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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE DIREITO

RICARDO ELIEZER DE SOUZA E SILVA MAAS

SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL


BLUMENAU
2008
RICARDO ELIEZER DE SOUZA E SILVA MAAS

SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para


obtenção do grau de Bacharel em Direito pela
Universidade Regional de Blumenau

Orientadora: Ivone Morcilo Fernandes Lixa

BLUMENAU
2008
SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL

Por

RICARDO ELIEZER DE SOUZA E SILVA MAAS

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado com


nota 9,7 como requisito parcial para a obtenção
do grau de Bacharel em Direito, tendo sido
julgado pela Banca Examinadora formada
pelos professores:

____________________________________________________________
Presidente: Profª – Ivone Morcilo Fernandes Lixa – Orientadora, FURB

____________________________________________________________
Membro: Profª Lenice Kelner – Examinadora, FURB

Blumenau, 10 de Novembro de 2008


DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Através deste instrumento, isento meu Orientador e a Banca Examinadora de qualquer


responsabilidade sobre o aporte ideológico conferido ao presente trabalho.

________________________________________
RICARDO ELIEZER DE SOUZA E SILVA MAAS
AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos à professora Ivone pela orientação e apoio.


- e a Justiça é mais severa
com os homens mais desarmados.

Cecília Meireles
RESUMO

Mais do que certas condutas tidas como criminosas, o sistema penal parece perseguir certos
indivíduos. Esse é o objetivo do presente trabalho, tentar compreender o funcionamento
seletivo do sistema penal moderno. A análise parte da reflexão acerca da lógica punitiva
moderna, com vistas a discutir as origens desse modelo de política criminal e confrontar as
funções declaradas do sistema penal, tais como a repressão e a ressocialização, e suas funções
reais, a estigmatização e a criação de verdadeiras carreiras criminais. Num segundo momento,
tentar-se-á desconstruir o mito do direito penal como igualitário, atingindo a todos
igualmente, independentemente de qualquer fator social. Ao final, a reflexão pretende
discutir, com base na criminológica crítica, a forma como fatores como raça e condição social
são determinantes na hora de se aplicar o direito penal. O objetivo institucional buscado foi a
confecção do Trabalho de Conclusão de Curso, com a finalidade de obtenção do Grau de
Bacharel em Direito. Utilizou-se o método indutivo, com pesquisas bibliográficas, livros,
artigos, pesquisa em saítes da internet e dados estatísticos sobre o sistema prisional brasileiro.

Palavras-chave: Criminologia Crítica. Sociologia Jurídica. Direito Penal.


ABSTRACT

More than certain conduct taken as criminals, the criminal justice system seems to prosecute
certain individuals. That's the goal of this paperwork, trying to understand the selective
functioning of the modern criminal justice system. The analysis starts with a reflection
regarding the modern punitive logic, in order to discuss the origins of this type of criminal
policy and to confront the declared functions of the penal system, such as repression and
resocialization, and its actual functions, the stigma and creation of criminal careers. Secondly,
we will be tried to deconstruct the myth of criminal law as equal, persecuting all, regardless of
any social factor. At the end, discussion, based on critical criminology, will be about the way
factors like race and social status are crucial in time to apply the criminal law. The
institutional objective sought was the construction of a college graduation thesis, with the aim
of obtaining the degree of bachelor of law. We used the inductive method, with bibliographic
searches, books, articles, searches on the Internet and statistics on the Brazilian prison system.

Key words: Criminology. Legal Sociology. Criminal Law.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8.
2 LÓGICA PUNITIVA MODERNA.....................................................................................9.
2.1 SISTEMA PENAL...............................................................................................................9.
2.1.1 Conceito............................................................................................................................9.
2.1.2 Segmentos do sistema penal...........................................................................................11.
2.1.3 Legitimação do sistema penal.........................................................................................12.
2.1.4 A função do sistema penal no estado moderno...............................................................14.
2.2 POLÍTICA CRIMINAL.....................................................................................................19.
3 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL........................................................................22.
3.1 O MITO DO DIREITO PENAL IGUALITÁRIO.............................................................22.
3.2 A TEORIA DO ETIQUETAMENTO...............................................................................25.
3.3 A CIFRA NEGRA E A CRIMINALIDADE DE COLARINHO BRANCO....................28.
3.4 SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DO SISTEMA PENAL.........32.
4 CONCLUSÃO.....................................................................................................................36.
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................38.
ANEXO I – ESTUDO DE CASO.........................................................................................39.
8

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República, no caput do seu art. 5o, coloca a igualdade de


tratamento perante a lei como garantia fundamental do individuo, juntamente com o direito a
vida e o direito a liberdade.
Nesse mesmo sentido, o sistema penal é colocado como o instrumento maior de
defesa da sociedade, cujo objetivo é repreender a delinqüência de forma indiscriminada.
Mas será que o sistema penal age realmente de forma indiscriminada, captando todos
que comentem algum tipo de crime, independentemente de qualquer fator racial ou social?
Uma analise mais apurada do seu funcionamento leva a crer que não.
É sob essa égide que o trabalho visa à discussão da problemática da atuação seletiva
do sistema penal, por se tratar de uma característica muito forte do sistema penal moderno.
A monografia foi desenvolvida de acordo com o método indutivo, mas não deixou de
utilizar, quando necessário, do método dedutivo, com base na legislação vigente, correntes
doutrinárias, institutos jurídicos e análise de dados estatísticos.
Serão abordadas em dois capítulos as considerações referentes à lógica punitiva
moderna, a seletividade do sistema penal.
O primeiro capítulo trata da lógica punitiva moderna, traz conceitos, descreve o real
funcionamento do sistema penal e seus segmentos. Apresenta ainda, considerações sobre os
mecanismos de legitimação do direito penal, o monopólio da violência pelo Estado e política
criminal.
No segundo capítulo entra-se na questão da seletividade do sistema penal
propriamente dita, iniciando-se com uma analise crítica da alegada igualdade de tratamento no
direito penal. Em seguida, apresenta-se a teoria do etiquetamento e sua relação com as
funções reais do sistema penal. Esboça alguns comentários sobre a criminalidade de colarinho
branco, sobre a chamada “cifra negra”, bem como sobre alguns mecanismos de seletividade
do moderno sistema penal.
O anexo I cuida de uma breve análise de dados estatísticos referentes ao sistema
prisional brasileiro e a confrontação desses dados com as teorias da seletividade do sistema
penal, ressaltando o conflito entre as funções declaradas e a real função do sistema penal.
Nas considerações finais vislumbra-se análise conjunta dos temas abordados com a
apresentação dos principais elementos que caracterizam a discussão atual da seletividade do
sistema penal.
9

2 LÓGICA PUNITIVA MODERNA

2.1 SISTEMA PENAL

2.1.1 Conceito

O “monopólio da violência” é uma das características do Estado moderno,


ou seja, na condição de pacificador da sociedade, somente o Estado pode fazer uso da força da
violência, do uso da ação coercitiva.
Todavia, trata-se de uma violência legitima, pois é autorizada pelo direito, a
fim de regulamentar a ação humana e garantir um convívio normal e democrático na
sociedade (WEBER, 1991, p. 525-526).
De acordo com Weber (1991, p. 526),
O Estado, do mesmo modo que as associações políticas historicamente
precedentes, é uma relação de dominação de homens sobre homens,
apoiada no meio da coação legítima (quer dizer, considerada
legitima). Para que ele subsista, as pessoas dominadas têm que se
submeter à autoridade invocada pelas que dominam no momento.

Assim, qualquer organização de dominação que exige uma administração


contínua necessita, num primeiro momento, da obediência dos indivíduos diante daqueles que
dizem ser os portadores do poder legitimo.
No Estado moderno, os indivíduos não dão vazão ao sentimento de
vingança pela própria força, mas sim buscam o Poder público para que este faça justiça.
Sendo que, “as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de
exercer coação física na medida em que o Estado permita (WEBER, 1991, p. 526-527).
Da mesma forma, mediante a obediência de seus cidadãos, o Estado requer
a disposição sobre os bens que serão necessários para aplicar a coação física.
E é da “crença na validade de estatutos legais e da ‘competência’ objetiva,
fundamentada em regras racionalmente criadas [...]” (WEBER, 1991, p. 526-527), através do
direito, da legalidade, que se legitima a dominação de uns sobre outros.
10

“A função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica


e social, à qual estamos nos referindo, é habitualmente chamada de ‘função conservadora’ ou
de ‘controle social’” (BATISTA, 1990, p. 21).
O controle social, por sua vez,
Não passa da predisposição de táticas, estratégias e forças para a
construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para
assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles
que não se integram à ideologia dominante”. É fácil perceber o
importante papel que o direito penal desempenha no controle social
(CASTRO, 1987 apud BATISTA, 1990, p. 22)

Nilo Batista (1990, p. 25) então conclui que, ao “grupo de instituições que,
segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal, chamamos
sistema penal”.
Para Zaffaroni (2007, p. 65-66):
Chamamos ‘sistema penal’ ao controle social punitivo
institucionalizado, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe
detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma
pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os
casos e condições para esta atuação. Esta é a idéia geral de “sistema
penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador,
do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da execução penal.

