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(Fonte: “Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Reprodução)

“Abaporu”, de Tarsila do Amaral – palavra que significa literalmente homem (aba) que come (poru) – se tornou
a semente de uma pesquisa renovadora.

Antropofagia ontem e hoje


Como uma ideia modernista revolucionou o pensamento
brasileiro e influenciou diferentes gerações

* Fred Coelho

Resumo
No centenário da Semana de Arte Moderna, a Antropofagia ainda marca presença como um dos
principais temas de seu legado. Com destaque para as obras de Tarsila do Amaral e Oswald de
Andrade, o ideário de uma cultura em que “só não interessa o que é meu” atravessou as décadas
e permanece atual.

Palavras-chave: Modernismo; Antropofagia; Tarsila do Amaral; Oswald de Andrade; Tropicalismo


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Dentre as incontáveis decorrência de “Abaporu”, articulariam definitivamente em
comemorações do centenário pintura fundadora de Tarsila do um manifesto e, principalmente,
da Semana de Arte Moderna, Amaral de 1928 [1]. Batizada a em uma revista (Figura 1).
podemos destacar os partir do Dicionário Castelhano- O “Manifesto
lançamentos editoriais que ainda Guarani de Antonio Ruiz de Antropófago” de Oswald
conseguem escavar os arquivos Montoya, a palavra significava foi publicado em maio, no
dos principais nomes ligados literalmente homem (aba) que primeiro número da Revista
ao modernismo de São Paulo. come (poru). A imagem de de Antropofagia — órgão
Se Mário de Andrade sempre Tarsila torna-se a semente de conduzido por diferentes
se renova como um missivista uma pesquisa renovadora e grupos em diferentes fases,
infinito e com uma biografia especulativa sobre as premissas que durou de 1928 a 1929, em
ainda em aberto, Oswald de criadoras brasileiras. Iniciada duas “dentições”, como foram
Andrade também revela mais como misto de blague e então batizadas. A primeira,
uma camada de suas ideias e de provocação, o antropófago se em formato de revista mesmo,
sua vida com a publicação do tornou, aos poucos, símbolo durou de maio de 1928 a
alentado “Diário Confessional” dinâmico de uma retomada do fevereiro de 1929 e teve na
(organização de Manuel da ímpeto dito então “primitivo” sua direção (e financiamento)
Costa Pinto) [5]. Lá, vemos como que habitava o imaginário Antonio Alcântara Machado. Já
esse tipo único de intelectual de intelectuais em relação às a segunda, publicada em uma
seguiu até o fim de sua vida, em populações originais do território página alugada do “Diário de S.
1954, burilando uma das ideias pré-colonial. Paulo” de Assis Chateaubriand,
decisivas para os legados de Ainda hoje, não é simples durou de 17 de março a 1 de
sua geração: a Antropofagia. definir os contornos exatos do agosto de 1929 e tinha na
Conceito gestado coletivamente que chamamos historicamente direção Raul Bopp e Jaime Adour
por um grupo dos intelectuais “Antropofagia” no âmbito dos da Câmara (com Geraldo Ferraz
decorrentes da Semana e trabalhos de 1928. São muitos como secretário). Generosa e
