturais”.
A pesquisa que realizamos e detalharemos adiante alinha-se prin-
cipalmente com a ampliação da educação para além dos conteúdos cur-
riculares oficiais, pensando o ensino de língua inglesa que redireciona
metodologias, incentiva a reflexão a partir da colaboração, visibiliza dife-
renças e diversidades em uma perspectiva interseccional3 e intercultural
de modo a possibilitar principalmente pela própria pesquisa a formação
docente de qualidade, a educação para cidadania e a educação para
a paz e a transformação. É preciso entender que, em termos de prática
em sala de aula, desconstruir o pensamento hegemônico significa, além
de problematizar nas aulas, começar, por exemplo, a discutir sobre os di-
reitos de todas as mulheres; ler livros escritos por mulheres; dar aulas
com materiais que sejam construídos a partir do protagonismo de me-
ninas e mulheres; utilizar uma linguagem mais abrangente que induza
à reflexão sobre o lugar que ocupam na sociedade.
Uma contribuição fundamental da obra de Irene Martín (2018)
são as estratégias para construir uma pedagogia feminista. Ao propor
3 Usamos o termo como pensado por Kimberlé Willims Crenshaw (2002) com a finalidade de
entender como as opressões de raça e de gênero operam de forma conjunta nas socieda-
des pós-coloniais. A sobreposição dessas opressões coloca determinados sujeitos em um
lugar de maior vulnerabilidade em relação aos outros, a exemplo disso, às mulheres negras.

247
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

justamente a questão de como desenvolver essas estratégias, a autora


aponta, dentre outros fatores, a organização dos espaços físicos (consi-
derando inclusive as salas de aula), as histórias das mulheres, as cren-
ças e ideologias que perpassam os processos educacionais e, por con-
seguinte, influenciam a dinâmica das relações e das trocas no ambiente
escolar, e as linguagens não sexistas e a metodologia de pesquisa ação-
-participativa. Vemos que as estratégias citadas anteriormente dialogam
também com os elementos-chave citados por Luz Ochoa (2008), para
quem é preciso salientar que, por um lado, projetos educativos feminis-
tas são graduais, lentos, requerem respeito e valorização das pessoas
que aprendem e, por outro, implicam o horizonte de igualdade, de justiça
e de solidariedade.
Ainda nas questões epistemológicas que convergem no diálogo
entre feminismos e pedagogia, Luz Ochoa (2008) defende o diálogo en-
tre o feminismo, a democracia de gênero e a educação popular. Para
a autora, “a tradução pedagógica do feminismo talvez seja uma tarefa
inconclusa que talvez apenas tenha se iniciado, sem dúvida, o que existe
é uma leitura feminista de muitos elementos metodológicos de outros
discursos” (OCHOA, 2008, p. 134). No que diz respeito à democracia
de gênero4, Ochoa (2008) pontua a necessidade de participação política
e legitimação de direitos pautados na democracia, na cidadania e nos
direitos humanos.
Por fim, a educação popular é particularmente importante no de-
bate da autora (cuja obra se concentra em projetos realizados com as-
sociações de mulheres) porque “a nível de ferramentas didáticas não há
praticamente nenhuma diferença entre as propostas da educação po-
pular e das descritas pelas educadoras feministas, nesse nível concreto
parece que não houve uma revisão e transformação feminista” (OCHOA,
2008, p. 138). É principalmente em virtude da concepção de que todas
as pessoas podem ser capazes de aprender e de ensinar, em uma rela-
ção sem hierarquias verticais para construção e reformulação de sabe-
4 Termo cunhado por Marcela Largarde (1996) para se referir a uma proposta que ressigni-
fica noções tradicionais sobre a democracia ao incorporar nelas tanto novas dimensões
como novos projetos políticos e formas de ação para maior equidade entre os gêneros.

248
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

res, em uma realidade construída por múltiplos saberes, que se justifica


a aproximação entre a concepção freiriana, as propostas de educação
popular e as pedagogias feministas.
Em diálogo com Ochoa (2008), bell hooks (2020) afirma que o fe-
minismo, ou melhor, que uma educação feminista, deve firmar-se como
espaço em que todos, todas e todes e, portanto, homens, podem e de-
vem fazer parte destas discussões. Diante disso a autora afirma que,
“sem ter homens como aliados na luta, o movimento feminista não vai
progredir [...]. É necessário transformar o inimigo interno antes que pos-
samos confrontar o inimigo externo. O pensamento e o comportamen-
to sexistas são as ameaças” (HOOKS, 2020, p. 31). Quer dizer, em um
contexto de pedagogia feminista nas escolas, é necessário que faça-
mos das meninas e meninos aliados nessa luta, para que se tornem ho-
mens e mulheres conhecedores dos lugares que ocupam e, nesse sen-
tido, busquem uma sociedade antissexista. Ainda em relação à escola,
Guacira Louro (1997, p. 57) afirma que essa instituição:

[…] incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que


nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham
acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam,
através de múltiplos mecanismos de classificação, ordena-
mento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela so-
ciedade ocidental moderna começou por separar adultos de
crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferen-
te para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou
os meninos das meninas.

Em contrapartida, as muitas lutas, sobretudo de movimentos


de mulheres, dos movimentos sociais e de grupos socialmente margina-
lizados passaram a compartilhar o espaço da escola, fazendo com que
ela precisasse ser diversa: “organização, currículos, prédios, docentes,
regulamentos, avaliações iriam, explícita ou implicitamente, ‘garantir’ –
e também produzir – as diferenças entre os sujeitos” (LOURO, 1997, p.

249
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

57). Nesse contexto, urge a necessidade de pedagogias voltadas para


inclusão e protagonismos desses sujeitos.
Vale salientar o intrínseco diálogo entre a interculturalidade e a
proposta de uma educação ou pedagogia feminista. Para entender o que
significa aquele conceito no contexto específico mencionado por Ochoa
(2008), em que a interculturalidade trabalha para eliminar a opressão e a
marginalização de grupos étnicos por meio da análise das contradições,
é preciso retomar os trabalhos de Catherine Walsh (2009). De acordo
com a autora, a interculturalidade deve ser entendida como desígnio
e proposta de sociedade, como projeto político, social, epistêmico e éti-
co dirigido à transformação para além da teoria, ativando ações em cada
esfera da sociedade: política, educativa e humana.
Os aspectos mais estruturadores da prática pedagógica de Ochoa
(2008) são as ações de mediação da aprendizagem (conscientizar, sen-
sibilizar e desconstruir) e os objetivos e conteúdos de aprendizagem.
Dentre os dois tipos de conteúdo que a autora pontua, os conteúdos
de compreensão de si e da realidade (autonomia, equidade, democra-
cia, história de mulheres, cidadania, direitos, família, sexualidade, saúde,
violência) foram de particular importância durante o percurso de nos-
sa pesquisa, servindo como temas norteadores para as proposições
pedagógicas.
Por fim, para entender o que realizamos na pesquisa, achamos
válido discutir a proposta de Irene Martín e Gema Artiaga (2017). Para
as autoras, falar de uma pedagogia com viés feminista, crítico e decolo-
nizador é falar de interseccionalidade, de multidimensionalidade, da in-
clusão das diferenças e a transformação social. Como isso não ocorre
sem confrontar as concepções patriarcais, coloniais, as autoras dividem
o processo de formação em duas etapas: 1) sensibilização feminista
sobre os estereótipos e papéis de gênero que circundam e são repro-
duzidos na atividade profissional docente; e 2) a construção de novas
formas de exercer a docência, com produção de materiais didáticos,
conteúdos, linguagens e ações. Para entender como as concepções
feministas podem contribuir com o ensino de língua inglesa, é preciso

250
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

considerar primeiro como se concebe este ensino e qual a pertinência


da temática em termos curriculares para a escola básica.

Ensino de línguas no Brasil: do gênero aos documentos oficiais

Para que possamos entender a convergência entre documentos


oficiais para educação no país e a perspectiva feminista para a peda-
gogia do ensino de línguas, é preciso, primeiramente, estar ciente que a
escola é um local de reprodução de normas sociais, de modo que cur-
rículos, práticas de ensino, teorias, linguagem, e materiais didáticos
são locais que articulam e podem reproduzir diferenças de gênero, se-
xualidade, etnia e classe. De acordo com Guacira Louro (1997, p. 64):

É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas


o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as
dão ao que aprendem. Atrevidamente é preciso, também, pro-
blematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo,
aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas “críticas”).