Ainda, dentro desses conceitos, é possível incluir-se procedimentos


rotineiros de controle de setores marginalizados da população, muitos conhecidos e até
mesmo tolerados, como os esquadrões da morte, torturas para obtenção de confissão,
espancamentos disciplinares, penas e execuções sem processo (ZAFFARONI, 2007, p. 66).
Desta forma, a partir do momento em que o Estado avoca para si a
competência exclusiva para resolução dos conflitos entre particulares e, por conseguinte, o
monopólio da violência, faz-se necessário a utilização de uma série de instrumentos que
possibilitarão a perpetuação desse monopólio do controle social, dentre os quais pode-se citar,
como um dos mais importantes, o sistema penal propriamente dito e suas instâncias de
atuação.
11

2.1.2 Segmentos do sistema penal

O sistema penal, visto como instrumento de dominação social, não é um


ente único e indivisível, mas sim um agrupamento de vários órgãos, entidades, etc. que lhe
dão sustentação e forma.
Em qualquer sistema penal podemos distinguir uma série de segmentos,
sendo que, em nossos sistemas penais atuais, os segmentos básicos são o policial, o judicial e
o executivo.
À polícia judiciária incumbe investigar determinado crime, sujeitando-se às
regras impostas pelo Código de Processo Penal (CPP). Uma vez concluído, o inquérito é
encaminhado a Vara Criminal competente. Tratando-se de um crime de ação penal pública, o
representante do Ministério Público oferecerá denúncia, e o procedimento previsto no CPP
desenrolar-se-á. Condenado o réu a pena privativa de liberdade sob regime fechado, ele será
recolhido a uma penitenciária e submetido aos ditames da Lei de Execução Penal (LEP).
Neste exemplo, vê-se a sucessiva intervenção, em três estágios, de três instituições: a
instituição policial, a instituição judiciária e a instituição penitenciária (BATISTA, 1990, p.
24-25).
Para Zaffaroni (2007, p. 66-67):
Trata-se de três grupos que convergem na atividade institucionalizada
do sistema e que não atuam estritamente por etapas, mas que têm um
predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do
sistema, podendo seguir atuando ou interferindo nas restantes.

Na América Latina, o que se tem visto é uma constante tendência em


diminuir ou neutralizar a interferência do Poder Judiciário, a fim de possibilitar a intervenção
de organismos do Poder Executivo, o que acaba por desequilibrar o princípio da tripartidação
dos poderes do Estado democrático (ZAFFARONI, 2007, p. 67).
Ademais, “do sistema penal não podem ser excluídos os legisladores nem o
público. Os primeiros são os que dão os padrões de configuração, embora freqüentemente eles
mesmos ignorem o que é que realmente criam, pois superestimam seu poder seletivo”
(ZAFFARONI, 2007, p. 67).
A lei penal faz parte da dimensão programadora do sistema penal, mas tem
caráter meramente programático, pois só enuncia um “dever-ser”, o que não tira dela um lugar
central no sistema (ANDRADE, 1997, p. 175).
12

O poder legislativo é, de qualquer modo, a fonte básica da


programação do sistema, enquanto as principais agências de sua
operacionalização são a Polícia, a Justiça e o sistema de execução de
penas e medidas de segurança, no qual a prisão ocupa o lugar central.
O sistema penal existe, pois, como a articulação funcional
sincronizada da Lei penal-Polícial-Justiça-Prisão e órgãos acessórios
(ANDRADE, 1997, p. 175).

O público, por sua vez, exerce seu papel no sistema penal, por meio da
denúncia, tendo em suas mãos a faculdade de desencadear funcionamento o sistema
(ZAFFARONI, 2007, p. 67).
Enfim, não se pode excluir do sistema penal o público, que, na
condição de denunciante, tem o poder de operacionalizar o próprio
sistema e na condição de opinião pública e “senso comum” interage
ativamente com ele. A opinião pública figura na “periferia” do sistema
(ZAFFARONI, 1987, p. 33; HULSMAN, 1993 apud ANDRADE,
1997, p. 175-176)

2.1.3 Legitimação do sistema penal.

O sistema penal é um dos principais instrumentos de controle e domínio do


Estado, todavia, são necessários discursos, “saberes e ideologias” para justificar e, mais
importante, legitimar seu exercício (BUSTOS RAMIREZ, 1983, p. 31; CARRASQUILLAS,
1988, p. 16 apud ANDRADE, 1997, p. 176).
Nesse sentido, Zaffaroni (2007, p. 68) coloca que:
O discurso jurídico ou judicial é, por regra geral, garantidor, baseado
na redistribuição ou na ressocialização (na Argentina e no Brasil
costumam-se combinar ambos; o discurso policial é
predominantemente moralizante; o discurso penitenciário é
predominantemente terapêutico ou de “tratamento”. O discurso
judicial desenvolve sua própria cultura: pragmática, legalista,
regulamentadora, de mera análise da letra da lei, com clara tendência à
burocratização.

Assim, a fim de garantir-lhe a existência e completar seus fins, houve


necessidade de que outras ciências viessem em socorro ao Direito Penal (SANTOS, J. W. S.,
1973, p. 23).
13

Tendo em vista que o sistema penal é uma complexa manifestação do poder


social, é necessário entender “legitimidade do sistema penal” como uma característica
outorgada por sua racionalidade (ZAFFARONI, 1991, p. 16).
O sistema penal quer mostrar-se como “um exercício de poder planejado
racionalmente”, e é através do discurso jurídico-penal, ou “ciência penal” que se pretende
explicar esse planejamento.
Todavia, caso a ciência penal fosse racional e agisse o sistema penal em
conformidade com a programação legal, só então haveria efetiva legitimidade (ZAFFARONI,
1991, p. 16).
O poder de punir e o sistema penal, atualmente, são marcados por dois
discursos legitimadores, o da legalidade, já que seu exercício está enquadrado dentro da
previsão legal e normativa, e o utilitarista, segundo o qual o sistema penal busca conectar-se
com sua finalidade declarada de defesa da sociedade.
Sobre o princípio da legalidade, Batista (ROXIN, 1981, p. 98;
ZAFFARONI, 1986, p. 49 apud 1990, p. 67) expõe que não compreende apenas o conceito de
“previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado”, mas também a acepção de
“sentimento de segurança jurídica”.
Nesse sentido, o Estado moderno se coloca como Estado de Direito e seu
poder de punir é apresentado como direito de punir (ANDRADE, 1997, p. 178).
E essa “produção ideológica legitimadora do poder penal, baseada no
princípio da legalidade, acompanha desde o começo a história do Direito Penal” (BARATTA,
1986, p. 79-80 apud ANDRADE, 1997, p. 178).
Mas, uma vez que a racionalidade do Direito não pode se fundamentar
unicamente sobre seus caracteres formais, mas requer sobretudo a
instrumentalidade do conteúdo com respeito a fins socialmente úteis, a
legalidade, representando um limite negativo e formal do poder de
punir, não esgota seu discurso legitimador (BARATTA, 1986, p. 82
apud ANDRADE, 1997, p. 179)

E é por essa razão, que além de atribuir ao sistema uma função de “proteção
de bens jurídicos”, é necessário atribuir também a pena funções socialmente úteis, tais como
prevenção e ressocialização. (ANDRADE, 1997, p. 179).
A legitimidade do sistema penal requer, desta forma, uma congruência
da sua dimensão operacional em relação à sua dimensão
programadora em nome da qual pretende justificá-lo; ou seja, requer
não apenas sua operacionalização no marco da programação
normativa (exercício racionalizado de poder), mas também o
14

cumprimento dos fins socialmente úteis atribuídos ao Direito Penal e à


pena (programação teleológica) (ANDRADE, 1997, p. 181).

De qualquer sorte, o que se vê é que existe um descompasso muito grande


entre o que o sistema penal almeja e o que ele faz.
Na criminologia de nossos dias, tornou-se comum a descrição da
operacionalidade real dos sistemas penais em termos que nada têm a ver com a forma pela
qual os discursos jurídico-penais supõem que eles atuem.
Em outras palavras, a programação legal baseia-se em uma realidade
inexistente. Da mesma forma, os órgão incumbidos de operacionalizar essa programação
atuam de forma completamente diferente. (ZAFFARONI, 1991, p. 12).
E Zaffaroni continua (1991, p. 13): “é bastante claro que, enquanto o
discurso jurídico-penal racionaliza cada vez menos – por esgotamento de seu arsenal de
ficções gastas -, os órgãos do sistema penal exercem seu poder para controlar um marco social
cujo signo é a morte em massa”.
De uma maneira geral, em que pese o sistema penal ser um instrumento de
dominação social, o discurso dominante é o de que as instituições que o integram têm a
função de guardiãs da sociedade, protegendo-a dos mal feitores. Isso se faz necessário para
que o sistema penal possa funcionar a toda potência.
Todavia, para que isso seja possível sem empecilhos, para que a sociedade
considere legitima suas atividades, é de vital importância reforçar essa idéia de defensor da
sociedade, instituição imprescindível a pacifica convivência social.

2.1.4 A função do sistema penal no estado moderno

As funções declaradas e justificadoras da atuação do sistema penal, em


regra, são a defesa social, a intimidação (prevenção geral negativa) e a ressocialização
(prevenção especial positiva).
Por intimidação, pode-se entender que, ao atuar implacavelmente e
indistintamente em defesa da sociedade, os delinqüentes sentir-se-iam amedrontadas de
praticar qualquer ilícito, pois, por certo, seriam capturadas na fina malha da justiça.
15

Quanto à ressocialização, segundo o discurso oficial, a pena, notadamente a


de prisão, aplicada ao delinqüente não é um castigo, mas sim um processo pelo qual o Estado
irá ressocializá-lo, fazendo-o compreender de que o crime não compensa.
Tais discursos são muito alentadores, levando muitos a crer no discurso
oficial de que o sistema penal é o garantidor de uma ordem social justa. Infelizmente seu
desempenho real destoa dessa aparência.
Para Foucault (1977, p. 234),
Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e
que, para isso, utilize a polícia como auxiliar, e a prisão como
instrumento punitivo, podendo deixar no rastro de sua ação o resíduo
inassimilável da “delinqüência”. Deve-se ver nessa justiça um
instrumento para o controle diferencial das desigualdades [...] Os
juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse
mecanismo. Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição
da delinqüência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades, o controle, a
colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe
dominante.

