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(DES)CAMINHOS E (DES)MANDOS SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-

MEMORALÍSTICA EM SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA

Marcia de Lourdes Friggi (UNICRUZ)

Metade vítimas, metade cúmplices, como todo mundo.


Jean Paul- Sartre.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca discutir aspectos relacionados à obra que marca a


estrea de Edney Silvestre na Literatura, Se eu fechar os olhos agora, sob o prisma da
tradição literária do romance policial. Lançar um olhar indagador sobre o livro que
recebeu o prêmio Jabuti de melhor romance em 2010. Traçar um possível paralelo entre
sua obra e a do escritor Edgar Allan Poe, apontado como precursor desse gênero, bem
como, com a de Rubem Fonseca.
Na busca de alcançar tais objetivos, elenco alguns aspectos de inegável
relevância presentes nessa obra como: as perversões a que se entregam indivíduos
respaldados pelo poder econômico e político; o tratamento conferido às minorias, aos que
permanecem à margem, os negros e mulheres. Finalmente, destaco o papel
desempenhado pela memória, visto que essa se exibe como fio condutor do enredo,
presente tanto nas vozes narrativas, quanto na voz dos personagens, em especial, na de
Ubiratan. Esse idoso foge do asilo em busca de pistas para elucidar o assassinato de uma
jovem, a qual ele necessita inserir no mundo. Ubiratan realiza essa tarefa através do
trabalho da sua própria memória, atraindo inúmeros momentos e organizando-os de
forma a entrelaçar os relatos dessa vida com datas de acontecimentos sócio-políticos e
históricos. (BERGSON, 1999: 73),
Edney em sua trama aproxima-se da narrativa policial contemporânea
desempenhada na obra de Rubem Fonseca, em que seus personagens apresentam-se
também como narradores. Outras semelhanças podem ser observadas, a narrativa
sombria, pontuada pelos elementos da oralidade expondo aspectos da vida pessoal desses
personagens que, por força das circunstâncias tornam-se investigadores particulares e
comuns. Eles, inconformados ao ver as autoridades dar como encerrado o crime, optam
por conduzir as investigações que levam ao desvendamento e a solução do assassinato.
Nesse ínterim, seus próprios dramas pessoais ganham espaço na narrativa, tecendo o

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quadro familiar e social ao qual se insere o enredo. A urdidura dessas existências confere
vida à ficção e representa uma sociedade que, aos poucos, é desvelada mostrando sua
face cruel e hipócrita, à semelhança do real.

SEGUINDO AS PISTAS DO TEXTO: MEMÓRIA, (DES)CAMINHOS E


(DES)MANDOS

Terça-feira, 12 de abril de 1961. No rádio, logo cedo, um locutor anuncia que


um homem tinha ido ao espaço. Iuri Gargárin pisava à lua. Comentando sobre esse novo
acontecimento, dois amigos de doze anos matam aula para se refugiarem em suas
brincadeiras de menino, nas águas mornas de um lago.
Paulo tropeça em algo e cai, é quando descobre o corpo de uma jovem mulher
loura, morta, com os braços e pernas abertos, suja de sangue e lama e com o seio
esquerdo extirpado. Desse momento em diante os questionamentos sobre o assassinato
passarão a habitar o imaginário desses meninos que não aceitam a versão oficial de que a
mulher foi assassinada pelo marido. Muitas são as perguntas, difícil será chegar às
respostas. Eles vasculham na memória ainda confusa em decorrência do choque: como
ela estava mesmo? Seus lábios estavam inchados? Os lábios estavam vermelhos de
sangue ou de batom?
Em Se eu fechar os olhos agora, a narrativa é ambientada nos anos 60 do séc.
XX, em Valença, antiga região de produção de café. O romance oferece todos os
ingredientes de uma boa história policial: um crime, investigação, suspense e enigmas. O
escritor Edgar Allan Poe é apontado como precursor desse gênero que passou por
transformações desde seu surgimento “[...] o autor referido concebe um método para o
desenvolvimento da narrativa policial que o levará àquilo que chamamos de romance de
enigma, cujo ponto fulcral está no desvendamento de um crime.” (ALVES, 2010: 275).
“Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos
meus dedos.” (SILVESTRE, 2010: 7). Esse é o início de uma introdução de pouco mais
de duas páginas, texto em primeira pessoa em que o encontro dos amigos com o cadáver
da mulher assassinada é detalhadamente descrito. O narrador passa para terceira pessoa a
partir da segunda parte ou primeiro capítulo, havendo variações entre primeira e segunda
pessoa no decorrer do texto. Em muitos momentos, a interferência do narrador é mínima,
permitindo que a leitura corra veloz sobre a pista ágil do discurso direto. O tempo da

