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EÇA E O REALISMO EM PORTUGAL

Eça de Queirós nasceu em Póvoa do Varzim, em 1845. Estudou Direito em Coimbra e ligou-se à
geração académica entusiasmada comas ideias de Proudhon e de Comte. Assim, conheceu
Antero de Quental e iniciou sua carreira literária com folhetins, mais tarde publicados sob o
título de Prosas Bárbaras (1905). O escritor não participou ativamente da Questão Coimbrã,
permanecendo à margem das discussões, apenas como observador. Depois que se formou, foi
para Lisboa tentar a carreira de advogado. Mais tarde, passa a fazer parte do grupo do
Cenáculo (1868), liderado por Antero de Quental, depois de ter dirigido por algum tempo um
jornal em Évora (Distrito de Évora, 1867).

Em 1869, viajou para o Egipto para fazer uma reportagem sobre a inauguração do Canal de
Suez, da qual resultou O Egipto (1926,publicado depois de sua morte). Quando retornou,
participou das conferências do Casino Lisbonense, – onde proferiu uma palestra que tratava
sobre a necessidade de a arte encontrar-se aliada ao meio social (arte engajada) – em 1871.
Em seguida, foi a Leiria (cidade onde ocorrem os principais fatos narrados em O crime do
Padre Amaro), em que exerceu o cargo de administrador do Conselho por seis meses, como
condição para que adentrasse à carreira diplomática.

Em 1873, Eça foi nomeado cônsul em Havana, mas no ano seguinte seguiu para Brístol,
Inglaterra, onde permaneceu até 1878. Por fim, transferiu-se para Paris, antigo desejo seu.
Casou-se em Neuilly e passou realmente a se dedicar à sua carreira literária. Nesse mesmo
local, faleceu no ano de 1900.

A obra de Eça pode ser dividida em três fases:

— A primeira reflete um escritor ainda num momento de indecisão, preparação e procura de


influências definitivas e de um caminho próprio. Representa a fase menos importante, que, em
alguns aspectos, serve como amostra do tipo de prosador que Eça seria no futuro. Esta fase
está marcada pela publicação de artigos e crónicas escritos entre 1866 e 1867;

— A segunda fase inicia-se com a publicação definitiva de O crime do padre Amaro (1875), o
qual vinha sendo escrito desde 1871.

Esta fase segue até aproximadamente 1888, quando publica-se Os Maias. A partir de 1871, Eça
adere às teorias do Realismo propriamente dito, passando a produzir obras de caráter
combativo em relação às instituições vigentes, em especial a Monarquia,

Igreja e Burguesia, voltadas para as ações e reformas sociais. Servem como retrato (em alguns
aspectos, é claro, deformado) da sociedade portuguesa de sua época e apresentam uma prosa
já impregnada das características de seu estilo: uma linguagem direta, antideclamatória,
fluente, precisa, com pinceladas irônicas e satíricas ou, até mesmo, de um certo lirismo
melancólico;

— A terceira e última fase de sua carreira corresponde aos anos de 1888 até 1900, quando
falece o escritor. A postura adotada pelo autor a partir deste momento é exatamente a oposta

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da fase antecedente: ao invés da opção pela destruição dos valores deturpados da sociedade
burguesa da época, abraça uma postura construtiva. Neste momento, um Eça que parece ter
alcançado a maturidade, apresenta-se voltado para o culto daqueles valores rechaçados
anteriormente, trazendo à tona a esperança e a fé, aliadas a um idealismo não mais científico.

RESUMO DOS CAPÍTULOS – PARÁFRASE DA OBRA

Num domingo de Páscoa, em Leiria, divulga-se a notícia de que o senhor pároco da Sé, José
Miguéis, morrera de madrugada, por causa de uma apoplexia. Por não ser muito estimado,
poucas pessoas compareceram ao enterro.

Dois meses depois, soube-se na cidade que outro pároco fora nomeado e parecia tratar-se de
um homem muito novo, que acabava de sair do seminário. Seu nome era Amaro Vieira e
falava-se de influências políticas na sua nomeação. Amaro era já conhecido de uma pessoa de
Leiria, o senhor cónego Dias, que fora seu mestre no seminário. Amaro escreve para o cónego,
pedindo-lhe um lugar para morar. Imediatamente, este decide instalá-lo na casa de S. Joaneira,
sua amiga, viúva, que vive só com a filha, uma irmã entrevada na cama e a empregada, a Ruça.
Numa conversa com o coadjutor da Sé, o cónego Dias exprime este seu desejo e o coadjutor,
apesar de concordar com a ideia, sugere que o povo poderia vir a comentar maldades a
respeito da estadia de um padre tão jovem numa casa habitada por uma moça solteira, como
era o caso de Amélia. O cónego combate essa insinuação, alegando que S. Joaneira tem o
costume de alugar os quartos, além de ser asseada, não cobrar muito caro, ter um espaço
suficiente para as necessidades de Amaro etc.

II

Nos fins de Agosto, uma semana depois da conversa, chega o novo padre, que é recebido pelo
cónego e o coadjutor. Os dois comentam os arranjos de moradia com Amaro e o conduzem à
casa de S. Joaneira. O pároco é apresentado à dona da casa e a seus aposentos. Amélia e ele
cruzam-se muito rapidamente, no momento em que o padre está pronto para se recolher.

Por fim, vai para seu quarto e, durante suas orações, pode ouvir no assoalho acima de sua
cabeça “...o ruído das saias engomadas que ela (Amélia) sacudia ao despir-se.”

III

O terceiro capítulo, em forma de “flash-back”, trata-se de um relato sobre a vida de Amaro.

“Amaro nascera em Lisboa, em casa da senhora Marquesa de Alegros.” Seu pai fora criado do
marquês e a mãe criada de quarto

(“quase amiga”) da marquesa. Quando Amaro tinha seis anos, perdeu a mãe; um ano antes, o
pai tinha morrido de apoplexia. Amaro tinha ainda uma irmã, que vivia com sua vó, em
Coimbra, e um tio, merceeiro abastado do bairro da Estrela. Porém, a marquesa o conservou
em sua casa e passou a cuidar de sua educação.

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A marquesa ficara viúva aos 43 anos, tinha duas filhas, educadas com preocupações religiosas,
que eram beatas e “faziam o chique falando com igual fervor da humildade cristã e do último
figurino de Bruxelas”. A senhora Marquesa decidiu colocar Amaro na vida eclesiástica.

O menino é descrito como medroso e afeminado, pois vivia entre as saias das criadas. Aos
onze anos ajudava na missa e limpava a capela. Apesar de estar crescendo, continuava com o
aspecto um pouco doentio e miúdo; nunca sorria.

Num Domingo, a marquesa morreu de apoplexia. No testamento, recomendava que Amaro


entrasse no seminário aos quinze anos.

Encarregava o padre Liset de cuidar de tudo. Amaro tinha 13 anos. Foi mandado para a casa de
seu tio, onde não encontrou o carinho feminino com o qual estava acostumado. Era tratado
com indiferença pela tia e pelo tio com certo desprezo e agressividade.

Desejava o seminário como uma espécie de libertação, não como a realização de uma vocação
verdadeira.

Entrou no seminário e, apesar da dificuldade em se adaptar àquele ambiente carregado,


conseguiu fazê-lo e alcançou até algum sucesso nos resultados. Apesar de mostrar-se
resignado, inquietações e desejos interiores perturbavam-no constantemente.

