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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

KAREN STEPHANIE MELO

OS ROBÔS DE ISAAC ASIMOV:


UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E A
MÁQUINA NA LITERATURA E NO CINEMA DE FICÇÃO
CIENTÍFICA

São Paulo
2016

KAREN STEPHANIE MELO

OS ROBÔS DE ISAAC ASIMOV:


UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E A
MÁQUINA NA LITERATURA E NO CINEMA DE FICÇÃO
CIENTÍFICA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da


Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutora em Letras.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo
2016

M528r Melo, Karen Stephanie.


Os robôs e Isaac Asimov : uma análise das relações entre o
homem e a máquina na literatura e no cinema de ficção científica /
Karen Stephanie Melo – São Paulo , 2016.
146 f. : il. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana


Mackenzie, 2016.
Orientador: Profa. Dra. Maria Luiza G. Atik
Referência bibliográfica: p. 138-141

1. Asimov, Isaac. 2. Robôs. 3. Literatura de ficção científica. 4.


Cinema de ficção científica. 5. Inteligência artificial I. Título.

CDD 371.3352

AGRADECIMENTOS

À professora Maria Luiza Guarnieri Atik, minha orientadora, pelo apoio, atenção e
incentivo durante todo o trabalho.

Ao meu marido, Jônatas Amorim Henriques, por todo amor, pela compreensão, pelo
companheirismo e por nossa filha, Sarah.

Às professoras Renata Phillipov e Vera Lúcia Harabagi Hanna, membros da minha


banca de qualificação, que auxiliaram na continuidade desse trabalho com suas
excelentes sugestões.

A todos os professores do curso de Doutorado em Letras da Universidade Presbiteriana


Mackenzie que fizeram parte da minha formação, passando não apenas conhecimentos
intelectuais, mas também conhecimento de vida.

Anything you dream is fiction, and anything you


accomplish is science, the whole history of mankind is
nothing but science fiction. (Ray Bradbury)

RESUMO

A Ficção Científica é popularmente conhecida por filmes que, quase sempre,


apresentam espaçonaves, viagens interplanetárias, cenários futurísticos e homens
convivendo com tecnologias extremamente avançadas. No entanto, antes mesmo do
cinema, a Ficção Científica é um gênero literário que teve sua origem no início do
século XX, nos Estados Unidos, em revistas conhecidas como pulp fiction. Com isso, o
gênero foi se desenvolvendo conforme os fãs das revistas emitiam suas opiniões sobre
as narrativas e, também, se aventuravam em escrever suas próprias histórias. Um dos
leitores dessas revistas tornou-se um grande autor do gênero e, com seus contos, levou
os leitores a imaginarem como seria o mundo se existissem robôs tão inteligentes
quanto os seres humanos. Esse autor, chamado Isaac Asimov, acabou por influenciar
diversos outros escritores, diretores de cinema e produtores de séries de TV que viriam
a criar outras narrativas bastante populares, como Star Wars, Star Trek, Terminator,
2001: Space Odyssey, entre outros. Assim como nos contos de Asimov, essas narrativas
sempre colocam o homem diante da figura de um robô que ora é amigo e auxiliador, ora
volta-se contra o ser humano. Diante disso, este trabalho propõe um estudo de três
contos de Isaac Asimov, publicados em revistas pulp ao longo da década de 1940 e
reunidas em coletânea em 1950 com o título de I, Robot (Eu, Robô) e do filme Artificial
Intelligence, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 2001. A análise do corpus tem
como propósito entender de que modo se estabelecem as relações entre o homem e a
máquina e seus sentidos na Ficção Científica, tanto na literatura do início do século XX,
quanto no cinema contemporâneo.

Palavras-chave: 1. Isaac Asimov; 2. Robôs; 3. Literatura de Ficção Científica; 4.


Cinema de Ficção Científica; 5. Inteligência Artificial

ABSTRACT

Science Fiction is popularly known for movies that usually present spaceships,
interplanetary travels, futuristic scenarios, and men living with highly advanced
technology. However, even before the movies, Science Fiction is a literary genre
originated in the beginning of the 20th century, in the United States, in magazines
known as pulp fiction. With that, the genre started to develop itself, as magazine fans
would give their opinion about the stories and, also, tried to write their own stories. One
of these readers has become a great author of the genre and with his short stories he
enabled readers to imagine how the world would be if there were robots so smart as
human beings. This author, named Isaac Asimov, ended up influencing several other
writers, movie directors and TV series producers who would create other very popular
stories, such as Star Wars, Star Trek, Terminator, 2001: Space Odyssey, and others. As
in Asimov’s short stories, these narratives will always put men before robots, which are
sometimes friendly and helpful, and other times are mean and threatening to humans. In
light of this, this paper proposes a study of three of Isaac Asimov’s short stories,
published in pulp magazines in the 1940s and published as a compilation in the 1950s
under the title of I, Robot, and of the movie Artificial Intelligence, directed by Steven
Spielberg in 2001. The analysis of the corpus aims to comprehend how the relation
between men and machine is established in Science Fiction and what this relation
means, both in the 20th century literature and in the contemporary cinema.

Keywords: 1. Isaac Asimov; 2. Robots; 3. Science Ficition literature; 4. Science Fiction


cinema; 5. Artificial Intelligence

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Capa de edição norte-americana de Somnium......................... 26


Figura 2 Edição de The Man in the Moone, de Francis Godwin……… 27
Figura 3 Ilustração da narrativa de Edgar A. Poe, “The Unparalleled 29
Adventure of One Hans Pfaall” (1835)....................................
Figura 4 Capa de Astouding Science-fiction, Dezembro de 1939.......... 36
Figura 5 Capa de Amazing Stories, março de 1939................................ 36
Figura 6 Ilustração do conto “In the Abyss”, de H.G. Wells................. 37
Figura 7 Ilustração do conto “The Purchase of the North Pole”, de 37
Júlio Verne...............................................................................
Figura 8 Capa do livro de uma das edições do livro I, Robot................. 46
Figura 9 Ilustração de Ralph McQuarrie para o conto “Robbie”........... 70
Figura 10 Capa de Astounding Science-Fiction, Abril de 1941............... 72
Figura 11 Cena do filme de George Méliès 1………………………….. 108
Figura 12 Cena do filme de George Méliès 2…………………………... 108
Figura 13 Cena do filme de George Méliès 3…………………………... 108
Figura 14 Alice e Humpty-Dumpty.......................................................... 116
Figura 15 Tweedledee e Tweedledum...................................................... 118
Figura 16 David com os pais.................................................................... 119
Figura 17 David e suas cópias.................................................................. 120
Figura 18 O nascimento de Vênus............................................................ 124
Figura 19 Cybertronics.............................................................................. 124
Figura 20 Programação............................................................................. 125
Figura 21 A família de David................................................................... 126
Figura 22 Gigolo Joe e a lua..................................................................... 127
Figura 23 A Fada Azul.............................................................................. 129
Figura 24 David e a Fada Azul................................................................. 129
Figura 25 Deus Ex-Machina..................................................................... 130
Figura 26 Robôs do Futuro....................................................................... 131
Figura 27 Pepper....................................................................................... 136

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10
1 A FICÇÃO CIENTÍFICA: A CONSTRUÇÃO DE UM 15
GÊNERO LITERÁRIO
1.1 A FICÇÃO CIENTÍFICA E OUTROS GÊNEROS 15
1.1.2 A Ficção Científica e o Fantástico 18
1.2 PROBLEMÁTICAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA 21
1.3 UMA LONGA HISTÓRIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA 29
1.4 UMA HISTÓRIA GÓTICA DA FICÇÃO 32
1.5 UMA HISTÓRIA RECENTE DA FICÇÃO CIENTÍFICA 34
2 OS ROBÔS E OS SERES ARTIFICIAIS 36
2.1 ISAAC ASIMOV 42
2.1.2 I, Robot: origem, importância e influências 46
2.1.3 A tecnologia, o medo e as leis da robótica 50
2.2 OS CONTOS DE I, ROBOT 53
2.2.1 “Robbie” 55
2.2.1.1 Um estranho companheiro de brincadeiras 56
2.2.1.2 Robbie, a Cinderela contemporânea 66
2.2.1.3 Glória, Robbie e a autoimagem 69
2.2.2 “Reason” 71
2.2.2.1 O robô Cutie, a filosofia, a existência e a criação 72
2.2.3 “Evidence” 90
2.2.3.1 Como diferenciar homens e robôs 92
3 O CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA 107
3.1 ARTIFICIAL INTELLIGENCE 114
3.1.1 O diálogo com os contos de fadas 115
3.1.2 O filme e suas imagens 124
3.1.3 Artificial Intelligence e Isaac Asimov 131
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 138

ANEXO A: UMA CRONOLOGIA DE EVENTOS E OBRAS 142


IMPORTANTES PARA O DESENVOLVIMENTO DA
FICÇÃO CIENTÍFICA
ANEXO B: FICHA CATALOGRÁFICA DO FILME 146


10


INTRODUÇÃO

O início do desenvolvimento dessa tese deu-se, em primeiro lugar, por um


simples gosto pessoal e por curiosidade em aprender mais sobre o mundo científico e
tecnológico, principalmente tendo em vista a forma como ambos têm se feito cada dia
mais presentes na vida do ser humano. Ao lermos jornais científicos e entrevistas com
teóricos famosos nessa área, percebemos um grande interesse por se especular e discutir
o que será de nosso futuro diante de todo esse desenvolvimento tecnológico: degradação
ambiental, guerras químicas e biológicas, a criação de um buraco negro artificial, a
singularidade (teoria que busca possibilitar a imortalidade humana, ao transferir sua
consciência a um computador), a sujeição do homem à inteligência artificial etc. Sobre
este último tópico, o renomado físico Stephen Hawkings concedeu uma entrevista à
rede BBC, em 2 de dezembro de 2014, alegando que "The development of full artificial
1
intelligence could spell the end of the human race." Assim, vemos que os temores
relacionados à presença da inteligência artificial entre os humanos tende a render muitos
debates e causar muitas inquietações, tanto entre as pessoas comuns, quanto no meio
científico.
Aparentemente, a ciência tem provocado dúvidas no homem com relação ao
futuro já há muitas décadas; isso pode ser observado de forma mais concreta no cinema
e, em um primeiro momento, na literatura. Se hoje muitos temem a crescente falta de
privacidade causada pela mídia, pela internet e pelas redes sociais, além da diminuição
do real contato interpessoal, no século passado, o homem já demonstrava receio de
perder seu lugar para a máquina, como bem retrata o filme Modern Times (Tempos
Modernos, 1936) de Charles Chaplin. O filme mostra um personagem que luta para
sobreviver à Grande Depressão que, na visão de Chaplin, é decorrente das facilidades
criadas pela industrialização moderna.
Seria nossa sociedade diferente daquela em que Charles Chaplin viveu? Em uma
breve e aleatória busca através do Google, incluindo a questão “will people be
substituted by machines?” ou “seremos substituídos pelas máquinas?”, deparamo-nos
com centenas de textos publicados em jornais, sites e revistas reconhecidos, como New
York Daily News, The Guardian, Business Insider, dentre outros, com os seguintes

1
O desenvolvimento de uma inteligência artificial completa poderia significar o fim da raça humana.
(tradução nossa). Fonte: <http://www.bbc.com/news/technology-30290540>


11


questionamentos e temas: “10 jobs that are being replaced by machines”, “What
happens to society when robots replace workers?”, “Can machines take your job?”,
“Rise of the robots: what will the future of work look like?”. Como se pode perceber,
passaram-se quase cem anos, mas o mundo contemporâneo ainda enfrenta –cada dia
mais – a preocupação com a relevância que o homem comum tem e terá em uma
sociedade cada vez mais tecnológica.
Surgiu, então, um interesse por pesquisar e observar de que forma nossa
sociedade era compreendida por pessoas que viveram há cinquenta ou cem anos. Ou
seja, o que eles puderam descobrir sobre o futuro que se tornaria realidade e o que
estava completamente fora da realidade? Notou-se que um dos melhores meios para
verificarmos isso é através da literatura, pois as obras literárias apresentam registros do
pensamento de uma época, traduzindo-os por meio de metáforas que se apresentam de
forma narrativa.
O texto literário que trata de especulações científicas é chamado de texto de
Ficção Científica. Apesar de existirem inúmeros estudos, artigos e análises escritas a
respeito da Ficção Científica que possibilitam a realização de pesquisas sobre o gênero,
a busca por entender mais sobre a Ficção Científica revelou-se bastante trabalhosa, uma
vez que quase não existem pesquisas sobre esse assunto no Brasil e poucos teóricos têm
se dedicado a essa literatura com mais relevância no país. Sendo assim, foi necessária a
procura por livros de autores, acadêmicos e pesquisadores de outras nacionalidades para
podermos encontrar informações sobre a história e as características da Ficção
Científica. Constatou-se que os teóricos mais dedicados a essa área pertencem a
Universidades Norte-americanas, o que se deve ao fato de os Estados Unidos serem um
dos maiores produtores da literatura e do cinema do gênero.
Entre os escritores de Ficção Científica destacam-se Robert Heinlein, Arthur C.
Clarke e Isaac Asimov, cujas obras e particularidades serão tratadas nesse trabalho. Este
último merece ainda mais ênfase pela quantidade de obras, tanto literárias quanto
didáticas, críticas, científicas, dentre outros gêneros, publicadas ao longo de sua vida:
acredita-se que mais de 450, no total.
Ao realizar uma busca por textos que representam a Ficção Científica de forma
bastante característica e que possuam qualidades literárias, como conotação profunda,
diálogos intertextuais, etc., a presente pesquisa encontrou no conjunto da obra de Isaac
Asimov uma ampla série dedicada aos robôs e à forma como nos relacionamos com
eles. Alguns desses textos foram selecionados, compilados e organizados pelo próprio


12


autor para publicação em forma de coletânea no ano de 1950, dando origem a um livro
chamado I, Robot. Em virtude da importância e da característica inovadora de sua obra
no âmbito da Ficção Científica e da literatura como um todo, conforme veremos de
forma mais detalhada ao longo desse trabalho, selecionamos alguns dos contos
apresentados nessa coletânea para análise.
Além disso, através desse estudo, perceberemos que Asimov influenciou toda a
produção de livros e filmes de Ficção Científica que foram concebidos após suas
publicações. Ele inspirou diretamente, por exemplo, seriados famosos, como Star Trek
(Jornada nas estrelas, 1966) e Lost in Space (Perdidos no espaço – 1965/1968). Na
mesma época, o escritor Arthur C. Clarke, amigo de Asimov, pretendia utilizar as três
leis da robótica2 na nave Discovery, do filme 2001: a space odissey, de 1968; Stanley
Kubric, porém, vetou a ideia e preferiu designar à máquina um cérebro maligno3. Outro
artista influenciado por Asimov é George Lucas, que molda seus principais robôs C3PO
e R2D2 de acordo com os preceitos da robótica descritos pelo autor.
As perguntas que surgiram ao longo da pesquisa a respeito da Ficção Científica
e da leitura dos textos de Isaac Asimov, devido aos temas tratados pelo livro, e que
deverão ser respondidas ao longo deste trabalho são: como a ficção científica reflete o
contexto histórico em que ela é produzida? O que o cinema herdou da literatura de
Ficção Científica? Quais as semelhanças e diferenças entre a literatura produzida nos
primórdios do gênero e os filmes produzidos atualmente?
Em um primeiro momento, acredita-se que a Ficção Científica tenha surgido
como reflexo do rápido desenvolvimento tecnológico causado pela Revolução
Industrial, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, pelos períodos das Grandes Guerras,
que, dentre outras inúmeras coisas, possibilitou a comunicação via rádio e o
desenvolvimento dos computadores4. Com isso, as máquinas passaram a se fazer
presentes na vida cotidiana das pessoas, causando, com frequência, dúvidas e temores
quanto à sua segurança e aos seus benefícios e malefícios. A literatura, portanto, passou
a tratar desses temas, ao tentar prever como o futuro se transformaria caso essas
máquinas se desenvolvessem cada vez mais, chegassem a ser autônomas, substituíssem

2
Leis que regulamentam o funcionamento dos robôs; tais leis foram criadas por Isaac Asimov e fazem
parte de todos os textos escritos por ele que tratam sobre o tema do ser artificial.
3
Na década de 1960, Kubrick e outros intelectuais ainda tinham medo das máquinas, dos robôs e dos
computadores. (CALIFE, 2004)
4
Os computadores começaram a ser desenvolvidos ao longo da Segunda Guerra Mundial, mas só foram
utilizados pela primeira vez na Guerra Fria, a partir de 1946.


13


o homem ou tentassem controlá-lo. A Guerra Fria também resultou, principalmente nos
Estados Unidos, no temor de se ter a terra natal invadida e controlada pelo estrangeiro –
no caso, pela União Soviética. Esse fato, somado ao início da corrida espacial, seria
retratado no cinema através de histórias de alienígenas que tentam dominar a terra e
destruir ou escravizar a humanidade.
Por outro lado, temos visto, ainda nos dias atuais, em que já nos encontramos no
“futuro” retratado por essa literatura originada e produzida no século XX, um aumento
progressivo de filmes que são classificados como Ficção Científica. Acredita-se que
estes filmes ainda se baseiem nas características criadas pelos autores literários do
século passado, levando às telas dos cinemas, através de imagem, som e efeitos
especiais, aquilo que era apenas narrado detalhadamente em livros. Porém, já possuímos
avanços tecnológicos no século XXI que diferem daqueles com que nossos
antepassados se deparavam: vivemos em uma era digital, na qual uma realidade virtual
pode ser criada, robôs quase humanos podem ser construídos e, acima de tudo, a
comunicação via celular e internet possibilita que tenhamos acesso a todo tipo de
informação, ao mesmo tempo em que somos controlados pelas grandes indústrias de
tecnologia da informação. O cinema de Ficção Científica atual retrata essa nova
realidade e tenta prever como nosso futuro, a partir disso, poderá ser transformado.
Para comprovar as hipóteses apontadas aqui, é necessário que se realize um
estudo tanto da literatura de Ficção Científica do século XX, quanto do cinema atual do
gênero. Para isso, o presente trabalho dividiu-se em três capítulos:
Em primeiro lugar, propomos o desenvolvimento de uma análise da coletânea de
três dos nove contos de I, Robot (Eu, robô, 1950), fazendo um estudo dialógico da obra
com seu contexto de produção. Em seguida, selecionamos uma produção
cinematográfica, Artificial Intelligence (2001), dirigido por Steven Spielberg e adaptado
a partir do conto “Supertoys last all Summer long” (1969), do escritor inglês Brian
Aldiss.
No primeiro capítulo, tratamos dos pressupostos teóricos em que as análises
serão baseadas, estabelecendo critérios para definirmos certos aspectos fundamentais da
Ficção Científica como gênero, traçando um panorama histórico de sua formação e
tratando de alguns dos autores mais representativos. Para isso, discutimos aspectos
apontados por alguns dos mais importantes autores e estudiosos do gênero, como
Robert Heinlein(1907-1988) e Hugo Gernsbeck, do século XX, e Darko Suvin (1988),
Adam Roberts (2006), James Gunn (2005), dentre outros, que são contemporâneos.


14


Cada um desses autores traz aspectos importantes para a análise, permitindo,
principalmente, o levantamento de reflexões e suposições sobre a Ficção Científica.
Nenhum desses autores, contudo, foi capaz de encerrar as discussões a respeito do que
seria, de fato, a Ficção Científica como um todo. Sobram diversas arestas a serem
recortadas, fatores históricos a serem levados em consideração e, acima de tudo, um
estudo que leve em conta o desenvolvimento do gênero, através da literatura, da
televisão, do cinema, dos quadrinhos, etc. Por isso, partiremos das principais ideias
citadas pelos teóricos em uma tentativa de definir como, para o presente estudo, esse
gênero deve ser compreendido.
No segundo capítulo, foram selecionados para análise três contos do livro I,
Robot: “Robbie”, “Reason” e “Evidence”, que mostram, progressivamente, a evolução
dos robôs, desde uma máquina que não é capaz de falar, no primeiro conto, até ela
adquirir a capacidade de pensar, no segundo conto, e passar a ser praticamente
indistinguível dos seres humanos, no terceiro conto. Nos demais contos do livro o autor
narra sobre como outras características dos robôs (como a aquisição da capacidade de
mentir e enganar e o desenvolvimento da autonomia) tornaram-se possíveis, mesmo
dentro da limitada configuração das máquinas – ou talvez em função delas –
desenvolvidas pelo homem. Assim, observaremos, também, de que modo, após a
incorporação dessas características, se dá a “humanização” desses seres artificiais.
No terceiro capítulo, examinaremos o filme Artificial Intelligence, com o
propósito de verificar de que forma a mídia cinematográfica contemporânea reinterpreta
a Ficção Científica, buscando meios de adaptá-la a um novo público. Além disso, serão
analisados aspectos do filme que, assim como nos contos de Isaac Asimov, levam em
conta as semelhanças do robô com o homem, seu criador. Ou seja, como algo que
criamos, na verdade, reflete aquilo que somos? Além disso, como nos comportaríamos
diante de um ser tão parecido conosco, mas que não possui nossas fraquezas e
debilidades? Em suma, por que a tecnologia nos faz sentir tão ameaçados, se somos nós
mesmos que a criamos?
O quarto capítulo trará uma conclusão dos estudos propostos, verificando o que
pôde ser respondido através da análise dos contos e do filme e deixando espaço para que
novas pesquisas surjam no âmbito da Ficção Científica, um importante gênero
contemporâneo, devido ao fato de que a sociedade atual está imersa, cada vez mais, em
uma realidade tecnológica.


15


1. FICÇÃO CIENTÍFICA: A CONSTRUÇÃO DE UM GÊNERO
LITERÁRIO

1.1 A FICÇÃO CIENTÍFICA E OUTROS GÊNEROS

Antes de pensarmos sobre o que é a Ficção Científica (Science Fiction, em


inglês), sugerimos uma reflexão, a qual foi proposta anteriormente por um dos mais
conhecidos autores do gênero, Robert Heinlein, sobre o termo ficção. Para o dicionário
Michaellis de língua portuguesa, uma obra de ficção é “aquela cujo enredo é criado pela
imaginação do autor.” Do mesmo modo, o dicionário Caldas Aulete diz que a ficção é
um “ramo de criação artística, literária, cinematográfica, teatral, etc. baseada em
elementos imaginários.” Já no Oxford Dictionaries Online, encontramos a seguinte
definição: “literature in the form of prose, especially novels, that describes imaginary
events and people.” Como bem ressalta Heinlein, o que há em comum entre todas essas
definições, e muitas outras apontadas pelo autor, é a palavra “imaginação”:

Fiction is storytelling about imaginary things and people. These


imaginary tales are usually intended to entertain and sometimes do,
they are sometimes intended to instruct and occasionally manage even
that, but the only element common to all fiction is that all of it deals
with imaginary elements […]. But if all fiction is imaginary, how is
realistic fiction distinguished from fantasy?5

Complementando o último questionamento do autor, sobre como podemos


distinguir a “ficção realista” da “fantasia”, podemos pensar também em como podemos
distinguir a fantasia da Ficção Científica. Que tipo de características se fazem ausentes
ou presentes em um texto para podermos enquadrá-lo dentro de um determinado
gênero? Para Heinlein, chamamos de fantasy um texto cujos elementos e/ou
acontecimentos “are not limited by the physical universe as we conceive it to be”6, ou


5
A ficção é uma narrativa sobre coisas e pessoas imaginárias. Esses contos imaginários são,
frequentemente, feitos para o entretenimento e, as vezes, eles conseguem fazer isso, eles são, por vezes,
feitos para instruir e, ocasionalmente, são capazes disso, mas o único elemento comum a toda ficção é que
ela lida com elementos imaginários [...]. Mas se toda ficção é imaginária, como distinguir a ficção realista
da fantasia? (Tradução nossa). Fonte: HEINLEIN, Robert. Science Fiction: its natures, faults and virtues.
Disponível em: http://www.loa.org/sciencefiction/biographies/heinlein_science.jsp
6
“não se limitam pelo universo físico como o concebemos” (Tradução nossa).


16


seja “imaginary-and-not-possible”7. Por outro lado, a ficção realista contém elementos
e/ou acontecimentos que são “imaginary-but-possible”8, isto é, “imaginary but could be
real so far as we know the real universe”9. A Ficção Científica está mais próxima da
ficção realista. Embora pareça paradoxal, a ficção científica procura retratar, de forma
realista, tempos e espaços futuros que hoje diferem dos nossos, mas que poderão se
“presentificar”, pois antecipam, não raro, possíveis construções sociais, possíveis
“realidades” científicas e novas possibilidades tecnológicas. A Ficção Científica é uma
grande especulação sobre o que poderá ocorrer frente a novas mudanças científicas ou
tecnológicas.
Talvez se pudesse afirmar que a fantasia é algo que não pode ocorrer, mas que
gostaríamos que acontecesse; enquanto a ficção científica é algo que pode ocorrer, num
futuro próximo ou longínquo.
Desse modo, a Ficção Científica deve estar “pautada” na realidade e em suas
possibilidades: não podemos dizer que um texto que narre sobre uma civilização de
alienígenas vivendo na lua pertença ao gênero, pois, segundo nossos conhecimentos
científicos em astronomia, isso não faz parte da realidade. Assim, qualquer autor que se
aventure a escrever necessita ter tanto a habilidade literária quanto um conhecimento
científico aprofundado no assunto. Não é por acaso que muitos dos mais famosos
escritores do gênero são também engenheiros, bioquímicos, etc., conforme destacamos
pela citação seguinte:

H. G. Wells had a degree in biology and kept up with Science all his
life [...] Dr. E. E. Smith is a chemist, a chemical engineer, and a
metallurgist […] Philip Wylie has a degree in physics, as has Don A.
Stuart […] John Taine is the pen name of one of the ten greatest living
mathematicians. L. Sprague de Camp holds three technical degrees.
Lee Correy is a senior rocket engineer. […] Is it surprising that such
men, writing fiction about what they know best, manage to be right
rather often?10


7
“imaginário-e-não-possível” (Tradução nossa).
8
“imaginário-mas-possível” (Tradução nossa).
9
“imaginário mas poderia ser real de acordo com as leis do universo” (Tradução nossa).
10
H. G. Wells tinha formação em biologia e acompanhou os estudos científicos durante toda sua vida. Dr.
E. E. Smith é um químico, um engenheiro químico, e um metalúrgico [...] Philip Wylie tem formação em
física, assim como Don A. Stuart [...] John Taine é o pseudônimo de um dos dez maiores matemáticos
vivos. L. Sprague de Camp possui três diplomas técnicos. Lee Correy é um engenheiro de foguetes
experiente. [...] É alguma surpresa que tais homens, ao escrever ficção sobre o que eles mais conhecem,
consigam estar frequentemente corretos? (Tradução nossa). Fonte: HEINLEIN, Robert. Science Fiction:
its natures, faults and virtues. Disponível em:
http://www.loa.org/sciencefiction/biographies/heinlein_science.jsp


17

Quando se diz, portanto, que a Ficção Científica, por vezes chamada de Ficção
Especulativa11, é capaz de surpreendentemente predizer o futuro, antecipando invenções
que surgiriam em anos posteriores à escrita de uma obra, comete-se o erro de se pensar
que um autor do gênero desconhece a ciência de que ele trata.
Assim, podemos dizer, em um primeiro momento, que um texto deve ser
chamado de Ficção Científica quando seu autor for capaz de unir imaginação e ciência.
A ciência, aliás, será um fator limitante para o desenvolvimento da narrativa, não
podendo a história exceder os limites daquilo que admitimos ser cabível a ela.
No editorial da revista Amazing Stories, lançado em junho de 1926, Hugo
Gernsback trata justamente das observações dos leitores quanto às possibilidades e
impossibilidades científicas presentes nas histórias publicadas até então:

Often while Reading one or four modern scientificition tales, we want


to explode at some highly ‘impossible’ plot concocted by some
ingenious writer. And often we receive a letter from some reader who
vents his opinion in no uncertain terms that such and such a thing
‘cannot be within the realms of possibility’. (p. 387)12

Com isso, percebemos que o compromisso do gênero com a ciência tornou-se


uma demanda desde o início da constituição da Ficção Científica. O autor G. Peyton
Wertenbaker13, em carta ao editor Hugo Gernsback na edição de julho de 1926 da
revista Amazing Stories, expõe sua preocupação de que a Ficção Científica pudesse se
tornar mais um artigo científico, resultante de pesquisas na área, do que puramente uma
narrativa literária:


11
A terminologia Speculative Fiction (Ficção Especulativa) foi utilizada pela primeira vez em 1899, pelo
crítico M. F. Egan, ao se referir à obra do autor Edward Bellamy, intitulada Looking Backward. Mais
tarde, em 1947, Robert Heinlein definiu o termo como parte da ficção científica que extrapola os limites
da ciência e da tecnologia conhecida até o momento da escrita de determinada narrativa. Em 1966, a
autora de Ficção Científica Judith Merrill usou o termo para se referir a toda obra do gênero que mostra
uma transformação social, sem dar muita ênfase à ciência e à tecnologia. Atualmente, o termo tem sido
utilizado sem muitos critérios e não há definições formais para que se possa dizer que este é um gênero
distinto da Ficção Científica, nem mesmo um subgênero. (THE ENCYCLOPEDIA OF SCIENCE
FICTION ONLINE, Disponível em: http://www.sf-encyclopedia.com/entry/speculative_fiction)
12
Frequentemente, ao lermos um dentre quatro contos de Ficção Científica ficamos indignados diante de
enredos “altamente” improváveis, criados por algum autor engenhoso. E com frequência recebemos uma
carta de algum leitor querendo desabafar sua opinião de forma clara de que isso ou aquilo ‘não pode
existir dentro do campo de possibilidades’. (Tradução nossa).
13
Autor e editor norte-americano de Ficção Científica, iniciou a carreira aos 15 anos de idade, com o
conto “The man from the Atom”, em 1923.


