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Manual Distinto
Manual Distinto
“Abaporu”, de Tarsila do Amaral – palavra que significa literalmente homem (aba) que come (poru) – se tornou
a semente de uma pesquisa renovadora.
* Fred Coelho
Resumo
No centenário da Semana de Arte Moderna, a Antropofagia ainda marca presença como um dos
principais temas de seu legado. Com destaque para as obras de Tarsila do Amaral e Oswald de
Andrade, o ideário de uma cultura em que “só não interessa o que é meu” atravessou as décadas
e permanece atual.
“Países colonizados
outras “movimentos” que histórica e estética do Brasil em como o Brasil,
reivindicavam o caráter nativista sua face colonial. O português,
como princípio — e aqui se com seu projeto mercantil e fora do centro
destaca a “Escola da Anta” de escravagista de civilização, em metropolitano
Plínio Salgado e sua antessala choque com as cosmologias
do fascismo brasileiro através dos povos originários, situava a colonizador
do Movimento Integralista — possibilidade de uma vanguarda europeu, precisaram
decorre de um aprofundamento local que fizesse uma leitura à
intelectual do que seria a virada contrapelo da presença europeia desenvolver um
antropofágica (e de algumas e suas matrizes ocidentais sob a discurso crítico
rupturas pessoais entre a perspectiva do ato indígena de
geração de 1922). O elemento se alimentar, de forma ritualizada, que possibilitasse
telúrico da pintura de Tarsila dos guerreiros mais poderosos a seleção e a
(um corpo nu com os pés que se tornavam prisioneiros de
gigantes fincados na terra, guerra entre diferentes povos. assimilação criteriosa
ladeado por um sol e um cacto Na ação digestiva e metafísica do que nos chega
solitário) torna-se o motor de dos chamados canibais, surgia
um aprofundamento de Oswald uma forma de se pensar a constantemente
de Andrade e alguns de seus relação do intelectual brasileiro como influência ou
amigos daquela época numa com a influência dos povos
concepção que reelabora uma hegemônicos do Ocidente. A despejo de materiais
série de leituras sobre a situação temática do “selvagem”, que internacionais.”
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frequentaram entre 1924 e outras populações ameríndias. desenvolver um discurso crítico
1929. Revistas dadaístas como a A segunda é estética, quando que possibilitasse a seleção e
“Cannibale”, de Francis Picabia Oswald de Andrade e outros a assimilação criteriosa do que
(duas edições publicadas em artistas ligados ao Modernismo nos chega constantemente
1920), o surrealismo e sua de 1922 assumem o termo como como influência ou despejo
relação com o inconsciente princípio criativo e movimento. de materiais internacionais.
freudiano, os resquícios da “arte E a terceira é filosófica, em Os antropófagos modernistas
negra” e do “primitivismo” nas que é proposto um “método criaram suas obras a partir da
pinturas de Picasso e Rosseau, a anticolonial”, espécie de filtro premissa “só interessa o que não
presença do “selvagem” como crítico para lidar com a inserção é meu”, isto é, criarmos arte e
personagem anti-racionalista e do Brasil na modernidade pensamento a partir da presença
anti-clerical, tudo isso era visto ocidental. produtiva (e não predadora)
e filtrado por Oswald em sua Na camada histórica, do outro — inimigo guerreiro
peculiar cornucópia de ideias Antropofagia diz respeito aos poderoso, mundializado,
(articulando Freud, Nietzsche, rituais que populações indígenas colonizador. Uma arte “para
Keyserling, Splenger e outras da costa brasileira, como os exportação” que saiba utilizar,
matrizes europeias). No cenário Caetés e os Tupinambás, através da diferença, a cultura
brasileiro, também não era tão praticavam em suas guerras hegemônica de um mercado,
fora da curva o mote primitivista, e conquistas territoriais. O de um gosto, de um consenso.
já que, desde o “Manifesto da ritual consiste, basicamente, A Antropofagia é, portanto,
Poesia Pau-Brasil” (1924) e da na devoração do inimigo dialógica e pratica a tradução
convivência do poeta franco- derrotado mais valoroso para a intercultural a partir do dado
suíço Blaise Cendrars com os incorporação de suas forças e local e suas matrizes populares.