teorizado de diferentes maneiras caminhos individuais e coletivos com “estômago de avestruz”
por Oswald ao longo de que formularam suas ações e na primeira fase [2] pelo número
décadas, ela ocupa, ainda hoje, reflexões,comdiferentesversões, e diversidade intelectual de
um lugar de destaque quando heróis e anti-heróis. A fortuna seus colaboradores, agressiva
revisitamos os desdobramentos crítica sobre o tema trabalha e polêmica na segunda, a
daquelas três noites no Theatro com diferentes caminhos, mas “Revista de Antropofagia” foi
Municipal de São Paulo durante um fato sempre é definitivo: palco de momentos chaves
os dias 13, 15 e 17 de fevereiro a presença incontornável de do modernismo tardio de 22,
de 1922. Oswald de Andrade, o único como a publicação em primeira
Apesar de ainda que fez do tema um mergulho mão, além do “Manifesto” de
demonstrar sua força ao intelectual de longo prazo. De Oswald de Andrade, de trechos
permanecer em uso nos debates início, a Antropofagia aparece do romance “Macunaíma” de
do pensamento social brasileiro como uma metáfora elástica Mário de Andrade (números 1
por tanto tempo, sua origem de abrasileiramento das artes e 2), do polêmico poema “No
factual — enquanto evento que locais para nomear um grupo meio do caminho” (número
desencadeia uma movimentação de produções desiguais que 3), além de textos de Jorge
estética decorrente dos ideais tematizavam o Brasil popular de Lima, Murilo Mendes, Luis
modernistas — é quase prosaica. e antiacadêmico ou propagar da Câmara Cascudo, Ascenso
Entre diferentes versões, a imagem nostálgica de um Ferreira, Manuel Bandeira e
inclusive jocosas, como aquela silvícola habitando um tempo muitos outros.
que Raul Bopp indica um jantar imemorial. Rapidamente, A guinada de rupturas
ao redor de pernas de rãs em porém, o termo passa a operar que a Antropofagia ganhou
São Paulo, todas confluem para conceitualmente uma série de em 1929, afirmando de forma
o surgimento do nome como escritos, ideias e polêmicas que se mais radical sua posição frente
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ia do canibal de Montaigne
em seus “Ensaios”, passando
pela leitura romântica de Jean
Jacques Rousseau em 1762 e
pelo famoso livro de Couto de
Magalhães em 1876, é retomada
por nova chave crítica. Nesse
gesto, não cabia o nacionalismo
xenófobo, a idealização purista
do indígena, a “aculturação”
do Estado Monárquico ou a
folclorização do popular em seu
registro conservador.
Outro ponto importante
para definirmos o que ocorre
em 1928 é lembrar que, apesar
dessa perspectiva nativista
dos antropófagos brasileiros, o
tema do canibalismo circulava
(Fonte: “Antropofagia”, de Tarsila do Amaral. 1929. Fundação José e Paulina intensamente em centros
Nemirovsky. Reprodução). de vanguarda europeia,
majoritariamente a Paris
Figura 1. A Antropofagia propõe devorar um repertório mundial que Oswald e Tarsila tanto
em prol de um uso local, sempre contra as ideias coloniais de
pureza, essência ou natureza.

