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Diretora editorial Flávia Alves Bravin


Gerente editorial Rogério Eduardo Alves
Planejamento editorial Rita de Cássia S. Puoço
Débora Guterman
Luiza Del Monaco
Editoras
Paula Carvalho
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Assistente editorial Lara Moreira Félix
Alline Garcia Bullara
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Produtores editoriais
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William Rezende Paiva
Mauricio Scervianinas de França
Comunicação e produção digital
Nathalia Setrini Luiz
Suporte editorial Juliana Bojczuk
Produção gráfica Liliane Cristina Gomes

Preparação Flavia Lago


Laila Guilherme
Revisão
Augusto Iriarte
Revisão técnica Luis S. Krausz

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Diagramação SGuerra Design
Capa Guilherme P. Pinto
Adaptação para eBook Hondana

ISBN 978-85-8240-224-5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Sand, Shlomo
Como deixei de ser judeu / Shlomo Sand; tradução de Eveline Bouteiller. – São
Paulo : Benvirá, 2015. 136p.

ISBN 978-85-8240-224-5
Título original: Comment j’ai cesse d’etre juif

1. Judaísmo 2. Judeus – identidade social 3. Judeus – História 4. Israel I. Como


deixei de ser judeus II. Bouteiller, Eveline.

CDD-305.8924
CDU-304.2 (=411.16)

Índices para catálogo sistemático:


1. Judeus – Questões sociais e culturais

Copyright © Flammarion, Paris, 2013.


Traduzido do original: Comment j’ai cesse d’etre juif

Todos os direitos reservados à Benvirá,


um selo da Editora Saraiva.
www.benvira.com.br

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1a edição, 2015

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem
a prévia autorização da Editora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei no 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

547.656.001.001

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Em memória de Vladimir Herzog
Tel Aviv, 2015

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Considero que as situações extremas do
homem não são mais situações judaicas
em termos de sofrimento.

ROMAIN GARY
O judaísmo não é uma questão de sangue, 1970

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Sumário

I. Direto ao assunto
Um judeu não poderia renunciar à sua essência
Uma configuração etnocrática
Pressão determinista, cega e ilusória

II. A identidade não é um chapéu


Da identidade
Identidades religiosas e identidades nacionais
A nação e a história

III. Uma cultura judaica laica?


Uma questão incômoda
De Marx a Serge Gainsbourg: uma cultura comum?
Um presente sufocado pelas tradições

IV. Dor e longo tempo


O relato dos olhos
Uma visita à história antiga
Judeus, cristãos e muçulmanos
Raízes históricas da judeofobia na Europa

V. Imigração e judeofobia
A figura de Bernard Lazare
Os judeus da Europa Central no final do século XIX

VI. De um oriental a outro


O iídiche e o hebraico
Uma língua morta e uma língua fabricada
“O judeu marroquino teve muito do árabe marroquino”

VII. Carroça vazia e carroça cheia


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Diálogo de surdos
A carroça sionista
O aparelho educativo e o aparelho militar
Uma cultura, uma pátria

VIII. Lembrar-se de todas as vítimas


Nós, judeus da Polônia
Vítimas exclusivas
Evolução da memória

IX. Descansar depois de ter matado um turco


As perguntas de uma criança
Da superioridade moral judaica
“Aquele que salva uma vida…”
Vocação universal?

X. Quem é judeu em Israel?


Não ser árabe…
As leis religiosas e as leis cívicas
Estado judeu, Estado comunitário
O espírito das leis

XI. Quem é judeu na “diáspora”?


Um quadrado não pode se tornar redondo
Os judeus laicos no mundo

XII. Sair do clube exclusivo


Demissão
Utopia?
Não renunciar

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I
Direto ao assunto

Um judeu não poderia renunciar à sua essência

A problemática principal desenvolvida neste ensaio não deixará de


parecer ilegítima e até revoltante para mais de um leitor. Ela será
prontamente recusada por um número de laicos determinados a ser
reconhecidos como judeus. Para outros, eu serei apenas um traidor
infame, corroído pelo próprio ódio. Judeófobos radicais já
qualificaram como impossível — senão absurdo — tal questão,
considerando que um judeu sempre pertencerá a uma raça diferente.
Esses dois grupos afirmarão que um judeu é um judeu e que não
existe meio para subtrair a origem de sua identidade. A judeidade é
percebida nesses dois casos como uma essência imutável e monolítica
que não poderia ser modificada.
Neste início de século XXI, na leitura de jornais, revistas ou livros,
penso que não seria exagerado afirmar que os judeus são, muitas
vezes, apresentados como portadores de traços de caráter ou de
células cerebrais particulares e hereditárias que os distinguiriam de
todos os outros humanos, assim como os africanos se diferenciam dos
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europeus por sua cor de pele. Da mesma forma que é impossível para
um africano se livrar de sua pele, um judeu não poderia renunciar à
sua essência.
Quando recenseia seus habitantes, o Estado do qual sou cidadão
define minha nacionalidade como “judeu” e se autodesigna como
Estado do “povo judeu”. Dito de outra forma, seus fundadores e
legisladores consideraram o Estado como propriedade coletiva dos
“judeus do mundo” — sejam ou não crentes —, e não como expressão
orgânica da soberania democrática do corpo de cidadãos que ali
residem.
O Estado de Israel me vê como judeu não porque me expressasse
em uma língua judaica, cantarolasse refrãos judeus, me alimentasse
de comida judaica ou fizesse qualquer atividade judaica. Sou visto
desse modo porque esse Estado, depois de ter investigado minhas
origens, decidiu que nasci de mãe judia. Ela própria judia porque
minha avó também o era graças à (ou por causa de…) minha bisavó,
e assim por diante, remontando a linha das gerações desde o início
dos tempos.
Se o acaso tivesse feito que apenas meu pai fosse considerado
judeu e que, aos olhos da lei israelense, minha mãe fosse uma “não
judia”, eu teria sido registrado com a nacionalidade austríaca. Nesse
caso, o fato de eu falar, jurar, ensinar ou escrever em hebraico, tanto
quanto o fato de ter estudado durante toda a minha juventude em
escolas israelenses, não teria sido de nenhuma ajuda para que
conquistasse a nacionalidade israelense. Em toda a minha vida eu
teria sido considerado cidadão legal da Áustria.

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Felizmente, ou infelizmente, segundo o olhar dirigido a essa
questão, minha mãe foi identificada como judia ao chegar em Israel
no final de 1948, e a menção “judeu” foi inscrita em minha cédula de
identidade. E mais: segundo as leis de Israel, assim como segundo a
lei judaica (Halachá), eu não posso deixar de ser judeu; isso não é de
meu livre-arbítrio. Minha nacionalidade poderia ser apagada dos
registros do Estado judeu apenas em caso extremo e
excepcionalmente se eu me convertesse a outra religião.
O problema é que eu não creio em um ser supremo. Com exceção
de uma breve crise mística aos doze anos, sempre acreditei que o
homem criou Deus, e não o inverso; e essa invenção sempre me
pareceu uma das mais problemáticas, das mais fascinantes e mais
mortais da sociedade humana. Consequentemente, eu me encontro
com pés e mãos atados, preso na armadilha de minha louca
identidade: não penso em me converter ao cristianismo; não pela
crueldade da Inquisição e das Cruzadas sangrentas, mas tão
simplesmente porque não acredito em Jesus Cristo, filho de Deus.
Também não penso em me converter ao islã, e não por causa da
charia tradicional, que permite ao homem — se ele estimar necessário
— desposar quatro mulheres, enquanto isso não é permitido à
mulher; mas por uma razão mais prosaica: não acredito que Maomé
seja um profeta. Não serei também adepto do hinduísmo, pois
reprovo qualquer tradição que sacralize as castas, mesmo que de
maneira indireta e atenuada. Sou até incapaz de me tornar budista,
sentindo-me na impossibilidade de transcender a morte ou de
acreditar na reencarnação das almas.

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Sou laico e ateu, uma vez que meu cérebro limitado tem
dificuldade de apreender o infinito do universo diante dos pequenos e
terríveis limites da vida que ali se desenvolve. Os princípios — ou até
mesmo as crenças — que guiam meus pensamentos foram sempre
antropocêntricos; dito de outra forma, o centro do universo é movido
e ocupado por humanos, e não por algum poder superior apto a
dirigi-los. As grandes religiões, mesmo as mais caridosas e as menos
fanáticas, são teocêntricas: elas colocam a vontade e os projetos de
Deus acima da vontade dos homens, das suas necessidades, das suas
aspirações, dos seus sonhos e das suas fragilidades.

Uma configuração etnocrática


A história moderna está cheia de bizarrices e de ironia. O emergente
nacionalismo etnorreligioso do século XIX impunha que Heinrich
Heine[1] se convertesse ao cristianismo para poder ser reconhecido
como alemão; o nacionalismo polonês nos anos 1930 se recusava a
ver meu pai como polonês enquanto ele não se tornasse católico; da
mesma forma, os sionistas do século XXI, em Israel e no exterior,
rejeitam totalmente o princípio de uma nacionalidade israelense civil
para admitir apenas uma nacionalidade judaica — embora essa
nacionalidade judaica só possa ser adquirida por uma via única, quase
inacessível, de um ato religioso: toda pessoa desejosa de ter Israel
como seu Estado nacional deve nascer de mãe judia ou então
satisfazer a um longo e exaustivo percurso da conversão ao judaísmo
conforme as regras da lei judaica, mesmo que essa pessoa seja

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resolutamente ateia.
No Estado de Israel, toda forma de definição de identidade é
profundamente enganadora, impregnada de má-fé e de arrogância. No
momento em que escrevo estas poucas linhas, trabalhadores
imigrados, em pleno desespero, pais e mães de filhos nascidos em
Israel, que se dirigiram ao grande rabinato para poderem ser
convertidos ao judaísmo, veem seu pedido rejeitado com a seguinte
explicação: “Queriam se integrar à ‘ação judaica’ para evitar a volta
ao inferno do qual haviam fugido, e não para compartilhar de uma
crença divina que reconhecia os judeus como um ‘povo eleito’!”.
Na universidade, dou aulas para estudantes de origem palestina:
eles se expressam em um hebraico límpido, e se supõe, segundo a lei,
que sejam considerados israelenses de fato, embora os registros do
Ministério do Interior os identifiquem definitivamente como árabes.
Essa marca de identidade não provém de uma escolha voluntária; ela
lhes é imposta, e lhes é impossível mudá-la. Imagina-se que
indignação aconteceria na França, nos Estados Unidos, na Itália, na
Alemanha ou em outras democracias liberais se as autoridades
impusessem àqueles que se identificam como judeus de fazer constar
essa definição no documento de identidade, ou ainda de fazer menção
dessa identidade no recenseamento oficial da população.
Depois do judeocídio da Segunda Guerra Mundial, a aprovação da
ONU e a recomendação para que fossem criados, em 1947, um
“Estado judeu” e um “Estado árabe” vizinho — que nunca nasceu de
fato — fazem surgir, no início do século XXI, um anacronismo
problemático e perigoso. Vinte e cinco por cento dos cidadãos

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israelenses — dos quais 20% têm origem árabe — não são definidos
como judeus segundo a lei. Sendo assim, a denominação “judeu”
contraria a definição de “israelense”, excluindo explicitamente os não
judeus do corpo cívico de um Estado cuja razão da existência deveria
ser justamente a de acolher essas pessoas. Essa configuração não é
apenas antidemocrática, mas coloca também em perigo a própria
existência de Israel.

Pressão determinista, cega e ilusória


A política identitária antirrepublicana do Estado de Israel não é,
todavia, o único motivo que me forçou a redigir este breve ensaio. Ela
certamente ocupa um lugar central e pesou na argumentação rude à
qual recorri às vezes, mas outros fatores também influenciaram na
elaboração do conteúdo e dos objetivos deste texto. Quis colocar aqui
um grande ponto de interrogação nas ideias estabelecidas e nas
crenças profundamente enraizadas a priori — não apenas no espaço
público israelense, mas também nas redes de comunicação mundial.
Sinto, há muito tempo, um mal-estar diante dos modos de definição
da judeidade que se instalaram no coração da cultura ocidental
durante a metade do século XX e no início do século XXI. Cada vez
mais, tenho a impressão de que, sob certos aspectos, Hitler saiu
vencedor da Segunda Guerra Mundial. Com certeza ele foi derrotado
militar e politicamente, mas, em alguns anos, sua ideologia perversa
se infiltrou e voltou à superfície até emitir, nos dias de hoje, ecos
fortes, impactantes e ameaçadores.

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Não nos enganemos! Não somos mais ameaçados pela judeofobia
que culminou no genocídio. O ódio mórbido contra os judeus e seus
descendentes laicos não recairá sobre uma segunda juventude na
cultura ocidental. Na verdade, o antissemitismo político público
recuou significativamente no mundo democrático liberal.[2] Apesar
dos gritos ameaçadores do Estado de Israel e de seus defensores
sionistas da “diáspora”, que afirmam que o ódio aos judeus — ao qual
eles assimilam toda a crítica à política israelense — infla a cada
instante, convém, a esta altura, salientar um fato que condicionou
amplamente e inspirou a redação deste ensaio.
Hoje, nenhum político pode expressar publicamente opiniões
antijudaicas, salvo talvez em alguns lugares da Europa Central ou da
nova esfera islâmico-nacionalista. Nenhum órgão de imprensa séria
destilará suas baboseiras antissemitas, nenhuma editora respeitável
publicará um escritor, por mais brilhante que seja, que faça apologia
ao ódio contra os judeus. Nenhuma estação de rádio ou rede de
televisão, pública ou privada, deixará um comentarista hostil aos
judeus expressar sua opinião ao vivo em frente às câmeras. E, se
acontecer de algum propósito difamatório contra os judeus ser
insinuado nas mídias de massa, ele será rápida e eficientemente
reprimido.
O longo século atormentado pela judeofobia no mundo ocidental
— de 1850 a 1950, mais ou menos — está acabado, felizmente!
Subsiste ainda alguma herança desse ódio; relíquias de um passado
que murmuram entre si no segredo de salas duvidosas ou que ainda se
manifestam em cemitérios (por definição, seu lugar predestinado).

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Esse ódio se expressa, às vezes, pela boca de marginais exaltados, sem
que o grande público lhe credite a mínima legitimidade. Tentar
assimilar o antissemitismo residual de hoje à potência judeofóbica do
passado acaba diminuindo o impacto do ódio aos judeus na
civilização ocidental, cristã e moderna, que só se expressou até a
metade do século XX.
E, no entanto, a percepção dos judeus como povo-raça, cujas
qualidades misteriosas são transmitidas por vias obscuras, ainda tem
muita força nos dias de hoje. Tratava-se outrora de simples
características fisiológicas, do sangue ou do formato facial. Hoje é o
DNA ou, para os mais perspicazes, um sucedâneo mais leve o que os
diferencia: a forte crença em uma linha direta no encadeamento das
gerações. Em um passado longínquo, tratava-se de uma mistura de
medo, desprezo, ódio pelo outro ou ignorância. Hoje, por parte dos
goyim post-Shoah,[3] existe uma simbiose de medos, má consciência e,
sobretudo, ignorância; e, entre os “novos judeus”, encontram-se a
frequente vitimização, o narcisismo, a pretensão e, mais uma vez, a
ignorância crassa.
Redijo este texto em uma tentativa desesperada de me libertar
desta pressão determinista, cega e ilusória, cheia de perigos para o
meu futuro e para o futuro daqueles que me são caros. Existe um
vínculo estreito entre a identificação dos judeus como etnia ou povo-
raça atemporal e a política de Israel em relação aos trabalhadores
imigrantes vindos de países longínquos — e, evidentemente, de seus
países vizinhos, privados de direitos e submetidos a seu regime de
ocupação já há quase cinquenta anos. É difícil negar uma curiosa

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realidade: o desenvolvimento de uma identidade judaica essencialista
não religiosa encoraja em muitas pessoas, tanto em Israel quanto no
exterior, a perpetuação de posições etnocêntricas e racistas.
À luz das tragédias da primeira metade do século XX, a relação
afetiva dos descendentes judeus com Israel é tão compreensível
quanto inegável, e seria estúpido criticá-la. No entanto, tal realidade
não deveria ter implicado o estabelecimento de um vínculo tão
estreito entre a concepção da judeidade como essência atemporal e
anti-histórica e o apoio crescente que grande parte daqueles que se
identificam como judeus traz à política do Estado de Israel. Política
de segregação inerente à própria definição e ao regime de ocupação
prolongada e de colonização, que ele instaurou nos territórios
conquistados em 1967.
Não escrevo para os antissemitas. Eu os considero totalmente
incultos ou atingidos por um mal incurável. Quanto aos racistas mais
eruditos, sei que, de todo modo, eu não os convencerei. Escrevo para
todos aqueles que se questionam sobre as origens e as metamorfoses
da identidade judaica, sobre as formas mais modernas de sua
presença e sobre as repercussões políticas induzidas por suas diversas
definições. Para isso, extrairei de minha memória o acúmulo de pó e
desvelarei alguns componentes das identidades pessoais adquiridas ao
longo da minha vida.

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II
A identidade não é um chapéu

Da identidade

Em uma escola do subúrbio de Paris, o menino Mohammed é


considerado um pequeno gênio. Ele não é apenas o melhor em
aritmética, mas também é excelente em francês. Em um belo dia, a
professora lhe pergunta sem rodeios: “Você gostaria que eu o
chamasse de Pierre?”. O olhar do jovem aluno se ilumina de alegria, e
sua resposta vem cheia de entusiasmo. Quando, no mesmo dia,
Mohammed/Pierre retorna ao lar, sua mãe lhe diz: “Mohammed, vá
comprar duas garrafas de leite no supermercado”. O menino responde
que agora se chama Pierre e se recusa a obedecer. Na mesma noite,
seu pai volta do trabalho, se instala na poltrona e pede que seu filho
lhe traga água da geladeira. O menino recusa atender ao pedido de
novo e insiste para que seja chamado de Pierre. O pai se levanta, lhe
dá um par de bofetadas e, com seu anel, arranha o rosto do menino.
No dia seguinte, a professora lhe pergunta “Oh, Pierre, quem bateu no
seu rosto?”, e o menino responde, com olhar de humilhação: “Foram
os árabes que me bateram!”.
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Evidentemente, essa brincadeira é contada por franceses, e não
por árabes. Além disso, revela, positiva ou negativamente, o caráter
“aberto” da nacionalidade francesa; a brincadeira não poderia ser
retomada em Israel por causa da dimensão segregativa de sua política
de identidade. Isso pode nos incitar um instante de reflexão sobre a
noção de identidade, sobre a imagem de si mesmo que ela veicula,
sobre os riscos de fratura do qual é portadora, sobre sua dimensão
imaginária, sobre a faculdade que se tem ou não de mudá-la, sobre
sua tendência manifesta dependente dos outros. Mesmo que seja algo
banal, é importante lembrar o seguinte: muito cedo em sua existência,
o ser humano adquire individualidade, que exige ser reconhecida por
seu entorno. O “eu” se revela e fixa para si uma identidade, resultado
de um diálogo permanente com o olhar do outro. Embora a
identidade responda por uma necessidade psicológica constante e a-
histórica, suas formas e variações dependem, para todos os seres
humanos, tanto de fatores naturais (o sexo, a cor da pele, a
estatura…) quanto de circunstâncias externas, ou seja, sociais.
O homem define sua identidade por meio de suas práticas
cotidianas e de suas relações com os outros. A identidade estabelece o
ponto de entrada na comunicação com outrem, mesmo sem conseguir
sempre um olhar distanciado. Por ela, o indivíduo se torna
significante a si mesmo e a tudo o que existe em seu entorno. Sua
identidade revela a definição de seu status no corpo social em que se
desenvolve e com que interage indiretamente. Toda identidade
individual, em seus traços principais, é tributária de uma identidade
coletiva, assim como essa última resulta, em grande proporção, de

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uma composição de identidades particulares — bem como de
elementos transcendentes, que envolvem tanto o posicionamento
tomado diante desse coletivo quanto as relações recíprocas que se
estabelecem, ou não, com os outros grupos.
Atenção: uma identidade não é um chapéu nem um casaco! É
possível vestir várias identidades simultâneas, mas, diferentemente
dos chapéus e dos casacos, é difícil trocá-las com rapidez. A situação
absurdo-cômica na história do pequeno Mohammed/Pierre é uma
constatação disso. Um homem pode ser patrão — ou empregado — e
ser, ao mesmo tempo, ateu, casado, alto, jovem etc. Essas identidades
coexistem, abrangendo diferentes níveis de força e de hierarquia que
se interligam e completam uns aos outros. Os matizes de identidade
do homem moderno, de sua juventude à velhice, constituem um
aspecto particularmente fascinante devido à sua maneira de se
manifestar em situações mutáveis e de contribuir para a criação de
uma ordem social — ou, pelo contrário, para a sua contestação.
Quero, aqui, dar destaque a uma problemática que me preocupa
em especial. Se certas identidades se completam e se sobrepõem,
outras, ao contrário, se excluem mutuamente. Não é possível ser
simultaneamente homem e mulher, alto e baixo, casado e solteiro, e
assim por diante. Da mesma forma, dificilmente alguém pode ser ao
mesmo tempo muçulmano e cristão, católico e protestante, judeu e
budista — mesmo que às vezes nos deparemos, aqui e ali, com alguns
casos excepcionais de versões intermediárias sincréticas de identidade
no momento em que a primeira fé ou crença enfraqueceu.
Sendo assim, era impossível, durante os últimos cento e cinquenta

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anos, ser francês e alemão, polonês e russo, italiano e espanhol,
chinês e vietnamita, marroquino e argelino simultaneamente. A
identidade religiosa, tanto no passado como no presente, e a
identidade nacional na era moderna se parecem precisamente com
chapéus e casacos que não podem ser usados ao mesmo tempo. Tanto
a religião (o monoteísmo, não o politeísmo que o precedeu) quanto o
patriotismo (não as fases de transição pré-nacionalista, mas as
situações de emigração ou as sensibilidades pós-nacionais) exigiram
dos indivíduos e do coletivo um senso de exclusividade absoluta.
Dessa exclusividade, particularmente, provinha sua força.