Seguindo o pensamento da autora, a linguagem é um dos campos


em que e por meio da qual as desigualdades se reproduzem e se natu-
ralizam, cabendo à perspectiva da educação crítica defender uma pro-
posta feminista para ensino de língua inglesa. Destacamos que a lin-
guagem dialoga intrinsecamente com a cultura, formando um conjunto
de símbolos e discursos que, legitimados nas práticas sociais, prescre-
vem a nossa conduta, o que implica também as práticas de significação
e produção de sentidos e conhecimentos para as questões e relações
de gêneros. Justamente por isso que podemos pensar, junto a Ivia Alves
et al. (2011, p. 93) que “se a linguagem, que constrói o discurso hege-
mônico, foi construída (partindo de dicotomias assimétricas), ela pode
ser desconstruída e reconstruída (seja por processos de ressignificação
ou por neologismos e novas metáforas, ditos) sob outra perspectiva.”.
A proposição de uma educação linguística crítica em viés femi-
nista para ensino de língua inglesa, por sua vez, requer o conhecimento
das potencialidades e das dificuldades que o ensino de línguas encon-

251
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tra no Brasil. De modo particular, é preciso (ainda) encarar as crenças


de que somente o investimento na rede privada pode garantir acesso
ao aprendizado real de outra língua e combater as acomodações deri-
vadas das insuficiências estruturais da escola pública. O desprestígio
curricular da língua inglesa faz parte de diferentes projetos para a edu-
cação no país à medida que as leis e diretrizes educacionais são remo-
deladas e alcançam a maioria da população no ensino público. Como
frutos dessas políticas e dos fatores que dificultam o processo de mu-
dança das propostas e práticas na educação brasileira tem-se docentes
pouco fluentes ou cujas aulas se baseiam em perspectivas teórico-me-
todológicas calcadas em princípios estruturalistas5.
Em contrapartida, desde 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação, passando pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, pelas
Orientações Curriculares para o Ensino Médio e chegando, mais recen-
temente, na Base Nacional Comum Curricular, as “línguas estrangeiras”
estão presentes nos currículos escolares, algumas, como a língua ingle-
sa, em caráter de obrigatoriedade e vinculadas à leitura crítica do mundo.
No caso particular da Base Nacional Comum Curricular, as sugestões
epistemológicas e pedagógicas fazem convergir multiletramentos, in-
terdisciplinaridade, tecnologias educacionais e multiculturalismo, visan-
do o “agenciamento crítico dos estudantes e para o exercício da cida-
dania ativa” em uma “educação linguística, consciente e crítica, na qual
as dimensões pedagógicas e políticas estão intrinsecamente ligadas”
(BRASIL, 2018, p. 241). Esse direcionamento da BNCC está alinhado
às concepções da linguística aplicada crítica que também integra nos-
sa perspectiva de trabalho ao evidenciar a relevância de questões so-
ciais, políticas e morais envolvendo a linguagem, como salienta Alaistair
Pennycook (2010).
Por outro lado, não nos fazemos ignorantes ao fato de que a BNCC
torna pouco nítida a presença de questões sociais mais salientes na di-
mensão humana dos processos de ensino-aprendizagem (como as re-

5 A constatação de que o ensino de língua inglesa não se realiza de modo eficaz em diferen-
tes contextos escolares já foi realizada em diferentes obras (ver LIMA, 2011) e as explica-
ções históricas dessa insuficiência podem ser averiguadas em outras pesquisas (ver Leffa
1999, 2016).

252
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

lações de gênero e as sexualidades). Além disso, vários trabalhos como


os de Juliana Santana e Felipe Kupske (2020) apontam as dificulda-
des propositivas da BNCC para o ensino de inglês, tanto no excesso
de habilidades prescritas – indo contra o pouco tempo disponibilizado
para as aulas de inglês no Brasil – quanto na ênfase do conhecimen-
to linguístico sobre a dimensão cultural, a qual pode acabar ignorada.
Outrossim, para o Ensino Médio, a proposição de conteúdos curricula-
res ou de eixos de trabalho perde espaço para uma concepção ampla
de campos de atuação social e competências e habilidades comparti-
lhadas com língua portuguesa, artes e educação física para aprofundar
os repertórios já construídos na etapa anterior da educação.
Retomando os pilares da BNCC para ensino de língua inglesa, é por
meio da perspectiva do multiculturalismo que aproximamos a proposta
curricular da Base à uma prática de ensino de línguas em viés feminista.
Considerando que a concepção teórica da BNCC acerca do multicultura-
lismo carece de aprofundamento, aparecendo frequentemente ao lado
da palavra multilíngue, infere-se que diz respeito à diversidade cultural
das diferentes populações falantes de língua inglesa no mundo. Diante
disso, interpelamos essa concepção com a noção de interculturalidade
crítica discutida por Catherine Walsh (2009). Não bastando apenas to-
mar consciência das diferenças culturais e da sobreposição de umas
sobre outras, a interculturalidade propõe a reversão do polo gerador
de conteúdo, isto é, dar vez aos povos marginalizados e descentraliza-
dos socialmente.
Em outras palavras, a interculturalidade é uma proposta de socie-
dade e projeto político, social, epistêmico e ético que busca a transfor-
mação estrutural para dar lugar a uma sociedade radicalmente distinta.
Nessa perspectiva, trazer à tona a pluralidade dos povos significa, es-
pecialmente em países colonizados, considerar as questões étnico-ra-
ciais e de gênero. Isso se alinha às orientações da BNCC, no sentido que
“favorece a reflexão crítica sobre diferentes modos de ver e de analisar
o mundo, o(s) outro(s) e a si mesmo” (BRASIL, 2018, p. 242).
Tendo-se a necessidade de apresentar aos estudantes conteúdos
que atentem para diferenças e desigualdades de gênero decorrentes

253
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

de processos coloniais violentos, é preciso chamar a atenção para como


as desigualdades se acentuam quando são atribuídos múltiplos fatores
causadores de opressões, incentivar a investigação das causas que atri-
buem tais desigualdades e formas para reverter situações de agressão.
Trabalhar sobre educação de gênero é ensinar a sobreposição que ocor-
re do masculino em relação ao feminino, atentar para sobreposições
ainda maiores se pensar sobre branquitude e negritude, pensar sobre
os diferentes cenários socioeconômicos, entender sobre diferentes ma-
nifestações de gênero e sexualidade e problematizar situações em que
ocorrem violências interseccionadas.
A superação de um modelo se faz mediante uma prática que ques-
tione modelos sociais tradicionais, levando a repensá-los ou redefini-los,
de modo que as diferenças sejam valorizadas, assim como a qualida-
de de vida, a participação política, o trabalho produtivo e reprodutivo
etc. A escola como ambiente formador do conhecimento mantém-se
como um importante local para essa mudança, permitindo pensar o en-
sino de línguas como espaço propício para uma proposta de educação
linguística pelo viés feminista. Por isso, tomando a proposta da BNCC
e suas implicações no ensino de língua inglesa, procuramos desenvolver
estratégias que aproximassem o ensino de inglês das questões de gê-
nero considerando, dentre outros fatores, a participação de estudantes
no uso da língua inglesa e nas reflexões propostas e o material didático
comprometido com a valorização da mulher.

Ensino de Língua Inglesa Intercultural e Feminista:


uma articulação possível

O projeto de pesquisa “O Papel Intercultural Da Mulher E Suas


Implicações Para Ensino De Inglês No Sertão Do Pajeú” foi desenvol-
vido em dois planos de trabalho voltados para o Ensino Fundamental
Anos Finais e o Ensino Médio, respectivamente. Além de investigar
como os documentos oficiais da educação e do ensino de língua ingle-
sa no Brasil se aproximam dos debates de gênero, era objetivo maior
do projeto desenvolver estratégias pedagógicas e materiais didáticos

254
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

para o ensino de língua inglesa na educação básica pautados na temáti-


ca de gênero, na valorização da mulher e na pedagogia feminista.
Para isso, foi preciso investigar os documentos oficiais da edu-
cação brasileira e as teorias e práticas pertinentes ao ensino de língua
inglesa. Na confluência dessas questões e para dar apoio às proposi-
ções de planos de aulas e criação de materiais didáticos, foi realiza-
do um exercício de análise de outros planos de aula disponibilizados
em plataformas nacionais e internacionais que falassem sobre mu-
lheres ou sobre feminismo com o objetivo de analisar as atividades
de cada plano e de observar se as temáticas eram exploradas em diálo-
go com outras diversidades (interseccionalidade) e em uma perspectiva
de interculturalidade.
Com as palavras chave “woman”, “gender” e “feminism” busca-
mos em plataformas nacionais (Ministério da Educação; Nova Escola)
e internacionais (busyteacher, linguahouse, ONU, British Council Learner)
materiais disponíveis para ensino de línguas e com base na articula-
ção de tema e atividades, selecionamos oito planejamentos. Em uma
análise temática, identificamos que os planos abordavam as questões
de gênero de forma ampla (como “Dia da Mulher”) ou por um viés espe-
cífico (mulheres atuando em campos específicos, por exemplo). É inte-
ressante destacar que, como se tratava de planos de língua inglesa, ape-
nas os materiais internacionais deram ênfase às questões de oralidade.
Além disso, somente dois planos (um nacional e outro internacional)
partiam de perspectivas de interculturalidade e de interseccionalidade,
abrindo para alguma discussão ou reflexão sobre mulheres negras (as
indígenas não constaram em nenhum material) ou mulheres em diferen-
tes países. Nesse sentido, vimos prevalecer a representação da catego-
ria “mulher” como mulheres brancas do hemisfério norte.
Os materiais analisados nos mostraram, portanto, que as temáti-
cas de gênero precisam estar mais presentes em sala de aula e mostrar
a diversidade de mulheres para que estudantes possam compreender
que mulheres negras e indígenas também devem e podem ocupar lu-
gares sociais que ainda lhes são negados. Essa foi uma preocupação,
também, no desenvolvimento dos planos de aula desta pesquisa.

255
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Para pensarmos os planejamentos e a seleção ou criação de ma-


teriais didáticos, primeiramente, consideramos a divisão dos planos
de trabalho de acordo com as etapas da educação básica para ensi-
no de inglês (Ensino Fundamental Anos Finais e Ensino Médio), obser-
vamos os direcionamentos da BNCC e dos Parâmetros Curriculares
Estaduais para os conteúdos temáticos e específicos do componente
curricular de língua inglesa. Em função de nossa discussão sobre pe-
dagogia feminista, foi possível delimitar os temas educação, mercado
de trabalho, saúde e família para engendrar a reflexão sobre a atuação
da mulher em diferentes sociedades e as construções da desigualdade
de gêneros.
Apesar das críticas que já externamos a respeito da BNCC, é pre-
ciso afirmar que, ainda assim, o documento nos dá respaldo quando
considera que o ensino crítico da língua inglesa permite “uma educa-
ção linguística voltada para a interculturalidade, isto é, para o reconheci-
mento das (e o respeito às) diferenças, e para a compreensão de como
elas são produzidas nas diversas práticas sociais de linguagem, o que
favorece a reflexão crítica sobre diferentes modos de ver e de analisar
o mundo” (BRASIL, 2018, p. 242).
Com a seleção dos temas, pensando na perspectiva de multile-
tramentos desenvolvida por Bill Cope e Mary Kalantzis (2000) e base
da proposição curricular da BNCC, as aulas de línguas devem estar
situadas em contextos sociais e articuladas à análise e crítica da so-
ciedade. Para isso é preciso atentar, conforme Roxana Rojo e Eduardo
Moura (2012, p. 13), para “dois tipos específicos e importantes de multi-
plicidade presentes em nossas sociedades [...] a multiplicidade cultural
das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos
por meio dos quais ela se informa e se comunica”. Logo, procuramos
pautar a organização dos planos de aula em diferentes gêneros textuais
que fossem motivadores para as discussões bem como fonte de input
linguístico para as aulas de língua. Em particular, procuramos inserir ma-
teriais verbo-visuais e que circulassem nos meios digitais, pois essas
diferentes linguagens favoreceriam o entendimento do tema e seriam
de fácil acesso para os/as estudantes.