“Países colonizados
outras “movimentos” que histórica e estética do Brasil em como o Brasil,
reivindicavam o caráter nativista sua face colonial. O português,
como princípio — e aqui se com seu projeto mercantil e fora do centro
destaca a “Escola da Anta” de escravagista de civilização, em metropolitano
Plínio Salgado e sua antessala choque com as cosmologias
do fascismo brasileiro através dos povos originários, situava a colonizador
do Movimento Integralista — possibilidade de uma vanguarda europeu, precisaram
decorre de um aprofundamento local que fizesse uma leitura à
intelectual do que seria a virada contrapelo da presença europeia desenvolver um
antropofágica (e de algumas e suas matrizes ocidentais sob a discurso crítico
rupturas pessoais entre a perspectiva do ato indígena de
geração de 1922). O elemento se alimentar, de forma ritualizada, que possibilitasse
telúrico da pintura de Tarsila dos guerreiros mais poderosos a seleção e a
(um corpo nu com os pés que se tornavam prisioneiros de
gigantes fincados na terra, guerra entre diferentes povos. assimilação criteriosa
ladeado por um sol e um cacto Na ação digestiva e metafísica do que nos chega
solitário) torna-se o motor de dos chamados canibais, surgia
um aprofundamento de Oswald uma forma de se pensar a constantemente
de Andrade e alguns de seus relação do intelectual brasileiro como influência ou
amigos daquela época numa com a influência dos povos
concepção que reelabora uma hegemônicos do Ocidente. A despejo de materiais
série de leituras sobre a situação temática do “selvagem”, que internacionais.”
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frequentaram entre 1924 e outras populações ameríndias. desenvolver um discurso crítico
1929. Revistas dadaístas como a A segunda é estética, quando que possibilitasse a seleção e
“Cannibale”, de Francis Picabia Oswald de Andrade e outros a assimilação criteriosa do que
(duas edições publicadas em artistas ligados ao Modernismo nos chega constantemente
1920), o surrealismo e sua de 1922 assumem o termo como como influência ou despejo
relação com o inconsciente princípio criativo e movimento. de materiais internacionais.
freudiano, os resquícios da “arte E a terceira é filosófica, em Os antropófagos modernistas
negra” e do “primitivismo” nas que é proposto um “método criaram suas obras a partir da
pinturas de Picasso e Rosseau, a anticolonial”, espécie de filtro premissa “só interessa o que não
presença do “selvagem” como crítico para lidar com a inserção é meu”, isto é, criarmos arte e
personagem anti-racionalista e do Brasil na modernidade pensamento a partir da presença
anti-clerical, tudo isso era visto ocidental. produtiva (e não predadora)
e filtrado por Oswald em sua Na camada histórica, do outro — inimigo guerreiro
peculiar cornucópia de ideias Antropofagia diz respeito aos poderoso, mundializado,
(articulando Freud, Nietzsche, rituais que populações indígenas colonizador. Uma arte “para
Keyserling, Splenger e outras da costa brasileira, como os exportação” que saiba utilizar,
matrizes europeias). No cenário Caetés e os Tupinambás, através da diferença, a cultura
brasileiro, também não era tão praticavam em suas guerras hegemônica de um mercado,
fora da curva o mote primitivista, e conquistas territoriais. O de um gosto, de um consenso.
já que, desde o “Manifesto da ritual consiste, basicamente, A Antropofagia é, portanto,
Poesia Pau-Brasil” (1924) e da na devoração do inimigo dialógica e pratica a tradução
convivência do poeta franco- derrotado mais valoroso para a intercultural a partir do dado
suíço Blaise Cendrars com os incorporação de suas forças e local e suas matrizes populares.
modernistas de São Paulo (e, de sua história. Sempre um ritual Já na camada filosófica,
principalmente, com nomes da coletivo, a Antropofagia indígena esse princípio estético de Oswald
elite cafeeira como Paulo Prado), e guerreira acerta contas com e seu Manifesto de 1928 se
o tema do indígena e da cultura o passado e o futuro, já que o transforma em princípio teórico
afrocentrada já habitavam inimigo devorado também já para pensarmos a condição
algumas pautas poéticas e devorou parentes da tribo que o (histórica, econômica, social)
imagéticas. A pesquisadora devora. Se trata de um processo de brasileiros e colonizados,
Aracy Amaral também lembra social e metafísico visando uma frente aos grandes centros e
que, durante 1926, Monteiro perspectiva fusional do mundo. monopólios internacionais. A
Lobato publicava em capítulos O antropófago, nesse caso, partir da substituição estratégica
a tradução das aventuras de realiza um ato de incorporação do patriarcado pelo ideal do
“Hans Staden entre os selvagens da diferença (o inimigo comido) matriarcado, ela parte do
no Brasil” pelas páginas do e do mesmo (aquele que come), princípio que é preciso inverter