Foi ordenado e nomeado pároco de Feirão, na serra da Beira Alta. Tratava-se de uma paróquia
pobre de pastores, onde Amaro passava longo tempo ocioso. Seguiu, então, para Lisboa e,
hospedando-se na casa da tia, foi procurar pela filha mais nova da condessa, Luísa. Esta estava
agora casada com o conde de Ribamar, que, através de seus conhecimentos, acabou por
interceder junto ao ministro pela transferência de Amaro para Leiria.

IV

Só se falava da chagada de Amaro à cidade, mal pisara ele em Leiria. As amigas de S. Joaneira,
D. Maria da Assunção e as Gansosos, foram à sua casa pela manhã para saber do novo pároco.
A anfitriã mostrou-lhes com orgulho o quarto do hóspede e contou-lhes a respeito de suas
boas maneiras e tudo o que dissera até então.

Enquanto isso, Amaro saíra com o cónego Dias para levar sua carta de recomendação ao
senhor chantre e jantar na casa do padre mestre, que era como chamava ao religioso. Quando
voltaram à casa de S. Joaneira, foi apresentado o jovem padre a todos que ali se encontravam:
as amigas íntimas da casa, Artur Couceiro, que cantava modinhas muito bem, e João Eduardo,
que ajudava Amélia com as partituras, junto ao piano. Passou-se assim a primeira noite de
divertimentos – cantorias e jogos – na residência.

Ao final da noite, porém, quando Amaro recolheu-se, sentiu sede e, ao subir para a cozinha,
pôde ver Amélia ao despir-se, em saias brancas. Esse fato causou inquietação no padre, que
teve uma noite bastante agitada e insone, acompanhada pelos ouvidos de Amélia, no outro
quarto.

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V

O quinto capítulo, em forma de “flash-back”, trata-se de um relato sobre a vida de Amélia.

Amélia, que ouviu a agitação do padre, no quarto embaixo do seu, também não conseguiu
dormir. Uma canção na casa vizinha, então, fez-lhe recordar tempos passados e sua infância.
Lembrou do irmão que perdera ainda pequeno e do pai que não conhecera, um militar que
morrera novo. Aos oito anos foi para a mestra, que contava-lhe histórias de convento, as quais
a encantavam. Nesse período, sentia-se muito atraída pelos santos, festas da igreja e desejava
até tornar-se “uma freirinha muito bonita”, com véu branco.

Sua casa (outra, perto da estrada de Lisboa) sempre fora muito visitada por padres. Quando
criança, lembrava-se do chantre

Carvalhosa, que encontrava sempre a conversar com sua mãe, na sala, com a batina
desabotoada. Ele a tratava com carinho e tomava suas lições e a tabuada. Não gostava de um
certo padre Valente, que era gordo, suado, com as mãos moles e de unhas pequenas e que
apreciava tê-la entre seus joelhos, de onde a menina podia sentir seu hálito de cebola e
cigarro. Agradava-lhe, em compensação, o cônego Cruz.

Nessa época, Amélia já sabia o catecismo e a doutrina, aliados, porém, a uma visão de Deus
como uma entidade que só castigava e trazia dor e sofrimento aos pecadores. Sentia-se,
então, culpada quando deixava de rezar alguma oração, preocupada em não alcançar, por isso,
o reino dos céus, ser castigada por sua displicência.

O senhor chantre morrera repentinamente, causando enorme comoção a S. Joaneira. Era


começo de Setembro e Amélia, então com quinze anos, viajou com a mãe para a casa de praia
de D. Maria da Assunção, uma forma de aliviar a dor da perda sofrida pela mãe.

Na viagem, Amélia é cortejada por Agostinho, que freqüentaria o quinto ano de direito na
Universidade. Parecem apaixonados, porém, após a partida do rapaz, recebem a notícia de que
o mesmo se casaria em Alcobaça. Amélia tem, então, sua primeira desilusão amorosa.

Foi nessa época que o cónego Dias passou a visitar com a irmã a casa de S. Joaneira. Tornou-se
amigo da família e ocupou o lugar do falecido chantre, na sua poltrona. O grupo devoto
dispersou-se, especialmente por causa do que se falava da relação entre o cônego e a dona da
casa. Amélia crescera, chegara a seus vinte e dois anos, guardava ainda a devoção, mas agora
pelo aparato religioso, pelas festas, a riqueza dos objetos utilizados nas cerimônias, a empáfia
dos rituais. Conheceu, nessa época, o jovem escrevente João Eduardo, que passou a
frequentar sua casa, com esperança de casar-se com ela. Entretanto, a moça não aceitou o
casamento naquele momento e não parecia realmente envolvida pelo rapaz.EDUCACIONAL

VI

Amaro já parece bastante adaptado à sua nova vida em Leiria, às comodidades da casa onde
vive: boa comida, roupa muito limpa, ambiente aconchegante. A missa já não apresentava o
mesmo fervor, pois sua mente estava voltada para os prazeres de voltar à casa e usufruir de
todo conforto que o esperava diariamente. Desenvolvera, também, bastante intimidade com

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Amélia, tornando-se em alguns momentos aquela relação bastante familiar, de ambas as
partes.

Esta proximidade, como era de se esperar, passou a causar inquietações no pároco, uma
atração carnal e sensual dificilmente ocultável aos olhos de Amélia. Além disso, percebe-se já o
ciúme que a presença de João Eduardo lhe causava, nas segundas e quartas-feiras. Nesses
dias, Amélia tornava-se mais distante e o padre quase a detestava, às vezes.

Um dia, ao voltar para a casa, Amaro surpreende o cônego e S. Joaneira no quarto, a


abotoarem as roupas, com os braços expostos, num momento de muita intimidade. Retira-se
sem ser descoberto, muito aturdido com tal revelação.

VII

O padre Amaro e o cónego Dias participam de um jantar com o abade de Cortegassa,


conhecido como o melhor cozinheiro da diocese. Era seu aniversário e reuniram-se em sua
casa, além dos dois já citados, o padre Natário, o padre Brito e o Libaninho, amigo das casas de
religiosas e religiosos, inclusive D. Joaneira.

Os seis comem e se regalam, aparentemente até o exagero, enquanto conversam a respeito


dos vícios e imoralidades que permeiam as classes baixas; discutem os interesses políticos do
próprio clero e, a seriedade da confissão. Depois de ocorrerem desentendimentos entre o
padre Natário, o padre Brito e Amaro, foram andar para ajudar a digestão. No caminho,
Natário destrata terrivelmente um velho que se colocou em seu caminho, enquanto o pobre
coitado se desculpava sob um “chuva” de insultos.

Amaro se desvia do grupo, a caminho de casa, e encontra Amélia, que decide mostrar-lhe a
fazenda da mãe. No caminho para a casa, ao ver-se a sós com a moça, Amaro perde o controle
e a toma em seus braços, beijando-a com furor no pescoço. A menina foge; porém, quando se
encontra só, delira ao perceber que o padre também gosta dela.

VIII

O pároco retornou à casa aterrado, decidido a sair da casa onde se hospedava, depois que
tomara aquela atitude inadequada em relação à Amélia. Apesar de ter percebido que a reação
da menina não demonstrava indignação, mas surpresa, tinha muito medo do escândalo que
tudo isso poderia causar, caso fosse descoberto.

Foi, então, à casa do cónego Dias para comunicar-lhe sua decisão e pedir-lhe ajuda. Sem dizer
a razão de suas ideias, num primeiro momento espantou o velho, depois, porém, livrou-o de
alguns problemas. O cônego, que sempre tivera privacidade para estar com S. Joaneira nas
suas tardes de relaxamento, agora sentia-se prejudicado em sua liberdade dentro da casa. A
cama aconchegante fora cedida ao pároco e uma de ferro fora posta ao lado da cama de
Amélia, um dos fatos que o obrigava a estar sempre atento, não podendo relaxar e saborear
seus prazeres regulares.