256
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Para isso se desdobrar em prática, é preciso que docentes estejam


aptos a enxergar limitações de materiais didáticos e métodos prescritos
de aula, recorrendo, de outro modo, à autonomia e a decisões informa-
das pelas perspectivas de ensino da era pós-método como propõe Bala
Kumaradivelu (2001).

Desenvolvimento dos materiais pedagógicos: desafios


na articulação entre teoria e prática

Para a produção dos materiais, após a definição das categorias


educação, mercado de trabalho, saúde e família, com base nos estudos
de pedagogias feministas de Luz Ochoa (2006) e Irene Martín (2018),
buscamos articular as habilitadas linguísticas orientadas pela BNCC
convergentes com a proposta pedagógica. Para isso, usamos o assunto
geral das aulas como condutor para o estudo da língua, fazendo com que
a reflexão sobre as questões de gênero mobilizasse o uso do conteúdo
aprendido.
Procuramos criar, de acordo com Solange Pacci (2007, p. 14) “con-
dições para que o aluno não seja um leitor ingênuo, mas que seja críti-
co e reaja aos textos com que se depare e entenda que por trás deles
há um sujeito, uma história, uma ideologia e valores particulares e pró-
prios da comunidade em que está inserido”. Sendo assim, para o Ensino
Fundamental Anos Finais, os planejamentos das aulas envolveu notícias
jornalísticas com o uso conjugado da plataforma Twitter e uma faixa
de vídeo específica para o ensino de línguas conjugado com o uso de
memes. Já para o Ensino Médio, foram definidos quatro gêneros tex-
tuais – propaganda, cartum, cartaz e música. Como não é possível
por questões de espaço, neste texto, descrever a proposta de cada pla-
no, apresentaremos aspectos gerais de como articulamos a perspectiva
feminista ao ensino de língua, outrossim salientamos pelos mesmos
motivos, que nem todas as categorias elencadas previamente serão
abordadas.
Para o 9º ano do Ensino Fundamental Anos Finais, um dos plane-
jamentos foi direcionado ao nono ano com a discussão da representa-

257
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

tividade lésbica/queer nos desenhos animados. A base da discussão


foi uma matéria publicada em site de notícias internacional e o foco resi-
diu nas habilidades de leitura e argumentação em língua inglesa. O uso
conjugado da plataforma Twitter se deve ao uso da mesma pelo público
adolescente para discussões sobre temas polêmicos e de curta dura-
ção na mídia. Outro plano desenvolvido, direcionado ao 6º ano, tomava
por base a discussão das condições de trabalho das mulheres a partir
de uma faixa de vídeo para aulas de inglês em que uma mulher afirma
ter ido trabalhar em seu dia de folga. Além das questões gramaticais,
a proposta deste plano era discutir o tempo livre das mulheres.
Para o Ensino Médio, os planejamentos envolveram a imagem
das mulheres em propagandas e função do casamento na socieda-
de; a posição das mulheres (negras) no mercado de trabalho por meio
de cartuns e cartazes; tráfico de pessoas e exploração sexual; e a ro-
mantização da maternidade e dos arranjos familiares. Como a BNCC
do Ensino Médio não pontua conteúdos linguísticos específicos, todos
os planos elaborados envolveram habilidades de leitura e comunicação
oral, tanto a partir dos textos verbo-visuais escritos quanto dos vídeos
– sobre os quais foram desenvolvidas com maior detalhamento ativida-
des de compreensão oral.
Ademais, como o Ensino Médio, de acordo com a BNCC, busca
“o aprimoramento do educando como pessoa humana, considerando
sua formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico” (BRASIL, 2018, p. 67) foram planejadas atividades
centradas na educação baseada no diálogo, possibilitando a manifes-
tação de opiniões, bem como o combate à discriminação de qualquer
natureza.
É importante salientar que a reflexão/análise acerca do gênero
textual utilizado fez parte de cada planejamento para que os/as estu-
dantes pudessem identificar o gênero em sua forma e função socioco-
municativa. Outrossim, as atividades iniciais de cada aula eram de me-
nor duração, para que houvesse a preparação dos/as estudantes, antes
das atividades mais complexas. Além disso, as atividades colocaram
os/as estudantes como protagonista na sala de aula, primando pela in-

258
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

teração e por atividades em duplas e/ou grupos, afinal cabe à docência


“possibilitar aos estudantes cooperar e compartilhar informações e co-
nhecimentos por meio da língua inglesa, como também agir e posicio-
nar-se criticamente na sociedade, em âmbito local e global” (BRASIL,
2018, p. 487). Ainda em relação às atividades coletivas, atentamos para
que não houvesse a divisão entre meninas e meninos, dado que, sob o
ponto de vista da desigualdade de gênero, essa distinção é recorrente
no ambiente escolar:

Afinal, é “natural” que meninos e meninas se separem na esco-


la, para os trabalhos de grupos e para as filas? É preciso aceitar
que “naturalmente” a escolha dos brinquedos seja diferenciada
segundo o sexo? Como explicar, então, que muitas vezes eles
e elas se misturem” para brincar ou trabalhar? É de esperar que
os desempenhos nas diferentes disciplinas revelem as dife-
renças de interesse e aptidão “características” de cada gêne-
ro? Sendo assim, teríamos que avaliar esses alunos e alunas
através de critérios diferentes? Como professoras de séries ini-
ciais, precisamos aceitar que os meninos são “naturalmente”
mais agitados e curiosos do que as meninas? E quando ocorre
uma situação oposta à esperada […] (LOURO, 1997, p. 63).

Ou seja, além de planejar materiais com temáticas de igualdade


de gênero, uma pedagogia feminista para ensino de inglês precisa ob-
servar as próprias relações de gênero na sala de aula.
Pensando no viés interseccional, para enfrentarmos a discrimina-
ção e o preconceito, buscamos estimular em todas as aulas a análise
das atividades sob um recorte racial, como, por exemplo, questionando
o motivo de as mulheres brancas são a maioria em propagandas ou,
ainda, de as mulheres negras têm mais dificuldade no mercado de tra-
balho. Já no plano em que se discute a imagem da mulher nas propa-
gandas, foi proposta a comparação de propagandas que expressavam
pontos de vista diferentes sobre a mulher: por um lado, mulheres atrela-
das à figura masculina e ao casamento e, por outro, a mulher em lugar
de destaque na sociedade. Nesse lugar de destaque, achamos neces-

259
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

sário dar ênfase a mulheres não brancas, para que houvesse o reco-
nhecimento de que as mulheres negras também podem ocupar lugares
de privilégio.
Outro ponto que queremos elencar em relação à elaboração
dos materiais, foi a dificuldade em encontrar materiais didáticos, a exem-
plo de vídeos, que trouxessem uma abordagem intercultural e multicul-
tural sobre determinados temas – principalmente no que diz respeito
ao tema da família. Para esse plano, a curadoria dos materiais inves-
tiu de modo particular no processo de desconstrução de ideias, para
que os/as jovens na escola aprendam a reconhecer conteúdos sexistas
e machistas, desconstruindo romantizações e estereotipias. Isso permi-
te que quem aprende aja “com autonomia e colaboração, protagonismo
e autoria na vida pessoal e coletiva, de forma crítica, criativa, ética e so-
lidária, defendendo pontos de vista que respeitem o outro […]” (BRASIL,
2018, p. 493).
Para finalizar, pontuamos novamente que a escolha dos temas
partiu, primeiramente, da realidade social vivenciada no contexto de atu-
ação das pesquisadoras-professoras no Estado de Pernambuco e no
Sertão do Pajeú, com altos índices de violência contra mulher e femini-
cídio. Ademais, os materiais de ensino e planejamento das atividades
não foram pensados para estudantes idealizados de escolas modelo,
mas para a realidade das escolas públicas da região, com limitação
de recursos, duas aulas de inglês por semana com cinquenta minutos
de duração cada, às vezes em dias diferentes e com aprendizes, muitas
vezes, em estágios iniciais da aquisição da língua inglesa. Para forma-
ção docente na área de línguas é essencial tomar o local de atuação,
a própria escola e sua realidade, como campo para reflexões teóricas
e práticas, que permitam ao mesmo tempo atualizar o profissional e as
bases epistemológicas de seu trabalho.

