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Embriagai-vos

«É preciso estar sempre bêbado. Tudo reside nisso: eis a questão. Para não sentirdes o
horrível fardo do Tempo que esmaga os vosso ombros e vos inclina para a terra,
precisais embriagar-vos sem tréguas.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa vontade. Mas embriagai-vos.
E se às vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na morna
solidão do vosso quarto, acordardes, a bebedeira leve ou curada, perguntai ao
vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme,
a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o
vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “São horas de embriagar-
se! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-
vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa vontade.”

Charles Baudelaire

O Spleen de Paris, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Reló gio D’Á gua, p. 97
Todo o pensamento moderno, de Descartes a Hegel e a Nietzsche é uma
exaltação do querer, um esforço para fazer o mundo, para o acabar,
para o dominar. O homem é a grande potência soberana, capaz do
universo e, graças ao desenvolvimento da ciência, graças à
compreensão dos recursos desconhecidos que há nele, capaz de
fazer tudo e de fazer o todo.

Maurice Blanchot, O livro por vir, p. 80


Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Bibliografia

Bibliografia Principal:

— DELEUZE, Gilles, Nietzsche, trad. Alberto Campos, Edições 70, Lisboa.

— MARQUES, António, «Introdução Geral», e «Prefácio» in NIETZSCHE, F., O Nascimento da


Tragédia; Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral, Obras Escolhidas de
Nietzsche, Vol. I, Relógio D’ Água, Lisboa, 1997, p. V-LXXXV.

— NIETZSCHE, F., O Nascimento da Tragédia; Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido


Extramoral, Obras Escolhidas de Nietzsche, Vol. I, Relógio D’ Água, Lisboa, 1997.

Bibliografia Auxiliar:
— DANTO, Arthur C., Nietzsche as Philosopher, Columbia University Press, New York, 1980.
— DELEUZE, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, trad. António J. Magalhães, RÉS-Editora, Porto
— FERRY, L., Homo Aesteticus : L’Invention du Gout à l’Age Démocratique, Grasset, Paris, 1990.
— JIMENEZ, Marc, Qu’Est-Ce Que l’Esthétique ?, Éditions Gallimard, Paris, 1997.
— ROCHA PEREIRA, Maria Helena, Estudos de História da cultura Clássica, Volume I -Cultura Grega,
Fundação Calouste Gulbenkian.
— NIETZSCHE, F., (…) Obras Escolhidas de Nietzsche, Relógio D’ Água, Lisboa, 1997 (…)
— SCHAEFFER, Jean-Marie, L’art de l’Âge Moderne: L’Esthétique et la Philosophie de L’Art du XVIII Siècle à
Nos Jours, Éditions Gallimard, Paris, 1992.
O “Filósofo da suspeita”

Questionamento radical dos princípios e valores da cultura ocidental:

- questionamento do conceito de verdade;

- questionamento do conceito de realidade;

- questionamento dos valores morais de raiz grega e judaico-cristã.


— relativismo gnosiológico (questionamento da noção de verdade).

— relativismo ontológico (questionamento da noção de realidade),

— relativismo axiológico (questionamento da noção de valor).


Relativismo gnosiológico

“Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias,


de antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas
que foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas,
canónicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram
esquecidas enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram
esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que
são consideradas, não já como moedas, mas como metal. “

Acerca da Verdade e da Mentira, p. 221.


Pluralismo e Perspectivismo a)

— Não é possível identificar um discurso —seja o da religião, o da ciência, ou o da


filosofia— capaz de proceder a uma compreensão unificadora do real.

— A “realidade em si mesma” não é um dado, mas uma construção dos próprios


sujeitos que procuram conhecê-la; a “realidade” é plural.

Numerosas possibilidades de interpretar o universo: Cada uma delas é um


sintoma de crescimento ou declínio.
A unidade (o monismo), necessidade de inércia; a pluralidade das
interpretações, sinal de vigor. Não recusar ao mundo o seu carácter
inquietante “
La Volonté de Puissance, II, p. 227.
Pluralismo e Perspectivismo b)

perspectivismo:

não se trata apenas de afirmar que cada sujeito possui do real uma
perspectiva distinta e de algum modo incompatível com as dos
outros sujeitos, mas de afirmar que aquilo que se entende por facto
ou realidade é sempre o resultado de uma interpretação.
Pluralismo e Perspectivismo c)

— Contra a pretensão de identificar racionalmente verdades e valores


universais e absolutos, através da razão discursiva —o Logos—,
Nietzsche privilegia uma aproximação estética, intuitiva, ou mítica,
do mundo.