No dia seguinte, o cônego já tinha providenciado uma nova casa para Amaro, na rua das
Sousas. Este, ainda dividido entre trocar o aconchego de onde estava e tendo percebido que

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Amélia não contara nada para a mãe a respeito do acontecido entre eles, incomodou-se um
pouco com esse atendimento tão rápido ao seu pedido. Amaro aceitou a casa, apesar de não
se tratar de lugar muito agradável, e S. Joaneira foi avisada da mudança.

A despedida foi triste para todos, Amaro não se conformava em ter de se privar da companhia
que o agradava, da comida que apreciava, dos bons tratos de que usufruía naquele lar
aconchegante. Mudou-se e revoltava-se sempre com Amélia, jurava não voltar à casa de S.
Joaneira, pois sofria naquele espaço lúgubre que agora habitava por culpa da tentação que a
moça passara a

IX

A vida de Amaro tornou-se monótona e triste, naquele lugar desagradável, com a comida que
não lhe apetecia, preparada pela empregada Vicência, com as saudades que o tempo passado
na outra casa lhe trazia. Era constantemente visitado pelo coadjutor e tinha que travar com
este conversas sem sentido, sem o menor interesse. Com raiva, tentava tecer comentários
maldosos a respeito de S. Joaneira, insinuando que na casa “havia podres”. O coadjutor
mantinha-se discreto e preferia não responder, apenas dando de ombros, com ar malicioso.

Enquanto isso, ressentia-se Amélia por não poder gozar da companhia do pároco como antes
e, todas as noites, quando tocava a campainha de sua casa, imaginava logo que seria ele
voltando a freqüentar as noites entre os amigos. Passou a idealizar a imagem de Amaro,
enquanto desfazia e impacientava-se com João Eduardo, que parecia-lhe “palerma”.
Adoentou-se, depois de ter perdido o apetite e o médico, doutor Gouveia, foi chamado.
Aconselhou que casassem a menina o quanto antes.

Um dia, numa missa de Domingo, reencontraram-se mãe, filha e padre. Amélia conseguiu
cochichar a Amaro que “tinha estado como doida” sem sua presença na casa. A mãe também
reforçou o desaparecimento do pároco. A partir de então, Amaro, sentindo-se acolhido,
especialmente pelo objeto de sua cobiça, voltou a freqüentar os serões da casa de S. Joaneira.
Seu retorno foi festejado por todos os amigos, exceto João Eduardo.

O padre encontrava-se já em profundo envolvimento com a moça e tentava justificar o mesmo


com exemplos divinos.

Surpreendentemente sempre conseguia aproximar seus sentimentos e pensamentos


“impuros” da graça e afastá-los de qualquer mácula relacionada ao pecado.

À medida que a proximidade entre Amaro e Amélia aumentava a olhos vistos, o ciúme do
escrevente crescia. O pároco e a jovem mostravam-se, agora, muito íntimos, amigos,
cúmplices até, enquanto que a frieza em relação à presença de João Eduardo aumentava cada
vez mais. O rapaz exteriorizou suas inquietações com o tratamento dispensado ao padre e a
moça mostrou-se indignada com a desconfiança. A partir daí, porém, tornou-se mais cautelosa
no trato com o padre.

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X

João Eduardo, que tinha um parente redator do jornal A voz do Distrito, resolveu desabafar
anonimamente sua revolta com a falta de vergonha do clero, já que os padres se relacionavam
com as senhoras da cidade e os jovens párocos tentavam seduzir moças de família. Escreveu,
então, um texto, que foi publicado com estardalhaço pelo periódico. Agostinho Pinheiro, o
parente, garantira-lhe que nunca descobririam quem era o autor do comunicado, assinado por
Um liberal e intitulado Os modernos fariseus.

Os padres Brito, Natário e o cónego Dias divulgaram o conteúdo da publicação para Amaro na
própria casa de S. Joaneira. O artigo causou escândalo, pois expôs, quase a dizer nomes, tudo
que se apregoava a meia voz a respeito dos relacionamentos mantidos disfarçadamente pelos
homens de Deus. Natário, indignado, tentou conversar com o secretário-geral, Sr. Gouveia
Ledesma, a respeito da infâmia e verificar o que se poderia fazer contra o jornal ou contra
quem escrevera aquelas palavras. Porém, o secretário mostrou-se irredutível e defendeu até o
fim a liberdade de imprensa, alegando que não tinha poderes para fazer nada a respeito.

Na cidade, falava-se muito do artigo, e todo tipo de comentário podia ser ouvido, contra ou a
favor do que fora dito. João Eduardo, aproveitando-se dos comentários, insinuou a S. Joaneira
a possibilidade de realizar-se o seu casamento com Amélia, de quem tanto gostava. A velha
mostra-se bastante contente com o fato de o escrevente, aparentemente, não ter se mostrado
ofendido com o que se insinuara a respeito da reputação da filha.

Amélia, então, um pouco ressentida com a covardia do pároco em afastar-se novamente da


casa por conta do comunicado, aceitou os conselhos de sua mãe e resolve casar-se com João
Eduardo. Escreveu-lhe um bilhete aceitando a proposta e começam os preparativos para a
cerimónia. Amaro foi avisado a respeito de toda combinação e voltou a frequentar a casa de S.
Joaneira, transtornado pelo ciúme e decidido a tentar reconquistar a atenção de Amélia.

XI

O padre Natário, empenhado em descobrir a identidade dO liberal, começou a estabelecer, ou


restabelecer seus contatos, especialmente com o doutor Godinho, dono do jornal onde
aparecera o artigo, e com o padre Silvério, com quem tivera, em praça pública, séria
desavença. Tudo isso para que o padre Silvério, confessor da esposa do doutor Godinho,
contasse o nome do infame que ofendera a todos os religiosos. Por fim, conseguiu o que
queria e contou a Amaro a traição do escrevente.

O pároco, sem perder tempo, encontrou na revelação um pretexto para afastar Amélia do
noivo ou, melhor ainda, escurraçá-lo da casa de S. Joaneira. Nesse meio tempo, faleceu a irmã
da mesma, a entrevada, tendo Amaro que dar-lhe as últimas bênçãos e estar ao lado das
senhoras na vigília ao cadáver. Nesta mesma noite, num momento em que esteve a sós com a
menina Amélia, aproveitou para contar-lhe tudo e fazê-la tremer frente à possibilidade de ser
castigada por casar-se com um homem sem fé que seria, naturalmente, excomungado em
razão das suas “falsas” acusações.

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Para completar sua “missão”, dirigiu-se no outro dia à casa de D. Josefa Dias e pediu-lhe que
intercedesse, em nome da moral, junto à Amélia e à sua mãe assim que fosse possível, no
papel que tinha de madrinha. Além disso, convenceu a senhora de que seria melhor que a
menina passasse a se confessar com ele, que poderia conduzi-la ao caminho do bem e da
virtude. A mulher seguiu suas instruções com admiração por tanta bondade e santidade e
levou a afilhada, depois de uma boa conversa, a confessar-se com o pároco. Ficaram os dois
muito tempo no confessionário, aparentemente trocando confidências amorosas.

XII

Amaro convence Dona Josefa dias que ele seria melhor confessor que o padre Silvério.

Dona Josefa leva Amélia a confessar-se ao Padre Amaro.

Ambos ficaram muito tempo no confessionário.

XIII

No outro dia, quando João Eduardo apareceu na casa da noiva, encontrou à sua espera um
bilhete da mesma a dizer-lhe que esquecesse dos planos e combinações de casamento, em
razão da traição que cometera. O escrevente tentou ainda falar com a moça, abordando-a
depois na rua, sem sucesso. Nesse momento, todos lhe viraram as costas, inclusive o doutor
Godinho, a quem o rapaz procurou para saber como fora possível a divulgação de seu nome.
Além disso, não tinha mentido, por isso estava sendo injustiçado com toda aquela agressão.

João Eduardo via-se, então, totalmente aniquilado: perderia, com certeza o emprego e a
prometida promoção, teria que se mudar de cidade, moraria na rua, sem dinheiro e sem
comida.

XIV

Andando pela cidade, no auge do desespero, o escrevente encontrou Gustavo, tipógrafo da


Voz do Distrito, que mudara havia alguns meses para Lisboa. Sentaram-se no bar do Tio Osório
e beberam e comeram durante algum tempo. João Eduardo desabafou com o colega a respeito
de todas as tragédias que o atropelavam na mesma hora. Separaram-se já um pouco ébrios e o
escrevente dirigiu-se à casa de Amélia.

Apesar de insistir para falar com a moça, não conseguiu, frente às alegações da empregada,
que afirmou que as patroas haviam saído. No largo da Sé, porém, o escrevente encontrou-se
com Amaro e, num ímpeto de fúria e ressentimento, agrediu-o no ombro.

Um tumulto muito grande ocorre na rua e o Carlos, da botica, acolhe o padre com a ajuda de
sua mulher, Amparo.

O rapaz foi levado para a Administração, porém, quando todos acreditavam que seria
severamente punido pelo que fizera, parece perdoado pelo padre Amaro, que intercedeu por
ele e encerrou o assunto, mostrando ter como principais virtudes a caridade e o perdão. O
escrevente retirou-se cabisbaixo.

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O padre passou a ser ainda mais admirado por sua atitude, como a um santo. Ao mesmo
tempo, João Eduardo, atónito, chorava em sua cama, sem entender por que ele, uma pessoa
boa, trabalhadora, que não queria mal a ninguém e que amava Amélia, passava por essas
terríveis situações.

XV

Amélia foi convidada por D. Josefa a ir jantar em sua casa com o padre Amaro e o cónego.
Feliz, depois de uma missa cantada na Sé, em que admirara e adorara o pároco em sua tarefa
realizar a celebração, seguiu para o jantar. Ao final do mesmo, porém, o senhor cónego sentiu-
se mal e impediu que a irmã saísse de casa para acompanhar Amélia até sua residência. O
pároco sugeriu que sua criada, a Dionísia, acompanhasse a menina, que ele mesmo as levaria
até metade do caminho, mas deviam apressar-se, pois parecia que haveria chuva.

No caminho, porém, a previsão do pároco se confirmou e desabou uma chuva torrencial. No


pretexto de “não se molhar demais a menina Amélia”, o padre entrou em sua própria casa.
Sugeriu à moça que subissem, então, até a sala de jantar para que aguardassem o fim do
aguaceiro e, ao conseguir que a menina cedesse, dispensou Dionísia por meia hora, alegando
que receberia brevemente a confissão da jovem. Pela primeira vez, ficaram completamente a
sós, fechados no quarto do pároco.

XVI

Dionísia, com toda sua experiência, alertou Amaro de que seria necessário encontrar um lugar
seguro para que os dois se encontrassem, pois era muito perigoso que vissem a menina saindo
de sua casa e passassem a comentar as razões do fato. Sugeriu, então, a casa do sineiro da
igreja, separada apenas por um pátio da sacristia e com entrada também pela rua de trás da
Sé. O sineiro, o Sr. Esguelhas, era coxo e tinha uma filha paralítica, a Totó, que, segundo
diziam, tinha um gênio muito difícil e torturava o pai com caprichos. Passava o dia na cama. Tio
Esguelhas ouvia a missa do pároco todos os dias, respeitosamente.

Assim que o viu entrar na sacristia, Amaro o abordou com simpatia e, durante toda a missa,
dirigiu seu olhar para o pobre coitado, como que abençoando-o. Terminada a cerimonia, foi
conversar com ele para pedir-lhe um enorme favor: segundo o pároco, a menina

Amélia, depois do desgosto com o infame escrevente, decidira tornar-se freira. A mãe, porém,
não consentia, portanto, Amaro, acreditando tratar-se de uma vocação divina, resolvera testar
essas suas disposições, experimentá-la, testar sua decisão. Para isso, precisava ter com a
menina muitas conferências e queria saber se poderia contar com o empréstimo da casa do
senhor sineiro... O homem interpretou isso como uma honra e imediatamente garantiu que
seu quarto ficaria disponível nos dias que seriam destinados aos encontros e que ele ficaria
fora nesses períodos. O pároco, porém, mostrou-se preocupado com a filha inválida. O sineiro
garantiu que não era necessário se preocupar, a menina não atrapalharia.

O pároco comunicou à Amélia o arranjo e, como desculpa, argumentou com todos que seria de
muita piedade e consideração que a moça fosse à casa de tio Esguelhas para ensinar sua filha
doente a ler e iniciá-la na doutrina religiosa, da qual estava totalmente afastada. Estaria, se
continuasse assim, aberta à aproximação do anjo mau, de Satanás. Todas as amigas de S.

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Joaneira acolheram imediatamente a idéia, que representaria uma caridade maravilhosa por
parte de Amélia.

Passaram a se encontrar todas as semanas, às vezes uma, às vezes duas vezes. Amélia entrava,
antes, no quarto da Totó, mas não era recebida com muita alegria. A paralítica parecia
perceber tudo, acompanhava-os sempre com olhar, quando subiam as escadas e a deixavam
com um livro de figuras de santos. Além disso, Amélia sentia-se constantemente amedrontada
pelo castigo que poderia receber por estar agindo daquela forma. Torturava-se, por vezes.

XVII

Este foi o período mais feliz da vida de Amaro. Sentia-se realizado e “abençoado” pelo amor
correspondido com a menina, por poderem encontrar-se com privacidade e estarem
realizando todas as suas fantasias. Sentia-se dominando, pois Amélia obedecialhe, em todos os
sentidos, abandonara seu corpo e sua alma nas mãos do pároco. Era uma sensação nova para
Amaro, que fora sempre, até então, dominado. Mostrava-se ciumento, proibia a moça de sair
para bailes ou simpatizar com qualquer rapaz.

Ela, por sua vez, admirava-o, idolatrava-o, como a um santo, um ser elevado, superior,
completo, maravilhoso. Afinal, tratava-se de “um imperador de Deus”, ao lado do qual ela
podia estar, ela fora a escolhida.

XVIII

A Totó criara aversão por Amélia e começou a tirar o sossego dos encontros. Tinha espasmos
fortíssimos e até chegou a espumar pela boca no momento em que Amélia entrou no quarto.
Amaro recitou até exorcismos, assustado com a força das convulsões.

Gritava, quando eles subiam: “Passa fora, cão” ou “Lá vão os cães!”. Isso foi causando terror
em Amélia, que algumas vezes já pedia para que não entrassem na casa, nem mesmo para os
prazeres que os esperavam. Na igreja, tinha vergonha e medo do julgamento dos santos,
parecia assustada e perturbada.

Sua mãe, percebendo como parecia adoentada e acabrunhada, comentou suas inquietações
com o cónego e pediu que um dia fossem com a filha até a casa da paralítica para perceber o
que transtornava tanto a menina. O cónego obedeceu, mas, no dia em que o fez, ouviu de
Totó, na ausência de Amélia, que ela costumava estar ali com o pároco, aos agarramentos.