modernistas de São Paulo (e, de sua história. Sempre um ritual Já na camada filosófica,
principalmente, com nomes da coletivo, a Antropofagia indígena esse princípio estético de Oswald
elite cafeeira como Paulo Prado), e guerreira acerta contas com e seu Manifesto de 1928 se
o tema do indígena e da cultura o passado e o futuro, já que o transforma em princípio teórico
afrocentrada já habitavam inimigo devorado também já para pensarmos a condição
algumas pautas poéticas e devorou parentes da tribo que o (histórica, econômica, social)
imagéticas. A pesquisadora devora. Se trata de um processo de brasileiros e colonizados,
Aracy Amaral também lembra social e metafísico visando uma frente aos grandes centros e
que, durante 1926, Monteiro perspectiva fusional do mundo. monopólios internacionais. A
Lobato publicava em capítulos O antropófago, nesse caso, partir da substituição estratégica
a tradução das aventuras de realiza um ato de incorporação do patriarcado pelo ideal do
“Hans Staden entre os selvagens da diferença (o inimigo comido) matriarcado, ela parte do
no Brasil” pelas páginas do e do mesmo (aquele que come), princípio que é preciso inverter
“Diário da Noite” [3]. Mais do transformando a memória dos o fluxo da nossa permanente
que precursores de uma ideia antepassados em força para formação passiva “de fora para
original, Oswald de seu grupo as gerações futuras. Afinal, o dentro”. Nós sempre tivemos
foram articuladores argutos de antropófago de hoje será o que lidar com a história de
uma série de outras ideias em almoço de amanhã. um país e um povo formado
circulação no seu tempo. Na camada estética, a partir do elemento externo
O tema da Antropofagia devemos a Oswald de Andrade em choque e associação
deve ser entendido em três (ao lado de Tarsila do Amaral) com o elemento interno:
camadas de referência quando a articulação teórica de uma somos matrizes europeias,
falamos do assunto de uma evidência histórica: países africanas e indígenas ligadas
perspectiva brasileira [4]. A colonizados como o Brasil, pelo oceano Atlântico, pela
primeira é histórica, isto é, fora do centro metropolitano escravidão e pela circularidade
ligada ao ritual Tupinambá e de colonizador europeu, precisaram permanente de culturas e de
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nações do mundo. Na tentativa de de pensarmos nossos aspectos
“A operação escapar das amarras exotizantes, particulares por uma chave
antropofágica racistas e colonizadoras que universal e vice-versa.
romantismos e cientificismos Assim, diversas situações
fazia com que os de matrizes francesas, alemãs fizeram com que a perspectiva
tropicalistas vissem e inglesas depositavam de uma origem “selvagem” e
sobre o Brasil, críticos como “bárbara” pudesse ser não a
o Brasil a partir do Araripe Junior propuseram condenação do atraso, mas sim
mundo e vice-versa, saídas originais como o “estilo a força política e estética frente à
tropical” e sua “obnubilação” “civilização ocidental”. Devorar
articulando temas, ainda na década de 1880 [6]. um repertório mundial em prol
línguas e imagens Eram modelos que, assim como de um uso local, sempre contra
na antropofagia modernista, as ideias coloniais de pureza,
em uma nova leitura natureza e imaginação criadora essência ou natureza, algo
latino-americana caminhavam juntas em um que seria a demarcação crítica
contradiscurso nacional. Como frente ao olhar do estrangeiro
do tempo histórico demonstra Silviano Santiago dócil sobre nós mesmo. Oswald
linear e diacrônico em seu clássico ensaio “O propõe a figura do “bárbaro
entre-lugar na literatura latino- tecnicizado” como imagem
do Ocidente.” americana” (1969), não haveria dessa ideia estética e política:
outra saída para o intelectual a superação do atraso pela
uma multiplicidade de corpos e da ex-colônia do que pensar transformação de um ponto de
narrativas. Basicamente, pensar e agir contra a metrópole, vista, a incorporação criteriosa
o que é ser brasileiro e ser do mesmo quando se busca do dito “universal” no corpo
mundo, no mundo. A filosofia repetir o modelo hegemônico. e pensamento ditos locais ou
Antropofágica é antinacionalista, A Antropofagia, parafraseando periféricos. O consumo como
anti-essencialista e anti- Santiago, é proposta por criação.