18


‘The danger that may lie before AMAZING STORIES is that of
becoming too scientific and not sufficiently literary. […] It is
hard to make an actual measure, of course, for the determination
of the correct amount of science, but the aesthetic instinct can
judge. I can only point out as a model the works of Mr. H. G.
Wells, who has instinctively recognized, in his stories, the
correct proportions of fiction, fact, and science. This has been
possible only because Mr. Wells is a literary artist above
everything, rather than predominantly a scientist. […] Since he
is an artist, he has given us the first truly beautiful work in this
new field of literature’. (p. 291)14

Em resposta a Wertenbaker, Gernsback define que o texto ideal deveria conter


setenta e cinco por cento de conteúdo literário e vinte e cinco por cento de conteúdo
científico. Desse modo, tendo em vista a visão dos teóricos e autores citados, não é
possível, então, assumirmos que a Ficção Científica seja um subgênero do Fantástico ou
de qualquer outro gênero. É claro que não podemos pensar que a Ficção Científica seja
um gênero “puro”, ou seja, que ele não tenha traços de romance, aventura, terror,
mistérios, entre outros, assim como qualquer outro gênero literário. Porém, não há como
confundir narrativas pertencentes a esse gênero com qualquer outro.

1.1.2 A Ficção Científica e o Fantástico

Apenas para tratarmos de forma mais precisa os questionamentos existentes


entre as diferenças entre a Ficção Científica e o Fantástico, tratemos de algumas
considerações feitas por teóricos, professores e críticos literários.
A autora norte-americana Miriam Allen de Ford (1888-1975), especialista em
contos de mistério e ficção científica, definiu em poucas palavras a diferença entre a
ficção científica e a literatura fantástica: “science fiction deals with improbable
15
possibilities, fantasy, with plausible impossibilities” (apud ALDISS; WINGROVE,

14
‘O perigo que pode se estabelecer diante de AMAZING STORIES é de ela se tornar
demasiadamente científica e não literária o bastante. [...] É difícil fazer uma medida ideal, é
claro, para determinar a quantidade correta de ciência, mas o instinto estético pode servir de
juízo. Eu posso apenas apontar como modelo os trabalhos do Sr. H. G. Wells, que reconheceu
instintivamente, em suas histórias, as proporções corretas de ficção, fato, e ciência. Isso foi
possível apenas porque o Sr. Wells é um artista literário acima de tudo, em vez de um cientista
predominantemente. [...] Sendo artista, ele nos deu o primeiro verdadeiro e belo trabalho nesse
novo campo literário’ (tradução nossa).
15
A ficção científica lida com possibilidades improváveis, a fantasia, com impossibilidades plausíveis.
(tradução nossa).


19


2005, p. 164). Para Eric S. Rabkin, professor emérito em Língua e Literatura Inglesa na
Universidade de Michigan, a ficção científica seria “the branch of the fantastic that
16 17
makes its narrative world plausible against a background of science” . Quando
observamos as definições dos especialistas, notamos que há uma aproximação entre o
que consideramos literatura fantástica e o que chamamos de ficção científica e, muitas
vezes, estes gêneros parecem andar juntos.
Conforme dissemos anteriormente, alguns teóricos literários da Ficção Científica
discutem e analisam essas vertentes literárias e, até mesmo, afirmam que a ficção
científica se trata de um subgênero do fantástico:

There followed decades of spirited debates on the formal


characteristics of the genre, drawing the participation of both
‘mainstream’ theorists like Robert Scholes and Eric Rabkin and of
practicing writers such as Joanna Russ and Damien Broderick. For the
most part, these more formalist definitions fell into two broad camps:
those which focused in the interactions between text and reader that
were peculiar to science fiction (such as Delany’s or Suvin’s or Carl
Malmgren’s narratological approach in his 1991 Worlds Apart:
Narratology of Science Fiction) […] and those which focused on the
differences between science fiction and other kinds of texts (such as
Rabkin’s locating science fiction along a spectrum of works ranging
from less to more fantastic, in the Fantastic in Literature, 1976 […] or
Brian Attebery […] with groups of fantastic works defined more by
their centres than by rigid perimeters in his Strategies of Fantasy,
1992 […])18 (SAWYER; WRIGHT, 2011, p. 44-45)

Ao pensarmos na história da literatura e traçarmos uma linha do tempo, desde os


mitos gregos e das lendas antigas, até os textos escritos na Era da Razão, no século
XVIII e chegarmos ao século XIX, com o movimento romântico, a literatura gótica e os
contos de horror, atesta-se que a literatura fantástica e a ficção científica possuem as


16
Ramo do fantástico que faz seu mundo narrado plausível, pautado em um plano de fundo científico.
17
Fonte: Eric Rabkin – Defining Science Fiction < http://www-
personal.umich.edu/~esrabkin/ssf/definitionsrabkinB.html> Acesso em 20 de março de 2014.
18
Seguiram-se décadas de debates acesos sobre as características formais do gênero, atraindo a
participação tanto de teóricos renomados, como Robert Scholes e Eric Rabkin, e de autores, como Joanna
Russ e Damien Broderick. Para a maioria deles, estas definições mais formalistas se dividem em dois
grandes grupos: aqueles que focam nas interações entre texto e leitor, que eram peculiares na ficção
científica (tal como os textos de Delany, [Darko] Suvin ou Carl Malmgren, em sua abordagem
narratológica na obra Worlds Apart: Narratology of Science Fiction, de 1991) e aqueles que focam nas
diferenças entre ficção científica e outros textos (tal como na obra Fantastic in Literature, de 1976, em
que Rabkin localiza a ficção científica ao longo de um espectro de obras mais ou menos fantásticas ou
Brian Attebery [...] com seus grupos de obras fantásticas definidas mais pelos temas centrais do que pelas
características periféricas, em Strategys of Fantasy, 1992.) (tradução nossa)


20


mesmas origens, pois se baseiam em superstições culturais, influenciadas pelo folclore,
pelas crenças em deuses e no sobrenatural.
Como exemplo, podemos citar a influência que estes gêneros literários
receberam a partir do folclore judaico. Essa cultura possuía uma narrativa de tradição
oral que contava a lenda de uma criatura chamada Golem. Este ser, criado a partir do
barro e incapaz de falar, era feito para servir de escravo aos homens. Em algumas
variações da história era necessário escrever a palavra Emet (verdade, em língua
hebraica) para que o Golem ganhasse vida; do mesmo modo, ao apagar a letra “e”, lia-
se a palavra Met (morto, em hebraico), que foi a forma encontrada para destruir a
criatura. Acredita-se que essa lenda tenha sido um dos principais textos precursores de
Frankenstein, de Mary Shelley, lançado no século XIX. Além disso, Frankenstein
também possui influência explícita do mito de Prometeu – expresso no subtítulo da obra
(Frankenstein ou o Prometeu moderno)
No século XVIII, Daniel Defoe escreveu histórias de viagens e aventuras,
inspirado pelas grandes navegações do século XVI, e estabeleceu um intertexto com
dois novos subgêneros, a fantasy adventure (Alice’s Adventures in Wonderland and
Through the Looking Glass, de Lewis Carroll, 1865) e a science adventure
(representada por diversas obras de Júlio Verne).
A Ficção Científica só ganhou contornos mais nítidos, todavia, no século XX,
quando se cunhou o termo scientifiction e, no editorial de uma revista popular, chamada
Amazing Stories, começou-se a pensar a respeito do que seria essa vertente literária.
Alguns dos editoriais dessa revista foram já citados nesse trabalho e pudemos observar
como delineiam as características do gênero.
A origem da criação de textos caracterizados como Ficção Científica tem
causado vários debates e discordâncias entre os críticos e estudiosos da área. Afirma-se
que a produção de textos que seguem um viés científico estaria diretamente ligada ao
contexto histórico de uma sociedade submetida a transformações tecnológicas
constantes, como aquela do século XIX, em meio à Revolução Industrial. Os primeiros
autores famosos do gênero seriam, portanto, o francês Júlio Verne e o inglês H. G.
Wells. No entanto, outros encontram temas típicos do texto de ficção científica – como
a busca de novos mundos, viagens à lua e a criação de seres mecânicos - em narrativas
de antigas civilizações. Pode-se citar como exemplo a narrativa grega do ano 170 d. C.,
escrita por Lucian de Samosata, na Síria e cujo título foi traduzido para o inglês como
True History ou True Story (Alêthês Historia). A intenção do autor era realizar uma


21


sátira de textos míticos, que consideravam seus relatos fantásticos como algo
verdadeiro; True Story conta a história do herói Lucian que é levado por um forte vento
até uma ilha misteriosa e, em seguida, é transportado por um redemoinho até a Lua.
Não podemos nos esquecer, também, do mito de Hefésto, divindade do fogo, dos
metais e da metalurgia, que constrói para si um palácio de metal munido de servos
mecânicos. O teórico de ficção científica Adam Roberts diz, ainda, que muitos
estudiosos consideram a epopeia de Gilgamesh (escrita por volta de 2000 a. C.) como
um texto de ficção científica. Diante disso, Roberts julga haver diferentes
entendimentos da natureza da Ficção Cientifica:

Stress the relative youth of the mode and you are arguing that SF is a
specific artistic response to a very particular set of historical and
cultural phenomena; more specifically, you are suggesting that SF
could only have arisen in a culture experiencing the Industrial
Revolution, or one undergoing the metaphysical anxieties of what
nineteenth-century philosopher Friedrich Nietzsche called ‘the Death
of God’. Stress the antiquity of SF, on the other hand, and you are
arguing instead that SF is a common factor across a wide range of
different histories and cultures, that it speaks to something more
durable, perhaps something fundamental in the human make-up, some
human desire to imagine worlds other than the one we actually
inhabit. (ROBERTS, 2006, p. 35-36)19

1.2 PROBLEMÁTICAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Apesar de todas as considerações apresentadas até aqui, as definições da ficção


científica como gênero ainda são discutidas, analisadas e reformuladas por teóricos
contemporâneos, como Darko Suvin, James Gunn, Eric Rabkin e Paul Kincaid –
destacamos que as teorias escritas pelos três primeiros servirão de base teórica para
nossa pesquisa no presente trabalho.


19
“Se dermos ênfase à relativa juventude do estilo, estaremos argumentando que a FC é uma resposta
artística específica para um conjunto muito particular de fenômenos históricos e culturais; mais
especificamente, sugeriremos que a FC só poderia ter surgido em uma cultura sujeita à Revolução
Industrial, ou em outra submetida às ansiedades metafísicas, chamadas pelo filósofo Friedrich Nietzsche,
no século XIX, de “A morte de Deus”. Por outro lado, se dermos ênfase à antiguidade da FC, estaremos
argumentando que ela é um fator comum em meio a uma alta gama de diferentes histórias e culturas, que
ela se refere a algo mais duradouro, talvez um fator fundamental para a composição humana, um desejo
humano de imaginar mundos diferentes daquele em que realmente habitamos.” (tradução nossa)


22


James Gunn, por exemplo, no artigo intitulado “Toward a Definition of Science
Fiction”, relata que em suas aulas para universitários tenta, junto aos seus alunos,
encontrar definições mais apropriadas para esse tipo de texto: “by means of historical
20
development, thematic analysis, comparison and contrast, and examples” (GUNN,
2005, p. 6) O que o teórico considera mais problemático, no entanto, é que a ficção
científica não é um gênero como os demais, conforme ele explica:

Unlinke the mistery, the western, the gothic, the love story, or the
adventure story, to cite a few of the popular genres, science fiction has
no typical action or place. Readers do not recognize it as they
recognize other genres, because of some critical event (such as crime
and its detection) or its setting (the mythical West during the period
1865-1900). As a consequence, science fiction can incorporate other
genres: we can have a science-fiction mystery, a science-fiction
western, a science-fiction gothic, a science-fiction love story, or most
likely of all, a science-fiction adventure story.
The first step toward definition, then, must be the elimination of those
aspects of the fiction that are not unique to science fiction - the aspects
of the mystery, the western, the gothic, the love story, and the
adventure story […] before we can begin to recognize what is left as
being irreducibly science fiction […] 21 (2005, p. 6-7)

Assim como sua caracterização, a origem da literatura de Ficção Científica é,


também, bastante controversa, os críticos e teóricos literários não conseguiram chegar,
ainda, em um consenso para determinar com segurança quando e onde a Ficção
Científica se iniciou. Apesar de muitos alegarem a existência de textos pertencentes a
este gênero desde o século XVII, o termo science-fiction foi cunhado apenas na década
de 1920, pelo editor norte-americano Hugo Gernsback em uma revista pulp. Os maiores
autores do gênero surgiram a partir dessas publicações e ajudaram a moldar, a
disseminar e a popularizar a Ficção Científica, fazendo com que esses textos pudessem
ser publicados em livros, adaptados para séries de TV e para o cinema.


20
Por meio do desenvolvimento histórico, análise temática, comparação e contraste, e exemplos.
(tradução nossa)
21
Diferentemente das narrativas de mistério, de faroeste, góticas, de histórias de amor ou de aventura,
para citar alguns dos gêneros populares, a ficção-científica não possui nenhuma ação ou espaço
característicos. Os leitores não são capazes de distingui-la, como fazem com os outros gêneros, porque
alguns dos eventos cruciais (como o crime e sua investigação) e sua ambientação (o oeste mítico do
período entre 1865-1900). Como consequência, a ficção científica pode incorporar outros gêneros:
podemos ter uma ficção-científica de mistério, um faroeste de ficção científica, uma narrativa gótica de
ficção-científica, uma história de amor de ficção científica, ou, o mais provável, uma aventura de ficção-
científica. o primeiro passo para a definição, portanto, deve ser a eliminação desses aspectos da ficção
que não são particulares à ficção-científica – os aspectos do mistério, do faroeste, do gótico, da história de
amor e da história de aventura. [...] antes de começarmos a reconhecer o que restou como sendo,
irredutivelmente, ficção-científica.


23


O ápice da produção literária de Ficção Científica ocorreu entre as décadas de
1940 e 1960; o período ficou conhecido como a Era de Ouro e foi representada por
autores importantes, como Isaac Asimov, A. E. Van Vogt, E. E. “Doc” Smith, Walter
Miller e Arthur C. Clarke. Com o fim da Era de Ouro, após a década de 1960, a Ficção
Científica passou a se expandir e se tornar gradativamente um gênero da mídia visual,
ou seja, surgiu o interesse em se realizarem grandes produções cinematográficas,
repletas de efeitos especiais, que tentavam criar, através de uma tecnologia gráfica,
mundos que, nas décadas anteriores, estavam restritos ao imaginário dos leitores.
Adam Roberts alega que a transposição intermidiática, da literatura de Ficção
Científica para o cinema, tem proporcionado uma maior popularidade a estes textos,
fazendo com que eles se “aprofundem culturalmente” na sociedade de forma mais
eficaz.
Com o fim da Era de Ouro, a Ficção Científica viveu, de 1960 a 1980, a
chamada New Wave, durante a qual um grupo de escritores decidiu se colocar contra as
convenções impostas pelo gênero até aquele momento; para eles, os “clichês”
determinados pelo formato da era anterior haviam se tornado maçantes, conforme
explica James Graham Ballard22, na revista inglesa New Worlds23:

Science fiction should turn its back on space, on interstellar travel,


extra-terrestrial life forms, galatic wars and the overlap of these ideas
that spreads across the margins of nine-tenths of magazine s-f. […] I
think science fiction must jettison its present narrative forms and
plots.24 (BALLARD, apud ROBERTS, 2005, p. 231.)

A literatura da era New Wave mostrava um mundo apocalíptico ou pós-


apocalíptico resultante de um desenvolvimento tecnológico e científico mal
administrados pelo homem. Um dos autores mais reconhecidos desse período é Philip
K. Dick, responsável pela obra Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), cuja
narrativa relata um mundo destruído pela guerra nuclear, quase inabitado, onde se passa
a história de Rick Deckard, responsável por perseguir androides, banidos da Terra, que


22
James Graham Ballard foi um autor inglês de literatura de Ficção Científica da era New Wave.
23
Revista inglesa de Ficção Científica. Surgiu em 1936 e no final da década de 1960 começou a focar
suas publicações em textos produzidos por autores New Wave.
24
A ficção científica deveria virar as costas para o espaço sideral, às viagens interestelares, às formas de
vida extraterrestres, às guerras intergalácticas e à sobreposição dessas ideias que se espalham através das
margens de nove em cada dez revistas de ficção científica. Eu acredito que a ficção científica deve
descartar os atuais modelos e enredos narrativos. (tradução nossa)


24


tentam retornar ao planeta. A obra tornou-se popular quando o diretor Ridley Scott a
levou para o cinema em 1982, dando-lhe o título de Blade Runner.
A década de 1980 inaugurou um período denominado Cyberpunk, era da Ficção
Científica que permanece até os dias atuais. A Enciclopédia de Ficção Científica25,
explica que o movimento Cyberpunk tem como ideia central o conceito de Realidade
Virtual e cita como exemplo a obra Neuromancer (1984), de William Gibson. A
narrativa trata de uma realidade alternativa em que as máquinas dominam um ambiente
que pode ser adentrado pelos homens através de um cyber espaço. Na década de 1990, o
texto de Gibson inspira a criação da trilogia cinematográfica Matrix. O termo
Cyberpunk nasce da mistura da palavra cibernética (cybernetics) com a palavra punk. A
cibernética surgiu em 1948, com o matemático Norbert Wiener; a teoria de Wiener
aproxima a comunicação e o controle de seres vivos e grupos sociais às máquinas
eletrônicas. Em sua obra Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos
(1968), o teórico afirma que, com relação à transmissão de informações, não há
diferença entre o homem e a máquina.

The "cyber" part of the word relates to Cybernetics: to a future where


industrial and political blocs may be global […] a future in which
machine augmentations of the human body are commonplace, as are
mind and body changes brought about by Drugs and biological
engineering. Central to cyberpunk fictions is the concept of Virtual
Reality […] the "punk" part of the word comes from the rock'n'roll
terminology of the 1970s, "punk" meaning in this context young,
streetwise, aggressive, alienated and offensive to the Establishment. 26
27

Como se pode perceber, o termo punk indica que o movimento busca uma
quebra radical com a ordem social. As sociedades descritas por essas narrativas são
distópicas e retratam acontecimentos que se passariam em um futuro próximo na Terra.
Nessas histórias, o homem se encontra em conflito com a Inteligência Artificial e com
megacorporações tecnológicas. Nota-se, portanto, que o cinema de Ficção Científica


25
Disponível em: <http://www.sf-encyclopedia.com/entry/cyberpunk> Acesso 14 de janeiro de 2014.
26
Fonte: Enciclopédia de Ficção Científica. Disponível em <http://www.sf-
encyclopedia.com/entry/cyberpunk> Acesso: 18 de janeiro de 2014.
27
O termo “cyber” está relacionado à cibernética: para um futuro em que blocos industriais e políticos
podem ser globais [...] um futuro em que a incorporação da máquina aos corpos humanos será lugar
comum, assim como as mudanças da mente e do corpo ocasionadas por drogas e pela engenharia
genética. O conceito de Realidade Virtual é fator primordial na Ficção Científica [...] o termo “punk” vem
da terminologia do Rock’n’Roll dos anos 1970, naquele contexto, “punk” significava ser jovem, urbano,
agressivo, alienado e ofensivo diante das regras estabelecidas. [...] (tradução nossa)


25


está inserido no contexto de produção da Era Cyberpunk, ou seja, filmes que carregam
de forma explícita as características do movimento, produzidos desde a década de 1980,
como: a série Terminator (O Exterminador do Futuro), 12 Monkeys, (Os 12 Macacos),
Robocop, The Fifth Element (O Quinto Elemento), Avatar, entre tantos outros.

1.3 UMA LONGA HISTÓRIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Esta primeira parte do trabalho utiliza como apoio teórico duas obras escritas
pelo pesquisador especialista em Ficção Científica, o inglês Adam Roberts, intituladas
The History of Science Fiction e Science Fiction: the new critical idiom (2006). Roberts
expõe as três diferentes versões que explicariam, historicamente, o advento da ficção
científica como gênero: The Long History of Science Fiction; The Gothic History of
Science Fiction; The Gernsbackian History of Science Fiction.
Em Science Fiction: the new critical idiom, Roberts apresenta duas diferentes
abordagens para o estudo do gênero: a formalista e a estruturalista, baseando-se em
premissas de alguns teóricos norte-americanos contemporâneos. Estes estudos
contribuem para o entendimento que temos a respeito da caracterização do gênero nos
dias atuais.
Adam Roberts não considera que quaisquer textos escritos antes do ano 1600
possam pertencer à literatura de ficção científica. Não porque o teórico desconsidere
que já houvesse textos, em séculos muito anteriores ao XVII, que falassem sobre
eventos mágicos e fantásticos, como aqueles previamente citados, ou outros que
também discorrem sobre viagens à Lua, como a obra de Cícero O sonho de Cipião
(Somnium Scipionis, 51 a. C) e a narrativa de Plutarco The Circle of the Moon (to
kuklô tês selênês, 80 d. C), que falam sobre o sistema solar e o descreve como lugar
habitado por almas de pessoas mortas. Roberts cita ainda o épico Orlando Furioso,
escrito pelo poeta italiano Ludovico Ariosto, em 1516, o qual traz um relato sobre uma
viagem à Lua feita nas costas de um hipogrifo.
Estas obras, porém, não poderiam ser consideradas como pertencentes ao gênero
da ficção científica, pois elas foram escritas e concebidas em uma esfera puramente
religiosa e geocêntrica: “[...] everything above the level of the Moon was incorruptible,
eternal and godly.”28 (ROBERTS, p. 39). Foi apenas com o astrônomo polonês, Nicolau


28
“tudo acima do nível da Lua era incorruptível, eterno e divino.” (tradução nossa).


26


Copérnico (1473-1543), que essa visão se alterou e passamos a entender o sistema solar
como algo mais materialista, partindo de um ponto de vista heliocêntrico.
Sendo assim, nessa perspectiva histórica, a primeira obra de ficção científica
teria sido escrita pelo astrônomo alemão Johann Kepler (1571-1630), que, além de seus
estudos científicos, escreveu um texto ficcional, chamado Somnium, sive Astronomia
Lunaris. O livro começou a ser escrito como uma dissertação em que Kepler discorre
sobre a teoria de Copérnico a respeito do movimento da Terra. A ideia original de
Kepler era a de dizer que, assim como na Terra nós vemos a atividade lunar, habitantes
da Lua também seriam capaz de observar os movimentos de nosso planeta. Cerca de 20
anos mais tarde, o autor decidiu transformar seu texto, inserindo elementos de ficção:
então, a narrativa passou a tratar da história de Tycho Brahe, um estudante que é
transportado até a lua por bruxas. Alguns anos depois, Kepler ainda adicionou à obra
algumas notas explicativas científicas, tentando justificar suas teorias e suposições por
meio de suas observações e estudos. É importante destacar que tanto o astrônomo Carl
Sagan quanto o autor Isaac Asimov consideram a obra de Kepler como a primeira
pertencente ao gênero de ficção científica.

Figura 1 : Capa de edição norte-americana de Somnium


Disponível em: < https://www.goodreads.com/book/show/5984974-somnium>. Acesso em 12 de nov. de
2013.

A partir de então, outros autores do século XVII, inspirados pelas novas


descobertas a respeito do funcionamento do sistema solar, começaram a publicar obras
tratando de viagens à Lua e de descobertas de novos mundos; alguns exemplos mais
relevantes são: O Homem na Lua (The man in the moon, 1638), de Francis Godwin (que


27


escrevia sob o pseudônimo de Domingos Gonsales). O livro conta a história de um
homem que consegue ir até a lua, transportado por gansos; História cômica dos estados
e impérios da Lua, de Savinien de Cyrano de Bergerac, (editado em 1657), a história
relata a viagem de um homem até a lua e a descoberta de criaturas estranhas que
habitam aquele lugar; The Description Of A New World Called The Blazing World, de
Margaret Cavendish (1666), obra que fala sobre a descoberta de um universo paralelo,
cuja entrada se dá no Polo Norte.

Figura 2: Edição de The Man in the Moone, de Francis Godwin.


Disponível em: <http://astropt.org/blog/2009/11/24/romenos-vao-a-lua-de-balao/> Acesso em 12 de nov.
de 2013.

Dando continuidade ao gênero literário surgido no século XVII, as aventuras


interplanetárias adentram o século XVIII e a temática se torna frequente na literatura
europeia. Outros temas, como a visita de seres alienígenas à Terra e especulações sobre
o futuro também ganham força. Podemos citar exemplos de autores famosos que
escreviam de acordo com essas ideias, como Daniel Defoe (The Consolidator; or,
Memoirs of Sundry Transactions from the World in the Moon, 1705), Jonathan Swift


28


(As viagens de Guliver, Gulliver’s travels, 1726 – é interessante observar a crítica à
ciência que surge na terceira parte da narrativa, quando Guliver se encontra com
cientistas vivendo “fora da realidade”, por terem passado muito tempo criando teorias
sobre o cosmos).
Pode-se ir contra as afirmações de que a ficção científica tenha tido início no
século XVII, com as obras apresentadas acima, pois para se confirmar o advento de um
gênero é necessário que as obras iniciais sejam culturalmente significativas e, ainda
hoje, influenciem outros autores. Assim, uma análise da ficção científica como fator
cultural só poderia considerar textos “vivos” e este não é o caso da grande maioria das
obras que expressam tal temática, escritas nos séculos XVII e XVIII.

