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Gestão Estratégica de Pessoas:

DUTRA, Joel. Gestão de Pessoas - realidade atual e desafios futuros.São Paulo: Atlas,
2017.

Cap. 2 - Fundamentos da Gestão de Pessoas. p. 32-37

Competência
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, percebíamos uma inflexão na gestão de pessoas, na qual as
pessoas eram demandadas e valorizadas pelo seu nível de contribuição para o desenvolvimento da organização.
O conceito que ajudou a compreender esse fenômeno foi o de competências, desenvolvido na França. Os
franceses nos ensinaram que a pessoa é competente quando mobiliza sua capacidade para atender as demandas
do contexto sobre elas. Portanto, uma pessoa somente conseguirá agregar valor ao contexto se compreender a
demanda dele. Nesse sentido, ainda que a pessoa tenha capacidade e vontade de contribuir, só o fará se
conseguir perceber quais são as demandas do contexto sobre elas.

Uma pessoa somente conseguirá agregar valor ao contexto se compreender a demanda


dele.

Entretanto, a demanda do contexto sobre as pessoas tornou-se cada vez menos tangível. Podemos dizer com
certeza que uma pessoa que faz suas tarefas corretamente e alcança os objetivos e/ou metas definidas pela
organização está contribuindo muito pouco. Atualmente, as exigências sobre as pessoas são maiores; quero, por
exemplo, que as pessoas percebam o impacto de seu trabalho no trabalho do colega; a isso chamamos de visão
sistêmica.

Evolução do conceito de competência


O conceito de competência foi proposto de forma estruturada pela primeira vez em 1973 por David McClelland
(1973), na busca de uma abordagem mais efetiva que os testes de inteligência nos processos de escolha de
pessoas para as organizações. O conceito foi rapidamente ampliado para dar suporte a processos de avaliação e
para orientar ações de desenvolvimento profissional. Outro expoente na estruturação do conceito é Boyatzis
(1982:13), que, a partir da caracterização das demandas de determinado cargo na organização, procura fixar
ações ou comportamentos efetivos esperados. Em seu trabalho, o autor já demonstra preocupação com questões
como a entrega da pessoa para o meio no qual se insere. A percepção do contexto é fundamental para que a
pessoa possa esboçar comportamentos aceitáveis. Mas são autores como Le Boterf (1995, 2000, 2001 e 2003) e
Zarifian (1996 e 2001) que exploram o conceito de competência associado à ideia de agregação de valor e
entrega a determinado contexto de forma independente do cargo, isto é, a partir da própria pessoa. Essa
construção do conceito de competência explica de forma mais adequada o que observamos na realidade das
organizações.
Vários autores procuraram estruturar o desenvolvimento do conceito de competência e/ ou efetuar uma
revisão bibliográfica. Dentre eles, cabe destacar os seguintes: Parry (1996), McLagan (1997) e Woodruffe
(1991). Além desses autores, vários alunos de nossos cursos de pós-graduação efetuaram boas revisões
bibliográficas, cabendo destacar os trabalhos de Amatucci (2000), Hipólito (2000), Bitencourt (2001),
Sant’anna (2002) e Silva (2003).

Articulação entre estratégia empresarial e competências individuais


A competência pode ser atribuída a diferentes atores. De um lado, temos a organização, com o conjunto de
competências que lhe é próprio. Essas competências decorrem da gênese e do processo de desenvolvimento da
organização e são concretizadas em seu patrimônio de conhecimentos, que estabelece as vantagens
competitivas da organização no contexto em que se insere (RUAS, 2002). De outro lado, temos as pessoas, com
seu conjunto de competências, aproveitadas ou não pela organização. Empregaremos aqui a definição para a
competência das pessoas estabelecida por Maria Tereza Fleury (2000): “Saber agir responsável e reconhecido,
que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem valor econômico
à organização e valor social ao indivíduo.”
Ao colocarmos organização e pessoas lado a lado, podemos verificar um processo contínuo de troca de
competências. A organização transfere seu patrimônio para as pessoas, enriquecendo-as e preparando-as para
enfrentar novas situações profissionais e pessoais, na organização ou fora dela. As pessoas, ao desenvolver sua
capacidade individual, transferem para a organização seu aprendizado, capacitando-a a enfrentar novos
desafios.
Desse modo, são as pessoas que, ao colocar em prática o patrimônio de conhecimentos da organização,
concretizam as competências organizacionais e fazem sua adequação ao contexto. Ao utilizarem, de forma
consciente, o patrimônio de conhecimento da organização, as pessoas o validam ou implementam as
modificações necessárias para aprimorá-lo. ​A agregação de valor das pessoas é, portanto, sua contribuição
efetiva ao patrimônio de conhecimentos da organização, permitindo-lhe manter suas vantagens
competitivas no tempo.