Irado, o cónego procurou pelo pároco e agrediu-o, mostrando como estava desapontado por
este ter desviado a menina Amélia da decência. Amaro, porém, manteve-se firme e alegou que
o cónego não podia julgá-lo, pois também tinha lá suas intimidades com a mãe da moça, às
escondidas; afirmou tê-lo visto com S. Joaneira, em “mangas de camisa”. O cônego tentou
desmentir, mas desistiu e afirmou ser Amaro um traste. Este argumentou com clareza e
convicção que não fizera nada demais, que tratava-se de um arranjo muito conveniente para
os dois, uma necessidade mesmo.

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Por fim, os dois padres se entenderam e trocaram abraços, o cônego pediu desculpas e
admirou a esperteza do antigo aluno, afirmando que apenas não esperava que fosse com
Amélia o caso amoroso, parte de uma família com a qual tinha tanta proximidade.

Concluiu, porém, que Amaro estava certo, afinal, “é o que se leva de melhor neste mundo”.

A partir desse dia, Amaro encontrou realmente a tranquilidade. Além disso, para ajudar, a Totó
ficou gravemente doente, soltando golfadas de sangue, e o doutor Cardoso deu-lhe poucas
semanas de vida. Portanto, não havia mais preocupações, podiam os amantes entrar na casa
tranquilos, sem os olhares ou gritos da paralítica. Da parte do amigo cónego, tinha Amaro todo
o apoio no que se relacionava a entreter a senhora S. Joaneira. Amélia, todavia, permanecia
cada vez mais amedrontada com ideias de punição, da perda do paraíso por ser a concubina
do pároco e não se iludia tanto mais com sua figura “elevada”. Ficava horrorizada com a
possibilidade dos mais variados e terríveis castigos que poderiam cair sobre ela e, algumas
vezes, pensava até em cessar suas relações com Amaro. Não o fazia, pois o padre também a
amedrontava e não tinha coragem de enfrentar a terrível ira passional de seu amante.

XIX

Amaro contou ao cónego que Amélia estava grávida e pediu ajuda para encobrir esta
vergonha, desgraça totalmente inesperada. A primeira ideia que os dois amigos tiveram foi a
de casar a menina com o escrevente, portanto, deviam encontrá-lo o mais rápido possível.
Tinham que inventar uma desculpa, de que toda a intriga criada a respeito dele fora falsa e
maldosa e trazê-lo de volta à casa. Amava tanto Amélia que não se negaria a perdoá-la. A
criança, então, nasceria de sete meses, fato bastante comum.

Ao receber a notícia, a moça chorou, lamentou-se de sua sorte de pecadora e abandonada.


Logo após os primeiros momentos, contudo, passou a aceitar o arranjo como sua salvação e
até a imaginar-se, quem sabe, regenerada, mãe de família, com outros filhos e um marido
atencioso. Talvez até pudesse manter as relações com seu querido pároco, eventualmente. Os
momentos agradáveis que passavam juntos não precisavam, necessariamente, extinguir-se.

Amaro, quando a percebeu aceitando com tanta facilidade e resignação o plano de estar com
João Eduardo, viu-se tomado de ciúmes e acusou-a de desfrutável e imoral. Enquanto isso, às
vezes desejava que a Dionísia não encontrasse o rapaz, para que

Amélia continuasse sendo apenas dele. Esta realmente não conseguia informações seguras e
definitivas sobre o paradeiro do escrevente até que, um dia, conseguiu encontrar Gustavo, o
amigo tipógrafo de João. Este mostrou-lhe as últimas correspondências que recebera do
amigo, indicando que partira para o Brasil.

XX

Amélia mostrou-se arrasada com a notícia de que não haveria possibilidade de ter de volta a
honra e a paz, acreditava-se mesmo perdida. Amaro não encontrava solução, da mesma forma
o cônego não o fazia. O primeiro pedia à moça apenas que tivesse paciência, “que tudo se
arranjava”.

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Uma noite, porém, foram todos avisados de que D. Josefa Dias encontrava-se à beira da morte,
padecendo de uma forte pneumonia.

Para lá se dirigiram e houve dias em que a situação era crítica. Para Amélia, aquele tempo
representou alívio, pois voltados todos para a doença, não reparavam nela, na sua tristeza e
sua humilhação; além disso, distraía-se como enfermeira e passava longas horas na cabeceira
da senhora.

Por fim, numa manhã, foi anunciado que D. Josefa estava fora de perigo, porém, muito fraca.
Chegava o verão e, como sempre ocorre nessa época, o cónego propôs a ida à praia como
ajuda para a saúde da irmã. Obtendo, porém, resistência do médico, desesperou-se por ter
que passar o verão na casa da Ricoça. Amaro encontrou, então, a salvação para seu problema:
Amélia poderia ir cuidar de D. Josefa na Ricoça, enquanto o cónego e S. Joaneira iriam para a
casa na Vieira. Os meses de verão e início do Outono coincidiriam com o fim da gestação.
Assim, ninguém, nem a mãe, desconfiaria de nada e podia-se dar um jeito também no bebê.

O único problema seria convencer D. Josefa, tão rígida nas questões religiosas e de moral, a
encobertar algo desse tipo. Amaro abordou-a, convencendo-a de que agindo assim, como uma
boa cristã, seria altamente recompensada e bem-vista no reino dos céus e que, se não o
fizesse, agiria contra os preceitos de uma boa católica. Obviamente, Amaro não disse que era o
pai da criança, mas que “Ameliazinha” fora seduzida por um homem casado.

A mulher, por fim, aceitou e todos tomaram seus próprios rumos, apesar de muita resistência
por parte de S. Joaneira ao deixar a “pequena” enterrada na Ricoça; preferia estar em seu
lugar. Logo depois da partida de todos, morreu a Totó, e Amaro foi acalmar tio

Esguelhas e render o padre Silvério, passando a noite ao lado do corpo da falecida.

XXI

Segundo orientações do cónego, Amaro ficou as primeiras semanas sem aparecer na Ricoça,
para não levantar suspeitas. Passava os dias enfastiado, sem encontrar distração nos longos
passeios pela estrada de Lisboa.

Amélia, no seu exílio, amaldiçoava sua vida. Era maltratada pela madrinha, que não a perdoara
pelo mau passo. Silenciosamente, a moça acusava o pároco por ter lhe dito que a velha
senhora seria toda bondade e compreensão. Não tinha amigos, ninguém de sua idade, vivia
para cuidar da madrinha, costurar e isolar-se. À noite, ouvia vozes, ruídos inexplicáveis, baques
no chão e corria para dormir com Gertrudes, a empregada.

Tornou-se melancólica e passou a odiar o filho, que “era a causa da sua perdição”. Com
certeza, teria enlouquecido se não fosse o aparecimento do abade Ferrão nas visitas à irmã do
senhor cónego. O abade era o único que conversava com Amélia, percebendo na moça essa
tristeza constante. Ofereceu-se, então, para ouvi-la, caso quisesse conversar. Amélia mostrou-
se ansiosa para dividir com “aquele santo homem” suas inquietações.

XXII

12
Dionísia procurou o padre Amaro para dizer que João Eduardo fora encontrado, e vivia nos
Poiais, trabalhando para o senhor

Morgado. Disse que preferira avisar o padre, pois, com certeza, João encontraria Amélia, já
que a Ricoça era caminho da casa do patrão. Amaro dirigiu-se, então, à Ricoça, naquele mesmo
dia. Aquela visita mexia com ele, afinal, havia algum tempo que não encontrava a amante.

