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Entre o Sentimento de Culpa e A Depressão - Uma Nova Tradução Clinica - Muribeca
Entre o Sentimento de Culpa e A Depressão - Uma Nova Tradução Clinica - Muribeca
Entre o Sentimento de Culpa e A Depressão - Uma Nova Tradução Clinica - Muribeca
Resumo
É cada vez mais frequente receber no consultório pessoas afligidas por um estado de ânimo
depressivo, imersas num torpor de angústia e dor por vezes inenarrável. Envoltas num humor
apático tecido pelos visíveis fios de sua anedonia, são cada vez mais submergidas num manto
de vazio e desesperança atordoantes. Chegam cansadas, com um olhar suplicante e uma fala
comprometida entre o sentimento de culpa que assola seus pensamentos e a tristeza que in-
vade seus anseios. No entanto, ao vir à análise buscam se agarrar à última linha do seu desejo,
no intuito de ressignificar suas perdas para lograr sair da analgesia de suas emoções. Nesse
sentido, entra em cena a análise, faz-se presente o desejo, desenha-se o inconsciente sequioso
de alumbrar-se. Portanto, é nesse cenário que enveredamos pelos fragmentos clínicos da his-
tória de uma mulher imersa num profundo sentimento de culpa e depressão, filha de uma mãe
esquizofrênica e um pai ausente, mas que, ao mergulhar em sua análise, cria um novo espaço
para viver e crescer.
o analista vai confeccionando, junto ao ana- Foi buscando um pouco de sentido que
lisando, uma colmeia de anéis que se entrela- Ana1 chegou ao consultório, numa espécie
çam uns nos outros e que passa a sustentar a de analgesia emocional, perdida em suas
história de vida do analisando. memórias, prisioneira em suas dores e imer-
Nesse sentido, a ferramenta de trabalho sa numa desorganização afetiva profunda.
do analista é a arte da escuta e a sapiência Vivendo numa espécie de caleidoscópio sem
da fala, no intuito de traduzir as mensagens fim, anuncia seu casamento com o sentimen-
enigmáticas incrustadas na alma, retradu- to de culpa e apresenta a depressão como seu
zindo a sintomatologia abraçada há anos, padrinho.
ressignificando lembranças de imagens
congeladas provenientes de emoções para- Fragmentos de um caso clínico
lisantes. Eis algumas das incumbências do Nesse sentido, o caso que estamos percor-
analista. rendo transita pela temática da angústia, do
Em análise, portanto, solicitamos ao pa- sentimento de culpa e da depressão. Ora, sa-
ciente que diga tudo o que vier a sua mente, bemos que um dos destinos da angústia é a
sem frear nenhum conteúdo, mesmo aqueles face da depressão e que o mal-estar psíquico
teores que pareçam carentes de importân- pode se revelar tranquilamente através dessas
cia e sentido. Um ponto fundamental a ser modalidades, as quais podem se desenhar de
observado na análise consiste em superar as maneira isolada ou em conjunto. É cada vez
resistências do paciente, que se manifestam, mais frequente receber no consultório pes-
por exemplo, através do ganho secundário soas atormentadas por um estado de ânimo
extraído de sua enfermidade. depressivo, envoltas num humor apático te-
Aqui ou alhures, o certo é que todos os cido pelos visíveis fios de sua anedonia.
dias nós fiamos e tecemos desejos, planeja- Ana chega cansada, com um olhar supli-
mos, criamos maquetes e nos alimentamos cante e uma fala comprometida entre o sen-
de nossas ilusões. Sem embargo, a vida tam- timento de culpa que assola seus pensamen-
bém tece e fia as suas intempéries em nós, tos e a tristeza que invade seus anseios. No
inexoravelmente, ela se desenha por si só e, entanto, ao vir à análise busca se agarrar à
por vezes, faz um corte avassalador em nos- última linha do seu desejo. Aos poucos, de
sos sonhos. Portanto, faz-se mister, que no ombros visivelmente arqueados e voz quase
percurso do tratamento o analisando apren- inaudível, vai narrando seus problemas com
da a lidar com suas frustrações, suas decep- a mãe desde a infância. Filha de uma mãe
ções e suas feridas narcísicas. diagnosticada com esquizofrenia e portado-
Clarice Lispector (1964, p. 4) em seu livro ra de uma depressão crônica, Ana sofria com
A paixão segundo GH narra com maestria, a a ausência materna devido às constantes in-
busca diuturna que o ser humano empreen- ternações.