— Uma “verdade” de carácter racional não seria mais do que uma


representação estética que esqueceu o seu carácter estético;

— A ciência não seria mais do que a “necrópole da intuições”.

— Ao tentar transformar em fixo, definitivo e universal, aquilo que por


natureza é móvel, fugidio e singular, a ciência produziria apenas um
empobrecimento da experiência humana.
A Crítica à razão

• O questionamento dos modelos de racionalidade, saber e verdade


implica o questionamento do privilégio do logos:

“Comparada à música, toda a expressão verbal possui qualquer


coisa de indecente; o verbo atrasa e embrutece; o verbo
despersonaliza: o verbo banaliza aquilo que é raro. “

Nietzsche, La Volonté de Puissance, II, p. 438.


Relativismo moral a)

“O instinto de rebanho. Onde se nos depara uma moral, encontramos uma


avaliação e uma hierarquização dos impulsos e acções humanas. Estas
avaliações e hierarquias são sempre a expressão das necessidades de uma
comunidade, de um rebanho: o que lhe é mais vantajoso em primeiro lugar —
e em segundo e em terceiro lugar — é também o critério supremo de aferição
do valor de todos os indivíduos. Com a moral, o indivíduo é levado a ser
função do rebanho e a atribuir valor a si próprio exclusivamente enquanto
função. Como as condições de preservação diferiam muito de uma
comunidade para outra, existiam morais muito diversas. E, tendo em
consideração que se irão registar ainda reorganizações essenciais dos
rebanhos, comunidades, estados e sociedades, pode profetizar-se que irá
haver ainda morais mais divergentes. Moralidade é o instinto de rebanho no
indivíduo. “

Nietzsche, A Gaia Ciência, p. 132-133.


Relativismo moral b)

• Contra o modelo cristão, contra a santificação do sofrimento e da humildade,


Nietzsche afirma a “vontade de poder”.

• A “vontade de poder” não deve ser entendida como um desejo de domínio sobre o
outro, mas como uma definição do homem não face à proibição e ao limite, mas face
ao ilimitado, face ao excesso:

• aquilo que confere vida não é o limite da lei moral, mas a hybris, (Húbris) o
excesso dionisíaco e criador.
Sermão das bem-aventuranças.

DO EVANGELHO SEGUNDO S. MATEUS (5,1-12)

Ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-se. Aproximaram- se dele os


discípulos. Ele, abrindo a boca, ensinava-os, dizendo:

«Bem- aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.


Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem- aventurados os
mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a
Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos
de Deus. Bem- aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha
causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra
vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa. Pois
assim perseguiram os profetas antes de vós».
Contra o “ideal ascético”

Nietzsche acusa de Niilista toda a cultura de raiz metafísica ,como por exemplo o
“ideal ascético” que caracterizaria a moral ocidental de raiz cristã:

“Não pode negar-se a natureza desta direcção do asceta: este ódio a tudo
quanto era humano, quanto era animal, a tudo quanto era material, aos
sentidos, à razão, à felicidade, à beleza, à forma, à mudança, ao movimento,
ao esforço, ao desejo; tudo isto significa uma vontade de aniquilação, uma
hostilidade à vida, uma negação das condições fundamentais da existência.
(...)”

Nietzsche, A Genealogia da Moral, p 132.


O niilismo

O niilismo é, num primeiro momento, a categoria que em Nietzsche caracteriza toda


uma tradição cultural que desvalorizou o mundo e a vida em função de uma
realidade supra-sensível, garantida por instâncias inquestionadas —como Deus, a
Verdade, o Bem ou o Belo;

É este nada de realidade, esta ficção de uma realidade construída sobre a negação da
realidade, que Nietzsche caracteriza como niilista.

Embora nasça de uma vontade de conferir sentido à vida, o niilismo inerente à religião
ou à metafísica só consegue conferir sentido à vida à custa de uma negação da
própria vida.