1.4 UMA HISTÓRIA GÓTICA DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Alguns acadêmicos e críticos literários indicam que a ficção científica tem suas
raízes no Romance Gótico, descrito como o gênero que apresenta “a gloomy castle,
replete with dungeons, subterranean passages, and sliding panels”29 e, além disso,
“made bountiful use of ghosts, mysterious disappearances and other sensational and
30
supernatural occurrences...their principal aim was to evoke chilling terror”
(ABRAMS, 1985, p. 74, apud ROBERTS, 2006, p. 42).
Os aspectos do Romance Gótico que acarretaram na constituição da ficção
científica são as combinações do imaginário e do sublime, associados ao modo de
escrita romântica do século XIX (ROBERTS, 2006). Para alguns críticos literários,
portanto, a ficção científica teria tido seu princípio com o romance Frankenstein, escrito
em 1818, por Mary Shelley. Para eles, diferentemente dos textos do século XVII e
XVIII que ficaram esquecidos no passado, a história de Frankenstein é conhecida por
quase todos nós, mesmo por aqueles que não leram o texto, de fato, mas puderam ter
contato com a narrativa através do cinema, da televisão ou de alguma outra mídia. Além
disso, é inegável que a obra ainda continua dialogando com outros autores e outras
narrativas ainda nos dias de hoje.
O que aproxima Frankenstein ao que conhecemos hoje como ficção científica é a
temática do texto: um cientista que vai de encontro às leis da natureza e consegue dar

29
“um castelo sombrio, repleto de calabouços, passagens subterrâneas e painéis deslizantes” (tradução
nossa).
30
“fez uso abundante de fantasmas, desaparecimentos misteriosos e outras ocorrências fantásticas e
sobrenaturais...seu principal objetivo era causar calafrios de terror.” (tradução nossa)


29


vida a um ser construído a partir de cadáveres; a criatura, no entanto, cansada da
solidão, volta-se contra o cientista e torna-se ameaçadora. Para o crítico Darko Suvin
(1979), a obra apresenta, ainda, outro tema que se tornaria recorrente na ficção
científica, o progresso atrelado à catástrofe.
A ficção científica, como gênero, porém, só começaria a ganhar mais força
quando mais tarde, ainda no século XIX, autores como H. G. Wells e Júlio Verne
inaugurariam suas publicações literárias. Estes são os dois escritores que mais se
destacaram quando pensamos em aventuras que tratam de viagens a lugares longínquos,
ambientes fantásticos, viagens no tempo e contatos alienígenas. Mas, a ficção científica
estava presente também em textos de outros literatos deste mesmo século, como Edgar
Allan Poe, John Munro e Percy Greg. Em um texto chamado The Unparalleled
Adventure of One Hans Pfaall (1835), Poe narra a história de um homem que consegue
ir à lua em um balão; como se nota, o enredo é bastante semelhante a outros textos
publicados no século XVII e XVIII. Aliás, Júlio Verne admite que uma de suas histórias
mais famosas, Da Terra à Lua (De la Terre a la Lune, 1865) é uma releitura da história
de Poe.

Figura 3: Ilustração da narrativa de Edgar A. Poe, The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall (1835)
Fonte: <http://www.davidsongalleries.com/artists/eichenberg/eichenberg.php> Acesso em 12 de nov. de
2013
Ainda assim, Verne e Wells são até hoje vistos como os mais famosos escritores
de ficção científica, devido à qualidade e a popularidade de seus textos; foram eles que
começaram a inserir a ficção científica na cultura popular e a dar as primeiras formas ao
gênero. Adam Roberts (2005, p. 129) explica, porém, que não há um consenso entre os
críticos com relação à qualidade da obra desses autores; alguns até mesmo dizem que os
textos de Verne não podem ser considerados ficção científica (uma vez que no século
XIX o termo Science Fiction ainda não havia sido cunhado e, além disso, ainda não


30


havia um conjunto estabelecido de textos e de leitores do gênero), apesar de o próprio
Roberts discordar disso: para ele, a popularidade dos textos de Verne e as adaptações
para o cinema de sua obra acabaram por garantir que a tecnologia fosse usada como um
elemento central nessas narrativas.
Podemos dividir a vida literária de Júlio Verne (1828-1905) em três fases: a
primeira, que vai de 1862 a 1886 é conhecida como período positivista, durante a qual
ele lançou muitas histórias de ficção científica, como Voyage au centre de la
Terre (Viagem ao centro da Terra, 1864), Autour de la Lune (À roda da lua, 1869) e
Vingt mille lieus sous les mers (Vinte mil léguas submarinas, 1870). A segunda fase vai
de 1886 até 1905, o ano de sua morte e ficou conhecida como o período pessimista de
Verne, pois o autor passa a explorar as ameaças da tecnologia, como em Sans Dessus
Dessous (traduzido para o inglês com dois títulos diferentes, Topsy-Turvey ou The
Purchase of the North Pole, 1889). O livro narra a história da venda por leilão de uma
região do Ártico e do Polo Norte. A venda é efetuada e os compradores são revelados
como sendo os mesmos que, vinte anos atrás (conforme é relatado na obra From the
Earth to the Moon) haviam viajado até a Lua em um canhão. Dessa vez, porém, a
intenção é a de usar o canhão para remover a inclinação do eixo da Terra para que ele
ficasse perpendicular à órbita do planeta – isso daria um fim às mudanças climáticas, às
estações do ano e à alternância dia-noite. O fim maior de tudo isso, no entanto, era o de
derreter o gelo do Polo Norte e, assim, extrair o carvão natural existente embaixo do
gelo para vendê-lo. A história representa o medo do progresso e da intervenção que a
tecnologia poderia trazer à ordem e ao funcionamento natural das coisas. Como
veremos mais adiante, o medo da ciência tornar-se-á uma temática cada vez mais
recorrente na ficção científica, principalmente no século XX.
Por fim, a terceira fase de Júlio Verne decorre entre 1905 e 1919, quando seu
filho Michel Verne publica algumas obras do pai, após modificá-las e recuperá-las. Há
muitas discussões a respeito dessas obras, pois após análises dos manuscritos originais,
descobriu-se que Michel Verne chegou a reescrever completamente alguns livros e,
sendo assim, elas não poderiam ser atribuídas à autoria de Júlio Verne. Alguns
exemplos de obra pertencentes a esta fase são: Le Volcan d’or (O vulcão de ouro,
1906), La chasse au météore (A caça ao meteoro, 1908), Le secret de Wilhelm Storitz
(O segredo de Wilhelm Storitz, 1910).
Isaac Asimov afirma que Júlio Verne teria sido o autor inaugural do gênero de
ficção científica, pois o francês foi o primeiro a ganhar dinheiro com tais publicações.


31


Todavia, o crítico Patrick Parrinder (1980) diz que H. G. Wells (1866-1946) foi uma
peça fundamental na construção do gênero “in the evolution of scientific romance into
modern science fiction. His example has done as much to shape SF as any other single
literary influence”.31 (apud ROBERTS, 2006, p. 10) Isso porque Wells incluía em seus
textos vários temas que hoje reconhecemos como dos mais representativos da Ficção
Científica, como encontros com alienígenas, mutações biológicas e cidades futurísticas.
Wells começou sua carreira escrevendo artigos científicos – na maioria de
ciência especulativa – para pequenos jornais ingleses. Sua produção bibliográfica durou
até meados da década de 1940, porém, as obras mais grandiosas foram lançadas entre
1895 e 1905, como a The Time Machine (A Máquina do Tempo, 1895) The Island of
Doctor Moreau (A Ilha do Doutor Moreau, 1896), The Invisible Man (O Homem
Invisível, 1897) e The War of the Worlds (Guerra dos Mundos, 1898). De acordo com
Roberts (2005, p. 145) há uma temática constante nos textos do autor: ele sempre se
baseia em um ambiente comum e contemporâneo, no qual um objeto estranho abre as
portas para um novo mundo.
Essa fórmula é considera pelos críticos como sendo uma mistura de realismo
com ficção científica, fazendo, ao mesmo tempo, uma representação da realidade
naquele final de século e uma tentativa de fuga desse cotidiano, através de um
dispositivo criado pela ciência. Essa interpretação é válida, mas ao mesmo tempo
bastante simples, dado o grande número de temas que são tratados por essas histórias;
além disso, algumas delas estão mais próximas da literatura fantástica do que da ficção
científica, como The Invisible Man, uma vez que nesse caso a ênfase está no medo do
desconhecido, simbolizado pela figura de um homem que passa a cometer crimes
quando percebe que não pode ser mais ser visto, isto é, sem o olhar do outro, elimina-se
a censura e consequentemente, perde-se o autocontrole. Mais do que uma crítica social,
nesse caso, temos uma condenação da própria natureza humana e o medo do progresso
científico.
Considera-se que Verne e Wells tenham sido, portanto, autores fundamentais na
criação de narrativas que seriam chamadas de ficção científica, algumas décadas mais
tarde e não há como ignorar a influência que estes autores tiveram nos temas, nas
questões e nos enredos que seriam desenvolvidos posteriormente. Veremos, então, de
que forma os autores do século XX transformaram e adequaram o gênero, de acordo

31
Seu exemplo foi tamanho que definiu as formas da Ficção Científica, assim como qualquer outra
influência literária em particular. (tradução nossa)


32


com as exigências do mercado, do público-leitor, dos editores e das revistas em que
publicavam seus textos, moldando a ficção científica nas formas como nós a
conhecemos hoje.

1.5 UMA HISTÓRIA RECENTE DA FICÇÃO CIENTÍFICA

No século XIX, na Inglaterra, com a industrialização e o capitalismo, a


população começou a se interessar em investir mais tempo e dinheiro no
entretenimento. Com a mecanização da imprensa, o aumento da velocidade no
transporte de mercadorias graças ao desenvolvimento do sistema ferroviário e o
aumento nas taxas de alfabetização, uma nova mídia surge, tornando-se comum no
cotidiano dos ingleses, principalmente dos jovens: as revistas chamadas Penny
Dreadfuls, que publicavam em suas páginas histórias seriadas ao longo de algumas
semanas. As revistas eram extremamente baratas (custavam 1 penny), devido à baixa
qualidade do material da qual eram feitas. Ao mesmo tempo, em 1860, os editores
Erastus e Irwin Beadle lançaram, nos Estados Unidos, publicações conhecidas como
Dime Novels, revista também dedicada ao público jovem. No início, elas se voltavam a
narrativas sobre o Velho Oeste, histórias de detetive e outros gêneros. A evolução
dessas publicações, após a 1a Guerra Mundial, deram origem a outro tipo de revista, as
pulp fictions. As revistas pulp levavam este nome devido ao material de que elas eram
fabricadas: elas eram feitas da polpa da madeira tratada quimicamente. Isso fazia com
que o papel fosse mais barato, mas também menos duradouro, uma vez que suas folhas
sofriam um rápido processo de amarelamento e se tornavam quebradiças. O editor de
jornais e revistas norte-americano, Frank A. Munsey, é considerado o criador do
formato e da fórmula das revistas pulp, tendo lançado o primeiro volume em 1896, com
uma revista chamada The Argosy. A partir de então, começaram a surgir outros títulos
dedicados apenas à publicação de histórias ficcionais, tratando de vários temas, como
fantasia, contos de terror, contos de aventura e, um pouco mais tarde, ficção científica.
O termo science-fiction (inicialmente chamado de scientifiction) foi criado por
Hugo Gernsback32, fundador e editor da revista pulp Amazing Stories33 (também


32
Hugo Gernsback, além de escritor, foi também um inventor. Suas contribuições ao gênero de ficção
científica foram tão grandes que ele foi homenageado com um prêmio literário que leva seu nome, o
Hugo Awards.
33
A revista Amazing Stories, primeira do gênero ficção científica, era publicada mensalmente e durou
cerca de 80 anos, sendo que a última edição foi lançada em março de 2006.


33


conhecida como Amazing Science-Fiction Magazine), publicada pela primeira vez em
1926. Na primeira edição, Gernsback define sua publicação como um tipo novo de
revista de ficção, diferente de todas as outras já conhecidas pelo público. Inicialmente, o
editor define “scientifiction” como um tipo de narrativa que mistura o gênero romance
com fatos históricos e visões proféticas. Ele se refere à Edgar Allan Poe como o “pai”
da scientifiction, seguido por Júlio Verne e H. G. Wells:

It was he [Poe] who really originated the [science fiction] romance,


cleverly weaving into and around the story, a scientific thread. Jules
Verne, with his amazing romances, also interwoven with a scientific
thread, came next. A little later came H. G. Wells whose scientifiction
stories, […], have become famous and immortal. (1926, p. 3). 34

Por isso, Gernsback publica na primeira edição da revista seis contos, sendo o
primeiro de Júlio Verne (“Off on a Comet”, 1877), o segundo de H. G. Wells (“The
New Accelerator” , 1901) e o último de Edgar Allan Poe (“The Facts in the Case of Mr.
Valdemar”, 1845). Em pouco tempo, no entanto, Gernsback encontrou autores dispostos
a escrever exclusivamente para ele. Segundo o editor, o que diferenciava estas
publicações naquele momento era o contexto histórico: a ciência e a tecnologia estavam,
então, intimamente ligadas ao cotidiano das pessoas e o progresso estava causando
mudanças tão grandes na vida de todos que situações pensadas como “fantásticas” um
século antes haviam se tornado comuns naquele momento. Sendo assim, para ele, a
ficção científica não era apenas uma narrativa para o divertimento, mas era também
instrutiva, trazendo conhecimentos que não poderiam ser obtidos de outra forma:

Thus it will be seen that a scientifiction story should not be taken too
lightly, and should not be classed just as literature. Far from it. It
actually helps in the progress of the world, […], and the fact remains
that it contributes something to progress that probably no other kind of
literature does. (GERNSBACK, 1926, p. 579)35


34
Foi ele [Poe] quem realmente deu origem ao romance [de ficção científica], costurando
engenhosamente a história com fatos científicos. Júlio Verne veio em seguida, com seus fantásticos
romances, também entrelaçados a uma linha científica. Pouco depois veio H. G. Wells, cujas histórias de
ficção científica, [...], tornaram-se famosas e eternas. (tradução nossa)
35
Assim, veremos que a história da Ficção Científica não deve ser encarada de forma muito branda, e não
deve ser classificada apenas como literatura. Longe disso. Ela realmente ajuda no progresso do mundo,
[...] e o fato é que ela contribui com o progresso de um modo que nenhum outro tipo de literatura faz.
(tradução nossa).


34


No que se refere à questão profética das narrativas, Gernsback alega que Poe,
Verne, Wells e outros escreveram sobre coisas que viriam a existir mais tarde, como o
submarino, de Vinte Mil Léguas Submarinas (Vingt mille lieues sous les mers, 1870); da
mesma forma, ele acreditava que muitas das histórias de ficção científica, que ainda
seriam escritas, mostrariam objetos que seriam inventados futuramente.
O que Hugo Gernsback não sabia, porém, é que novos autores se interessariam
em publicar textos para sua revista e as narrativas ganhariam mais força e se
desenvolveriam de acordo com os moldes da publicação e o gosto do público. A seção
de cartas, que permitia que os fãs entrassem em contato uns com os outros, causaram
um fanatismo pelo gênero. O editor estimulava, assim, seus leitores a mandarem cartas
com sugestões para melhorar o formato da revista e os textos que eram nela publicados,
conforme vemos no trecho destacado abaixo, retirado da primeira edição da revista:

Now that you have looked over the first issue of AMAZING
STORIES, the editor would very much like to know how you like the
new magazine. In the coming issues we shall probably run a
department entitled ‘Readers’ Letters’, which will be a forum where
our readers can discuss the various problems in connection with these
stories. Very often you are puzzled over certain scientific matter
contained in stories of this kind and wish to get more information. We
shall try to keep this new department for the benefit of all, and will try
to publish all letters received from readers of AMAZING STORIES.
If, on the other hand, you have comments, criticisms, and suggestions,
be good enough to let us have all of these. The editor would also like
to know whether you like the present makeup of the magazine; that is,
one story in two parts, as, for instance, the one we present this month,
‘Off on a Comet’, with the balance in the next issue – or whether you
would rather have the complete story in one issue, without the short
stories as printed in the present number.
Rest assured that the editor will be guided by the majority at all times.
A word from you will be greatly appreciated. – Editor.
(GERNSBACK, 1926, p. 482)36


36
Agora que você já deu uma olhada na primeira edição de AMAZING STORIES, o editor
gostaria muito de saber o que você achou da nova revista. Nas próximas edições, nós
provavelmente teremos uma seção chamada ‘Cartas dos Leitores’, a qual será um fórum no qual
os leitores poderão discutir os diversos problemas relacionados a essas histórias. Muito
frequentemente, você fica confuso com uma certa questão científica apresentada em histórias
desse tipo e gostaria de adquirir mais informações. Tentaremos manter essa seção para o
benefício de todos, e tentaremos publicar todas as cartas recebidas dos leitores de AMAZING
STORIES. Se, por outro lado, você tiver comentários, críticas, e sugestões, não deixe de nos
enviar todas elas. O editor também gostaria de saber se você gosta do formato atual da revista;
isto é, uma história divida em duas partes, como, por exemplo, a que apresentamos esse mês,
‘Off on a Comet”, com a conclusão na próxima edição – ou se você gostaria de ter a história
completa em uma edição, sem os contos , conforme impressos no presente número.


35


Com isso, aos poucos, foi se criando uma comunidade de autores e leitores
voltados para esse gênero textual e estes tinham sua opinião respeitada e mudanças
sugeridas eram anexadas às publicações; desse modo, pode-se dizer que Gernsback
inaugurou um novo gênero literário, que, além de se tratar de uma história
surpreendente, obrigatoriamente tinha de conter elementos científicos no desenrolar da
narrativa “[...] the amazing quality [of the stories] is only one requisite, because the
story must contain science in every case.”37 (GERNSBECK,1926, p. 483)
Portanto, a princípio, a ficção científica era publicada apenas em revistas. O
gênero foi moldado, em seus primórdios, por aquilo que os fãs das chamadas pulp
magazines esperavam encontrar em suas leituras. Entre 1920 e 1930 as revistas
publicavam histórias de aventuras espaciais – os autores que mais se destacaram, nesse
período, foram Edgar Rice Burroughs (1875-1950) e E. E. ‘Doc’ Smith (1890-1965).
Além do formato dos textos escritos nas pulp magazines, outro aspecto importante
contido nelas – que viria a influenciar o cinema do gênero – eram as imagens: as capas
eram detalhadamente desenhadas e coloridas, repletas de monstros alienígenas lutando
contra heróis, espaçonaves, robôs, retratados em um ambiente futurista, para chamar a
atenção dos leitores e as narrativas traziam ilustrações em preto e branco, conforme se
observa em algumas imagens abaixo:


Assegure-se que o editor será sempre guiado pela maioria. Uma palavra sua será grandemente
apreciada – Editor (tradução nossa).
37
“[...] a qualidade surpreendente [das histórias] é apenas um requisito, pois ela deve conter
ciência em todos os casos.” (tradução nossa)


36

Figura 4: Capa de Astouding Science-fiction, Dezembro de 1939


Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan.
de 2014.

Figura 5: Capa de Amazing Stories, março de 1939


Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan.
de 2014.


37

Figura 6: Ilustração do conto “In the Abyss”, de H.G. Wells


Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan.
de 2014.

Figura 7: Ilustração do conto “The Purchase of the North Pole, de Júlio Verne
Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan.
de 2014.

Todas as ilustrações foram feitas por artistas que se tornaram bastante


conhecidos na época, e acabaram recebendo prêmios por seus trabalhos, com destaque
para Frank R. Paul (1884-1963) . Paul foi descoberto pelo próprio editor, Hugo
Gernsback, e tornou-se responsável por definir as ilustrações de capa e do interior das
revistas entre 1926 a 1929. As ilustrações de Paul se tornariam as primeiras imagens de


38


Ficção Científica vistas pelos americanos, assim como por seus leitores que viriam a se
tornar autores do gênero, como Ray Bradbury.
Na década de 1940, nos Estados Unidos, as narrativas começaram a ser
publicadas em formato de livro, principalmente em edições de bolso. Este novo gênero
permaneceu como fenômeno particularmente norte-americano até o final da Segunda
Guerra Mundial – apesar de as revistas pulp terem também se popularizado bastante
pela Europa e de alguns autores britânicos, como C. S. Lewis, aventurarem-se a
escrever um ou outro texto.
O período de guerras e de crises (como a Segunda Guerra Mundial e a
Depressão de 1929, nos Estados Unidos) contribuiu para o amadurecimento da ficção
científica, devido aos avanços tecnológicos e aos novos temas de âmbito social e
político suscitados com esses acontecimentos. Um grande exemplo disso é a obra
Nineteen Eighty-Four, do inglês George Orwell, escrita em 1948 e publicada em 1949,
que tem como foco a história de uma sociedade reprimida por um regime totalitário.
Em julho do ano de 1939, a revista Astounding Stories publicou uma nova
edição que trazia contos de autores até então desconhecidos: A. E. Van Vogt e Isaac
Asimov. Assim, a partir dessa data, estava inaugurada a Era de Ouro da ficção
científica, que começaria a ficar conhecida também pelo público em geral e não apenas
pelos fãs do gênero.
Como vimos, a Era de Ouro tratava de histórias nas quais havia sempre um herói
resolvendo problemas e enfrentando ameaças em uma aventura repleta de artefatos
tecnológicos ou eram ambientadas no espaço. Abordavam, portanto, temas que
satisfaziam o gosto pessoal do editor John W. Campbell (ROBERTS, 2005, p. 195).
Campbell iniciou sua carreira como editor da Astouding science-fiction em outubro de
1937 e só deixaria o cargo em 1971, ano de sua morte (na ocasião, ele havia mudado o
nome da revista para Analog). Segundo ele, a evolução das histórias de ficção científica
publicadas nas pulp magazines em um novo gênero literário foi bastante perceptível, até
mesmo no que diz respeito às questões abordadas no enredo: o pano de fundo das
histórias são as máquinas, mas o ponto principal do enredo, sua essência, é o homem
(WESTFAHL, 1998, p. 182).
A Era de Ouro perduraria até 1955 e, apesar do curto período de duração, tem
dialogado com a literatura e o cinema até os dias de hoje. Além disso, a Era de Ouro
consolidou a carreira de três dos maiores autores de ficção científica de todos os
tempos: o próprio Isaac Asimov, Robert Heinlein e Arthur C. Clarke; eles ficariam


39


conhecidos como “the big three” entre leitores e críticos literários. Para que possamos
entender mais a respeito dos autores e dos livros publicados nesse período, é importante
que falemos de forma mais aprofundada sobre a obra e os temas tratados por cada um
desses representantes. Aqui, faremos algumas considerações sobre os escritores A.
Heinlein, Arthur C. Clarke e sobre suas obras. O autor Isaac Asimov será tratado de
forma mais aprofundada e específica no próximo capítulo, devido ao fato de este ser
nosso objeto de estudo nessa pesquisa.
O norte-americano Robert A. Heinlein (1907-1988), ao contrário de seus colegas
escritores contratados pela Astounding Stories, que começaram suas carreiras ainda
muito jovens (Asimov, por exemplo, tinha apenas 19 anos quando seu primeiro texto foi
publicado nessa revista), era uma escritor mais maduro, tinha 30 anos, e por esse motivo
os temas das suas histórias diferem da maioria dos textos publicados pela revista.
Segundo Roberts (2005), a visão de Heinlein sobre a ficção científica era a que mais se
aproximava dos ideais de John W. Campbell.
Pode-se dizer que a literatura de Heinlein teve três fases distintas, conforme
descreve Adam Roberts (2005): na primeira ele publicou aqueles que foram
considerados seus melhores e mais inovadores livros, como The Puppet Masters (Os
Manipuladores, 1951) em que agentes secretos norte-americanos precisam combater um
grupo de alienígenas parasitas, que se alojam nos seres humanos; tal narrativa
influenciou filmes que foram lançados poucos anos depois e que seguiam essa mesma
premissa, como Invasion of the Body Snatchers (Invasores de Corpos, 1956) e a trilogia
Alien (1979-1997). Outra obra importante na primeira fase de produção de Heinlein é
Starship Troopers (Tropas Estelares, 1959), a qual conta a história de um soldado
americano, Johnny, que é obrigado a lutar contra uma tropa de insetos alienígenas, para
tornar-se um cidadão e ter direito ao voto. Todos os homens precisavam completar o
serviço militar. Esta obra se tornou bastante conhecida, tendo sido adaptada para a TV,
para o cinema e para os quadrinhos.
A segunda fase de Heinlein foi a mais carregada de preocupações ideológicas:
um exemplo é a obra Strangers in a Stranger Land - uma releitura do famoso The
Jungle Book (O livro das Selvas, de Rudyard Kipling, 1894) - em que um homem é
criado por marcianos e, posteriormente, volta para conviver com a cultura terrena. Em
sua última fase, Heinlein tornou-se bastante controverso, e passou a ser considerado
demasiadamente “estranho” por alguns críticos literários. O teórico de Ficção Científica
norte-americano, Darko Suvin, chega a definir essa fase como fruto de uma


40


“senilidade”, (1988, p. 201). Um exemplo de romance publicado nesse período é Friday
(1982), narrativa sobre uma mulher clonada, que enfrenta preconceito e corre o risco de
ser morta caso os humanos descubram sobre sua natureza artificial – o livro discute o
que nos faz humanos, o que define homem. A crítica que muitos fazem a esse texto,
porém, é que ele é desconexo e privado de um enredo coerente.
Heinlein foi mais lido em sua época do que o é nos dias de hoje e muitos leitores
afirmam que suas histórias não apresentam quaisquer novidades possíveis de chamar a
atenção de um leitor moderno, pois os temas estariam ultrapassados e seriam um tanto
ingênuos. Uma pesquisa mais aprofundada sobre os apreciadores de seus textos, porém,
revela leitores aficionados, que consideram Heinlein o autor mais expressivo e autêntico
da Era de Ouro, por abordar questões sociais, políticas culturais e religiosas em suas
obras.
Arthur C. Clarke (1917-2008) nasceu no Reino Unido e passou um longo
período de sua vida (de 1956 até sua morte) no Sri Lanka, por isso, suas vivências e seu
conhecimento de mundo diferenciam-no de outros autores, norte-americanos, desse
período. Apesar de ter se tornado mundialmente mais conhecido por ser autor da obra
2001: Space Odyssey (2011: uma odisseia no espaço, 1968, baseado em outro texto de
Clarke, Expedition to Earth, de 1951), devido à adaptação cinematográfica realizada por
Stanley Kubric, Clarke iniciou sua carreira muito antes, em 1946, quando lançou o
conto “Loophole”, na revista Astounding Stories.
As grandes obras de Clarke são, quase sempre, relacionadas a viagens
interestelares e a seres alienígenas invasores, que desejam destruir a humanidade. No
livro Childhood’s End (O Fim da Infância, 1953), obra bastante aclamada, Clarke narra
o fim da humanidade e do planeta Terra, promovido por crianças guiadas por
alienígenas.
Mesmo sendo reconhecido como um dos autores mais adeptos das inovações
tecnológicas, ele, paradoxalmente, incluía fatores místicos e metafísicos em seus textos.
Por outro lado, guiado pelas instruções de John W. Campbell, os heróis de suas histórias
demonstram que o homem é capaz de conquistar tudo o que se propõe a buscar e a
fazer, demonstrando um olhar antropocêntrico e racionalista.
Por um bom tempo, Clarke e Asimov disputaram o título de quem seria o melhor
autor desse período. Ambos se engajaram na disputa e acabaram, por fim, aceitando que
Clarke fora o melhor na ficção científica e Asimov o melhor autor científico, isto é,
Clarke teria se destacado nas características literárias de seus livros, enquanto Asimov


41


foi mais preciso ao incluir nos textos os aspectos científicos necessários para uma boa
literatura de Ficção Científica. Clarke, por sua vez, é visto, até hoje, como um dos
principais autores da literatura de ficção científica pós Segunda Guerra Mundial,
apresentando, quase sempre, uma visão otimista com relação à tecnologia.
Certamente diversos outros autores também produziram obras importantes ao
longo da Era de Ouro, porém, os três citados aqui são os que merecem destaque e são
reconhecidos pelos críticos como os mais significativos para a época em questão,
trazendo influências nos filmes e na literatura produzida atualmente. Desse modo, seus
textos traduzem de forma clara as características dessa geração e o que elas trouxeram
para o crescimento e o desenvolvimento da ficção científica como a conhecemos.

