D. Josefa recebeu o padre com muito entusiasmo, reclamando de seu afastamento,


abandonando-a nas mãos daquele abade relaxado e com pouca religião. Conversou muito com
a convalescente e ouviu de Amélia palavras empolgadas a respeito do abade, cheias de
admiração e carinho. Amaro mostrou-se descontente com a proximidade do religioso, mas
elogiou-o em suas virtudes.

Ao despedir-se, foi acompanhado por Amélia até a saída, mostrando-se sofredor e saudoso e
indignando-se com a forma como ela era tratada pela madrinha. Amélia mostrou-se
conformada e afirmou que não merecia mais do que isso. O pároco tentou abraçá-la, porém, a
menina recusou veementemente e implorou que ele não mais a tocasse, que não queria mais
pecar. Amaro ficou encolerizado e retirou-se, raivoso da atitude de Amélia, culpando o abade
Ferrão, que agora era seu confessor, de estar incutindo moralidades na cabeça da moça.

Convenceu-se, pelo caminho, porém, de que, se voltasse a freqüentar a casa regularmente, em


breve teria de volta seus bons momentos de amante. No dia seguinte, encontrava-se lá de
novo. Não achou, todavia, Amélia, que saíra para a casa do abade e costumava passar lá todas
as manhãs. Amaro foi embora com pressa, indignado com a atitude da “rapariga”, esperando
encontrá-la na estrada. Sua expectativa confirmou-se e viu-a na frente da casa do ferreiro.

Enquanto o abade mantinha-se dentro da casa, Amaro interpelou Amélia com agressividade e
perguntou-lhe se ela ousara contar tudo a respeito dos dois. A menina confirmou suas dúvidas
e ele agarrou-a pelo braço, num acesso de fúria. Nesse momento, contudo, foi inundado por
um acesso de desejo ao vê-la assim, tão próxima e tão bonita. Disse à moça que ela teria que
continuar sendo dele, como antes, porém, frente à recusa da menina, dirigiu-lhe ameaças e
seguiu para a cidade, às pressas.

Escreveu-lhe uma carta apaixonada, mas a única resposta que recebeu foi: “Peço-lhe que me
deixe em paz com os meus pecados”.

No outro dia, sem desistir, voltou à casa da Ricoça. Amélia mostrou-se calada e arredia, e
assim prosseguiu na semana seguinte. O padre mandou-lhe outra carta, sem resposta.

Encontrou-se, um dia, ao chegar, com o senhor abade e tratou-o com agressividade. O bom
homem, sem pensar, afirmou-lhe que seria melhor não frequentar tanto assim a casa. Diante
da revolta de Amaro, pediu perdão, pois sabia não poder violar os segredos de confissão.
Amaro, então, escreveu à Amélia a terceira carta, acusando de diversas coisas o abade,
inclusive de expor o que ela lhe contava num momento sagrado. Também não obteve
resposta.

O pároco passou a ficar tomado pelo ciúme, não acreditava que toda aquela resistência era
proveniente apenas do terror do inferno, deveria tratar-se de um outro homem. Passou a

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vigiar o casarão pelas madrugadas. Uma vez ouviu a voz de João Eduardo próximo ao muro do
pomar e surpreendeu o escrevente a observar as janelas da casa, provavelmente à procura de
Amélia.

Na verdade, o rapaz o fazia sempre que passava pela casa, pois amava a moça da mesma
forma, mesmo depois dos acontecimentos que os separaram. Estava bem depois de ter
escapado de ir para o Brasil, a trabalho. O Morgadinho, opositor declarado do clero, quisera-o
contratar para a educação de seus dois filhos, também como forma de agredir os religiosos. O
moço tinha agora um bom salário, casa e até os empregados dos meninos a seu dispor.

Enquanto isso, o abade, sabendo de sua aproximação e tendo conhecido João, encheu-se de
esperanças de aproximá-lo de Amélia.

Tinha certeza de que o jovem a perdoaria e a afastaria das tentações que o pároco
representava. Falava com Amélia a respeito dessas possibilidades e ela parecia até comovida e
enternecida com os elogios tecidos pelo abade a João Eduardo.

O doutor Gouveia voltou a visitar a D. Josefa porque sua saúde sofrera uma leve piora.
Descobriu, numa dessas visitas, o estado de Amélia e afirmou estar disposto a cuidar do parto,
caso desejassem. Amélia encontrou no médico, a partir daí, mais um apoio e conforto. Amélia
já não se encontrava encantada pelo amor do pároco e, nas conversas do abade Ferrão,
descobrira um Deus misericordioso e não vingativo, como o que conhecera até então. Isso a
estava fortalecendo. Não que tivesse de todo esquecido o amor pelo padre, mas pelo menos
ele se encontrava sepultado, para alegria de seu confessor e amigo. Conseguia, agora, ter
esperança no futuro, esperança de regenerar-se talvez, casando-se com quem poderia
realmente ser feliz.

Entretanto, a moça descobriu que o pároco viajara para a Vieira e encontrava-se “nos banhos”
com todos os amigos, por isso desaparecera da casa. Amélia mostrou-se indignada por ele
estar usufruindo de tamanha diversão, enquanto ela estava ali, escondida.

Chegou Novembro e, com ele, vieram as chuvas. O abade afastou-se por um tempo por causa
de um reumatismo; o médico, quando vinha, fazia-o rapidamente. Amélia queixava-se com
Dionísia a ingratidão do pároco.

Um dia, porém, ele voltou a aparecer, bonito, bronzeado e saudável. Tratou Amélia com
distância e indiferença, o que deixou a menina transformada. E assim repetiu-se a visita, até
que a moça explodiu e cobrou-lhe a razão daquele tratamento tão injusto e insensível. O
pároco, que armara toda esta situação para reaproximar-se da moça, disse estar agindo como
ela mesma pedira. Amélia cedeu, então: quando o padre afirmou que voltaria a Vieira, Amélia
proibiu-o, abraçando-o pelos ombros e entregando-se mais uma vez.

XXIII

Amaro recebeu uma carta do cônego, dizendo que já estava difícil manter a S. Joaneira em
Vieira. Desesperado, pediu à Dionísia uma previsão para o parto. A mesma afirmou que

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deveria acontecer dentro de, mais ou menos, vinte dias. Iniciou-se uma preocupação do que
fazer com a criança. Dionísia comentou a respeito de algumas amas que conhecia, inclusive
uma, que recusou-se a indicar, pois sabia que lá as crianças morriam sempre. Sabia tratar-se
de uma “tecedeira de anjos”. A idéia da criança não vingar, nascer morta, sempre agradara a
Amaro, afastaria de si mais uma preocupação. Todavia, mostrava-se indignado com a
possibilidade de oferecer seu filho a uma assassina de bebés. Essa ideia, porém, não o
abandonava.

Dirigiu-se para a casa que Dionísia descrevera e se deparou com um local bastante asseado e
aconchegante, não pôde acreditar que se tratava do que Dionísia afirmara. Conversou com o
casal que ali vivia, D. Carlota e seu marido, um anão muito feio. Deixou as coisas mais ou
menos arranjadas com os dois para quando a criança viesse ao mundo.