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narrativa percorre sete dias, do instante em que os dois meninos encontram o corpo, até a
elucidação do assassinato e, a execução de um segundo crime.
Depois de encontrar o corpo, chamar a polícia e serem interrogados eles iniciam
uma investigação solitária. Logo recebem um auxilio precioso, Ubiratan, um senhor que
foge do asilo a noite de forma bastante inusitada, esse novo personagem comunga da
opinião dos meninos em relação ao crime.
Ubiratan é comunista, ex-preso político da ditadura Vargas. Depois de
consolidada a amizade como os dois meninos, ele lhes conta: “- Em 1937 eu fui torturado
pela primeira vez. A polícia de Vargas arrancou todas as minhas unhas. Uma por uma.
No ano em que Aparecida nasceu.” Nesse momento da narrativa, Ubiratan já havia
passado a associar as datas importantes da vida de Anita 1 com os acontecimentos
sóciopolíticos relevantes do Brasil e do mundo. A partir desse encontro entre Ubiratan,
Paulo e Eduardo, as mesmas dúvidas irão unir esses três personagens na árdua tarefa de
seguir as pistas que levam ao desvendamento do crime, pelos caminhos tortuosos de um
Brasil que ainda guarda fortes marcas da herança escravista. Segundo Candido:

Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio
social sobre a obra de arte? Digamos que ela deva ser imediatamente
completada por outra: qual a influência exercida pela obra de arte sobre
o meio? Assim podemos chegar mais perto de uma interpretação
dialética, superando o caráter mecanicista das que geralmente
predominam. (CANDIDO, 1985: 18)

Anita é o nome da mulher assassinada, 24 anos de idade, esposa do dentista Dr.


Andrade, que confessa o crime e é preso. Ubiratan decide investigar os registros de
nascimento que estão guardados no arquivo da prefeitura. Os meninos vão até lá durante
a noite, descobrem que o Dr. Andrade não casou com uma mulher chamada Anita.
Ubiratan com seu senso de observação, seu raciocínio lógico, a exemplo do
personagem de Poe em Os assassinatos da Rua Morgue2·, Monsieur Dupin, direciona a
investigação para o orfanato onde Anita foi criada. Consegue uma batina e apresenta-se
como Padre Basílio a Irmã Maria Rosa. Entre um cálice de licor e outro a irmã,
claramente simpatizante da ala progressista da igreja católica, expões as condições das
crianças que vivem em orfanatos, dizendo que a elas resta a esperança de sair dali pelas
mãos de alguém que as proteja e acolha, ou ficar ali para sempre. Comenta, também,

1
No decorrer da investigação as personagens descobrem que Anita foi batizada com nome de Aparecida.
2
Conto de Edgar Alan Poe, publicado pela primeira vez em 1841.

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sobre a região em que vivem, dizendo que foi uma das maiores compradoras de escravos
no período das grandes fazendas de café.

- Quem compra peças – disse, passando a taça para a mão esquerda -


talvez não se sinta à vontade para conviver com elas. De igual para
igual. Não aqui. Nesta cidade. Creio que estejam desacostumados. Que
não estejam acostumados. Que nunca tenha acontecido. Que ainda não
tenha acontecido de elas... Um bem, uma propriedade não é uma
pessoa. Uma peça não é como uma pessoa. Nunca será vista como tal.
Não lhe parece? (SILVESTRE. 2010:110)

A irmã Maria Rosa é negra e esse foi um dos motivos que a fez preferir
permanecer na segurança da vida religiosa a arriscar-se, sozinha, num mundo hostil e
preconceituoso. Ela acaba revelando a Ubiratan que a menina que permaneceu no
orfanato é Maria Aparecida dos Santos, registrada como parda, como ela mesma diz, um
eufemismo para mestiça de pele clara. Parda, de olhos verdes e com um irmão chamado
Renato.
A investigação ganha novo fôlego, visitas a casa do prefeito, a busca por
Madalena, mãe de Elza. Conversas com um importante industrial. Idas e vindas, dúvidas
e reviravoltas, que agora, contam com o auxílio discreto e eficiente de uma nova aliada.
A freira do orfanato descobre o disfarce de Ubiratan e o procura no asilo, quando lhe
revela: “- Aparecida foi retirada daqui de dentro ainda criança. Aparecida foi degradada
como... Nem a um animal se faz o que fizeram a ela. Destruíram essa menina. Fizeram
dela uma...” (SILVESTRE. 2010:175). Agora as coisas começam, finalmente, a fazer
sentido. Quais atrocidades teriam sido cometidas contra Aparecida?
Ubiratan, nessas alturas, já deve ter em mãos mais alguma preciosa informação.
Ele a tem: “Conforme a água suja escorria, viu dezenas de pequenas imagens. Era um
contato fotográfico. Mostrava vários momentos de uma jovem mulher loura, rodeada por
alguns homens, tendo a vagina e o ânus penetrados por objetos.” (SILVESTRE, 2010:
184).
Ele também já sabe que o dentista, homossexual reprimido por rígidos preceitos
religiosos, oferecia sua bela esposa para satisfazer os prazeres dos amigos da alta
sociedade, enquanto olhava e fotografava. Anita era apenas uma “peça”, uma propriedade
como outra qualquer. “Por ser mulher, a menina sabe que o mar e os pólos, mil aventuras
e mil alegrias lhe são proibidas: nasceu do lado errado. A grande diferença está em que os