Ao sistema penal não cabe eliminar as ilegalidades, mas sim geri-las de


forma desigual, aplicando o poder punitivo de forma seletiva a certos indivíduos, que se
encaixam em determinado estereótipo (FOUCAULT, 1977, p. 75).
O sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente
as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu
funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas,
integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas
condutas (BATISTA, 1990, p. 26).

Assim, ao contrário do que se possa pensar, a lógica que desde a fundação


do sistema penal orienta o seu funcionamento não é a do tratamento igualitário, mas sim um
tratamento desigual, diferenciando, selecionado ou excluindo determinadas pessoas, de
acordo com suas características sociais.
O sistema também é colocado como justo, já que buscaria prevenir o delito,
restringindo sua atuação aos limites da necessidade.
Todavia, o que se vê, é que sua atuação é repressiva, seja pela frustração de
sua atividade preventiva, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais
(BATISTA, 1990, p. 26).
Os tradicionais discursos jurídico, criminológico, policial,
penitenciário, judicial e político proclamam o fim e a função
preventiva do sistema penal. Isto pode ser entendido em dois sentidos:
o sistema penal teria uma função preventiva tanto “especial” como
“geral”, isto é, por um lado daria lugar à “ressocialização” do apenado
16

e por outro advertiria ao resto sobre a inconveniência de imitar o


delinqüente. No que diz respeito ao primeiro, nos últimos anos se tem
posto de manifesto que os sistemas penais, em lugar de “prevenir”
futuras condutas delitivas, se convertem em condicionantes de ditas
condutas, ou seja, de verdadeiras “carreiras criminais” (ZAFFARONI,
2007, p. 68-69).

Com relação à apregoada “ressocialização”, principalmente mediante


tratamento nas instituições em que o sujeito passa prolongado período de tempo, estudos tem
revelado os efeitos dessas instituições sobre a personalidade do apenado, notadamente
deterioração psíquica, muitas vezes irreversível, culminando na franca crise da ideologia do
tratamento e na idéia geral de fracasso da prisão (ZAFFARONI, 2007, p. 70).
Todavia, mesmo que todo o staff da prisão fosse de primeira
qualidade, ainda assim não serviria melhor para a finalidade de
ressocializar o sentenciado. A questão, como já dissemos, não está
colocada na falta de pessoal habilitado ou na insuficiência de recursos
materiais. O que acontece é que é impossível treinar um homem preso
para viver em liberdade. E, se essa impossibilidade existe mesmo
quando se trate de penitenciárias providas de todos os recursos
humanos e materiais, o que dizer das cadeias e presídios onde as celas
são coletivas e a promiscuidade grassa livremente, onde não há
pessoal competente e mínguam os recursos materiais? (PIMENTEL,
1983, p. 157)

Para Pimentel (1983, p. 157), essa lógica da prisão, de almejar preparar um


homem preso para viver em liberdade, é algo comparável a pretender preparar um corredor
para uma corrida, fazendo-o ficar deitado em uma cama durante o mês que precede a corrida.
Quando acontece, eventualmente, de um preso apresentar-se como
regenerado, a avaliação desse fato conduz a desoladora conclusão.
Augusto Thompson cita em seu livro “A questão penitenciária” esta
passagem: “Dostoiévski, através da dolorosa experiência como
prisioneiro, extraiu a conclusão de que o convicto regenerado é,
apenas, uma múmia ressequida e meio louca. E Papillon atribuiu seu
sucesso de adaptação à vida livre exatamente à circunstância de ter
sido, sempre, o inverso de um bom preso (PIMENTEL, 1983, p. 160).

“Ainda que divina, a punição talvez não eduque o homem” (SANTOS, J. W.


S., 1973, p. 23).
Contudo, ao aparentemente fracassar em seu objetivo declarado de combater
a criminalidade, a prisão não erra seu objetivo ao estabelecer uma ilegalidade visível e
socialmente útil, estigmatizando determinado grupo de pessoas e deixando a sombra as que se
quer ou se deve tolerar (FOUCAULT, 1977, p. 230).
17

Nesse mesmo sentido, apresenta-se o sistema penal como comprometido


com a proteção da dignidade humana, mas a pena é estigmatizante e promove uma
degradação da figura social de sua clientela (BATISTA, 1990, p. 26).
Tudo isso demonstra que, ao menos em boa medida, o sistema penal
seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza a certas pessoas
segundo sua classe e posição social. […] Há uma clara demonstração
de que não somos todos igualmente “vulneráveis” ao sistema penal,
que costuma conduzir-se por “estereótipos” que recolhem os
caracteres dos setores marginalizados e humildes, que criminalização
gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se
solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém
na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades
como permanentes suspeitos incrementa a estigmatização social do
criminalizado (ZAFFARONI, 2007, p. 69).

Seletividade, repressividade e estigmatização são as características mais


marcantes de sistemas penais como o nosso.
Isso ocorre, pois, nosso sistema penal é reflexo de nosso sistema social,
sendo que a estigmatização e a marginalização integram sua função política de perpetuação do
atual modelo de sociedade.
Não se pode apegar-se somente à letra fria da lei, sem considerar a
contradição que existe entre as linhas programáticas legais e o real funcionamento das
instituições que as executam (BATISTA, 1990, p.26).
“Em definitivo, em um nível mais alto de abstração o sistema punitivo
se apresenta como um subsistema funcional da produção material e
ideológica (legitimação) do sistema social global; ou seja, das relações
de poder e propriedade existentes, mais do que como instrumento de
tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos. (BARATTA,
1987, p. 625 apud ANDRADE, 2003, p. 56)

“Trata-se, em última instância, da recondução do sistema penal a um


sistema seletivo classista e de violência institucional como expressão e reprodução da
violência estrutural, isto é, da injustiça social”. (ANDRADE, 2003, p. 56)
Os objetivos ideológicos do aparelho penal se resumem em duas
metas: a repressão da criminalidade e o controle (e redução) do crime.
Os objetivos reais do sistema carcerário aparecem em uma dupla
reprodução: reprodução da criminalidade (recortando formas de
criminalidade das classes dominadas e excluindo a criminalidade das
classes dominantes) e reprodução das relações sociais (a repressão da
criminalidade das classes dominadas funciona como tática de
submissão ao poder das classes dominantes) (SANTOS, J. C., 1981, p.
57).
18

Nesse mesmo sentido, J. C. Santos (1981, p. 42), entende que isso ocorre,
pois a atuação do sistema penal esta atrelada ao sistema de produção e, por conseguinte, ao
mercado de trabalho:
Este conceito se desdobra em duas hipóteses: se a força de trabalho é
insuficiente para as necessidades do mercado, a punição assume a
forma de trabalho forçado, com finalidades produtivas e preservativas
da mão-de-obra; se a força de trabalho é excedente das necessidades
do mercado, a punição assume a forma de penas corporais, com
destruição ou extermínio da mão-de-obra: a abundância torna
desnecessária a preservação (RUSCHE, 1977, p. 4 apud SANTOS, J.
C., 1981, p. 42).

Essa teoria exemplifica a relação existente entre o funcionamento e


evolução do sistema penal e as relações de classes, pois, segundo ela,
São as relações do mercado de trabalho, no período capitalista, que
explicam a generalização da prisão como método de controle e
disciplina das relações de produção (fábrica) e de distribuição
(mercado), com o objetivo de formar um novo tipo humano: a força de
trabalho necessária e adequada ao aparelho produtivo (MELOSSI,
1973, p. 75 apud SANTOS, J. C., 1981, p. 43).

É a aquilo que Foucault (1977, p. 195) chamou de a produção de


“indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo” para objetivos
econômicos específicos.
O que se objetiva com o encarceramento de determinado sujeito não é a sua
“ressocialização”, mas sim sua reconstituição como “sujeito obediente” às ordens, às regras, à
autoridade, bem como sua adequação aos processos produtivos, “com o aprendizado das
regras da propriedade, a disciplina no trabalho produtivo, a estabilidade no emprego, na
família, etc.” (SANTOS, J. C., 1981, p. 53, 58).
O sistema penal representa uma estratégia de poder (definida nas
instituições jurídico-políticas do Estado), explicável como política das
classes dominantes, para produção permanente de uma “ideologia de
submissão” em todos os vigiados, corrigidos e utilizados na produção
material (SANTO, J. C., 1981, p . 44).

Ou seja, ao invés da ressocialização do prisioneiro, o que o sistema penal


objetiva é a sua “domesticação” e reintegração à lógica do trabalho capitalista.
19

Para Andrade (1997, p. 196), trata-se de aumentar a eficácia produtiva do


homem e diminuir sua força política, garantindo e reproduzindo as relações de poder dentro
da sociedade.
Assim, a apregoada busca pela “defesa social” pelo sistema penal, deve ser
entendida como “defesa das condições morais materiais e ideológicas da sociedade
capitalista” (SANTOS, J. C., 1981, p. 52, 64).
O sistema penal é, então, o instrumento do qual as classes dominantes se
valem para perpetuarem sua opressão sobre as classes dominadas.
Infelizmente, não obstante o sempre crescente aumento da delinqüência, a
indução da reincidência, com a transformação do infrator ocasional em delinqüente habitual,
características mais marcantes do nosso aparelho penal, essa lógica fracassada de
funcionamento vem garantido, há anos, a manutenção do sistema (SANTOS, J. C., 1981, p.
56).