“Diário da Noite” [3]. Mais do transformando a memória dos o fluxo da nossa permanente
que precursores de uma ideia antepassados em força para formação passiva “de fora para
original, Oswald de seu grupo as gerações futuras. Afinal, o dentro”. Nós sempre tivemos
foram articuladores argutos de antropófago de hoje será o que lidar com a história de
uma série de outras ideias em almoço de amanhã. um país e um povo formado
circulação no seu tempo. Na camada estética, a partir do elemento externo
O tema da Antropofagia devemos a Oswald de Andrade em choque e associação
deve ser entendido em três (ao lado de Tarsila do Amaral) com o elemento interno:
camadas de referência quando a articulação teórica de uma somos matrizes europeias,
falamos do assunto de uma evidência histórica: países africanas e indígenas ligadas
perspectiva brasileira [4]. A colonizados como o Brasil, pelo oceano Atlântico, pela
primeira é histórica, isto é, fora do centro metropolitano escravidão e pela circularidade
ligada ao ritual Tupinambá e de colonizador europeu, precisaram permanente de culturas e de
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nações do mundo. Na tentativa de de pensarmos nossos aspectos
“A operação escapar das amarras exotizantes, particulares por uma chave
antropofágica racistas e colonizadoras que universal e vice-versa.
romantismos e cientificismos Assim, diversas situações
fazia com que os de matrizes francesas, alemãs fizeram com que a perspectiva
tropicalistas vissem e inglesas depositavam de uma origem “selvagem” e
sobre o Brasil, críticos como “bárbara” pudesse ser não a
o Brasil a partir do Araripe Junior propuseram condenação do atraso, mas sim
mundo e vice-versa, saídas originais como o “estilo a força política e estética frente à
tropical” e sua “obnubilação” “civilização ocidental”. Devorar
articulando temas, ainda na década de 1880 [6]. um repertório mundial em prol
línguas e imagens Eram modelos que, assim como de um uso local, sempre contra
na antropofagia modernista, as ideias coloniais de pureza,
em uma nova leitura natureza e imaginação criadora essência ou natureza, algo
latino-americana caminhavam juntas em um que seria a demarcação crítica
contradiscurso nacional. Como frente ao olhar do estrangeiro
do tempo histórico demonstra Silviano Santiago dócil sobre nós mesmo. Oswald
linear e diacrônico em seu clássico ensaio “O propõe a figura do “bárbaro
entre-lugar na literatura latino- tecnicizado” como imagem
do Ocidente.” americana” (1969), não haveria dessa ideia estética e política:
outra saída para o intelectual a superação do atraso pela
uma multiplicidade de corpos e da ex-colônia do que pensar transformação de um ponto de
narrativas. Basicamente, pensar e agir contra a metrópole, vista, a incorporação criteriosa
o que é ser brasileiro e ser do mesmo quando se busca do dito “universal” no corpo
mundo, no mundo. A filosofia repetir o modelo hegemônico. e pensamento ditos locais ou
Antropofágica é antinacionalista, A Antropofagia, parafraseando periféricos. O consumo como
anti-essencialista e anti- Santiago, é proposta por criação.
exotizante. Tais ideias foram Oswald e companhia como Dessa forma, a
sistematizadas por Oswald de uma das formas de evitarmos Antropofagia ganha força
Andrade, principalmente nas nosso “desaparecimento por como o termo que permite a
décadas de 1940 e 50, quando analogia” [7]. experimentação de diferentes
ele retoma sua pesquisa sobre E como essa ideia- repertórios, de diferentes
o tema e elabora escritos de conceito-método-experimento tempos e espaços, para pensar
caráter filosófico, como “A de vida ganhou força na arte e um Brasil e não o Brasil. Um
Crise da Filosofia Messiânica”, no pensamento brasileiros até país visto “de fora para dentro”
“A Marcha das Utopias”, “O hoje? O Brasil cruzou o século XX e que produz um discurso “de
Antropófago” ou o tardio “A dentre um dilema: depois de ter dentro para fora”. Aqui, a prática
Antropofagia como visão de sido colônia, se viu como espaço Tupinambá da deglutição do
mundo”, publicado finalmente subdesenvolvido frente às forças inimigo mais valente pode ser
em seu “Diário Confessional” [5]. dominantes do Ocidente. As vista como metáfora de nossa
Nesse ponto vale uma ideias de modernidade e de deglutição dos repertórios
breve digressão: o pensamento desenvolvimento seguiram culturais dominantes (de fora)
antropofágico — ao mesmo desafiando os nossos artistas e sua transformação em força
tempo cosmopolita e nativista e intelectuais que se dividiram interna (de dentro).
— pode ser visto como uma em tentativas de dar conta do Essa perspectiva — que
das faces em que intelectuais componente nacional e popular embaralha eixos como alta e
nacionalistas da segunda e, simultaneamente, dar conta baixa cultura, erudito e popular,
