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(Des) Caminhos E (Des) Mandos Sob Uma Perspectiva Histórico-Memoralística em Se Eu Fechar Os Olhos Agora
(Des) Caminhos E (Des) Mandos Sob Uma Perspectiva Histórico-Memoralística em Se Eu Fechar Os Olhos Agora
INTRODUÇÃO
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quadro familiar e social ao qual se insere o enredo. A urdidura dessas existências confere
vida à ficção e representa uma sociedade que, aos poucos, é desvelada mostrando sua
face cruel e hipócrita, à semelhança do real.
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narrativa percorre sete dias, do instante em que os dois meninos encontram o corpo, até a
elucidação do assassinato e, a execução de um segundo crime.
Depois de encontrar o corpo, chamar a polícia e serem interrogados eles iniciam
uma investigação solitária. Logo recebem um auxilio precioso, Ubiratan, um senhor que
foge do asilo a noite de forma bastante inusitada, esse novo personagem comunga da
opinião dos meninos em relação ao crime.
Ubiratan é comunista, ex-preso político da ditadura Vargas. Depois de
consolidada a amizade como os dois meninos, ele lhes conta: “- Em 1937 eu fui torturado
pela primeira vez. A polícia de Vargas arrancou todas as minhas unhas. Uma por uma.
No ano em que Aparecida nasceu.” Nesse momento da narrativa, Ubiratan já havia
passado a associar as datas importantes da vida de Anita 1 com os acontecimentos
sóciopolíticos relevantes do Brasil e do mundo. A partir desse encontro entre Ubiratan,
Paulo e Eduardo, as mesmas dúvidas irão unir esses três personagens na árdua tarefa de
seguir as pistas que levam ao desvendamento do crime, pelos caminhos tortuosos de um
Brasil que ainda guarda fortes marcas da herança escravista. Segundo Candido:
Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio
social sobre a obra de arte? Digamos que ela deva ser imediatamente
completada por outra: qual a influência exercida pela obra de arte sobre
o meio? Assim podemos chegar mais perto de uma interpretação
dialética, superando o caráter mecanicista das que geralmente
predominam. (CANDIDO, 1985: 18)
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No decorrer da investigação as personagens descobrem que Anita foi batizada com nome de Aparecida.
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Conto de Edgar Alan Poe, publicado pela primeira vez em 1841.
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sobre a região em que vivem, dizendo que foi uma das maiores compradoras de escravos
no período das grandes fazendas de café.
A irmã Maria Rosa é negra e esse foi um dos motivos que a fez preferir
permanecer na segurança da vida religiosa a arriscar-se, sozinha, num mundo hostil e
preconceituoso. Ela acaba revelando a Ubiratan que a menina que permaneceu no
orfanato é Maria Aparecida dos Santos, registrada como parda, como ela mesma diz, um
eufemismo para mestiça de pele clara. Parda, de olhos verdes e com um irmão chamado
Renato.
A investigação ganha novo fôlego, visitas a casa do prefeito, a busca por
Madalena, mãe de Elza. Conversas com um importante industrial. Idas e vindas, dúvidas
e reviravoltas, que agora, contam com o auxílio discreto e eficiente de uma nova aliada.
A freira do orfanato descobre o disfarce de Ubiratan e o procura no asilo, quando lhe
revela: “- Aparecida foi retirada daqui de dentro ainda criança. Aparecida foi degradada
como... Nem a um animal se faz o que fizeram a ela. Destruíram essa menina. Fizeram
dela uma...” (SILVESTRE. 2010:175). Agora as coisas começam, finalmente, a fazer
sentido. Quais atrocidades teriam sido cometidas contra Aparecida?
Ubiratan, nessas alturas, já deve ter em mãos mais alguma preciosa informação.
Ele a tem: “Conforme a água suja escorria, viu dezenas de pequenas imagens. Era um
contato fotográfico. Mostrava vários momentos de uma jovem mulher loura, rodeada por
alguns homens, tendo a vagina e o ânus penetrados por objetos.” (SILVESTRE, 2010:
184).
Ele também já sabe que o dentista, homossexual reprimido por rígidos preceitos
religiosos, oferecia sua bela esposa para satisfazer os prazeres dos amigos da alta
sociedade, enquanto olhava e fotografava. Anita era apenas uma “peça”, uma propriedade
como outra qualquer. “Por ser mulher, a menina sabe que o mar e os pólos, mil aventuras
e mil alegrias lhe são proibidas: nasceu do lado errado. A grande diferença está em que os
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negros suportam revoltados a sua sorte ao passo que a mulher é convidada à
cumplicidade.” (BEAUVOIR, 1980: 39).
Ubiratan escolheu mal o nome que usou para visitar a freira, teria sido mais
adequado Padre Amaro, que de oprimido por sua madrinha, passa a opressor de Amélia..
“É nas forças repressivas e até em sua própria essência íntima onde se impõe, afinal,
vitorioso o reprimido.” (FREUD, 1978: 31).
O velho senhor faz relações entre as datas importantes na vida de Anita com
acontecimentos marcantes: Branca de Neve e os sete anões, o filme de Walt Disney foi
feito no ano em que Aparecida nasceu. O mesmo ano de Guernica. Ele rememora: em
1937 foi instaurado o Estado Novo. Foi o ano em que Guimarães Rosa escreveu
Sagarama.