exotizante. Tais ideias foram Oswald e companhia como Dessa forma, a
sistematizadas por Oswald de uma das formas de evitarmos Antropofagia ganha força
Andrade, principalmente nas nosso “desaparecimento por como o termo que permite a
décadas de 1940 e 50, quando analogia” [7]. experimentação de diferentes
ele retoma sua pesquisa sobre E como essa ideia- repertórios, de diferentes
o tema e elabora escritos de conceito-método-experimento tempos e espaços, para pensar
caráter filosófico, como “A de vida ganhou força na arte e um Brasil e não o Brasil. Um
Crise da Filosofia Messiânica”, no pensamento brasileiros até país visto “de fora para dentro”
“A Marcha das Utopias”, “O hoje? O Brasil cruzou o século XX e que produz um discurso “de
Antropófago” ou o tardio “A dentre um dilema: depois de ter dentro para fora”. Aqui, a prática
Antropofagia como visão de sido colônia, se viu como espaço Tupinambá da deglutição do
mundo”, publicado finalmente subdesenvolvido frente às forças inimigo mais valente pode ser
em seu “Diário Confessional” [5]. dominantes do Ocidente. As vista como metáfora de nossa
Nesse ponto vale uma ideias de modernidade e de deglutição dos repertórios
breve digressão: o pensamento desenvolvimento seguiram culturais dominantes (de fora)
antropofágico — ao mesmo desafiando os nossos artistas e sua transformação em força
tempo cosmopolita e nativista e intelectuais que se dividiram interna (de dentro).
— pode ser visto como uma em tentativas de dar conta do Essa perspectiva — que
das faces em que intelectuais componente nacional e popular embaralha eixos como alta e
nacionalistas da segunda e, simultaneamente, dar conta baixa cultura, erudito e popular,
metade do século XIX buscaram do que circulava no mundo e nacional e internacional, local e
uma marca singular de nossa poderia ser aproveitado por nós. universal, natureza e técnica —
civilização frente às demais A Antropofagia foi uma forma acaba sendo importante para
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gerações de criadores que se 1933 e encenada pelo Teatro Ocidente. É importante ressaltar,
propuseram a articular suas Oficina em 1967. Apesar do porém, que a “influência” de
práticas brasileiras como os texto ser da fase comunista do Oswald sobre compositores
fluxos de informação estética e autor (após a quebra financeira como Caetano Veloso é um
filosófica internacionais. Nesse de 1929 ele passa a militar pelo gesto direto dos críticos e
sentido, os poetas concretos de Partido Comunista no Brasil), a poetas Concretos, como
São Paulo na década de 1950 forma que José Celso Martinez demonstra uma entrevista do
e os compositores e músicos Corrêa opta para apresentar músico a Augusto de Campos.
tropicalistas da década de 1960 a peça trazia a perspectiva A antropofagia de 1922 se
se tornam as principais frentes ácida, transcultural e inventiva atualiza no tropicalismo de 1968
para atualizar produtivamente a de Oswald em seu manifesto através do filtro das vanguardas
obra de Oswald e do Movimento e textos sobre o tema da construtivas da década de 1950
Antropófago do final dos anos Antropofagia. [9] (Figura 2).
de 1920. Quando concebe sua Essa força de devoração
Os poetas Augusto de obra intitulada “Tropicália”, crítica do mundo e da história
Campos, Haroldo de Campos e exibida pela primeira vez na desloca completamente os
Décio Pignatari propuseram, em exposição “Nova Objetividade mitos criados ao redor de uma
seu paideuma, uma outra história Brasileira” realizada no MAM-RJ perspectiva exótica sobre o
da literatura e da poesia, fora da no primeiro semestre de 1967, Brasil e os brasileiros. A natureza
formação nacionalista brasileira, o artista visual Hélio Oiticica já exuberante e o éden tropical são
criando um novo repertório articulava sua ideia de penetrável contrastados com a máquina, a
estético a partir de referências e instalação e sua busca por uma cidade, a indústria, o design e
internacionais como princípios “nova imagem” da arte brasileira nossa capacidade criativa que
de uma vanguarda mundial frente às novas figurações não deve nada aos grandes
feita aqui, no Brasil. Foram eles pops internacionais ao redor centros. A antropofagia se torna
também os responsáveis por de conceitos que convocavam assim um método de consumo
uma retomada gradativa da obra a “cultura antropofágica” de seletivo para transformar o que
do modernista antropófago, Oswald [8]. No Tropicalismo é estático, imóvel (o mito da
através de artigos e prefácios musical de 1968, Beatles, Banda brasilidade tropical) em uma
das novas edições da obra. Essa de Pífaros de Caruaru, Ray força crítica em permanente
perspectiva cosmopolita fez Charles, Luiz Gonzaga, tudo se fluxo e movimento.