Considerações Finais

O presente texto apresentou brevemente as concepções teóricas


e os traços mais gerais de uma proposta de pedagogia feminista para

260
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ensino de língua inglesa nas escolas públicas em Pernambuco. Como


instituições que seguem as orientações ideológicas do Estado, apesar
de suas comunidades refletirem a diversidade social, as escolas públi-
cas ainda reproduzem estereotipias e discriminações de gênero e, fre-
quentemente, o ensino de línguas se faz estruturalista e sem qualquer
vínculo ao mundo e aos usos dos/das aprendizes. O intuito do projeto
de pesquisa que deu origem a esse trabalho foi abrir caminho para pen-
sar nesse lugar de diversidade como propício ao ensino desconstrucio-
nista, alinhado à pedagogia feminista e à interculturalidade crítica, e ao
combate das desigualdades sociais e de gênero.
Quando docentes atuam a partir de uma concepção crítica de edu-
cação e se alinham ao objetivo de educação cidadã democrática das es-
colas públicas, torna-se urgente o diálogo com concepções de currículo
orientadas para a sociedade e para os seres humanos, em detrimento
da visão tecnicista ou conteudista. No que diz respeito, em particular,
à presença da língua inglesa na escola, nos alinhamos a Maria Inês
Cox e Ana Assis-Peterson (2001, p. 20) quando defendem que “aqueles
que trabalham com o ensino de inglês não podem reduzi-lo a questões
sócio-psicológicas de motivação, a questões metodológicas, a ques-
tões linguísticas. A língua está imersa em lutas sociais, econômicas
e políticas e isso não pode ser deixado de fora da cena da sala de aula”.
Por essa perspectiva, a língua inglesa deixa de impor uma deter-
minada cultura e reproduzir estereótipos sociais e culturais para se tor-
nar mais uma possibilidade de questionar e desconstruir práticas so-
ciais por meio de estudo das linguagens. Por outro lado, nos alinhamos
à compreensão de que a pedagogia feminista é uma pedagogia crítica
para a emancipação, pautada no enfrentamento às distintas formas
de opressão (gênero, classe, raça, entre outras) envolvendo questões
sociais, políticas, econômicas. Por isso, os materiais pedagógicos de-
senvolvidos em nossa proposta buscaram articular as habilidades dis-
postas nos documentos nacionais curriculares com o ensino crítico e fe-
minista de língua inglesa, questionando as práticas de linguagem e o
que elas revelam acerca de como as mulheres são compreendidas pela
sociedade.

261
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Longe de resolver os problemas da violência contra mulher ou das


discriminações de gênero de forma imediata, nosso trabalho foi um
passo dado para que isso seja meta de futuras/os docentes da escola
básica. É preciso, à medida em que avançamos no combate às desi-
gualdades sociais, questionar também o currículo e as práticas pedagó-
gicas. Nosso posicionamento epistemológico e pedagógico para o en-
sino de língua inglesa toma por base aspectos linguísticos e temáticas
que valorizam as mulheres em seus diferentes papéis sociais e identida-
des, bem como reconhecem sua diversidade nas diferentes sociedades
do mundo.

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264
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Fechamento de escolas do
campo e a presença das classes
multisseriadas no Território do
Sertão do São Francisco, Bahia

Jackeline Maciel de Azevedo1


Edmerson dos Santos Reis2

Introdução

O Território do Sertão do São Francisco (TSSF) está localizado


no norte da Bahia e é composto por dez munícipios, os quais, para me-
lhor possibilidade de compreensão no âmbito desta pesquisa, distribu-
ímos da seguinte forma: Borda do Lago (Sento-Sé, Sobradinho, Casa
Nova, Pilão Arcado e Remanso); Margem do Rio (Curaçá e Juazeiro);
e Caatinga (Uauá, Canudos e Campo Alegre de Lourdes), a fim de possi-

1 Acadêmica do Curso de Pedagogia do Departamento de Ciências Humanas – Campus III


da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do
Estado da Bahia -FAPESB no Programa de Iniciação Científica da UNEB, Membro do Grupo
de Pesquisa Educação Contextualizada, Cultura e Território – EDUCERE.
2 Professor do Departamento de Ciências Humanas, Campus III da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB, Coordenador do Grupo de Pesquisa Educação Contextualizada, Cultura
e Território – EDUCERE; Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Cultura e Territórios Semiáridos – PPGESA; Membro da Rede de Educação do
Semiárido – RESAB e do Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC.

265
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

bilitar um mapeamento amplo da realidade das escolas do campo nesta


região, bem como, uma sistematização crítica e fundamentada acerca
desses espaços escolares.
Destaca-se que este trabalho é fruto da pesquisa A Presença
das Classes Multisseriadas nos Municípios do Sertão do São Francisco
e os Indicadores Oficiais de Fechamento das Escolas do Campo desen-
volvida na Universidade do Estado da Bahia – Campus III, financiada
pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (PICIN), e busca con-
tribuir, por meio da sistematização e reflexão dos indicadores, com os
gestores dos municípios do TSSF e sociedade como um todo no que
se refere à tomada de decisões em prol de viabilizar a construção de uma
educação contextualizada, sobretudo a do campo, universal, plural e de
qualidade.
É assegurado pela Constituição Federal Brasileira de 1988, no seu
Artigo 205, e no Artigo 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n. 9394/1996, que todo cidadão brasileiro tem direito ao aces-
so à educação básica de qualidade, gratuita, de gestão democrática
e baseada no pluralismo das ideias e proposições pedagógicas. Logo,
é importante analisar se tais condições mínimas para uma educação
de qualidade também são ofertadas para o campo, local historicamen-
te submetido às necessidades do urbano, desconsiderando os sujeitos
campesinos como seres de direito.
Além disso, para que esta educação seja realmente efetiva é ne-
cessário que se tenha um conjunto de instrumentos e apoio pedagógico
na escola do campo, assim como, a existência da escola próxima da co-
munidade, tendo em vista que é comum na realidade do campo o fecha-
mento de escolas sob os argumentos de “poucos alunos”, “problemas
financeiros”, dentre outros motivos. Logo, é importante analisar e refletir
em qual sistema social e cultural a escola está inserida, se ela é vista
realmente como um direito do povo campesino ou se é disponibilizada
apenas como uma espécie de “favor” ofertado pelo o Estado.
Assim, é fundamental a existência de uma política de Educação
do Campo com o intuito de atender à população moradora do meio rural

266
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

que possui inúmeras especificidades, sobretudo geográficas e sociais,


adequando-se a sua cultura, história e necessidades. Vale destacar
que o Brasil já possui vários marcos legais que dão suporte à funda-
mentação de uma Educação do Campo contextualizada e como direi-
to, dentre os quais destacamos o Decreto n. 7.352 de 2010 que defi-
ne o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, PRONERA;
a Portaria n. 86 de 2013, que institui o Programa Nacional de Educação
do Campo, PRONACAMPO; as Resoluções CEB/CNE n. 01 de 2002
e CEB/CNE n. 02 de 2008 que estabelecem as Diretrizes operacionais
da Educação do Campo, entre outros instrumentos legais que precisam
ser concretizados na vida das comunidades e dos sujeitos do campo.
É imprescindível, portanto, que essa política seja colocada em prática,
pois de nada adianta ter uma educação que se designa como “do cam-
po” se o seu currículo ou se a escola em si (professores, coordenadores
e a própria comunidade) estiver baseada em princípios urbanocêntricos.
Nesse contexto, ao se fazer um levantamento do número de esco-
las do campo ofertadas nos municípios do Território do Sertão do São
Francisco, entre 2015 e 2020 no Semiárido Norte Baiano, é possível
visualizar um aumento na quantidade de escolas paralisadas, fecha-
das temporariamente e até mesmo extintas, revelando a necessidade
de questionamentos acerca dessas medidas. Afinal, se existem políti-
cas públicas que asseguram o acesso à uma educação de qualidade
e plural, por que os números de escolas fechadas só aumentam? Será
que as famílias campesinas estão cientes dos trâmites legais necessá-
rios para que ocorra o fechamento de uma escola? Quais os impactos
desse processo nas comunidades campesinas?
Além disso, outra característica do modelo educacional disposto
no campo é a preponderância da presença das classes multisseriadas,
que reúnem os alunos de diferentes idades e séries em uma mesma
sala. Entretanto, apesar de sua regularidade, a classe multisseriada so-
fre inúmeros preconceitos e incompreensões, pois não possui uma po-
lítica própria de atendimento a sua particularidade. Será que as críti-
cas são devido à sua metodologia ser considerada “duvidosa” ou por
que essa não segue a lógica urbana da seriação?

267
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Nesse contexto, para que se tenha uma reflexão sobre tais indaga-
ções é fundamental uma análise dos dados oficiais, utilizando durante
sua interpretação o auxílio de estudiosos da área, como Hage (2006;
2008; 2011), que discute as classes multisseriadas; Reis (2013; 2017;
2018), estudioso da educação contextualizada e Educação do Campo;
e Caldart (2004), que também aborda a Educação do Campo, dentre ou-
tras referências necessárias a esta discussão.
Diante disso, a partir de tais referenciais, esta pesquisa tem como
objetivo identificar e problematizar os indicadores de fechamento
das escolas do campo dos municípios do TSSF como um agravo ao di-
reito à educação, bem como a existência das classes multisseriadas
sem que haja uma proposta pedagógica adequada a este formato
de oferta educacional, tendo em vista que os sujeitos, tanto do campo
quanto da zona urbana, têm direito a uma educação universal e de qua-
lidade, que respeite a sua cultura e atenda às especificidades do seu
mundo, sem que se constitua apenas em uma adaptação malfeita do re-
ferencial urbanocêntrico.