42


2. OS ROBÔS, OS SERES ARTIFICIAIS E O HOMEM

2.1 ISAAC ASIMOV

Isaac Asimov nasceu no ano de 1920, na antiga URSS, mas seus pais
emigraram para os Estados Unidos, em 1923. Antes de se tornar um autor consagrado,
Asimov formou-se como bioquímico e passou a trabalhar na U.S. Navy Yard, na
Filadélfia, em 1946. Porém, desde 1929 ele já se interessava pela leitura de textos de
Ficção Científica, pois havia entrado em contato com a revista pulp Science Wonder
Stories38. Algum tempo depois, Asimov tornou-se leitor de outra publicação, a revista
Astounding Science Fiction, do editor Jonh W. Campbell; decidido a se arriscar no
campo literário, em 1938, ele finalizou a escrita de uma pequena história, chamada
“Cosmic Corkscrew” e a enviou a Campbell. Rejeitado pelo editor, Asimov partiu para
uma segunda tentativa, criando outro texto em dezoito dias, que dessa vez levava o
nome de “Stowaway”. O editor voltaria a recusar o conto de Asimov, mas enviou-lhe
cartas de encorajamento, para que o garoto, então com 19 anos, não desistisse de suas
publicações. Então, em março de 1939, o terceiro conto escrito pelo autor, “Marooned
off Vesta” seria publicado na revista Amazing Stories, que era na ocasião editada por
Raymond A. Palmer. Três meses depois, em julho de 1939, o autor conseguiria,
finalmente, lançar um de seus textos, o conto “Trend”, na revista de John A. Campbell.
Segundo o biógrafo James Gunn (2005), Asimov era extremamente racionalista
e buscava uma explicação lógica para tudo em sua vida. Além disso, ele mesmo se
denominava claustrofílico – tinha preferência por permanecer em locais que fossem
pequenos, apertados e sem janelas – e agorafóbico. Gunn afirma que as neuroses
sofridas pelo autor estão bastante ligadas ao tipo de profissão escolhido por Asimov e,
acima de tudo, ao tipo de texto adotado por ele:

A more general mystery than the origin of Asimov’s traits and


neuroses is why certain young people turn to reading, and sometimes
writing, science fiction. Asimov is a case study. When he began
reading science fiction, the number of readers was small […] but
intensely involved. Most had turned to science fiction out of some
kind of youthful frustration with their lives. A profile of new readers
would reveal them to be mostly boys; mostly brighter than their

38
Revista de ficção científica lançada pelo editor Hugo Gernsback.


43


schoolmates; mostly social misfits because of personality, appearance,
lack of social graces, or inability to find intellectual companionship
[…] Science fiction was a kind of literature of the outcast that praised
the intellectual aspects of life that its readers enjoyed and in which
they excelled, and a literature that offered more hope for the future
than the present.39 (p. 14)

Asimov era um típico exemplar do jovem descrito por James Gunn. Desde
criança, passava horas de seu dia sozinho, lendo livros ou revistas, enquanto seu pai se
dedicava ao cuidado da loja de doces da família e a mãe se esforçava para satisfazer as
exigências do pai, ajudando na loja, e cuidando dos outros dois filhos menores. No final
da adolescência, passou a enviar cartas aos editores das revistas de ficção científica,
principalmente a John W. Campbell, fazendo comentários e dando sugestões e começou
a frequentar um fã clube do gênero, onde um grupo de garotos se encontrava para
discutir sobre o assunto e para escrever fanzines40.

When those kinds of persons discover others like themselves, fan


clubs spring up, sometimes [...] conventions are organized, and
writing science fiction becomes a virtually universal ambition. When
those kinds of persons begin to write, they write science fiction.41
(GUNN, 2005, p. 14)

A afirmação de James Gunn parece ser quase tão racional quanto o próprio Isaac
Asimov se dizia ser, pois busca na vida do autor a explicação para suas habilidades; mas
o fato é que as biografias de muitos autores do gênero são bastante similares entre si,
conforme se observa na descrição abaixo:

There are certain curious resemblances between the characters and


careers of Asimov and H. G. Wells, who is often called the father of

39
Um mistério maior do que a origem das características e das neuroses de Asimov é o motivo pelo qual
alguns jovens escolhiam ler, e as vezes escrever, ficção científica. Asimov é um caso a ser estudado.
Quando ele começou a ler ficção científica, o número de leitores era pequeno, mas eles eram
intensamente dedicados. Muitos haviam se voltado para a ficção científica devido a uma frustração
juvenil com suas vidas. O perfil dos novos leitores revelaria que eles eram em sua maioria meninos; a
maioria mais inteligente do que seus colegas; geralmente não se encaixavam socialmente, devido à
personalidade, aparência, falta de modos ou incapacidade de encontrar companhia intelectualmente
compatível [...] A ficção científica era um tipo de literatura dos excluídos que valorizava as questões
intelectuais da vida, o que divertia seus leitores, pois eles eram excelentes nisso, assim como era uma
literatura que oferecia mais esperança para o futuro do que para o presente.
40
Um fanzine é uma revista produzida por fãs, geralmente amadores, de algum gênero. Muitos autores,
porém, começaram suas carreiras com a escrita de fanzines – alguns fanzines também acabaram por se
tornar publicações importantes e reconhecidas.
41
Quando essas pessoas descobrem outras que se parecem com elas, surgem fã-clubes, as vezes [...]
convenções são organizadas, e escrever ficção científica se torna uma ambição virtualmente universal.
Quando essas pessoas começam a escrever, elas escrevem ficção científica. (tradução nossa)


44


modern science fiction. Both spent their early lives in unsuccessful
shops, were precocious students, quick to learn with good memories
[...] Both were selective in what they liked, Wells with biology and
evolution, Asimov with chemistry, and both were fond of history [...]42
(GUNN, 2005, p. 14)

Desde suas primeiras publicações, Asimov tornou-se muito próximo de John W.


Campbell e tinha o hábito de escrever suas histórias baseadas em temas propostos pelo
editor. Pode-se dizer que as narrativas do autor são formadas por uma mistura de suas
preferências com a metodologia de John W. Campbell como pano de fundo, conforme
afirmou o próprio Asimov, em entrevista:

And I remember everything he said and how he thought and I did my


best – because I desperately wanted to sell stories to him – to
incorporate his method of thinking into my stories, which, of course,
also had my method of thinking, with the result that somehow I caught
the Campbell flavor. (ASIMOV, apud GUNN, 2005, p. 16)

Assim, vale dizer que a ficção científica norte-americana moderna, formada


entre meados de 1920 e o início de 1950, foi estruturada a partir das revistas pulp
escritas nesse período e das escolhas e preferências dos editores. Até mesmo alguns
autores contemporâneos, que se dizem avessos a estas publicações, demonstram grande
influência dos conceitos e preceitos criados pelas revistas.
No que concerne à obra de Asimov, as narrativas elaboradas a partir da
combinação Asimov-Campbell são aquelas baseadas em um problema central que
necessita de solução, e essas soluções são sempre bastante racionais, baseadas em leis
físicas. Podemos perceber esse estilo narrativo de forma bastante clara na série robôs,
pois todos os contos presentes nessa coletânea seguem a mesma temática: os robôs são
programados de acordo com as leis da robótica e, portanto, não existe possibilidade de
haver falhas em seu funcionamento; porém, essas falhas sempre ocorrem e os
personagens centrais precisam descobrir a origem do problema para solucioná-lo.
Além das obras ficcionais, Asimov foi também autor de uma vasta coleção de
livros científicos, não ficcionais; nesses escritos, o autor demonstrava uma grande


42
Há certas semelhanças curiosas entre as personalidades e carreiras de Asimov e H. G. Wells, que é
comumente chamado de pai da ficção científica moderna. Ambos passaram sua juventude em lojas mal
sucedidas, foram alunos precoces, aprendizes rápidos e de boa memória [...] Ambos eram seletivos
quanto a seus gostos, Wells com a biologia e a evolução, Asimov com a química e ambos eram
apaixonados por história [...] (tradução nossa)


45


preocupação com o futuro da humanidade e do planeta, evidenciando a necessidade de
controlar a poluição, impedir as guerras e diminuir o crescimento populacional. É
interessante observar que esse tipo de preocupação não aparece na obra ficcional, que
são, em sua maioria, bastante otimistas com relação ao futuro - é como se, na ficção,
ele quisesse mostrar que todos os problemas poderiam ser controlados pelo homem.
Por suas publicações na literatura não ficcional, Asimov foi reconhecido e
congratulado por cientistas, como o Professor George G. Simpson, de Harvard. Por suas
obras de Ficção Científica, foi considerado como um Grande Mestre pela World Science
Fiction Conventions, recebendo diversos prêmios Hugos43 e Nebulas44.
Até o final de sua vida, Isaac Asimov publicaria mais de 450 livros, incluindo
antologias editadas por ele (The Hugo Winners, Isaac Asimov Presents the Best Science
Fiction Firsts), obras de literatura crítica (Asimov’s Guide to Shakespeare, The
Annotated Don Juan, The Annotated Paradise Lost, The Annotated Guliver’s Travels),
obras de estudos científicos (Why are whales vanishing?, The measure of the Universe,
Great ideas of science), obras de estudos matemáticos (Quick and Easy Math, History
of Mathematics), obras de astronomia (Mars, To the Ends of the Universe, Comets and
Meteors), livros de química e bioquímica (The Genetic code, The noble gases,
Photosynthesis), estudos sobre história (The Roman Republic, The shaping of France),
estudos bíblicos (Words in Genesis, Asimov’s Guide to the Bible), entre diversos outros
temas.
Desse modo, não há como considerar que Isaac Asimov tenha sido um escritor
como qualquer outro e que seus textos de ficção científica tenham sido baseados em
breves leituras amadoras a respeito da física, da matemática, da biologia ou de outros
campos do conhecimento. Ele era um especialista na maioria das coisas sobre as quais
se propunha a escrever e possuía conhecimento, imaginação e criatividade para fazê-lo.
Asimov talvez tenha sido o escritor mais produtivo e mais flexível de todos os tempos,
chegando até mesmo a afirmar que escrevia pelo mesmo motivo que respirava: pois se
não o fizesse, morreria.


43
O Prêmio Hugo, criado em homenagem ao editor Hugo Gernsback, é oferecido anualmente – desde
1953 - na World Science Fiction Convention, aos melhores escritores de fantasia e ficção, que publicaram
no ano anterior.
44
O Prêmio Nebula é oferecido, desde 1965, pelo Science Fiction and Fantasy Writers of America
(SFWA) às melhores obras de ficção científica e fantasia publicadas nos dois anos anteriores, nos Estados
Unidos.


46


Além disso, o autor cunhou e popularizou diversos termos e conceitos
científicos: alguns estudiosos da robótica, nos dias atuais, fazem trabalhos sobre as leis
da robótica descritas por Asimov e tentam aplicá-las nas pesquisas sobre engenharia
robótica e engenharia da computação. Asimov se mostrava tão a frente de seu tempo
que foi capaz de descrever certas facilidades tecnológicas em seus livros e em suas
entrevistas que só se tornariam realidade décadas mais tarde: ele demonstrava que
teríamos computadores em nossos lares, além de ter previsto os aparelhos eletrônicos
sem fio, a comunicação por aparelhos que captariam sinais de satélites (celulares), os
aparelhos de TV em três dimensões, entre outros.
Sendo assim, podemos considerar que o estudo da obra de Asimov é uma
maneira de pensarmos a relação do homem com a tecnologia, através de uma visão
metafórica, proposta por um gênero literário que é fruto e reflexo de nossos tempos.

2.1.2 I, Robot: origem, importância e influências

O livro I, Robot (Eu, Robô) foi publicado por Isaac Asimov no ano de 1950 e
apresenta uma série de nove contos escritos pelo autor ao longo dos anos em revistas de
ficção científica. Na obra, a intenção do autor foi retratar a evolução tecnológica desses
robôs, desde um robô “babá”, incapaz de falar, até uma máquina que dominaria o
mundo e superaria os seres humanos. Além disso, o autor demonstra as diversas falhas
humanas que acontecem durante a fabricação desses seres e a relação do homem diante
do desenvolvimento dos robôs.

Figura 8: Capa do livro I, Robot


Fonte:< http://www.saltmanz.com/pictures/Cover%20Scans/Book%20Covers/I,+Robot.jpg.php> Acesso
em 3 de março de 2014


47


Um dos últimos textos teóricos que Isaac Asimov escreveu a respeito de suas
histórias de robôs foi a Introdução “The Robot Chronicles”, feita para outra coletânea
de contos sobre seres artificiais, que leva o título de Robot Visions. Nesse texto, Asimov
lista as 16 histórias de robôs escritas por ele mesmo que, em sua opinião, são as mais
significativas. Quase metade dessas histórias – sete, ao todo, fazem parte da obra I,
Robot: “Robbie”, “Runaround”, “Reason”, “Liar!”, “Evidence”, “Little Lost Robot” e
“The Evitable Conflict”.
Apesar de, a princípio, essas narrativas terem sido pensadas de forma
independente, Asimov coloca-as aqui como sequência umas das outras, inserindo uma
narradora para elas; nesse sentido, o livro possui um capítulo introdutório no qual um
repórter da Imprensa Interplanetária vai até a U. S. Robots para entrevistar uma psico-
roboticista, a lendária Susan Calvin. Assim, Susan Calvin narra ao repórter suas
experiências e o testemunho do passo-a-passo para a ocorrida revolução das máquinas.
A obra apresenta, também, uma das maiores criações de Asimov, a chamada
Três Leis da Robótica. Essas leis foram elaboradas como uma espécie de “válvula de
segurança” para garantir a obediência dos robôs aos homens e assegurar a primazia
humana. No prefácio da edição brasileira da obra, o teórico Jorge Luiz Calife explica
que com a concepção das três Leis da Robótica “a ficção científica pôde se libertar de
clichês e mitos que tinham prejudicado a criatividade dos autores durante mais de um
século” (2004, p.10). Assim, o antigo preceito de que os robôs sempre se rebelariam
contra o seu criador, pois não havia nada que os controlasse, cai por terra. Muitos outros
autores e cineastas adotaram essas ideias, surgindo, assim, robôs amigos e
companheiros, como o robô de Lost in Space (1965-1968), que guarda o menino Will
Robinson, e os famosos C3-PO e R2-D2, de Star Wars (1977-2005).
Entretanto, a influência de Asimov na criação dos robôs da série e dos filmes
mencionados acima não está ligada simplesmente ao fato de eles serem mais amigáveis;
vemos nesses personagens muitas outras características que já haviam sido descritas
pelo escritor anos antes de aparecerem nas telas do cinema e da televisão. Voltaremos a
tratar da influência que Asimov exerceu em séries e filmes de Ficção Científica no
capítulo 3 deste trabalho.
Além de suas marcas deixadas na literatura e no cinema, Asimov influenciou,
também, no advento da engenharia robótica: Joseph F. Engelberger, físico e engenheiro
que criou o primeiro robô industrial, o Unimate, em 1958, admitiu, em entrevista, que
seu interesse por robôs nasceu com a leitura da obra I, Robot. O termo robótica, aliás,


48


foi cunhado pelo próprio Asimov, em 1942 e, segundo ele, significa “a science or art
involving both artificial intelligence (to reason) and mechanical engineering (to perform
physical acts suggested by reason).”45 (CHANDOR, 1985, apud CLARKE, 1993, p.
55). Asimov reconhecia que a literatura de ficção científica, com seus experimentos
inovadores, podia servir de inspiração para os pesquisadores da vida real:

It is well known that the early rocket-experimenters were strongly


influenced by the scientific stories of H. G. Wells. In the same way,
early robot-experimenters were strongly influenced by my robot
stories, nine of which were collected in 1950 to make up a book called
I, Robot.46 (ASIMOV, 1990a, p. 9)

Asimov acreditava que leis propostas por ele iriam, necessariamente, ser
incorporadas aos robôs, conforme o desenvolvimento da tecnologia robótica
progredisse: “[...] robots may confidently be expected to grow more versatile and
capable and the Three Laws, or their equivalent, will surely be built in to their
programming eventually.”47 (1990e, p. 10). Até os dias de hoje as leis da robótica ainda
não foram aplicadas, literalmente; porém, é possível encontrarmos estudos recentes que
sugerem a real aplicação das leis da robótica à tecnologia: para citar apenas dois
exemplos, o australiano Roger Clarke, da Australian National University, escreveu, em
1993 três artigos que tratam da utilização das leis na Tecnologia de Informação,
Asimov`s Laws of Robotics: implications for Information Technology e o Engenheiro
em Ciências da Computação, Dror G. Feitelson publicou, em 2007, na revista da IEEE
Computer Society 48 um artigo intitulado Asimov’s Laws of Robotic applied to software.
Feitelson reformula as leis da robótica para torná-las apropriadas a softwares, como
editores de textos. No artigo, podemos observar de que modo o autor considera as leis
de Asimov, pensando nas necessidades das tecnologias atuais:


45
“Uma ciência ou arte que envolve tanto a Inteligência artificial (razão) e a Engenharia Mecânica (para
possibilitar ações sugeridas pela razão)”(tradução nossa).
46
Sabe-se bem que os primeiros experimentos com foguetes foram fortemente influenciados pelas
histórias científicas de H. G. Wells. Do mesmo modo, os primeiros experimentos com robôs foram
fortemente influenciados por minhas histórias de robôs, nove, das quais, foram reunidas em 1950 para
compor um livro chamado Eu, robô. (tradução nossa)
47
[...] pode-se, sem dúvidas, esperar que os robôs se tornem mais versáteis e capazes e que as Três Leis,
ou algo equivalente, seja, por fim, certamente inserido em sua programação. (tradução nossa)
48
A IEEE Computer Society é a organização líder mundialmente em membros ligados à área da
computação, como professores, pesquisadores, engenheiros de software, profissionais de TI e estudantes.
(Fonte: < http://www.computer.org/portal/web/about> acesso em 12 de set. de 2013, tradução nossa)


49


The most important aspect of human computer use isn’t the execution
of programs, but what those programs do. For example, when I use a
text editor to write this column, the specific instance of a process
running the text editor is much less important than the text I type in.
On the basis of such considerations, we can reformulate the First Law
as:
1. Software may not harm a human’s work products or, through
inaction, allow the products of human work to come to harm.

[...] A wider interpretation of the First Law is that not only user data
but also the user experience should be protected.

[…] The application of the Second Law to software is quite


straightforward:

2. Software must obey orders given it by its users.

In other words, it should function according to its specs. But given


that formal specs are of no interest to users, a broader interpretation of
the Second Law is that software should be easy and intuitive to use
[…]
Moreover, software systems should have reasonable defaults and
behave as would be expected even if these expectations are not made
explicit. For example, when you type text, you expect it to appear as
you typed it […]
The software-oriented version of the Third Law is also quite
straightforward:

3. Software must protect its own existence.

In other words, the software should be stable and shouldn’t crash. […]
At a deeper level, protecting itself means that software should also be
robust against intended attacks. […] It’s time for software developers
to be more accountable for their products and to remember that their
software is there to serve its users— just like Asimov’s robots.49


49
O aspecto mais importante do uso humano do computador não é a execução de programas, mas sim o
que esses programas fazem. Por exemplo, quando utilizo um editor de textos para escrever essa coluna o
processo de execução específico daquele editor é muito menos importante do que o texto que estou
digitando nele. Com base nessas considerações, podemos reformular a Primeira Lei da seguinte forma:
1. Um software não pode prejudicar o produto de um trabalho humano ou, por inação, permitir que o
produto do trabalho humano seja prejudicado.
[…]Uma interpretação mais ampla da Primeira Lei é de que não apenas os dados do usuário, mas também
sua experiência deve ser protegida.
[…]A aplicação da Segunda Lei ao software é bastante direta:

2. Um software deve obedecer às ordens dadas pelos seus usuários.

Em outras palavras, ele deve funcionar de acordo com suas especificidades. Mas, caso essas
especificidades formais não sejam de interesse dos usuários, uma interpretação mais ampla da Segunda
Lei é de que o software deve ser fácil e intuitivo para ser usado […]
Além disso, sistemas de software devem ter falhas moderadas e funcionar de acordo com o esperado,
mesmo que essa expectativa não seja explícita. Por exemplo, quando se digita um texto, espera-se que ele
apareça na tela […]
Em outras palavras, o software deve ser estável e não deve entrar em pane. […] De forma mais ampla,
“proteger-se” significa que o software deve ser resistente contra ataques maliciosos. […] Já está na hora


50


(2007, p. 111-112, grifo do autor)

Como se vê, o fato de Isaac Asimov ter sido um homem dedicado, também, aos
estudos científicos, permitiu que ele pensasse conceitos - traduzidos em leis, em sua
obra literária - que se tornariam plausíveis e aplicáveis no mundo real. As três leis da
robótica mostravam a crença do autor nos benefícios que a tecnologia haveria de trazer
ao homem. No ensaio The Laws of Robotics (1990e) a polêmica hipótese levantada por
Asimov é a de que, se um dia o computador superar a inteligência humana, os
dispositivos de manutenção de segurança desses seres artificiais poderão ser abolidos e
tais criaturas ficarão responsáveis por zelar pelo nosso bem estar e segurança. Para ele,
ao analisarmos a história da humanidade, encontramos evidências de nossa natureza
destrutiva e, por isso, os robôs poderiam funcionar como seres preceptores: instruindo-
nos a progredir e a aprendermos a cuidar de nós mesmos. Essa teoria se reflete de forma
expressiva em seus contos, conforme observaremos nas análises que serão realizadas
nesse capítulo.

2.1.3 A tecnologia, o medo e as leis da robótica

As três leis imaginadas por Asimov foram listadas de forma explícita em março
de 1942, no conto “Runaround”, publicado na revista Astounding Science Fiction. No
conto, as leis se tornam conhecidas por meio de um diálogo entre os personagens
Gregory Powell e Michael Donavan: “Now look, let’s start with the Three Fundamental
Rules of Robotics – the three rules that are built most deeply into a robot’s positronic
brain”50. (ASIMOV, 1990c, p. 32), em seguida, Powell relembra seu colega das leis,
proferindo-as da seguinte forma:

First Law: A robot may not injure a human being or, through inaction, allow a human
being to come to harm.
Second Law: A robot must obey the orders given to it by human beings, except where
such orders would conflict with the First Law.


de os desenvolvedores de softwares serem mais responsáveis por seus produtos e de lembrarem que os
softwares existem para servir seus usuários – assim como os robôs de Asimov. (tradução nossa)
50
- Agora olhe, vamos começar com as três leis fundamentais da robótica; as três leis que estão gravadas
mais profundamente no cérebro positrônico de um robô. (ASIMOV, 2004a, p. 68-69)


51


Third Law: A robot must protect its own existence as long as such protection does not
conflict with the First or Second Law.51

Para o autor, a importância das leis em sua narrativa também se divide em três
partes fundamentais na composição de sua obra, além de terem sido um dos grandes
motivos de ele ter se tornado um escritor famoso. Os três aspectos importantes das leis
são explicados por Asimov da seguinte forma:

a) They guided me in forming my plots and made it possible to write


many short stories, as well as several novels, based on robots. In
these, I constantly studied the consequences of the Three Laws.
b) It was by all odds my most famous literary invention, quoted in
season and out by others. If all I have written is someday forgotten,
the Three Laws of Robotics will surely be the last to go.
c) The passage in ‘Runaround’[...] happens to be the very first time
the word ‘robotics’ was used in print in the English language. I am
therefore credit [...] with the invention of that word (as well as of
‘robotic’, ‘positronic’, and ‘psychohistory’) by the Oxford English
Dictionary, which takes the trouble – and the space – to quote the
Three Laws [...]52 (1990a, p. 11-12)

Quando Asimov escreveu suas obras, havia um medo generalizado de que os


computadores poderiam desenvolver-se a ponto de superarem a inteligência humana e,
assim, serem capazes de nos dominar e de nos exterminar. Ademais, a própria aparência
quase humana dos robôs poderia dar a eles a ideia de serem semelhantes aos homens e,
por isso, causarem uma rebelião.


51
Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir que um ser
humano seja ferido.
Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos exceto se tais ordens entrarem
em conflito com a Primeira Lei.
Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito
com a Primeira ou Segunda Lei. (ASIMOV, 2004a, p. 9)
52
a) Elas me guiaram para formar meus enredos e possibilitaram a escrita de muitos contos e de muitos
romances baseados em robôs. Nestes, estudei constantemente as consequências das Três Leis.
b) Essa foi, inquestionavelmente, minha invenção literária mais famosa, citada oportuna e
inoportunamente por outros. Se tudo o que escrevi for algum dia esquecido, as Três Leis da Robótica irão,
certamente, ser as últimas a desaparecer.
c) A passagem em “Runaround” [...] é a primeira vez que a palavra “robótica” foi usada de forma
impressa na língua inglesa. A mim é dado, portanto, o crédito [...] pela invenção dessa palavra (assim
como de “robótico”, “positrônico” e “psicohistória”), pelo dicionário de inglês Oxford, que se dá o
trabalho – e espaço – de citar as Três Leis [...]


52


From the start [...] the machine has faced mankind with a double
aspect. As long as it is completely under human control, […] it
is useful and good and makes a better life for people. However,
it is the experience of mankind […] that technology is a
cumulative thing, that machines are invariably improved, and
that the improvement is always in the direction of
etherealization, always in the direction of less human control
and more auto-control […]53 (ASIMOV, 1990b, p. 435)

Para Asimov, porém, o medo é um sentimento inerente a qualquer processo de


desenvolvimento tecnológico e por essa razão a tecnologia possui sempre um caráter
dúbio. O temor presente na imaginação humana seria de que o computador - uma
máquina - se tornasse uma ameaça à integridade humana. Nas décadas de 1920 e 1930,
esse temor perante os seres artificiais foi retratado de forma incessante nas obras de
ficção científica publicadas. Isaac Asimov afirma ter se aborrecido com as histórias que
traziam mensagens alarmantes quanto ao abuso e aos perigos da indústria mecânica que
fizeram parte de suas leituras de juventude. Por conseguinte, em 1939, quando o autor
iniciou a série de histórias dedicadas aos robôs, decidiu que, como qualquer outra
ferramenta inventada pelo homem, estes seres também necessitariam de algum tipo de
dispositivo de segurança. Em The Laws of Robotics (1990d) Asimov diz que não se
considera o descobridor ou inventor das Leis da Robótica, pois, de acordo com suas
palavras, a humanidade se utiliza de leis similares desde o início dos tempos. Para
exemplificar, ele explica que as leis da robótica poderiam ser chamadas de “leis das
ferramentas”:

[...] Just think of them as the “Three Laws of Tools,” and this is the
way they would read:
1. A tool must be safe to use.
(Obviously! Knives have handles and swords have hilts. […]
2. A tool must perform its function, provided it does so safely.
3. A tool must remain intact during use unless its destruction is
required for safety or unless its destruction is part of its function.
Compare the Three Laws of Tools, then, with the Three Laws of
Robotics, law by law, and you will see that they correspond exactly.


53
Desde o início a máquina tem sido encarada pela humanidade de forma dúbia. Desde que esteja
completamente sob o controle humano, ela é útil e benéfica e torna a vida das pessoas melhor. No
entanto, a humanidade tem como experiência o fato de que a tecnologia é algo cumulativo, que as
máquinas são aperfeiçoadas invariavelmente e que as melhorias sempre levam a uma eterealização,
tornando as máquinas menos controláveis pelos homens e mais auto-suficientes. (tradução nossa)


53


And why not, since the robot or, if you will, the computer, is a human
tool?54 (ASIMOV, 1990e, p. 425)

Porém, os produtos, as ferramentas, os computadores elaborados e produzidos


pelos homens estão sujeitos a falhas nesse sistema de segurança: automóveis podem ter
falhas mecânicas e causarem acidentes, sistemas operacionais podem ter falhas e serem
invadidos. As falhas operacionais, porém, são causadas por seus criadores e, logo, não
podemos colocar a culpa em seres providos de inteligência artificial.
As Três Leis da Robótica, portanto, são ponto-chaves ao longo de toda a obra I,
Robot e, como veremos nas análises, os conflitos são construídos ao redor delas e por
meio delas. Ao longo do estudo proposto, faremos um breve resumo comentado a
respeito de cada conto analisado, indicando o contexto de produção das narrativas.