com que os mesmos poetas, torna um caldo cultural em que As ações tropicalistas e
na década de 1960, fossem as inovações técnicas dos discos sua capacidade de atualizar
decisivos na relação criada entre internacionais eram adaptadas os repertórios culturais da
o que se chamou de tropicalismo às ideias criativas nos discos juventude brasileira em plena
e a obra antropofágica de Oswald feitos no Brasil. Mesmo com suas ditadura civil-militar produziu
de Andrade. Novamente, a limitações práticas, o resultado uma espécie de paradigma que
conexão era o desejo dos era canções que soavam se tornou lugar-comum quando
compositores baianos, vivendo tanto como parte do super queremos falar sobre essa ideia
em São Paulo, transformarem desenvolvido apuro técnico de de incorporação da diferença
a música popular e brasileira (o “Sargent Peppers” quanto como em nosso contexto particular.
dentro) a partir das novidades parte caótica de um mundo sub Na cultura de massas, isso
da cultura pop internacional desenvolvido latino-americano. acabou se tornando a repetição
(o fora). Outra contribuição A operação antropofágica fazia estática e mercadológica da
definitiva desse período para com que os tropicalistas vissem “mistura”, e não se trata disso.
que a Antropofagia retornasse o Brasil a partir do mundo e vice- Antropofagia não é misturar
como operador intelectual e versa, articulando temas, línguas chiclete com banana e nem fixar
estético do Brasil de então foi a e imagens em uma nova leitura em Carmem Miranda nos filmes
montagem da peça “O Rei da latino-americana do tempo de Hollywood uma imagem
Vela”, escrito por Oswald em histórico linear e diacrônico do tropical e internacional. A mistura
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Referências
“Para além da além dos estereótipos e clichês
para turistas no carnaval, o que
natureza, para além temos hoje de resultado da
1. BOPP, R. Vida e morte da
antropofagia. Rio de Janeiro:
da beleza tropical, antropofagia como perspectiva Civilização Brasileira, 1977.
crítica brasileira no contexto 2. CAMPOS, A. C. A expressão
para além dos das potências mundializadas alimentícia é retirada do
estereótipos e clichês é justamente a capacidade de artigo “Revistas Re-Vistas: Os
Antropófagos”, publicada por
resiliência, criação, adaptação e
para turistas no inovação. Devemos ficar atentos
CAMPOS, A. C. Poesia, antipoesia,
antropofagia. São Paulo: Cortez e
carnaval, o que temos aos novos “bárbaros tecnizados” Moraes, 1978, p. 111.
e sua força transgressora
hoje de resultado da apontando tendências,
3. AMARAL, A. Tarsila: sua obra e
seu tempo. São Paulo: Editora 34/
antropofagia como rompendo consensos e fazendo Editora Edusp, 2003, p. 283.
o mundo funcionar no Brasil não 4. ANDRADE, O. A Utopia
perspectiva crítica como importação superficial, Antropofágica. 4ª ed. São Paulo:
brasileira no contexto mas como componente Globo, 2011, p. 21. E aqui fazemos
uma estrutura semelhante ao que
orgânico de uma ideia
das potências contemporânea de novo —
Benedito Nunes usou em seu
ensaio “Antropofagia ao alcance
mundializadas mesmo que o novo esteja na de todos” ao também propor
ancestralidade, no pensamento uma estrutura tripartida definindo
é justamente a indígena, no afrofuturismo, na a antropofagia como “metáfora,
diagnóstico e terapêutica”.
capacidade de biodiversidade amazônica e
5. PINTO, M. C. (org.). Diário
todas as singularidades que só
resiliência, criação, nós podemos fazer. Retirar o
confessional. São
Companhia das Letras, 2022.
Paulo: