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Estratégias de negócios e estilos de


gestão no processo de adaptação da
Nestlé ao Brasil pós-real
Qual é a melhor maneira de atualizar e agilizar uma estrutura
organizacional conservadora e que parece estar dormindo em berço
esplêndido, alheia às mudanças que estão
ocorrendo em nosso mercado?
E qual é o risco inerente ao fato de assumirmos a direção de uma
empresa com essas características, levando conosco idéias
preconcebidas sobre o que está errado
e o que deve ser feito para reverter a situação?
Finalmente, será possível conciliar as teorias clássicas de inovação,
posicionamento com base em diferenças qualitativas e
desenvolvimento de novas linhas de produtos, com as atuais
características do mercado brasileiro de alimentos processados.
Essas são algumas das perguntas suscitadas por este caro que
descreve uma trajetória de mais de dois anos (de setembro/97
a dezembro/99) de Ricardo Gonçalves como
diretor-presidente da Nestlé no Brasil.
94 Revista da ESPM - Fevereiro de 2000

líderes, nessa tabela, sao muito superiores à preços até 5% ou 10% acima dos seus
1. O Brasil pós-real real participação de mercado dessas marcas. concorrentes.
De qualquer forma, é necessário re-
Como sabemos, até 1994 a economia
2. Como os concorrentes duzir os custos e isto exige a
brasileira sofria os efeitos da
implementação de mudanças nas estru-
hiperinflação que mascarava a ineficiên-
menores atacam turas e métodos de produção, vendas e
cia das empresas e limitava a competi-
distribuição. Muitas vezes, a aceitação
ção no mercado. As marcas líderes esta- as marcas líderes
dessas mudanças torna-se difícil e trau-
vam em situação relativamente cômoda,
mática nas grandes empresas que se en-
pois a importação de similares estrangei- Em seu livro Powershift, Alvin
contravam confortavelmente acomoda-
ros era inviável e os concorrentes naci- Toffley já disse que a principal ameaça
das na liderança do mercado, durante
onais não tinham condições de crescer às marcas líderes são os "ataques de
muitos anos. Muitos estudiosos já se
no mercado. flanco" desfechados por concorrentes
dedicaram ao assunto e um deles - o prof.
Com o Plano Real (que afastou a infla- menores, mas mais ágeis e agressivos.
Paul Stroebel, do IMD - fez pesquisas em
ção) e a abertura do mercado brasileiro às Estes concorrentes se posicionam em
dezenas de empresas americanas e euro-
importações, a situação mudou radicalmen- nichos do mercado do líder e acabam
péias, concluindo que as empresas "fe-
te. Marcas novas começaram a surgir nas abiscoitando fatias desse mercado.
chadas" às mudanças são aquelas que
gôndolas dos supermercados, oferecendo Uma certa erosão parece ser inevitá- apresentam as seguintes características:
a mesma qualidade das marcas tradicionais, vel, mas as marcas líderes podem e de-
mas a preços menores. As consumidoras vem reagir, não só reduzindo os seus
(donas de casa) adaptaram-se rapidamente custos, mas também por meio do lança-
Como são as empresas
à nova situação, deixando de lado a lealda- mento de produtos/serviços novos ou fechadas às inovações
de às velhas marcas e passando a comparar melhorados. Quando o produto já esgo-
os preços, antes de comprar. tou o seu potencial de desenvolvimen- 1. Defendem as "reservas de mercado"
Hoje. conforme pesquisas de várias to, em termos de tecnologia do produto, 2. Tendem a repetir-se
fontes, a consumidora brasileira de clas- existem oportunidades de diferenciação 3. Perdem a participação no mercado
se média continua a considerar as mar- por meio da adição de serviços associa- 4. Falta de visão estratégica
cas tradicionais como sendo as melho- dos aos produtos. A Nestlé, por exem- 5. Pouca agressividade
res, mas na hora de comprar só 20% de- plo, rejuvenesceu há muitos anos a ima- 6. Paternalismo
las (2 em cada 10) compram com base gem de alguns de seus produtos (como 7. Staff superdimensionado