2.2 POLÍTICA CRIMINAL.

Para Batista (1990, p. 34):


Do incessante processo de mudança social, dos resultados que
apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das
revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições
que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da
criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou
transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua
aplicação. A esse conjunto de princípios e recomendações denomina-
se política criminal.

Nesse mesmo sentido, pode-se conceituar, ainda, política criminal como:


Conjunto sistemático dos princípios fundados na investigação
cientifica das causas do crime e dos efeitos das penas, segundo os
quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da
pena e das instituições com esta relacionadas (LISZT, 1905, p. 292
apud DIAS e ANDRADE, 1992, p. 93).

Política criminal, então, é algo como a ciência de escolher os bens ou


direitos que devem ser tutelados, assim como os caminhos para efetivar essa tutela. Além de
guiar as decisões do poder político, também proporciona argumentos para criticar os valores e
meios já escolhidos.
20

Assim como a legislação penal é parte da legislação em geral, isto é,


do ordenamento jurídico, deve ser interpretada sempre dentro deste
contexto, a política criminal é também um capítulo da política geral,
que deve ser sempre entendido dentro deste marco geral. Daí surge a
relação íntima existente ente as política criminais e as ideologias
políticas (ZAFFARONI, 2007, p. 120).

A política criminal proporciona o componente teleológico interpretativo ao


saber penal. Da mesma forma, o saber penal acaba se valendo de uma ideologia política para
interpretar seu objeto de conhecimento. Interpretações essas que se traduzem em soluções
estabelecidas por um poder de Estado, ou atos de decisão política, para casos concretos
(ZAFFARONI, 2007, p. 120).
Desta forma, partindo-se dos conceitos já expostos e da idéia de que o
sistema penal é um mero instrumento de dominação das classes dominantes, tem-se que a
política criminal segue o mesmo caminho, dando continuidade ao mesmo projeto, ao dar
ênfase a perseguição dos crimes praticados por aqueles advindos das camadas oprimidas da
sociedade (crimes contra o patrimônio), e impondo uma quase que total impunidade aos
crimes tipicamente praticados pelos opressores (crimes contra o sistema financeiro, por
exemplo).
Essa distorção ideológica pode ser exemplificada pela demonstração das
alternativas do trabalhador na sociedade capitalista: “Conformar-se à brutalização,
transformando-se em um homem sem vontade, destruído pela rotina, a monotonia, a exaustão
física e mental dos processos produtivos” ou furtar a propriedade do rico para satisfazer
necessidades básicas, com os riscos da criminalização (YOUNG, 1980, p. 94-96 apud
SANTOS, J. C., 1981, p. 12).
Os crimes patrimoniais, inclusive, segundo estatísticas, seriam os mais
comuns em uma sociedade capitalista. Estes crimes, na realidade, constituem, como já dito,
uma tentativa normal e consciente para suprir carências econômicas dos deserdados sociais,
ao contrário dos crimes de abuso econômico e políticos, que visam à mera acumulação de
capital e/ou perpetuação no poder dos poderosos, que refletem muito mais negativamente na
sociedade do que os crimes contra o patrimônio praticados pelos “não proprietários”. Todavia,
o que se observa, é que estes é que são estigmatizados como os grandes vilões da paz social
(SANTOS, J. C., 1981, p. 9).
“O criminoso estereotipado é o ‘bode expiatório’ da sociedade, como objeto
da agressão das classes dominantes, que substitui e desloca a sua revolta contra as classes
dominantes” (CHAPMAN, 1968, p. 197 apud SANTOS, J.C., 1981, p. 15).
21

A política penal oficial é delimitada pelos processos de criminalização


e de estigmatização penal (definição de crimes, aplicação da lei penal
e execução das penas e medidas de segurança), cuja estratégia
(limitada as relações de distribuição) objetiva o controle das classes
dominadas e a disciplina da força de trabalho, mediante uma política
de criminalização, revigorada e ampliada por formas alternativas de
controle social (SANTOS, J. C., 1981, p. 82).

De qualquer sorte, mesmo considerando-se as recentes alternativas criadas à


prisão, como a transação penal, o sursis, o livramento condicional, o que se vê é que reduziu-
se a prisão, mas ampliou-se o controle da população criminalizada (SANTOS, J. C., 1981,
78).
[...] a ampliação da rede de controles como sursis, o livramento
condicional, a justiça juvenil, os reformatórios, as prisões abertas, etc.,
cujos manifestos benefícios pessoais abrigam um aspecto
contraditório, que significa controle mais geral e dominação mais
intensa (PLATT, 1980, p. 116 apud SANTO, J. C., 1981, p. 11)

E mesmo nesses casos de aplicação de penas alternativas, quando


“elementos relativos à situação familiar e profissional do acusado jogam um papel decisivo”,
os acusados advindos de camadas superiores da sociedade são, por óbvio, favorecidos. O que
não ocorre com os marginalizados, pois, com relação a esses,
Prevalece a tendência a considerar a pena detentiva como mais
adequada, no seu caso, porque é menos comprometedora para o seu
status social já baixo, e porque entra na imagem normal do que
freqüentemente acontece a indivíduos pertencentes a tais grupos
sociais [...] Assim, as sanções que mais incidem sobre o status social
são usadas, com preferência, contra aqueles cujo status social é mais
baixo (BARATTA, 1999, p. 178).

Enfim, na perspectiva da criminologia crítica, a ação do Estado, não só no


âmbito penal, reflete os interesses dos grupos sociais que detêm o poder econômico.
Interesses esses, que pelas mãos do Estado são institucionalizados e
instrumentalizados na hora de decidir quais são os bens e direitos que devem ser tutelados
pelo direito penal e, por conseguinte, quem são os sujeitos que deverão ser perseguidos
criminalmente (BARATTA, 1999, p. 135).
22

3 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL

3.1 O MITO DO DIREITO PENAL IGUALITÁRIO

No caput do art. 5º da Constituição Federal, aquele dos direitos e garantias


fundamentais, encontram-se os seguinte dizeres: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza [...]”.
Todavia, como já explanado no capitulo anterior deste trabalho, o
funcionamento do nosso sistema penal atua em sentido contrário a essa garantia constitucional
de isonomia de tratamento perante a lei.
E a razão desse tratamento desigual é perpetuar a opressão de uma classe
social mais forte sobre outra mais fraca. O objetivo é manter o domínio daqueles que possuem
o poder econômico e, subsidiariamente, estigmatizar, etiquetar aqueles que furtam a
propriedade dos opressores para subsistir, ao invés de se conformar com a lógica do modo de
produção capitalista.
Mas para que essa lógica punitiva funcione como esperado e sem criar
alarde, é necessário criar discursos legitimadores, como o da “defesa social”, da
“ressocialização”, entre tantos outros sustentados pelo pela dogmática jurídica.
Poder-se-ia dizer que não, que o sistema penal é imparcial e isento,
atingindo a tudo e a todos com a mesma intensidade, conforme garantia constitucionalmente
solidificada.
Uma analise do nosso sistema punitivo e os resultados de pesquisas
empíricas sobre os mecanismos de criminalização podem ser condensados em três
proposições que constituem a negação radical do “mito do direito penal como igualitário” que
está na base da ideologia da defesa social:
a) o direito penal não defende a todos e somente os bens essenciais nos quais
todos os cidadãos estão igualmente interessados e quando castiga as ofensas
aos bens essenciais, o faz com intensidade desigual e de modo parcial
(fragmentário); b) a lei penal não é igual para todos. O status criminal é
desigualmente distribuído entre os indivíduos; c) o grau efetivo de tutela e da
distribuição do status de criminal é independente da danosidade social das
ações e da gravidade das infrações à lei, pois estas não constituem as
principais variáveis da reação criminalizadora e de sua intensidade
(BARATTA apud ANDRADE, 1997, p. 282)
23

Será que algum grande empresário culpado pela prática de abuso do poder
financeiro ou político, os chamados “crimes de colarinho branco”, sempre com reflexos
nefastos na vida de muitas pessoas, será punido com a mesma intensidade que alguém
advindo das classes menos favorecidas pego furtando um pote de margarina?
A comparação pode parecer meio exagerada, mas a realidade é que, muitas
vezes, na hora da criminalização de determinado individuo, parecem existir alguns fatores que
são levados mais em consideração do que a conduta praticada.
Sobre essa questão, Zaffaroni (2007, p. 107) ensina que
Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito
penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação
extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato
em si, mas o ato como manifestação de uma “forma de ser” do autor,
esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de
sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso,
seria a personalidade e não o ato. Dentro desta concepção não se
condena tanto o furto, como o “ser ladrão”, não se condena tanto o
homicídio como o ser homicida, o estupro, como ser delinqüente
sexual etc.

Ou seja, no dito “direito penal do autor”, o réu é punido mais pelo que ele é,
do que pelo que ele fez. Ou melhor, para fins penais, na hora de desencadear o processo
punitivo e aplicar a pena, mais importante do que o ato cometido pelo acusado, é quem ele (o
acusado) é.
O conceito de “direito penal do autor” corrobora o ditado popular de que, no
Brasil, os três pês, pretos, pobres e p., são mais visados pelo sistema penal do que outras
pessoas.
Nesse mesmo sentido, Andrade (1997, p. 270) coloca que,
A clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque
tenham uma maior tendência de para delinqüir, mas precisamente
porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados
como delinqüentes. As possibilidades (chances) de resultar etiquetado,
com as graves conseqüências que isto implica, se encontram
desigualmente distribuídas.

Para Baratta (1999, p.131), “a criminalidade é um status social atribuído a


uma pessoa por quem tem poder de definição”.
Atualmente, em nossa estrutura social, quem detêm o poder econômico,
detêm o poder de, entre tantas outras coisas, dizer o que é, e o que não é crime.
24

E é por isso que os “três pês” são muito mais perseguidos pelo aparelho
penal do que aqueles perpetradores de “crimes de colarinho branco”, pois são justamente
esses segundos que “escolhem” o que deve ser perseguido pelo direito penal, já que são os
detentores do poderio econômico.
O resultado disso é a intensidade com que se penaliza o furto, crime
tipicamente praticado por “não proprietários” e que afronta a lógica do capitalismo, e a quase
que total impunidade existente para com os crimes contra o sistema financeiro, tipicamente
praticados por grandes empresários, mesmo sendo muito mais danosos para a sociedade como
um todo.
Não é de se estranhar que o sistema penal é tão zeloso em sancionar o
protesto político ou o consumo de estupefacientes e tão tolerante com a criminalidade de
colarinho branco (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 47)
Ademais, a mídia, em sintonia com o Capital, cumpre seu papel imunizando
e ignorando os crimes praticados pelas classes altas, e identificando a criminalidade como a
violência individual das classes baixas, agravando a estigmatização das classes despossuídas
no senso comum.
Com efeito, a crença cega na igualdade do direito penal, contribui para
mistificar os mecanismos de seleção e estigmatização dos “clientes” do sistema penal.
“[...] uma aparência de racionalidade aos mesmos processos de
estigmatização que no Antigo Regime tiveram lugar sobre a base de
crenças ou adesões de fé. A verdade da ciência substitui a verdade da
fé em sua justificação da discriminação e desigualdade perante a lei
penal. Não é necessário acudir aos planteamentos da mais-valia para
concluir que a questão criminal não é congênita a um determinado
grupo social (RAMIREZ, 1987, p. 18 apud ANDRADE, 1997, p.
271).

Para Andrade (1997, p. 271), os vários discursos que cuidam de legitimar a


idéia de direito penal igualitário, são a
[...] matriz fundamental na produção (e reprodução) de uma imagem
estereotipada e preconceituosa da criminalidade e do criminoso
vinculada aos baixos estratos sociais que condiciona, por sua vez, a
seletividade do sistema penal, num círculo de representações
extraordinariamente fechado que goza de uma secular vigência no
senso comum geral e nos operadores do controle penal em particular.

A essa estigmatização dos indivíduos advindos dos estratos mais baixos da


sociedade, convencionou-se chamar de labeling aproach ou teoria do etiquetamento.
25

3.2 A TEORIA DO ETIQUETAMENTO

Essa teoria parte da premissa que determinados indivíduos são “etiquetados”


como criminosos, como, por exemplo, aqueles advindos dos estratos mais baixos da
sociedade, como se somente estes é que fossem capazes de práticas delituosas.
Para a criminologia positivista, amplamente adotada pelo nosso sistema
penal,
A criminalidade é o atributo de uma minoria de indivíduos
socialmente perigosos que, seja devida a anomalias físicas
(biopsicológicas) ou fatores ambientais e sociais, possuem uma maior
tendência de delinqüir. Sendo um sintoma revelador da personalidade
mais ou menos perigosa (anti-social) de seu autor, para a qual se deve
dirigir uma adequada defesa social, a criminalidade constitui uma
propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos
normais (FERRI, 1931 apud ANDRADE, 1997, p. 263-264).

É a projeção do mal e da culpa na figura do “bode expiatório”, substituído


as funções preventivas e éticas nas quais se baseia a ideologia penal tradicional (ANDRADE,
1997, p. 201).
No labeling aproach, parte-se da ideia de que o crime não é uma qualidade
ontológica da ação criminosa, mas antes o resultado de uma reação social e que o delinqüente
apenas se distingue do homem normal devido à estigmatização que sofre. Daí que o tema
central desta perspectiva criminológica seja precisamente o estudo do processo de interação,
no termo do qual um indivíduo é estigmatizado como delinqüente (DIAS; ANDRADE, 1984,
p. 50).
Nessa mesma linha, Andrade (1997, p. 205), coloca que o labeling,
Parte dos conceitos de “conduta desviada” e “reação social”, como termos
reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o
desvio – e a criminalidade – não é uma qualidade intrínseca da conduta ou
uma entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas
uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de
complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e
informais de definição ou seleção.

Ao contrário do que possa se pensar, esse processo de estigmatização social


tem lugar no seio do controle social e não a sua margem, tanto é que este modo de considerar
26

a criminalidade esta profundamente enraizada no senso comum e materializa-se no estereotipo


de delinqüente. Por via de conseqüência, as regiões em que as pessoas etiquetadas como
criminosos se concentram, tornam-se “áreas de concentração de crimes e criminosos” e
provocam uma presença diferencial da policia.
Tanto é que contumazmente se vê incursões da polícia em regiões
marginalizadas, como morros e favelas, enquanto que nunca se vê esse tipo de movimentação
em áreas tidas como “nobres”.
Será que a criminalidade está restrita aos morros e favelas? Ou será que não
se consomem drogas nem se praticam ilegalidades em edifícios de luxo?’
O sistema penal concentra sua atividade em áreas marginalizadas e contra
indivíduos advindos dessas áreas, pois esses possuem a “etiqueta” de marginais. Até porque,
como já dito, são aqueles que moram em coberturas de luxo que decidem o que é, e o que não
é crime, a fim de incrementar seus interesses econômicos e políticos.
Nesse sentido, Pimentel (1983, p. 11) coloca que “a escola positivista trouxe
uma profunda modificação, introduzindo o conceito de periculosidade social, motivando
radical alteração nos critérios punitivos, pois deslocou o enfoque do ente jurídico para a
pessoa do criminoso”.
Por isso mesmo, ao lado daquelas figuras que no consenso social
merecem ser consideradas crimes, e geralmente o são, existem outras
que deveriam ser tipificadas e, no entanto, escapam através das malhas
grossas da tolerância; e, ao revés, comportamentos menos ofensivos,
por serem comumente atribuídos aos indivíduos dos estratos sociais
mais baixos, são aprisionados na rede fina da pressão e acabam
convertidos em tipos penais (PIMENTEL, 1983, p. 15).

A corrente da criminologia crítica tenta elucidar essa distorção deslocando o


foco de analise do fenômeno criminal, do sujeito criminalizado para o sistema penal e os
processos de criminalização que dele fazem parte (BARATTA, 1999, p. 49).
O principio da igualdade cai por terra quando confrontado com a teoria do
etiquetamento, pela qual se demonstra que o desvio e a criminalidade não são entidades
inerentes e preconstituídas, identificáveis pela ação do sistema penal, mas sim “uma qualidade
atribuída a determinados sujeitos por meio de mecanismos oficiais e não oficiais de definição
e seleção” (ANDRADE, 1997, p. 201).
Segundo a definição sociológica, a criminalidade, como em geral do
desvio, é um status social que caracteriza ao individuo somente
quando lhe é adjudicada com êxito uma etiqueta de desviante ou
27

criminoso pelas instâncias que detêm o poder de definição


(ANDRADE, 1997, p. 202).

Nessa perspectiva, a teoria do etiquetamento é resultado de um sistema


penal de atuação desigual e seletiva, onde a pessoa do etiquetado é mais importante do que
seu comportamento.
[...] os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração
constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e
qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio
não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma conseqüência
da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um “ofensor”. O
desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação
(etiqueta); a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente
(BECKER, 1971, p. 19 apud ANDRADE, 1997, p. 206).

Como já dito, o que o sistema penal busca não é a alegada defesa social,
mas sim a defesa dos interesses dos detentores do poder, funcionando como mero legitimador
das relações de poder dentro da sociedade.
Ademais, essa atuação seletiva do aparato penal, enquanto agência de
controle social, voltada a indivíduos etiquetados como criminosos, é um dos instrumentos de
perpetuação dessa dominação de uma classe social sobre outra.
A legitimação tradicional do sistema penal como sistema necessário à tutela
das condições essenciais de vida de toda a sociedade civil, além da proteção
de bens jurídicos e de valores igualmente relevantes para todos os
consórcios, é fortemente problematizada no momento em que se passa –
como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social – da pesquisa
sobre a aplicação seletiva das leis penais à pesquisa sobre a formação mesma
das leis penais e das instituições penitenciárias (BARATTA, 1991a, p. 115
apud ANDRADE, 1997, p. 210).

“Por isso, mais apropriado que falar em criminalidade (e do criminoso) é


falar da criminalização (e do criminalizado) e esta é uma das várias maneiras de construir a
realidade social” (ANDRADE, 1997, p. 205).
Ainda com relação à estigmatização das classes desfavorecidas, Pimentel
(1983, p. 17) expõe que, com base em dados estatísticos do sistema penitenciário de São
Paulo, nota-se que 95% do encarcerados são advindos das camadas inferiores do estrato
social. Todavia, ao mesmo tempo, segundo levantamentos também feitos na cidade de São
Paulo, verifica-se que apenas 5% dos “favelados” delinqüem.
28

O que o levou a concluir que, “a pobreza não é causa de crime, pois, se o


fosse, todos os pobres cometeriam crimes, o que, felizmente não acontece. Mas, certamente, a
pobreza é fato de crime, porque os 95% de encarcerados provieram da classe mais humilde”.
Deste ponto de vista, a criminalidade não é uma exceção restrita aos estratos
sociais mais baixos, mas sim uma regra disseminada em todos os níveis da pirâmide social. O
problema é que aqueles que pertencem às classes oprimidas têm muito mais chances de serem
captados e etiquetados como criminosos pelas diversas instâncias do sistema penal.