Amélia andava preocupada com a possibilidade de se descobrir tudo a respeito de seu estado,
caso o nascimento demorasse mais e torturava Amaro com suas inquietações. Deu-se, por fim,
o dia do parto. No momento em que nascera a criança, fora entregue pela Dionísia à ama. Era
um menino. Algum tempo depois de seu nascimento, entretanto, Amélia pediu sua presença e,
diante das negativas de Dionísia, entrou em terríveis convulsões. Apesar de todas as tentativas
de salvá-la, o médico pediu a presença do abade no quarto para instituir-lhe os últimos
sacramentos. Amélia não resistiu e faleceu.

Enquanto isso, Amaro aguardava notícias da empregada, que não voltava. Já sabia tratar-se de
um forte bebé, pois vigiara a entrega do filho, tinha até seguido para a casa da ama e exigido
que a criança fosse criada e não morresse, que ele pagaria por isso, mas não tinha informações
a respeito de Amélia.

XXIV

No dia seguinte, Amaro partiu para a Sé, onde se realizaria o batizado do filho do Guedes.
Quando retornou para casa, encontrou Dionísia transfigurada pela noite que passara. A
empregada lhe deu a notícia da morte de Amélia, o que desesperou o pároco.

Banhou-se em lágrimas, trancou-se no quarto. Depois de um certo tempo, pediu um cavalo e


dirigiu-se à casa da ama, em busca da criança. Descobre, então, que o bebê havia falecido, e
ninguém pudera fazer nada. O padre indignou-se com a mulher, mas já era muito tarde.

Voltou para casa, escreveu uma carta ao senhor cónego comunicando-lhe dos acontecimentos,
sem detalhes. Dirigiu-se à Sé para se despedir do tio Esguelhas, pois retirava-se para Lisboa
depois de solicitar afastamento ao senhor vigário-geral, alegando ter uma irmã à beira da
morte.

O enterro de Amélia aconteceu no outro dia e foi seguido de perto por João Eduardo, que
chorou copiosamente, vendo todas as suas esperanças e seu amor sendo enterrados com a
moça.

XXV

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Em Lisboa, todos encontravam-se em alvoroço por causa da revolução por que passava a
França naquele momento. Prédios a arder,

Versalhes sendo atacado e a burguesia portuguesa horrorizada por saber do ataque aos
deliciosos cafés e restaurantes que encontravam-se naquela região, a da Bastilha. Nessa
confusão de opiniões, Amaro aparece e encontra-se com o cónego Dias, que vinha resolver
uma pequena questão judicial. O pároco estava agora na paróquia de Santo Tirso, mas voltara
a Lisboa para falar com o conde de Ribamar a respeito de uma possível transferência para Vila
Franca, mais próxima da capital.

Conversaram a respeito dos moradores de Leiria, falaram sobre as novidades. O cônego disse
que S. Joaneira finalmente aceitara a morte da filha, mas andava doente. João Eduardo parecia
estar tísico, é o que se sabia pelo abade Ferrão. O cónego fica feliz por Amaro ter desistido das
ideias de se enterrar num convento depois da morte da menina e da criança. Amaro afirmou
que achava que não aguentaria todo o sofrimento, porém, tudo passara, e agora ele estava ali,
confessando apenas mulheres casadas, tranquilo.

O conde de Ribamar aproximou-se deles e começam a falar de política, exaltando a


prosperidade de Portugal, acima daquelas influências malignas do socialismo, que arrasava
com a magnitude francesa, por exemplo.

ANÁLISE DA OBRA

PERSONAGENS, FOCO NARRATIVO, TEMPO E ESPAÇO

a) Personagens

— Padre Amaro: pároco recém-saído do seminário, que segue para Leiria, graças a uma
indicação e envolve-se com Amélia.

Embora inicialmente mostre-se uma boa pessoa, revela-se intrigante e egoísta quando se
interpõem em seu caminho ou na realização de seus desejos.

— Amélia: moça de 22 anos, crédula, beata, com um fervor religioso aguçado por uma fé
medrosa e deslumbrada. Não consegue, muitas vezes, separar a religião e o místico da
realidade.

— Cónego Dias: senhor gordo e relaxado, tido como rico, em Leiria, que gosta de usufruir dos
cuidados e dos luxos proporcionados por sua idade e posição. Mantém um caso com S.
Joaneira. Foi professor de Amaro no seminário, razão pela qual o pároco o trata por padre-
mestre.

— S. Joaneira: viúva, apreciadora da companhia de padres, desde que Amélia era criança.
Muito beata e sensível, amante do cónego, que a sustenta com uma mesada que mantém a
casa e o conforto no qual vive.

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— João Eduardo: escrevente, apaixonado por Amélia, trabalhador e impulsivo em seu ciúme.
Considera-se um mártir sofredor depois de perder tudo, inclusive Amélia. Não concorda com a
pressão religiosa e apenas segue por um tempo os rituais para agradar a moça e sua mãe.

— Gansosos: irmãs que frequentavam a casa de S. Joaneira. D. Joaquina Gansoso era uma
pessoa seca, cheia de opiniões.

Costumava dizer mal dos homens e entregava-se toda para a Igreja. Já D. Ana, sua irmã, era
muito surda e pouco falava, apenas dava suspiros agudos em alguns momentos das conversas.

— D. Maria da Assunção: mulher muito religiosa, rica e colecionadora de caras imagens de


santos. Vivia sozinha com uma empregada, era viúva, e sofria de um catarro crónico.

— D. Josefa Dias: irmã do cónego Dias, mulher muito rígida em questões de moral e religião.
Parecia sempre um pouco desarrumada e era sempre curiosa por saber novidades. Madrinha
de Amélia.

— Libaninho: amigo de todos, todo religioso e amante do uso dos diminutivos. Freqüentava as
rodas beatas e as igrejas, mas foi encontrado com um oficial em posição comprometedora.

— Padre Natário: tinha olhos encovados e muito malignos, a pele picada de bexigas, pessoa
rancorosa, agressiva e extremamente vingativa, tudo que não se espera de um religioso
convicto. Vivia com duas sobrinhas, às quais chamava de “as flores do meu jardim”.

— Padre Brito: o padre mais estúpido e mais forte da diocese. Dizia-se que tinha um caso com
a mulher do corregedor e, quando se divulgou o comunicado de João Eduardo, foi o único a ser
afastado para a serra.

— Padre Silvério: confessor bondoso, que já entrara em conflito com o padre Natário.

— Carlos: dono da botica, inquilino do cónego, receitava remédios para as emergências.


Acreditava que havia uma rebelião contra a moral, os bons costumes e a religião, que
considerava a base da sociedade, por trás daqueles ataques aos padres.

— Amparo: esposa de Carlos, mãe de cinco filhos.

— Totó: filha do sineiro, paralítica e doente do pulmão, chamada de endemoniada pelo povo,
que não entendia seus acessos de fúria. Ao perceber a relação entre o pároco e Amélia,
perseguia-os com o olhar e gritava impropérios.

— Tio Esguelhas: sineiro da Sé, coxo, homem que vivia para cuidar de sua filha. Acredita nas
mentiras de Amaro e oferece a casa para os encontros do casal.

— Tio Cegonha: antigo mestre de piano de Amélia, que sofrera com a perda da filha, fugida
com um oficial.

— Sr. Gouveia Ledesma: secretário-geral, representante da lei máxima na cidade, dizia-se que
mantinha um caso com a Novais.

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— Dionísia: mulher dada aos desfrutes, descobre primeiro o caso de Amélia e Amaro, segunda
empregada da casa do padre. Ajudou os dois a disfarçarem os acontecimentos e foi parteira
do filho de Amélia.

— Vicência: primeira empregada de Amaro, bastante seca e pouco asseada.

— Escolástica: terceira empregada da casa do pároco, discreta e admiradora do patrão. Acaba


por trabalhar com as Gansosos.