metade do século XIX buscaram do que circulava no mundo e nacional e internacional, local e
uma marca singular de nossa poderia ser aproveitado por nós. universal, natureza e técnica —
civilização frente às demais A Antropofagia foi uma forma acaba sendo importante para
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gerações de criadores que se 1933 e encenada pelo Teatro Ocidente. É importante ressaltar,
propuseram a articular suas Oficina em 1967. Apesar do porém, que a “influência” de
práticas brasileiras como os texto ser da fase comunista do Oswald sobre compositores
fluxos de informação estética e autor (após a quebra financeira como Caetano Veloso é um
filosófica internacionais. Nesse de 1929 ele passa a militar pelo gesto direto dos críticos e
sentido, os poetas concretos de Partido Comunista no Brasil), a poetas Concretos, como
São Paulo na década de 1950 forma que José Celso Martinez demonstra uma entrevista do
e os compositores e músicos Corrêa opta para apresentar músico a Augusto de Campos.
tropicalistas da década de 1960 a peça trazia a perspectiva A antropofagia de 1922 se
se tornam as principais frentes ácida, transcultural e inventiva atualiza no tropicalismo de 1968
para atualizar produtivamente a de Oswald em seu manifesto através do filtro das vanguardas
obra de Oswald e do Movimento e textos sobre o tema da construtivas da década de 1950
Antropófago do final dos anos Antropofagia. [9] (Figura 2).
de 1920. Quando concebe sua Essa força de devoração
Os poetas Augusto de obra intitulada “Tropicália”, crítica do mundo e da história
Campos, Haroldo de Campos e exibida pela primeira vez na desloca completamente os
Décio Pignatari propuseram, em exposição “Nova Objetividade mitos criados ao redor de uma
seu paideuma, uma outra história Brasileira” realizada no MAM-RJ perspectiva exótica sobre o
da literatura e da poesia, fora da no primeiro semestre de 1967, Brasil e os brasileiros. A natureza
formação nacionalista brasileira, o artista visual Hélio Oiticica já exuberante e o éden tropical são
criando um novo repertório articulava sua ideia de penetrável contrastados com a máquina, a
estético a partir de referências e instalação e sua busca por uma cidade, a indústria, o design e
internacionais como princípios “nova imagem” da arte brasileira nossa capacidade criativa que
de uma vanguarda mundial frente às novas figurações não deve nada aos grandes
feita aqui, no Brasil. Foram eles pops internacionais ao redor centros. A antropofagia se torna
também os responsáveis por de conceitos que convocavam assim um método de consumo
uma retomada gradativa da obra a “cultura antropofágica” de seletivo para transformar o que
do modernista antropófago, Oswald [8]. No Tropicalismo é estático, imóvel (o mito da
através de artigos e prefácios musical de 1968, Beatles, Banda brasilidade tropical) em uma
das novas edições da obra. Essa de Pífaros de Caruaru, Ray força crítica em permanente
perspectiva cosmopolita fez Charles, Luiz Gonzaga, tudo se fluxo e movimento.
com que os mesmos poetas, torna um caldo cultural em que As ações tropicalistas e
na década de 1960, fossem as inovações técnicas dos discos sua capacidade de atualizar
decisivos na relação criada entre internacionais eram adaptadas os repertórios culturais da
o que se chamou de tropicalismo às ideias criativas nos discos juventude brasileira em plena
e a obra antropofágica de Oswald feitos no Brasil. Mesmo com suas ditadura civil-militar produziu
de Andrade. Novamente, a limitações práticas, o resultado uma espécie de paradigma que
conexão era o desejo dos era canções que soavam se tornou lugar-comum quando
compositores baianos, vivendo tanto como parte do super queremos falar sobre essa ideia
em São Paulo, transformarem desenvolvido apuro técnico de de incorporação da diferença
a música popular e brasileira (o “Sargent Peppers” quanto como em nosso contexto particular.
dentro) a partir das novidades parte caótica de um mundo sub Na cultura de massas, isso
da cultura pop internacional desenvolvido latino-americano. acabou se tornando a repetição
(o fora). Outra contribuição A operação antropofágica fazia estática e mercadológica da
definitiva desse período para com que os tropicalistas vissem “mistura”, e não se trata disso.
que a Antropofagia retornasse o Brasil a partir do mundo e vice- Antropofagia não é misturar
como operador intelectual e versa, articulando temas, línguas chiclete com banana e nem fixar
estético do Brasil de então foi a e imagens em uma nova leitura em Carmem Miranda nos filmes
montagem da peça “O Rei da latino-americana do tempo de Hollywood uma imagem
Vela”, escrito por Oswald em histórico linear e diacrônico do tropical e internacional. A mistura
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como utilizar a força exterior