3.3 A CIFRA NEGRA E A CRIMINALIDADE DE COLARINHO BRANCO

Uma vez suscitada essa questão da teoria do etiquetamento e verificado que


a criminalidade não é a exceção, mas sim a regra em nossa sociedade, não se restringindo as
classes sociais marginalizadas, faz-se necessário analisar dois outros “problemas” com relação
à criminalidade: o crime de colarinho branco e a cifra negra.
De acordo com pesquisas realizadas pelo sociólogo norte-americano Edwin
Sutherland, existe uma modalidade de criminalidade, praticada por indivíduos de alto
prestigio social, que raramente aparece nas estatísticas criminais. São o que Sutherland
chamou de White Collar Crimes, ou crimes de colarinho branco.
Como dito, os crimes de colarinho branco são infrações praticadas por
indivíduos que gozam de prestigio social no âmbito econômico.
Alguns exemplos de crimes de abuso econômico são o dumping, truste¸
monopólio, etc. São, de uma maneira geral, ações pela quais esses indivíduos, se valendo do
poder econômico/político de que gozam, obtêm vantagens, normalmente grande acumulação
de capital.
Com apoio de dados estatísticos, Sutherland demonstrou o quão freqüentes
eram as infrações a normas gerais neste setor (BARATTA, 1999, p. 101).
Para Baratta (1999, p. 101), a criminalidade de colarinho branco
[...] correspondem a um fenômeno criminoso característico não só dos
Estado Unidos da América, mas de todas as sociedades de capitalismo
avançado. Sobre o vastíssimo alcance deste fenômeno influíram, de maneira
particular, as conivências entre classe política e operadores econômicos
privados, conivências que tiveram eficácia não só sobre causas do fenômeno,
mas também sobre a medida muito escassa, em relação a outras formas de
criminalidade, em que a criminalidade de colarinho branco, mesmo sendo
29

abstratamente prevista pela lei penal, é de fato perseguida.

Em grande medida, essa impunidade ocorre, pois a criminalidade de


colarinho branco esta funcionalmente atrelada a nossa estrutura social e acaba escapando da
vigilância da lei por fatores sociais, tais quais:
O prestigio dos autores das infrações, o escasso efeito estigmatizante das
sanções aplicadas, a ausência de um estereótipo que oriente as agências
oficiais na perseguição das infrações, como existe, ao contrário, para as
infrações típicas dos estratos mais desfavorecidos (BARATTA, 1999, p.
102).

O fato é que esses crimes são praticados por quem “escolhe” o que deve, ou
não, ser perseguido pelo direito penal, em razão da constante interpenetração do poder
político pelo poder econômico.
Os poucos processo que são instaurados para apurar esse tipo de crime, “se
não terminam em absolvição, dão lugar a condenações muitas vezes puramente simbólicas,
sem o estigma e os custos da prisão (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 536).
Os crimes de colarinho branco são considerados “crimes sem vítimas” ou
“crimes de vítimas abstratas”, pois, normalmente, não atingem uma pessoa especifica, mas
sim a sociedade como um todo.
E por isso mesmo, seus reflexos são de extrema gravidade e muito piores do
que qualquer furto ou o simples usos de substâncias entorpecentes. Por exemplo, no caso dos crimes
em que o próprio Estado é lesado e são subtraídos valores que reverteriam em investimentos na saúde,
segurança e educação, para não falar em outros serviços públicos essenciais, acarretando a perda de
vidas humanas pela deficiência desses serviços.
Ou ainda, o resultado de uma crise econômica, como a que estamos
vivenciando atualmente, com reflexos terríveis em diversos países, tudo em razão da
irresponsável especulação financeira nos Estados Unidos.
Historicamente, todas as sociedades, no seu tempo e ao seu modo,
engendraram fatores criminógenos. Os hábitos e condutas privativas dos
nobres, pelo contágio hierárquico, passaram para a burguesia, tornando-se
comuns os saques, as violações, os seqüestros, a embriaguez,
comportamentos que não acarretam punições para os nobres, mas que se
tornam criminosos quando cometidos pelos homens do povo (PIMENTEL,
1983, p. 19).

Ainda hoje em dia, esses tipos de comportamento desviantes, praticados por


30

pessoas altamente situadas nas esferas governamentais e políticas, apesar de violarem o


sentimento de justiça da comunidade, normalmente não são considerados delituosos.
Não obstante, mesmo quando são consideradas como criminosas, as
condutas delituosas desses indivíduos raramente figuram nas estatísticas oficias.
A este fenômeno, pelo qual certos delitos não aparecem nas estatísticas
oficias de criminalidade, em especial aqueles praticados pelos detentores de poder econômico,
dando a impressão de que a criminalidade se restringe a determinada classe social, deu-se o
nome de “cifra negra” ou criminalidade oculta.
As pesquisas sobre esta forma de criminalidade [criminalidade de colarinho
branco] lançaram luz sobre o valor das estatísticas criminais e de sua
interpretação, para fins de analise da distribuição da criminalidade nos vários
estratos sociais, e sobre as teorias da criminalidade relacionadas com estas
interpretações. De fato, sendo baseadas sobre a criminalidade identificada e
perseguida, as estatísticas criminais, nas quais a criminalidade de colarinho
branco é representada de modo enormemente inferior à sua calculável “cifra
negra”, distorceram até agora as teorias da criminalidade, sugerindo um
quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais
(BARATTA, 1999, p. 102).

As estatísticas oficiais sobre a criminalidade mascaram a real criminalidade,


deixando de fora os crimes praticados por aqueles no topo da pirâmide social (criminalidade
oculta), e reforçando o estigma, a etiqueta de delinqüente dos desfavorecidos, dando a falsa
impressão de que a criminalidade está restrita aos estratos mais baixos da sociedade.
O objetivo disso é claro: legitimar e orientar a atuação seletiva do sistema
penal, mostrando a criminalidade como somente originada de pessoas pobres, em má situação
familiar e acometidas de desvios psicológicos.
Estas conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da
criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado,
influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo,
socialmente “seletiva”, mas também sobre a definição corrente de
criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais,
compartilha. Realmente, esta definição de criminalidade, e as
correspondentes reações não institucionais por ela condicionadas (a reação
da opinião pública e o alarme social), estão ligadas ao caráter estigmatizante
que a criminalidade leva, normalmente, consigo, que é eficacíssimo no caso
da criminalidade de colarinho branco (BARATTA, 1999, p. 103).

Em poucas palavras, pode-se dizer que a criminalidade oculta, ou cifra


negra, é a criminalidade não apresentada ao sistema formal de controle ou por ele não
recebida.
31

A verdade, é que a estatística criminal, ao invés de quantificar a


criminalidade realmente ocorrida, pouco informa nesse sentido, mas proporciona dados
precisos sobre a magnitude da criminalização e reforçando a teoria do etiquetamento.
Constado isso, as estatísticas criminais adquirem uma nova dimensão
científica, como instrumento privilegiado para o estudo da lógica do controle social e dos
modelos de comportamento seletivo das agências de controle penal e das suas especificas
clientelas (ANDRADE, 1997, p. 262).
Nesse sentido, Dias e Andrade (1984, p. 137) citam um estudo sobre a
delinqüência de jovens estudantes universitários, oriundos de classes sociais privilegiadas:
A sua conclusão mais significativa é a de que, em matéria de delinqüência
real, não há diferenças significativas entre estes jovens e os jovens
estudantes pertencentes aos estratos mais desqualificados. A única diferença
é que, ao contrário do que sucede com estes últimos, a delinqüência dos
primeiros escapa sistematicamente aos registros oficiais. Um dos temas
centrais deste tipo investigação tem sido precisamente o problema da
localização social da delinqüência, sendo recorrente a conclusão de que a
uma homogeneidade tendencial no que toca à criminalidade real corresponde
um peso diferencial nas estatísticas oficiais em função da raça e do estatuto
econômico-social.

Daí se deriva a conclusão fundamental de que “a imunidade e não a


criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal (HULSMAN apud ANDRADE,
1997, p. 266).
A conduta criminal é, então, o comportamento de muitos ou até da maioria
dos membros de nossa sociedade.
Na realidade, em qualquer sociedade onde existe liberdade e onde as
pessoas são, em tese, livres, há que se suportar certa taxa de criminalidade.
O que é preciso, como disse Durkheim, é lembrar que quando a taxa de
criminalidade é inusitadamente alta, como acontece agora no mundo
capitalista, esse excesso é de natureza mórbida e revela que essa sociedade
está doente ou que algo não está certo em seu seio (PIMENTEL, 1983, p. 24)

Assim, levando-se em conta que a conduta desviante é majoritária e


disseminada por toda a pirâmide social, mas, em quase todos os lugares do mundo, a clientela
do sistema penal normalmente é formada por pessoas pertencentes às classes sociais mais
baixas, conclui-se, então, que há um processo de seleção de pessoas que são etiquetadas como
delinqüentes e não, com se pretende, um mero processo de seleção de condutas tidas como
criminosas.
Desta forma, a “minoria criminal” a que se refere a explicação etiológica (e a
32

ideologia da defesa social a ela conecta) é o resultado de um processo de


criminalização altamente seletivo e desigual de “pessoas” dentro da
população total, enquanto a conduta criminal não é, por si só, condição
suficiente deste processo. Pois os grupos poderosos na sociedade possuem a
capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das
próprias condutas criminosas (ANDRADE, 1997, p. 267)

A atuação do sistema geralmente imuniza o comportamento desviante dos


poderosos, enquanto superestima infrações de menor danosidade social (crimes contra o
patrimônio), especialmente quando esses são praticados por indivíduos pertencentes aos
estratos sociais marginalizados, agindo assim de forma altamente seletiva, tanto
quantitativamente como qualitativamente.