exclusivamente na qualidade. As demais o Leite Moça e o creme de Leite Nestlé) 8. Estruturas não são market oriented
compram com base na relação quaiida- graças à criação e divulgação de recei- 9. A discussão é evitada
de/preço. A propósito, vide a Fig. I. com- tas feitas com eles. 10. Não há disposição para correr riscos
pilada com dados "Top of Mind" da Fo-
lha de S.Paulo (edição 1999). Os índi-
ces de preferência atribuídos às marcas
3. Diferenças de preço 4.0 caso da Nestlé no Brasil
Fig. 1 Outra ameaça que as Todos conhecem a magnífica trajetó-
Top of M i n d 1999(*) marcas líderes enfrentam ria da Nestlé 1 no Brasil. Seus produtos
"Qual é a primeira marca q u e lhe v e m à lembrança?" é a vantagem de preço têm lugar garantido em nossos lares e a
Marca
O'
Categoria freqüentemente oferecida marca Nestlé é sinônimo de confiança e
pelos concorrentes meno- garantia de qualidade. Mas, como todas
Orno 86% S a b ã o em pó as empresas, a Nestlé também enfrentou
res. Alguns estudiosos do
Coca-Cola 62% Refrigerantes
Cônsul 50% Geladeiras assunto chegam a dizer problemas de adaptação decorrentes da
Motorola 14% Celulares que - no mercado brasilei- abertura da economia e fim da inflação.
IBM 4% Computadores
Antarctica 29% Cervejas ro atual - a marca líder só Em ] 997. segundo dados compilados
Hollywood 31% Cigarros pela revista Exame', a Nestlé apresenta-
continuará sendo a prefe-
Doriana 23% Margarina
Hellmann's 49% Maionese rida se oferecer o mesmo va uma situação alarmante de perda de
Credicard 23% Cartões participação nos seus principais merca-
preço que os seus concor-
Banco do Brasil 38% Bancos
varig 32% U n h a s Aéreas rentes. Outros especialis- dos (vide Fig. II). Nesse mesmo ano. as-
Natu Nobilis 11% Uísques tas dizem que a marca lí- sumiu a presidência da empresa no Bra-
Nestlé 28% Achocolatados
Parmalat 25% Leite der continuará a ser a pre- sil o sr. Ricardo Gonçalves, executivo de
ferida, mesmo oferecendo carreira da Nestlé e representante de uma
('/Fonte. Folha de S Paulo
' Artigo intitulado "O cerco aos suíços" - Exame - 17/12/1997.
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nova mentalidade que tomava conta da com- des. Temos de decifrar a equação ideal • As divisões serão m a n t i d a s ,
panhia em todo o mundo. Em entrevista con- entre qualidade e preço." mas p a s s a r ã o a trabalhar integra-
cedida à revista Exame, o novo presidente "Finalmente, há o desafio da recon- das.
assim resumiu a situação que encontrou: quista da participação perdida em muitos • Os investimentos em produ-
mercados. Na verdade, as quedas de par- ção e marketing serão concentrados
As declarações do sr. Ricardo ticipação registradas em 14 das 23 cate- em áreas estratégicas e prioritárias,
Gonçalves gorias de produtos em que opera a Nestlé c o m o os biscoitos, a c h o c o l a t a d o s ,
representaram uma perda anual de USS café solúvel, creme de leite e leite
1. Os desafios a enfrentar 100 milhões em vendas. Para vencer esse c o n d e n s a d o , que são os p r o d u t o s
desafio, a Nestlé deve enfrentar inúmeros mais rentáveis da Nestlé.
"Nosso primeiro desafio é eliminar os concorrentes, cada um dos quais é muito • Serão lançadas mais novida-
'feudos' há décadas enquistados na com- forte em seu mercado específico." des nas l i n h a s - c h a v e , além de se
panhia. A Nestlé opera com quatro divi- a m p l i a r a p a r t i c i p a ç ã o em n o v o s
sões e seus dirigentes pouco se comuni- 2. As propostas de Ricardo mercados (como alimentos para
cam. Há repetição de esforços e desper- Gonçalves cães e cereais matinais).
dícios. Não há sinergia." • A Nestlé dará mais a t e n ç ã o
"O segundo desafio é entender o Para enfrentar os desafios acima, o ao varejo, c o l a b o r a n d o com as re-
novo consumidor brasileiro. Hoje, a dona novo presidente da Nestlé decidiu tomar des de s u p e r m e r c a d o s nas p r o m o -
de casa compara preços e busca novida- as seguintes medidas principais: ções, ofertas e vendas e s p e c i a i s .