— tecnologias e circuitos
econômicos-culturais — em
prol de singularidades que só
podem existir no contexto local.
É uma permanente adaptação às
adversidades, uma transformação
do particular em universal. O que
só nós temos aqui e que, com
a devoração transcultural do
mundo, ganha força universal?
Nessa visada, manifestações
como as cenas de músicas
eletrônicas ligadas às periferias
do país — como o funk em suas
diversas frentes, o tecnobrega,
a axé music e outras formas de
reinvenção sonora de ritmos
brasileiros através de linguagens
(Fonte: “Sem título”, de Hélio Oiticica. 1955. Lisson Gallery. Reprodução). internacionais e vice-versa,
são trabalhos que fazem uma
operação de transcriação cultural
Figura 2. O artista visual Hélio Oiticica buscava uma “nova a partir dos dados locais.
imagem” da arte brasileira frente às novas figurações pops
Outro ponto fundamental
internacionais ao redor de conceitos que convocavam a “cultura
antropofágica” de Oswald de Andrade.
para entendermos os limites
contemporâneos do pensamento
modernista antropofágico é
que muitos dos seus temas
da antropofagia é estratégica é consumo internacionalizado
— principalmente a vertente
e transcultural (para usarmos o frenético e descartável?
indigenista — perde a força
termo criado pelo crítico cubano A principal lição da ideia
poética e especulativa quando
Fernando Ortiz), seleciona de Antropofagia é justamente
o “selvagem” deixa de ser uma
elementos específicos que, como seu caráter revolucionário —
imagem reinventada pelo filtro
no ritual indígena, produzem isto é, não a busca de raízes
das vanguardas e se torna agente
mais força e valor ao que é feito ou essências nacionais, mas
do próprio pensamento e de suas
aqui. Mas sempre lembrando o ímpeto experimental e
intervenções estéticas. Se o índio
que o consumo do mundo não é construtivo, visando sempre um
de Oswald não era mais o católico
passivo e sim ativo. Devorar para futuro. A Antropofagia pode ser
Peri de José de Alencar, tampouco
transformar. uma marca brasileira porque o
é o intelectual orgânico como
E hoje? Como pensar Brasil segue como um país que
Ailton Krenak ou artistas como
a Antropofagia no contexto precisa lidar com sua situação
Jaider Esbell e Denilson Baniwa.
contemporâneo globalizado periférica em mercados altamente
Esse deslocamento entre ser tema
e conectado em tempo real? tecnológicos. O país consegue
e ser voz, muda completamente
Como entender o que selecionar produzir uma série de produtos
as bases que foram traçadas
e utilizar como marca e diferença e saberes de ponta, competir
sem 1928, sem perder de vista
articulando o particular e o em grandes mercados culturais,
a importância do pensamento
universal, se todo particular se porém ainda parte de um espaço
de ruptura no passado em novo
torna universal imediatamente ainda visto como “precário”.
contexto (Figura 3).
nas redes sociais e vice-versa? A Antropofagia pode ser
Para além da natureza, para
Qual o sentido de ainda falarmos vista, assim, como uma forma
além da beleza tropical, para
de Antropofagia quando tudo de continuarmos sabendo
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uma potência singular, que só