3.4 SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DO SISTEMA PENAL

As estatísticas criminais oficias, então, pouco ajudam na hora de se auferir


números quanto à delinqüência real, servindo apenas para falsear a distribuição da
criminalidade e contribuir para a crença de que a delinqüência se concentra nos estratos
sociais mais baixos.
“De modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe-se a
equação ‘maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada’” (ANDRADE, 1997,
p. 265).
“[...] torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para
que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de
arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis” (ZAFFARONI, 1991,
p. 27).
Nesta perspectiva, a seletividade do sistema penal deriva de duas variáveis
estruturais.
A primeira é a sua incapacidade operacional para dar conta do exercício
penal programado.
O discurso jurídico-penal programa um número incrível de hipóteses em
que, segundo o “dever-ser”, o sistema penal intervém repressivamente de modo “natural” (ou
mecânico). No entanto, as agências do sistema penal dispõe apenas de uma capacidade
33

operacional ridiculamente pequena se comparada à magnitude do planificado (ZAFFARONI,


1991, p. 26).
Só para exemplificar, no Brasil, além do Código Penal, existem diversas leis
que tipificam um número “sem fim” de condutas como criminosas - desde os crimes de
trânsito, passando pelos trafico de drogas, até os crimes ambientais. Todavia, essa hercúlea
programação criminalizadora colide frontalmente com a própria incapacidade do Estado em
processar tudo isso, materializada na eterna falta de funcionários e estrutura material, só para
citar como exemplo.
Além do que, tento em vista esse extenso rol de condutas tidas como
criminosas em nosso ordenamento jurídico, se o Estado dispusesse de estrutura para dar vazão
a toda essa demanda criminal, acabar-se-ia condenado praticamente toda a população. Até por
que, quem nunca cometeu um ilícito penal, qualquer que seja, na vida?
Todos praticamos diariamente algum tipo de comportamento contrário a
normas vigentes, tais como pequenas infrações de trânsito (estacionar em fila
dupla ou em lugar proibido; percorrer um trecho na contramão; ultrapassar
pela direita; das sinais de luz, nas rodovias para advertir os motoristas da
presença de fiscalização; exceder a velocidade permitida); obtenção de
alguma vantagem indevida, mediante pequenos subornos; desrespeitar a
ordem de preferência de chegada em balcões ou outros locais de
atendimento; comprar mercadorias estrangeiras contrabandeadas; comprar
mercadorias estrangeiras no manual, e muitos outros tipos de
comportamentos transgressores de menor relevância (PIMENTEL, 1983, p.
18).

Dessa generalizada não observância da lei, assumidas pelas pessoas tidas


como “de bem”, dá bem uma idéia da anomia existente (PIMENTEL, 1983, p. 18), ou seja, o
descumprimento da lei é a regra, e não o contrário.
A disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade
operativa dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstância inconcebível
este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o
exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de
se criminalizar várias vezes toda a população (ZAFFARONI, 1991, p. 26).

Imagine se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as


defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, enfim,
todos os crimes do nosso ordenamento jurídico fossem concretamente criminalizados,
praticamente não haveria individuo em nossa sociedade que não fosse, por diversas vezes,
criminalizado (ZAFFARONI, 1991, p. 26).
Se o sistema penal concretizasse o poder criminalizante programado
34

‘provocaria uma catástrofe social’. E diante da absurda suposição –


absolutamente indesejável – de criminalizar reiteradamente toda a
população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado
para que a legalidade processual não opere em toda sua extensão
(ANDRADE, 1997, p. 265).

A criminalização na total extensão da lei geraria resultados desastrosos,


incompatíveis com nossa vida social e indesejados pelos poderosos, pois acabar-se-ia
criminalizando quase todos os indivíduos de nossa sociedade, inclusive aqueles pertencentes
aos estratos mais altos.
Nesse sentido, Dias e Andrade (1984, p. 368) colocam que uma sociedade
que estivesse em condições de descobrir e sancionar toda a delinqüência destruiria
simultaneamente o valor das suas normas, porquanto a função protetora da norma só atua
eficazmente se circunscrita a uma reduzida expressão quantitativa.
O sistema de justiça penal está integralmente dedicado a administrar uma
reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente inferior a 10%. Esta
seletividade depende da própria estrutura do sistema, isto é, da discrepância
entre os programas de ação previstos nas leis penais e as possibilidades reais
de intervenção (BARATTA apud ANDRADE, 1997, p. 266).

Mas não é só da defasagem entre a programação legal e a estrutura


disponível, a chamada “seletividade quantitativa”, que desempenha um papel importante no
funcionamento seletivo do sistema penal. Existem, ainda, outras variáveis que também são
importantes, quais sejam:
“A especificidade da infração e as conotações sociais dos autores (e
vitimas), isto é, das pessoas envolvidas. Trata-se, esta última, de uma seletividade
‘qualitativa’ que é recriadora de cifras negras ao longo do processo de criminalização”
(ANDRADE, 1997, p. 266-267).
Aqui retorna-se àquela questão de que fatores como raça e condição social
desempenharam um papel crucial na captação de determinado sujeito pelo sistema penal, bem
como no andamento do processo penal e posterior aplicação da pena.
Ou seja, aqueles advindos da base da pirâmide social possuem mais chances
de serem etiquetados como criminosos e perseguidos pelo sistema penal.
Não se pode duvidar da força persuasiva dos estereótipos e da sua eficácia
seletiva: “eles operam claramente em benefício das pessoas que exibem os estigmas da
respeitabilidade dominante e em desfavor dos que exibem os estigmas da associalidade e do
35

crime” (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 541).


Numerosas são assim as investigações desenvolvidas nos últimos anos, em
sua maioria associadas ao paradigma da reação social, com o propósito de
demonstrar como tais variáveis (status social, etnia, condição familiar, etc.)
obtêm sua influência e condicionam a seletividade decisória dos agentes do
sistema penal: polícia, Ministério Público, juízes (ANDRADE, 1997, p.
268).

Dias e Andrade (1984, p. 385), por sua vez, sustentam que o predomínio das
classes marginalizadas nas instâncias do controle penal e nas estatísticas oficiais da
criminalidade não é uma coincidência, mas sim “grandezas sistematicamente produzidas”.
É, por isso, natural que sobre os membros das classes mencionadas existam
maiores probabilidades de criminalização.
A criminologia radical sustenta, por seu turno, que a seleção não pode
encarar-se em termo tão neutros. Segundo ela, a seleção operada pelas
instâncias de controle não reflete apenas a dissonância organizacional
daquelas instâncias, antes reproduz, no plano da justiça criminal, as linhas de
fratura e de conflito que, a nível macroscópico, dominam cada formação
social. O que significa entender, segundo esta perspectiva criminológica, que
é a justiça de classe a idéia central a que acaba por reconduzir-se toda a
seleção [...] (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 385-386).

Mais uma vez, a questão retorna ao ponto da real função do sistema penal,
não de defensor de uma ordem social justa, mas de instrumento de dominação de uma classe
sobre outra.
Com os indivíduos pertencentes dos estratos mais baixos da sociedade
carregando o eterno estigma de potenciais delinqüentes, fica muito mais fácil mantê-los sob
controle da minoria dominante. E pra piorar, esse estigma que é diariamente reforçado pela
mídia e pelas estatísticas oficiais da criminalidade.
A contribuição do estigma para a perpetuação do nosso modelo de
sociedade é a legitimação de incursões da polícia em favelas, da violência policial, do
tratamento subumano e indigno nas prisões e, por via de conseqüência, da seletividade do
sistema penal.
36

4 CONCLUSÃO

O sistema penal, como o conhecemos, surge quando o Estado moderno


avoca para si a responsabilidade de resolver os conflitos entre particulares, sendo um
instrumento de manutenção desse monopólio da violência pelo Estado. Sua premissa maior é
a defesa social, a defesa da sociedade. O que se esperara do sistema penal, então, em sua
busca pela manutenção de uma ordem social justa e igualitária, é que atuasse em favor da
sociedade como um todo.
A Constituição, por sua vez, teve inserido em seu texto normas que buscam
essencialmente a proteção aos direitos fundamentais dos indivíduos e a limitação do poder
repressivo do Estado.
O princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei,
independentemente de qualquer fator, foi consagrado no caput do art. 5º de nossa
constituição, constituindo um direito fundamental do individuo em um estado democrático de
direito.
Contudo, em uma sociedade cujo signo maior é a desigualdade social e a
dominação de uma classe social sobre outra, o real funcionamento do sistema penal destoa de
sua função declarada de defensor da sociedade.
Em que pese as garantias constitucionais e os discursos oficiais, o sistema
penal é apenas mais um instrumento de perpetuação desse modelo de sociedade desigual,
agindo seletivamente contra certos indivíduos, mais do que contra certas condutas tidas como
criminosas.
Entendemos que, em que pese as estatísticas oficiais e a influência da mídia,
a criminalidade não está restrita aos estratos mais baixos da sociedade. Na verdade, o sistema
penal atua quase que exclusivamente contra esses indivíduos e contra os crimes típicos dos
estratos sociais marginalizados como forma reprodução das desigualdades.
O principal argumento de defesa social cai por terra, quando se verifica que
a enorme maioria da população carcerária brasileira foi incursa na prática de crimes contra o
patrimônio particular, muitas vezes sem relevância social nenhuma, enquanto que aqueles
privilegiados socialmente cometem crimes econômicos e políticos com terríveis reflexos
sociais e escapam impunes. Isso sem falar nas condutas delituosas cometidas diariamente por
pessoas que não se encaixam no estereotipo de delinqüente e que são sistematicamente
ignoradas pelo sistema penal.
Estes fatos, a nosso ver, só vêm a reforçar o estereotipo de delinqüente e
37

legitimar a atuação quase que exclusiva do aparato penal contra determinado grupo de
indivíduos.
38