Metodologia

Para o desenvolvimento desta pesquisa foi necessário analisar


os indicadores educacionais oficiais do TSSF acerca do fechamen-
to de escolas do campo nos anos de 2015 e 2020, tendo como fonte
de informações os bancos de dados abertos dos sites Qedu (Fundação
Lemann e Meritt) e Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP) nos dez munícipios baianos que compõem a região estudada
para a partir do levantamento de dados e fundamentar teoricamente
a interpretação deles. Ainda foi necessária a realização de uma pes-
quisa bibliográfica com o intuito de aprofundar os principais conceitos
que perpassam este trabalho, lançando mão aos estudos de diversos
pesquisadores da área.
Tendo em vista o amplo processo de levantamento de informa-
ções e reflexões teóricas mobilizadas por esta pesquisa com a inten-
ção de nos debruçarmos sobre a realidade do fechamento das escolas

268
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

do campo nos munícipios do TSSF, foi necessária a leitura dos dados


brutos, bem como a sua sistematização, análise e reflexão crítica, sendo
adotada a metodologia quanti-qualitativa, conforme destacamos abaixo:

No entanto, se a relação entre quantitativo e qualitativo, en-


tre objetividade e subjetividade não se reduz a um continuum,
ela não pode ser pensada como oposição contraditória. Pelo
contrário, é de se desejar que as relações sociais possam ser
analisadas em seus aspectos mais “ecológicos” e “concretos”
e aprofundadas em seus significados mais essenciais. Assim,
o estudo quantitativo pode gerar questões para serem apro-
fundadas qualitativamente, e vice-versa. (MINAYO; SANCHES,
1993, p. 247)

A partir dessa abordagem foi possível realizar a análise com a uti-


lização da metodologia de triangulação, permitindo à pesquisa uma re-
flexão mais consistente, pelo fato de que “são empregados múltiplos
métodos para estudar um determinado problema de investigação”
(DUARTE, 2009, p. 12). Essa estratégia de análise foi fundamental para
a compreensão do processo de paralisação e fechamento de escolas
do campo, evidenciando que a escola não é somente um número ca-
talogado, e sim, um espaço significativo e que a presença dessa, ou a
sua falta, compromete a formação dos sujeitos e a oferta da educação
no campo e do campo.
Logo, trata-se de uma investigação mais abrangente sobre os da-
dos oficiais disponibilizados pelos bancos de dados, acessados em va-
riadas plataformas digitais abertas que neste trabalho foram as princi-
pais fontes de informações acessadas.

Fundamentos teórico-práticos

A Educação do Campo é um marco histórico para a sociedade bra-


sileira, pois, apesar da existência atual de políticas públicas que reconhe-
cem essa educação como uma modalidade oficial, ela é fruto de lutas
e reinvindicações históricas dos sindicatos e dos movimentos sociais

269
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

do campo. Contudo, o “reconhecimento” de sua existência e importân-


cia por tais políticas ainda não é sinônimo de efetividade no campo, as-
sim como não é sinônimo da oferta de uma educação integralmente
voltada às especificidades das comunidades campesinas.
Tendo em vista o reconhecimento da necessidade de uma educa-
ção voltada à singularidade do campo, os sujeitos coletivos, principal-
mente dos movimentos sociais, iniciaram suas reivindicações. Apesar
da luta pelos direitos básicos ter iniciado em décadas anteriores, contra
o modelo de educação rural existente, foi a partir da década de 1980
que houve mudanças significativas no contexto brasileiro, inclusive
na educação, sendo neste período que se deu a criação do Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra – MST (SANTOS, 2018). Esse é um dos mo-
vimentos de destaque na luta contra a educação hegemônica oferecida
ao campo. Ainda conforme Santos (2018, p. 194):

É nesse contexto de enfretamento dos trabalhos com o Estado,


reivindicando direitos básicos como trabalho (terra), saúde,
moradia, crédito e educação, que começa a ser formatada uma
proposta de educação identificada cultural e socialmente com
o território que os trabalhadores reconhecem como campo.

Nessa época existiam diversos fatores que refletiam na desva-


lorização da educação pública de forma geral, porém, a do campo so-
fria mais ainda com o descaso histórico que se manifestava e aspec-
tos como:

uma concepção urbano-cêntrica de mundo […] dissemina um


entendimento generalizado de que o espaço urbano é superior
ao campo, de que a vida na cidade oferece o acesso a todos
os bens ou serviços públicos, de que a cidade é o lugar do de-
senvolvimento, da tecnologia e do futuro enquanto o campo é
entendido como lugar do atraso, da ignorância, da pobreza e da
falta de condições mínimas de sobrevivência. Uma educação
que não leva em consideração os conhecimentos que os edu-
candos trazem de suas experiências e de suas famílias. Uma
educação que desvaloriza a vida do campo, diminuindo a auto-

270
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

estima dos educandos e descaracterizando suas identidades.


Uma educação que fortalece o ciclo vicioso que os sujeitos do
campo realizam: “de estudar para sair do campo” ou “de sair
do campo para estudar”, fortalecendo o processo de migração
campo-cidade. Uma educação que se constitui enquanto um
instrumento de reprodução e expansão da estrutura agrária e
de uma sociedade excludentes (HAGE, 2005, p. 55).

Vale destacar ainda o descaso com os povos do campo, o que


se manifestava na falta de condições mínimas garantias de aces-
so à saúde, a estradas dignas para escoamento de produção, à falta
de garantia e acesso ao crédito fundiário aos agricultores familiares,
o predomínio de grandes latifúndios, que iam ampliando a expulsão
de pequenos proprietários que logo se transformavam em sem terras.
A partir da problematização e conscientização acerca desta realidade
foram surgindo outros movimentos sociais, conferências e manifestos
cujas pautas principais eram os direitos básicos dos sujeitos do campo.
Assim, com a organização dos movimentos, ocorreram dois eventos:
o Primeiro Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma
Agrária (ENERA), em 1997, e a Primeira Conferência Nacional por uma
Educação Básica do Campo, em 1998. Ambos tinham o intuito de pro-
vocar mudanças na educação até então oferecida aos povos do campo,
como também instigar a criação de leis que amparassem a Educação
do Campo como direito. Desse modo:

Podem-se destacar, também, algumas conquistas efetivas,


principalmente no âmbito de regulamentação da proposta de
Educação do Campo como política pública de educação. São
exemplos disso: a criação do Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (Pronera), em 1998; a aprovação pelo
Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Operacionais
para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2001; o
valor diferenciado para o custo aluno do campo, previsto no
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) em
2007; o Procampo/2009 para formação de professores do

271
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

campo; e o Pronacampo/2013, que institui a Política Nacional


de Educação do Campo (MEC, 2013). (SANTOS, 2018, p. 195).

Dessa caminhada histórica foram surgindo políticas públicas


que asseguram a Educação do Campo como uma modalidade educacio-
nal e um direito da comunidade campesina. Essa modalidade, voltada
às especificidades do campo, visa dar espaço para o desenvolvimento
do sujeito do campo, sem submetê-lo aos paradigmas urbanos, aces-
sando um modelo pedagógico próprio identificado com as problemáti-
cas do campo. A Educação do Campo tem como objetivo a construção
de uma educação com os sujeitos do campo, dando voz àqueles que fo-
ram historicamente silenciados e valorizando aquilo que foi rotulado
como “arcaico” e “insignificante”. Como afirma Caldart (2004, p. 12):

A Educação do Campo assume sua particularidade, que é o


vínculo com sujeitos sociais concretos, e com um recorte es-
pecífico de classe, mas sem deixar de considerar a dimensão
da universalidade: antes (durante e depois) de tudo ela é edu-
cação, formação de seres humanos. Ou seja, a Educação do
Campo faz o diálogo com a teoria pedagógica desde a realida-
de particular dos camponeses, mas preocupada com a educa-
ção do conjunto da população trabalhadora do campo e, mais
amplamente, com a formação humana. E, sobretudo, trata de
construir uma educação do povo do campo e não apenas com
ele, nem muito menos para ele.

É este processo de construção de uma educação do povo e com


o povo do campo que permite ao sujeito reconhecer sua história e cultu-
ra, e também criar um vínculo com elas. Nas diversas experiências exi-
tosas de Educação do Campo, um dos principais diferenciais tem sido
a utilização da realidade local como pressuposto de suas aulas, partin-
do do conhecimento local para o global, tornando o processo educativo
concreto e significativo.
Assim, é inerente ao formato da Educação do Campo uma abor-
dagem contextualizada do processo educativo, que permite a existên-
cia de um ensino-aprendizagem significativo, sem o qual a Educação

272
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

do Campo é meramente um arremedo da educação urbana.


Contextualizar é dar sentido ao processo de ensino-aprendizagem, é uti-
lizar a realidade do sujeito do campo como ponto de partida, “contextu-
alizar não é só levar o menino para conhecer o mandacaru, mas ir além
do conhecer, é trazer outros conhecimentos, é mostrar novas possibili-
dades” (REIS et al., 2017, p. 40).
Assim, para que esta Educação do Campo seja possível, é neces-
sária a presença de uma escola do campo respaldada na pedagogia
do diálogo, em que suas atividades

visam integrar os fazeres cotidianos/comunitários dos alunos


com os conteúdos disciplinares, motivando-os a pensar na
comunidade, a conhecer melhor a realidade que os cercam e
possibilitando-os conhecerem suas histórias, suas Geografias
e seu ambiente sociocultural e ambiental. A escola torna-se
o lugar da descoberta, do fazer-aprender-fazer... (CARVALHO;
REIS, 2013, p. 35)

É nesse contexto no qual a escola do campo se constrói e se so-


lidifica, tendo em vista que um de seus principais objetivos que é dar a
possibilidade aos sujeitos campesinos de conhecerem sua história, cul-
tura, costumes e se reconhecerem como sujeitos históricos e sociais,
tendo a opção de escolha para sua permanência ou não no campo e não
como algo deliberado por outrem. Neste sentido, Molina e Freitas (2011,
p. 24) ressaltam que:

A intencionalidade de um projeto de formação de sujeitos que


percebam criticamente as escolhas e premissas socialmente
aceitas, e que sejam capazes de formular alternativas de um
projeto político, atribui à escola do campo uma importante con-
tribuição no processo mais amplo de transformação social. Ela
se coloca o desafio de conceber e desenvolver uma formação
contra-hegemônica, ou seja, de formular e executar um projeto
de educação integrado a um projeto político de transformação
social liderado pela classe trabalhadora, o que exige a forma-
ção integral dos trabalhadores do campo, no sentido de promo-

273
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

ver simultaneamente a transformação do mundo e a autotrans-


formação humana.