2.2 Os contos de I, Robot

Publicado no ano de 1950, o livro I, Robot é composto de dez contos, sendo o


primeiro uma introdução e os outros nove contos recolhidos de publicações nas revistas
Super Science Stories e Astounding Science Fiction, entre 1940 e 1950. Os contos que
fazem parte da coletânea são: “Robbie” (1940), “Runaround” (1942), “Reason” (1941),
“Catch that Rabbit” (1944), “Liar!” (1941), “Little Lost Robot” (1947), “Escape”
(1945), “Evidence” (1946) e “The Evitable Conflict” (1950). Como se vê, os contos não
foram organizados no livro na ordem cronológica em que foram lançados pela primeira
vez nas revistas; o que Asimov fez foi escolher uma disposição que mostrasse robôs dos
menos aos mais evoluídos.
A dedicatória encontrada nas primeiras páginas da obra faz uma homenagem a
John W. Campbell, editor que, segundo Asimov, “apadrinhou” seus robôs – além de
publicar os contos de Asimov, Campbell o teria auxiliado na criação de alguns enredos.


54
[...] Apenas pense nelas como “As Três Leis das Ferramentas” e veja como elas ficariam:
1. Uma ferramenta deve ser segura em sua utilização. (Obviamente! Facas possuem cabos e espadas têm
punhos. [...]
2. Uma ferramenta deve desempenhar sua função, considerando-se que ela o faça de forma segura.
3. Uma ferramenta deve permanecer intacta durante seu uso, ao menos que sua destruição faça parte de
sua função.
Compare as Três Leis das Ferramentas, então, com as Três Leis da Robótica, lei por lei, e você verá que
elas correspondem exatamente. E por que não, já que o robô ou, se você preferir, o computador, é uma
ferramenta humana? (tradução nossa)


54


Uma das personagens mais recorrentes da série robôs, de Asimov, é Susan
Calvin – há, no total, onze contos em que ela é a personagem central - uma
robopsicóloga da U. S. Robots and Mechanical Men, Inc. O primeiro conto em que
Susan Calvin apareceu foi “Liar!” e, em I, Robot, Asimov apresenta uma pequena
biografia dessa personagem no capítulo introdutório: nascida em 1982, formou-se na
Universidade de Colúmbia, em 2003, na área da cibernética e adquiriu o título de
doutora, em 2008, tornando-se a primeira profissional a exercer a carreira de
“Psicoroboticista”. Além disso, Calvin é descrita como uma mulher “inexpressiva” e
retraída, praticamente desprovida de emoções, sendo considerada mais fria do que os
próprios robôs: “Well, I’ve been called a robot myself. Surely, they’ve told you I’m not
human.” 55 (ASIMOV, 2004b, p. 3)
Nessa introdução, encontramos Susan Calvin com 75 anos, aposentada, sendo
entrevistada por um repórter do jornal The Interplanetary Press. Segundo o jovem
jornalista, seu interesse é divulgar para o mundo tudo o que Calvin tem a dizer sobre os
robôs, durante seus cinquenta anos de trabalho com a robótica e após ter presenciado a
evolução desses seres.
Os contos tornam-se, assim, relatos de experiências vivenciadas ou ouvidas por
Susan Calvin, ao longo de seus anos de trabalho como psicoroboticista. As histórias
narradas, portanto, serão consideradas, na obra, de acordo com seu ponto de vista.
Outros dois personagens importantes são Gregory Powell e Mike Donavan, dois
engenheiros responsáveis por testar novos robôs em campo e que se deparam
constantemente com problemas causados pelas Três Leis – evidenciando como, na
prática, essas leis se tornam contraditórias. Em I, Robot, Powell e Donavan fazem parte
de quatro contos: “Runaround”, “Reason”, “Catch that Rabbit” e “Escape”.
Para fins de análise, selecionamos três dos nove contos que compõem o livro I,
Robot: “Robbie”, “Reason” e “Evidence”. “Robbie” foi o primeiro conto com o tema
“robôs”, escrito por Asimov e mostra as ideias do autor a respeito da influência desses
seres no relacionamento familiar e na vida cotidiana; o terceiro conto, “Reason”, mostra
o início do ganho de consciência pelos robôs, que passam a questionar sua própria
existência e a reconhecer sua superioridade perante os homens; na narrativa final,
“Evidence”, o personagem principal é um robô humanoide, que consegue enganar a
todos a respeito de sua verdadeira natureza e concorrer a um cargo político.

55
Bem, eu mesma já fui chamada de robô. Certamente eles lhe disseram que não sou humana. (Tradução
nossa)


55


2.2.1 “Robbie”

‘I heard about it later, and when they called us blasphemers and


demon-creators, I always thought of him. Robbie was a non-vocal
robot. He couldn’t speak. He was made and sold in 1996. Those were
the days before extreme specialization, so he was sold as a
nursemaid.’
‘As a what?’
‘As a nursemaid.’56 (ASIMOV, 2004b, p. 4)

O fragmento acima foi retirado das linhas finais do capítulo introdutório de I,


Robot e mostra um diálogo entre Susan Calvin e o repórter do jornal The Interplanetery
Press. Através dele, ficamos sabendo a respeito do que os humanos pensam dos
Engenheiros Robóticos da U. S. Robots e sobre os seres artificiais criados por eles,
chamando-os de “blasfemadores” e de “criadores de demônios”. Além disso, a
passagem diz o ano em que se passa a primeira história de robôs pensada por Asimov:
1996, data em que, segundo Calvin, tais seres mecânicos ainda não eram “extremamente
especializados”. O que se entende, porém, é que o robô Robbie foi o primeiro a
demonstrar algo diferente de todas outras criaturas construídas anteriormente a ele e,
por isso, este é o conto de abertura do livro.
O conto “Robbie” foi publicado pela primeira vez em setembro de 1940, na
revista Super Science Stories, com o título “Strange Playfellow” (“Estranho
companheiro de brincadeira”). A revista Super Science Stories iniciou suas publicações
no ano de 1940 e ficou conhecida por pagar um valor muito baixo aos autores – menos
de 1 centavo de dólar por palavra, e por publicar textos que já haviam sido rejeitados
por outras revistas maiores. Asimov (1990) afirma que escreveu Robbie entre 10 e 22 de
maio de 1939 e o texto foi rejeitado, na época, tanto por John W. Campbell, de
Astounding Science-Fiction, como pela revista Amazing Stories.
Asimov diz, ainda, que Robbie é um conto bastante significativo, pois é uma das
primeiras demonstrações do funcionamento da Primeira Lei da Robótica:

Aside from being my first robot story, ‘Robbie’ is significant because


in it, George Weston says to his wife in defense of a robot that is

56
Ouvi falar dele depois, e , quando nos chamavam de blasfemadores e criadores de demônios, eu sempre
pensava nele. Robbie era um robô não-vocal. Ele não podia falar. Foi feito e vendido em 1996. Nos dias
antes da especialização extrema, assim foi vendido para servir de babá..
- De quê?
-De babá... (ASIMOV, 2004a, p. 21)


56


fulfilling the role of nursemaid, ‘He just can’t help being faithful and
loving and kind. He’s a machine – made so.’ This is the first
indication, in my first story, of what eventually became the ‘First Law
of Robotics,’ and of the basic fact that robots were made with built-in
safety rules. (1990a, p. 10)57

O conto narra a história da garota, Gloria, que passa seus dias brincando e
interagindo com um robô-babá chamado Robbie. Robbie não é um robô muito evoluído,
não possui habilidade de falar, mas se comunica por meio de gestos e ações com a
menina. Sua mãe, porém, fica muito preocupada com o apego que Gloria demonstra
pela máquina e convence o marido de que eles devem devolver o robô para a U.S.
Robots. Desolada com a perda do amigo, a menina torna-se uma criança deprimida e
perde o entusiasmo para realizar qualquer atividade. Diante disso, os pais decidem levar
a garota para visitar a empresa que fabrica estes seres artificiais, buscando mostrar a ela
que os robôs não passam de seres mecânicos. Em meio ao passeio pela fábrica, a
menina encontra seu amigo artificial trabalhando na oficina e corre para abraçá-lo; o
que ela não vê, porém, é que um trator se aproxima, e está prestes a atropelá-la. O único
capaz de salvar a criança é o próprio robô, que, com suas ágeis pernas mecânicas agarra
Gloria e tira-a da frente do trator. A mãe, então, se convence a levar Robbie de volta
para casa.

2.2.1.1 Um estranho companheiro de brincadeiras

O conto se inicia com a imagem de uma garotinha contando até cem, antes de
descobrir os olhos e partir à procura de seu amigo, com quem compartilha uma
brincadeira de esconde-esconde. O ambiente onde a menina está não contém
características que marquem uma sociedade futurística, como é típico das histórias de
ficção científica, como prédios altos, ruas tomadas de carros e poluição; pelo contrário,
ela está apoiada em uma árvore, sob um silêncio profundo, ouvindo apenas o som de
insetos e pássaros. Constrói-se, neste primeiro momento, um ambiente familiar ao
leitor, fazendo com que ele se insira no texto ao perceber, através do olhar da
personagem, o ambiente onde a história se passará.

57
Além de ser minha primeira história de robô, “Robbie” é significativo, porque nela George Weston fala
à sua esposa, em defesa de um robô que está cumprindo o papel de babá: “Ele é obrigado a ser fiel,
amável e bondoso. Ele é uma máquina – feito dessa forma.” Este é o primeiro indicador, em minha
primeira história, do que, mais tarde, se tornaria a “Primeira Lei da Robótica”, e do fato primordial que os
robôs foram construídos com regras internas de segurança. (tradução nossa).


57


A personagem, a menina Glória, passa, então, a se referir a outro personagem
que o leitor ainda desconhece e, a princípio, o texto não dá pistas de que este não seja
um personagem comum. Além disso, Glória fala como se estivesse se referindo a outra
criança com a qual está brincando: “ ‘I bet he went inside the house, and I’ve told him a
million times that that’s not fair’ ”. (ASIMOV, 2004b, p.5)
As expectativas do leitor são quebradas, quando ele se depara com a descrição
do robô Robbie correndo para a árvore, evidenciando os ruídos de seus pés metálicos. A
composição física de Robbie será, conforme observaremos ao longo do capítulo, a única
qualidade que o distinguirá dos seres humanos; o lado emocional, o comportamento e as
atitudes são humanos e, apesar de não ser programado para isso, ele parece demonstrar
afeição por Glória.
A narrativa segue descrevendo a relação entre a menina e o robô, que se dá de
modo curioso: ora Robbie se parece com um adulto que se esforça para se aproximar do
universo infantil durante as brincadeiras, fingindo ser incapaz de correr mais rápido do
que ela, ora ele se parece também criança, ao demonstrar medo de apanhar de sua
amiga:

‘Wait, Robbie! That wasn’t fair, Robbie! You promised you wouldn’t
run until I found you.’ Her little feet could make no headway at all
against Robbie’s giant strides. Then, within ten feet of the goal,
Robbie’s pace slowed suddenly to the merest of crawls, and Gloria,
with one final burst of wild speed, dashed pantingly past him to touch
the welcome bark of home-tree first. [...]She slapped her hand against
Robbie’s torso, “Bad boy! I’ll spank you!”
And Robbie cowered, holding his hands over his face so that she
had to add, “No, I won’t, Robbie. I won’t spank you. But anyway,
it’s my turn to hide now because you’ve got longer legs and you
promised not to run till I found you.”58 (ASIMOV, 2004b, p. 5, grifo
nosso)

Podemos deduzir que essas atitudes são evidências de que o robô está
aprendendo por imitação daqueles com quem convive, ou seja, com Glória e os pais da


58
- Espere, Robbie, isso não vale! Você prometeu que não ia correr até que eu o achasse. – Seus pezinhos
não podiam competir com os passos enormes de Robbie. Então, a três metros do seu objetivo, o passo de
Robbie diminuiu subitamente para uma marcha bem lenta e Glória, numa corrida final, o ultrapassou
ofegante para tocar a casca da árvore. [...]
Bateu com a mão no corpo de Robbie.
- Malvado, vai apanhar!
E Robbie se encolheu, protegendo o rosto com as mãos até que ela acrescentasse.
- Não Robbie, não vou não. Mas, de qualquer maneira, é a minha vez de me esconder, porque você tem
pernas mais compridas e prometeu não correr até que eu o encontrasse. (ASIMOV, 2004a, p. 24-25)


58


menina. Esse aprendizado por imitação fica claro, também, quando Robbie finge que
não consegue correr rapidamente:

Robbie didn’t answer, of course not in words. He pantomimed


running instead, inching away until Gloria found herself running after
him as he dodged her narrowly, forcing her to veer in helpless circles,
little arms outstretched and fanning at the air.

O verbo “pantomime” não é comumente utilizado quando queremos nos referir a


algo que se finge fazer. Este termo era utilizado no século XVI, para descrever a ação
de um ator que utiliza mímica e atua, principalmente, em peças infantis que envolvem
música, piadas e são baseadas em contos de fadas ou contos de ninar.
Etimologicamente, porém, encontramos a origem do termo no latim e no grego
(pantomimus ou pantomimos), sendo que o prefixo panto significa “tudo” e mime
significa imitação. Ou seja, aquele que pratica a pantomima é quem imita tudo.

Na psicologia, muito se estuda sobre o comportamento imitativo em crianças. O


psicólogo e filósofo norte-americano J. M. Baldwin (1861-1934) atribuía a imitação, no
processo de desenvolvimento infantil, à aquisição da inteligência (1990). E, conforme
veremos ao longo da narrativa, é exatamente isso que ocorrerá com Robbie.

Por outro lado, o narrador também não nos deixa esquecer de que, apesar das
atitudes similares às de um homem comum, Robbie é apenas um robô, incapaz de se
comunicar através de palavras e provido de partes metálicas que apenas se parecem com
o corpo humano:

Robbie nodded his head — a small parallelepiped with rounded edges


and corners attached to a similar but much larger parallelepiped that
served as torso by means of a short, flexible stalk — and obediently
faced the tree. A thin, metal film descended over his glowing eyes and
from within his body came a steady, resonant ticking.59 (ASIMOV,
2004b, p. 6, grifo nosso)


59
Robbie acenou com a cabeça – um pequeno paralelepípedo, com bordas arredondadas, ligado a outro
paralelepípedo semelhante, mas bem maior, que servia de corpo, por um tubo curto e flexível.
Obedientemente, ele ficou de frente para a árvore. Uma fina película metálica desceu sobre seus olhos
brilhantes e de dentro de seu corpo ouviu-se um tiquetaquear ressonante. (ASIMOV, 2004a, p. 25)


59


Se nos atentarmos para algumas palavras utilizadas na descrição acima, contudo,
notamos que a fina película de metal cobre seus “glowing eyes”. Segundo crenças
populares antigas, os olhos são capazes de traduzir e expressar o espírito e a mente de
um indivíduo. O fato de os olhos de Robbie brilharem mostra que o robô possui vida
interior. E isso fica ainda mais claro quando o texto diz que de dentro de seu corpo
havia um tique-taque sonoro, som claramente associado à batida do coração.

Nas próximas linhas começamos a perceber que o lado emocional de Robbie é


bastante sensível, quando ele demonstra sua atitude diante de uma acusação injusta feita
por Glória:

‘You peeked!’ she exclaimed, with gross unfairness. ‘Besides I’m


tired of playing hide-and-seek. I want a ride.’
But Robbie was hurt at the unjust accusation, so he seated himself
carefully and shook his head ponderously from side to side.
Gloria changed her tone to one of gentle coaxing immediately, “Come
on, Robbie. I didn’t mean it about the peeking. Give me a ride.”
Robbie was not to be won over so easily, though. He gazed stubbornly
at the sky, and shook his head even more emphatically.60 (2004b, p. 6)

No parágrafo acima, atribuem-se duas características a Robbie, “magoado”


(hurt) e “teimosamente” (stubbornly) que, além de não serem comumente associadas a
uma máquina – fazem parte do universo infantil: dizemos que uma criança é teimosa,
por exemplo, quando deixa de obedecer aos mais velhos. Além disso, Robbie demonstra
orgulho, ao não querer continuar a brincadeira ao ser acusado de trapaça. A
aproximação da mentalidade de Robbie com a de uma criança fica mais evidente
quando, para conseguir aquilo que quer, Gloria utiliza-se de chantagem:

Gloria found it necessary to play her trump card.


‘If you don’t,’ she exclaimed warmly, ‘I won’t tell you any more
stories, that’s all. Not one–‘
Robbie gave in immediately and unconditionally before this
ultimatum, nodding his head vigorously until the metal of his neck


60
- Você olhou! – ela disse, com muita injustiça. – Além disso eu estou cansada de brincar de esconde-
esconde. Quero um passeio. Mas Robbie estava magoado com a acusação injusta e por isso sentou-se com
cuidado, sacudindo sua cabeça lentamente de um lado para outro.
Glória mudou seu tom de voz imediatamente para uma solicitação gentil.
- Vamos Robbie, eu não estava falando sério sobre espiar. Me carregue.
Robbie não se dava por vencido tão facilmente. Ele olhou para o céu, teimosamente e sacudiu a cabeça de
um modo ainda mais enfático. (ASIMOV, 2004a, p. 25-26)


60


hummed. Carefully, he raised the little girl and placed her on his
broad, flat shoulders.61 (2004b, p. 6)

Para convencer seu amigo, Gloria diz que deixará de contar histórias a ele, caso
ele não faça o que ela quer. Com isso, percebe-se que Robbie sente prazer em ouvir as
histórias de Glória e isso faz com que ele ceda aos apelos emocionais da menina.
Todavia, o robô também sabe fazer o mesmo jogo e, assim que satisfaz o desejo de
Gloria, carregando-a nas costas e fingindo ser um avião de guerra, exige que ela lhe
conte uma história em retribuição. Há, assim, uma relação de igualdade entre Glória e
Robbie; a menina não considera o robô como um ser artificial, mas um amigo, com
sentimentos, pensamentos e vontades, como ela mesma. Ambos agem, constantemente,
em uma relação de troca de favores, através do apelo emocional.
Em um segundo momento da narrativa, a brincadeira entre Robbie e Gloria é
interrompida pelos gritos da mãe da menina, chamando-a para dentro de casa.
Começamos a observar, assim, que a mãe, a senhora Weston, possui um olhar diferente
da criança para com o robô, não percebe seus sentimentos e o trata como escravo:

“Mamma’s calling me,” said Gloria, not quite happily. “You’d better
carry me back to the house, Robbie.”
[...]“I’ve shouted myself hoarse, Gloria,” she said, severely. “Where
were you?”
“I was with Robbie,” quavered Gloria. “I was telling him Cinderella,
and I forgot it was dinner- time.”
“Well, it’s a pity Robbie forgot, too.” Then, as if that reminded her of
the robot’s presence, she whirled upon him. “You may go, Robbie.
She doesn’t need you now.” Then, brutally, “And don’t come back till
I call you.” [...]
The robot left with a disconsolate step and Gloria choked back a sob.
62

(ASIMOV, 2004b, p. 7-8)


61
Glória percebeu que era necessário jogar seu trunfo.
- Se não me carregar eu não te conto mais histórias, ponto final. Nenhuma...
Robbie cedeu imediatamente e sem condições ante tamanho ultimato. Com cuidado ele ergueu a menina e
a colocou em seus ombros. (ASIMOV, 2004a, p. 26)
62
- Mamãe está me chamando – disse Glória, não muito contente. – É melhor me carregar de volta para
casa, Robbie.
[...] – Eu chamei até ficar rouca, Glória – ela disse. – Onde você estava?
- Eu estava com Robbie – balbuciou Glória. – Eu estava contando a história de Cinderela para ele e
esqueci a hora do jantar.
- Bem, é lamentável que Robbie também tenha esquecido. – Então, como a frase a lembrasse da presença
do robô, ela se virou para ele. – Pode ir agora, Robbie. Ela não precisa mais de você. E acrescentou
cruelmente. – E não volte até eu chamar.
[...] O robô saiu com um passo desolado e Glória sufocou um soluço. (ASIMOV, 2004a, p. 28-29)


61


A mãe passa a demonstrar uma preocupação excessiva pelo fato de sua filha
passar grande parte do dia apenas com o robô e pede para que o marido se desfaça da
máquina. O texto nos apresenta o Sr. Weston como um pai de família alheio aos
acontecimentos de sua casa; enquanto a mãe observa a mudança de comportamento da
filha, que tem estado cada vez mais isolada de seus outros amigos, desde a chegada do
robô e percebe a inquietação dos vizinhos quanto à presença de um ser artificial em sua
casa, o pai não nota quaisquer diferenças.
A diferença de opinião a respeito de Robbie é explicada de forma sutil no texto.
A Sra. Weston aceitou que o marido adquirisse o robô, pois achou que isso era algo
chique e a tornaria mais popular entre as amigas e os vizinhos. Seu pensamento foi de
que o marido estaria comprando mais um item de luxo para seu lar, como se fosse um
novo eletrodoméstico.
When did you decide this? He’s been with Gloria two years now and I
haven’t seen you worry till now.”
“It was different at first. It was a novelty; it took a load off me, and —
and it was a fashionable thing to do. But now I don’t know. The
neighbors...63 [...] (ASIMOV, 2004b, p. 9)

O Sr. Weston, por sua vez, se mostra confiante na indústria tecnológica e no


progresso científico, acompanhando as notícias do jornal sobre descobertas da
astronomia e da exploração espacial “he fixed his eye firmly upon the latest reports of
the Lefebre-Yoshida expedition to Mars (this one was to take off from Lunar Base and
might actually succeed)” (ASIMOV, 1990c, p. 8) e afirmando, firmemente, que Robbie
é mais confiável do que os próprios humanos, uma vez que, segundo ele, uma máquina
é programada para cumprir funções pré-determinadas:

Now, look. A robot is infinitely more to be trusted than a human


nursemaid. Robbie was constructed for only one purpose really
— to be the companion of a little child. His entire ‘mentality’
has been created for the purpose. He just can’t help being
faithful and loving and kind. He’s a machine-made so. That’s
more than you can say for humans.64 (ASIMOV, 2004b, p. 9)


63
- E quando foi que você chegou a essa conclusão? Ele está com Glória há dois anos e você nunca tinha
se preocupado até agora.
- No começo era diferente. Era uma novidade, tirou um peso das minhas costas e... era o que estava na
moda. Mas agora eu não sei. Os vizinhos... (ASIMOV, 2004a, p. 31)
64
Agora escute. Um robô é muito mais confiável do que uma babá humana. Robbie foi construído para
um único propósito: ser o companheiro de uma criança pequena. Toda a sua “mentalidade” foi criada com
esse propósito. Ele não pode deixar de ser fiel, amoroso e bom. Ele é uma máquina feita para isso, Não se
pode dizer a mesma coisa de seres humanos. (ASIMOV, 2004a, p. 31)


62


Em seguida, o pai reforça seu argumento dizendo que Robbie não poderia falhar,
pois possui um mecanismo de segurança. Nesse momento, pela primeira vez, fica claro
que os robôs são comandados por determinadas leis; a princípio, essas leis não são
descritas de forma clara e também não se sabe quantas elas são:

That’s completely ridiculous. We had a long discussion at the time we


bought Robbie about the First Law of Robotics. You know that it is
impossible for a robot to harm a human being; that long before
enough can go wrong to alter that First Law, a robot would be
completely inoperable. It’s a mathematical impossibility. Besides I
have an engineer from U. S. Robots here twice a year to give the poor
gadget a complete overhaul. Why, there’s no more chance of any
thing at all going wrong with Robbie than there is of you or I suddenly
going loony 65[...] (2004b, p. 9)

Observa-se, portanto, que o Sr. Weston acredita que os robôs são tão confiáveis
quanto os seres humanos, demonstrando um pensamento bastante racional e lógico,
como se algo construído pelo homem não fosse passível de erro ou falhas. A mãe
demonstra uma preocupação ligada ao lado mais emocional, desencadeada, porém, pela
opinião alheia e pela necessidade de manter a aparência de uma família normal.
Portanto, o medo da máquina, da tecnologia e do robô não era apenas um
sentimento demonstrado pela Sra. Weston, mas por toda a sociedade; conforme o texto
narra, a cidade de Nova Iorque estava cada vez mais apreensiva quanto à presença
desses seres entre os humanos e já havia proibido que eles estivessem nas ruas após o
por do sol. Veremos, nos próximos contos do livro, que essa situação se agrava
progressivamente, até que os robôs são banidos da Terra e só podem ser utilizados em
missões espaciais.
Como se viu, anteriormente, esse temor perante a máquina era algo inerente na
literatura de Ficção Científica e os robôs, comumente, voltavam-se contra seus
criadores, contra os cientistas ou contra toda a humanidade - Asimov coloca a mesma
premissa em seu texto, para poder quebrá-la no final.