pode surgir aqui. Uma marca
brasileiramente intransferível e,
ao mesmo tempo, universal.

* Frederico Coelho é professor dos


cursos de Literatura e Artes Cênicas
e da Pós-Graduação em Literatura,
Cultura e Contemporaneidade
(PPGLCC) do Departamento de Letras
da PUC-Rio. Atualmente é Diretor do
Museu Universitário Solar Granjean
de Montigny da PUC-Rio. Publicou
(Fonte: “A descida da pajé Jenipapo do reino das medicinas”, de Jaider diversos livros, artigos e obras
Esbell. 2021, Acrílica e posca sobre tela. Reprodução). organizadas. Além disso, trabalhou
como pesquisador e redator (ou
Figura 3. Para além da natureza, da beleza tropical e dos roteirista) para documentários, sítios
estereótipos, o que temos hoje de resultado da antropofagia eletrônicos, editoras e instituições
como perspectiva crítica brasileira no contexto das potências culturais.
mundializadas é justamente a capacidade de resiliência, criação,
adaptação e inovação.

Referências
“Para além da além dos estereótipos e clichês
para turistas no carnaval, o que
natureza, para além temos hoje de resultado da
1. BOPP, R. Vida e morte da
antropofagia. Rio de Janeiro:
da beleza tropical, antropofagia como perspectiva Civilização Brasileira, 1977.
crítica brasileira no contexto 2. CAMPOS, A. C. A expressão
para além dos das potências mundializadas alimentícia é retirada do
estereótipos e clichês é justamente a capacidade de artigo “Revistas Re-Vistas: Os
Antropófagos”, publicada por
resiliência, criação, adaptação e
para turistas no inovação. Devemos ficar atentos
CAMPOS, A. C. Poesia, antipoesia,
antropofagia. São Paulo: Cortez e
carnaval, o que temos aos novos “bárbaros tecnizados” Moraes, 1978, p. 111.
e sua força transgressora
hoje de resultado da apontando tendências,
3. AMARAL, A. Tarsila: sua obra e
seu tempo. São Paulo: Editora 34/
antropofagia como rompendo consensos e fazendo Editora Edusp, 2003, p. 283.
o mundo funcionar no Brasil não 4. ANDRADE, O. A Utopia
perspectiva crítica como importação superficial, Antropofágica. 4ª ed. São Paulo:
brasileira no contexto mas como componente Globo, 2011, p. 21. E aqui fazemos
uma estrutura semelhante ao que
orgânico de uma ideia
das potências contemporânea de novo —
Benedito Nunes usou em seu
ensaio “Antropofagia ao alcance
mundializadas mesmo que o novo esteja na de todos” ao também propor
ancestralidade, no pensamento uma estrutura tripartida definindo
é justamente a indígena, no afrofuturismo, na a antropofagia como “metáfora,
diagnóstico e terapêutica”.
capacidade de biodiversidade amazônica e
5. PINTO, M. C. (org.). Diário
todas as singularidades que só
resiliência, criação, nós podemos fazer. Retirar o
confessional. São
Companhia das Letras, 2022.
Paulo:

adaptação e melhor do mundo em prol de


inovação.”
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6. VENTURA, R. Segundo ele, por polêmicas literárias no Brasil 1870- 9. CAMPOS, A. O balanço da bossa
“obnubilação tropical”, JUNIOR, 1914. São Paulo: Companhia das e outras bossas. 5ª ed. São Paulo:
A. designava “como o processo Letras, 1991, p. 37. Editora Perspectiva, 1993, p. 204.
de diferenciação psicológica e 7. SANTIAGO, S. “O entre-lugar no Em entrevista para Augusto de
literária, determinado pelo impacto discurso latino-americano”. In: Campos concedida em 6 de abril
do meio sobre a mentalidade MORICONI, I (org.). 35 ensaios de 1968, Caetano opina sobre a
europeia. O estilo nacional se de Silviano Santiago. São Paulo: obra de Oswald instigado por uma
origina, assim, de tal incorporação Companhia das Letras, 2019, p. 29. pergunta do poeta, o compositor
de traços particulares, como a declara seu contato com a obra do
tropicalidade e a miscigenação, 8. OITICICA, H. “Esquema geral da Modernista a partir de livros que
aos modelos cosmopolitas de nova objetividade”. In: Aspiro ao o próprio Augusto havia passado
literatura e cultura”. In: VENTURA, grande labirinto. Rio de Janeiro: para ele.
R. Estilo tropical – história cultural e Rocco, 1986, p. 85.

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