Identidades religiosas e identidades nacionais


As identidades religiosas do universo pré-moderno trouxeram,
durante séculos, significados e explicações para os fenômenos naturais
e sociais que teriam permanecido incompreensíveis. Para superar sua
finitude, elas também conferiram à vida um halo de eternidade graças
à crença no além-mundo e na reencarnação das almas. Para reforçar
esses princípios de forma útil e duradoura, diversas igrejas exigiam
não apenas compensações financeiras, mas também uma devoção
absoluta por parte dos fiéis à verdade exclusiva proposta por elas.
Essa verdade confortou o crente, o integrou a um grupo de
identidade bem delimitada e, assim, deu à sua vida não apenas
sentido, mas também ordem e segurança. Além de sua identidade de
camponês ou de ferreiro, de comerciante ou de mascate, de nobre ou
de servo, o indivíduo sabia que ele também era cristão, judeu,

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muçulmano, hinduísta, budista… Não havia homem sem identidade
religiosa, pois, até recentemente, era inconcebível que existisse
homens sem um deus. Quando o poder do ser humano sobre a
natureza — conquistado por meio do descobrimento da “essência das
coisas” — tomou força, também abalou notavelmente a crença no
deus todo-poderoso e, sobretudo, contribuiu para a perda de
legitimidade dos seus agentes aqui na terra aos olhos dos povos. O
recuo — mas não o desaparecimento — das religiões tradicionais e
institucionais aconteceu ao mesmo tempo que surgia uma nova
identidade coletiva, que assumiria parte significativa na condução da
moral da vida social. Com o avanço da economia de mercado,
processo no qual a industrialização e a era do imperialismo marcavam
o apogeu, a intensa modernização dos meios de comunicação humana
— desde a imprensa até o rádio e a televisão —, e as reviravoltas na
estrutura de relações entre as classes sociais levaram a identidade
nacional a atuar como o principal para-raios da intempestiva era
moderna.
Essa nova identidade coletiva tornara-se necessária por diferentes
motivos, como, por exemplo, a mobilidade horizontal (ligada à
urbanização) e a vertical (ligada à estratificação social), bem como a
divisão do trabalho, sempre em constante processo de fragmentação,
que necessita de uma cultura pública homogênea para garantir seu
bom funcionamento. O Estado-nação controlou o processo de
nacionalização das massas, que não poderia ter sido realizado sem
ele. Para isso, apoiou-se, desde o final do século XIX, em eficazes
redes de comunicação pública e privada, mas, sobretudo, nos dois

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braços robustos que foram o sistema de educação obrigatória, com
suas produções pedagógicas nacionais, e o serviço militar, com suas
finalidades militaristas nacionais.
Essa nacionalidade nova explorou amplamente a identidade
religiosa anterior, saqueando frequentemente seus símbolos e parte
dos rituais, que lhe serviram de base para sua edificação. Em outros
momentos, ela os “laicizou” completamente, inventando novos
conceitos, signos e bandeiras que se fixaram a um passado mitológico,
às vezes até pagão. Mais fraca que a religião em certos aspectos —
particularmente no âmbito da metafisica da alma —, essa
nacionalidade se afirmou de maneira mais ousada em outros planos,
particularmente no da grandeza da mobilização popular e do
sentimento que todos compartilham de serem igualmente
proprietários da pátria. A diferença maior entre identidade religiosa e
identidade nacional reside no conceito de soberania. Para o fiel da
religião, a soberania é externa à sua identidade pessoal, enquanto,
para o fiel da nacionalidade, o sentimento de soberania é parte
integrante dela. Diante do antigo Senhor e Mestre do universo, a
nação, instituída como dona de suas ações e responsável por seus
atos, se tornou, portanto, o principal objeto de reverência.
Ao longo dos últimos dois séculos, a identidade nacional exigiu
que milhões de homens estivessem prontos para morrer em defesa ou
em prol da expansão de sua pátria; e, a um número ainda maior, ela
impôs uma língua e um modo de vida, inspirando-lhes um forte
sentimento de solidariedade coletiva e popular.

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A nação e a história

A ideologia nacional naturalizou a história e a adaptou às


necessidades patrióticas do presente. O imaginário nacional sempre se
desenvolveu em forma de relatos. Lendas, grandes feitos e mitos de
tribos, comunidades religiosas e reinados foram transmitidos por meio
de narrativas contínuas, criadas e mantidas vivas por povos que
teriam existido desde a noite dos tempos. Imagens fragmentadas e
entrelaçadas funcionaram como fundamentos fictícios a um continuum
temporal mitológico estabelecido desde a gênese da nação.
Pode-se até afirmar que, sem a ideia de nação, a história como
disciplina — há muitos anos meu ganha-pão — não teria sido
ensinada com tanta ênfase do primário ao segundo grau. Em todas as
democracias, liberais ou totalitárias, um aluno deve ser capaz de
recitar a história de “seu povo”. Clio, a deusa da história, se tornou
uma entidade a quem os modernos prestam culto para modelar sua
identidade coletiva e consolidar sua fé na representação política da
nação.
No final do século XIX, como reação à racialização crescente
difundida pelos antissemitas, uma pequena fração dos descendentes
judeus passou por uma fase de nacionalização (senão de própria
racialização). Esse fenômeno revigorou mitos e lendas antigas e deu
forma a várias identidades laicas de um novo tipo. O quipá, o xale, a
barba, o penteado e a peruca para as mulheres quase desapareceram e
deram lugar, na metade do século XX, aos “judeus étnicos”. Uma
parte desses pós-judeus aderiu ao sionismo. Outros adotaram o ponto

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de vista essencialista de seus detratores, sem, no entanto, se tornarem
defensores do nacionalismo judeu.
Até um passado recente, apesar das perseguições, o judeu
permaneceu fiel, louvando um deus em particular, curvando-se
obstinado a vários mandamentos religiosos e entregando-se a uma
série de orações — a história lhe causara surpresas no domínio da
política identitária moderna. Doravante, aos olhos tanto dos
antissemitas como dos filossemitas, no que diz respeito aos “novos
judeus”, o judeu é judeu para sempre, mas não por conta das práticas
e das normas de culto às quais se submete. Ele é percebido como
judeu não por aquilo que faz, cria, pensa ou diz, mas em virtude de
uma essência eterna, inerente à sua personalidade específica e
misteriosa (dos cientistas sionistas, acrescentaremos até a genética).
Vou me esforçar para tratar alguns fatores que levaram a esse
panorama.

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III
Uma cultura judaica laica?

Uma questão incômoda

O início de meu questionamento — que, como em todo início, não era


apenas um — ocorreu em 2001, na espaçosa cozinha de um
apartamento no XI distrito de Paris. Michelle, a esposa de um dos
meus amigos mais próximos, me pegou de surpresa: “Diga, Shlomo.
Por que meu marido, que não coloca os pés em uma sinagoga, que
não celebra as festas judaicas, que não acende velas no Shabat[4] e
não crê em Deus é definido como judeu, enquanto eu, que não vou
mais à igreja há décadas e sou completamente laica, não sou vista
como cristã ou católica?”.
Fiquei desconcertado pelo caráter direto e inesperado da pergunta.
Pensei e, como sempre, quis mostrar que tinha uma resposta para
tudo. Lancei-me em uma justificativa vigorosa, enquanto, no fundo,
não estava completamente seguro da minha justificativa:
“Contrariamente à identidade cristã, a identidade judaica não repousa
apenas na crença em Deus e em sua veneração. A história marcou o
judeu com suas garras e gravou sua face com sinais que ultrapassam a
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tradição do culto religioso. A hostilidade contra o judeu nos tempos
modernos forjou sobre ele uma identidade específica de vítima da
segregação que deve ser considerada e respeitada”. A discussão
simplesmente acabou em Hitler e no nazismo, e assim, fortalecido
pelo meu conhecimento histórico, empilhei vários argumentos, um
após o outro, para explicar a definição de meu amigo como judeu
laico e, talvez, para tentar enquadrar minha própria identidade —
quem sabe?
Depois dessa conversa, senti um mal-estar difuso; meus
argumentos haviam me deixado insatisfeito. Alguma coisa não estava
certa, mas eu não conseguia dizer exatamente o quê. Um pensamento
incômodo se insinuava sobre mim, e refleti sobre tudo aquilo durante
semanas sem encontrar uma saída. Todos sabem que é muito mais
fácil se ater a preconceitos e a ideias simples constantemente
reproduzidas em conversações comuns do que questionar os conceitos
e as construções de base do nosso sistema de pensamento. Como disse
o filósofo alemão Martin Heidegger em sua época: “Cada vez mais, ao
longo de nossa vida, pensamos menos sobre as palavras do que as
palavras e os conceitos se pensam por meio de nós”.
O que poderia contradizer a ideia de que existem judeus laicos e
ateus? Não houve um povo judeu exilado, disperso e errante durante
dois milênios? (Eu acreditava, como todos, no mito cristão-sionista do
“exílio do povo judeu”.) A história das perseguições não havia assim
desenvolvido em todos os judeus uma sensibilidade particular,
condutas de base comuns e uma solidariedade específica? Mas
vejamos! Sem dúvida existe uma cultura judaica laica na qual eu

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cresci: Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein não criaram uma
cultura e uma ciência judaicas? Não são eles, junto a muitos outros,
um motivo de orgulho para o judeu laico moderno? Pelo menos, isso
é o que eu sempre ouvi de meus professores e colegas!
Quanto mais passava o tempo, mais meu espírito ficava atordoado
por essa problemática. Existe, com certeza, uma identidade judaica
laica: a prova são as pessoas que se dizem judias mesmo quando não
acreditam em Deus e não conservaram nenhuma tradição. A antiga e
precisa afirmação de Jean-Paul Sartre, segundo a qual é o
antissemitismo que cria o judeu laico, guardava a meus olhos toda a
sua pertinência. A identidade não está fixada pelo olhar do outro
tanto quanto pela consciência que o sujeito tem de si? Enquanto o
judeu existir para o outro, ele continuará acreditando na
impossibilidade de apagar sua “alteridade judaica” ou abstraí-la.

De Marx a Serge Gainsbourg: uma cultura comum?


Quando comecei a ter claros os aspectos nos quais consiste uma
cultura judaica não laica, a dificuldade para chegar a uma conclusão
surgiu para mim de repente, e me encontrei mergulhado em um
abismo de perplexidade. Existe evidentemente uma cultura religiosa
ancestral de dimensões folclóricas e exóticas. Com certeza, a Bíblia,
longe de ser privilégio apenas do judaísmo, constitui um dos
fundamentos culturais e históricos comuns a todas as religiões
monoteístas ocidentais (judaísmo, cristianismo e islã), mas a Mishná,
o Talmude, Saadia Gaon, Maimônides e todos os exegetas rabínicos

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foram, durante séculos — e ainda são —, criações e criadores judeus
por excelência. Um pensamento judaico importante se expressou
igualmente na época moderna: diversos pensadores, entre eles Moses
Mendelssohn, Hermann Cohen, Franz Rosenzweig, Martin Buber,
Abraham Joshua Heschel e Emmanuel Levinas, quiseram aperfeiçoar
e promover uma reflexão filosófica judaica — âmbito no qual
alcançaram realizações notáveis —; é preciso mencionar, no entanto,
que, para além de sua originalidade, esse pensamento sempre se
alimentou de sínteses filosóficas não judaicas.[5]
Mas qual é, então, a cultura específica que delimita os que se
definem como judeus laicos e ateus? Dispõem eles de uma língua
comum, com suas expressões elitistas e populares? A cultura de um
povo não se caracteriza, acima de tudo, por uma língua e
particularmente por códigos específicos por meio dos quais se realiza
a comunicação? De acordo com qual estilo de vida se distinguem e se
caracterizam os judeus laicos? Hoje, onde se produzem peças de
teatro ou filmes judeus? Por que não se escrevem poesia, literatura ou
filosofia judaicas laicas? Existem modos de ser, gestos e gostos
específicos comuns a todos os judeus do mundo ou ao menos a uma
maioria deles? Ou seja, encontra-se no mundo uma cultura criativa
judaica que serve de alimento espiritual ou de expressão cotidiana
àqueles que são identificados como judeus? Podem-se concretamente
reconhecer nos pensamentos de Karl Marx, Sigmund Freud e Albert
Einstein contribuições judaicas? A crítica ao capitalismo, a teoria do
inconsciente e a da relatividade cooperaram para a preservação e a
configuração de uma cultura judaica laica?

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Sabendo que cada uma dessas questões traz uma resposta
negativa, compreendi que minha identidade judaica laica está
fundada em minha origem, ou melhor, exclusivamente no passado e
em sua memória reconstruída. O presente e o futuro quase não
intervêm na identidade coletiva judaica que tentei justificar como
identidade viva que se apoia em uma cultura específica. Não se
encontrará modo de vida comum aos ditos “judeus laicos”: hoje eles
não sentem alegria ou tristeza por estarem em uníssono com os outros
judeus laicos no mundo inteiro. Eles não se comunicam nem sonham
em uma língua que lhes seja específica, mas se expressam, criam,
choram e ganham vida cada um em sua língua e sua cultura nacional.
Tristan Tzara, nascido Samy Rosenstock, cuja manifestação
dadaísta me inflamou na juventude, não escreveu nenhum poema
judaico. Harold Pinter, de origem judaica da Europa Oriental,
dramaturgo e cenógrafo que sempre me encantou, produziu, em
inglês, obras-primas que nada têm de judaicas. Stanley Kubrick, meu
cineasta preferido, realizou filmes muito americanos e universais sem
nem um quê de judaísmo. Henri Bergson, o filósofo de quem tomei
conhecimento pela primeira vez ao redigir minha tese de doutorado,
não apresentou ao mundo nem uma filosofia judaica sequer. Marc
Bloch, um dos maiores historiadores do século XX, de quem tentei,
em vão, me apropriar dos raciocínios e das técnicas narrativas, não se
interessou nem um pouco pela história judaica, mas imergiu
integralmente na história da Europa. Arthur Koestler, o audacioso
provocador que me ajudou tanto a me libertar de minhas ilusões
comunistas, era um escritor judeu? Pode ser que Serge Gainsbourg, de

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quem sou um velho admirador, tenha composto e interpretado
canções judaicas, e não francesas, sem que fosse notado?
Todos os que mencionei, e outros ainda, vinham de um meio
familiar judeu. Isso pode explicar a presença de um número
relativamente importante de personalidades de origem judaica no
campo das ciências e da cultura no Ocidente. A situação de
marginalidade prolongada sobre uma minoria perseguida, confinada
contra a própria vontade em esferas de atividade abstrata, teve um
efeito trampolim para aqueles que integram plenamente uma
modernidade marcada por um florescer de signos e símbolos.
Fiapos de um passado judeu em via de dissolução subsistiram em
meio a alguns questionadores que podem ser qualificados como “pós-
judeus”. Embora em uma determinada época tenha desejado aprender
hebraico, Franz Kafka produziu uma obra manifestamente não judaica
na qual, deliberadamente, não faz figurar nenhum personagem
central judeu. Mas a vida de sua família na Europa Central
provavelmente exerceu forte influência sobre a intensa expressão de
marcas de alienação e angústia em seus escritos. Isso também vale
para Walter Benjamin: sua curiosidade pelo meio de origem judaica
de onde vinha o levou a se interessar por algum tempo pelo hebraico
e pela mística da Cabalá, da qual ele rapidamente se desapegou, para
investir plenamente na crítica da cultura alemã — mais precisamente
europeia, como testemunham seus escritos originais sobre a França.
Também nele se expressa uma dimensão trágica cujas raízes
mergulham em seu meio familiar judeu.
Uma sensibilidade da Europa Oriental — ao mesmo tempo judaica

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e iídiche — continua a reverberar nas obras de Stefan Zweig, Joseph
Roth, Irène Némirovsky, Saul Bellow ou Philip Roth, Henry Roth ou
Chaim Potok, entre outros. Philip Roth, às vezes acusado de
antissemitismo, frequentemente insiste no fato de que escreve
“americano” e não “judeu”, e os personagens de origem iídiche que
figuram em seus relatos são os últimos dos moicanos de uma geração
em via de desaparecimento.
Nenhum desses autores criou uma cultura laica comum a todos os
descendentes judeus nem a uma maioria. Um antropólogo, mesmo
novato, sabe que uma cultura e uma sensibilidade não encontram sua
única fonte na herança dos ancestrais, nem apenas nos signos e nos
traços transmitidos pela lembrança. Elas se constroem, antes de tudo,
a partir de uma vivência compartilhada (com seus entrelaçamentos e
suas contradições), de modos de comunicação. Sabendo que no
mundo inteiro não há estilo de vida cotidiano suscetível de vincular
laicos de origem judaica, não se pode concluir a existência de uma
cultura judaica viva, não religiosa, tampouco tentar promover um
possível futuro comum com base em vestígios herdados de uma
tradição religiosa que recua.

Um presente sufocado pelas tradições


Inúmeros laicos de origem judaica, mesmo totalmente ateus, celebram
festas e cerimônias originadas na longa história das práticas cultuais
judaicas. Algumas ensinam seus filhos a acender, no inverno, um
castiçal de Chanucá (a Festa das Luzes); outros participam do Sêder de

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Pêssach (refeição da Páscoa judaica) na primavera ou então vão à
sinagoga, no outono, no dia de Yom Kipur (Dia do Perdão). Se as
sinagogas, as igrejas, as mesquitas ou os templos devem ser vistos
pelos laicos como espécies de museus, as festas, as comemorações e as
cerimônias surgem, ao contrário, como expressões culturais
carregadas de significados cujo valor não diminui e às quais não é
fácil renunciar. Elas, de fato, rompem a uniformidade do ciclo dos
dias e nos aproximam, ao menos por um momento, de nossos
familiares que tendem a se afastar e a se desunir. Elas fazem ressurgir
lembranças nostálgicas da vida dos parentes desaparecidos. Todavia,
uma cultura não se resumiria à nostalgia e a comemorações
ritualísticas de origem religiosa que podem, com certeza, constituir
um ponto de partida apreciável no sistema complexo de formação dos
indivíduos, mas que podem, também, instaurar muros de separação
entre os humanos. Se em nome de uma tradição religiosa os jovens
são impedidos de se aproximar e se amar; se a fidelidade e o respeito
às crenças ou o temor aos pais incitam a rejeição e a desvalorização
daqueles que são julgados diferentes de si, é-se então condenado a
ficar prisioneiro por toda a vida desses preceitos enrijecidos pelo
tempo e que acabaram se tornando ameaçadores. As sociedades
nacionais em que critérios religiosos comunitários exercem um papel
dominante nas linhas de definição identitária não podem ser
qualificadas como liberais ou democráticas.
Fui, pouco a pouco, ficando incomodado com esta questão: minha
identidade judaica laica até agora só repousou sobre um passado
morto; ela é quase oca do ponto de vista do presente vivo, que cria e

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orienta o futuro. Qual é esse passado e qual é a história dele? As
camadas geológicas que o encerram desempenham um papel
significativo. Vou tentar colocar alguns feixes de luz vacilantes e
fragmentários sobre essas retrospectivas construções judaicas e
sionistas.

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IV
Dor e longo tempo

O relato dos olhos

Em 1975, fui à França para continuar meus estudos de história. Meu


pai, que havia vivido em Israel desde 1948, saiu de lá pela primeira
vez para visitar seu irmão que residia em Montreal e fez escala em
Paris para me ver. Eu estava orgulhoso de ser seu guia na Cidade Luz,
e lembro que tivemos a sorte de aproveitar o tempo quente e
luminoso, recebendo, como prêmio, os crepúsculos sobre os
monumentos e os telhados dourados da capital.
Enquanto andávamos, meu pai afirmou que era capaz de
reconhecer um judeu na rua. Ri dele: “Você sempre reclama de viver
com muitos judeus no Estado de Israel. Não veio a Paris para procurar
mais outros, certo?… Além disso, como você sabe quem é judeu e
quem não é?”. No ponto do ônibus, um homem estava na fila de
espera: alto, cabelos brancos, olhos azuis; para mim, parecia um
idoso. Meu pai sussurrou que se tratava de um judeu e, para prová-lo,
propôs que conversássemos em iídiche em voz alta, partindo do
princípio de que o desconhecido se juntaria ao diálogo. Como dois
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israelenses ou dois mediterrâneos típicos, não foi difícil fazer barulho;
no entanto, o judeu “alvo” nem dirigiu o olhar em nossa direção.
Durante o percurso, meu pai me fazia perguntas sobre cada lugar,
cada esquina, cada monumento que cruzávamos. Quando chegamos à
Praça Vendôme, se me lembro bem, ele me perguntou o nome da
coluna que foi erguida no meio. Apesar de eu conhecer Paris muito
bem, fui incapaz de responder. O judeu “alvo” estava à nossa frente e,
no mesmo momento, virou-se e pôs-se a explicar, em iídiche, a
origem da coluna. Contou também que, vindo da Romênia, chegara à
França antes da Segunda Guerra Mundial. Era engenheiro e morava
em Montmartre.
Fiquei estupefato e sem voz. Quando descemos do ônibus,
apressei-me em questionar meu pai sobre seus métodos de
identificação.
— É por causa dos olhos — ele respondeu.
Era difícil entender.
— Mas ele tinha olhos azuis! — eu disse.
— Não é a forma, nem a cor; é o olhar!
— Que olhar?
— Um olhar fugidio e triste, marcado por medo e apreensões
profundas; é assim que os soldados alemães identificavam às vezes os
judeus na Polônia. Mas esqueça, pois não se encontra mais isso nos
jovens israelenses de hoje.
E assim meu pai concluiu o estranho episódio.
Ao examinar atentamente seu olhar, como nunca havia feito antes,
pela primeira vez percebi o impacto que uma situação de

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marginalidade prolongada pode ter na vida mental de um ser
humano. Seria supérfluo acrescentar que minha “israelidade” intensa
e impaciente não dera a mínima atenção a isso até então.
Uma história de sofrimentos, uma história de resistência de um
grupo minoritário em meio a uma civilização religiosa hostil e
dominante: o relato dos olhos é muito longo para poder ser contado
no âmbito deste breve ensaio. No entanto, antes que leitoras e leitores
concluam que têm nas mãos um novo estudo sobre a vitimização
judaica, destinada a suscitar nos goyim um sentimento de culpa e a
aumentar assim sua compaixão, devo acrescentar pequenos
comentários de certa importância.

Uma visita à história antiga


Sempre evitei me comprazer ao evocar sofrimentos do passado e,
também, não sonho em reparar as infelicidades de ontem. Faço parte
daqueles que procuram cercar, estancar ou pelo menos reduzir o
excesso de injustiças do tempo presente. Os perseguidos e as vítimas
de outros tempos me parecem menos prioritários que os perseguidos
de hoje ou as vítimas de amanhã. Sei também como a história serve,
com frequência, de arena, onde se vê permutar o caçador e a caça, o
forte e o fraco.
Como pesquisador e professor de história, tenho consciência de
que os judeus não têm, em todo o tempo e em todo lugar, nem com a
mesma violência e com a mesma frequência, sofrido perseguições. Os
judeus da Babilônia (nas épocas persa e helênica), os judeus dos

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grandes reinos convertidos, os judeus da Andaluzia muçulmana e de
outras comunidades que surgiram ao longo dos séculos tiveram
existências diferentes — sem que se possa falar de um destino
comum. Além disso, lá onde os judeus reinaram (o reino Asmoneu no
século II a.C. ou o reino de Himyar, a península árabe, no século V
a.C.), seu comportamento em relação a outros foi semelhante ao que
outros tiveram em relação a eles posteriormente. Mas, na Europa
medieval e particularmente no leste do continente, no limiar da era
moderna, milhões de judeus sofreram situações de alienação e
viveram como estrangeiros, deixando-se tomar por uma longa e
profunda insegurança.
Para compreender tudo isso, é preciso voltar no tempo até épocas
longínquas, envoltas por visões indistintas e nebulosas. Na origem,
encontra-se uma crença monoteísta ainda difícil de definir como
judaica; seria mais preciso qualificá-la javista.[6] Provavelmente ela
começou a tomar forma no século V a.C., algum tempo depois de a
elite política e clerical de Jerusalém ter sido exilada na Babilônia. A
maior parte dos admiráveis relatos da Bíblia foi escrita sob o efeito
dessas turbulências insólitas e do zoroastrismo persa. No século II
a.C., a jovem religião já estava suficientemente segura de si para se
insurgir e fundar na terra da Judeia o primeiro reino teocrático e
monoteísta, que converteu à força todos os súditos e também os povos
de terras vizinhas.
A nova fé revolucionária irrompeu e se propagou pelo viés das
redes culturais helênicas, depois pelas vias de comunicação romanas
em torno do Mediterrâneo. Após o fracasso de suas três grandes

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revoltas contra o paganismo, no final do século I e no início do século
II d.C., ela se desmembrou em duas correntes maiores — entre as
quais um fosso não deixou de ser cavado: o judaísmo rabínico e o
cristianismo paulino. O primeiro, mais modesto, deu ao mundo a
Mishná e o Talmude, e o segundo, mais eficaz, trouxe o Novo
Testamento. O cristianismo saiu vencedor e impôs a seu concorrente
um longo e doloroso estado de sítio.
Assim, outra vez, o grande sopro de judaização que havia
percorrido a região do Mediterrâneo enfraqueceu, e a prédica judaica
se confinou daí por diante à margem da civilização cristã medieval. O
judaísmo conheceu um novo declínio com o aumento do poder do
islã, seu irmão caçula, e se viu, desde então, refém do benquerer e dos
humores dos outros poderosos.
Evoquemos aqui um fato histórico que suscita certo incômodo em
todos aqueles que hoje, segundo os critérios da moda ocidental, ficam
honrados de pertencer à civilização judaico-cristã. O destino das
comunidades judaicas à sombra do islã foi muito diferente daquele,
sempre sombrio, que elas conheceram na Europa. Com certeza, o islã
via no judaísmo uma religião inferior, mas, se houve casos de
perseguições, os muçulmanos como um todo concederam ao judaísmo
o respeito devido a uma fé divina antiga que, como o cristianismo,
tinha necessidade de ser protegida pela religião dominante.

Judeus, cristãos e muçulmanos


Os judeus são chamados “gentes do Livro” no Alcorão (Surata 9, 5),

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enquanto no Novo Testamento, anterior a ele, é dito: “Cairão pela
espada e serão levados como prisioneiros para todas as nações”
(Lucas, 21:24). Segundo o texto do Evangelho, no mundo cristão os
judeus sempre foram vistos como os descendentes dos assassinos de
Jesus, expulsos de Jerusalém pela força. Na maior parte de suas fases,
o cristianismo se recusou a enxergar uma legítima religião
concorrente no judaísmo. Há apenas um único e verdadeiro Israel
(verus Israel), não dois e, certamente, não três! Para honrar seus
princípios, o cristianismo negou a possibilidade de existir um outro
monoteísmo, judeu ou muçulmano, ao seu lado: por essa razão,
nenhuma outra comunidade muçulmana subsistia na Europa no final
da Idade Média, enquanto as comunidades cristãs continuavam a
existir em terras do islã.
Para o cristianismo, era totalmente incompreensível e inaceitável
que os judeus pudessem permanecer voluntariamente fiéis a uma
outra religião e tivessem se recusado a reconhecer que, sob a presença
do messias, a graça já havia chegado à Terra. No imaginário cristão,
os judeus permaneceram rebentos de Judas Iscariotes e, por seus
pecados, foram banidos de Jerusalém, reaparecendo frequentemente
como uma ameaça aos fiéis a Cristo, puros e inocentes.
Contrariamente ao que sofreram algumas vezes os pagãos, os judeus
não foram o alvo de projetos de extermínio; a Igreja escolheu manter
a percepção de um judeu miserável como prova de justiça do caminho
tomado pela fé verdadeira. No entanto, preconceitos, ofensas cíclicas,
expulsões em massa, acusações de crimes ritualísticos e pogroms[7]
espontâneos fizeram parte da civilização “judaico-cristã”, das origens

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ao início da era moderna.

Raízes históricas da judeofobia na Europa


Esse ódio religioso do “outro” constituiu, durante muito tempo, a base
da judeofobia moderna do século XIX. Sem esse plano de fundo
prolongado, tal ódio nacionalista e racista não teria levado a esta
torrente nem tomado proporções tão grandes. E mais: se até então os
judeus puderam se “beneficiar” e “melhorar” ao se converter ao
cristianismo — à custa de esforços e de boa vontade —, as vias da
salvação, repudiadas em sua fé tradicional, iriam doravante se
obstruir. Os judeus não poderiam se tornar verdadeiros anglo-saxões,
orgulhosos franco-católicos, autênticos arianos teutônicos ou eslavos
de origem.
Quando os fiéis judeus começaram a sair dos guetos reais que os
poderes cristãos lhes haviam imposto no passado, e também do gueto
ideológico e mental edificado por suas próprias instituições, ativas na
criação de culturas nacionais na Europa, nasceu, em paralelo, o
racismo agressivo que os rejeitava. Vivendo em comunidades urbanas,
os judeus e seus descendentes — religiosos ou laicos — surgem, no
plano cultural e linguístico, como os primeiros franceses, alemães,
holandeses ou britânicos. O nacionalismo moderno, no entanto,
continuou a apresentá-los como um corpo estrangeiro que evolui nas
artérias das novas nações, sempre pronto a morder com seus dentes
afiados.
No grande processo de construção das nações, os franceses

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certamente precisaram do inimigo alemão, os alemães do inimigo
eslavo, os poloneses do inimigo ortodoxo, e assim por diante. No
entanto, o judeu, em seu papel de inimigo a “longo prazo”,
permanecia insubstituível e muito prático diante da cristalização
etnocêntrica das nações erigidas sobre um fundo cristão.
Para inventar uma origem nacional, precisava-se de toda parcela e
toda faísca cultural unificadora, linguística ou religiosa. A judeidade,
como antítese de identidade cristã, preenchia perfeitamente essa
função. Havia, com certeza, diferenças: a judeofobia corria solta em
Paris ou Londres, Berlim ou Paris, Viena ou Berlim e em Budapeste,
Varsóvia, Kiev ou Minsk, mais do que no Ocidente. Quase em todo
lugar, o nacionalismo emergente havia roubado da tradição cristã o
judeu deicida[8] e o havia enxertado na figura do outro “estrangeiro”
para ajudar a demarcar as fronteiras da nação nova. Com certeza, os
porta-vozes da nação não eram todos judeófobos, mas todos os
antissemitas políticos faziam figura de profetas zelosos com a
solidificação das nações.
O longo século judeófobo se estende, como já foi dito, de 1850 a
1950. “O judaísmo na música”, célebre artigo publicado por Richard
Wagner em 1850, poderia constituir sua data de nascimento simbólica
oficial, enquanto a supressão da definição dos judeus como hereges e
traidores (perfidi) pelo papa João XXIII, em 1959, marcaria seu
término. A recrudescência do ódio moderno de velocidade meteórica,
que culminou com o advento do monstro nazista, nasceu em um
contexto de imigração judaica crescente, proveniente do Leste
Europeu, no final do século XIX. Assim como a hostilidade em relação

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aos imigrados árabes e muçulmanos contribui hoje para afiar uma
identidade “branca” e “judaico-cristã” da Europa, as ondas de
imigração da população iídiche cristalizaram as consciências
etnonacionais. Essa imigração provinha de lugares onde os judeus
viviam em situação de dificuldade muito maior do que em qualquer
outro lugar no Ocidente ou na civilização muçulmana.

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V
Imigração e judeofobia

A figura de Bernard Lazare

Depois de terminar minha tese de doutorado dedicada a Georges


Sorel, o filósofo sulfuroso, interessei-me por um de seus amigos, que
merece ser considerado uma das mais curiosas figuras intelectuais da
virada dos séculos XIX e XX. Com rara bravura e opondo-se à opinião
de muitos, Bernard Lazare foi de fato o primeiro a se mobilizar para
provar a inocência de Alfred Dreyfus.[9] Sua resistência e seu espírito
não conformista o fizeram se tornar judeu e proclamar isso, se não
por orgulho, por desafio. Assim se tornou, na época, um indivíduo
reconhecido e popular entre os meios “israelitas” na Europa Ocidental
e Central.[10]
Mesmo que não tenha feito da Palestina o país de seus sonhos,
Bernard Lazare pode ser considerado o primeiro sionista francês por
ter exigido e formulado o direito à autodeterminação nacional dos
judeus. Ele saiu do movimento sionista depois que Theodor Herzl[11]
e seus partidários, para promover suas ideias, se recusaram a
denunciar a repressão dos armênios conduzida pelo sultão otomano e
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julgaram prioridade extrema criar um banco para financiar a
colonização da Terra Santa. No entanto, Lazare prosseguiu seu
combate apoiando os judeus vítimas de opressão na Romênia, aos
quais ele dedicou por completo suas magras forças e recursos antes de
morrer, em 1903.
Alguns afirmam que, no início de sua carreira (meados dos anos
1890), o poeta simbolista e panfletário anarquista Bernard Lazare foi
“em parte” antissemita. “Em parte” de fato, pois tinha o hábito de
oprimir não todos os judeus, mas apenas os judeus de origem oriental.
Em artigos incisivos, ele pedia que não se associassem os israelitas
portugueses e espanhóis (os sefaradim), elegantes e refinados — em
quem o próprio poeta se reconhecia —, com os epígonos judeus das
tribos de hunos, sujos e feios, que chegavam em ondas contínuas,
oriundos do império russo (os ashkenazim). Conforme a moda da
época, Bernard Lazare estava convencido de que a raça proveniente
da Península Ibérica distinguia-se desta, dos judeus da Europa
Ocidental. Ele também partilhava a opinião de que era de extrema
importância impedir a imigração destes para a França e para os países
vizinhos.
Tal ponto de vista por parte de um intelectual francês, por mais
radical que fosse, não tinha nada de excepcional e traduzia, de
maneira muito próxima, a visão dos franco-católicos, dos anglo-
saxões, dos germano-arianos e de muitos outros que acreditavam na
forte ameaça à qual a imigração expunha as culturas “autóctones” no
Ocidente. As comunidades israelitas cultivadas em Paris, Londres ou
Berlim não pensavam de forma diferente.

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Os judeus da Europa Central no final do século XIX

No final do século XIX, em torno de 80% dos judeus do mundo e de


seus descendentes laicos, ou seja, mais de 7 milhões de pessoas,
viviam no império russo, na Galícia austro-húngara e na Romênia
(uma fração não negligenciável dos judeus alemães também vinha do
Leste Europeu). A maioria dos historiadores do judaísmo, sionistas ou
não, até o final dos anos 1960 levantou a hipótese de que apenas a
existência do antigo império Khazar judeu, nas estepes da Rússia
meridional, da Ucrânia oriental e do Cáucaso, foi capaz de gerar um
fenômeno demográfico tão surpreendente — o mais significativo,
talvez, da história judaica moderna. O enfraquecimento desse reino
medieval seguido de seu desmembramento levou, do século X ao XII,
à migração dos judeus para o oeste, em direção aos territórios que se
tornaram, posteriormente, Ucrânia ocidental, Lituânia, Polônia,
Bielorrússia, Galícia, Hungria e Romênia. Em meados do século XVIII,
pouco tempo antes do grande choque demográfico que afetou a
população europeia como um todo, apenas na União Polônia-Lituânia
contavam-se mais de 750 mil judeus, enquanto cerca de 150 mil
viviam na porção ocidental do continente.
Divergindo de outras comunidades judaicas no mundo, a do Leste
Europeu conservara seu modo de vida e sua cultura independentes
daqueles de seus vizinhos. Na França, na Itália, na Alemanha
Ocidental, na Península Ibérica, na África do Norte, no norte do
Crescente Fértil, os judeus, fossem eles autóctones convertidos ou
imigrados, dividiam com seus vizinhos a língua e o modo de vida

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cotidiano; os locais de residência foram quase sempre comuns,
enquanto na Europa Oriental a evolução sociocultural foi diferente.
Os judeus do Leste Europeu foram agrupados durante séculos em
burgos ou regiões específicas, nos quais eles compunham a maioria ou
representavam uma minoria significativa. O Shtetl[12] judeu,
localidade meio rural e meio urbana, constituiu o berço principal da
vasta população iídiche. Com os primórdios da urbanização, eles
conservaram suas especificidades culturais não apenas na prática do
culto, tal qual o resto dos judeus no mundo, mas também no estilo de
vida mais “laicizado”. Eles consumiam alimentos kosher e também
cultivavam hábitos culinários diferentes dos de seus vizinhos. Usavam
quipá, mas também chapéus de pele, e vestiam-se de maneira
reconhecível e distinta da massa dos camponeses das imediações. Não
falavam a língua de seus vizinhos, mas, para suas atividades
profissionais e funções como intermediários, eles preferiam recorrer a
dialetos germânicos difundidos nos círculos econômicos provenientes
do oeste. A chegada de eruditos rabínicos do espaço linguístico
alemão também influenciou a formação de dialetos iídiche
específicos, de tonalidade mais eslava no leste e mais germânica no
oeste.
Vale salientar também que, ao contrário das pequenas
comunidades judaicas da Europa Ocidental ou do mundo islâmico que
haviam adotado os costumes religiosos mais flexíveis e relativamente
simbióticos em relação a seus vizinhos não judeus, as pessoas do povo
iídiche, no Leste Europeu, fortaleciam suas práticas cultuais como
modo de demarcar claramente sua diferença em relação aos grupos de

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não judeus. Essa forma de integralismo religioso se aparentava às
correntes mais rígidas da ortodoxia cristã (percebe-se uma certa
proximidade entre o misticismo hassídico[13] e a mística popular
cristã nestas regiões). A modernização e a laicização têm como efeito
levar parte dos herdeiros laicos dessas famílias judaicas intransigentes
a expressar sua hostilidade às tradições religiosas: inúmeros foram
aqueles e aquelas que se tornaram socialistas ateus, socialistas
revolucionários, mencheviques, anarquistas etc. A resposta das
instâncias religiosas foi igual, recusando qualquer espécie de ligação
com a massa apóstata.[14]
O império russo, assim como seu homólogo austro-húngaro, era
muito vasto e atrasado para servir de trampolim estatal ao
nascimento de uma nacionalidade unitária e unificadora, em base
civil, segundo o processo iniciado anteriormente nos grandes reinos
da Europa Ocidental. O nacionalismo pan-eslávico serviu, sobretudo,
como instrumento de manipulação e opressão nas mãos do poder
czarista. Foi por isso que surgiram os constituintes nacionais locais e
fragmentados fundados sob o pan-eslavismo e contra ele, em uma
pluralidade de línguas e de religiões. Foi assim que nasceram os
poloneses, os ucranianos, os letos, os lituanos etc. Os atritos
intoleráveis e perigosos aconteceram em quase todas as regiões onde
viviam populações heterogêneas que falavam dialetos diferentes. Mas
foi a presença da população iídiche nessas zonas que elevou ao
máximo o limiar da intolerância moderna, tão característico de todas
as correntes nacionalistas etnocêntricas. A onda de pogroms teve início
nos anos 1880, ao mesmo tempo que as restrições impostas pelo

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poder czarista e, em particular, as condições de vida insuportáveis na
região do assentamento judaico expulsaram as comunidades judaicas,
aumentando, assim, o fluxo de imigração que se derramou sobre
bairros de Viena, Berlim, Paris, Londres, Nova York e Buenos Aires.
[15]
As estimativas divergem quanto ao tamanho dessa imigração. De
toda forma, cerca de 3 milhões de pessoas foram desenraizadas e
jogadas nas estradas até o início da Segunda Guerra Mundial. Essa
grande massa foi rapidamente deslocada para o oeste, o que, como
vimos, suscitou fortes reações de hostilidade e de medo entre os não
judeus, e também por parte de instituições judaicas europeias. Esses
imigrados rebeldes, vestidos de forma bizarra, com seus costumes
particulares e sua língua específica, se concentraram nas capitais da
Europa Central e Ocidental antes que uma parte deles finalmente
alcançasse as Américas do Norte e do Sul.
No que diz respeito a essa imigração, o crescimento da judeofobia
não foi objeto de uma pesquisa aprofundada na escala da Europa até
então. Todavia, as investigações necessárias para tornar inteligível a
longa e dolorosa experiência que levou ao genocídio nazista
precisariam abarcar um estudo sobre as correntes judeofóbicas
etnocêntricas difundidas em todo o continente e analisar a
especificidade do nacionalismo alemão. Não basta conhecer o
aparelho do Estado nazista nem decodificar as vias pelas quais a
violência sistemática da Primeira Guerra Mundial tornou possível o
crime industrializado da Segunda. Além disso, também é preciso
analisar o aumento dos patamares de sensibilidade e hostilidade
resultantes dessa grande oscilação de populações.

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Os pogroms e o desenraizamento foram os primeiros golpes dados
no povo iídiche, que havia começado a se unificar no processo de
modernização do final do século XIX. O segundo abalo veio da
revolução bolchevique, que, por meio de ações administrativas,
tentou sufocar as diversas expressões dessa cultura particular. O
terceiro golpe, dessa vez fatal, foi dado pelos nazistas, que
consumaram o extermínio físico da parcela desse povo que havia
permanecido na Europa. O sionismo, que assim como o bolchevismo
se esforçou em apagar a língua e as práticas culturais iídiches, deu o
quarto golpe. Não se trata, no entanto, de colocar todos esses choques
em um mesmo plano, nem por suas motivações, nem por seus
resultados, e muito menos por sua unificação moral.

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VI
De um oriental a outro

O iídiche e o hebraico

Em 1971, consegui ser aceito como estudante bolsista na


Universidade de Tel Aviv. Como meus conhecimentos de inglês eram
insuficientes, fui obrigado a fazer um curso de aperfeiçoamento. Logo
de cara, ainda angustiado com a ideia do fracasso, indiquei em uma
folha de papel as línguas dominadas, além do hebraico, a pedido do
professor. No início da aula seguinte, ele perguntou: “Quem é Shlomo
Sand?”. Levantei o dedo, temendo ver se repetir o pesadelo que havia
vivido no colégio antes de ser expulso. Mas dessa vez foi diferente:
“Sand foi o único que mencionou o iídiche nesta classe?”. Então nove
braços foram erguidos. No início dos anos 1970, ainda eram inúmeros
os que não ousavam admitir falar a miserável língua do “exílio”. Para
dizer a verdade, tendo eu mesmo um pouco de vergonha, hesitei
bastante em citar o iídiche como segunda língua.
Na realidade, ela não era a segunda. O iídiche havia sido minha
língua materna; foi em iídiche que me comuniquei com meus pais
assim que saíram de minha boca as primeiras palavras. Com o
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falecimento dos meus pais e de alguns parentes mais velhos, esgotou-
se minha coleção de interlocutores iídiche, e assim a língua-relíquia
de minha infância se escondeu nos recantos de meu subconsciente,
onde, provavelmente, começou a se desintegrar. Foi em Paris, ao
encontrar alunos bundistas[16] e comunistas, que conheci os últimos
sobreviventes do povo iídiche, e também durante minha primeira
estadia em Nova York, em 1998. Aquela foi, para mim, a última
chance de praticar a língua dos velhos imigrados do Leste Europeu:
em Israel, a maior parte deles se abstinha de falar iídiche em locais
públicos (com exceção das escolas de cursos hassídicos, que eu nunca
frequentei).
Depois dessa estadia nos Estados Unidos, também compreendi o
porquê de os americanos assimilarem e confundirem a identidade
iídiche e a identidade judaica imaginária geral. Eles não conseguem
distinguir uma cultura popular que prosperou no seio de uma
população importante em um vasto mas limitado território de uma
cultura religiosa difundida em todos os continentes sob formas
variadas. Chama-se “humor judeu” ao humor eslavo iídiche (para
retomar uma expressão do romancista Romain Gary) que ainda nutre
as piadas nova-iorquinas e os filmes de Woody Allen. Esse humor
particular inspirou tanto Nikolai Gogol quanto Sholem Aleichem, dois
grandes escritores ucranianos, mas os Rothschild e os maravilhosos
escritores judeu-iraquianos nunca o compartilharam — para rir e
fazer rir, esses últimos usaram outros recursos cômicos. O humor
israelense atual é totalmente diferente. Se ele é uma expressão
cultural que decorre diretamente da geografia, ou seja, dos modos de

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vida cotidianos, e não de uma tradição textual superior, ainda assim
trata-se de humor (inclusive com insultos e blasfêmias).

Uma língua morta e uma língua fabricada


A rica cultura iídiche está agora apagada. Com certeza alguns
estudantes fazem cursos para aprender a língua dos judeus do Leste
Europeu, mas eles não se comunicam nem criam nessa língua. O
estudo e a relação com a cultura iídiche são capazes de aquecer os
corações dos adeptos da nostalgia, mas não são capazes de criar
personagens e situações como aquelas que se encontram nos
monumentos literários que nos foram legados, entre outros, por
Sholem Aleichem ou Isaac Bashevis Singer (e certamente não foi por
acaso que estes dois gigantes da literatura iídiche terminaram suas
vidas na América do Norte e não no Oriente Médio). Da mesma
forma, esvaneceu-se sem esperança de volta o grande sonho das
pessoas do Bund — grande partido social-democrata judeu do império
russo, depois polonês, que, contrariamente ao sionismo, estava
fundado em uma cultura popular viva e não tinha, portanto, nenhuma
necessidade de manter costumes de aparato religioso para se
constituir em uma identidade seminacional.
Estima-se que o número de pessoas que, até a Segunda Guerra
Mundial, se expressavam nos diversos dialetos do iídiche superava 10
milhões. No início do século XXI, contam-se somente algumas
centenas de milhares, principalmente os Haredim (“tementes a Deus”,
religiosos praticantes do judaismo ultraortodoxo). Uma cultura

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popular desapareceu inteiramente; foi aniquilada, e toda esperança de
ressuscitá-la é vã, pois é impossível fazer reviver toda uma cultura ou
uma língua. A pretensão do sionismo de ressuscitar o hebraico antigo
e a tradição do “povo bíblico” mostra uma procura mística de
referências nacionais inculcadas a gerações de israelenses e de
sionistas no mundo.
Se dentre os primeiros teóricos da ideologia sionista muitos eram
de cultura alemã, os fundadores do empreendimento de colonização
tinham sido criados, em sua maioria, na cultura iídiche do Leste
Europeu. Sua língua materna era aquele “dialeto menor”, tão
desprezado pelos alemães de fé israelita, ou seja, pelos ashkenazim. Os
colonos que falavam iídiche abandonaram rapidamente sua língua
materna que era desprezada. Antes de mais nada, precisavam de uma
língua comum, que os unisse aos judeus do mundo inteiro. Ora, nem
mesmo Theodor Herzl e Edmond de Rothschild[17] eram capazes de se
comunicar em iídiche. Em seguida, os pioneiros sionistas aspiravam
criar um judeu novo, que rompesse com o universo cultural de seus
pais e de seus avós, com aldeias miseráveis da região do assentamento
judaico no império russo.
A partir de tentativas frustradas realizadas anteriormente no
império russo que visavam adaptar para uma linguagem moderna
textos da Bíblia e rezas, linguistas sionistas se propuseram a dar início
a uma nova língua cujo léxico principal foi certamente tirado dos
livros da Bíblia, mas cuja escrita era aramaica e assíria (ou seja, não
hebraica e tirada da Mishná), com uma sintaxe de dominância iídiche
e eslava (e de forma alguma bíblica). Essa língua é impropriamente

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chamada hoje de “hebraico” (eu mesmo sou levado a recorrer a esse
termo, por falta de outro), porém seria mais pertinente, segundo os
linguistas avant-garde, denominá-la “israelense”.
Essa língua se desenvolveu muito antes da criação do Estado de
Israel para ser adotada, rapidamente, pela comunidade sionista que,
alocando-se na Palestina, a usava com regularidade. Ela se tornou a
língua falada e escrita dos filhos desses pioneiros, responsáveis por
constituir em seguida a elite cultural militar e política de Israel nos
seus primórdios. Esses sabras[18] expressavam uma rejeição firme e
vigorosa à cultura iídiche, vivamente encorajados a isso por dirigentes
da comunidade de imigrantes. David Ben-Gurion, primeiro chefe de
governo de Israel, havia interditado o uso da língua dos judeus do
Leste Europeu nos congressos de seu partido socialista; no entanto,
uma transgressão ocorreu algum tempo depois, quando uma antiga
combatente dos “partisans” de Vilna,[19] evocando em 1944, durante
uma assembleia do sindicato dos trabalhadores hebreus, o extermínio
na sua pátria, foi interrompida na tribuna pelo dirigente fundador,
que subiu à tribuna para condenar o uso da língua “estrangeira e
gritante”.
A universidade hebraica de Jerusalém, fundada em 1925, não
dispunha de uma cátedra de ensino do iídiche, e os estudantes que
desejavam aprender essa cultura destruída precisaram ter paciência
até 1951. Em 1949, logo após a criação do Estado de Israel, devido ao
afluxo maciço de sobreviventes do genocídio que falavam iídiche,
uma lei foi votada proibindo os cidadãos israelenses de montar
espetáculos na língua dos imigrantes (apenas artistas estrangeiros

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convidados tinham o direito de se apresentar na língua do “exílio”,
mas somente por períodos que não excedessem seis semanas). Foi
preciso esperar o início dos anos 1970, pois, uma vez assegurada a
vitória total da nova cultura autóctone em Israel, o posicionamento
em relação a essa velha língua desprezada se flexibilizaria.
Esses descrédito e arrogância em relação ao iídiche alcançavam
também a cultura e a língua de outras comunidades de imigrados.
Embora na visão utópica de Theodor Herzl se presumisse que os
habitantes do “Estado dos judeus” falassem sua língua — o alemão —,
os colonos sionistas que antes se expressavam em iídiche não viram
com bons olhos esses refugiados da Alemanha chegando depois do
advento do nazismo e do fechamento das fronteiras dos Estados
Unidos. De fato, eles eram frequentemente vistos como “judeus
assimilados” tentando importar a todo custo sua cultura alemã ao país
da Bíblia, o que não era totalmente falso! O antigo desprezo dos
ashkenazim (segundo a apelação dos judeus refinados da Alemanha)
em relação aos Ostjuden (judeus da Europa Oriental) conheceu, na
empreitada sionista, uma completa inversão histórica: os
descendentes dos orientais se tornavam doravante a elite política
dominante, mostrando seu desdém em relação aos yekes (judeus
alemães).
Os antigos falantes de iídiche adotaram de boa vontade o termo
ashkenazim, carregado de prestígio (exatamente como, na
Antiguidade, os redatores da Bíblia, vivendo na Judeia, apropriaram-
se de “Israel”, o nome prestigioso do reino ao norte de Canaã, para
assim denominar o “povo sagrado”). Ao fazer isso, criaram um mito

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segundo o qual suas origens históricas remeteriam à Alemanha
civilizada, e não ao Leste Europeu, considerado retrógrado. No jovem
Estado de Israel, o papel de “oriental” inferior será atribuído a uma
outra população, formada por imigrantes recém-chegados do
Ocidente (neste caso, do norte da África).

“O judeu marroquino teve muito do árabe


marroquino”
Depois da guerra de 1948 e da criação de uma soberania sionista,
uma grande massa de imigrados miseráveis chegou dos países árabes
e muçulmanos que havia sido obrigada a deixar. A guerra na
Palestina foi a detonadora imediata desse êxodo. De fato, a
incapacidade do nacionalismo anticolonialista no mundo árabe de
separar comunidade religiosa e Estado laico gerou suspeita e temores,
contribuindo, por isso, para seus desenraizamento e abandono. Foi,
em grande escala, uma imigração trágica e penosa: vindas dos países
do Magrebe, chegaram a Israel populações provenientes de camadas
sociais pobres, enquanto a maioria das camadas média e superior
encontrava refúgio na Europa e na América do Norte.[20] Do Iraque,
ao contrário, chegou um grupo de composição sociocultural mais
heterogêneo que sofreu igualmente descriminação e humilhações,
apesar da presença em seu meio de uma classe média e de inúmeros
eruditos.
Os primeiros colonos sionistas, do final do século XIX e do início
do XX, haviam demonstrado certa simpatia romântica pelo folclore do

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Oriente Médio, mas muito rapidamente um muro de ferro se
levantou, atrás do qual a comunidade sionista se entrincheirava para
evitar qualquer amálgama com a civilização árabe. As relações com a
cultura indígena seguiram, no final das contas, as tendências do
orientalismo ocidental. Já em seu tempo, Theodor Herzl via, no
futuro Estado, judeus diante da Ásia como a “sentinela avançada da
civilização contra a barbárie” — visão ideológica que seria
compartilhada mais ou menos por todos os dirigentes da empreitada
sionista. Daí vinham sua cegueira e sua dureza em relação aos
cidadãos indígenas que viviam nas terras havia muitos séculos. Como
se sabe, uma grande parte dos árabes da Palestina foi levada ao êxodo
durante a guerra de 1948. Aqueles que ficaram depois da criação do
Estado foram trancados durante dezessete anos em um regime de
administração militar, no qual eram considerados parte inferior e
relegada da nova sociedade.
Os imigrantes judeus provenientes dos países árabes de língua e de
cultura cotidiana árabes (minoritariamente berbere e persa), as
autoridades israelenses mantiveram com eles uma relação que
oscilava entre desprezo profundo e suspeita manifesta. David Ben-
Gurion chegou a deixar escapar que ele não queria uma cultura
marroquina em Israel e que, infelizmente, “o judeu marroquino tem
muito do árabe marroquino”. Os imigrados “orientais” foram na sua
maioria instalados na periferia do Estado e tiveram direito a uma
porção ínfima na distribuição do butim territorial conquistado em
1949. Muitos imigrados do Leste Europeu — judeus que deixaram de
falar iídiche — mal os consideravam judeus e, às vezes, os

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consideravam um nada.
Na realidade, por ironia do destino, esses judeus-árabes acabaram
permanecendo mais judeus que os outros imigrados vindos ao jovem
Estado. A maior parte dos cidadãos do povo iídiche era relativamente
mais laica. Para consolidar sua identidade específica, eles recorreram
mais ou menos conscientemente a uma mistura de judeidade
tradicional e de um estilo de vida laico que, no passado, os havia
diferenciado de seu entorno “não judeu”. Em contrapartida, as únicas
marcas de judeidade dos imigrantes judeus-árabes se referiam às
práticas religiosas. Tudo aquilo que, no seu modo de vida, se
relacionava ao laico e ao cotidiano era árabe e por isso era malvisto
ou então rejeitado pela cultura israelense em processo de formação.
[21] Assim, para não ser tomado como árabe no “Estado judeu”, era
preciso preservar e exteriorizar ao máximo as tradições do culto e os
cerimoniais religiosos.
Esse recalque — a dissimulação e a negação de qualquer aspecto
árabe — facilitou muito a repressão dos sinais externos. Embora a
empreitada sionista de base fosse laica, a situação de esquizofrenia
cultural dos árabes judeus contribuiu muito para frear sua laicização.
Ela também teve como efeito a orientação de inúmeros deles para
posições antiárabes, o que os levou a eleger a direita sionista para o
Parlmento, tradicionalmente mais rígida em sua hostilidade em
relação aos autóctones.
O separatismo cultural como fenômeno central na política
identitária dos grupos sociais é uma expressão bem conhecida pela
sociologia moderna, que o sociólogo francês Pierre Bourdieu analisou

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perfeitamente. A distância tomada pelos árabes judeus e sua
descendência em relação à sua cultura de origem não foi específica de
Israel. Um fenômeno semelhante, para além das diferenças, se
produziu entre os magrebinos de origem judaica que emigraram para
a França ou o Canadá. O desejo de não ser identificado como árabe
ancorou sobre inúmeros deles fortes tendências políticas antiorientais
que repercutiram na segunda e na terceira geração.
A rápida israelização certamente embaralhou uma parte
considerável de diferenças culturais importadas, mas, em
contrapartida, também confortou algumas hierarquias estabelecidas
no momento da criação do Estado.

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VII
Carroça vazia e carroça cheia

Diálogo de surdos

Em 1952, o primeiro-ministro israelense, David Ben-Gurion, se


encontrou com o rabino Avrohom Yeshaya Karelitz, conhecido pelo
nome de Hazon Ish (“homem de visão”). Esse encontro histórico ficou
gravado nos anais israelenses como o amigável diálogo de surdos que
se instaurou entre os dois homens. O dirigente do “Estado dos judeus”
perguntou ao chefe dos ortodoxos “tementes a Deus” como religiosos
e laicos conviveriam sem atritos na nova soberania. O rabino cheio de
sabedoria, que não era sionista e não considerava de forma alguma
Israel como um Estado judeu, tomou como exemplo o camelo no
tratado Sanhedrin do Talmude da Babilônia e respondeu que,
logicamente, em um desfiladeiro estreito, a carroça vazia deve ceder
espaço à carroça cheia: ou seja, o sionismo laico, como uma cultura
oca, deve abrir espaço para o judaísmo, que está carregado de
conteúdo. Ben-Gurion se zangou e perguntou se os mandamentos de
colonização do país, de trabalho na terra e de proteção das fronteiras
não constituíam, aos olhos do rabino, uma missão de cultura judaica;
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e acrescentou que os laicos, representando a maioria, têm o domínio
do Estado. O rabino respondeu que, para aqueles que estavam prontos
a dar sua vida aos mandamentos divinos, a opinião da maioria e os
atos do soberano não tinham relevância.
Com o recuo do tempo, não há dúvida de que Hazon Ish tinha
razão. Diante da carroça cheia da religião judaica, a do judaísmo laico
estava vazia e assim permaneceu. Quanto mais se aprofunda a
questão, mais se reconhece que não existe bagagem cultural judaica
além da religiosa. É uma das contradições profundas do sionismo e,
também, a razão de sua obsequiosidade histórica constante em
relação ao universo da tradição.
Em 1952, a sutileza do rabino não podia ainda perceber que a
empreitada sionista estava criando uma carroça de cultura israelense
específica cuja existência o próprio sionismo teve dificuldade em
reconhecer. Desprezando a lógica, o sionismo se obstina de fato a
chamá-la de “cultura judaica laica”, sabendo ao mesmo tempo que ela
não é de forma alguma compartilhada pelos judeus no mundo. Não há
dúvida de que inúmeros adeptos compartilham a cultura judaica de
Hazon Ish.

A carroça sionista
Os fundamentos da criação do Estado de Israel foram instaurados em
sua essência por socialistas nacionalistas do Leste Europeu. Laicos,
eles haviam se rebelado contra o judaísmo, mas tiveram que adotar
de uma única vez marcadores centrais da tradição judaica, da qual a

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ética comunitária era parte intrínseca. Tais marcadores eram
admitidos por todas as correntes do sionismo, tanto de esquerda como
de direita. As complexas causas desse fenômeno ideológico e mental
estão fundamentadas nas características e nas finalidades do
sionismo, do final do século XIX até hoje.
Para justificar a colonização na Palestina, o sionismo invocou a
Bíblia, apresentada como um título de propriedade jurídica da terra.
Em seguida desenhou o passado das inúmeras comunidades judaicas,
não como afrescos de grupos convertidos ao judaísmo na Ásia, na
Europa e na África, mas como retrato da história linear de um povo-
raça, pretensamente exilado pela força de sua terra natal, para a qual,
por 2 mil anos, ansiava por retornar. O sionismo laico interiorizou
profundamente o mito religioso da descendência de Abraão e a lenda
cristã do povo amaldiçoado e errante, cujos pecados levaram ao
exílio. A partir dessas duas matrizes, ele conseguiu formar a imagem
de uma etnia cujo caráter claramente fictício (para se convencer
disto, basta observar a diversidade de aparências dos israelenses) em
nada impediu sua eficácia.
Ao mesmo tempo e sem se desembaraçar da contradição, a
empreitada sionista quis criar uma cultura em completa ruptura com
o passado do “exílio”. Desde os anos 1940, uma forma de elitismo
israelense específico prosperou no yishuv (assentamento judeu na
Terra de Israel) e se fortaleceu até se tornar hegemônico nas décadas
de 1950-60. Era preciso então ser israelense ou, mais especificamente,
hebreu, enquanto a velha tradição judaica era um objeto de desprezo
expresso em meias palavras e com muita hipocrisia.

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Um exemplo disso era a propensão a substituir os “nomes judaicos
do exílio” por denominações hebraicas, hábito que floresceu entre as
elites culturais e a juventude dos meios favorecidos.
A “hebraização” não se aplicava apenas aos nomes patronímicos;
pais folheavam febrilmente a Bíblia para achar nomes raros e
vigorosos que se diferenciavam dos julgados fora de uso, tais como
Moshe, Yaakov, David ou Shlomo. Os nomes “bizarros” dos rabinos
talmúdicos da Antiguidade eram também vivamente recusados: eles
“cheiravam” muito à escola talmúdica, à Yeshivá[22] e ao Shtetl. Os
nomes cananeus, que nunca haviam sido afiliados à tradição judaica,
eram particularmente atraentes.
Foi assim que todos os dirigentes de Israel — e, antes deles, seus
pais pioneiros — abandonaram os patrônimos que os judeus tinham
adotado desde os primeiros recenseamentos modernos da população:
David Grün passou a ser conhecido como Ben-Gurion; Szymon Perski
se fez chamar Shimon Peres; Yitzhak Rabin nasceu Rubitzov; Ehud
Barak havia sido Brog; Ariel Scheinermann se tornou Sharon; o pai de
Benjamin Netanyahu nasceu Mileikowsky; Shaul Mofaz, quando
pequeno, se chamava Shahram Mofazzakar. Os antigos patrônimos
evocavam os judeus fracos, levados ao massacre e aos campos de
extermínio, ou ainda aqueles que imitavam servilmente a civilização
muçulmana. Em Israel, convinha criar um homem novo, um hebreu
musculoso e cheio de vigor, tanto físico quanto espiritual.
Em grande escala, a “identidade hebraica”, forjada antes mesmo
da criação do Estado, serviu também como diferenciação cultural da
massa dos imigrados, que, em Israel, constituíam as classes populares

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inferiores. A “hebraicidade” era principalmente uma característica das
elites culturais, políticas e militares; era ela que dava o tom na arena
pública, enquanto, nesses mesmos anos, os cidadãos de Israel não
eram tão israelenses. A maior parte, de origem iídiche ou magrebina,
dificilmente falava o hebraico moderno, e a nova cultura estava fora
de seu alcance. Parte deles havia se laicizado na Europa, mas
vestígios de cultura e de tradição judaica, iídiche e árabe lhes
permitiam suportar suas difíceis condições de vida de imigrados.

O aparelho educativo e o aparelho militar


Enquanto isso, as elites prosseguiam energicamente com a produção e
a difusão de uma nova cultura, tendo conquistado sua hegemonia,
como se viu anteriormente, por meio da relação entre forças políticas
e intelectuais. Elas dispunham de duas alavancas conjuntas em uma
época na qual a televisão ainda não existia: o sistema de educação e o
aparelho militar (e, em pequena proporção, a imprensa escrita). Em
todas as escolas, os professores ensinavam seus alunos a falar e
escrever em hebraico e ensinavam a Bíblia como um livro de história
heroica e laica. Desde antes da criação do Estado, a fórmula “da
Bíblia ao Palmach”[23] estava difundida. Em outras palavras, o que
realmente importava no ensino de história eram a soberania hebraica
imaginária da Antiguidade e a soberania israelense real
contemporânea. O heroísmo antigo e a audácia contemporânea eram
as marcas da identidade do sabra viril. O judaísmo fraco, que ficou
passivo em meio ao desenvolvimento histórico, era percebido como

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uma estreita passarela vacilante em direção ao renascimento
nacional.
O serviço militar obrigatório foi igualmente importante.
Paralelamente ao ensino, ele constituiu um poderoso cadinho, criador
de identidade e de culturas originais. O contato mais intenso das
elites com a massa de imigrados aconteceu por meio desse aparelho
hierárquico. Aquele que antes de ser alistado no exército falava com
seus pais uma língua estrangeira desprezada (o iídiche ou o árabe) se
via reconhecido, depois de dois ou três anos passados no Tzahal,[24]
não apenas como um bom soldado, mas também como bom
israelense. Então ele começava a ensinar a seus pais a língua do
Estado e, com isso, a lhes instilar a vergonha em relação à sua antiga
cultura, desprovida de vigor militar e de majestade nacional. A
situação de fortaleza sitiada na qual se encontrou Israel e suas vitórias
conquistadas nas guerras de 1948, 1956 e 1967 acrescentaram
esplendor ao israeli e santificaram o culto da força, assim como o
poder das elites antigas.
A cultura israelense se solidificou com uma rapidez que merece ser
destacada. Enquanto em outros Estados a cultura nacional foi
moldada após um processo relativamente longo, em Israel, devido à
sua natureza integral de sociedade de imigração, uma língua e uma
cultura inteiramente novas levaram duas gerações para ser
instauradas e transmitidas. Nem toda a população foi inserida nessa
novidade cultural de forma igualitária, e, como consequência,
subculturas subsistiram e perduram ainda hoje, mas as conquistas da
empreitada sionista no campo cultural, semelhantes às realizações nos

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âmbitos agrícolas e militares, não têm precedentes.

Uma cultura, uma pátria


A literatura, a poesia, o teatro e o cinema fizeram eclodir criações
originais e de grande valor. A rejeição e o escárnio mostrados em
relação às tradições culturais anteriores não impediram o israelizado
de interiorizar secretamente uma parte não negligenciável de sua
transmissão. Novas tonalidades musicais que se afastavam das do
canto iídiche e das melodias árabes surgiram, além de crescer o
interesse por melodias russas que fizeram vibrar os corações dos
jovens sabras. Em todos os encontros públicos, cantar em grupo
substituiu em muito a antiga reza. Os israelenses, antes da era da
globalização, adotaram hábitos de se vestir bem diferentes daqueles
dos judeus do Leste Europeu ou da África do Norte. Eles adaptaram
suas vestimentas ao clima local, de modo notavelmente semelhante
ao costume colonial típico difundido no império britânico — com
exceção do chapéu, o kova tembel, característico do colono sabra. Na
cultura cotidiana dos anos 1970, o hebraico israelense, com todas as
suas variantes de pronúncia, havia se tornado a língua comum; os
hábitos culinários — muitos emprestados dos palestinos — haviam se
homogeneizado, e à primeira vista a empreitada cultural nacional
parecia ter terminado.
O sionismo conseguiu dar forma a um novo povo dotado de uma
língua nova, que se diferenciou de práticas judaicas ancestrais e de
concepções antinacionais às quais essas últimas se referiam. Esse povo

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possuía agora uma pátria, mesmo não sabendo precisamente quais
eram suas fronteiras. Dispunha igualmente de uma cultura pública
uniforme, ainda que não medisse sempre até que ponto ela não era
judaica.
As vitórias conquistadas pela cultura israelense e pela língua
hebraica foram acompanhadas, a partir da metade dos anos 1970, por
uma espécie de flexibilização e de descanso. Os diversos componentes
culturais do passado iídiche ou árabe deixaram de representar uma
ameaça contra os dispositivos de poderes nacionais, para logo ser
percebidos como expressões folclóricas inofensivas, aceitáveis,
podendo ser até acarinhadas com prudência. A nostalgia da beleza do
iídiche se tornou popular e legítima; as melodias árabes foram cada
vez mais recicladas na música israelense em refrãos orientais ou
mediterrâneos.
Mesmo que o genocídio dos judeus da Europa, submissos e fracos
(por certo tempo, eles foram ridicularizados em Israel, sendo
chamados de “Sabões” ou ainda de “gado para o massacre”), episódio
classificado nos degraus mais baixos da hierarquia da memória
nacional, foi retirado desta posição após a vitória de 1967 para ser
instalado em um novo lugar de honra. Os motivos dessa mudança na
edificação da lembrança eram, no caso, mais complexos.

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VIII
Lembrar-se de todas as vítimas

Nós, judeus da Polônia

Em abril de 1944, o poeta polonês Julian Tuwim pronunciou o


lamento Nós, judeus da Polônia…, que se iniciava assim: “Se eu
precisasse ancorar minha nacionalidade, ou melhor, meu sentimento
nacional, diria que sou polonês, e isso por razões bem simples, quase
primitivas, a maior parte racional, mas sem ingredientes ‘místicos’.
Ser polonês não é uma honra, nem uma glória, nem um direito. É
como respirar. Eu ainda não encontrei um homem que ficasse
orgulhoso por respirar. Sou polonês pois nasci na Polônia, ali cresci,
fui educado, estudei, porque na Polônia eu fui feliz e infeliz. Porque,
do meu exílio, eu quero justamente voltar para a Polônia, mesmo que
me prometam prazeres paradisíacos em outro lugar… Em resposta a
isso, já escuto vozes ‘Bem, se você é polonês, então por que este Nós,
judeus?’. E eu tenho a honra de responder: ‘Por causa do sangue’.
‘Quer dizer, a doutrina da raça?’ ‘Não, absolutamente. Não a doutrina
da raça, mas precisamente o contrário. Há dois tipos de sangue: o que
está nas veias e aquele que corre das veias de fora’”.
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Em 1944, Tuwim se tornou judeu por causa do sangue derramado.
Antes da Segunda Guerra Mundial, o poeta não renegava sua origem
judaica — mesmo que preferisse ser visto como polonês — e sentia
desgosto pelos racistas sionistas e pelos judeófobos católicos que
queriam negar sua identidade nacional e enviá-lo à Palestina. E,
embora no final da guerra ele tenha preferido voltar à sua pátria, o
inferno da morte industrializada em que havia submergido a Europa o
levou a se definir como judeu. E havia uma boa razão para isso:
milhões de homens assassinados por causa de sua origem não podiam
deixar sua terra ou modificar sua origem. Por causa de Hitler, eles
permaneceram judeus para sempre.
Eu me lembro de ter lido cedo na vida o lamento de Tuwim, que
havia contribuído para reforçar minha identidade judaica. Tinha
também escolhido, na mesma época, fazer minha a afirmação de Ilya
Ehrenburg (escritor e jornalista ucraniano) no fim da Segunda Guerra
Mundial, segundo a qual ele permaneceria judeu enquanto subsistisse
no planeta o último antissemita. No entanto, ao longo dos anos e da
radicalização da política israelense e, sobretudo, à luz de mudanças
ocorridas na sua política de memória, a segurança na definição de
minha identidade não deixou de trincar.

Vítimas exclusivas
Um incidente ilustra o surgimento dessas fissuras: quando eu era
estudante de doutorado em Paris, na École des Hautes Études en
Sciences Sociales (EHESS),[25] foi organizado um colóquio

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universitário, o primeiro na França, sobre o nazismo e o extermínio.
Os representantes da comunidade judaica que participavam da
preparação do colóquio e de seu financiamento ficaram alarmados
com o convite feito a uma conferencista cigana e se opuseram
convictamente à sua vinda. Depois de consideráveis esforços e graças
à intervenção ativa do historiador Pierre Vidal-Naquet, a conferência
da pesquisadora “não judia” foi autorizada. Fiquei enojado e muito
espantado com o incidente, pois, no início dos anos 1980, eu ainda
não conhecia a reivindicação intransigente pela exclusividade judaica
do crime nazista.
Em seguida, depois de várias ocorrências, aconteceu de eu
perguntar, com frequência e em diversas circunstâncias, em jantares
na cidade, aulas na universidade e discussões pontuais: “Quantas
pessoas os nazistas assassinaram nos campos de concentração e de
extermínio e nos outros massacres não convencionais que
perpetraram?”. Ouvia sempre a mesma resposta, sem exceção: 6
milhões. Quando eu explicitava que minha pergunta era sobre o
número de pessoas em geral e não apenas sobre o número de judeus,
meus interlocutores demonstravam forte surpresa, e era raro que
alguém soubesse a resposta.
Quem assistiu a Noite e neblina, o longa-metragem de Alain
Resnais produzido em 1955, poderia responder que foram 11 milhões
de mortos. Mas esse número das vítimas “não convencionais” está
apagado do disco rígido da memória coletiva ocidental. De fato,
talvez tenha havido 10 milhões de vítimas (e não 11 milhões), das
quais 5 milhões eram judeus (e não 6 milhões), como dá a entender

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Raul Hilberg, pesquisador do Holocausto cuja obra A destruição dos
judeus europeus é referência. O essencial não está nessas diferenças de
números; o que importa aqui é saber por que o número “total”
desapareceu completamente e subsiste como único o número “judeu”.
O filme de Alain Resnais — muito bem realizado, aliás — tem
como único ponto fraco mencionar os judeus apenas duas vezes. O
relato focaliza um aparelho de extermínio nazista cujas vítimas
apresentadas são principalmente resistentes, prisioneiros políticos e
prisioneiros de guerra soviéticos. Baseando-se nesses relatos, os
espectadores não podem, infelizmente, aprender nada sobre a
natureza da demonização e da obsessão nazista contra o judeu. O fato
de a metade das vítimas “não convencionais” ter sido marcada como
judias pelos carrascos tem grande importância para compreender a
empreitada do ódio e do extermínio durante a Segunda Guerra.
Mesmo que muitas dessas vítimas “prioritárias” não se considerassem
judias mas fizessem questão de assumir-se francesas, holandesas,
polonesas ou alemãs, todas eram conduzidas para o massacre depois
de terem sido identificadas por seus assassinos como pertencentes ao
povo-raça judeu. Os diálogos censurados aparecem então como uma
fraqueza considerável no filme de Resnais.
Esse defeito do diretor é compensado, no entanto, pela audácia
que ele teve ao exibir o quepe de um guarda francês em um campo de
concentração: dessa forma ele apresentou a realidade desconfortável
dos anos 1950, quando ainda havia em demasia franceses que tinham
colaborado com a ocupação nazista, o que exigia uma certa coragem
intelectual, que, infelizmente, a censura não deixou passar.

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Em 1985, ou seja, precisamente trinta anos depois de Noite e
neblina, estreou o filme arrasador de outro diretor francês: Shoah,[26]
de Claude Lanzmann, que rapidamente adquiriu o status de ícone da
memória do genocídio na cultura cinematográfica do final do século
XX. Deve-se julgar com rigor o diretor pelo fato de ter, em seu tempo,
aceitado o apoio direto do governo israelense? Deve-se, além disso,
ignorar que os camponeses poloneses, incultos e miseráveis, às vezes
parecem tão culpados quanto os nazistas alemães cultos? Esses traços
de legalidade, de continuidade e de unidade delineados entre eles
constituem uma deformação histórica.
Todavia, em um filme francês de nove horas e meia intitulado
Shoah, é bem mais difícil desculpar o fato de que nem um trem sequer
consta como tendo saído da França! Nem mesmo a relativa
indiferença da maioria dos habitantes da Cidade Luz — entre eles,
intelectuais que matavam o tempo no Café de Flore ou no Deux
Magots —, enquanto crianças judias eram levadas ao Velódromo de
Inverno, em julho de 1942. O filme cult francês apagou
completamente o papel histórico do regime de Vichy,[27] o que
evidentemente facilitou sua ascensão à memória emblemática na
França e no mundo ocidental. Muitos se satisfaziam com a ideia de
que a indústria da morte era organizada lá, no leste longínquo,
antissemita e cinzento, entre os camponeses católicos decadentes, e
não na bela Europa, esclarecida e refinada.
Como espectador israelense da obra de um diretor que se define
judeu, tenho ainda maior dificuldade em aceitar que, ao longo de um
filme sobre a memória, tão apegado aos detalhes, não sejam nunca

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evocadas outras vítimas além dos judeus nessa gigante indústria da
morte. Sendo assim, embora a maior parte do filme tenha sido
gravada na Polônia, deixa-se o espectador na ignorância de que 5
milhões de poloneses foram assassinados ali: 2,5 milhões de origem
judaica e 2,5 milhões de católicos. O campo de Auschwitz ter sido
construído, a princípio, para prisioneiros poloneses não judeus não
mereceu, tampouco, destaque em Shoah. Não é de espantar que o
presidente americano, Barack Obama no caso, com ar satisfeito, tenha
podido falar de um campo de extermínio polonês.
Com certeza, quase toda a população de poloneses judeus foi
erradicada da Polônia; foram incinerados ou enterrados lá, enquanto
a maioria dos poloneses católicos sobreviveu à guerra. Depara-se,
portanto, com uma desigualdade significativa quando se mede a
disparidade sinistra entre os mortos e os vivos. Mas, ao evocarem-se
proporções, o número de romas — indivíduos de povos ciganos —
assassinados no conjunto de suas comunidades se revela muito
próximo do número de vítimas judias; no entanto, não coube
mencioná-los em Shoah, de Lanzmann.
O diretor francês não foi, infelizmente, o único agenciador a fazer
uma seleção “étnica” ao tentar reconstruir a memória das vítimas:
alguns o antecederam, muitos o seguiram. Assim, Elie Wiesel, escritor
judeu sobrevivente dos campos de concentração nazistas, laureado
com o prêmio Nobel da Paz por ter tornado eterna a exclusividade da
morte judia, se cala em um silêncio ensurdecedor diante da morte dos
outros.
A partir do último quarto do século XX, a lembrança de quase

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todas as vítimas que não haviam sido marcadas pelos nazistas como
“semitas” desapareceu. O crime industrial se tornou uma tragédia
exclusivamente judaica. A memória ocidental do fenômeno
concentracional e do extermínio nazistas se desvinculou das outras
vítimas — ciganos, resistentes e oponentes, comunistas e socialistas,
testemunhas de Jeová, intelectuais poloneses, comissários e oficiais
soviéticos etc. Com exceção relativa dos homossexuais, todos aqueles
que foram exterminados pelos nazistas simultaneamente aos judeus e
seus descendentes, assassinados sistematicamente, foram também
apagados das redes hegemônicas da memória. Por que isso aconteceu
e como a edificação dessa nova lembrança influenciou as
características da identidade judaica atual?

Evolução da memória
No final dos anos 1940 e ao longo das décadas de 1950 e 1960, a
lembrança vergonhosa do extermínio dos judeus permaneceu à
margem da cultura e do pensamento no Ocidente. Em Israel, apesar
do processo de Eichmann,[28] o genocídio não figurava nem mesmo
nos programas escolares até 1970. O assunto permanecia muito
impopular nas instituições judaicas do mundo, que de maneira
prudente não o abordavam por várias razões — mas, na pressa,
mencionarei apenas duas.
A primeira razão eram os caprichos da história mental:
imediatamente após o término da guerra, aquele que escapou dos
campos de concentração não tinha uma boa imagem junto ao público.

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Segundo um preconceito cruel da época, se tal pessoa tinha
conseguido sobreviver ao inferno, fora, provavelmente, à custa de
outras que haviam sido assassinadas. Os nazistas, antes de reduzir os
homens a pó, se esforçavam em fazer deles homens de pó, que
haviam perdido todo senso de solidariedade humana. Isso vinha
confirmar a filosofia darwinista. Nessa empreitada de desumanização,
eles instigavam os prisioneiros uns contra os outros, encorajando
roubos e ridicularizando ataques físicos. Os guardas brutos e os
kapos[29] se deleitavam com a ausência de solidariedade e com a
bestialidade generalizada. De fato, no início dos anos 1950,
sobreviventes dos campos se acusaram mutuamente de
comportamentos indignos nesse universo ignóbil. Era quase
impossível entrevistar os que haviam escapado e obter deles
testemunhos vocais ou visuais sobre suas experiências; muitos tinham
vergonha de ter sobrevivido.
Uma segunda razão para esse longo silêncio diz respeito à política
internacional: durante a Guerra Fria, o Ocidente se mobilizou
fortemente para reintegrar a Alemanha Ociental à família
“democrática” dos povos. Ora acontecia de as elites do país, nem
socialistas nem comunistas, fazerem parte da geração que havia
adulado Hitler, e julgou-se preferível adoçar esse passado dando uma
versão dominante e prudente dos fatos. Inúmeros filmes americanos
da época deram à Wehrmacht[30] uma imagem branca e normal,
vários livros foram dedicados à resistência alemã contra os nazistas e
à simpatia clandestina da qual ela havia se beneficiado. Aqueles que,
“de maneira irresponsável”, ousassem infringir as regras desse jogo

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cínico e seletivo da memória, se encontravam, sobretudo, entre os
escritores e artistas da esquerda política.
A partir do final dos anos 1960, a relação com o horror absoluto
começou a evoluir lentamente. A Guerra Fria conheceu novas fases, e
a República Federal Alemã, depois de ter pago somas de dinheiro a
Israel e indenizado os sobreviventes, estava doravante bem integrada
na cultura política ocidental e no dispositivo militar da Otan. Israel
também havia se tornado, na mesma época, o parceiro totalmente fiel
da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos no Oriente Médio.
A guerra de 1967 também desempenhou um papel nessa virada. A
vitória “relâmpago” da Tzahal apagou a vergonha que acompanhara
as elites israelenses desde a criação do Estado. Se, até então, o “gado”
levado ao massacre havia figurado como contramodelo à formação do
sabra nascente, a estratégia de representação da destruição do
passado ia de agora em diante se deparar com uma metamorfose.
Israel se tornou uma potência, pequena, com certeza, mas forte,
dominando outro povo a quem impõe uma ocupação militar
prolongada e brutal. A vítima judia, ontem dissimulada por sua
fraqueza, vê a si mesma magnificada para culminar no martírio judeu.
Nas crônicas, os atos de heroísmo e de resistência foram um pouco
minorados para dar o maior lugar aos judeus assassinados no
massacre histórico, que não poderiam ser colocados no mesmo plano
que as vítimas de outros crimes históricos. O lugar marginal que o
judeocídio tinha ocupado até então na lembrança da civilização
“judaico-cristã” era evidentemente intolerável. Importava, no plano
moral, que ele fosse reconhecido como o elemento central da relação

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que a Europa mantinha com a Segunda Guerra Mundial. No entanto,
era preciso muito mais para a nova política sionista e pseudojudaica:
não lhe bastava que a lembrança das vítimas fosse gravada na
consciência do Ocidente. Esta política reivindiva a especificidade, a
exclusividade e a propriedade nacional de todo o sofrimento. É deste
período que data o que é oportunamente denominado “indústria da
Shoah”, cujo objetivo é maximizar o passado doloroso a fim de
acumular um capital de prestígio, mas também econômico.
Todas as outras vítimas foram então afastadas, e o genocídio se
tornou uma exclusividade judaica; toda a comparação com o
extermínio de outro povo foi doravante proibida. Quando os
descendentes armênios pediram na América o reconhecimento do dia
do massacre feito pelos turcos como uma data a ser lembrada, o lobby
pró-sionista se juntou a esses últimos para tentar impedir. Todos os
crimes passados e presentes eram necessariamente minúsculos diante
do gigantesco massacre dos judeus durante a Segunda Guerra
Mundial. As vítimas nascidas judias não se assemelhavam a nenhuma
outra — assim é para os supliciados de A lista de Schindler, de Steven
Spielberg, e de Shoah, de Claude Lanzmann.
A vontade de Hitler de excluir os judeus da humanidade “normal”
encontrou uma forma de confirmação perversa na política memorial
adotada por Israel e por seus partidários no conjunto do mundo
ocidental: a retórica sionista insistiu cada vez mais na especificidade
eterna da vítima e não do carrasco, do judeu e não do nazista. Há
excesso de carrascos como Hitler, enquanto nunca houve vítimas
como os judeus e não haverá nunca mais! O presidente egípcio Gamal

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Abdel Nasser foi, em seu tempo, qualificado como novo Hitler, antes
de ser substituído pelo palestino Yasser Arafat, depois pelo iraquiano
Saddam Hussein e, por fim, pelo iraniano Ahmadinejad. Segundo essa
construção da lembrança, a singularidade da história do continente
europeu, depois do Iluminismo, não se encontra nos organizadores
nazistas da indústria da morte, mas unicamente nos mortos e
perseguidos de origem judaica.[31]
O número de descendentes dos sobreviventes do extermínio não
deixou de crescer a partir dos anos 1970: desde então todo mundo
quis fazer parte do grupo dos que escaparam. Inúmeros americanos de
origem judaica que não viveram na Europa durante a Segunda Guerra
Mundial nem sequer manifestaram solidariedade efetiva às vítimas no
tempo do massacre se declararam herdeiros diretos dos sobreviventes
da obra de morte. Filhos judeus do Iraque e da África do Norte
chegaram a se considerar parte integrante do campo crescente das
vítimas do nazismo. Em Israel, surgiu, nesses mesmos anos, a fórmula
da “segunda geração da Shoah” e, em seguida, a da “terceira
geração”; o capital simbólico do sofrimento tornou-se um legado,
assim como todo capital.
A velha identidade religiosa do povo “eleito” pouco a pouco deu
lugar ao culto laico moderno, muito eficaz não apenas para “vítima
eleita”, mas também para “vítima exclusiva”. Esse eixo identitário da
“judeidade laica”, em sua dimensão moral etnocêntrica, permite a
muitos marcar sua autoidentificação como judeus, mas logo
retornarei a esse ponto. Em meio a outros fatores, isso também
contribuiu para o mal-estar crescente que sinto em me definir como

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judeu laico.

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IX
Descansar depois de ter matado
um turco

As perguntas de uma criança

Uma história de humor iídiche bastante conhecida, cheia de


autoderrisão, açoita o caráter intracomunitário da moral judaica: uma
mãe judia acompanha seu filho mobilizado no exército do czar
durante a Guerra da Crimeia. No momento de deixá-lo, ela murmura
no ouvido dele:
— Mate um turco e em seguida não se esqueça de sentar para
comer.
— Sim, mamãe — responde o filho.
— E, sobretudo — acrescenta a mãe —, trate de descansar depois
de cada ataque em que matar turcos!
— Certamente — responde o jovem soldado, que, depois de alguns
segundos de hesitação, indaga: — E se o turco me matar?
— Por que ele o mataria? Você não fez nada para ele! — diz a
mãe com os olhos esbugalhados.

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Em 1999, quando eu estava em São Francisco, na casa de parentes
longínquos descendentes do povo iídiche que haviam me convidado
para o Sêder (jantar de Pêssach, a Páscoa judaica), aconteceu uma
coisa estranha. A maioria dos convidados sendo anglófonos, coube a
mim ler a Hagadá,[32] coisa que eu sempre evitei fazer, e depois
traduzir o texto em voz alta para os americanos. Suscita-se o interesse
das crianças para o Sêder de Pêssach; o relato da Hagadá deve instruir
e transmitir a elas uma soma de “lembranças” judaicas. Levei a sério
meu papel de instrutor, insistindo na mensagem de liberdade nos
relatos históricos. Um alegre ambiente reinava, entre as severas
pragas do Egito e o consumo de vinhos finos.
No caminho de volta, na penumbra do meu carro, minha filha,
com cinco anos de idade na época, fez perguntas sobre as dez pragas
enviadas por Deus aos egípcios malvados: “O sangue corria das
torneiras ou apenas dos rios?”, “Bebia-se de verdade?”, “O que as rãs
fizeram às pessoas?”, “Os mosquitos eram grandes ou pequenos?”.
Embora meio adormecida, a criança conseguiu abordar em suas
perguntas a décima praga, a mais atormentadora do relato da saída
do Egito: “Quem eram os ‘primogênitos’?”, “Só morreram os meninos
que nasceram primeiro ou as meninas também?”. Minha resposta lhe
assegurava que apenas os meninos estavam envolvidos, e isso a
acalmou, seu silêncio me fazendo acreditar que ela havia adormecido.
Mas, de repente, uma última pergunta chocante brotou do banco
traseiro: “Será que Deus também matou os bebezinhos quando era o
primeiro menino da família?”.
O que responder? Eu não iria explicar à minha filha que isto dizia

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respeito apenas aos habitantes do Egito, e não às “nossas” crianças.
Efetivamente, mesmo que eu ainda me autodenominasse judeu, nunca
fui um etnocêntrico cego e hermético. Tampouco tentei invocar o
pretexto da vingança “justificada”, pois custa-me crer que o próprio
Satanás teria sido capaz de inventar uma vingança que se traduzisse
em assassinato voluntário de criancinhas. Não podia nem lhe dizer
que se tratava de uma narração objetiva de uma ação divina, diante
da qual permanecemos neutros. O que ela sabia, afinal, sobre
objetividade e neutralidade? E isso depois de, duas horas antes, ela
ter ouvido o canto poderoso com o qual havíamos agradecido a Deus
pela mesma praga da morte dos primogênitos e de ela mesma ter
murmurado em voz alta, perto de mim: “Isso nos teria bastado”.
Quebrei a cabeça tentando encontrar outras respostas retardadoras
caso o interrogatório recomeçasse no dia seguinte, mas fiquei
bloqueado pela apreensão. O que aconteceria se ela quisesse que
lêssemos de novo a Hagadá e quando chegássemos à súplica de
vingança dirigida a Deus, “Derrama tua ira sobre os povos que não te
conhecem e aniquila-os abaixo dos céus”?
A compilação das coletâneas chamada Hagadá de Pêssach ocupou
um lugar central na vida cultural judaica, e a primeira versão de que
se dispõe data do século XII. Não se sabe precisamente quando foi
feito o pedido explícito de extermínio de todos “os povos” que não
acreditavam no Deus dos judeus e que ousaram atacar Israel. Sabe-se,
porém, que na Idade Média padres judeófobos conheciam esse texto e
se serviam dele para inflamar os espíritos contra os hereges assassinos
de Jesus, incitando-os à vingança por meio da difusão de atrozes

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acusações de crimes rituais. É bem sabido que uma perigosa ligação
entre o sangue das crianças e as matzóts (o pão ázimo da Páscoa
judaica) foi usado como arma popular por um número de
provocadores.
Eu suponho que minhas duas avós e meu avô ainda tenham
celebrado o Sêder de Pêssach quando eram prisioneiros no Gueto de
Lodz,[33] antes de morrer sufocados nesses caminhões que
funcionavam mal e deram lugar às câmaras de gás, mais eficazes. Não
sei se em suas rezas meus avós chegaram até a frase assustadora, mas
tenho certeza de que o mundo é hoje cheio de indulgência com
relação a elas (assim como eu mesmo sou). Pode-se compreender que
os fracos e perseguidos almejam vingança sem justificar todos os seus
atos, ou todas as besteiras que saem de suas bocas. Mas o que dizer
dos intelectuais “judeus laicos” de Paris, Londres ou Nova York, que
hoje em dia leem a Hagadá no entusiasmo ou no contentamento de si
sem suprimir as afrontas em relação aos goyim? E pergunta ainda
mais espinhosa: como considerar o fato de essa frase desastrada ser
pronunciada por pilotos israelenses do céu do Oriente Médio ou pelos
colonos armados patrulhando a proximidade das cidades árabes, sem
defesa, na Cisjordânia ocupada?

Da superioridade moral judaica


Alguns daqueles que, independentemente da crença consoladora em
um Deus, se dizem de novo judeus laicos invocam hoje a excelência
da ética judaica. Durante séculos, os judeus foram estigmatizados por

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sua moral degradada de usurários sem escrúpulos ou de comerciantes
trapaceiros (as obras de William Shakespeare ou de Charles Dickens
não são exceção). Após o choque causado pelo genocídio, as
concepções antijudaicas mudaram radicalmente. Diversos círculos de
intelectuais acentuaram um dado incontestável: grande parte de filhos
e filhas da burguesia não seguiu o caminho dos pais no que se refere
ao acúmulo de capital, mas ocupou, ao contrário, lugares de
pensadores e dirigentes do lado de oprimidos e explorados. Desde o
próprio Karl Marx, que dedicou sua vida ao proletariado industrial do
século XIX, passando por Leon Trótski e Rosa Luxemburg, Léon Blum,
até Howard Zinn e as centenas de jovens que se engajaram nas lutas
pela igualdade dos direitos dos negros nos Estados Unidos ou se
solidarizaram com os vietnamitas, inúmeros foram aqueles que,
vindos de famílias judaicas, se revoltaram e lutaram com afinco em
favor do advento da justiça e dos direitos sociais.
A imagem desse judeu voltou a ser aceita, hoje em dia, na Europa
filossemita e “judaico-cristã”. Procura-se doravante uma causalidade
inerente à presença maciça de descendentes judeus ao lado da cultura
e do progresso humano. Muitos logo viram a marca da antiga moral
judaica. As motivações dos revoltados contra a injustiça se
explicavam por uma educação judaica baseada em uma longa
tradição humanista, ao que parecia. Segundo essa abordagem, o
“povo” que deu ao mundo os dez mandamentos seguiu sua trajetória
específica entre os outros povos para iniciá-los nos princípios
sublimes dos profetas bíblicos. Julgou-se oportuno colocar em relevo
a filosofia religiosa do “diálogo” do austríaco Martin Buber e captar

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hoje, na mesma base, a teoria do “outro” na obra filosófica do francês
Emmanuel Levinas. Já faz algum tempo que certos intelectuais se
esforçam em creditar ao judaísmo uma ética superior, de amor ao
próximo, de solidariedade imanente com aquele que sofre e que é
oprimido.
No entanto, da mesma forma que no passado a má reputação dos
judeus repousava em mentirosas asserções fundamentais, a imagem
hoje à frente de uma superioridade moral judaica mostra um mito
improvisado e desprovido de um fundamento histórico; o que nem o
pensamento de Buber nem o de Levinas serão capazes de invalidar. A
tradição judaica repousou, essencialmente, sobre um caráter
intracomunitário. O defeito da moral universalista se encontrava,
certamente, em outras comunidades religiosas, mas foi sempre muito
apoiado entre os judeus por sua situação de isolamento em
decorrência das perseguições. O judaísmo modelou uma moral
etnorreligiosa particular e bem marcada durante vários séculos.

“Aquele que salva uma vida…”

Tem-se o costume de citar um versículo bíblico para demonstrar as


bases universais da moral judaica: “E quando o estrangeiro peregrinar
convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural entre vós
será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti
mesmo, pois estrangeiros fostes na terra do Egito” (Levítico, 19:33-
34). O termo “estrangeiro” (ger em hebraico) pode ser compreendido
como “novo habitante”; mas é provável que o sentido esteja

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relacionado exclusivamente com o imigrado submisso que adotou a
crença em Javé, do qual ele cumpre uma parte dos mandamentos. A
Bíblia proíbe expressamente a coexistência dos idólatras e dos adeptos
de Javé na Terra Prometida. O termo ger não se aplica nunca aos
cananeus ou aos filisteus não circuncisados.
No mesmo capítulo bíblico se encontra o célebre aforisma
“Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Levítico, 19:18), que o
Novo Testamento retomou (Mateus, 19:19; Marcos, 12:31; Romanos,
13:9). No entanto, poucos estão prontos a reconhecer e a sublinhar
que o versículo integral no texto javista estipula: “Não te vingarás,
nem guardarás rancor contra os filhos de teu povo. Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo”. Maimônides, o maior exegeta judeu de
todos os tempos, em sua obra Mishnê Torá interpretou a frase assim:
“Todo homem deve amar a todos aqueles de Israel como a si
próprio…”. Para o javismo, assim como para o judaísmo posterior,
esse princípio se refere àqueles que comungam da mesma fé, e não à
humanidade inteira.
Os espectadores emocionados pelo filme A lista de Schindler
compreenderam, no final, a declaração nobre quanto ao alemão que
salvou judeus: “Aquele que salva uma vida preserva o mundo inteiro”.
Quantos sabem hoje que, no Talmude da Babilônia, que pela lei
judaica sempre foi o texto determinante, está escrito: “Aquele que
salva a vida de um filho de Israel […] salva um mundo inteiro”
(tratado Sanhedrin, 37, 17). A retórica cosmética de Spielberg procede
de intenções louváveis que agradaram, mas o humanismo do filme de
Hollywood tem muito pouco a ver com a tradição judaica.

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Durante séculos, os judeus estudaram mais o Talmude que a
Bíblia. Com certeza, o Pentateuco era bem conhecido nas escolas
talmúdicas graças ao Parashat Hashavua (porção semanal da Torá,
lida publicamente a cada shabat), mas não havia debates sobre as
mensagens dos grandes profetas. Os aspectos universais da profecia
bíblica impregnaram mais a tradição cristã do que a tradição judaica.
A posição de desigualdade em relação ao “outro” não judeu não é,
todavia, sempre unívoca como aquela formulada, por exemplo, no
Talmude: “Chamam-no homem, e os povos do mundo não são
chamados homens” (Yevamot 51, 1). Não é, no entanto, por acaso
que Abraham Yitzhak Hacohem Kook — principal arquiteto da
religião judaica no século XX e primeiro grande rabino da
comunidade de colonos na Palestina antes da criação do Estado de
Israel — pode escrever em sua obra intitulada Luzes:

A diferença entre uma alma de Israel, com sua autenticidade, seus desejos

interiores, sua aspiração, sua qualidade e sua visão, e a alma de todos os não

judeus, em todos os níveis, é maior e mais profunda que a diferença entre a alma

de um homem e a de um animal; entre esses últimos, há apenas uma diferença

quantitativa, enquanto entre aqueles e os primeiros existe uma diferença

qualitativa específica.

Os escritos do rabino Kook servem ainda hoje como guia espiritual


para a comunidade dos colonos nacional-religiosos instalados nos
territórios ocupados.

Vocação universal?
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No Ocidente, os princípios éticos dos dez mandamentos expostos na
Bíblia se tornaram o bem comum de todos os crentes em um Deus
único. Eles surgiram no monte Sinai e foram consagrados pelas três
religiões ocidentais: o judaísmo, o cristianismo e o islã; e são
considerados o fundamento do monoteísmo tornado fé universal —
mas será preciso ver aí a base ética universal do judaísmo?
Neste mesmo lugar mitológico onde aparece Moisés, Deus se
engaja igualmente em exterminar todos os habitantes de Canaã para
dar livre lugar na Terra Prometida aos filhos de Israel. Assim, um
assassinato em massa é prometido três breves capítulos da Bíblia
depois dos dez mandamentos, particularmente o “Não matarás”: “O
meu anjo irá à frente de vocês e os fará chegar à terra dos amoraítas,
dos hititas, dos ferezeus, dos cananeus, dos heveus e dos jebuseus, e
eu os exterminarei” (Êxodo, 23:23). Ao longo da história, os judeus
conheceram a promessa, sua cruel concretização e, como crentes
consequentes, foram obrigados a santificar a lei divina cuja lógica não
podia ser contestada.
Essa tradição de genocídio javista foi transmitida, ao mesmo
tempo que os dez mandamentos, às duas outras crenças monoteístas
que encorajaram a eliminação dos idólatras que se recusavam
obstinadamente a reconhecer a superioridade de um deus único
onipotente. Apenas no século XVIII, com o Iluminismo, essas terríveis
prescrições foram criticadas. Foi preciso esperar que Jean Meslier,
Thomas Chubb, Voltaire e outros filósofos evidenciassem a moral
religiosa antiuniversal característica da Bíblia da qual se alimentaram
indiretamente todos aqueles — judeus, cristãos e muçulmanos — que

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reverenciaram o texto sagrado como um deus vivo.
Os descendentes dos judeus, em via de laicização, tiveram de
romper, à custa de duros esforços, com essa tradição ética egocêntrica
para aderir a uma moral mais universal. Embora alguns tenham
tomado consciência de que o sonho nunca se realizaria inteiramente,
tiveram que aderir aos princípios modernos de liberdade, igualdade e
fraternidade, supostamente destinados a se tornar um bem comum de
toda a humanidade. Sem a reviravolta induzida pelas Luzes, sem a
concepção universal dos direitos do homem e do cidadão e, em
seguida, dos direitos sociais, não se teriam visto emergir intelectuais e
dirigentes como Karl Marx, Leon Trótski, Rosa Luxemburg, Kurt
Eisner, Carlo Rosselli, Léon Blum, Otto Bauer, Pierre Mendès France,
Abraham Serfaty, Daniel Cohn-Bendit, Noam Chomsky, Daniel
Bensaïd, Naomi Klein e muitos outros, herdeiros próximos ou
distantes de uma tradição judaica.
Quanto mais essas personalidades se afastavam da tradição
religiosa judaica, mais, inversamente, formulavam uma concepção do
mundo humanista, mais queriam mudar as condições de vida de todos
os homens e não unicamente de seus correligionários, de sua
comunidade ou de sua nação. Essa problemática fica por ser
esclarecida e aprofundada: é um acaso que o universo da revolução,
do protesto, da reforma ou da utopia tenha atraído tantas
personalidades cujas origens provinham de um passado judeu?
A opressão exercida por civilizações dominantes sobre uma
minoria religiosa preparou o terreno para que, com o advento do
Iluminismo, uma parte dos oprimidos, em via de laicização,

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demonstrasse sua solidariedade em relação a todos os que sofrem.
Ademais, a judeofobia moderna, persistindo contra a vontade deles
em vê-los como judeus, reforçou sua aspiração a uma moral universal:
para nos liberar é preciso liberar todo mundo; para obter nossa
verdadeira liberdade, todos os homens, por princípio, devem ser
livres.
Um resto da tradição de esperança messiânica, fundamento da fé
judaica ancestral, pode continuar a ressoar para alguns, embora seja
difícil ter a confirmação disso. A sensibilidade judaica estava
impregnada de um desejo ardente de salvação religiosa. Após
perseguições e com o processo de laicização, ela aspirava vivamente à
revolução, ao advento de um mundo mais justo como sinônimo do
fim da história, dos sofrimentos e da opressão.
Durante várias gerações após o início da emancipação e enquanto
o vento da judeofobia continuava a soprar, um número de
descendentes judeus povoou os batalhões dos contestadores da ordem
estabelecida. Eles faziam parte dos “não conformistas” por excelência
dos tempos modernos. Contava-se uma presença importante de
intelectuais rebeldes, cujos pais provinham do universo cultural
judaico, o que não agradava de jeito algum aos conservadores e à
direita judeófoba.
Com o desaparecimento do antissemitismo político e com a
desvalorização da utopia no universo espiritual ocidental, esse
fenômeno evoluiu rapidamente. A perda de prestígio do
universalismo revolucionário consecutiva à revelação dos crimes
atrozes cometidos pelos regimes comunistas, mesmo que não tenha

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sido o único fator, foi infelizmente acompanhada pela dissolução dos
princípios de solidariedade humana. O número de intelectuais
motivados por uma consciência universal, filhos ou filhas de judeus
imigrados, prontos a se colocar sempre ao lado dos perseguidos,
regrediu singularmente, uma grande porção deles mostrando-se cada
vez mais conservadora. Alguns se aproximaram das tradições
religiosas judaicas, quando outros, mais numerosos, se tornaram
defensores entusiastas de todos os atos políticos de Israel no Oriente
Médio.
Qualquer um que tente estabelecer um vínculo entre moral judaica
e justiça social, entre tradição judaica e igualdade dos direitos
humanos, deverá se perguntar por que o mundo religioso judaico não
fez nascer quase nenhuma corrente doutrinária que lutasse contra as
violações dos direitos humanos. Hoje em dia, não se encontram
protestos vindos das instituições judaicas contra as graves injustiças
cometidas cotidianamente sob a ocupação israelense. Perceber-se-á,
com certeza, por parte de jovens rabinos reformistas, que marcas de
compaixão em relação ao sofrimento de outrem são exceção, mas as
comunidades judaicas solidamente organizadas nunca são
mobilizadas para apoiar os perseguidos não judeus. Os estudantes do
Talmude, cheios de energia, nunca se manifestaram contra a opressão
sofrida por outros: tais atitudes teriam se oposto totalmente à
mentalidade religiosa tradicional.
É preciso, ao mesmo tempo, cuidar para não assimilar o judaísmo
ao sionismo. O judaísmo se opôs com firmeza ao nacionalismo judaico
até o século XX e mesmo até a ascensão de Hitler. As organizações e

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as instituições judaicas, com o apoio maciço de seus membros,
recusavam a ideia da colonização na Terra Santa e, a fortiori, a
criação de um Estado que seria chamado de “Estado judeu”. Essa
oposição não resultava de uma identificação humanista com os
habitantes locais, pouco a pouco desenraizados de sua terra pelo
processo. Os grandes rabinos não eram guiados por imperativos
morais universais. Eles simplesmente compreenderam que o sionismo
representava, no final das contas, uma assimilação coletiva na
modernidade e que um culto feito ao solo nacional, expresso em uma
nova fé laica, vinha de fato suplantar a devoção divina.
A criação do Estado de Israel, seus triunfos e sua expansão
territorial acabaram por ganhar a grande maioria do campo religioso
que conheceu uma nacionalização radical acelerada. Grande parte dos
nacional-religiosos, assim como os ortodoxos nacionalistas, hoje
integra as mais etnocêntricas correntes da sociedade israelense. Eles
não tomaram esse caminho por causa da Bíblia ou do Talmude. Mas
as mensagens principais do livro sagrado e de seus comentários não
os imunizaram contra esse deslocamento em direção a um racismo
brutal, um desejo desenfreado por territórios e uma ausência gritante
de consideração pelos habitantes da Palestina.
Dito de outra forma, as dimensões egocêntricas que caracterizam a
moral judaica tradicional talvez não tenham responsabilidade direta
no desabamento antiliberal e antidemocrático a que se assiste hoje em
Israel, apesar de o terem tornado incontestavelmente possível e
continuarem a autorizá-lo. Quando uma tradição de ética
intracomunitária se une a um poder religioso, nacional, ou ao poder

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de um partido, ela sempre dá origem a terríveis injustiças contra
aqueles que não fazem parte da comunidade.

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X
Quem é judeu em Israel?

Não ser árabe…

Em 2011, no aeroporto de Tel Aviv, espero um voo para Londres. A


inspeção de segurança se prolonga, os passageiros ficam impacientes.
Sou, como todo mundo, pego pelo cansaço quando, de repente, meu
olhar é atraído por uma mulher sentada em um banco próximo dos
balcões; sua cabeça, e não seu rosto, está envolta por um lenço
tradicional (deliberada e erroneamente qualificado de “véu” pelas
mídias ocidentais). Ela está cercada por dois guardas israelenses que a
fizeram sair da fila. Adivinha-se que se trata de uma israelense “não
judia”. À minha volta, os judeus-israelenses parecem não vê-la, como
se fosse transparente — cena rotineira no embarque em Israel. Os
palestinos-israelenses estão sempre separados do resto dos passageiros
e têm direito a um interrogatório e uma inspeção específicos. A
justificativa natural dada é a ameaça de um atentado terrorista. O
fato de que os árabes israelenses não tenham sido treinados para os
atentados e que o terrorismo tenha diminuído nos últimos anos não
atenuou o nervosismos dos vigilantes: no Estado dos imigrantes
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judeus, os palestinos de origem permanecem suspeitos perpetuamente
controlados.
Eu me sentia mal e esbocei em sua direção um gesto de
impotência. Ela me olhou por um momento em um silêncio
questionador. Seu olhar não correspondia à descrição feita por meu
pai, mas ele falava também da tristeza, da ofensa e do temor. Ela me
sorriu, esboçando uma expressão de fatalismo. Alguns minutos mais
tarde, alcancei o balcão sem a mínima dificuldade. Quase fiquei com
vergonha e não ousei me virar em sua direção — compenso
escrevendo estas linhas. Tal encontro fugaz me confirmou: em Israel,
ser “judeu” é, antes de tudo, não ser árabe.
Desde a fundação do Estado de Israel, a laicização sionista teve de
se confrontar com uma pergunta cuja base nem ela própria nem seus
partidários no exterior ainda responderam: quem é judeu?