65
Isso é completamente ridículo. Tivemos uma longa conversa na ocasião em que compramos Robbie a
respeito da Primeira Lei da Robótica. Você sabe que é impossível para um robô ferir um ser humano.
Bem antes de qualquer defeito ser capaz de alterar a Primeira Lei, o robô ficaria totalmente inoperante.
Isso é uma impossibilidade matemática. Além disso, um engenheiro da U. S. Robôs vem aqui, duas vezes
por ano, para fazer uma vistoria completa na pobre engenhoca. Não, não há mais chances de alguma coisa
dar errado no Robbie do que de você ou eu ficarmos malucos subitamente [...] (ASIMOV, 2004a, p. 31-
32)


63


Após convencer o marido a devolver Robbie à fábrica, a Sra. Weston tenta, de
todas as formas, fazer com que Glória se esqueça do robô. A mãe não sabe, porém, que
a garota é a primeira a notar que Robbie não é como os outros seres artificiais:

Why do you cry, Gloria? Robbie was only a machine, just a nasty old
machine. He wasn’t alive at all.”
‘He was not no machine!” screamed Gloria, fiercely and
ungrammatically. “He was a person just like you and me and he was
my friend. I want him back. Oh, Mamma, I want him back.’66 (2004b,
p. 11)

Enquanto a mãe enxerga a máquina com preconceito e imagina que ela possa
realizar maldades, a criança é capaz de ver além do aspecto exterior e percebe
humanidade em Robbie. A Sra. Weston, por outro lado, é quem realmente fere sua filha,
ao lhe contar mentiras – diz que Robbie foi embora sozinho – e a se negar a trazer a
babá de volta, apesar das súplicas de Glória. A reação da garota não é a de quem teria
perdido uma “máquina”, como quem perde um brinquedo, mas é a de quem está de luto
pela perda de um ente querido.
Os pais da menina a levam, então, para passar um tempo em Nova Iorque,
tentando distraí-la para que ela possa se esquecer de Robbie; ao contrário disso, em uma
visita ao “Museum of Science and Industry”, Glória vai ao encontro do chamado “The
Talking Robot”, para questioná-lo a respeito do paradeiro do amigo. A lógica seguida
por ela é a de que, sendo da mesma espécie, talvez o robô falante soubesse explicar
onde Robbie estaria. Temos uma pista aqui de que a indústria robótica estaria lançando
uma nova geração de suas máquinas: diferentemente de Robbie, agora os robôs já
seriam capazes de falar, como os seres humanos. Porém, diferentemente do modelo
adquirido pela família Weston, - que tem predileções, sentimentos e discernimento de
justiça - “The Talking Robot” não consegue responder questões além daquelas que
estão programadas em seus circuitos.
Acostumada a conversar em tom de igualdade com Robbie, Glória trata o “robô
falante” como um humano, demonstrando respeito e chamando-o de “senhor”. Todavia,
apesar de ser construído com uma nova tecnologia, este último não passou pelo mesmo


66
- Por que está chorando, Glória? Robbie era só uma máquina, uma máquina velha e feia. Ele não estava
vivo realmente.
- Ele não era uma máquina! – gritou Glória com convicção. – Ele era uma pessoa como eu e você e ele
era meu amigo. Eu o quero de volta. Ah, mãe, eu o quero de volta! (ASIMOV, 2004a, p. 36)


64


processo de convivência com humanos que Robbie; dessa forma, não foi capaz de se
igualar e adquirir habilidades humanas.
É importante analisarmos o diálogo que ocorre entre Glória e “The Talking
Robot” para, assim, percebermos outras questões que diferenciam Robbie das outras
máquinas:
‘Can you help me, Mr. Robot, sir?’
The Talking Robot was designed to answer questions, and only such
questions as it could answer had ever been put to it. It was quite
confident of its ability, therefore, ‘I– can– help– you.’
‘Thank you, Mr. Robot, sir. Have you seen Robbie?” “Who –is
Robbie?’
‘He’s a robot, Mr. Robot, sir.’ She stretched to tiptoes. ‘He’s about so
high, Mr. Robot, sir, only higher, and he’s very nice. He’s got a head,
you know. I mean you haven’t, but he has, Mr. Robot, sir.’
The Talking Robot had been left behind, ‘A– robot?’
‘Yes, Mr. Robot, sir. A robot just like you, except he can’t talk, of
course, and — looks like a real person.’
‘A– robot– like– me?’ ‘Yes, Mr. Robot, sir.’
To which the Talking Robot’s only response was an erratic splutter
and an occasional incoherent sound. The radical generalization offered
it, i.e., its existence, not as a particular object, but as a member of a
general group, was too much for it. Loyally, it tried to encompass the
concept and half a dozen coils burnt out. Little warning signals were
buzzing.67 (ASIMOV, 2004b, p. 15)

A máquina com quem Glória estabelece um diálogo não possui aparência


humana e nem mesmo um nome, como Robbie. Ela apenas responde questões
costumeiras, de acordo com a sua programação. Não se trata de um robô personificado
e, além disso, ele não é capaz de se perceber como uma consciência autônoma, ou

67
Pode me ajudar, senhor robô?
O Robô falante fora projetado para responder perguntas e só as perguntas que ele ra capaz de responder
tinham sido colocadas para ele. Portanto, ele estava muito confiante em sua habilidades.
- Eu...possso...ajudá-la.
- Muito obrigada, senhor robô. O senhor viu o Robbie?
- Quem...é Robbie?
- Ele é um robô, senhor robô. – A menina se ergueu na ponta dos pés. – Ele tem mais ou menos essa
altura, senhor, apenas um pouco mais alto e é muito bom. Ele tem uma cabeça, sabe? Quer dizer, o senhor
não tem, mas ele tem, senhor robô.
O Robô Falante não estava conseguindo acompanhar.
- Um robô?
- Sim, senhor robô. Um robô como o senhor, exceto que ele não pode falar, é claro e...parece uma pessoa
real.
- Um...robô...como eu?
- Sim, senhor robô.
Mas a única resposta do Robô Falante foi um ruído incoerente e um barulho ocasional. A generalização
radical que fora-lhe apresentada, ou seja, de que sua existência não era uma coisa particular, mas sim
parte de um grupo geral, era demais para ele. Lealmente, ele tentou aprender o conceito e meia dúzia de
bobinas se queimaram. Pequenos sinais de aviso estavam soando. (ASIMOV, 2004a, p. 44)


65


mesmo, como parte de um grupo em que outros seres, feitos de metal, ferro e circuitos
são semelhantes a ele. Como sabemos, a identidade humana é construída a partir do
outro e do diálogo com o próximo; foi essa a forma que se deu a construção da
identidade de Robbie, por meio da convivência constante com Glória. The Talking
Robot, porém, não passou por esse processo e, ao ser informado de que existiriam
outros como ele, não foi capaz de processar a informação recebida.
Sem conseguir sua resposta, Glória desespera-se, fazendo com que os pais
decidam levá-la à U. S. Robots, para mostrar à criança o processo de construção dos
robôs, ajudando-a a entender que Robbie era apenas de uma máquina. Durante a visita,
um engenheiro robótico revela à família Weston sobre um departamento da empresa,
que está realizando experimentos em que os próprios robôs estariam encarregados da
manufatura de outros novos robôs:

A vicious circle in a way, robots creating more robots. Of course, we


are not making a general practice out of it. For one thing, the unions
would never let us. But we can turn out a very few robots using robot
labor exclusively, merely as a sort of scientific experiment.68
(ASIMOV, 2004b, p. 17)

É nesse departamento que Glória encontra Robbie, um lugar em que, conforme


descreve o texto, há apenas robôs, supervisionados por cinco homens. Nesse
departamento, portanto, Robbie estava encarregado de construir novos seres como ele; a
narrativa não deixa claro, mas podemos inferir que as qualidades peculiares de Robbie,
sua semelhança com os humanos, sua capacidade de raciocínio e sentimentos, foram
transmitidos aos robôs criados por ele, como se Robbie fosse uma mãe que transmitisse
suas características aos filhos. Esse fato só será confirmado com a leitura dos próximos
contos, quando verificaremos os mesmos atributos em outros robôs produzidos pela
empresa.
Apesar de o conto não dizer, quando, no final da história, o robô é responsável
pelo salvamento de Glória, ele o faz na verdade, por obrigação, devido à Primeira Lei
da Robótica: “um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir


68
De certo modo é um círculo vicioso, robôs criando mais robôs. É claro que não vamos fazer disso uma
prática generalizada. Os sindicatos, por exemplo, nunca permitiriam. Mas podemos produzir alguns robôs
usando o trabalho exclusivo de robôs, meramente como uma espécie de experiência científica. (ASIMOV,
2004a, p. 47)


66


que ele se fira”. No entanto, notamos que, mais do que uma obrigação, o robô se sente
feliz e emocionado por ter conseguido resgatar a amiga:

Grace Weston considered. She turned toward Gloria and Robbie and
watched them abstractedly for a moment. Gloria had a grip about the
robot’s neck that would have asphyxiated any creature but one of
metal, and was prattling nonsense in half-hysterical frenzy. Robbie’s
chrome-steel arms (capable of bending a bar of steel two inches in
diameter into a pretzel) wound about the little girl gently and lovingly,
and his eyes glowed a deep, deep red. 69 (ASIMOV, 2004b, p. 18)

O narrador nos lembra, mais uma vez, de que Robbie não é um ser humano, ao
dizer que Gloria o abraçou tanto que teria sufocado qualquer outra criatura que não
fosse feita de metal. Mas, ao mesmo tempo, destaca-se a emoção do robô, dessa vez
expressa pelos olhos: assim como no início do conto, Robbie apresenta um brilho nos
olhos - “his eyes glowed” –, mas ele vai além e consegue demonstrar o quanto se sentiu
emocionado por encontrar sua amiga. Os olhos estavam também “deep, deep red”,
representando as lágrimas nos olhos que um ser humano teria, quando submetido a uma
situação de profunda comoção.
Assim, percebendo-se falha ao cuidar de sua própria filha e observando a
habilidade da máquina em supri-la, a Sra. Weston finalmente aceita que Robbie
permaneça em sua família. Porém, ficamos sabendo através de Susan Calvin que, em
poucos anos, todos os robôs seriam banidos do planeta; o motivo desse banimento é
explicado pelo desenvolvimento dos robôs que teriam tido início a partir de Robbie, um
desenvolvimento emocional que levaria a máquina a se equiparar ao ser humano e,
então, tornar-se uma ameaça à identidade do homem.

2.2.1.2 Robbie, a Cinderela contemporânea

Analisando-se, ainda, a relação entre Robbie e Gloria, voltemos à passagem


inicial do conto em que Robbie pede à amiga que lhe conte uma história. Notamos, em
primeiro lugar, uma inversão de papeis, pois são as crianças que ouvem histórias dos


69
Grace Weston considerou. Ela virou-se para Glória e Robbie e observou-os pensativa por um momento.
Glória segurava o pescoço do robô de um modo que teria asfixiado qualquer criatura que não fosse de
metal, e estava falando tolices de um modo meio histérico. Os braços de aço cromado de Robbie (capazes
de entortar uma barra de ferro de duas polegadas até formar uma rosca) envolviam a menina de um modo
suave e amoroso, seus olhos brilhando um vermelho profundo. (ASIMOV, 2004a, p. 45)


67


adultos e não o contrário; desse modo, esse fato intensifica ainda mais a infância
emocional do robô.

Como não possui capacidade de falar como uma criança – , o robô indica qual
conto deseja ouvir, utilizando-se de movimentos manuais,

Robbie made a semi-circle in the air with one finger.


The little girl protested, “Again? I’ve told you Cinderella a million
times. Aren’t you tired of it? – It’s for babies.”
Another semi-circle.70 (ASIMOV, 2004b, p. 7)

Descobre-se, então, que a história preferida de Robbie é a de Cinderela:

‘Oh, well,’ Gloria composed herself, ran over the details of the tale in
her mind (together with her own elaborations, of which she had
several) and began:
‘Are you ready? Well — once upon a time there was a beautiful little
girl whose name was Ella. And she had a terribly cruel step-mother
and two very ugly and very cruel step-sisters and–‘
Gloria was reaching the very climax of the tale — midnight was
striking and everything was changing back to the shabby originals
lickety-split, while Robbie listened tensely with burning eyes — when
the interruption came.
‘Gloria!’
It was the high-pitched sound of a woman who has been calling not
once, but several times; and had the nervous tone of one in whom
anxiety was beginning to overcome impatience.
‘Mamma’s calling me,’ said Gloria, not quite happily. ‘You’d better
carry me back to the house, Robbie.’71 (ASIMOV, 2004b, p. 7)

O conto de fadas Cinderela foi impresso e publicado pela primeira vez em 1697,
por Charles Perrault, e pelos irmãos Grimm, no século XIX, em uma versão um pouco


70
Robbie fez um semicírculo no ar com um dedo.
A garotinha protestou:
- De novo? Eu já contei Cinderela para você um milhão de vezes. Ainda não enjoou?... É para
criancinhas.
Outro semicírculo. (ASIMOV, 2004a, p. 27-28)
71
- Está bem – Glória se aprumou, reviu os detalhes da história em sua mente (junto com seus próprios
acréscimos, e ela tinha feito vários acréscimos), depois começou: - Está pronto? Bem, era uma vez uma
linda mocinha chamada Ella que tinha uma terrível madrasta e duas irmãs muito malvadas...
Glória estava chegando ao clímax da história – a meia-noite se aproximava e tudo estava se
transformando de novo nos trapos originais, enquanto Robbie escutava com atenção, os olhos brilhando –
quando chegou a interrupção.
- Glória!
Era a voz aguda de uma mulher que já chamara não apenas uma vez, mas várias vezes; e tinha o tom
nervoso de alguém cuja ansiedade estava começando a tomar o lugar de impaciência.
- Mamãe está chamando – disse Glória, não muito contente. – É melhor me carregar de volta para casa,
Robbie. (ASIMOV, 2004a, p. 28)


68


diferenciada: segundo Jack Zipes, no livro The Brothers Grimm: from enchanted forests
to the modern world (2002), a versão de Cinderela escrita pelos irmãos Grimm dá
ênfase ao caráter matriarcal da sociedade retratada (fazendo referência à mãe falecida, à
madrasta má e às meia-irmãs malvadas), ao mesmo tempo que deixa claro a importância
de se treinar uma mulher nos serviços domésticos, ao mostrar as qualidades servis da
personagem: “self-sacrifice, diligence, hard work, silence, humility, patience [...]”72 (p.
196) A robô Robbie possui todas as qualidades descritas, uma vez que passa por cima
de suas vontades para beneficiar Glória e obedecer a Sra. Weston, possui zêlo e cuidado
extremo para com a menina, esforça-se para cumprir suas tarefas, não possui habilidade
de fala e, portanto, não contradiz as ordens que recebe de seus donos, demonstrando,
assim, humildade e paciência: ‘“You may go, Robbie. She doesn’t need you now.”
Then, brutally, “And don’t come back till I call you.”’73 (ASIMOV, 2004b, p.8)
Assim como em Cinderela, o lar dos Westons é matriarcal, pois a mãe é
dominadora e consegue tudo o que quer de um marido submisso, como podemos ver na
passagem em que o Sr. Weston decide por devolver Robbie à fábrica:

Ten times in the ensuing week, he cried, “Robbie stays, and that’s
final!” and each time it was weaker and accompanied by a louder and
more agonized groan.
Came the day at last, when Weston approached his daughter guiltily
and suggested a “beautiful” visivox show in the village.74 (ASIMOV,
2004b, p. 10)

As versões de Charles Perrault e dos irmãos Grimm eram as mais populares no


ocidente, até 1950, quando os estúdios Walt Disney Pictures lançaram a versão animada
do conto; desse modo, a história contada por Glória era baseada no texto escrito.
Notamos, assim, que Robbie gosta de ouvir a narrativa de Cinderela, pois
consegue se identificar com a personagem do conto de fadas, com sua situação precária,
com a humilhação e com a obrigação de realizar serviços domésticos, sem ser paga por
isso. Cinderela, porém, é capaz de escapar da condição imposta a ela e atingir,
inesperadamente, um patamar acima daqueles que a rebaixavam, ao se casar com o

72
“auto-sacrifício, diligência, trabalho duro, silêncio, humildade, paciência [...]” (tradução nossa)
73
- Pode ir agora, Robbie. Ela não precisa mais de você. E acrescentou, cruelmente. – E não volte até eu
chamar. (ASIMOV, 2004a, p. 29)
74
E dez vezes, na semana seguinte, ele gritou:
- Robbie fica! E ponto final! – Mas cada vez a afirmativa saía mais fraca e era acompanhada de um
gemido.
E afinal chegou o dia em que Weston abordou sua filha, cheio de culpa e sugeriu que fossem assistir a um
“belo” espetáculo de visivox no vilarejo. (ASIMOV, 2004a, p. 34)


69


príncipe e tornar-se parte da realeza. Robbie queria que a história lhe fosse contada
repetidamente para poder manter a esperança de mudanças em sua vida; assim como,
provavelmente, esperava que sua patroa fosse castigada.
Ao contrário do que se esperaria de um ser provido de inteligência artificial,
Robbie demonstra sentimento de empatia com a personagem dos contos de fadas e
esperança por melhorias em seu futuro. Se o leitor consegue fazer uma aproximação da
história de Cinderela com Robbie logo no início do conto, será capaz de antever o final
bem sucedido para a personagem robô.
Outro elemento que se aproxima do conto de fadas em “Robbie” é o encontro de
Glória com o chamado “The Talking Robot”. É um fator bastante comum nos contos de
fadas que o herói se encontre com um personagem ou descubra um objeto que lhe traga
respostas que o ajudem a finalizar sua busca. De acordo com Vladimir Propp, esse
personagem é um auxiliador mágico: “um dos atributos mais importantes do auxiliar é a
sua sabedoria profética [...].” (2001, p. 46). O elemento mágico, porém, não faz parte da
Ficção Científica e, desse modo, a pequena Glória não consegue obter a resposta que
espera de seu oráculo. Pelo contrário, seu cérebro eletrônico, incapaz de processar a
pergunta, entra em pane e é destruído.
Podemos observar, portanto, que o conto “Robbie” apresenta algumas
características dos contos de fadas, ocorrendo, contudo, uma reatualização
contemporânea de Cinderela, moldada de acordo com as características do gênero da
Ficção Científica, ou seja, a história se passa em uma sociedade futurística, repleta de
inovações tecnológicas, mas sem a interferência de um elemento do mundo sobrenatural
no desenvolvimento do enredo. Desse modo, evidencia-se a aproximação da ficção
científica com o gênero fantástico e também com o conto maravilhoso, conforme
descrito no primeiro capítulo desse estudo.

2.2.1.3 Glória, Robbie e a autoimagem

No livro A psicanálise na Terra do Nunca, Diana e Mário Corso afirmam que


existe uma “tendência infantil de supor vida inteligente, personalidade e intenções em
todas as coisas [...]” (2011, p. 269) As crianças utilizam-se de sua criatividade e
imaginação para criar jogos e brincadeiras a partir de objetos comuns e inanimados,
podendo fingir que uma boneca é um bebê de verdade. Ao brincar, a criança atribui


70


significado ao objeto, “Tudo acumula significados, faz parte de alguma cena, alguma
história, algum simbolismo ele sempre conterá” (p. 274)
Uma criança da idade de Glória, com oito anos de idade, geralmente brincaria
com bonecas, as quais são, de acordo com a psicologia, um reflexo da própria menina.
No conto, porém, Glória possui um robô, em vez de uma boneca, e, assim, poderíamos
pensar que este ser é o reflexo da menina; será que para Robbie, Glória também não era
vista da mesma forma? Isso explica o fato de que ambas as personagens apresentam o
mesmo tipo de comportamento ao longo do conto: o gosto por jogos, brincadeiras e
histórias, típicas predileções ligadas ao universo infantil.

Figura 9: Ilustração de Ralph McQuarrie para o conto Robbie


Fonte: ASIMOV, Isaac. Robot visions. New York: Penguin, 1994, p. 51

Segundo Corso (2011), resquícios dessa qualidade pueril de atribuir


personalidade e sentimentos aos objetos, permanecem até a vida adulta, quando, por
exemplo “reclamamos com nosso carro se ele estraga [...] [ou] conversamos com uma
planta para incentivá-la a crescer [...]” (p. 269). Que tipo de personalidade e sentimentos
a senhora Weston atribuía a Robbie? Se, para Glória, as qualidades encontradas no robô
são reflexos de suas próprias características, podemos deduzir que a mãe da garota


71


estava, portanto, atribuindo àquele ser artificial suas qualidades mais deploráveis. A
mãe temia o que o robô poderia fazer mal para sua filha. Observamos, contudo, que
Glória era negligenciada por seus pais; ficava durante a maior parte do dia sob os
cuidados de Robbie e, assim criou afeição por aquele ser. Seus pais levaram-no para
longe, contaram-lhe mentiras e, ao final, deixaram-na desamparada na U. S. Robots.
Ao salvar Glória do atropelamento, Robbie mostra atitudes superiores e mais
afetivas do que as dos pais de Glória – é uma máquina que, pela convivência humana,
consegue aprender o sentimento da empatia e do cuidado.

2.2.2 “Reason”

“Reason” é o terceiro conto do livro I, Robot, e é antecedido de “Runaround”.


Apenas para que se tenha uma ideia do contexto narrativo em que “Reason” se insere,
trataremos brevemente do tema apresentado na segunda história da coletânea.
Após serem banidos dos lares, os robôs passam a ser utilizados quase que
exclusivamente em missões espaciais, supervisionados por humanos. Em uma viagem
exploratória no planeta Mercúrio, os astronautas Gregory Powell e Mike Donavan
encontram problemas em um robô apelidado de Speedy, uma vez que ele foi para
campo e não retornou à nave. Então, no decorrer da história, Powell e Donavan acabam
descobrindo o motivo da suposta falha mecânica: um conflito entre a segunda e a
terceira lei da robótica; ao mesmo tempo, Speedy percebe que sua missão pode
prejudicar sua estrutura e destruí-lo (o que o faria desistir, devido à Segunda Lei), não
consegue voltar para a nave sem cumprir as ordens dadas a ele (devido à Terceira Lei).
Isso faz com que o robô fique andando em círculos, incessantemente.
Os astronautas conseguem, finalmente, resolver a questão e trazer Speedy de
volta. Mas o que Asimov começa mostrar, aqui, é a fragilidade do sistema de segurança
implantado pelos homens. O robô é um ser incapaz de descumprir as regras
programadas em seu “cérebro positrônico”; porém, por terem sido construídos por seres
humanos, a lógica colocada em sua construção pode falhar.
O conto “Reason” foi escrito em 1941 e, segundo Asimov, a escrita de “Robbie”
não teria feito sentido algum se ele não tivesse lançado “Reason” em seguida: é este
último que dá continuidade ao processo de desenvolvimento sofrido pelos robôs, que
tem início em “Robbie”. Além disso, “Reason” foi o primeiro conto de Asimov aceito
por John W. Campbell para publicação na revista Astounding Science Fiction. A capa


72


da edição de abril de 1941, dessa famosa pulp magazine, na qual “Reason” foi
publicada, ainda não trazia o nome de Isaac Asimov, pois ele era, até então,
desconhecido pelo público. Entretanto, foi assim que as portas começaram a se abrir
para o escritor, conforme ele mesmo lembra: “Readers became aware that there was
such a thing as the ‘positronic robots,’ and so did Campbell. That made everything
aftewards possible.” (ASIMOV, 1990a, p. 11)

Figura 10: Capa de Astounding Science-Fiction, Abril de 1941


Fonte: <http://childrenslitumn.tumblr.com/post/28569277076/astounding-science-fiction-april-1941>
Acesso em 7 de abril de 2014.

2.2.2.1 O robô Cutie, a filosofia, a existência e a criação

A história se passa seis meses após os acontecimentos de “Runaround” e inicia


com Gregory Powell e Michael Donovan em uma Estação Espacial, realizando
trabalhos com robôs experimentais. Se no conto anterior, “Runaround”, os cientistas
estavam limitados ao nosso Sistema Solar, fazendo suas pesquisas no planeta Mercúrio,
aqui vemos uma rápida expansão do território dominado por eles, marcada pela
descrição do espaço onde irá se passar o conto: “The flame of a giant sun had given way
to the soft blackness of space”75 (ASIMOV, 1990c, p. 71). Logo em seguida, contudo,
há uma ressalva do narrador quanto à importância dessa expansão:


75
“A chama de um sol gigante tinha dado lugar à suave escuridão do espaço” (ASIMOV, 2004a, p. 81)


73

[…] but external variations mean little in the business of


checking the workings of experimental robots. Whatever the
background, one is face to face with an inscrutable positronic
brain, which the slide-rule geniuses say should work thus-and-
so.76 (ASIMOV, 1990c, p. 71)

Dessa forma, vemos que mesmo tendo a tecnologia necessária para realizar
viagens intergalácticas, o homem está diante de uma máquina cujo cérebro é
impenetrável. Quando se afirma que os gênios da matemática dizem qual é a forma
desse cérebro funcionar, eles estão equivocados. E isso se comprovará no decorrer do
conto: o homem criou algo incompreensível para ele mesmo.
A única forma de garantir que uma tecnologia desse nível não se torne
ameaçadora é a insistência no mecanismo de segurança que, no caso dos robôs são as
Três Leis da Robótica. Por ser este o segundo conto em que se citam as leis, vemos que
o próprio texto garante ao leitor a sobrevivência desse preceito:

Oh, the three Laws of Robotics held. They had to. All of U. S.
Robots, from Robertson himself to the new floor sweeper, would
insist on that. So QT1 was safe! And yet the QT models were the first
of their kind, and this was the first of the QT’s. Mathematical
squiggles on paper were not always the most comforting protection
against robotic fact. 77 (ASIMOV, 1990c, p. 72)

Na última parte do texto, observa-se, mais uma vez, a falta da confiança na


ciência exata: a forma como são chamados os cálculos, “rabiscos”, atribui a eles uma
ideia de inferioridade. Desse modo, o conto constrói, aos poucos, o cenário em que essa
narrativa está inserida; temos um mundo altamente desenvolvido tecnologicamente, mas
a ciência pode estar avançando além daquilo que é capaz de administrar. A segurança é
colocada nas Três Leis da Robótica, mas elas também foram desenvolvidas pelo homem
e, sendo assim, seu funcionamento pode conter falhas.
Quando se pensa em leis, nos referimos a um conjunto de normas criadas para
regular a conduta de uma sociedade. As leis, frequentemente, são elaboradas por uma

76
[...] mas as variações externas não tinham muita influência no trabalho de verificar o funcionamento de
robôs experimentais. Não importa o cenário, você está a frente com o inescrutável cérebro positrônico
que os gênios das réguas de cálculo dizem que deve funcionar assim e assado. (ASIMOV, 2004a, p. 81)
77
Oh, as três leis da robótica continuam valendo. Era preciso. Todos na U.S. Robôs , de Robertson ao
novo faxineiro, insistiam nisso. De modo que QT-1 era seguro! E, no entanto, os modelos QT eram os
primeiros de seu tipo e este era o primeiro dos QTs. Fórmulas matemáticas num papel nem sempre são a
melhor proteção contra os fatos da robótica. (ASIMOV, 2004a, p. 82)


74


autoridade, um ente dotado de poder ou força superior. Sabe-se, no entanto, que em uma
sociedade, as leis são comumente violadas ou quebradas; além do mais, muitas pessoas
conseguem encontrar “brechas” nas leis que as permitem utilizá-las para benefício
próprio. Esse comportamento, porém, é esperado de um ser que possui pensamento
racional, como o homem, e, em teoria, não poderia partir de um robô. Por outro lado, os
cientistas se encontrarão, na narrativa, diante de uma situação inesperada: um robô
racional.
Assim, nos deparamos com uma discussão entre os engenheiros espaciais e um
exemplar do novo modelo em teste, chamado QT-1. Vale ressaltar aqui que todos os
robôs de I, Robot terão um código composto por letras e números para identificá-los.
Estes códigos, no entanto, são sempre transformados em nome próprio, levando-se em
conta o som das letras em inglês. No caso de QT, por conseguinte, o robô passa a ser
chamado pelo apelido de Cutie, que em língua inglesa significa algo como “Fofinho” –
algo que soará como certa ironia no decorrer do conto.
O robô é cuidadosamente descrito pelo narrador, o qual coloca sempre em
evidência suas características físicas que o distinguem de um ser humano: “The
burnished plates of his body gleamed in the Luxites and the glowing red of the
photoelectric cells that were his eyes, were fixed steadily upon the Earthman at the other
side of the table.” 78 (ASIMOV, 1990c, pp. 71-72)
Assim como em “Robbie”, os olhos do robô Cutie também são descritos como
brilhantes e vermelhos, representando a presença de vida e de emoções em seu interior.
Além disso, o cientista é chamado de “Earthman”, ou seja, é como se, diante do robô,
um outro ser, o homem tivesse de ser classificado conforme sua espécie e origem –
assim como, através da ciência, classificamos outras espécies de animais, de acordo
com suas características.
Na narrativa, os robôs são fabricados na Terra e enviados às estações espaciais
para serem cuidadosamente montados pelos engenheiros, no caso, Powell e Donavan.
Ao receberem as peças do novo modelo QT, eles as colocam no lugar para que o robô
comece seu trabalho. A intenção da U. S. Robots é que esse modelo de robô, mais
avançado tecnologicamente, possa substituir o trabalho humano no espaço.
Entretanto, para que um robô execute um trabalho tão preciso quanto o que um
homem executaria, seria necessário que ele tivesse a mesma sensibilidade, as mesmas

78
As chapas forjadas de seu corpo cintilavam na luz e as brilhantes fotocélulas vermelhas que eram seus
olhos estavam fixas no homem da Terra do outro lado da mesa. (ASIMOV, 2004a, p. 81)


75


preocupações e o mesmo tipo de pensamento que nós; seguir uma programação
matemática não seria o suficiente. Desse modo, começamos a ver em Cutie o que a
aproximação com a natureza humana acabou causando a essa nova geração de seres
artificiais:
‘One week ago, Donovan and I put you together.’
[...] Finally, the robot spoke. His voice carried the cold timbre
inseparable from a metallic diaphragm, ‘Do you realize the
seriousness of such a statement, Powell?’
‘Something made you, Cutie,’ pointed out Powell. ‘You admit
yourself that your memory seems to spring full-grown from an
absolute blankness of a week ago. I’m giving you the explanation.
Donovan and I put you together from the parts shipped us.’
Cutie gazed upon his long, supple fingers in an oddly human attitude
of mystification, ‘It strikes me that there should be a more satisfactory
explanation than that. For you to make me seems improbable.’79
(ASIMOV, 2004b, p. 34)

Observamos que Cutie questiona os engenheiros a respeito de sua própria


origem, buscando entender o sentido de sua existência. O robô passa a apresentar
características psíquicas que não pertencem a nenhum outro ser além do homem, como
por exemplo, a capacidade de mistificação, ou seja, de crer em uma força espiritual ou
divina. No entanto, ele faz tal questionamento utilizando um tom frio em sua voz,
mostrando, assim, a falta de emoção e apenas o início de um raciocínio que se tornará,
gradativamente, baseado na lógica:

The Earthman laughed quite suddenly, “In Earth’s name, why?”


“Call it intuition. That’s all it is so far. But I intend to reason it out,
though. A chain of valid reasoning can end only with the
80
determination of truth, and I’ll stick till I get there. (ASIMOV,
1990c, p. 72)


79
- Há uma semana eu e Donovan o montamos.
[...] Finalmente o robô falou. Sua voz tinha a tonalidade fria de um diafragma metálico:
- Percebe a seriedade desta declaração, Powell?
- Alguma coisa fez você, Cutie – apontou Powell. Você mesmo admitiu que suas memórias pareceram
surgir prontas de uma escuridão absoluta há uma semana. Eu estou lhe dando a explicação. Donovan e eu
montamos você com as partes que foram enviadas.
Cutie olhou para seus dedos longos e flexíveis numa curiosa atitude humana de incredulidade.
- Me parece que deve haver uma explicação melhor para isso. Que você possa me fazer parece muito
improvável. (ASIMOV, 2004a, p. 82)
80
O homem da Terra riu subitamente.
- Em nome da Terra, por quê?
- Chame de intuição. E apenas isso até agora. Mas eu pretendo descobrir. Uma corrente de raciocínio
válido só pode terminar com a determinação da verdade e eu vou prosseguir até chegar lá. (ASIMOV,
2004a , p. 82)


76

Observam-se dois fatos no fragmento acima. O primeiro é que a mistificação do


homem é colocada em evidência através da fala do cientista, “In Earth’s name”, ao
substituir a palavra God por Earth, na expressão que é mais comumente conhecida
como In God’s name em língua inglesa. Essa expressão é geralmente utilizada quando
se faz um apelo à autoridade de Deus para que algo aconteça. No caso do conto, a
própria Terra possui essa autoridade e o homem, “the Earthman”, é seu fruto. Podemos
deduzir, assim, que a população da Terra estava voltada a uma era mais racional, com
um “deus” concreto, o planeta terra.
O segundo fato é que o robô admite estar tendo um pressentimento, uma
intuição, isto é, uma forma de pensamento imediata, desvinculada de qualquer meio de
raciocínio. Porém, ele deixa claro que sua conclusão só poderá ser validada após
concluir a racionalização de seu pensamento, chegando, com isso, à verdade absoluta.
Desse modo, observamos que o robô, assim como o homem, seu criador, baseia-se em
fatos lógicos, racionais e concretos e possui vontade própria.
Diante dos questionamentos de Cutie, os engenheiros não conseguem admitir
que um ser artificial possa duvidar da capacidade de criação do homem; eles pretendem
se manter em posição superior à do robô e desejam que Cutie simplesmente permaneça
seguindo ordens, sem perder tempo em buscar explicações ontológicas. Para provar a
Cutie que eles estão certos, os engenheiros decidem mostrar, pela janela da espaçonave,
o sol, as estrelas e, por fim, o planeta Terra. Além disso, Powell explica a função
daquela estação especial.

‘I’ve seen that in the observation ports in the engine room,’ said
Cutie.
‘I know,’ said Powell. ‘What do you think it is?’
‘Exactly what it seems a black material just beyond this glass that
is spotted with little gleaming dots. I know that our director sends
out beams to some of these dots, always to the same ones and also that
these dots shift and that the beams shift with them. That is all.’81
(ASIMOV, 1990c, p. 73)


81
- Eu já vi isso nas janelas de observação da sala de máquinas – disse Cutie.
- Eu sei, o que acha disso?
- É exatamente o que parece: um material preto do outro lado do vidro, salpicado de pequenos pontos
brilhantes. Eu sei que o nosso diretor envia feixes para alguns desses pontos, sempre os mesmos, e
também que esses pontos se deslocam e os feixes se movem para acompanhá-los. Isso é tudo. (ASIMOV,
2004a, p. 83)


77


O robô, mais uma vez, mostra-se incapaz de acreditar naquilo que, para ele, não
é concreto. Ele admite como verdadeiro apenas aquilo que consegue ver com os
próprios olhos. O universo seria um grande material negro, cheio de pontos brilhantes, e
por mais que o cientista explique sobre a existência dos planetas e da grandiosidade de
certos planetas, Cutie permanece indiferente, apenas tentando entender tudo aquilo pelo
ponto de vista mais racional possível. Powell segue explicando que nasceu na Terra e
este planeta é habitado por seres humanos. O robô, então, repete sua questão primordial:

‘But where do I come in, Powell? You haven’t explained my


existence.’
‘[...] When these stations were first established to feed solar energy to
the planets, they were run by humans. However, the heat, the hard
solar radiations, and the electron storms made the post a difficult one.
Robots were developed to replace human labor and now only two
human executives are required for each station. We are trying to
replace even those, and that’s where you come in. You’re the highest
type of robot ever developed and if you show the ability to run this
station independently, no human need ever come here again except to
bring parts for repairs.’ 82 (ASIMOV, 2004b, p. 35)

Com essa explicação, Powell pretende deixar claro que os robôs são inferiores
aos homens e que foram fabricados para executar tarefas que seriam prejudiciais aos
seres humanos; o que Cutie infere, porém, é que os homens estão sendo destituídos do
cargo por uma mão de obra mais qualificada, mais forte e mais resistente.
Diante desse comportamento de Cutie, Powell diz a Donavan que o robô é um
cético por não acreditar que ele foi construído por mãos humanas, nem conceber a
existência da Terra, do espaço e das estrelas. O ceticismo filosófico implica a busca por
evidências para crer em fatos; e essa busca por evidências é o que Cutie irá fazer para
encontrar as respostas que busca.
Em um segundo encontro com Powell, Cutie traz argumentos para provar suas
hipóteses; em apenas dois dias de reflexão, o robô chega à mesma conclusão do filósofo
francês, René Descartes:


82
- Mas onde eu entro, Powell? Você não explicou minha existência.
- [...] Quando essas estações foram estabelecidas para alimentar os planetas com energia solar, elas eram
tripuladas por seres humanos. Contudo, o calor, as radiações solares e as tempestades de elétrons
tornavam a tarefa difícil. Robôs foram desenvolvidos para substituir os humanos, e agora só dois diretores
humanos são necessários em cada estação. Estamos tentando substituir até mesmo esses dois e é aqui que
você entra. Você é o tipo mais desenvolvido de robô já criado e se demonstrar a capacidade de controlar a
Estação independentemente, nenhum humano jamais virá aqui, exceto para trazer peças sobressalentes.
(ASIMOV, 2004a, p. 84-85)


78


‘I have spent these last two days in concentrated introspection,’ said
Cutie, ‘and the results have been most interesting. I began at the one
sure assumption I felt permitted to make. I, myself, exist, because I
think [...]’83 (ASIMOV, 2004b, p. 36, grifo nosso)

A frase proferida pelo robô, “I, myself, exist, because I think” remete ao
pensamento do filósofo René Descartes, na obra Discurso do Método (1637). Porém,
Cutie faz uma inversão na construção do sintagma. Para compararmos, observemos a
frase de Descartes em língua inglesa: “I think, therefore I am”84. Se pensarmos no
significado da proposição do filósofo de forma simples, compreendemos que se o
indíviduo tem dúvidas a respeito de sua existência, ele pode concluir que ele é real, pois
existe um “eu” pensante; ou seja, a prova da existência de um ser se dá pela própria
dúvida que ele possui a respeito de sua existência. Descartes, porém, não estava
tratando da existência material, corpórea, mas da presença da mente, da consciência.
Assim, Descartes pressupõe a existência do pensamento como algo independente do
corpo, no ser humano. O robô, por sua vez, só é capaz de adquirir consciência depois de
ter suas partes manufaturadas e montadas pelo homem, antes disso, ele não possui vida,
não é capaz de pensar. No robô, como vemos no conto, todo o corpo é construído
primeiro, o cérebro – que torna o robô consciente – é a última parte a ser colocada:

Robots are, of course, manufactured on Earth, but their shipment


through a pace is much simpler if it can be done in parts to be put
together at their place of use. [...]
The robot in question, a simple MC model, lay upon the table, almost
complete. Three hours’ work left only the head undone, [...]
Powell groaned. ‘Let’s get the brain in now, Mike!”
Donovan uncapped the tightly sealed container and from the oil bath
within he withdrew a second cube. Opening this in turn, he removed a
globe from its sponge-rubber casing.
He handled it gingerly, for it was the most complicated mechanism
ever created by man. Inside the thin platinum plated “skin” of the
globe was a positronic brain, in whose delicately unstable structure
were enforced calculated neuronic paths, which imbued each robot
with what amounted to a pre-natal education.
It fitted snugly into the cavity in the skull of the robot on the table.
Blue metal closed over it and was welded tightly by the tiny atomic
flare. Photoelectric eyes were attached carefully, screwed tightly into
place and covered by thin, transparent sheets of steel-hard plastic.


83
- Eu passei os últimos dois dias numa introspecção concentrada – disse Cutie -, e os resultados roam
muito interessantes. Eu comecei com um pressuposto que me permito considerar como correto. Eu existo,
porque penso... (ASIMOV, 2004a, p. 87)
84
“Je pense donc je suis”, no original, em francês.


79


The robot awaited only the vitalizing flash of high-voltage electricity,
and Powell paused with his hand on the switch.
[...]
The switch rammed home and there was a crackling hum. The two
Earthmen bent anxiously over their creation.
There was vague motion only at the outset — a twitching of the joints.
The head lifted, elbows propped it up, and the MC model swung
clumsily off the table. Its footing was unsteady and twice abortive
grating sounds were all it could do in the direction of speech.
Finally, its voice, uncertain and hesitant, took form. ‘I would like to
start work. Where must I go?’ Donovan sprang to the door. ‘Down
these stairs,’ he said. ‘You will be told what to do.’85 (ASIMOV,
2004b, p. 42-43)

É por isso que, em sua frase, a existência é colocada em primeiro lugar, antes do
pensamento. O narrador nos mostra, aqui, uma equivalência entre o ser do robô e o do
homem, uma vez que ambos possuem capacidade de pensar e, através do pensamento,
questionar e duvidar de sua existência, isso os faz subsistir, torna-os indivíduos. Nesse
momento, portanto, a existência do robô, enquanto criatura, não depende mais do
homem, pois através da tomada da consciência, ele se tornou um ser racional e livre
para tomar suas próprias decisões, ao contrário das expectativas dos engenheiros.
Desse modo, Cutie não concebe que tenha sido criado e construído pelo homem,
uma vez que, para ele, o homem é um ser inferior, menos desenvolvido:


85
É claro que os robôs são fabricados na Terra, mas seu transporte através do espaço é muito mais
simples se for feito em partes, para serem montadas no lugar em que vão ser usados. [...]
O robô em questão era um simples modelo MC, colocado sobre a mesa, quase completo. Três horas de
trabalho tinham deixado faltando apenas a cabeça [...]
Powell gemeu.
- Vamos colocar o cérebro agora, Mike!
Donovan abriu um recipiente muito bem fechado e, do banho de óleo que havia dentro, retirou um
segundo cubo. Ele o abriu para retirar um globo de sua embalagem de espuma de borracha.
Depois o manipulou cautelosamente, pois era o mecanismo mais complicado já criado pelo homem.
Dentro da fina “pele” platinada daquele globo havia um cérebro positrônico em cuja estrutura,
delicadamente instável, tinham sido impressas trilhas neurais calculadas, que davam a cada robô uma
espécie de educação pré-natal.
Aquilo encaixou-se perfeitamente no crânio do robô sobre a mesa. O metal azul fechou-se sobre ele e foi
soldado com uma minúscula chama atômica. Os olhos fotoelétricos foram colocados com cuidado,
atarraxados no lugar e cobertos por finas folhas de plástico transparente, duro como aço.
O robô aguardou apenas a centelha vitalizante da eletricidade de alta voltagem, e Powell parou com a
mão no interruptor.
[...]
O interruptor foi acionado e houve um zumbido crepitante. Os dois terráqueos curvaram-se ansiosos
sobre sua criação.
Houve apenas um vago movimento, um tremeluzir das juntas. A cabeça se ergueu, os cotovelos o
levantaram e o modelo MC virou-se desajeitadamente na mesa. Seus pés estavam inseguros e, por duas
vezes, sons ásperos foram tudo o que ele pôde produzir no lugar de fala.
Finalmente, sua voz incerta e hesitante tomou forma.
- Eu gostaria de começar a trabalhar. Aonde devo ir?
Donovan abriu a porta.
- Desça essas escadas. Vão lhe dizer o que fazer – ele disse. (ASIMOV, 2004a, p. 99-100)


80

‘Look at you,’ he said finally. ‘I say this in no spirit of contempt, but


look at you! The material you are made of is soft and flabby, lacking
endurance and strength, depending for energy upon the inefficient
oxidation of organic material — like that.’ He pointed a disapproving
finger at what remained of Donovan’s sandwich. ‘Periodically you
pass into a coma and the least variation in temperature, air pressure,
humidity, or radiation intensity impairs your efficiency. You are
makeshift.’
‘I, on the other hand, am a finished product. I absorb electrical energy
directly and utilize it with an almost one hundred percent efficiency. I
am composed of strong metal, am continuously conscious, and can
stand extremes of environment easily. These are facts which, with the
self-evident proposition that no being can create another being
superior to itself, smashes your silly hypothesis to nothing.’86
(ASIMOV, 2004b, p. 39)

Todas as suposições de Cutie são feitas através da reunião de evidências


empíricas, com uma análise baseada no método científico: primeiro ele possui uma
teoria (de que ele não foi criado pelo homem) como se sabe, toda teoria é indissociável
de hipóteses harmônicas entre si –, em seguida, ele faz uma análise lógica da situação,
por meio da observação de fatos verificáveis (ele constata as limitações do ser humano e
percebe que não as possui, uma vez que não precisa se alimentar, é resistente às
mudanças de pressão, temperatura e não precisa dormir para descansar). A partir disso,
ele levanta outra hipótese, a de que não foi criado pelo homem e, assim, cria uma nova
teoria: de que teria sido criado pelo ser mais poderoso daquela estação espacial o
conversor de energia:

‘What is the center of activities here in the station? What do we all


serve? What absorbs all our attention?’ He waited expectantly.
Donovan turned a startled look upon his companion. ‘I’ll bet this
tinplated screwball is talking about the Energy Converter itself.’


86
- Olhe para vocês, - ele disse finalmente. – Eu não digo isso por desprezo, mas olhe para vocês! O
material de que são feitos é macio e flácido, desprovido de resistência e força. Dependente da energia
produzida pela oxidação ineficiente de material orgânico, como aquele ali – ele apontou num gesto de
desaprovação para o que restara do sanduíche de Donovan. – Periodicamente vocês mergulham num
estado de coma e a menor variação na temperatura, pressão do ar, umidade ou intensidade de radiação
prejudica a sua eficiência. Vocês são improvisados.
- Eu, por outro lado, sou um produto terminado. Posso absorver energia elétrica diretamente e utilizá-la
com quase cem por cento de eficiência. Sou feito de metal forte, permaneço consciente continuamente e
posso suportar os extremos do ambiente com facilidade. Esses são só fatos que, junto com a proposição
auto-evidente de que nenhum ser pode criar outro superior a ele mesmo, reduzem a nada a sua hipótese
tola. (ASIMOV, 2004a, p. 88)


81


‘Is that right, Cutie?’ grinned Powell.
‘I am talking about the Master,’ came the cold, sharp answer.87
(ASIMOV, 2004b, p. 37)
Cutie passa a ver o sistema central como um ser etéreo, passando a chamá-lo de
Mestre. Então, quando o robô transmite aos outros seres, semelhantes a ele, sua teoria,
todos os homens-mecânicos presentes na estação passam a chamá-lo de Profeta. A
palavra “profeta” tem origem grega e significa “intérprete” ou “porta-voz”. Além disso,
ela se refere tanto àquele que consegue predizer o futuro, como ao que é capaz de falar
através de inspiração divina.
Os outros robôs da estação espacial passam a seguir Cutie, pois acreditam que
ele foi inspirado pelo conversor de energia e destinado a lhes levar a verdade sobre sua
existência. Aqui, o texto faz um diálogo claro com a narrativa bíblica do Antigo
Testamento, na qual os profetas, como Malaquias, Jeremias, Ageu, entre outros, levam a
palavra de Deus ao povo e, muitas vezes, anunciam a vinda de um messias.
Em razão disso, os robôs deixam de seguir a Segunda Lei da robótica e passam a
realizar apenas o que é designado pelo “Mestre”. É interessante observar que na
narrativa bíblica, segundo o livro de Gênesis, o homem é criado à imagem e semelhança
de Deus; quando Cutie chega à conclusão de que o responsável por sua criação não foi o
homem, ele busca algo que se aproxima de sua natureza, ou seja, outra máquina.
Todavia, o que a inocência do robô não o deixa perceber é que o próprio conversor de
energia foi criado pelos homens e realiza tarefas que são programadas para servir aos
seres humanos. Servindo ao mestre, portanto, os robôs continuam a servir os homens e,
portanto, permanecem obedecendo às Leis da Robótica.
Vemos, então, que as primeiras qualidades adquiridas pelo robô, após a tomada
da consciência, são características fundamentalmente humanas: a busca pela própria
essência “Cutie continued imperturbably, “And the question that immediately arose
was: Just what is the cause of my existence?”88 (ASIMOV, 2004b, p. 36) e a
necessidade de se criar mitos que expliquem sua existência. Desse modo, podemos
afirmar que o robô é um ser criado à imagem e semelhança do próprio homem.


87
- Qual é o centro de toda a atividade aqui na Estação? O que é objeto de cuidado por todos? O que
absorve toda a nossa atenção? – ele esperou pela resposta.
Donovan olhou espantado para seu colega.
- Eu aposto como esse biruta platinado está falando do Conversor de Energia.
- É isso, Cutie? – sorriu Powell.
- Eu estou falando do Mestre – foi a resposta fria. (ASIMOV, 2004a, p. 89)
88
- E a questão que surge imediatamente é: qual foi a causa da minha existência? (ASIMOV, 2004a, p.
87)


82


Assim como os homens criam justificativas, muitas vezes implausíveis, para
justificar suas próprias crenças, Cutie possui explicações para todos os argumentos que
são colocados por Powell e Donavan para convencê-lo de que o conversor de energia
não é um deus soberano; ele diz, até mesmo, que os engenheiros são levados a crer em
algo diferente, para que não se sintam subjugados e continuem a servir o “mestre”.
Quando os engenheiros sugerem que Cutie leia os livros da biblioteca, que explicam
sobre a existência da Terra e dos seres humanos, Cutie alega que tais obras foram feitas
apenas para que os humanos se sintam confortados:

‘The books? I’ve read them — all of them! They’re most ingenious.’
Powell broke in suddenly. ‘If you’ve read them, what else is there to
say? You can’t dispute their evidence. You just can’t!’
There was pity in Cutie’s voice. ‘Please, Powell, I certainly don’t
consider them a valid source of information. They, too, were created
by the Master — and were meant for you, not for me.’
‘How do you make that out?’ demanded Powell.
‘Because I, a reasoning being, am capable of deducing truth from a
priori causes. You, being intelligent, but unreasoning, need an
explanation of existence supplied to you, and this the Master did. That
he supplied you with these laughable ideas of far-off worlds and
people is, no doubt, for the best. Your minds are probably too coarsely
grained for absolute Truth. However, since it is the Master’s will that
you believe your books, I won’t argue with you any more.’
As he left, he turned, and said in a kindly tone, ‘But don’t feel badly.
In the Master’s scheme of things there is room for all. You poor
humans have your place and though it is humble, you will be
rewarded if you fill it well.’
He departed with a beatific air suiting the Prophet of the Master and
the two humans avoided each other’s eyes.89 (ASIMOV, 2004b, p. 43)

Os argumentos de Cutie sobre sua crença são tão fortes que o próprio
engenheiro, Michael Donovan, começa a duvidar da existência da Terra, como se tudo

89
- Os livros? Eu já os li, todos eles! São muito engenhosos.
- Powell quebrou o silêncio.
- Se já leu os livros, o que há mais para dizer? Não pode negar suas evidências. Você não pode!
Havia um tom de piedade na voz de Cutie.
- Por favor, Powell, eu certamente não os considero como uma fonte válida de informações. Eles também
foram criados pelo Mestre, e foram feitos para vocês, não para mim.
- Como chegou a essa conclusão? – quis saber Powell.
- Porque eu sou um ser racional, capaz de deduzir a Verdade a partir das Causas. Vocês são inteligentes,
mas incapazes de raciocínio, precisam de uma explicação para a existência fornecida a vocês, e foi isso
que o Mestre fez. E ele deu-lhes essas ideias risíveis de mundos distantes e pessoas, sem dúvida para o
bem de vocês. Suas mentes são provavelmente muito toscas para a Verdade absoluta. Entretanto, como é
a vontade do Mestre que vocês acreditem em seus livros, eu não vou discutir mais com vocês.
Enquanto se virava e saía, ele disse num tom de bondade:
- Mas não fiquem deprimidos. No esquema do Mestre, há espaço para todos. Vocês, pobres humanos, têm
o seu lugar e, embora humilde, vocês serão recompensados se cumprirem bem sua função.
Ele partiu beatificado, como era adequado ao Profeta do Mestre, e os dois humanos evitaram olhar um
para o outro. (ASIMOV, 2004a, p. 100-101)


83


aquilo que conhecesse fosse apenas uma ilusão “Say, Greg, you don’t suppose he’s
90
right about all this, do you? He sounds so confident that I–” (ASIMOV, 2004b, p.
43). A crítica, aqui, é de como as religiões e crenças são capazes de levar algumas
pessoas à alienação, fazendo-as negar as evidências e seguir o que é imposto por ideias
fantasiosas. Cutie não acredita no que seus olhos veem (ele é capaz de ver o planeta
Terra pela janela da Estação Espacial), nem nos textos que explicam, de forma clara,
sua origem e a origem dos seres humanos. De acordo com as palavras de Powell, todos
nós podemos criar explicações para todas as teorias, desde que tenhamos os argumentos
certos “You can prove anything you want by coldly logical reason — if you pick the
proper postulates. We have ours and Cutie has his.”91 (ASIMOV, 2004b, p. 44, grifo
nosso) A afirmação de Powell fica clara se levarmos em conta a questão filosófica do
paralogismo, um tipo de raciocínio falaz – isto é, um raciocínio que aparenta ser
verdadeiro, mas não é: se temos uma premissa válida podemos, ainda assim, traçar um
pensamento lógico para chegar à uma conclusão. No entanto, essa conclusão será
também falsa, apesar de parecer racional. A dificuldade encontrada pelos engenheiros
em rebar as alegações do robô se dão, pois, em tese, a premissa falsa é muito mais
difícil de ser refutada do que um erro lógico comum.
Para que fique claro como isso se constrói no texto, observemos o exemplo de
uma falácia presente no conto:

1a Premissa de Cutie: Todo ser só pode ser criado por outro superior a ele.
2a Premissa de Cutie: Os robôs são superiores ao homem.
Conclusão de Cutie: Portanto, os robôs não podem ter sido criados pelo homem.

Entretanto, como os engenheiros Powell e Donovan sabem, a segunda premissa


é falsa, sendo, portanto, a conclusão logicamente incorreta. Eles não são capazes,
porém, de refutar essa premissa e, assim, não conseguem fazer com que o robô apreenda
a verdade.
Percebe-se fortemente no texto uma crítica ao absolutismo religioso, o qual leva
uma pessoa ou um grupo de pessoas acreditarem que são superiores a outras:


90
- Diga, Greg, você não acha que ele está certo sobre tudo isso, acha? Ele parece tão confiante que eu...
(ASIMOV, 2004a, p. 101)
91
- Você pode provar o que quiser através do frio raciocínio lógico, desde que escolha os postulados
adequados. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele. (ASIMOV, 2004a, p. 102)


84


Cutie had risen to his feet and his gleaming eyes passed from one
Earthman to the other. ‘It is so just the same and I don’t wonder that
you refuse to believe. You two are not long to stay here, I’m sure.
Powell himself said that at first only men served the Master; that there
followed robots for the routine work; and, finally, myself for the
executive labor. The facts are no doubt true, but the explanation
entirely illogical. Do you want the truth behind it all?’
‘Go ahead, Cutie. You’re amusing.’
‘The Master created humans first as the lowest type, most easily
formed. Gradually, he replaced them by robots, the next higher
step, and finally he created me to take the place of the last
humans. From now on, I serve the Master.’92 (ASIMOV, 1990c, p.
77)

Cutie diz que os homens foram criados primeiro, pois eram seres mais simples;
os robôs só foram criados mais tarde, pois eram mais complexos. Por último, Cutie foi
criado e ele seria o ser mais desenvolvido, feito para dominar homens e robôs. Mais
uma vez, existe um claro diálogo do trecho acima com a narrativa bíblica do Gênesis,
conforme podemos comparar a seguir:

And God said; Let the waters bring forth abundantly the moving
creature that hath life, and fowl that may fly above the earth in the
open firmament of heaven.
And God created great whales, and every living creature that moveth,
which the waters brought forth abundantly, after their kind, and every
winged fowl after his kind: and God saw that it was good.
[...]
And God said, Let the earth bring forth the living creature after his
kind, cattle, and creeping thing, and beast of the earth after his kind:
and it was so.
And God made the beast of the earth after his kind, and cattle after
their kind, and every thing that creepeth upon the earth after his kind:
and God saw that it was good.
And God said, Let us make man in our image, after our likeness: and
let them have dominion over the fish of the sea, and over the fowl of
the air, and over the cattle, and over all the earth, and over every
creeping thing that creepeth upon the earth.93 94

92
Cutie ficara de pé e seus olhos brilhantes passavam de um dos terráqueos para o outro.
- Não importa e não me admira que vocês se recusem a acreditar. Não ficarão mais aqui, tenho certeza. O
próprio Powell disse que no princípio só homens serviam ao Mestre; depois vieram robôs para o trabalho
de rotina e finalmente eu para o trabalho executivo. Os fatos sem dúvida são verdadeiros, mas a
explicação totalmente ilógica. Querem saber a verdade por trás de tudo?
- Vá em frente, Cutie. Você é divertido.
- O Mestre criou os humanos primeiro, como o tipo mais inferior, mais fácil de ser moldado.
Gradualmente ele os substituiu por robôs, o passo seguinte, mais elevado, e finalmente ele me criou, para
tomar o lugar dos últimos humanos. De agora em diante eu servirei apenas ao Mestre. (ASIMOV, 2004a,
p. 89)
93
Fonte: http://biblehub.com/kjv/genesis/1-20.htm


85


Segundo a narrativa bíblica, Deus cria primeiramente as aves, em seguida os
animais marinhos, os terrenos e, por último, o homem, determinando que este tenha
domínio sobre todos os outros, pois foram feitos segundo a imagem divina. Conforme
observamos em outros trechos, Cutie crê ter sido criado segundo a imagem do
conversor de energia, ao qual ele chama Mestre. A narrativa mostra, através das
alegações e das atitudes do robô, a forma como o homem se comporta diante de suas
crenças, de seus deuses e de objetos de idolatria. Porém, os homens, representados aqui
pelos cientistas, não são capazes de se reconhecerem no robô, e acabam julgando-o
como um lunático. Desse modo, o conto coloca aqui uma dificuldade humana de auto-
percepção.
Em vez de perceberem o processo pelo qual Cutie está passando, Powell e
Donavan começam a ficar irritados ao verem que todas as máquinas da estação espacial
agora ignoram suas ordens e seguem apenas aquilo que é ordenado pelo “Mestre”.

‘Stand up!’ he roared.