São as pessoas que, ao colocar em prática o patrimônio de conhecimentos da


organização, concretizam as competências organizacionais e fazem sua adequação ao
contexto.

Saiba mais:
Observamos que a troca entre organização e pessoas ocorre em qualquer organização,
independentemente de estar estruturada ou não. Em 1994, acompanhamos a modernização de
uma grande organização metalúrgica que introduziu técnicas avançadas de gestão de projetos.
Nesse movimento, um fato despertou nossa atenção: a gestão de pequenos projetos.
Até então, pequenos projetos demoravam em média oito meses para serem concluídos. Ao
modernizar a gestão de projetos, a organização estabeleceu como objetivo reduzir esse prazo
para cinco dias úteis. Após um ano, havia reduzido para quatro dias úteis. Em 2008, esse prazo
já estava em 1,3 dia e, em 2012, em 0,6 dia.
Em 1994, um grupo de pessoas introduziu essa tecnologia no patrimônio de conhecimentos da
organização e as pessoas que vieram posteriormente foram aperfeiçoando. As pessoas, ao
desenvolverem-se em gestão de projetos, ajudaram a organização a se desenvolver. As
pessoas que entraram na organização após 1994 não tinham a memória do que ocorria antes e
beberam do conhecimento existente na organização. No tempo, essas pessoas contribuíram,
também, para o aperfeiçoamento do patrimônio de conhecimento da organização.
Há, pois, uma relação íntima entre competências organizacionais e individuais. O estabelecimento das
competências individuais deve estar vinculado à reflexão sobre as competências organizacionais, uma vez que a
influência é mútua. Na abordagem das competências organizacionais, cabe a analogia de Prahalad e Hamel
(1990), que comparam as competências às raízes de uma árvore, pois estas oferecem à organização alimento,
sustentação e estabilidade. As competências impulsionam as organizações e seu uso constante as fortalece à
medida que se aprendem novas formas para seu emprego ou utilização mais adequada (FLEURY; FLEURY,
2000); como vimos, o processo de aprendizado organizacional está vinculado ao desenvolvimento das pessoas
que mantêm relações de trabalho com a organização.

A agregação de valor das pessoas é, portanto, sua contribuição efetiva ao patrimônio de


conhecimentos da organização, permitindo--lhe manter suas vantagens competitivas no
tempo.

O olhar atento sobre as competências organizacionais revela uma série de questionamentos sobre sua
instituição, desenvolvimento e acompanhamento. Um primeiro questionamento é a distinção entre recursos e
competências. Para autores como Mills et al. (2002) e Javidan (1998), os recursos articulados entre si formam
as competências organizacionais. Recursos e competências, entretanto, diferenciam-se quanto a seus impactos,
abrangência e natureza. Para Mills et al., existem recursos e competências importantes para a organização – por
serem fontes para sustentar atuais ou potenciais vantagens competitivas – e existem recursos e competências da
organização que não apresentam nada de especial no momento presente. Todos, entretanto, são recursos e
competências da organização; daí a importância de criar categorias distintivas. Esses autores propõem as
seguintes:

● Competências essenciais – fundamentais para a sobrevivência da organização e


centrais em sua estratégia.
● Competências distintivas – reconhecidas pelos clientes como diferenciais em relação
aos competidores; conferem à organização vantagens competitivas.
● Competências de unidades de negócio – pequeno número de atividades-chave (entre
três e seis) esperadas pela organização das unidades de negócio.
● Competências de suporte – atividades que servem de alicerce para outras atividades da
organização. Por exemplo: a construção e o trabalho eficientes em equipes podem ter
grande influência na velocidade e qualidade de muitas atividades dentro da organização.
● Capacidade dinâmica – condição da organização de adaptar continuamente suas
competências às exigências do ambiente.