F1G.2

UM PASSO PARA TRÁS

Alguns mercados em que a participação da Nestlé foi reduzida - em %

Fontes: Nielsen/Nestlé Fig III


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chegando a lançar 95 produtos novos reverter as perdas sofridas no triênio


O estilo de gestão somente em 1999 (recorde histórico da 1995/97?
Nestlé no Brasil). Mas foi somente em ju-
de Ricardo Gonçalves -
lho/1999 que introduziu a primeira grande
(um retrospecto de dois anos) mudança: criou um sistema de Unidades
de Negócios paralelo às divisões existen-
Quando Gonçalves assumiu a presi- tes. Cada unidade tem foco em um concor-
dência da Nestlé no Brasil, em setembro/ rente (Lacta, Parmalat, Danone), é dirigida
97, ele sabia que a cultura organizacional por um executivo jovem e centraliza as
da Nestlé brasileira (como, de resto, da operações de determinadas marcas. En-
Nestlé na maioria dos países) era "fecha- quanto isso. as vendas foram unificadas.
da" às mudanças. Uma análise feita na
época, por uma consultoria independen- Mais rapidez nas decisões
te, mostrou os traços dominantes que
constam da Fig. III. Note-se a semelhança As coisas, agora, acontecem rapidamen-
entre estes traços dominantes e as carac- te. Assim, por exemplo, a linha Nescau foi
terísticas de empresa "fechada às mudan- expandida e hoje inclui biscoitos e iogur-
ças" definidos pelo prof. Paul Stroebel. tes. "Antigamente, uma ação como esta le-
Tendo este ambiente como pano de varia três anos, diz um executivo da Nestlé."
fundo, o que fez Gonçalves nestes dois Na área de custos, Gonçalves também
anos2 que decorreram desde a sua posse? está mudando fábricas e sistemas
Fig. 3 logísticos, procurando economizar. Mas
as circunstâncias não são favoráveis: a
A cultura organizacional desvalorização do real e a recessão estão
da Nestlé favorecendo a penetração de concorren-
tes mais baratos, numa proporção ainda
• Tradicionalista maior do que a registrada entre 1995 e 1997.
• Defensora do status quo
• Paternalista
Vendas em queda
• Estruturas rígidas
• Movimentos lentos
• Tende a repetir-se No ano de 1999. segundo estimativas, a
• Não gosta de correr riscos Nestlé teria vendido RS 3,4 bilhões, ou 21 %
• Pouco agressiva menos do que em 1998. Confrontado com
• Está perdendo mercado estes resultados, Gonçalves diz: "O impor-
tante é que agora somos mais competiu vos."
A resposta nos é dada pela revista
Exame de 15 de dezembro de 1999. Nesta Estudo e discussão
edição, sob o título "Ele vende até picolé
para Pingüim", o editor de Exame. Nel- do caso
son Blecher, traça a trajetória seguida por
Ricardo Gonçalves entre 1997 e 1999. Sugestões ao professor
Desde logo, Gonçalves mostrou que
as coisas iriam mudar. Passou a almoçar As evidências apresentadas no caso
com clientes varejistas e a visitar o vare- não deixam dúvidas.
jo incógnito, procurando falhas na dis- Até agora, decorridos dois anos da
tribuição da Nestlé. Aboliu as barreiras sua gestão. Ricardo Gonçalves não pôde
que separavam a figura do presidente do ainda apresentar os resultados espera-
resto da organização. Agilizou o relacio- dos pela matriz da Nestlé na Suíça, ao
namento com os subordinados e mos- confiar-lhe a direção da sua filial brasi-
trou-se implacável na cobrança de com- leira. A questão que se coloca é a se-
promissos assumidos. Deu também gran- guinte: Por que não houve o êxito espe-
de ímpeto à política de novos produtos. rado 9 Por que não se conseguiu ainda
Esie caso está sendo preparado nos primeiros meses de 2000.

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