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negros suportam revoltados a sua sorte ao passo que a mulher é convidada à
cumplicidade.” (BEAUVOIR, 1980: 39).
Ubiratan escolheu mal o nome que usou para visitar a freira, teria sido mais
adequado Padre Amaro, que de oprimido por sua madrinha, passa a opressor de Amélia..
“É nas forças repressivas e até em sua própria essência íntima onde se impõe, afinal,
vitorioso o reprimido.” (FREUD, 1978: 31).
O velho senhor faz relações entre as datas importantes na vida de Anita com
acontecimentos marcantes: Branca de Neve e os sete anões, o filme de Walt Disney foi
feito no ano em que Aparecida nasceu. O mesmo ano de Guernica. Ele rememora: em
1937 foi instaurado o Estado Novo. Foi o ano em que Guimarães Rosa escreveu
Sagarama.

OS NÚCLEOS FAMILIARES E O ESCLARECIMENTO DO CRIME

A constituição familiar dos personagens reflete essa sociedade. Percebe-se que


seus laços são frágeis, embasados em falsos valores. Paulo é órfão de mãe, vive em
companhia de um pai violento que tem clara preferência por seu filho mais velho, rapaz
que faz questão de exaltar sua sexualidade e demonstra, sem preocupação, seu desprezo
conferido às mulheres. Ele as utiliza apenas como objeto a satisfazer seus instintos.
Quanto a Anita, não se pode considerar que ela possui uma família. Ela tem uma mãe,
que de tão oprimida pela sua condição é destituída do seu direito sagrado, o de proteger
seus filhos. A segunda tentativa de constituição familiar vem a ser trágica para Anita, ao
invés de encontrar segurança, proteção, afeto e respeito, será exposta a toda sorte de
violências, tanto físicas, quanto psicológicas.
A família do prefeito agrega-se, não pelo afeto mútuo, mas pela necessidade
social da manutenção das aparências, assim como a família de seus antepassados, em que
a maior herança é a transmissão de valores que legitimam comportamentos desprovidos
de ética, dignidade e compaixão.
A irmã Maria Rosa é órfã, opta por permanecer no orfanato a arriscar-se em
uma sociedade preconceituosa na tentativa de construir uma vida e constituir família.
Ubiratan viveu uma existência solitária, não comenta sobre laços familiares, ao relatar
sobre sua vida demonstra ter construído ao longo dela, um único laço de afeto, com a
namorada que não chegou a ser sua esposa. Nesses (des)caminhos familiares e afetivos,

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essas vidas cruzam-se para elucidar um crime, na tentativa de recompor um mínimo de
ordem e justiça ao caos costumeiro.
A revelação tão esperada acontece: Anita foi esfaqueada até a morte pelo seu
meio irmão, Renato, enquanto a esposa do prefeito a segurava. Ubiratan decide
interromper o círculo de degradação iniciado com o estupro de Madalena. Nesse
momento, ocorre uma quebra de expectativa. Quando se espera que os culpados sejam
punidos acontece uma inesperada transferência das famílias que investigaram o
assassinato e o desaparecimento de Ubiratan, para a tranquilidade das famílias
investigadas. Exemplo típico do que corre na sociedade sob domínio dos poderosos.
Apesar de abusos, crimes ou desmandos, nada é alterado na velha e intocável “ordem
estabelecida”.