Essas categorias são importantes para discutirmos sua relação com as competências individuais.
Inicialmente, as pessoas eram encaradas como um tipo de recurso na construção de competências. Barney
(1991) classificava os recursos organizacionais em três categorias: físicos – planta, equipamentos, ativos;
humanos – gerentes, força de trabalho, treinamento; e organizacionais – imagem, cultura. A literatura recente
considera como recursos os conhecimentos e as habilidades que a organização adquire ao longo do tempo
(KING et al., 2002). Nesse contexto, as pessoas estão inseridas em todos os recursos, independentemente da
forma como são classificados, e, portanto, na geração e sustentação das competências organizacionais. Como
exemplo: as pessoas estão presentes em todos os tipos de recursos propostos por Mills et al. (2002): tangíveis;
conhecimento, experiência e habilidades; sistemas e procedimentos; valores e cultura; rede de relacionamentos.
E são fundamentais para a contínua transformação da organização.
A partir dessas considerações, não podemos pensar as competências individuais de forma genérica e sim
atreladas às competências essenciais para a organização. As entregas esperadas das pessoas devem estar
focadas no que é essencial. Assim procedendo, as pessoas estarão mais orientadas em suas atividades, no seu
desenvolvimento e nas possibilidades de fazer carreira dentro da organização. Parâmetros e instrumentos de
gestão de pessoas estarão também direcionados de forma consistente e coerente com o intento estratégico da
organização. Por exemplo: o que valorizar nas pessoas, como avaliar sua contribuição, como estruturar as
verbas remuneratórias, critérios de escolha etc.
A questão da origem das competências individuais é essencial para a caracterização das expectativas da
organização em relação às pessoas. Os trabalhos desenvolvidos por Fleury e Fleury (2000) mostram relação
íntima entre a estratégia da organização, as competências organizacionais e as competências individuais. A
partir das tipologias propostas por Treacy e Wiersema (1995) e por Porter (1996), os autores estabelecem três
formas de competir (FLEURY e FLEURY 2000:45):

As competências individuais devem estar atreladas às competências essenciais para a


organização.

● Excelência operacional.
● Inovação em produtos.
● Orientação para clientes.

A partir dessas categorias, é possível verificar que a forma de competir influencia o estabelecimento de
competências organizacionais, ou seja, existem competências organizacionais típicas de uma organização que
se enquadra dentro de determinada categoria. Cabe o mesmo raciocínio para as competências individuais. Na
organização cuja forma de competir se caracteriza pela excelência operacional, naturalmente a pessoa deverá
atender a um determinado conjunto específico de exigências. É o que se vê no Quadro 2.1.
Conforme o Quadro 2.1, os gerentes financeiros das duas organizações terão diferentes conjuntos de
entregas esperadas, mesmo que sua descrição de cargo seja semelhante. Nesse exemplo, é possível notar que o
tipo de empresa irá determinar o conjunto de entregas esperado das pessoas, ainda que isso não esteja
formalizado ou consciente, influenciando os processos de escolha de candidatos externos, os processos de
ascensão, de valorização etc.

Caracterização das competências individuais


Muitas pessoas e alguns teóricos compreendem a competência como o conjunto de conhecimentos, habilidades
e atitudes necessárias para que a pessoa desenvolva suas atribuições e responsabilidades. Esse enfoque é pouco
instrumental, uma vez que o fato de as pessoas possuírem determinado conjunto de conhecimentos, habilidades
e atitudes não é garantia de que elas irão agregar valor para a organização. Para melhor compreender o conceito
de competência individual, é importante discutir também o conceito de entrega.
Para efeitos de admissão, demissão, promoção, aumento salarial etc., a pessoa é avaliada e analisada em
função de sua capacidade de entrega para a empresa. Por exemplo, ao escolhermos uma pessoa para trabalhar
conosco, além de verificar sua formação e experiência avaliamos também como ela atua, sua forma de entregar
o trabalho, suas realizações; enfim, cada um de nós usa diferentes formas de assegurar que a pessoa que
estamos escolhendo terá condições de obter os resultados de que necessitamos. Embora, na prática
organizacional, as decisões sobre as pessoas sejam tomadas em função do que elas entregam, o sistema formal,
concebido em geral a partir do conceito de ​cargos​, as vê pelo que fazem. Esse é um dos principais
descompassos entre a realidade e o sistema formal de gestão. Ao avaliarmos as pessoas pelo que fazem e não
pelo que entregam, criamos uma lente que distorce a realidade.
Fomos educados a olhar as pessoas pelo que fazem e é dessa forma que os sistemas tradicionais as encaram.
Intuitivamente, valorizamos as pessoas por seus atos e realizações e não pela descrição formal de suas funções
ou atividades. Ao mesmo tempo, somos pressionados pelo sistema formal e pela cultura de gestão a considerar
a descrição formal, gerando distorções em nossa percepção da realidade. Por exemplo: tenho dois funcionários
em minha equipe com as mesmas funções e tarefas, que são remunerados e avaliados por esses parâmetros. Um
deles, quando demandado para resolver um problema, traz a solução com muita eficiência e eficácia e é,
portanto, uma pessoa muito valiosa. O outro não deixa o problema acontecer. Este é muito mais valioso, só que,
na maioria das vezes, não é reconhecido pela chefia ou pela empresa.

Embora, na prática organizacional, as decisões sobre as pessoas sejam tomadas


em função do que elas entregam, o sistema formal, concebido em geral a partir do
conceito de ​cargos​, as vê pelo que fazem.