de em prol de explicações para o transbor- Com muito pesar, conta que não demo-
damento de suas angústias. Um trecho que rou muito para seus pais se separarem. Seu
exemplifica a procura de um sentido existen- pai havia encontrado outra mulher, e, devido
cial é quando ela diz: ao estado de saúde da mãe, ela e seus irmãos
foram obrigados a acompanhá-lo. Não de-
[...] estou procurando, estou procurando. morou muito para Ana se aperceber sozinha,
Estou tentando entender. Tentando dar a al- carente de atenção e cuidados.
guém o que vivi e não sei a quem, mas não
quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer
do que vivi, tenho medo dessa desorganiza- 1. Nome fictício. Os fragmentos aqui narrados somam apro-
ção profunda. ximadamente treze anos de análise.
Aos oito anos de idade já estava morando Por outro aspecto, existem acontecimen-
com seu pai e não tinha mais contato com tos em que as manifestações provenientes
sua mãe. À noite, em seus pesadelos, desper- desse sentimento se tornam patológicas, ou
tava assustada sem saber qual seria seu desti- seja, há casos em que o excesso de culpa ter-
no, temia pelo seu futuro. Infelizmente, seus mina por se transformar em algo paralisante
temores só pioraram, pois seus irmãos, não e autodestrutivo. Casos em que o sentimento
suportando mais o convívio com a madrasta, inconsciente de culpa induz o sujeito a ati-
decidiram ir embora. Seu pai, uma espécie tudes extremas. E por fim, também existem
de caixeiro viajante, mal vinha em casa. Suas casos em que os sujeitos são totalmente des-
ausências agravaram ainda mais a solidão de tituídos de culpa, possuindo um comporta-
Ana. mento maléfico e heterodestrutivo.
Em suas associações ela acredita que foi No caso de Ana, o sentimento de culpa a
por essa ocasião que começou a se sentir induziu a pensar que ela não era merecedo-
culpada pela infelicidade dos pais e pela des- ra de ser feliz. Ela explica que seus esforços
truição da família, mesmo não encontrando para não sucumbir aos encantos malignos da
lógica para isso. Com o passar do tempo, não depressão foram extenuantes, mas, ao final,
suportando mais vê-la tão fragilizada, sua tia a depressão não mais pediu licença e se ins-
decide buscá-la para morar com ela noutra taurou em sua vida. Nos primórdios da aná-
cidade. lise Ana apresentava fortes dores de cabeça,
É certo que o sentimento de culpa exis- pessimismo, dificuldade de tomar decisões,
te desde os primórdios da humanidade. As pena de si mesma e seu eterno algoz: a autoa-
pertinências desse sentimento são extrema- cusação e a culpa.
mente complexas, pois abarcam diversas sea- Ora, somos cônscios de que a depressão
ras do saber religioso, filosófico, psicológico é um distúrbio da emoção que afeta o corpo,
e jurídico, entre outros. A palavra “culpa”, o humor e o pensamento. Modifica o apeti-
significa “aquilo que carece”; “que falta”; uma te e o sono, assim como influencia na forma
“necessidade perpétua na vida do ser huma- como a pessoa se percebe. Em outras pala-
no”. Laplanche e Pontalis (2000, p. 472) afir- vras, seus sintomas costumam afetar as cinco
mam que: áreas de funcionamento: emocional, motiva-
cional, comportamental, cognitiva e física.
[...] o sentimento de culpa pode designar um A maioria das pessoas com depressão
estado afetivo consecutivo a um ato que o su- possui acentuada redução da capacidade de
jeito considera repreensível, e a razão invoca- sentir prazer (anedonia) e padrões negativos
da pode, aliás, ser mais ou menos apropriada, de pensamento. É, pois, um estado de abati-
ou ainda um sentimento difuso de indignida- mento e tristeza em que a vida parece nebu-
de pessoal sem relação com um ato determi- losa, e seus desafios, potencialmente aterra-
nado do que o sujeito se acuse. dores (Barlow; Durand, 2008).