DESLOCAMENTOS: TEMPO E ESPAÇO

O capítulo treze tem como título um local e data: São Paulo, 28 de fevereiro de
2002. A narrativa desloca-se para esse novo tempo em que Paulo tenta reencontrar seu
velho amigo de infância, buscando por seu nome em uma lista telefônica do hotel onde
está hospedado. Ele consegue falar com os familiares de Eduardo e, comovido, recebe a
notícia de que seu amigo faleceu aos quarenta e sete anos, de enfarte. A família, ao
certificar-se do seu nome completo, conta-lhe que Eduardo deixou-lhe um envelope
pardo, tamanho ofício com páginas datilografadas.
O capítulo quatorze recebe o título de Lausanne, para onde Paulo solicita que
seja enviada a correspondência escrita por seu amigo de infância. O conteúdo desse
envelope consta de uma carta íntima e mais cento e setenta e seis páginas enumeradas qu e
iniciam o relato do que constituirá o fecho da obra. A correspondência enviada por
Eduardo é minuciosamente detalhada. O amigo de infância, em sua carta, lhe conta
passagens de sua vida, comenta sobre seu filho mais velho, ao qual deu o nome de Paulo
Roberto, como forma de homenageá-lo e acrescenta que gostaria que ele o tivesse
batizado. Na voz de amigos, separados pela vida, a memória mais uma vez conduz o
texto em suas páginas finais, possibilitando o encontro com o passado, o (re)encontro,
mesmo que simbólico, entre amigos separados à revelia de sua vontade, estabelecendo a
ponte entre o passado e o presente.
Nas numerosas páginas restantes, Eduardo registra o relato sobre o que os dois
amigos viveram no final da infância em relação ao assassinato de Anita. Eduardo pede ao

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amigo que complete o que ele escreveu com o que lembra sobre o caso. Com esse pedido,
ele espera que a memória do amigo seja capaz de preencher as lacunas da sua,
reconstituindo fielmente aquele acontecimento que precisou ser exorcizado através da
escrita, como catarse. Uma página solta, com uma única frase: “Os mortos não ficam
onde os enterramos (descobrir onde li isso).” (SILVESTRE, 2010: 289).
O capítulo dezesseis, com uma única lauda, encerra o romance no ano de 1961,
em uma descrição de conversas e brincadeiras dos amigos no lugar onde se refugiavam,
antes que o corpo morto e dilacerado de Anita lhes roubasse, para sempre, a inocência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um crime encoberto pelo falso moralismo de uma sociedade que ainda não se
mostra capaz de trilhar caminhos mais éticos, modifica destinos e separa amigos. Agora,
Paulo Roberto, assim como Ubiratan o fez com Anita, busca resgatar esse amigo para
sempre perdido, através da lembrança, do entrelaçamento das datas importantes para
Eduardo, como a data em Paulo lhe escreveu a correspondência que ele lê. Assim ele
situa o amigo no mundo, no seu mundo, como a lhe conferir uma nova existência, em que
ele, de alguma forma, está presente, vivencia, participa e atua.
Em Se eu fechar os olhos agora se percebe um olhar que pretende refletir,
discutir e explorar diferentes aspectos das questões sociais. A obra destaca essa proposta,
Ruffato, na contracapa do livro observa que: “Edney Silvestre autopsia, com fina
sensibilidade de um raro prosador, a essência da nossa sociedade.”
Justificável, portanto, o olhar indagador lançado nesse estudo em relação a esses
aspectos que pontuam a obra em análise. Essas reflexões surgem na tentativa de auxiliar,
ainda que modestamente, na construção de novos paradigmas que irão nortear as
discussões e debates acerca da Literatura Contemporânea produzida no Brasil nos últimos
anos. É com certo alívio que se espera o próximo livro de Edney Silestre, a expectativa
em relação a sua nova obra concede a certeza a de saber que ele não será autor de um
único romance. Talvez, A felicidade é fácil, consolide o escritor nas Letras brasileiras.

REFERÊNCIAS

7
ALVES, Rebeca. A literatura policial na contemporaneidade: uma leitura dos textos de
Rubem Fonseca. Revista de Pós-graduação em Letras UNESP. Jul/dez. 2010, vol.8,
p.275. Disponível em:
<http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/mis/pdf/v8/rebeca.pdf.> Acesso em: 22
de maio de 2011.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. A experiência vivida. 2ª ed. Rio de Janeiro:


Editora Nova Fronteira, 1980.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 7ª Ed. São Paulo: Companhia Editorial


Nacional, 1985.

FREUD, Sigmund. Ensaios sobre vida sexual e a teoria das neuroses, psicopatia da vida
cotidiana. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Delta, S.A, 1978.

SILVESTRE, Edney. Se eu fechar os olhos agora. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

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