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da


violência a violência do controle penal. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos
da violência na era da globalização. São Paulo : Livraria dos Advogados, 2003.
BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal: introdução a
sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos : Instituto Carioca de
Criminologia, 1999.
BATISTA, Nilo. Introdução critica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro : Revan,
1990.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo :
Academica, 1992.
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem
delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra : Coimbra Ed, 1984.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo
: Revista dos Tribunais, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis : Vozes, 1977.
PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo : Revista dos
Tribunais, 1983.
SANTOS, Jose Wilson Seixas. Sintese expositiva de criminologia. 2.ed. São Paulo : Jurid
Vellenich, 1973.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro : Forense, 1981. 97p.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal. Rio de Janeiro : Revan, 1991.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral.7. ed. rev. e atual. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2007.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasilia :
UnB, 1991.
39

ANEXO

ESTUDO DE CASO DOS DADOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL

Semestralmente, com base em informações recebidas dos Estados da


federação, o Ministério da Justiça, por intermédio do Departamento Penitenciário Nacional,
compila um relatório analítico do sistema prisional brasileiro, cobrindo dados referentes aos
estabelecimentos prisionais, recursos humanos, logísticos e financeiros, e sobre a população
prisional, com o intuito de direcionar os rumos da política criminal no Brasil.
De acordo com relatório mais recente realizado em junho de 2008, o total de
apenados no Brasil, incluindo-se todos os tipos de regimes, é de 381.112. Em contrapartida,
existem 277.847 vagas no sistema prisional, havendo um déficit de mais de 100 mil vagas.
Ademais, considerando-se que o Brasil, atualmente, conta com uma
população de 190 milhões de habitantes, pode-se estimar que 0,2% da população encontra-se
cumprindo algum tipo de pena.
Com relação ao grau de escolaridade, observa-se do relatório, que apenas
5.180 dos apenados possuem ensino superior incompleto ou completo, menos de 1,3% do
total, e apenas 77 possuem formação acima do nível superior, algo em torno de 0,2% do total.
O restante dos encarcerados, por sua vez e por via de conseqüência, possuem pouca ou
nenhuma escolaridade.

1% 5% 8%

12% Analfabetos
17%
Alfabetizados

Ensino Fundamental

Ensino Médio

Nível superior ou maior

Não informado

57%
40

Verifica-se, também, que cerca de 215.642 dos apenados (56% do total)


possuem idade entre 18 e 30 anos, sendo que somente aqueles com idade entre 18 e 24 anos
perfazem quase 31% do total, algo como mais de 117 mil jovens cumprido algum tipo de
pena no Brasil.
3%
6% 1%

32% 18 a 24 anos
15%
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 45 anos
46 a 60 anos
Mais de 60 anos
17% Não informado

26%
Com relação à etnia ou cor de pele, tem-se que, de um total de 373.018
apenados, 149.774, ou 40% do total, são tidos como “brancos”, 62.218, ou 16%, são tidos
como “negros”, 144.701, ou 38%, são tidos como “pardos”, 1.823, ou 0,4%, são tidos como
“amarelos”, e, finalmente, 430, ou 0,1%, são tidos como “indígenas”. Existem, ainda, cerca de
13.118 apenados, algo em torno de 3,5% do total, que foram “catalogados” como “outras”.

0%3%
0%

Branca
41% Negra
39% Parda
Amarela
Indigena
Outras

17%

Em suma, pode-se afirmar que 222.290, quase 60% do total de indivíduos


41

que estão cumprindo pena no sistema penitenciário brasileiro podem ser considerados como
“não brancos”.
Desta forma, o que se conclui é que a população carcerária brasileira, como
no resto do mundo, é formada majoritariamente por jovens “não brancos” com baixo nível de
escolaridade. Podendo-se presumir, então, que a grande maioria pertence aos estratos
marginalizados da sociedade.
Dentro de uma perspectiva da criminologia positivista, a delinqüência é um
sintoma revelador da personalidade socialmente perigosa de determinado individuo. Essa
característica de periculosidade social é identificada pelos positivistas como uma
anormalidade, e é usada como medida na captação do sujeito e aplicação de pena pelo sistema
penal.
Todavia, essa tese, apesar de amplamente utilizada, é contraposta pela
criminologia crítica, para quem o sistema penal age de forma seletiva sobre determinado
indivíduos, além de considerar que a prática delituosa não é uma exceção, mas sim o
comportamento da maioria dos indivíduos em nossa sociedade.
Assim, com base na afirmação de que a maior parte da população carcerária
no Brasil é formada por jovens “não brancos” advindos dos estratos mais baixos da sociedade,
faz-se necessário ponderar: serão esses mais propensos a práticas delituosas por razões físico-
psíquicas que os diferenciam do homem médio, ou será que é o sistema penal que, atuando de
forma seletiva, acaba concentrando seu poder punitivo contra esses sujeitos?
Adotando-se a corrente crítica da criminologia, pode-se dizer que a
delinqüência não se restringe aos estratos inferiores, mas sim, como já exposto neste trabalho,
é prática disseminada por todos os andares da pirâmide social.
Da mesma forma, a periculosidade social desses indivíduos não advém de
características físico-psíquicas que os diferenciam dos ditos homens de bem e os tornam mais
propensos à criminalidade, mas sim do fato de quebrarem a lógica de trabalho e submissão do
capitalismo, do fato de não serem meros “corpos dóceis e úteis” a disposição do capital, etc.
Veja que, segundo o relatório em comento, a população carcerária brasileira
responde, no total, pela prática de 424.645 crimes. Desse total, mais de 207 mil (48%) foram
crimes que atentaram, ao menos de alguma forma, contra o patrimônio, mais especificamente:
1.499 seqüestros, 5.963 extorsões, 11.086 receptações, 13.061 latrocínios, 61.579 furtos,
115.320 roubos.
De uma maneira geral, o relatório especifica a prática de algo em torno de
20 crimes, dentre os quais, os mais expressivos são os crimes contra o patrimônio, aqueles
42

contra os costumes (19.307 – 4% do total), os crimes contra a vida (63.485 - 14% do total), os
contra a “Lei de Armas” (20.240 – 4% do total) e o tráfico de drogas (66.367 – 15% do total).
Fora esses, constam alguns poucos menos expressivos que, juntos, não
perfazem mais de 15 mil delitos. Existem ainda, 41.714 crimes praticados pelos apenados que
foram agrupados e listados como “outros crimes”.

13% Crimes contra o


patrimônio
5% Crimes contra os
costumes
Crimes contra vida
48%
15% Lei de Drogas

Lei de Armas

Outros Crimes

15%
4%
Ora, não há que se olvidar que a imensa maioria da população carcerária
brasileira foi incursa na prática de um número muito pequeno de crimes se comparado ao
número de condutas tipificadas como crime em nosso ordenamento jurídico. Vale lembrar
que, somente o nosso código penal especifica mais de uma centena de condutas criminosas.
É de ressalta que, de acordo com o relatório, no Brasil cumpre-se pena pela
prática de apenas 2.911 crimes contra administração pública, 0,6% do total de crimes pelos
quais se cumpre pena. Tal dado causa estranheza, pois os “crimes contra a administração
pública” são aqueles dos artigos 312 ao 337 do nosso Código Penal, dentre os quais destaca-
se o peculato (art. 312), emprego irregular de verbas ou rendas públicas (art. 315), corrupção
passiva (art. 317), corrupção ativa (art. 333), sonegação de contribuição previdenciária (art.
337A), entre tantos outros.
Uma explicação seria a de que crimes contra a administração pública, como
aqueles supra mencionados, não sejam comuns no Brasil. Ou talvez sejam, mas como a
função declarada do sistema penal é a defesa social, os crimes contra o patrimônio particular
sejam mais lesivos a sociedade como um todo, do que sonegar contribuições previdenciárias
ou dar às verbas públicas destinação diversa da estabelecida em lei.
Na verdade, a imensa maioria da população carcerária brasileira esta incursa
43

na prática de crimes contra o patrimônio, pois furtos e roubos são praticados, em sua grande
maioria, por indivíduos advindos da base da pirâmide social. Enquanto que os crimes que
lesam o erário público, e refletem muito mais negativamente na sociedade, são praticados
pelos detentores do poder econômicos e/ou político.
Como se vê, o discurso da “defesa social” não passa de mero instrumento
legitimador dessa lógica distorcida de funcionamento do Sistema Penal, aonde quem é
condenado e preso é aquele indivíduo etiquetado como criminoso e que, mesmo sem saber, se
rebela contra a lógica do sistema de produção capitalista. Em contrapartida, aqueles que de
fato comentem crimes com reflexos socialmente negativos são ignorados pelo sistema penal.
Ou seja, mais do que contra certas condutas tidas como criminosas, o
sistema penal parece se voltar contra certos indivíduos.

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