Por essa época, Ana consultou um psi-
Nessa acepção, podemos pensar que o quiatra que lhe prescreveu Escitalopram
sentimento de culpa está diretamente ligado 10 mg diárias. No mais recente Manual
ao desenvolvimento emocional-afetivo, mes- Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
mo não sendo exclusivo de nenhuma fase do Mentais - DSM-V (APA-2013) a depres-
desenvolvimento da personalidade. Desde são está situada na Seção II, que trata dos
tenra idade o ser humano está sujeito a se Critérios Diagnósticos e Códigos. Saiu do
sentir culpado por algo, mesmo que não seja anterior capítulo dos “transtornos do hu-
o responsável pela situação que promoveu a mor” e passou a se chamar: “transtornos de-
instauração da culpa. pressivos”, distinguindo-se, doravante, dos
colia é o próprio ego que se esvazia. Seu Eu Com o passar do tempo, Ana decide per-
se identifica com o objeto perdido a ponto doar o pai e convida-o a conversar. Eles se
de se perder no desespero infinito de um reconciliam, e depois dessa reconciliação ela
nada irremediável. também convence seus irmãos a ir se aproxi-
Desse modo, uma das finalidades da aná- mando dele. A depressão se dissipa, e o sen-
lise consiste em restaurar o Eu do paciente timento de culpa dá lugar à construção de
tentando reviver situações de conflitos em uma nova tradução de sua história, deixando
suas memórias, as quais são evidenciadas uma nova interpretação das emoções e das
através dos sintomas, das demonstrações de escolhas a serem desenhadas.
resistências, das transferências, dos sonhos e Ana foi reinventando sua história, crian-
das associações livres. do novas possibilidades de acreditar em seu
Ana fez de sua análise um grande traba- potencial. Começou a ascender em sua car-
lho de luto. E após alguns avanços, decidiu reira, esculpindo seu lado profissional para
em conjunto com sua tia convidar a mãe ser seu sustentáculo emocional. Seu namoro
para morar com elas. Está fascinada com a havia terminado, sua relação com a mãe me-
experiência de tê-la sob sua tutela. Com sua lhorava a cada dia. Ciente de que ninguém
autoestima mais elevada, conhece um rapaz constrói sua história sem cometer erros, sem
de seu entorno e começa a namorá-lo. se decepcionar, passar por dificuldades, su-
cumbir à dor de suas desditas humanas. Mas
O começo de uma nova trajetória também sabedora de que vida é a escrita da
André Green (1988, p. 149) nos diz com toda superação de suas mazelas, é erguer-se, acre-
propriedade que “[...] a passagem do silên- ditar, nutrir esperança na caminhada de que
cio ao discurso nunca se dá sem riscos”. Ana novos traços serão delineados.
enfrentou o risco de entrar em contato com Johann W. V. Goethe (1749-1832) nos dis-
sua própria enfermidade, com sua essência. se em seus escritos que, quando uma criatu-
Sabe que algo lhe falta, que talvez seja pre- ra humana desperta para um grande sonho
cisamente essa ausência de algo inominável e sobre ele lança toda a força de sua alma, o
que a situa em seus medos. Medo do que ela universo conspira a seu favor.
vê quando se olha no espelho e só encontra
a imagem do vazio, eco da desorganização Considerações finais:
caótica que circula em sua mente, a mais uma nova tradução clínica
nítida composição descomposta de seu ser. De alguma maneira a depressão fez de Ana
É assim que Ana fala de seus fantasmas, de uma pessoa mais forte, fazendo-a chegar ao
seus desejos, de algo que necessita incorpo- fim de suas construções em análise cônscia
rar para poder compreender. de que sua história é composta de verdades
Isso nos remete a outra colocação de e mentiras, mas acima de tudo de palavras, e
Clarice Lispector (1964, p. 5) quando tão ela aprendeu a utilizá-las para expressar tudo
bem expressa: o que nela há.
Bem diferente daquela mulher frágil e de-
Perdi alguma coisa que me era essencial, e primida de outrora, comunica que seu pai
que já não me é mais. Não me é necessária, está gravemente enfermo e decide acompa-
assim como se eu tivesse perdido uma tercei- nhá-lo em sua internação hospitalar. Alguns
ra perna que até então me impossibilitava de dias depois relata o falecimento dele e vive
andar mas que fazia de mim um tripé está- o luto dessa perda sem se desfragmentar. A
vel. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser morte de seu pai não a desintegra: ela já o
uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que havia perdoado, já não tinha motivos para se
nunca tive: apenas as duas pernas. sentir culpada.
Sobre a autora
Psicóloga Clínica.
Psicanalista.
Doutora em Fundamentos y Desarrollos
Psicoanalíticos - Universidad Autónoma
de Madrid-España, título
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Professora Titular de Psicologia do Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
Coordenadora do Curso de Especialização
em Criminologia
e Psicologia Investigativa Criminal (UNIPÊ).
Coordenadora da Pós-Graduação em Psicanálise
pelo Centro Universitário
de João Pessoa/PB (UNIPÊ).
E-mail: <m.muribeca@gmail.com>