Destacamos aqui a importância da escola do campo no processo


de desenvolvimento integral do sujeito, possibilitando as desamarras
das concepções colonialistas ainda presentes nas narrativas hegemôni-
cas do currículo escolar, permitindo aos sujeitos do campo à promoção
da reflexão crítica e constante sobre sua realidade e sua ação.
Porém, apesar da necessidade e importância da presença de uma
escola que seja construída e respaldada em concepções do campo
nas comunidades, estas sofrem sucateamentos constantes, culminan-
do em seu fechamento.
A comunidade campesina historicamente tem sido vista como
servidora do urbano, atendendo às suas necessidades, pois, muitos
ainda consideram que a “função social” das terras do campo é neces-
sariamente pertencente ao urbano e que as construções ali presentes
só teriam sentido se, diretamente, beneficiassem a zona urbana, seja
com o agronegócio, a mão de obra barata, ou até mesmo como um es-
paço de lazer, como as chácaras e sítios. Essa concepção desconsidera
o campo como um espaço de especificidades, direitos e, principalmente,
um espaço de desenvolvimento para os sujeitos ali presentes, por isso
também, um lugar de lutas e contradições.
É dentro dessa concepção urbanocêntrica que a educação e as
escolas presentes no campo se desenvolveram, sendo um dos princi-
pais motivos do sucateamento da concepção de escola e Educação
do Campo construída pelos movimentos sociais, sindicais e povos
do campo. Neste sentido, como afirma Caldart (2004, p.13):

A Educação do Campo se constitui a partir de uma contradição


que é a própria contradição de classe no campo: existe uma
incompatibilidade de origem entre a agricultura capitalista e a
Educação do Campo, exatamente porque a primeira sobrevive
da exclusão e morte dos camponeses, que são os sujeitos prin-
cipais da segunda.

274
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Logo, mesmo sendo afirmada nas políticas públicas como


uma modalidade de ensino oficial, a Educação do Campo ainda sofre
com as raízes coloniais, não permitindo sua oferta com a mesma prio-
ridade da educação urbana. Dentro do contexto das escolas do campo,
é notória a existência das classes multisseriadas, nas quais as turmas
são organizadas com a presença de alunos de diferentes idades e níveis.
Todavia, apesar de sua frequência nessas escolas, classes multisseria-
das ainda não são reconhecidas como um modelo eficaz de educação,
muitas vezes até mesmo pela própria comunidade. Em uma pesquisa
feita por Hage (2008), o autor constatou nos depoimentos de alguns
pais certa insatisfação sobre a multissérie:

Em geral, os sujeitos do campo em seus depoimentos expres-


sam muita insatisfação com relação às escolas multisseriadas
e consideram a existência dessas escolas um grande “proble-
ma”, responsável pelos prejuízos ao processo de escolarização
do campo. Em muitos casos, os sujeitos se referem a essas
escolas como “um mal necessário” e estabelecem muitas
comparações entre elas e as turmas seriadas da cidade, ma-
nifestando o desejo que essas escolas se transformem em se-
riadas, como a única alternativa para que nelas se desenvolva
um processo de ensino-aprendizagem com qualidade (HAGE,
2008, p. 5).

Entretanto, ao analisar a gênese histórica da educação brasileira,


a ideia de multissérie, apesar do não uso dessa nomenclatura, está pre-
sente desde o período colonial, nas aulas régias criadas pelo Estado,
formato definido pela presença de um professor e alunos de diferentes
níveis para o ensino de Latim, Grego, Filosofia, Geografia, Gramática,
Retórica e Matemática (LOCKS et al., 2013). Evidenciando que este mo-
delo não é recente, pois,

apesar de não ter encontrado essa referência nos autores pes-


quisados, as escolas multisseriadas (classes multisseriadas)
surgiram nesse período em que o ensino das primeiras letras,
financiado ou não pelo Estado, era difundido de fazenda em

275
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

fazenda por professores itinerantes ou por alguém que a comu-


nidade considerasse capaz de instruir a outros. Isso também
se deu em pequenas vilas e povoados, por meio da reunião
de crianças de vários níveis, independentemente da faixa etá-
ria, num mesmo ambiente escolar e com um único professor.
(LOCKS et al., 2013, p. 5).

O estudo apresentado acima traz elementos que contribuem para


desmistificar a desvalorização da multissérie, pois a sua presença não é
algo recente no contexto escolar, tendo prevalecido uma concepção ne-
gativa construída historicamente sobre essa forma de organização
escolar, prevalecendo nos sistemas educacionais o intuito de acabar
com o formato e não envidar esforços para a sua requalificação como
possibilidade de atender com qualidade às turmas das comunidades
camponesas. Para que as classes multisseriadas passem a ser com-
preendidas no seu potencial educativo, se faz necessária a garantia
da formação docente e a disponibilização de materiais didáticos e para-
didáticos adequados e contextualizados à realidade do campo, ou seja,
que ela não seja um faz de conta de atendimento ao direito à educação,
mas seja tratada como política pública e uma organização pedagógica
potencializadora no processo de ensino-aprendizagem, como defende
Hage (2014, p. 1179-1180):

As escolas do campo, que em sua grande maioria se organi-


zam sob a multisseriação, são espaços marcados predominan-
temente pela heterogeneidade ao reunir grupos com diferenças
de sexo, de idade, de interesses, de domínio de conhecimentos,
de níveis de aproveitamento etc. Essa heterogeneidade ine-
rente ao processo educativo que se efetiva na multissérie, na
seriação ou em qualquer outra forma de organização do en-
sino, articulada às particularidades identitárias relacionadas a
fatores geográficos, ambientais, produtivos, culturais etc.; são
elementos imprescindíveis na constituição das políticas e prá-
ticas educativas a serem elaboradas para a Amazônia e para
o país.

276
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Diante disso, é importante ressaltar que uma das principais razões


pela qual a multissérie passou a ser vista como inadequada, apesar
de sua existência histórica, é a referência contrastante com as perspec-
tivas de organização escolar urbanocêntricas.
Vale ressaltar que, com o desenvolver da sociedade e do mode-
lo econômico capitalista, o crescimento urbano se tornou referência
de progresso, a partir do qual todas as suas caraterísticas (sociais,
culturais, econômicas e até educacionais) se tornaram um parâmetro,
considerando tudo aquilo que não o seguia como “atrasado” ou “sub-
desenvolvido”. Logo, o campo foi submetido a essa lógica, sendo des-
considerado como um espaço de desenvolvimento, como aponta Hage
(2011, p. 105):

A visão urbanocêntrica apresenta o espaço urbano como o lu-


gar de possibilidades, modernização e desenvolvimento, aces-
so à tecnologia, à saúde, à educação de qualidade e ao bem-es-
tar das pessoas, e o meio rural como o lugar de atraso, miséria,
ignorância e não desenvolvimento. São esses argumentos que
induzem educadores, estudantes, pais e muitos outros sujei-
tos do campo e da cidade a acreditarem que o modelo seriado
urbano de ensino deve ser a referência de uma educação de
qualidade para o campo e para a cidade e que sua implantação
seja a única solução para superar o fracasso dos estudantes
nas escolas rurais multisseriadas.

Tal pensamento fez com que qualquer outro modelo além do se-
riado fosse considerado como inadequado e atrasado, sendo este o úni-
co “provedor” de uma educação de qualidade. Todavia, o autor afirma
que esse modelo “trata o tempo, o espaço e o conhecimento escolar
de forma rígida, impõe a fragmentação em séries anuais e submete
os estudantes a um processo contínuo de provas e testes como requisi-
to para que sejam aprovados e possam progredir no interior do sistema
educacional” (HAGE, 2011, p. 105). Essa faceta de compreensão revela,
para aqueles que assim pensam, que a seriação está longe de possibili-
tar uma educação que desenvolva o sujeito de forma integral.

277
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Utilizar o parâmetro de seriação em uma realidade multisseriada


é fadá-la ao fracasso, perpetuando o pensamento urbanocêntrico, levan-
do alguns professores e até mesmo a própria comunidade a pensarem,
erroneamente, que esse fracasso é “natural”.
Todavia, é pertinente salientar que existem inúmeros pontos po-
sitivos que podem ser desenvolvidos a partir da multissérie, cuja he-
terogeneidade possibilita um processo educacional mais “rico”, com a
presença e a discussão das diversas realidades do campo, a troca de ex-
periência entre os próprios alunos, a oportunidade de fazer a relação
escola-comunidade mais ativa. Como Hage (2011, p. 110) aponta:

ser a heterogeneidade um elemento potencializador da apren-


dizagem e enriquecedor do ambiente escolar, que poderia ser
melhor aproveitado na experiência educativa que se efetiva
nas escolas e turmas multisseriadas, carecendo, no entanto,
de mais estudos e investigações sobre a organização do tra-
balho pedagógico, o planejamento e a construção do currículo
que atendam às peculiaridades de vida e de trabalho das popu-
lações do campo, o que de forma nenhuma, em nosso enten-
dimento, significa a perpetuação da experiência precarizada de
educação que se efetiva nas escolas e turmas multisseriadas
tal como apresentamos no início deste artigo.