As leis religiosas e as leis cívicas


No judaísmo talmúdico não se fazia tal pergunta. Diferentemente da
Bíblia, que o caracterizava como aquele que crê em Deus, o judeu
permaneceu sempre aquele que nasceu de mãe judia ou que se
converteu segundo a lei e que cumpre os preceitos essenciais. Nos
tempos em que o ateísmo não existia, quando alguém abandonava o
judaísmo (e muitos eram os casos) para aderir a outra crença, ele
deixava de ser judeu aos olhos da comunidade. Com o advento da
laicidade, o judeu que deixasse de cumprir com os deveres religiosos
sem optar por outra crença suscitava a desolação dos seus, mas

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continuava a ser considerado judeu, pois a esperança subsistia e, já
que ele não havia se tornado cristão nem muçulmano, um dia
retornaria aos braços da fé.
Durante os primeiros anos de existência do Estado de Israel,
quando as ondas de imigração traziam seu lote de “casais mistos”, o
sionismo tentou apagar o problema, mas compreendeu rapidamente
que não poderia fundamentar a definição do judeu no princípio do
voluntariado. Pela “lei do retorno”, o novo Estado concedeu
automaticamente a possibilidade de imigrar e de obter a cidadania a
todos aqueles que ele definia como judeus. Tal abertura de portas
corria o risco de desvirtuar a legitimidade etnorreligiosa da
colonização sobre a qual o sionismo laico havia se apoiado. O
sionismo havia, além disso, definido os judeus como um “povo” de
origem única, o que, como o judaísmo anterior a ele, lhe fazia temer
uma “incorporação” dos judeus aos povos vizinhos.
No Estado laico que se formava, o casamento civil foi proibido,
sendo consagradas apenas as uniões religiosas. Um judeu só pode se
casar com uma judia, o muçulmano só pode se casar com uma
muçulmana, e essa lei duramente segregacionista se aplica também
aos cristãos e aos drusos (minoria islâmica integrada de Israel). Um
casal judeu sem filhos só pode adotar um filho “não judeu”
(muçulmano ou cristão) se o converter ao judaísmo segundo a lei
rabínica; a hipótese da adoção de uma criança de origem judaica por
um casal muçulmano não é sequer considerada. Contrariamente a
uma ideia difundida, a perenidade dessa legislação pseudorreligiosa e
antiliberal não se deve ao poder eleitoral dos religiosos, mas às

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incertezas relativas à identidade nacional laica e à vontade de
preservar um etnocentrismo judeu. Israel nunca se mostrou uma
teocracia rabínica; desde seu nascimento, ele é e permanece uma
etnocracia sionista.
Essa etnocracia sempre precisou responder a um problema crucial:
ela se diz “Estado judeu” ou ainda “Estado do povo judeu” do mundo
inteiro, mas não consegue definir quem é judeu. As tentativas
realizadas nos anos 1950 de identificar o judeu pela impressão digital,
assim como as experiências recentes visando distinguir um DNA
judeu, resultaram em nada. Por mais que alguns sábios sionistas em
Israel e no exterior proclamem a existência de uma “pureza genética”
que os judeus teriam preservado ao longo das gerações, ainda não
conseguiram caracterizar um judeu segundo um protótipo de DNA.
Critérios culturais ou linguísticos não podiam ser considerados:
seus descendentes nunca compartilharam uma língua nem uma
cultura comum. Apenas os critérios religiosos ficavam à disposição
dos legisladores laicos: aquele que é nascido de mãe judia ou se
converteu segundo a lei e a regra religiosa é reconhecido pelo Estado
de Israel como judeu, proprietário exclusivo e eterno do Estado e do
território administrado por esse. Daí a necessidade crescente, na
política identitária oficial, de conservar os costumes religiosos.

Estado judeu, Estado comunitário


Desde o final dos anos 1970 e mais ainda nos anos 1980, insiste-se no
fato de que o Estado de Israel é judeu, e não israelense. O primeiro

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qualificativo concerne aos judeus do mundo inteiro, o segundo inclui
“apenas” o conjunto dos cidadãos que vive em Israel: muçulmanos,
cristãos, drusos e judeus, sem distinção. Enquanto no cotidiano a
israelização cultural ganhava maturidade (os palestinos-israelenses
viviam uma aculturação e dominavam perfeitamente o hebraico), o
Estado se judeocentrou cada vez mais em vez de reconhecer sua
identidade e de fazer dela o berço de uma consciência republicana e
democrática.
De um lado, uma realidade cultural israelense, do outro, uma
supraidentidade judaica, que deu origem a uma estranha
esquizofrenia na política das identidades em Israel: o Estado
israelense proclama com crescente veemência ser judeu e se obriga a
subvencionar cada vez mais empreitadas culturais e estabelecimentos
religiosos e nacionais tradicionais, na dependência do ensino das
humanidades gerais e do saber científico. Contudo, as antigas elites
intelectuais e uma fração da classe média laica continuam se
queixando da imposição religiosa. Elas querem fazer “sem” e ao
mesmo tempo continuar a se sentir “com”; querem permanecer judias
sem judaísmo sem perceber que isto é impossível.
Várias razões explicam a acentuação da judaização na identidade
estatal. Essa tendência resulta do fato de o Estado de Israel precisar
controlar de um dia para o outro uma grande parcela da população
palestina. Os palestinos das zonas de apartheid nos territórios
ocupados, aos quais se acrescentam os árabes de Israel, representam
uma massa demográfica percebida como crítica e ameaçadora pelo
caráter pseudojudeu do Estado.

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A necessidade crescente de um perfil judeu para definir o Estado
provém da vitória da direita sionista, a qual se beneficiou
principalmente, mas não unicamente, do apoio dos israelenses de
origem judaico-árabe. Esses, como observado anteriormente, haviam
conservado sua identidade judaica sob uma forma muito mais firme
que os membros de outros grupos de imigrados. Eles conseguiram,
desde 1977, dar ao plano eleitoral uma tradução política eficaz que
orientou duradouramente o caminho seguido por Israel.
A chegada instrumentalizada dos “russos” — portadores de
características muito diferentes — a partir dos anos 1980 também
exacerbou a tendência geral: foi a ausência de qualquer tradição
judaica e qualquer relação com a cultura judaica entre os novos
imigrantes que levou as instituições sionistas a destacar a judeidade
impregnada, não em sua herança cultural, mas em sua essência —
dito de outra forma, em seu DNA. Essa campanha identitária se
revelou complicada, pois uma parte não negligenciável da população
não era judia; sendo assim, vários imigrantes russos redescobriram
sua “judeidade” através de um grande racismo antiárabe.
Sinais anunciando o declínio do nacionalismo clássico no mundo
ocidental e o aumento do comunitarismo ou de um tribalismo
antinacional (voltarei a isso) irromperam em Israel. Que valor teria
uma identidade cultural israelense menor na era da globalização? Não
é preferível desenvolver uma identidade “étnica” supranacional que,
por um lado, dará aos descendentes dos judeus no mundo o
sentimento de que Israel lhes pertence e, por outro lado, manterá
entre os judeus-israelenses a consciência de fazer parte de um grande

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povo judeu do qual alguns membros terão poderes importantes em
todas as capitais ocidentais? Por que não pertencer a um “povo
mundo” do qual vêm tantos laureados do prêmio Nobel, tantos sábios,
tantos cineastas? A identidade israelense ou hebraica local perdeu seu
prestígio passado, dando lugar a uma autoidentidade judaica
hipertrofiada. Foi assim que uma identidade judaica levou um
número considerável de “novos judeus” a se concederem um “banho
de rejuvenescimento”.
Para decifrar as leis da cidadania e da educação identitária, que
desde os anos 1980 têm sido reforçadas no Estado de Israel,
sugerimos uma comparação: se os Estados Unidos da América
decidissem amanhã que não são mais Estado de todos os cidadãos
americanos, mas o Estado daqueles que no mundo inteiro são
identificados como anglo-saxões protestantes, isso pareceria
surpreendente para Israel. Com certeza, os afro-americanos, os latino-
americanos ou os judeus-americanos teriam o direito de participar das
eleições no Congresso e no Senado, mas eleitos deveriam lembrar que
o Estado americano permanece eternamente anglo-saxão.
Para captar melhor a problemática, ampliemos o paralelismo:
imaginemos que, na França, decida-se modificar a Constituição
estabelecendo que o país deve ser decretado um Estado franco-
católico e que 80% de seu solo só pode ser vendido a cidadãos franco-
católicos, estabelecendo que cidadãos protestantes, muçulmanos ou
judeus dispõem do direito de voto e do direito de ser eleito. A
corrente tribal antidemocrática se estende no restante da Europa:
enfrentam-se na Alemanha dificuldades, apegando-se aos estigmas do

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passado para reabilitar oficialmente os antigos princípios
etnocêntricos. A Grã-Bretanha proclama solenemente que ela não
pertence mais a seus súditos britânicos — escoceses, galeses e
cidadãos descendentes de imigrantes vindos das antigas colônias —,
mas que, daqui por diante, ela é o Estado dos ingleses nascidos de
mães inglesas. A Espanha segue o mesmo caminho de seus vizinhos e
rompe o véu da hipocrisia: ela já não é propriedade de todos os
espanhóis e se torna explicitamente o Estado castelhano democrático,
que dá generosamente a suas minorias catalã, andaluza e basca uma
autonomia limitada.
Na hipótese de essas mudanças históricas se tornarem realidade,
Israel veria enfim seu destino sendo cumprido: ser a “luz entre as
nações”. Ele se sentiria mais à vontade e menos isolado na sua
política identitária exclusiva. Há, no entanto, uma sombra nesse
quadro: medidas desse tipo são inaceitáveis em um Estado “normal”,
fundado sobre princípios republicanos. A democracia liberal nunca foi
exclusivamente um instrumento de regulação das relações de classe;
ela também surgiu como objeto de identificação para todos os seus
cidadãos, que supõem ter sobre ela uma escritura de propriedade e
que, por meio dela, expressam diretamente sua soberania. A dimensão
simbólica e de integração desempenhou um papel importante no
advento do Estado-nação democrático, mesmo que tenha substituído
uma distância entre o símbolo e a realidade.
Uma política que se pareça com a de Israel em relação a grupos
minoritários não pertencentes à etnia dominante só se encontra hoje
nos países pós-comunistas do Leste Europeu, onde existe uma direita

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nacionalista significativa, se não hegemônica.

O espírito das leis


Segundo o espírito das leis, o Estado de Israel pertence mais a pessoas
não israelenses do que a pessoas que ali residem. Ele se afirma mais
como o patrimônio nacional dos “novos judeus” do mundo (Paul
Wolfowitz, antigo presidente do Banco Nacional, lorde Michael Levy,
o célebre filantropo Dominique Strauss-Kahn, antigo diretor-geral do
FMI, ou Vladimir Gusinsky, o oligarca russo que reside na Espanha)
do que dos 20% desses cidadãos identificados como árabes, cujos
pais, avós e bisavós nasceram no seu território. Assim, alguns nababos
— homens muito ricos — de origem judaica do mundo inteiro se
sentem no direito de intervir em Israel. Investindo maciçamente nas
mídias e no dispositivo político, eles influenciam cada vez mais os
dirigentes e suas orientações.
Encontram-se também, entre os “novos judeus”, intelectuais que
sabem que o Estado dos judeus é deles. Bernard-Henry Lévy, Alan
Derhowitz, Alexandre Adler, Howard Jacobson e dezenas de outros
adeptos do sionismo, ativos em diversos campos das mídias de massa,
não se enganam em suas preferências políticas: contrariamente ao que
foi Moscou para os antigos comunistas não soviéticos e Pequim para
os maoístas dos anos 1960, Jerusalém é certamente sua propriedade.
E, para tanto, eles não precisam conhecer a história ou a geografia do
local, nem aprender suas línguas (o hebraico ou o árabe), trabalhar lá,
pagar impostos, nem, longe disso, se alistar em seu exército! Basta-

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lhes fazer uma breve visita a Israel, obter uma cédula de identidade e
conseguir uma residência secundária antes de voltar à sua cultura
nacional e à sua língua materna, ao mesmo tempo que permanecem
por toda a eternidade proprietários do Estado judeu. Mas que sorte
nascer de mãe judia!
Os habitantes árabes de Israel, em contrapartida, não terão o
direito de trazer a Israel uma palestina dos territórios ocupados com
quem se casaram por causa do medo que há de, caso ela se torne
cidadã, aumentar o número dos não judeus na Terra Prometida.
Sejamos precisos: se um imigrante identificado como judeu chega
da Rússia ou dos Estados Unidos com sua esposa não judia, esta não
terá direito à cidadania. Nem ela nem seus filhos serão considerados
judeus, a não ser que se convertam segundo a lei religiosa. De outra
forma, no país dos “novos judeus”, o fato de não ser árabe ganha do
fato de não ser judeu. Os imigrantes “brancos” vindos da Europa ou
da América, embora não judeus, sempre se beneficiaram de um
acolhimento mais tolerante. Para minimizar o peso demográfico dos
árabes, foi até julgado preferível atenuar um pouco o Estado judeu
por diluição de não judeus à condição de serem europeus brancos.
No entanto, o Estado judeu não é assim tão judeu! Ser judeu em
Israel não implica ter de respeitar os mandamentos ou crer no Deus
dos judeus. Pode-se divertir com crenças budistas, como tinha o
costume de fazer David Ben-Gurion, ou comer camarões-cinzas, como
Ariel Sharon, ex-primeiro-ministro de Israel. Pode-se ficar com a
cabeça descoberta, como a maior parte dos dirigentes de Israel e seus
chefes militares. Certamente os transportes públicos não funcionam

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durante o Shabat, mas pode-se usar o veículo particular. Pode-se
gesticular e injuriar nos campos de futebol no dia do repouso sagrado
sem que nenhum político religioso ouse protestar. Mesmo no Yom
Kipur, o mais sagrado de toda a fé judaica, as crianças de Israel
podem brincar de bicicleta em todos os pátios da cidade. Desde que
não venham dos árabes, as manifestações antijudaicas permanecem
legítimas no Estado dos “judeus”.
O que significa então ser “judeu” no Estado de Israel? Ser judeu
em Israel significa ser um cidadão privilegiado que goza de
prerrogativas recusadas a todos aqueles que não são judeus e,
particularmente, aos árabes. Quando se é judeu, mesmo permanecer
em Israel apenas por um tempo com um hebraico balbuciante pode
levá-lo a ser chefe do Banco de Israel, o Banco Central de Israel, que
não emprega nenhum cidadão israelense-árabe. Quando se é judeu, é
possível ser ministro das Relações Exteriores e residir
permanentemente em uma colônia situada no exterior das fronteiras
jurídicas de Israel, ao lado de vizinhos palestinos privados de todos os
direitos cívicos e desprovidos de soberania sobre eles próprios.
Quando se é judeu, é permitido instalar colônias nas terras que não
nos pertencem, mas também circular na Judeia e na Samaria em
cidades ao redor, onde os habitantes locais não têm o direito de ir e
vir livremente no interior de sua pátria. O judeu não será barrado,
não será torturado, não terá sua casa revirada no meio da noite ou
demolida por “engano”, não será tomado como alvo de bala
perdida… Todos esses atos que acontecem há cerca de cinquenta anos
são destinados e reservados apenas aos árabes.

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No Estado de Israel do início do século XXI, a situação do judeu
não correspondia à do branco no sul dos Estados Unidos dos anos
1950 ou à dos franceses na Argélia de antes de 1962? O status do
judeu em Israel não se parece com o do africâner na África do Sul de
antes de 1994?
Como alguém que não é um religioso crente, mas simplesmente
um humanista, democrata ou liberal dotado de um mínimo de
honestidade pode continuar se definindo judeu? O descendente dos
perseguidos pode se deixar englobar na tribo dos novos judeus laicos
que veem Israel como sua propriedade exclusiva? O simples fato de se
dizer judeu em Israel não constitui um ato de filiação a uma casta
privilegiada que cria à sua volta insuportáveis injustiças?
E o que significa ser um judeu laico fora de Israel? A posição
adotada em 1944 por Julian Tuwim ou a dos meus pais, que andaram
errantes pela Europa, como refugiados, ainda tem uma validade
moral nos dias de hoje?

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XI
Quem é judeu na “diáspora”?

Um quadrado não pode se tornar redondo

Dois mil e onze. Participo de um debate em uma boa livraria londrina


sobre um de meus livros publicados. O mediador, filósofo de Oxford,
homem charmoso e sutil, me apresenta com evidente simpatia. Ele se
rebela contra a política militarista de Israel, seu racismo, sua política
de apartheid aplicada nos territórios ocupados etc. O mediador
expressa, todavia, com delicadeza, uma reserva em relação a meu
ponto de vista sobre a inexistência de um povo judeu. Ele sente como
membro deste povo, e, assim como ele, a maioria do público, mais
esquerdista e liberal. Eu lhe pergunto qual é a cultura popular dos
judeus laicos e qual educação judaica eles podem transmitir a seus
filhos. Ele tem dificuldade em responder.
Uma senhora idosa, levemente indignada, declara que, se por meio
da minha argumentação eu lhe tirava sua identidade judaica, não lhe
restava mais nada. Fico surpreso e tento reassegurar-lhe: claramente
não cabe a mim suprimir autoidentificações, e estou seguro que ela
própria é rica de inúmeras identidades paralelas à sua identidade
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judaica. Mas eu lhe pergunto se a liberdade dela é igual à minha.
Tenho também o direito a me definir como desejar e a não me
acorrentar a uma memória dolorosa, que me parece cada vez mais
indevidamente explorada?
Olho para o público e vejo pessoas sobre as quais eu tenho
motivos para acreditar que não são “judias”, embora a aparência
apresente traços médio-orientais. Nenhuma delas intervém. Sinto
então um mal-estar: todo esse debate, que parece “politicamente
correto”, pois manifestamente não sionista, não se restringia aos
“novos judeus”, grupo do qual os goyim não deveriam tomar parte?
Esse questionamento faz brotar em mim uma problemática ainda mais
complexa, que nunca havia me ocorrido antes.
A política moderna das identidades é feita de arame farpado, de
muralhas e de barreiras que definem e limitam os coletivos, sejam
eles pequenos ou grandes. É possível ultrapassar os limites por meios
legais, contorná-los — se não aboli-los — para se juntar a um grupo
desejado. É possível tornar-se cidadão americano, britânico, francês
ou israelense, assim como deixar de sê-lo. É possível tornar-se
militante de um movimento socialista, dirigente de uma corrente
liberal ou membro de um partido conservador, depois demitir-se.
Todas as Igrejas acolhem prosélitos. Toda pessoa pode se tornar um
muçulmano ou judeu fervoroso.
Mas como se tornar um judeu laico se não se nasceu de pais
judeus? Existe outro meio de se juntar ao judaísmo laico por um ato
voluntário, uma livre escolha, ou trata-se de um clube exclusivo,
fechado, cujos membros são selecionados em função de sua origem?

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Dito de outra forma, não é cada vez mais um clube de prestígio que,
não por acaso mas por erro, acredita em si mesmo como descendência
de uma tribo antiga?
É certo que no passado ninguém desejava aderir a esse clube
fechado. Nenhum gentio invejava o destino dos judeus, nem na região
do assentamento judaico do império russo, nem na Paris da ocupação,
nem bem entendido em Auschwitz! Mas, muito felizmente, em um
mundo ocidental que se arrepende da perseguição aos judeus e deseja
expiar suas culpas, esse não é mais o caso. Nas universidades de Nova
York, nos estúdios de Hollywood, nas antecâmaras políticas de
Washington, em inúmeras sociedades de Wall Street, no mundo da
imprensa em Berlim ou Paris ou nos salões culturais de Londres, a
moda é, antes de qualquer coisa, anunciar-se “judeu”.
Para tanto, não é preciso fazer esforços, como se viu. Alguém é
judeu porque nasceu judeu, e um quadrado não pode se tornar
redondo: pode tentar, tentar e tentar, mas nunca conseguirá.
No mundo ocidental do final do século XX ao início do XXI,
assistimos ao declínio relativo do nacionalismo clássico, que com
dificuldade completou seu segundo centenário. A globalização
econômica e suas crises, andando de braços dados com a globalização
cultural, rói as antigas e sólidas amarras nacionais. Se no passado a
identificação e a fidelidade absoluta a uma bandeira, a um soberano
nacional, a uma cultura dominante, eram exigidas, hoje se abrem
novos espaços para as identidades comunitárias parciais, para as
subculturas, e até mesmo para as identidades transnacionais, desde
que elas não ameacem o princípio supremo do Estado-nação

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soberano, evidentemente.