Considerar as pessoas por sua capacidade de entrega nos dá uma perspectiva mais adequada para avaliá-las,
orientar seu desenvolvimento e estabelecer recompensas. Sob essa perspectiva é que vamos analisar os
conceitos de competência individual. Muitos autores procuraram discutir a questão tentando entender, como
competência, a capacidade das pessoas em agregar valor para a organização. Nessas tentativas, surgiram vários
conceitos.

Considerar as pessoas por sua capacidade de entrega nos dá uma perspectiva mais
adequada para avaliá-las, orientar seu desenvolvimento e estabelecer recompensas.

Para alguns autores, a maioria de origem norte-americana, que desenvolveram seus trabalhos nos anos 1970,
1980 e 1990, competência é o conjunto de qualificações ​(underlying characteristics) que permite à pessoa uma
performance superior em um trabalho ou situação. Os conceitos de seus principais expoentes, McClelland
(1973), Boyatzis (1982) e Spencer e Spencer (1993), formaram a base dos trabalhos da McBer, mais tarde Hay
McBer, importante consultoria em competência. As competências podem ser previstas e estruturadas de modo a
se estabelecer um conjunto ideal de qualificações para que a pessoa desenvolva uma ​performance superior em
seu trabalho.
Durante os anos 1980 e 1990, muitos autores contestaram a definição de competência associada ao estoque
de conhecimentos e habilidades das pessoas e procuraram associar o conceito às suas realizações e àquilo que
elas proveem, produzem e/ou entregam. Segundo eles, o fato de a pessoa deter as qualificações necessárias para
um trabalho não assegura que ela irá entregar o que lhe é demandado. Essa linha de pensamento é defendida
por autores como Le Boterf (1995) e Zarifian (1996). Para Le Boterf, por exemplo, a competência não é um
estado ou um conhecimento que se tem, nem é resultado de treinamento. Na verdade, competência é colocar em
prática o que se sabe em determinado contexto, marcado geralmente pelas relações de trabalho, cultura da
empresa, imprevistos, limitações de tempo e de recursos etc. Nessa abordagem, portanto, podemos falar de
competência apenas quando há ​competência em ação​, traduzindo-se em saber ser e saber mobilizar o
repertório individual em diferentes contextos.
Atualmente, os autores procuram pensar a competência como o somatório dessas duas linhas, ou seja, como
a entrega e as características da pessoa que podem ajudá-la a entregar com maior facilidade (McLAGAN, 1997;
e PARRY, 1996). Outra linha importante é a de autores que discutem a questão da competência associada à
atuação da pessoa em áreas de conforto profissional, usando seus pontos fortes e tendo maiores possibilidades
de realização e felicidade (SCHEIN, 1990; e DERR, 1988).
Há grande diversidade de conceitos sobre competências que podem ser complementares. Estruturamos esses
vários conceitos na Figura 2.1, na qual temos, de um lado, as competências entendidas como o conjunto de
conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para a pessoa exercer seu trabalho; e, de outro lado, temos as
competências entendidas como a entrega da pessoa para a organização.
As pessoas atuam como agentes de transformação de conhecimentos, habilidades e atitudes em competência
entregue para a organização. A competência entregue pode ser caracterizada como agregação de valor ao
patrimônio de conhecimentos da organização. Cabe destacar o entendimento de agregação de valor como algo
que a pessoa entrega para a organização de forma efetiva, ou seja, que permanece mesmo quando a pessoa sai
da organização. Assim, a agregação de valor não é atingir metas de faturamento ou de produção, mas melhorar
processos ou introduzir tecnologias.
A caracterização das entregas esperadas ao longo dos níveis da carreira deve ser observável para que elas
possam ser acompanhadas. É comum encontrar descrições extremamente genéricas e vagas, ou efetuadas a
partir de comportamentos desejáveis, de observação difícil, o que dá margem a interpretações ambíguas. As
descrições devem retratar as entregas esperadas das pessoas de forma a serem observadas tanto pela própria
pessoa quanto pelos responsáveis por acompanhá-las e oferecer-lhes orientação. Cabe notar que a interpretação
de qualquer descrição será subjetiva e essa subjetividade poderá ser minimizada quando:

● As expectativas da empresa em relação à pessoa forem expressas de forma clara.


● Forem construídas coletivamente, expressando o vocabulário e a cultura da
comunidade.
● As descrições das várias entregas estiverem alinhadas entre si, ou seja, quando
estivermos olhando a mesma pessoa através de diferentes competências ou por
diferentes perspectivas. Esse alinhamento ocorrerá, como veremos adiante, com a
graduação das competências em termos de complexidade.
● As competências devem ser graduadas em função do nível de complexidade da entrega.
A graduação permite melhor acompanhamento da evolução da pessoa em relação à sua
entrega para a organização e/ou negócio.

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