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essas vidas cruzam-se para elucidar um crime, na tentativa de recompor um mínimo de
ordem e justiça ao caos costumeiro.
A revelação tão esperada acontece: Anita foi esfaqueada até a morte pelo seu
meio irmão, Renato, enquanto a esposa do prefeito a segurava. Ubiratan decide
interromper o círculo de degradação iniciado com o estupro de Madalena. Nesse
momento, ocorre uma quebra de expectativa. Quando se espera que os culpados sejam
punidos acontece uma inesperada transferência das famílias que investigaram o
assassinato e o desaparecimento de Ubiratan, para a tranquilidade das famílias
investigadas. Exemplo típico do que corre na sociedade sob domínio dos poderosos.
Apesar de abusos, crimes ou desmandos, nada é alterado na velha e intocável “ordem
estabelecida”.
O capítulo treze tem como título um local e data: São Paulo, 28 de fevereiro de
2002. A narrativa desloca-se para esse novo tempo em que Paulo tenta reencontrar seu
velho amigo de infância, buscando por seu nome em uma lista telefônica do hotel onde
está hospedado. Ele consegue falar com os familiares de Eduardo e, comovido, recebe a
notícia de que seu amigo faleceu aos quarenta e sete anos, de enfarte. A família, ao
certificar-se do seu nome completo, conta-lhe que Eduardo deixou-lhe um envelope
pardo, tamanho ofício com páginas datilografadas.
O capítulo quatorze recebe o título de Lausanne, para onde Paulo solicita que
seja enviada a correspondência escrita por seu amigo de infância. O conteúdo desse
envelope consta de uma carta íntima e mais cento e setenta e seis páginas enumeradas qu e
iniciam o relato do que constituirá o fecho da obra. A correspondência enviada por
Eduardo é minuciosamente detalhada. O amigo de infância, em sua carta, lhe conta
passagens de sua vida, comenta sobre seu filho mais velho, ao qual deu o nome de Paulo
Roberto, como forma de homenageá-lo e acrescenta que gostaria que ele o tivesse
batizado. Na voz de amigos, separados pela vida, a memória mais uma vez conduz o
texto em suas páginas finais, possibilitando o encontro com o passado, o (re)encontro,
mesmo que simbólico, entre amigos separados à revelia de sua vontade, estabelecendo a
ponte entre o passado e o presente.
Nas numerosas páginas restantes, Eduardo registra o relato sobre o que os dois
amigos viveram no final da infância em relação ao assassinato de Anita. Eduardo pede ao
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amigo que complete o que ele escreveu com o que lembra sobre o caso. Com esse pedido,
ele espera que a memória do amigo seja capaz de preencher as lacunas da sua,
reconstituindo fielmente aquele acontecimento que precisou ser exorcizado através da
escrita, como catarse. Uma página solta, com uma única frase: “Os mortos não ficam
onde os enterramos (descobrir onde li isso).” (SILVESTRE, 2010: 289).
O capítulo dezesseis, com uma única lauda, encerra o romance no ano de 1961,
em uma descrição de conversas e brincadeiras dos amigos no lugar onde se refugiavam,
antes que o corpo morto e dilacerado de Anita lhes roubasse, para sempre, a inocência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um crime encoberto pelo falso moralismo de uma sociedade que ainda não se
mostra capaz de trilhar caminhos mais éticos, modifica destinos e separa amigos. Agora,
Paulo Roberto, assim como Ubiratan o fez com Anita, busca resgatar esse amigo para
sempre perdido, através da lembrança, do entrelaçamento das datas importantes para
Eduardo, como a data em Paulo lhe escreveu a correspondência que ele lê. Assim ele
situa o amigo no mundo, no seu mundo, como a lhe conferir uma nova existência, em que
ele, de alguma forma, está presente, vivencia, participa e atua.
Em Se eu fechar os olhos agora se percebe um olhar que pretende refletir,
discutir e explorar diferentes aspectos das questões sociais. A obra destaca essa proposta,
Ruffato, na contracapa do livro observa que: “Edney Silvestre autopsia, com fina
sensibilidade de um raro prosador, a essência da nossa sociedade.”
Justificável, portanto, o olhar indagador lançado nesse estudo em relação a esses
aspectos que pontuam a obra em análise. Essas reflexões surgem na tentativa de auxiliar,
ainda que modestamente, na construção de novos paradigmas que irão nortear as
discussões e debates acerca da Literatura Contemporânea produzida no Brasil nos últimos
anos. É com certo alívio que se espera o próximo livro de Edney Silestre, a expectativa
em relação a sua nova obra concede a certeza a de saber que ele não será autor de um
único romance. Talvez, A felicidade é fácil, consolide o escritor nas Letras brasileiras.
REFERÊNCIAS
7
ALVES, Rebeca. A literatura policial na contemporaneidade: uma leitura dos textos de
Rubem Fonseca. Revista de Pós-graduação em Letras UNESP. Jul/dez. 2010, vol.8,
p.275. Disponível em:
<http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/mis/pdf/v8/rebeca.pdf.> Acesso em: 22
de maio de 2011.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FREUD, Sigmund. Ensaios sobre vida sexual e a teoria das neuroses, psicopatia da vida
cotidiana. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Delta, S.A, 1978.
SILVESTRE, Edney. Se eu fechar os olhos agora. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.