Os judeus laicos no mundo


É bem mais fácil concretizar hoje o desejo de ser visto como judeu. O
problema dos “novos judeus” se situa, apesar de tudo, na ausência de
expressão cultural específica e de sinal exterior à identidade judaica
laica. É porque nos Estados Unidos, assim como em outros lugares,
ateus vão de vez em quando de carro à sinagoga no dia do shabat,
fazem circuncidar seus filhos (esse ato cultual “reduziria” os riscos de
contaminação pela aids, a crer em Abraão, nosso pai) e lhes
organizam uma suntuosa cerimônia de Bar Mitzvá, quando, no
entanto, não se tem certeza de que a comida seja kosher (alimento que
obedece às leis judaicas), esperando casá-los por um rabino, de
preferência reformista, se houver algum nas proximidades. Eis então
como um judeu manifesta sua pertença ao antigo ethos[34] sem
maiores esforços.
Essas práticas pseudorreligiosas, ou seja, feitas por pessoas que
não são seriamente crentes, não têm, na verdade, consequências:
aspirar a um quadro identitário intimista no qual se procura alívio é
plenamente respeitável. Em uma época em que um Estado-nação é
cada vez menos passível de dar um sentido a seus grandes coletivos,
quando a reserva de inimigos nacionais se esgota e as grandes utopias
políticas e sociais agonizam, encontrar uma comunidade
semirreligiosa/semitribal embeleza o cotidiano.
Poder-se-ia considerar com benevolência o fato de que, para

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preservar sua identidade judaica, pais escolhem circuncidar seus
recém-nascidos, embora essa ablução da “impureza” seja irracional e,
sobretudo, de acordo com o que penso, atinja o direito fundamental
do homem na sua integridade corporal. No entanto, se em nome da
manutenção de uma identidade judaica fantasiada pais laicos
impedem seus filhos de amar um parceiro visto como não judeu
temendo que ele se case, trata-se de puro racismo.
Os “judeus étnicos” podem se preocupar: mais de 50% dos
descendentes judeus americanos e europeus se casam com não judeus.
As instituições comunitárias, com a ajuda da Agência Judaica, se
empenham ao máximo, e sem vergonha alguma, para frear essa
tendência. Elas sabem bem que, na ausência de judeofobia, é a
necessidade profunda de amor e de uma vida conjugal livre dos
vínculos da tradição que destrói lenta mas seguramente o “povo
judeu”. Ainda no início dos anos 1970, Golda Meir, então primeira-
ministra de Israel, não havia declarado que quem se casasse com um
não judeu faria parte dos 6 milhões?
A instauração de um ritual em torno da Shoah permite também
conservar a todo custo uma identidade judaica separada e exclusiva.
Quem objetaria isso na lembrança do horror europeu? Muito pelo
contrário: seu esquecimento no mundo ocidental acrescentaria o
pecado ao crime. Mas quando os sionistas e seus apoiadores
transformam a lembrança da destruição em uma religião laica com
suas peregrinações nas fogueiras reconstituídas do extermínio,
instilam uma paranoia na consciência da geração “judaica” de
amanhã. É preciso se perguntar se uma identidade construída sobre a

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constante e traumática lembrança do passado leva geralmente a
transtornos perigosos para os indivíduos e para aqueles que vivem à
sua volta. Enquanto Israel é a única potência atômica do Oriente
Médio, ele mantém o pavor em seus partidários ao redor do mundo,
apontando com o espectro de uma nova Shoah no horizonte futuro.
Aqui há ingrediente de catástrofes futuras.
A identidade judaica laica hoje se mantém, sobretudo,
perpetuando as relações com o Estado de Israel e sustentando-o
incondicionalmente. Se, até a guerra de junho de 1967, Israel
ocupava um lugar relativamente secundário na vida dos descendentes
judeus no Ocidente, a partir dessa data o pequeno Estado que fazia
alarde por sua grande força e havia mesmo surgido como uma grande
potência se tornou fonte de orgulho para um bom número deles. Todo
poder atrai em sua direção uma massa de adeptos e se constitui mais
ou menos como motivo de adulação e de culto. Os soldados do
Exército israelense, esbeltos e fogosos, empoleirados em seus tanques
ou apoiados com soberba em aviões de caça, integraram a fotografia
daquilo que ocupa a cédula de identidade imaginária para muitos
novos judeus no mundo. Assim, Israel conquistou, junto a instituições
comunitárias, um prestígio a partir do qual soube obter utilidade
máxima.
A Agência Judaica, então, deu fim a suas últimas tentativas
infrutíferas de levar para Israel seus “judeus perseguidos”. Desde a
queda da União Soviética não existe mais lugar no mundo de onde os
descendentes do “povo eleito” estivessem impedidos de emigrar para
o Estado dos judeus. O sionismo tentou mudar seu objetivo e se deu

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uma segunda juventude. Agora, mais do que nunca, é pedido àqueles
que aspiram se identificar com a semente de Abraão recolher fundos
em benefício do país dos judeus em plena expansão territorial e,
sobretudo, fazer valer todas as redes capazes de influenciar a política
externa e a opinião pública de seu país. Esse último objetivo registrou
resultados notáveis. Em uma época em que o comunitarismo se
beneficia de uma legitimidade crescente e em que a reverência dada à
civilização “judaico-cristã” se dedica ao “choque das civilizações”,
pode-se arvorar o orgulho de ser judeu e de se encontrar ao lado das
potências que dominam a história.
Existem, certamente de maneira minoritária, pessoas que se
autodenominam “judeus laicos” e, isoladamente ou em grupo, tentam
se organizar para protestar contra a política de segregação e de
ocupação israelense. Elas temem, com razão, que se renove uma
judeofobia cega e estúpida que compreende todos os descendentes
judeus em um povo-raça particular e, mais grave ainda, os confunde
com os sionistas.[35] Mas a vontade desses judeus laicos de continuar
se identificando com uma “comunidade” judaica, embora
compreensível por parte dessa geração imediatamente posterior ao
genocídio, surge como uma postura temporária de pouco peso e sem
futuro político.
Uma sensibilidade específica, louvável, pode se manifestar entre
esses descendentes judeus antissionistas, mas, sem ter vivido em
Israel, sem conhecer sua língua e sem ter sentido sua cultura, eles se
dão um direito particular, distinto daquele dos não judeus, de
reprovar Israel. Como censurar os ruidosos pró-sionistas por se

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outorgarem o privilégio de intervir ativamente na determinação do
futuro e do destino de Israel?

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XII
Sair do clube exclusivo

Demissão

Ao longo da primeira metade do século XX, meu pai abandonou a


escola talmúdica, nunca mais pôs os pés na sinagoga e desde então
expressou sua aversão pelos rabinos. Neste início do século XXI, eu
me sinto na obrigação moral de romper definitivamente com esse
judeocentrismo tribal. Estou plenamente consciente de nunca ter sido
verdadeiramente um judeu laico, uma vez que esse sujeito imaginário
é desprovido de firmeza e de horizontes culturais e que sua existência
está fundamentada em uma visão oca e etnocêntrica do mundo.
Enganei-me na época, quando acreditava que a cultura iídiche, na
qual cresci, era a encarnação da cultura judaica. Na companhia de
grandes como Bernard Lazare, Mordechaï Anielewicz, Marcel Rayman
e Marek Edelman, identifiquei-me durante muito tempo com uma
parte de uma minoria oprimida e rejeitada. Obstinei-me em ser judeu
com Léon Blum, Julian Tuwim e muitos outros que aceitaram
endossar essa identidade por causa das perseguições e dos carrascos,
do crime e dos assassinados.
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Já aceito com dificuldade que as leis israelenses me imponham
uma pertença a uma etnia fictícia; mas é ainda mais difícil suportar
ser visto pelo resto do mundo como membro de um clube de elite.
Quero me demitir e deixar de me considerar judeu.
Embora o Estado de Israel não esteja disposto a se transformar e a
se referir à minha nacionalidade com o termo “israelense” em vez de
“judeu”, ouso esperar que tanto os gentios filossemitas quanto os
sionistas engajados e antissionistas exaltados, frequentemente
nutridos por concepções essencialistas, respeitarão minha vontade e
deixarão de me catalogar como judeu. Na verdade, o que eles pensam
pouco importa, e menos ainda o que pensam dos idiotas antissemitas
remanescentes. À luz das histórias trágicas do século XX, estou
determinado a não fazer mais parte de um clube de prestígio privado,
do qual outros homens não têm nem possibilidade nem vocação de
pertencer.
Por minha recusa em ser judeu, represento uma espécie em via de
extinção. Insisto no fato de que apenas meu passado histórico era
judeu, que meu presente cotidiano é israelense — para o melhor e
para o pior — e que, enfim, meu futuro e o dos meus filhos devem ser
guiados por princípios universais, abertos e generosos, sabendo que
vou de encontro a modas dominantes orientadas para o
etnocentrismo.
Como historiador dos tempos modernos, levanto a hipótese de que
a distância cultural entre meu bisneto e mim será igual — se não
superior — à que me separa de meu bisavô. E que maravilha!
Infelizmente eu vivo entre muitas pessoas que acreditam que seus

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descendentes lhes parecerão em todos os aspectos, porque, para elas,
os povos são eternos e, a fortiori, um povo-raça como seu povo judeu.
Tenho consciência de viver em uma das sociedades mais racistas
do mundo ocidental. O racismo é certamente onipresente, mas em
Israel ele é encontrado no espírito das leis, ensinado nas escolas,
difundido nas mídias. Sobretudo, e isso é o que há de mais terrível, os
racistas não sabem que o são e, por essa razão, não se sentem
obrigados de forma alguma a se desculpar. Em consequência disso,
Israel se tornou referência para uma maioria integrante de
movimentos de extrema-direita no mundo, onde outrora o
antissemitismo era bem conhecido.
Viver em tal sociedade se tornou insuportável para mim, mas
confesso: não me é menos difícil morar em outro lugar. Faço parte do
produto cultural, linguístico e até mesmo mental da empreitada
sionista, e não posso me desfazer disso. Por minha vida cotidiana e
minha cultura de base, sou um israelense. Eu não sinto nenhum
orgulho, não mais do que me orgulho por ser um homem de olhos
castanhos e de altura mediana. Tenho, na verdade, vergonha de
Israel, particularmente quando vejo a cruel colonização militar da
qual são vítimas os indivíduos fracos e indefesos que não fazem parte
do “povo eleito”.

Utopia?
Tive um sonho utópico e evanescente: o palestino-israelense se sentia
em Tel Aviv como um judeu-americano se sente em Nova York. Eu

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lutava para que em Jerusalém a vida civil do israelense muçulmano
fosse semelhante à do francês judeu que mora em Paris. Eu desejava
que os filhos israelenses da imigrada africana cristã fossem tratados
como as crianças britânicas vindas do subcontinente indiano são
tratadas em Londres. Esperei que todos os alunos israelenses fossem
acolhidos como iguais nas mesmas escolas. Hoje sei que meu sonho
era ultrajosamente exigente, que meus pedidos eram impertinentes; o
fato mesmo de formulá-los é considerado pelos sionistas e por seus
partidários como um atentado ao caráter judaico do Estado de Israel
e, portanto, como uma marca de antissemitismo.
No entanto, por mais estranho que pareça — e ao contrário da
identidade laica enrijecida —, a israelidade — representação político-
cultural e não “étnica” — tem um potencial de identidade aberta e
integrativa. Segundo a lei, pode-se de fato ser cidadão israelense sem
ser um “judeu étnico laico”; participar da alta cultura e conservar
múltiplas “infraculturas” ao mesmo tempo; falar a língua hegemônica
e cultivar paralelamente uma outra língua; manter alguns modos de
vida variados e fundir outros. Para concretizar esse potencial político
republicano, teria sido necessário renunciar ao hermetismo tribal,
aprender a respeitar o outro, acolhê-lo como igual e tornar
compatíveis as leis constitucionais de Israel com os princípios
democráticos.
Não se pode esquecer que, antes de formular uma ideia sobre uma
mudança da política identitária israelense, seria preciso se libertar
dessa maldita e interminável ocupação que nos leva ao inferno. A
relação com o outro, com o cidadão de segunda classe de Israel, está

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intrinsecamente ligada à relação com aquele que vive em um imenso
infortúnio, muito baixo na cadeia de ações de graça sionistas. Essa
população oprimida, vivendo sob ocupação há quase cinquenta anos,
privada de direitos políticos e cívicos, em uma terra que o “Estado
dos judeus” considera como sua, está abandonada pela política
internacional. Reconheço que meu sonho de um final de ocupação e
da criação de uma confederação entre as duas repúblicas, israelense e
palestina, havia subestimado a relação de forças entre as duas partes.

Não renunciar
Cada vez mais, parece já ser muito tarde; qualquer abordagem séria
de uma solução política está trancafiada. Israel se acomodou e é
incapaz de se libertar da dominação colonial que exerce sobre um
outro povo. O mundo externo não faz o que deveria: seus remorsos e
sua má consciência o impedem de convencer Israel a se retirar das
fronteiras que obtivera em 1948. Israel também não está pronto para
anexar oficialmente os territórios conquistados, pois, nesse caso,
deveria dar uma cidadania igual à população conquistada e, assim, se
transformar em Estado binacional. Parece que a serpente mitológica
que engoliu sua presa prefere sufocar a renunciar.
Então também devo renunciar? Vivo em uma verdadeira
contradição: sinto-me um exilado diante da etnicização judaica
crescente que nos fecha, mas falo, escrevo e sonho essencialmente em
hebraico. No exterior, sinto nostalgia dessa língua, receptáculo de
minhas emoções e de meus pensamentos. Quando estou longe de

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Israel, fecho os olhos e vejo a esquina da minha rua em Tel Aviv,
esperando pelo momento de estar ali novamente. Para dissipar essa
saudade, não vou às sinagogas, pois ali se reza em uma língua que
não é a minha; as pessoas que ali se encontram não compreendem
absolutamente o que ela significa para mim, a “israelidade”, e não
aspiram a dividi-la comigo. Em Londres, são as universidades com
seus estudantes, homens e mulheres, e não as escolas talmúdicas com
seus estudantes homens (não há mulheres), que me lembram do
campus onde trabalho. Em Nova York, são os cafés de Manhattan, e
não as comunidades do Brooklyn, que me abrem os braços e me
chamam, como os de Tel Aviv. Penetrando nas inesgotáveis livrarias
parisienses, é a Semana do Livro Hebraico, organizada todo ano em
Israel, que me vem ao espírito, e não a literatura sagrada de meus
ancestrais.
Meu apego profundo a este lugar só atiça o pessimismo que sinto
em relação a ele. Assim, mergulho frequentemente em uma
melancolia que lamenta o presente e se angustia em relação ao futuro.
Estou cansado, e sinto que as últimas folhas da razão caem de nossa
árvore de ação política, nos deixando descobertos diante dos
caprichos dos feiticeiros sonâmbulos da tribo. No entanto, não sou
filósofo metafísico, sou apenas um historiador; também não posso me
permitir ser completamente fatalista. Ouso crer que, se a humanidade
deixou o século XX sem guerra atômica, quase tudo é possível, mesmo
no Oriente Médio. Lembremo-nos da palavra de Theodor Herzl, esse
sonhador historicamente responsável por minha nacionalidade
israelense: “Se o desejares, não será uma lenda”.

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Como rebento dos perseguidos que saíram do inferno europeu dos
anos 1940, sem ter abandonado o espírito de uma vida melhor, não
recebi do arcanjo assustado da história a permissão de renunciar e me
desesperar. Pois, a fim de apressar os dias seguintes e apesar do que
me disserem meus detratores, continuarei a escrever livros
semelhantes a este que você acaba de ler.

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1 Poeta romântico alemão nascido em família judia. (N. E.)
2 O vocábulo “antissemitismo” — por falta de expressão melhor — surge muitas vezes
neste texto. A meu ver, ele carrega diversas conotações duvidosas, pois foi inventado
pelos judeófobos, além de o termo “semita”, manifestamente racista, ser desprovido de
qualquer base histórica.
3 Não judeus pós-Holocausto. (N. T.)

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4 Dia do descanso semanal no judaísmo (sexta-feira), que simboliza o sétimo dia em
Gênesis, após os seis dias da Criação. (N. E.)
5 Não incluí Espinosa neste trecho. A propensão estúpida cultivada em Israel e em outros
lugares a apresentá-lo como um pensador judeu, e não como um filósofo vindo de um
meio judaico, é reveladora das concepções essencialistas e tribais daqueles que se
proclamam “judeus laicos”. Durante sua vida, Espinosa não apenas sofreu ostracismo e
foi exposto pela comunidade judaica, como, em sua idade madura, ele próprio não
enxergava a si mesmo como judeu, recorrendo sempre à terceira pessoa para falar dos
judeus. Embora tenha recebido o nome hebraico de “Baruch”, ele nunca assinou assim.
Assinava “Benedict” ou “Benedictus”.

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6 A tradição javista é caracterizada pelo uso do nome Javé (Iahweh) para Deus. Esta
tradição conta a história do Paraíso e da queda dos seres humanos; do dilúvio, de Noé e
da vinha; da Torre de Babel; da vocação de Abraão e sua viagem a Hebron; e da
consciência nacional de uma Israel que se originou a partir das vitórias de Davi e da
prosperidade de seu reinado. (N. E.)
7 Pogrom é um violento ataque em massa contra judeus, protestantes, eslavos e outras
minorias étnicas, que envolve destruição simultânea de seus ambientes (casas, negócios,
templos etc.). (N. E.)
8 O termo “deicida” deriva diretamente de “deicídio”, este se referindo à execução de
Jesus pela crucificação. O judeu deicida foi aquele que promoveu a morte de Cristo. (N.
E.)

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9 Capitão do exército francês de origem judaica injustamente acusado e condenado por
traição. (N. E.)
10 A partir do século XIX, diversas instituições e meios judaicos na Europa Ocidental e
Central preferiram recorrer à definição “israelita” por causa da conotação negativa
vinculada ao termo “judeu” ao longo da tradição cristã.
11 Jornalista judeu austro-húngaro, fundador do moderno sionismo político. (N. E.)
12 Denominação iídiche para “cidadezinha”. Eram as povoações ou bairros de cidades com
uma população predominantemente judaica. (N. E.)
13 Movimento ortodoxo surgido no judaísmo que promove a espiritualidade por meio da
popularização e da internalização do misticismo judaico como um aspecto fundamental
da fé judaica. O principal objetivo do hassidismo é a união mística entre o homem e
Deus — um método espiritual que busca libertar o ser humano das fugacidades da vida
terrena. (N. E.)
14 Quem se afasta definitiva e deliberadamente de algo, como da fé ou doutrinação
anterior. (N. E.)
15 Dentro do império russo, no século XIX, a população judaica ficava confinada à região
ocidental, denominada região do assentamento judaico, que corresponde, hoje,
aproximadamente, ao território da Ucrânia, Moldova, Polônia Oriental e Lituânia. Assim,
não se permitia aos judeus que se radicassem nas porções mais antigas do império russo,
nem em suas grandes cidades, como Moscou e São Petersburgo. (N. R.)

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16 O Bund foi um grande movimento judeu de esquerda que preconizava a autonomia
cultural do “povo iídiche”, sem referência à noção de soberania nacional para todos os
judeus do mundo. (N. E.)
17 Filantropo e colecionador de arte francês. (N. E.)
18 O sabra é uma fruta típica dos territórios de Israel e da Palestina que, por ser áspera por
fora e suave por dentro, deu nome aos judeus nascidos no país — descendentes de judeus
vindos dos países da Diáspora a partir do século XIX. Os sabras cultivaram uma nova
maneira de se relacionar com o mundo e um estilo de vida novo, diferente do de seus
antecessores. (N. E.)
19 “Partisans” eram brigadas clandestinas de combate aos nazistas e a seus aliados durante
a II Guerra Mundial. (N. R.)
20 Na Argélia, os judeus eram cidadãos franceses, logo, no momento da independência, em
1962, pouquíssimos emigraram para Israel.
21 Mais uma ironia na história: Maimônides, assim como outros literatos judeus da Idade
Média, escrevia majoritariamente em árabe.

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22 Nome dado às instituições para estudo da Torá e do Talmude dentro do judaísmo. (N. E.)
23 Acrônimo de Plugot makhatz: “tropas de choque ou companhias de choque”, organização
paramilitar que existia antes da criação do Estado de Israel e da Tzahal — exército de
defesa de Israel. (N. E.)
24 Forças militares de Israel formadas durante a independência que englobam a força
terrestre, a Marinha e a Aeronáutica. (N. E.)

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25 Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais. (N. E.)
26 Shoah é o termo da língua iídiche usado para definir o Holocausto judeu. (N. E.)
27 Referência ao regime de 1940-1944, sob o qual o Estado Francês representava um
governo fantoche da influência nazista, opondo-se às Forças Livres Francesas. (N. E.)
28 Adolf Otto Eichmann, conhecido como o executor-chefe do Terceiro Reich, foi um
político da Alemanha nazista e tenente-coronel da SS. Responsabilizado pela logística de
extermínio de milhões de pessoas no final da Segunda Guerra Mundial, Eichmann foi
julgado sob acusação de quinze ofensas criminosas, incluindo crimes contra a
humanidade e contra o povo judeu. (N. E.)
29 Judeus aos quais os alemães designavam tarefas especiais nos guetos — onde atuavam
no conselho e polícia judaicos — e nos campos de concentração — onde assumiam
cargos como comandantes, chefes de alojamentos e nos crematórios. (N. E.)
30 Nome do conjunto das Forças Armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich. (N. E.)
31 Faço referência ao continente europeu pois os dois horrores supremos dos tempos
modernos e posteriores ao Iluminismo, o colonialismo e o stalinismo, aconteceram
essencialmente fora do continente. De fato, parece-me que os homens de exceção no
tempo da perseguição e do crime foram os “justos”, que arriscaram sua vida para salvar
o outro. Como sempre na história, eles foram pouquíssimos.

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32 Texto utilizado para os serviços da noite do Pêssach, contendo a leitura da história da
libertação do povo de Israel do Egito conforme descrito no Livro do Êxodo. (N. E.)
33 Segundo maior gueto etabelecido para judeus e romenos na Polônia sob ocupação
nazista, depois do Gueto de Varsóvia. (N. E.)

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34 Síntese de costumes de um povo que indica traços característicos de um grupo que o
diferenciam de outros grupos sob um ponto de vista social e cutural. (N. E.)
35 Uma nova judeofobia, diretamente ligada ao conflito israel-palestino, se manifesta entre
os muçulmanos radicais.

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