— Marquesa de Alegros: patroa dos pais de Amaro, que acaba por adotá-lo e decidir o futuro
num seminário. Viúva e mãe de suas filhas, beatas mais deslumbradas com o luxo que com a
doutrina.

— Abade Ferrão: padre que passa a confessor de Amélia nos tempos da gravidez, na Ricoça.
Tinha ideias que se contrapunham às dos religiosos em geral. Não acreditava no Deus punidor
como forma de manter os fiéis às custas de medo; defendia, porém, o Deus misericordioso e
bom.

— Conde de Ribamar: marido da filha mais velha da marquesa, que consegue, com suas
amizades, as transferências de Amaro.

— Carlota: ama encarregada de cuidar do bebé do pároco com Amélia, causando sua morte,
como a de outros bebés enjeitados.

— Doutor Gouveia: médico defensor da ciência e ateu.

Realiza com Dionísia o parto de Amélia, combatente da doutrina religiosa e defensor do uso da
lógica científica, acima de tudo.

b) foco narrativo

O texto apresenta narrador em terceira pessoa, omnisciente e omnipresente. Pode-se


perceber claramente, porém, um envolvimento do mesmo nos acontecimentos; sua opinião e
suas críticas permeiam o texto, em sua própria voz ou na seleção dos pensamentos e atitudes
dos personagens. Acentua, sempre que possível, o caráter negativo dos personagens, em suas
descrições, fazendo que o leitor seja adverso a eles. Além disso, investe nas críticas contra o
misticismo exacerbado ao referir-se às impressões das mulheres, especialmente em relação
aos padres, aos cerimoniais da missa e da fé em geral, seu apego às imagens etc.

Está longe, portanto, de se tratar de um narrador ingénuo e limitado a contar os fatos. Pelo
contrário, toda indignação que nos causam as atitudes descritas no romance está intimamente
ligada à destreza e malícia narrativas.

c) Tempo

A história se passa no século XIX, entre 1870 e 1871, aproximadamente. Devem ser levadas em
consideração, entretanto, as reminiscências da infância de Amaro e Amélia, apresentadas em
“flash-back” no início do romance.

d) Espaço

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Portugal, na cidade de Lisboa (infância de Amaro e moradia do conde de Ribamar); Leiria
(espaço principal, onde todas as complicações do romance desenvolvem-se); Feirão

(primeiro lugar ao qual Amaro é designado, na serra da Beira Alta); Vieira (aonde os amigos
viajam para os banhos, região do litoral).

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO

Trata-se o romance, como ficou claro desde o início deste resumo, de um texto voltado
especificamente para combater os valores vigentes na sociedade portuguesa do fim do século,
tidos como fundamentais no que concerne a pessoas e famílias de bem. Eça, além de realizar
um retrato da sociedade portuguesa, foi além: denunciou as hipocrisias que permeavam um
falso discurso moralista e religioso aceito por todos como válido e louvável. Atacou o clero e
suas devassidões, as famílias e seus vícios encobertos, o interesse pelo dinheiro e status, acima
de tudo. Amaro é apenas um exemplo, ele e os outros padres que aparecem no livro, de que
tudo que se pregava nas afirmações do clero estava baseado em mentiras e disfarces. Destrói,
com competência, a imagem do homem que, porque se transveste com uma batina e conhece
um pouco mais da doutrina, é elevado à categoria de santo pelos fiéis (como é o caso de
Amélia, que vê no pároco alguém com poder superior ao da própria Virgem Maria, pois este
todos os dias, dotado da graça divina, podia perdoar os pecados). Trata-se, na verdade, de um
homem como qualquer outro, cheio de fraquezas, defeitos, ideias pecaminosas e obscenas e
vaidades. Como se pode perceber, praticamente todos os personagens participam de alguma
sordidez e, no momento em que o leitor parece acreditar que algum bom sentimento possa
surgir, este é soterrado pela ambição, pelo imediatismo e pela cobiça. Os únicos exemplares
de completa boa vontade que tentam se opor a esse estado de coisas são João Eduardo, o
abade Ferrão e o doutor Gouveia. O primeiro acaba massacrado pelo poder da batina; o
segundo parece desacreditado pela maior parte das beatas convictas, mas realiza-se no
povoado mais afastado, próximo das pessoas mais humildes; o terceiro defende a ciência
como salvação (é o representante das ideias que o próprio Realismo carrega), entra em
algumas discussões a respeito de religião, mas não se envolve nas disputas.

Essa denúncia tem como marca triunfante o final do último capítulo do livro, onde fica claro
que essa “doença” encontra-se impregnada, na verdade, em todo imaginário português. Sabe-
se bem que Portugal sempre foi um país extremamente religioso, foi o que mais demorou para
se libertar, pelo menos em parte, do domínio sufocante da Igreja Católica. Deve-se, segundo
alguns, em parte a esse fato o atraso da nação. Era também contra este atraso que vinha o
Realismo colocar-se, e o que fez Eça, através do narrador crítico que aparece no romance
estudado. “Mas Amaro, radiante de se achar ali, numa praça de Lisboa, em conversação íntima
com um estadista ilustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma ansiedade de conservador
assustado:

— E crê vossa excelência que essas ideias de república, de materialismo, se possam espalhar
entre nós?

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O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quase junto das grades que cercam
a estátua de Luís de Camões:

— Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É possível que haja aí
um ou dois esturrados que se queixem, digam tolices sobre a decadência de Portugal, e que
estamos num marasmo, e que vamos caindo no embrutecimento, e que isto assim não pode
durar dez anos, etc., etc.Parvoices!...

Tinham-se encostado quase às grades da estátua, e tomando uma atitude de confiança:

— A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou dizer não é
para lisonjear a vossas senhorias: mas enquanto neste país houver sacerdotes respeitáveis
como vossas senhorias, Portugal há-de manter com dignidade o seu lugar na Europa! Porque a
fé, meus senhores, é a base da ordem!

— Sem dúvida, senhor conde, sem dúvida, disseram com força os dois sacerdotes.

— Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!

E com grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que àquela hora, num fim de tarde
serena, concentrava a vida da cidade.

Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto, com
os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra
pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de
vinho; pelos bancos de praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos
solavancos sobre as suas altas rodas, era como símbolo de agriculturas atrasadas de séculos;
fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio
de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação das
indústrias moribundas... E todo este mundo decrépito se movia lentamente, sob um céu
lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a batota pública, e rapazitos de voz
plangente oferecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam, num vagar madraço. Entre o
largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da
praça onde brilhavam três tabuleiros de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de
taberna, e desembocavam, com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de
prostituição e de crime.

— Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento...
Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!

E o homem de estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do
monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, — ali, ao
pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus
largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos
cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria — pátria para sempre passada, memória
quase perdida!”

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Note-se a presença da ironia e desconsolo por parte do narrador, neste encerramento. Tudo
aquilo a que o movimento literário ao qual pertence o romance se opõe apresenta-se aqui: a
decadência de Portugal; a degeneração da raça; a defesa cega de uma situação que apenas
privilegia alguns poucos, representados pelos padres e pelo conde. A presença de Camões
apenas reforça a diferença entre dois “Portugais”: o desbravador e rico que se exaltou em Os
Lusíadas e o pobre e decadente com o qual podia-se deparar naquele momento.

A crítica está voltada, especialmente, ao passadismo, à exaltação de uma pátria que não mais
existe, que encontra-se ultrajada, ultrapassada, decadente e não consegue perceber isso,
repetindo os mesmos erros e fechando os olhos para as possibilidades futuras

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