Contra este modelo, Nietzsche pretende afirmar o valor da vida como tal, sem
estar dependente de nenhum sentimento de culpa ou de menoridade.
A “morte de Deus” e crítica ao absoluto a)

“O louco. Nunca ouviram falar daquele louco que, à luz clara da manhã, acendeu
uma lanterna, correu para a praça do mercado e se pôs a gritar
incessantemente: «Ando à procura de Deus!». Estando reunidos na praça
muitos daqueles que, precisamente, não acreditavam em Deus, o homem
provocou grande hilaridade. «Será que se perdeu?», dizia um. «Será que se
enganou no caminho, como se fosse uma criança?», perguntava outro. «Ou
estará escondido?» «Terá medo de nós?» «Terá embarcado?» «Terá partido
para sempre?», assim exclamavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco
saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. «Quem vos vai dizer o
que é feito de Deus sou eu», gritou! «Quem o matou fomos todos nós, vós
mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? Como
conseguimos engolir todo o mar? Quem nos deu a esponja para a apagar todo
o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta
terra ao seu sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para
longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitarmo-nos para todo o
sempre? E a precipitarmo-nos para trás, para os lados, para a frente, para
todos os lados? Será que ainda existe um cima e um baixo? Não andaremos
errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do
espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para
todo o sempre, e cada vez mais noite? Não teremos de acender lanternas em
pleno dia?
• (…)
A “morte de Deus” e crítica ao absoluto b)

Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus?
Ainda não nos terá chegado o cheiro da decomposição divina? Porque até os
Deuses se decompõem! Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou
fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que
o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e poderoso sucumbiu exangue aos
golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos
lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados teremos de inventar? A
grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos
tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas digno dele? Nunca existiu
acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte,
mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje.» Aqui o louco
calou-se e fitou de novo os seus ouvintes; também eles se calaram e o olharam
espantados. Ele, por fim, lançou ao chão a lanterna, que se desfez em pedaços e se
apagou. «Cheguei cedo de mais», disse então, «o meu tempo ainda não é este. Este
acontecimento extraordinário há-de vir ainda, transita ainda, não chegou ainda aos
ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão levam o seu tempo, a luz dos astros
leva o seu tempo, os actos, mesmo depois de executados, levam o seu tempo a ser
vistos e ouvidos. Este acto está ainda mais longe dos homens do que os astros
mais longínquos. E, no entanto, foram os homens que o praticaram!» Conta-se
ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu
requiem eternam deo. Expulso dos templos e interrogado, ripostou sempre apenas
isto: «Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos
funerários de Deus.
Nietzsche, A Gaia Ciência, p. 139-141.
A “morte de Deus” e crítica ao absoluto c)

A constatação da morte de Deus implica a afirmação do descrédito de todos os


absolutos;

- Ao nível dos valores morais, dos princípios gnosiológicos ou científicos, ou dos


valores estéticos, é necessário extrair as consequências da perda da noção de
fundamento absoluto:

- Não será possível pretender que existam critérios estéticos de carácter universal, ou
obras de arte passíveis de serem entendidas como eternas.

- Se não existem absolutos, todos os valores adquirem um carácter relativo.


O niilismo

É diante da perda dos absolutos que o homem se define afirmativamente como


sujeito criativo e criador:

- Nietzsche caracteriza como niilista a tentativa operada pela religião ou boa


parte da tradição filosófica para negar a realidade do mundo sensível e a
própria vida em função do absoluto de uma realidade supra-sensível;

- Mas também é niilista a pretensão de colocar em seu lugar supostos valores


superiores fundados no próprio homem e que não são senão expressão de
uma negação dos valores da vida.
O “niilismo activo” a)

É contra a auto-limitação interior que Nietzsche preconiza o niilismo activo;

- deve ser o próprio niilismo a constituir-se como elemento de superação das suas
aporias:

trata-se de voltar a negatividade dos valores de raiz metafísica contra si


mesmos, radicalizando aquilo que neles é destrutivo, num movimento
consciente e voluntário para desacreditar esses valores.
O “niilismo activo” b)

Este niilismo não é um fim em si mesmo, mas é o primeiro momento da construção


de uma vivência que ultrapasse os condicionantes de uma humanidade que a si
mesma se faz obstáculo:

- o niilismo activo é a porta que poderá dar acesso ao sobre-humano, isto é, à


afirmação do positivo como tal;

- contra o ressentimento de raiz metafísica e cristã, Nietzsche afirma a força


positiva e criadora do dionisíaco, a força positiva do excesso que se
afirma, não contra qualquer limite ou proibição, mas enquanto força
criadora por excelência.
O trágico: arte enquanto intensificação da experiência

- A arte é entendida como um processo afirmativo:

- Nietzsche afirma a arte como experiência na qual o homem está vivencialmente


interessado;

- não é possível pretender extrair um qualquer valor estético independente da afirmação


perspectivística do sujeito.