Revela-se, assim, que o que torna a ideia de multissérie como ina-


dequada, ou ainda como algo “difícil” de se trabalhar, dentro dessa ló-
gica urbanocêntrica, é o conjunto de aspectos que compõem a escola
na qual a classe multissérie está inserida, pois o processo de ensino-
-aprendizagem para ser efetivo precisa de condições mínimas de funcio-
namento como: um currículo contextualizado com a realidade do cam-
po, professores com uma formação continuada e não sobrecarregados,
planejamento específico para esta realidade, disponibilidade de meren-
da, além de outros aparatos destacados por Little (2015 apud Parente,
2014, p. 66):

1) Aumento da sensibilização dos governantes e dos profissio-


nais da educação em relação à multisseriação […]; 2) Adaptação

278
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

curricular, considerando estratégias que veem sendo adotadas


em contextos multisseriados […]; 3) Transformação na filoso-
fia do ensino-aprendizagem; 4) Investimento em materiais de
aprendizagem; 5) Investimento em diferentes estratégias de
organização dos alunos em sala de aula; 6) Investimento na
formação de professores […]; 7) Investimento nos sistemas de
avaliação com vistas a prezar a avaliação formativa e não a
mera seleção.

É importante ressaltar que, devido essa concepção enraizada,


quando não fechadas, as escolas do campo têm sua estrutura física
e equipe escolar afetada, pois é comum a precariedade de salas, a au-
sência de laboratórios científicos e de computação, além de que, muitas
vezes, os professores ali atuantes não são concursados, ocasionando
alta rotatividade e interrupções no processo educacional daqueles alu-
nos, ou até mesmo, falta de um acompanhamento que os permita desen-
volver habilidades necessárias para trabalhar, principalmente, com as
classes multisseriadas. Isso tem sido ratificado por Molina e Freitas
(2011, p. 20) ao afirmarem que:

Ainda é muito arraigado nos gestores públicos o imaginário


sobre a inferioridade do espaço rural, destinando a ele o que
sobra no espaço urbano. Isto funciona não só com o mobiliário
para as escolas do meio rural, mas também com os meios de
transporte. Quanto aos educadores, eles não são concursados,
mudam várias vezes de escola num mesmo ano letivo, têm
baixa remuneração e suas condições de trabalho são extrema-
mente precárias.

Destarte, as escolas do campo desde sua existência inicial já so-


frem com as disparidades ao serem comparadas com a estrutura da es-
cola urbana, revelando que a concepção vigente é que, esta última, ain-
da é a prioridade dos gestores públicos, ocasionando com o passar
do tempo o sucateamento das escolas do campo e, consequentemente,
o seu fechamento.

279
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Dentro dessa lógica de fechamento das escolas do campo,


são adotadas medidas paliativas para que os sujeitos tenham acesso
à escola, dentre elas estão a nucleação de escolas e consequentemen-
te o transporte escolar. Essas estratégias, apesar de serem uma forma
de viabilizar o acesso à educação, retiram o direito de diálogo entre a co-
munidade e a escola, dificultam uma discussão sobre as diversas reali-
dades do campo do qual os alunos fazem parte, bem como, submetem
os alunos a perda de horas do seu dia dentro de um transporte.
Nesse sentido, a nucleação e o transporte escolar se tornam
uma deturpação do direito de acesso à educação de qualidade, respal-
dada no contexto do aluno e com a participação efetiva de sua família
nesse processo. Aos sujeitos do campo são dificultadas a possibilidade
de permanência em sua comunidade, bem como a preservação de sua
história e identidade, como é visto na pesquisa realizada por Hage (2008,
p. 7):

A comparação entre os dados e a evidente diminuição do nú-


mero de estabelecimentos e matrícula nas escolas multisse-
riadas pode indicar uma certa relação com a política de nucle-
ação dessas escolas vinculado ao transporte dos alunos para
escolas localizadas em comunidades rurais mais populosas
(sentido campo-campo) ou para a sede dos municípios (sen-
tido campo-cidade). Os dados sobre o transporte escolar no
meio rural também fortalecem essa hipótese ao revelar que
houve um crescimento no deslocamento dos estudantes do
meio rural no sentido campo-cidade de mais de 20 mil alunos
transportados e no sentido campo-campo de mais de 200 mil
estudantes transportados em 2006.

Apesar da adoção do sistema de nucleação das escolas e da ofer-


ta do transporte escolar para tentar amenizar os impactos do fechamen-
to dessas escolas, ainda assim há impactos significantes tanto para
o desenvolvimento da comunidade como para a formação dos sujeitos.
É garantido por lei o acesso à educação, bem como a especifi-
cidade da oferta da Educação do Campo para atender às necessi-

280
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

dades das localidades diversas. Dentre os documentos legais, há a


Lei n. 9394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), que no seu artigo 28 e incisos I a III, afirma:

Na oferta de educação básica para a população rural, os siste-


mas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região,
especialmente:
I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
necessidades e interesses dos alunos da zona rural;
II – organização escolar própria, incluindo adequação do ca-
lendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições cli-
máticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL,
1996)

A referida Lei assegura ainda que a comunidade campesina e as


suas especificidades devem ser consideradas na proposta pedagógica
da escola. Neste mesmo artigo, a LDB garante:

Parágrafo único. O fechamento de escolas do campo, indíge-


nas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão
normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a
justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a aná-
lise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da
comunidade escolar. (BRASIL, 1996)

Outro marco legal a se questionar é o Plano Nacional de Educação


(PNE 2014/2024), que reúne diretrizes e metas para guiar a educação
brasileira, tendo vigência de 10 anos (2014–2024), que também deveria
assegurar uma educação universal, plural e de qualidade. Porém, como
demonstra Santos (2018, p. 203-204)

No PNE (2014-2024) (BRASIL, 2014b), a Educação do Campo é


colocada de forma mais evidente, em relação aos planos ante-
riores, entretanto, como política pública de educação não apre-

281
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

senta avanços significativos em termos de garantia na eleva-


ção da qualidade da educação para a população do campo. Um
exemplo do pouco avanço do PNE para a Educação do Campo
pode ser evidenciado pela ausência de metas e/ou estratégias
para o desafio do ensino multisseriado. A maioria das esco-
las multisseriadas, atualmente, estão localizadas no campo
(PARENTE, 2014; SANTOS, 2013; HAGE, 2006). A multissérie
não é objeto de atenção do PNE (2014-2024) (BRASIL, 2014b),
seja para sua manutenção, seja para sua extinção, como no
PNE anterior. Entretanto, o ensino multisseriado tem sido uma
dificuldade recorrente enfrentada pelas escolas do campo,
como diferentes estudos têm demonstrado.

Logo, evidencia-se que, apesar da existência de políticas públicas


que garantem o acesso à Educação do Campo, essas não se mostram
consolidadas, pois os sistemas públicos de ensino ainda não a reco-
nhecem em sua complexidade, desconsideram e, muitas vezes, discri-
minam as classes multisseriadas, organização frequente nas escolas
presentes no campo. Tal descaso é reafirmado por Hage (2006, p. 5)
ao apontar que “as classes multisseriadas têm assumido um currículo
descolado da cultura das populações do campo, inspirado em compre-
ensões universalizantes, que sobrevalorizam concepções mercadológi-
cas e urbanocêntrica de vida e desenvolvimento, em detrimento dos sa-
beres, e modos de vida do campo”.
Esta conjuntura somada ao aumento do número de escolas fe-
chadas e paralisadas é de amplo impacto para o povo do campo, tanto
antes, pela inexistência de políticas públicas, como hoje, pela existência
destas e a sua falta de efetividade. Entretanto, apesar de que, legalmen-
te, o fechamento das escolas do campo só ocorre a partir da consulta
e decisão compartilhada com a comunidade afetada pela decisão, é im-
portante que se analise os índices de fechamento para que se certifique
que esta garantia é de fato efetiva, pois ao observar a realidade dos mu-
nicípios do TSSF, foi constatado, no levantamento dos dados oficiais,
um aumento significativo no fechamento de escolas do campo entre
os anos de 2015 e 2020.

282
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Resultados

Conforme levantamento realizado com base nos dados dos cen-


sos da Educação, publicados anualmente pelo INEP, e tornado público
pelos professores Paulo Alentejano e Tássia Cordeiro, ambos perten-
centes à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), entre 1997
e 2018 foram fechadas mais de 80.000 escolas do campo, o que evi-
dencia um fenômeno crescente de uma tendência de expulsão dos es-
tudantes camponeses para a cidade ou o seu deslocamento para comu-
nidades mais distantes, o que incide diretamente nos seus processos
de identidade e pertencimento ao campo. Ainda, segundo Alentejano
e Cordeiro (2019, p. 1):

As escolas rurais brasileiras estão menos frequentadas, com


ensino integral enfraquecido e majoritariamente sob o poder
dos municípios, conforme aponta o Censo Escolar 2019, divul-
gado pelo Ministério da Educação, em 30 de dezembro. No úl-
timo ano, de acordo com o levantamento, o campo teve queda
de 145.233 matrículas na soma de todas as modalidades de
ensino – foram 5.195.387 registros em 2018, contra 5.050.154
em 2019.

Para melhor ilustração, a Tabela 1 apresentada demonstra como


as escolas do campo vão deixando de existir ao longo dos anos, entre
1997 e 2018.

Tabela 1 – Número de estabelecimentos de ensino – Educação Básica

Ano Total Urbanos Rurais

1997 225.520 87.921 137.599

2018 181.939 124.330 57.609

Diferença – 43.581 + 36.409 – 79.990

Fonte: Censo Escolar – INEP 2019.

283
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Diante do exposto, faz-se necessária uma análise e reflexão


do processo de fechamento de escolas do campo nos munícipios
do TSSF entre 2015 e 2020, bem como da oferta das classes multisse-
riadas no período de 2015 a 2018, buscando analisar a lógica que nor-
teia as políticas públicas – se é de fechamento das escolas do campo
ou do reconhecimento dessas como um direito básico.
O Gráfico 1, a seguir, demonstra que existe um número significa-
tivo de classes multisseriadas nas escolas do campo dos munícipios
do TSSF, porém, ao fazer comparativo de 2015 até 2018 é visível a re-
dução desses indicadores. Assim como o número de escolas do cam-
po abertas nessa faixa de tempo diminuiu, as classes multisseriadas
também tiveram uma redução significativa, necessitando assim, com-
preendermos este fenômeno com vistas a melhor orientar as políticas
públicas educacionais oferecidas ao campo.

Gráfico 1 – Presença das classes multisseriadas nos munícipios do Território


do Sertão do São Francisco (2015 -2018)

Com os dados fornecidos pelo INEP e o QEdu, elaboramos um ma-


peamento quantitativo da situação das escolas (abertas, paralisadas,

284
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

fechadas e fechadas há mais de 2 anos) nesses dez munícipios do TSSF,


como mostramos nos gráficos a seguir:

Gráfico 2 – Situação das escolas do campo no Território do Sertão do São


Francisco em 2015

Gráfico 3 – Situação das escolas do campo no Território do Sertão do São


Francisco em 2016

285
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Gráfico 4 – Situação das escolas do campo no Território do Sertão do São


Francisco em 2017

Gráfico 5 –Situação das escolas do campo no território do Sertão do São


Francisco em 2018

286
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

Gráfico 6 – Situação das escolas do campo no Território do Sertão do São


Francisco em 2019

Gráfico 7 – Situação das escolas do campo no Território do Sertão do São


Francisco em 2020

Ao analisar os dados, é perceptível que do ano de 2015 até o


de 2020 o número de escolas paralisadas aumentaram em 48%, saindo
de 154, em 2015, para 254, em 2020, assim como as fechadas, sendo

287
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

uma realidade preocupante, pois demonstram o descaso com a educa-


ção, sobretudo com a do campo. Os dados revelam que com o passar
dos anos o número de escolas do campo fechadas no TSSF aumentou
de maneira alarmante, em mais de 700%, saindo de 13 escolas em 2015
para 92 em 2020, ainda que, de acordo com o Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento de Educação Básica (FUNDEB), exista um repasse
financeiro diferenciado para estudantes de escolas do campo, além
de outras políticas públicas, como o Programa Nacional de Educação
do Campo (PRONACAMPO) e Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA), que deveriam assegurar de forma efe-
tiva uma Educação do Campo universal, democrática e de qualidade.
Ao fazer as comparações dos dados de 2015 a 2020, visualiza-se
uma lógica de fechamento de escolas, negando e deturpando o acesso
à educação. A ausência de escolas nas comunidades campesinas difi-
culta a continuidade dos estudos, e aqueles que se encontram em maior
vulnerabilidade social e econômica são obrigados a desistir, sendo esse
um dos fatores que impactam no baixo índice de escolarização do cam-
po em comparação com o urbano. Há também pais e mães que não con-
sideram viável o deslocamento de seus filhos para outras comunidades
ou para a zona urbana. Como afirmam Reis e Rocha (2018, p. 144):

Quando se fecham as instituições escolares do campo, além


de descumprir os marcos legais, muitas crianças deixam de
frequentar a escola, porque, na maioria das vezes, são trans-
feridas para a zona urbana acarretando na superlotação das
escolas, comprometendo a aprendizagem e as relações de
convivência, bem como, aumentam-se as taxas de evasão,
pois nem todos os pais confiam em mandá-las nos transportes
escolares disponibilizados pelas prefeituras, por serem muito
precários, e não oferecerem segurança às crianças durante o
trajeto percorrido para chegar a escola.

Os impactos não se limitam apenas ao índice de escolarização,


o fechamento das escolas do campo vai além do fechamento de um es-
paço físico, é a perda de um espaço social, cultural, de escuta e de fala
para a comunidade (MUNARIM; SCHMIDT, 2014). É um ato de desen-

288
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

raizamento para com os sujeitos ali presentes. Demonstra incoerência


no discurso das políticas públicas de que o processo educativo é para
criar oportunidades de desenvolvimento para o sujeito, algo compreen-
dido também por Reis e Rocha (2018, p. 144-145):

quando transferidas para estudar na cidade, as crianças aca-


bam perdendo sua referência de identidade do campo, pois
são inseridas em uma cultura que considera o campo como
um lugar de atraso, sendo desmotivados pela distância, discri-
minação e pela descontextualização dos conteúdos e informa-
ções, passando-se, assim, a negar mais um direito da criança
do Campo, previsto na LDB n° 9.394,20 de Dezembro de 1996,
de ter uma escola com currículo voltado para a realidade das
comunidades do campo.

Outro aspecto também relativo nesse contexto é que, muitas ve-


zes, para as comunidades campesinas que se encontram mais afasta-
das ou até mesmo isoladas, a escola é a única referência do Estado
em sua localidade.

Essa assertiva tem muito mais significado quando pensamos


nas pequenas escolas do campo que, além de pequenas, estão
situadas em áreas rurais distantes de qualquer aglomerado ur-
bano. Tal como eram denominadas oficialmente até há algum
tempo, são de fato “escolas isoladas”. Em geral, são escolas
com uma ou duas salas de aula, onde funcionam poucas ou
uma só turma de estudantes. Nessas situações, quase sempre
a escola é a única presença do Poder Público na localidade.
(MUNARIM; SCHMIDT, 2014, p. 123).

Logo, a ausência de uma escola implica na comunidade campe-


sina o sentimento de abandono pelo Estado, ficando aquém de seus
direitos e tornando sua existência menos significativa do que aqueles
que moram na zona urbana.
Dentro desse processo de fechamento de escolas do campo,
é válido ressaltar que existe uma política sobre os trâmites legais para

289
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

isto, não sendo apenas escolha do representante político do munícipio.


De acordo com a Lei n. 12.960 de 2014:

Art. 1º O art. 28 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,


passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
Art. 28...
Parágrafo único. O fechamento de escolas do campo, indíge-
nas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão
normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a
justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a aná-
lise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da
comunidade escolar.” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
(BRASIL, 2014)

Assim, para que uma escola seja fechada legalmente é preciso


que haja o consentimento da comunidade juntamente com uma justifica-
tiva e um diagnóstico de impacto realizados pela Secretaria de Educação,
contando com a anuência do Conselho Municipal de Educação. Porém,
apesar dessa orientação legal, o número de escolas fechadas entre 2015
e 2020 no TSSF aumentou consideravelmente, reafirmando que a des-
peito da existência de políticas públicas, ainda não há sua consolidação.
Nesse contexto, ainda há comunidades que desconhecem esta
lei e acreditam que as suas vozes não fazem a diferença nesse proces-
so, porém, como afirmam Reis e Rocha (2018, p. 147):

Faz-se necessário em meio a essa discussão dos motivos que


acarretam o fechamento das Escolas do Campo, destacar que
a comunidade pode impedir a extinção da mesma, quando
considera que os motivos apresentados não são relevantes
para tal processo. Sendo assim, é importante que a comuni-
dade esteja atenta ao que ocorre dentro da instituição escolar,
bem como se reúna, convide órgãos da imprensa, universida-
des próximas, lideranças dos movimentos sociais, e Conselho
Municipal de Educação para que, em uma assembleia, possam
construir uma ata que justifique a continuidade ou o fechamen-

290
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

to da escola, bem como um abaixo assinado, sendo que todos


os documentos comprobatórios devem ser assinados por to-
dos.

Assim, demonstrando a importância da relação escola-comuni-


dade, não só para o desenvolvimento dos sujeitos, mas também para
garantir a presença desta na comunidade.

Considerações finais

Diante disso, com o levantamento dos dados oficiais sobre o fe-


chamento de escolas do campo no TSSF (2015-2020), bem como a aná-
lise da presença das classes multisseriadas (2015-2018) e as políticas
públicas voltadas a elas, foi possível visualizar a existência de uma po-
lítica de descaso com a Educação do Campo, desconsiderando esta
como um espaço de direitos.
A lógica adotada ainda é de desvalorização e sucateamento
das escolas do campo, sendo que, com o intuito de tentar amenizar
suas consequências, são adotadas medidas paliativas, como a nucle-
ação e transporte escolar, e ainda assim, além de não suprirem com o
desfalque da ausência de uma escola, ocasionam outros déficits no pro-
cesso de ensino-aprendizagem. Além de que, isso implica não só no pro-
cesso educacional, mas também na construção do que é o campo para
o sujeito, pois no momento que este não reconhece sua realidade e ne-
cessidades na escola, configura-se então a negação da sua identidade.
É válido ressaltar que tal descaso não se limita apenas ao fecha-
mento ou paralisação de escolas, ele inicia com a pouca oferta de concur-
sos para professores no campo, o mínimo ou até mesmo a inexistência
de acompanhamento docente (formação continuada), de laboratórios
de informática e química, de bibliotecas, assim como, a falta de condi-
ções mínimas nas salas de aulas e refeitórios. Deste modo, ao analisar
toda a conjuntura na qual a Educação do Campo é oferecida, é possível
visualizar a dimensão do processo de desvalorização e precarização
que historicamente esta vem sofrendo.

291
Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades

A partir do exposto, evidencia-se a importância de reflexão e dis-


cussão sobre o cenário de fechamento de escolas do campo, pois este
revela os diversos sucateamentos aos quais tem sido submetida a rede
de escolas do sistema escolar presente no campo.
Alcançar um tempo melhor e a consolidação da consciência do di-
reito à educação dos povos do campo em que o Estado assuma o seu
dever, em todos os entes federados, cumprindo a legislação e fazendo
a justiça social acontecer, por meio da promoção da igualdade e equi-
dade de acesso, não acontecerá na simples espera, como diria Paulo
Freire, mas na luta diária como pauta das ações dos sujeitos sociais
e coletivos do campo e daqueles que se identificam com esta causa.

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