- A relação do sujeito com o real não é neutra, nem tão-pouco o é a relação do sujeito
com a obra de arte: ela é, ao contrário, empenhada.
A arte como afirmação

- Contra o ideal ascético —a negação da vontade, a defesa da privação e


do negativo, isto é, a negação da vida—, a arte constitui afirmação de vida:

- não a transfiguração sublimada da vida, mas a afirmação dinâmica da vida


enquanto aparência: afirmação desmesurada e dionisíaca da própria
vida.

- Contra um modelo de real e de saber que privilegiava a unicidade e a


verdade, Nietzsche afirma o carácter criativo da aparência e da falsidade, o
carácter plural da experiência de mundo.
Arte e verdade a)

A arte é o mais perfeito exemplo de questionamento da noção de verdade de


raiz metafísica:

contra a dicotomização da experiência entre essência e aparência a arte será a


afirmação da aparência enquanto aparência:

a arte é aparência que o é como tal, sem que por isso a sua realidade seja
diminuída.
Arte e verdade b)

A arte da “aparência” constitui um modelo de superação da noção de verdade


pela experiência do valor:

O elemento determinante para aferir a validade e a profundidade da


experiência humana não é a verdade, mas sim o valor.

A arte é uma experiência capaz de fornecer ao sujeito não uma apreensão


neutra do mundo assente em critérios de verdade ou falsidade,
mas sim uma apreensão de mundo que é constitutivamente da ordem do
valor, uma experiência que é assumidamente perspectivística e
intensificadora da experiência do sujeito.
Arte e verdade c)

A arte é entendida como um efectivo instrumento de conhecimento do


mundo:

- conhecimento da aparência enquanto aparência pela sua intensificação;

- conhecimento do movimento pelo próprio movimento;

- conhecimento do sujeito enquanto vontade de poder pela própria expressão


dessa vontade de poder.
“O Nascimento da Tragédia”

- NIETZSCHE, F., O Nascimento da Tragédia; Acerca da Verdade e da


Mentira no Sentido Extramoral, Obras Escolhidas de Nietzsche, Vol. I,
Relógio D’ Água, Lisboa.

- Apolo — o deus da música e de poesia, é encarnação da ordem, da


perfeição, da luz e da harmonia;

- Dioniso —ou Baco, para os romanos— é o deus do excesso; o deus da


vinha, do vinho, e do êxtase místico.
Sarcófago de mármore com a Representação de Dioniso e as Estações, c. 260-270 d.c.
“Festival”, Vaso, fragmento, c. 400 a. C., Taranto, Museo Nazionale Archeologico
William-Adolphe Bourguereau, O jovem Baco e seus seguidores, 1884
Apolo versus Dioniso

- Oposição entre o excesso (Dioniso) e a harmonia (Apolo);

- entre a liberdade e a castração,

- entre a aparência desreguladora e a pretensão à verdade.

.
Apolo versus Dioniso

- O dionisíaco é expressão do excesso que corrompe a ordem e a moral


opressivas:

«Em quase todos os lados, o centro dessas festas residia num deboche sexual
exagerado, cujas ondas transbordavam por sobre todo o mundo da família
e os seus respeitáveis estatutos; precisamente as instâncias mais
bestialmente selvagens da natureza eram aqui libertas, até se atingir
aquela repugnante mistura de volúpia e crueldade que sempre me pareceu
ser a verdadeira “poção mágica “.»
Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, p. 30-31
Contra o logos a)

- O apolíneo configura aqui a ordem, a harmonia, a perfeição, mas também a


linguagem verbal e a representação figurativa:

- Estas são entendidas por Nietzsche como instrumentos de dissimulação do


real.

- O logos teria afastado o homem de uma verdadeira experiência do mundo,


em nome de um ideal de verdade, de beleza que não era senão
instrumento de repressão e ocultação.
Contra o logos b)

- Irredutibilidade dos sentidos (e da arte) ao “sentido”, ao logos;

«De facto, todos os nossos sentidos se tornaram, agora, um tanto embotados,


precisamente por perguntarem imediatamente pelo racional, portanto, pelo
que «isso significa» e já não pelo que «isto é» (...).
Qual é a consequência de tudo isso? Quanto mais os olhos e os ouvidos se tornam
capazes de pensamento, tanto mais se aproximam do limite em que deixam de
ser sensuais: o prazer é transferido para o cérebro, os próprios órgãos dos
sentidos tornam-se embotados e fracos, o simbólico ocupa cada vez mais o
lugar do existente (...).»

F. Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, p. 194-195.


Contra a noção de individuação como consciência a)

«(...) a essência do elemento dionisíaco, que nos ainda é dada do modo mais
aproximado pela analogia do êxtase. Seja sob a influência da bebida narcótica,
de que falam em hinos todos os homens e povos originários, seja com a
poderosa aproximação da Primavera, que penetra plena de prazer, despertam
aquelas agitações dionisíacas, em cuja progressão desaparece o que é
subjectivo, até atingir um pleno esquecimento de si próprio.
(...)
Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser
humano e outro: também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a
celebrar a festa da reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano.»

F.Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, p. 27-28.


Contra a noção de individuação como consciência b)

«Também a arte dionisíaca nos quer convencer do eterno prazer existencial:


simplesmente, devemos procurar tal prazer não nos fenómenos mas por detrás
dos fenómenos. Devemos reconhecer como tudo o que nasce tem de estar pronto
para um doloroso declínio, somos obrigados a olhar para dentro dos horrores da
existência individual — e contudo não devemos ficar transidos: uma consolação
metafísica arrebata-nos momentaneamente à engrenagem das figuras em
mutação. Somos realmente, por curtos instantes, a própria essência primordial e
sentimos os seus irrefreáveis avidez e prazer existenciais; a luta, a tortura, a
destruição das aparências, surgem-nos agora como necessárias perante o
excesso de inúmeras formas de existência que se impulsionam e chocam num
ímpeto vital, perante a exuberante fecundidade da vontade universal; somos
perpassados pelo furioso espinho destes sofrimentos no mesmo instante em que
nos tornámos, por assim dizer, um só com o incomensurável prazer existencial
originário e em que pressentimos a indestrutibilidade e eternidade de tal prazer,
em êxtase dionisíaco. Apesar do pavor e da compaixão, somos os felizes seres
vivos não como indivíduos mas como a coisa viva, fundindo-nos com o seu prazer
procriador.»
F. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, p. 118-119.
A hybris como afirmação da vida

- Só enquanto hybris (Húbris) —enquanto excesso— a vida poderá alcançar a


sua plenitude;

- a arte deve ser expressão e motor deste excesso irredutível a qualquer ordem
moral, estética ou epistémica:

«O ser mais rico da plenitude da vida, o deus e homem dionisíaco, pode entregar-
se não só à contemplação do terrível e do duvidoso como até às próprias acções
terríveis e a todos os luxos de destruição, decomposição e negação; o mal, a
irracionalidade e a fealdade parecem-lhe igualmente permitidos, em
consequência de um saldo positivo de forças criadoras e fecundas, que
consegue até fazer de qualquer deserto um terreno viçoso e fértil.»

F. Nietzsche, A Gaia Ciência, p. 302.


Afirmação da vontade

«Nós, porém, queremos tornar-nos aqueles que nós somos: os novos, os


únicos, os incomparáveis, os que dão leis a si próprios, os que se criam a si
próprios! E, para isso, temos de nos tornar os melhores alunos e
descobridores de tudo o que é legítimo e necessário no mundo (...).»

F. Nietzsche, A Gaia Ciência, p. 237.


O relativismo axiológico e epistemológico e a crítica à racionalização da arte a)

«O que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias, de


antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que
foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e
que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, canónicas e
vinculativas: as verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais,
metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido,
moedas que perderam o seu cunho e que são consideradas, não já como
moedas, mas como metal.»

Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira, p. 221.


O relativismo axiológico e a crítica à racionalização da arte b)

- Nietzsche não defende que a arte possa reivindicar o direito à eternidade ou à


universalidade dos seus valores.

- Ao contrário, afirma um relativismo convicto:

o valor de um artista ou de uma obra de arte é tão mutável quanto o de qualquer outra
experiência humana. O valor da arte reside na sua capacidade de questionar a própria
noção de um valor universal.

«(...) Por exemplo, se vigorar a crença em que o carácter é imutável e que a essência do
universo se manifesta continuamente em todos os caracteres e acções: então, a obra
do artista torna-se a imagem do eternamente permanente, enquanto que, para a
nossa maneira de ver, o artista só pode dar validade à sua imagem por um tempo,
porque o homem em geral resulta de uma evolução e é mutável, e o próprio homem
individual não é nada de firme e permanente.»
F. Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, p. 203.

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