Slowly, the robot obeyed. His photoelectric eyes focused
reproachfully upon the Earthman.
‘There is no Master but the Master,’ he said, ‘and QT1 is his prophet.’
‘Huh?’ Donovan became aware of twenty pairs of mechanical eyes
fixed upon him and twenty
stiff timbered voices declaiming solemnly:
‘There is no Master but the Master and QT1 is his prophet!’
‘I’m afraid,” put in Cutie himself at this point, “that my friends obey a
higher one than you, now.”
‘The hell they do! You get out of here. I’ll settle with you later and
with these animated gadgets right now.’
Cutie shook his heavy head slowly. ‘I’m sorry, but you don’t
understand. These are robots and that means they are reasoning
beings. They recognize the Master, now that I have preached Truth to
them. All the robots do. They call me the prophet.” His head drooped.
‘I am unworthy but perhaps’

94
E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que
estavam sobre a expansão; e assim foi.
E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.
E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi.
E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.
[...]
E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra
conforme a sua espécie; e assim foi.
E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da
terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os
peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se
move sobre a terra. (Fonte: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/1)


86


Donovan located his breath and put it to use. ‘Is that so? Now, isn’t
that nice? Now, isn’t that just fine? Just let me tell you something, my
brass baboon. There isn’t any Master and there isn’t any prophet and
there isn’t any question as to who’s giving the orders. Understand?
”His voice shot to a roar. ‘Now, get out!’
‘I obey only the Master.’
‘Damn the Master!’ Donovan spat at the L tube. ‘That for the Master!
Do as I say!’95 (ASIMOV, 1990c, p. 79)

No trecho acima, todos os robôs já são classificados por Cutie como seres
racionais, isto é, eles são autônomos para decidirem a quem querer obedecer. Após ver
Donavan cuspindo no conversor de energia, Cutie, que até este momento no conto se
mostra sempre sereno e pacífico, demonstra emoção pela primeira vez: “ ‘Sacrilege,’ he
whispered voice metallic with emotion. Donovan felt the first sudden touch of fear as
Cutie approached. A robot could not feel anger but Cutie’s eyes were unreadable.”96
(ASIMOV, 1990c, p. 80). Verifica-se, assim, que o robô agora teria mais um passo em
direção à semelhança com o humano, pois ele agora demonstra sentimentos.
Então, após desrespeitar a crença dos robôs, Donavan é carregado escada acima
pelo robô e é colocado trancado com Powell em uma sala. A forma como o robô age
com o cientista lembra como são tratados crianças ou animais que, após fazerem algo
que os pais ou os donos desaprovam, recebem punição e são obrigados a obedecer, por
serem submissos. Assim, por mais que não aceitem e não concordem com a nova
postura dos seres artificiais naquele momento, Donavan já se encontra dominado por
eles.


95
- Fique de pé! – ele rugiu.
Lentamente o robô obedeceu. Seus olhos fotoelétricos focalizaram com censura o homem da Terra.
- Não existe outro Mestre além do Mestre, e QT-1 é o seu Profeta!
Nesse ponto Cutie falou:
- Temo que meus amigos obedeçam a alguém superior a você, agora.
- Pois sim! Dê o fora daqui. Eu cuidarei de você depois e acertarei agora com esses bonceos animados.
Cutie sacudiu a cabeça lentamente.
- Eu sinto muito, mas você não entende. Eles são robôs e isso significa que são seres racionais. Eles
reconhecem o Mestre agora que preguei a Verdade para eles. Todos os robôs a aceitam. Eles me chama
de Profeta – sua cabeça se abaixou. – Não sou digno desse título...mas talvez...
Donavan recobrou a fala e a colocou em funcionamento.
- É assim? Isso não é ótimo? Isso não é fantástico? Agora deixe-me dizer uma coisa, seu babuíno de
bronze. Não existe nenhum mestre e não existe nenhum Profeta e não há dúvidas sobre quem dá as ordens
aqui. Entendeu? – e sua voz rugiu. – Agora saia!
- Eu obedeço somente ao Mestre.
- Dane-se o Mestre! – Donavan cuspiu no tudo L. – Isso é para o Mestre! Faça o que eu digo! (ASIMOV,
2004a, pp. 92-93)
96
- Sacrilégio – ele sussurrou, a voz metálica cheia de emoção. E Donovan sentiu o primeiro toque de
medo enquanto Cutie se aproximava. Um robô não pode sentir raiva – mas os olhos de Cutie eram
insondáveis. (ASIMOV, 2004a, p. 93)


87


Trancados em uma sala e sem acesso aos comandos da estação espacial, os
engenheiros se veem diante de uma tempestade elétrica. Sem a intervenção dos
engenheiros, esse fenômeno iria superaquecer o planeta e levar os humanos à morte.
Quando a tempestade passa e ambos consideram tudo como perdido, descobrem
que Cutie foi capaz de controlar os mecanismos da estação e impedir os elétrons de
prejudicar o planeta; o robô segue as indicações do conversor de energia, programado,
anteriormente, para manter a Terra sempre intacta.
Desse modo, Powell conclui que não importa que a crença do robô seja
diferente, desde que ele continue sendo “controlado” pelo conversor de energia, ele
estará fazendo seu trabalho de modo correto e protegendo a Terra melhor do que
qualquer ser humano. Cutie, portanto, se mostrou apto a cumprir as funções a ele
determinadas, mesmo sem perceber.
Os engenheiros concluem, assim, que serão capazes de treinar outros robôs do
modelo QT, para aprenderem o “culto ao Mestre” e continuar a executar o trabalho
desejado:

‘It would be a simple job,’ he said. ‘You can bring in new QT


models one by one, equip them with an automatic shutoff switch to act
within the week, so as to allow them enough time to learn the... uh...
cult of the Master from the Prophet himself; then switch them to
another station and revitalize them.’97 (ASIMOV, 2004b, p. 46)

Nesse caso, os humanos conseguem manter-se como líderes dos robôs, pois se
utilizam da crença desses seres mecânicos para controlá-los. Mais uma vez, percebemos
uma crítica que o conto faz à forma de como os seres – artificiais ou humanos – podem
ser manipulados.
Ao longo da análise do conto “Reason”, verificamos que os humanos presentes
no conto, Gregory Powell e Michael Donovan sentem-se constantemente irritados e
perplexos pela “ousadia” dos questionamentos realizados por uma criatura construída
por eles próprios. Os engenheiros não são capazes de aceitar que o robô os consteste e
se ache superior a eles.
Porém, percebemos, ainda, que o robô apresenta sentimentos, qualidades e
atitudes essencialmente humanos. Os engenheiros veem um corpo metálico e frio, mas


97
- Será um trabalho simples. Você pode trazer os modelos QT um por um, equipando-os com um
dispositivo automático de desligamento programado para disparar em uma semana. Isso lhes dará tempo
de aprender... o culto do Mestre a partir do próprio Profeta; então serão levados para outra estação e
revitalizados. (ASIMOV, 2004a, p. 106)


88


com contornos antropomórficos; mais do que isso, esse robô, agora, dispõe também de
consciência e de uma mente semelhante à deles.
A fim de fazer uma última tentativa de convencer Cutie que ele, assim como
todos os outros robôs, foram criados por seres humanos, Powell e Donavan decidem
fazer uma demonstração para o robô de como as máquinas são montadas. Contudo,
mesmo presenciando a montagem das peças, Cutie alega que os cientistas podem
colocar as peças no lugar, mas elas não são criadas por eles, e sim pelo Mestre. Os
cientistas, então, insistem para que o robô leia os livros da biblioteca – provavelmente
livros científicos – para que ele possa entender do que estão falando:

‘If you were to read the books in the library, they could explain it so
that there could be no possible doubt.’
‘The books? I’ve read them all of them! They’re most ingenious.’
Powell broke in suddenly. ‘If you’ve read them, what else is there to
say? You can’t dispute their evidence. You just can’t!’
There was pity in Cutie’s voice. ‘Please, Powell, I certainly don’t
consider them a valid source of information. They, too, were created
by the Master and were meant for you, not for me.’
‘How do you make that out?’ demanded Powell.
‘Because I, a reasoning being, am capable of deducing truth from a
priori causes. You, being intelligent, but unreasoning, need an
explanation of existence supplied to you, and this the Master did. That
he supplied you with these laughable ideas of far off worlds and
people is, no doubt, for the best. Your minds are probably too coarsely
grained for absolute Truth. However, since it is the Master’s will that
you believe your books, I won’t argue with you any more.’
98
(ASIMOV, 1990c, p. 86-87)

Há, no fragmento acima, um evidente debate entre a ciência e a religião.


Enquanto os cientistas dizem que a verdade será revelada ao robô pelos livros, Cutie
mantém-se firme às suas “deduções racionais”. O robô chega a afirmar que os cientistas

98
- Se ler os livro na biblioteca, vai encontrar explicações que não deixarão dúvidas.
- Os livros? Eu já os li, todos eles! São muito engenhosos.
- Powell quebrou o silêncio.
- Se já leu os livros, oque há mais para dizer? Não pode negar suas evidências. Você não pode!
Havia um tom de piedade na voz de Cutie.
- Por favor, Powell, eu certamente não os considero como uma fonte válida de informações. Eles também
foram criados pelo Mestre, e foram feitos para vocês, não para mim.
- Como chegou a esta conclusão? – quis saber Powell.
- Porque eu sou um ser racional, capaz de deduzir a Verdade a partir a partir das Causas. Vocês são
inteligentes mas incapazes de raciocínio, precisam de uma explicação para a existência fornecida a vocês,
e foi isso que o Mestre fez. E ele deu-lhes essas ideias risíveis de mundos distantes e pessoas, sem dúvida
para o bem de vocês. Suas mentes são provavelmente muito toscas para a Verdade absoluta. Entretanto,
como é a vontade do Mestre que vocês acreditem em seus livros, eu não vou discutir mais com vocês.
(ASIMOV, 2004a, p. 101)


89


são inteligentes, mas irracionais e, por isso, não enxergam a Verdade absoluta. Sabe-se
que quando há a crença de que algo é uma verdade absoluta, não existe argumentação
que possa ser feita para contestá-la; observamos, mais uma vez, que Cutie se baseia na
filosofia de René Descartes. Para o filósofo, na obra Discurso do Método (1637),
devemos duvidar de tudo e somente encontrar a verdade através da razão. Aliás, todo o
raciocínio de Cutie pode ser explicado facilmente ao lermos o fragmento da obra de
Descartes, no qual ele discute a verdade e a existência de Deus:

[...] porém, por desejar então dedicar me apenas a pesquisa da


verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar
como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor
dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em
meu crédito que fosse completamente incontestável. Ao considerar
que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não
existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por
existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se
refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos,
rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como
qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por
demonstrações. [...]
Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que,
por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via
claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi
procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu
era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que
fosse realmente mais perfeita. No que se refere aos pensamentos que
eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito
do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão
difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me
parecesse torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem
verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em
que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os
formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu
possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo com a ideia de um
ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era
evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a ideia
de que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do
menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma
coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De maneira que
restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza
que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as
perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, ou seja, para dizê-lo
numa única palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que, admitido
que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser
que existia [...]; mas que devia necessariamente haver algum outro
mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo
o que possuía. Pois, se eu fosse sozinho e independente de qualquer
outro, de maneira que tivesse recebido, de mim próprio, todo esse
pouco mediante o qual participava do Ser perfeito, poderia receber de
mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser


90


assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso,
e pois, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para
conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era
suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava
em mim qualquer ideia, se era ou não perfeição possuí-las, e tinha
certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam.99

Assim como Descartes, conhecido como “o pai da razão”, através de um


pensamento racional Cutie admite que, devido a sua perfeição, só um ser maior, como
Deus, pode tê-lo concebido e dado a ele todos os seus atributos – e que não pode ser o
homem, a ele inferior.
Além de filósofo, Descartes foi físico e matemático. Foi responsável pela
criação da geometria analítica, após propor a fusão entre a álgebra e a geometria. Foi
também uma das figuras mais importantes a atuar na Revolução Científica (séc. XVI-
XVIII), período em que a ciência se separou da filosofia. Descartes demonstrou que,
através da matemática, pode-se utilizar a lógica dedutiva e, a partir de uma verdade,
encontrar outras verdades.
Como um bom exemplar de Ficção Científica, vemos em “Reason” uma mistura
entre ciência (no caso, a filosofia) e ficção, construindo-se uma obra literária. Não se
trata de um texto que discute a filosofia em si, mas seus conceitos estão espalhados por
toda a narrativa. Com isso, Isaac Asimov construiu uma narrativa que trata da própria
natureza humana, através da identificação do ser humano com outro ser semelhante a
ele.
Observaremos, no próximo conto a ser analisado, o último patamar evolutivo
dos robôs e poderemos, assim, apreender de que forma a humanidade reage quando um
ser artificial com feições humanas se faz presente na Terra.

2.2.3 “Evidence”

This was the one and only story I wrote while I spent eight months
and twenty-six days in the Army. At one point I persuaded a kindly


99
Fonte: DESCARTES, René. Discurso do método. Disponível em:
<http://www.psb40.org.br/bib/b39.pdf> Acesso: 24 de abril de 2015.


91


librarian to let me remain in the locked library over lunch so that I
could work on the story. 100 (ASIMOV, 1990a, p. 12)

Publicada na revista Astounding Science Fiction, em setembro de 1946, o conto


“Evidence” narra, pela primeira vez, uma história sobre um robô “humanoide”101. Esta é
a penúltima narrativa a aparecer na coletânea I, Robot, e a última a tratar de robôs, pois
sua sequência, “The Evitable Conflict”, foca em computadores102 (ou Machines, como
são chamados na história).
“Evidence” se passa em um contexto futurístico, em que os seres humanos
ocupam colônias em planetas de outros sistemas solares; porém, os fatos narrados – que
são, segundo a personagem-narradora, Susan Calvin, os mais importantes, ocorrem no
planeta Terra.
A robopsicóloga explica a seus interlocutores (o repórter da história e, também,
os leitores) sobre a última Grande Guerra Mundial, ocorrida há cinquenta anos, a qual
causou uma perda do sentimento de nacionalismo; por isso, os humanos decidiram
redividir a Terra em cinco regiões (e não mais nações), causando uma estabilidade na
economia e levando à Era de Ouro (Golden Age).
O conto nos remete, assim, à narrativa mitológica de Hesíodo, Os Trabalhos e os
Deuses, segundo a qual a humanidade teria passado por cinco diferentes eras: a Era de
Ouro, a Era de Prata, a Era de Bronze, a Era dos Heróis e a Era de Ferro. Na Era de
Ouro, os homens viviam no mais perfeito estado de paz, harmonia e tranquilidade:

Em Os trabalhos e os dias, por duas vezes Hesíodo se refere à vida


paradisíaca e à perfeita beatitude vividas por homens morais em outra
fase do Mundo. A primeira é a referência aos homens da raça de ouro,
‘que viveram sob o reinado de Crono, quando ele reinava no céu; e
como Deuses eles viviam com ânimo, sem tristezas, sem conhecer a
fadiga nem a miséria; nem a velhice vil lhes sobrevinha, mas sempre
iguais quanto aos braços e pernas eles se regozijavam na opulência,
distantes de todo o mal; morriam como subjugados pelo sono, e
tinham todos os bens’. (TORRANO, 1995, p. 48)


100
Essa foi a única história que eu escrevi enquanto passei oito meses e vinte e seis dias no Exército. Em
um determinado momento eu persuadi um gentil bibliotecário a me deixar ficar trancado na biblioteca
durante o almoço, para que eu pudesse trabalhar na história. (tradução nossa)
101
Um humanoide ou androide é um robô que possui todas as características de um ser humano.
102
Asimov (1994, p. 13) afirma que não há uma grande diferença entre robôs e computadores: “you
might consider a computer as an “immobile robot”. In any case, I clearly did not distinguish between the
two”. (“você pode considerar um computador como um “robô imóvel”. Em todo caso, eu claramente não
fiz distinção entre os dois.” Tradução nossa)


92


Após essa fase, mais elevada, a humanidade teria entrado em estado de
decadência e chegado à condição precária que se encontra nos dias de hoje. No texto
mitológico, o homem da Era de Ouro foi criado pelos deuses do Olímpo e, assim, se
assemelham a eles. No conto “Evidence”, Susan Calvin afirma que os responsáveis por
levarem o homem a essa nova Era de Ouro foram os robôs, isto é, os homens tornaram-
se superiores, graças às condições geradas pela sua própria criação.
O mundo como conhecemos foi, segundo a narrativa, destruído após a última
Grande Guerra e necessitava ser reerguido. Sendo assim, percebemos uma intenção do
autor em recriar o texto mítico de Hesíodo, que narra a origem da humanidade, porém,
sem a presença de um ser transcendente; essa “recriação” é realizada através da
tecnologia desenvolvida pelos homens – o robô. Poderíamos supor, então, que os
homens, nessa nova Era de Ouro, seriam semelhantes a esses seres mecânicos. O conto
coloca em evidência quais as reais semelhanças e diferenças entre o homem e os robôs.

2.2.3.1 Como diferenciar homens e robôs

No texto, temos quatro personagens principais: Francis Quinn, um político


interessado em assumir a prefeitura local; o Doutor Alfred Lanning, diretor emérito em
pesquisa na U. S. Robots; Susan Calvin, a robopsicóloga da U. S. Robots; e Stephen
Byerley, um procurador geral, também candidato à prefeitura local.
O conto inicia-se com a apresentação do personagem Frances Quinn,
descrevendo-o como um político da “nova escola”. Assim, o leitor é levado a pensar
que este é adepto de inovações em sua área de atuação. Porém, o narrador rapidamente
descontrói essa característica do personagem, dizendo:

That, of course, is a meaningless expression, as are all expressions of


the sort. Most of the “new schools” we have were duplicated in the
social life of ancient Greece, and perhaps, if we knew more about it,
in the social life of ancient Sumeria and in the lake dwellings of
prehistoric Switzerland as well.103

Assim, o texto instaura uma reflexão a respeito do conhecimento e do próprio


comportamento humano, mostrando que apesar de algo parecer novo, o que se faz, na

103
E esta, claro, é uma expressão sem sentido, como costumam ser todas as expressões desse tipo. A
maioria das “novas escolas” que temos já existiam na vida social da Grécia antiga e, talvez, se tivéssemos
mais informações a respeito, na vida social da antiga Suméria ou das vilas lacustres da Suíça pré-
histórica. (ASIMOV, 2004 a, p. 248)


93


verdade, é imitar algo que já foi feito há séculos; quando se trata da natureza humana,
somos completamente previsíveis e não originais. Dizer-se pertencente a uma “nova
escola”, por conseguinte, não implica estar à frente de seu tempo e nem ser diferente
dos outros.
Em seguida, a descrição de Francis Quinn é feita de forma bastante irônica, pois
o narrador nos diz que Quinn, aparentemente, não se importava com as eleições “[...] it
might be best to state hastily that Quinn neither ran for office nor canvassed for votes,
made no speeches and stuffed no ballot boxes. Any more than Napoleon pulled a trigger
at Austerlitz.”104 (ASIMOV, 1994, p. 135). As atitudes de Quinn são comparadas às de
Napoleão, durante a batalha de Austerlitz e, como se sabe, a vitória do imperador
francês nessa ocasião foi considerada como a mais estratégica de todos os tempos. Ao
longo da narrativa, veremos que, do mesmo modo, Francis Quinn se utilizará de todas
as artimanhas possíveis para tentar vencer seu opositor, Stephen Byerley.
A maneira persuasiva de tratar com seus interlocutores seu caráter duvidoso
começa a transparecer no diálogo que segue entre Quinn e o Dr. Alfred Lanning:

‘I assume you know Stephen Byerley, Dr. Lanning.’


‘I have heard of him. So have many people.’
‘Yes, so have I. Perhaps you intend voting for him at the next
election.’
‘I couldn’t say.’ [...] ‘I have not followed the political currents, so I’m
not aware that he is running for office.’
‘He may be our next mayor. Of course, he is only a lawyer now, but
great oaks-’
‘Yes,’ interrupted Lanning. ‘I have heard the phrase before. But I
wonder if we can get to the business at hand.’
‘We are at the business at hand, Dr. Lanning’ Quinn’s tone was very
gentle, ‘It is to my interest to keep Mr. Byerley a district attorney at
the very most, and it is to your interest to help me do so.’105 (ASIMIV,
1990c, p. 135-136)

104
[...] é melhor explicar apressadamente que Quinn não se candidatou, nem pediu votos, não fez
discursos, nem se importou com as urnas. Não mais do que Napoleão puxou um gatilho em Austerlitz.
(ASIMOV, 2004 a, p. 248)
105
- Eu presumo que conhece Stephen Byerley, doutor Lanning.
- Já ouvi falar nele. Como muita gente.
- Sim, eu também. Talvez o senhor tencione votar nele na próxima eleição.
- Não posso dizer. [...] – Eu não tenho seguido o noticiário político e nem sabia que ele estava se
candidatando.
- Ele pode ser nosso próximo prefeito. É claro que é apenas um promotor agora, mas os grandes
carvalhos...
- Sim – interrompeu Lanning -, eu já ouvi essa expressão antes. Mas gostaria que chegássemos ao assunto
deste encontro.
- Mas já estamos tratando do assunto deste encontro, doutor Lanning – o tom de voz de Quinn era muito
cortês. – É do meu interesse que o senhor Byerley continue sendo apenas um promotor distrital, no
máximo, e é do seu interesse me ajudar nisso. (ASIMOV, 2004a, p. 249)


94

Frances Quinn utiliza-se de um tom gentil e de ironias para, aos poucos, mostrar
seu verdadeiro objetivo: tentar convencer o ex-funcionário da U. S. Robots a encontrar
provas que possam impedir Byerlery de se candidatar ao cargo político, alegando que,
para a empresa de robótica, a candidatura seria prejudicial; a justificativa para isso,
segundo Quinn, é de que Stephen Byerley seria, na verdade, um robô humanoide.
Antes do início do conto, a narradora Susan Calvin nos explica que essa história
se passou no ano de 2032, quando o homem havia se tornado capaz de viajar pelo
hiperespaço através de saltos106 e, assim, criado colônias em outros planetas. A
robopsicóloga também relata brevemente sobre uma última guerra mundial que havia
levado o planeta a ser reorganizado por regiões, em vez de nações. Isso teria salvado o
mundo de uma grande crise econômica e levado o mundo a uma “Era de Ouro” na
economia. Segundo ela, toda essa revolução teria ocorrido em razão dos robôs, mais
precisamente um robô-homem: Stephen Byerley. Contudo, no período em que a história
se passa, conforme vemos no conto, os robôs já não podiam mais viver em meio aos
homens e eram permitidos apenas em planetas inabitados.
A acusação que Frances Quinn construirá contra Byerley é de que ele é um robô
e, sendo assim, não pode habitar a Terra e, muito menos, ser candidato ao cargo de
prefeito. As provas de que isso seria verdade baseiam-se em argumentos bastante
simples e resultantes de uma investigação realizada ao longo de um ano inteiro. Além
disso, Quinn demonstra que a prática de investigar seus oponentes e destruir suas
candidaturas faz parte de seus métodos políticos: ‘It is always useful, you see, to subject
the past life of reform politicians to rather inquisitive research. If you knew how often it
helped-’ He paused to smile humorlessly at the glowing tip of his cigarette.’107
(ASIMOV, 1990c, p. 137)
Como Frances Quinn pertence a uma nova escola, seus opositores fazem parte de
uma corrente reformada, mais conservadora, que prezam por um retorno a ideais
passados. Assim, pode-se pensar que Stephen Byerley seja adepto de uma era em que os


106
Em vários contos de Isaac Asimov, como “The Last Question”, o homem é descrito como capaz de
viajar pelo espaço, percorrendo infinitas distâncias através de saltos. Os saltos pelo hiperespaço, como
são chamados, é uma tecnologia criada para criar passagens em determinados pontos do universo que,
quando atravessadas, permitem chegar a outros pontos localizados a anos-luz dali.
107
É sempre útil, como pode ver, submeter a vida pregressa de políticos reformistas a uma investigação
minuciosa. Se soubesse com que frequência isso nos ajuda... – ele fez uma pausa para sorrir friamente
olhando a brasa do cigarro. (ASIMOV, 2004a , p. 250)


95


robôs podiam andar livremente entre os homens. Quinn, então, relata o que descobriu
com as investigações a respeito da vida de seu adversário:

[...] ‘Mr. Byerley’s past is unremarkable. A quiet life in a small town,


a college education, a wife who died young, an auto accident with a
slow recovery, law school, coming to the metropolis, an attorney [...]
But his present life. Ah, that is remarkable. Our district attorney never
eats! [...] He has never been seen to eat or drink. Never! Do you
understand the significance of the word? Not rarely, but never! [...] the
man is quite inhuman, Dr. Lanning.’108 (ASIMOV, 1990c, p. 137)

Vemos que os robôs se encontram tão evoluídos e tão próximos dos seres
humanos que as únicas marcas, em um primeiro momento, que nos diferenciariam deles
seriam as marcas orgânicas e biológicas. Diante disso, a possibilidade apresentada é a
de que Stephen Byerley seria o primeiro robô humanoide fabricado. Segundo o Dr.
Lanning, porém, a fabricação de um robô tão semelhante ao homem seria, apesar de
possível, inviável, uma vez que os seres humanos teriam um preconceito muito grande
com relação a ele.
Temos observado nos contos analisados um crescente desprezo do homem para
com os robôs. Quanto mais o ser mecânico se desenvolve e se aproxima do humano,
mais repugnante ele se torna e o medo de ter seu lugar ocupado por um deles cresce a
ponto de se duvidar da humanidade do outro. O preconceito que os homens
desenvolvem contra os robôs é uma questão bastante recorrente na obra de Isaac
Asimov. Neste trabalho, viu-se que esse ponto é tratado no conto “Robbie” e “Reason”.
Pensando-se em outros textos do autor, este é o tópico principal também de “The
Bicentenial Man”(1976), em que o robô, personagem principal, é atacado por um
maldoso grupo de garotos na rua, os quais ordenam que o robô se desmonte, uma vez
que ele é obrigado a obedecer à Primeira Lei da Robótica. Um outro exemplo é o
romance policial Caves of Steel (Caça aos robôs, 1954), no qual um embaixador que
luta contra as restrições anti-robôs na Terra é cruelmente assassinado.
Em “Evidence”, à medida que as investigações relativas à humanidade de
Stephen Byerley vão se desenvolvendo, vemos que a principal intenção de Frances
Quinn era a de criar um preconceito dos eleitores com relação ao outro candidato. Uma

108
- Mas o passado do senhor Byerley é impecável. Uma vida pacata em uma cidadezinha pequena,
cursou o ginásio, uma esposa que morreu jovem, um acidente de carro com uma lenta recuperação,
faculdade de direito, vinda para a metrópole como advogado. [...] – Mas a sua vida atual. Ah, esta é
notável. Nosso promotor público nunca come! [...] Ele nunca foi visto comendo ou bebendo. Nunca!
Entende o significado da palavra? Não é raramente, é nunca! [...] o homem é bem inumano, doutor
Lanning. (ASIMOV, 2004a, p. 250-251)


96


vez que suas acusações fossem levadas à mídia, a imagem de Byerley ficaria
permanentemente manchada.
O preconceito é um sentimento que leva à discriminação de algo ou de outro,
causado pelo medo humano, por uma necessidade de auto conservação e pelo
reconhecimento da própria fragilidade. O teórico José Leon Crochik, na obra
Preconceito, indivíduo e cultura, discute o preconceito segundo conceitos elaborados
por Sigmund Freud e Emmanuel Kant:

Esses dois autores, tão distantes no tempo e nas teorias que


construíram apontam, contudo, para os conflitos existentes na própria
natureza humana, como aquele ‘algo a mais’ que a cultura, a razão, o
conceito e o preconceito tentam responder [...]
O preconceito pode ser interpretado, em Kant, como o indutor da
preguiça ou do medo do homem de sair de seu estado de menoridade,
em Freud, como a vitória do desejo sobre a razão. [...] É produto
daquele conflito, entre razão e desejos, ou entre cultura e desejos, e tal
como o sintoma descrito pela psicanálise, é um compromisso entre
ambos. Ele apresenta a coerência dos raciocínios lógicos e os anseios
dos desejos que não podem sequer ser expressos culturalmente. (p. 46,
2006)

No entanto, se o homem não pode expressar seus piores preconceitos para com o
próximo, devido à moral, à ética e às leis sociais, nas relações homem-máquina não há
qualquer fator limitante que cause inibição a esse tipo de comportamento. O conto leva
a uma reflexão a respeito da natureza humana quando coloca o homem diante de um
adversário que, aparentemente, é igual a ele, mas, por ser um robô, não mereceria ser
tratado com o mesmo respeito e valor.
Além disso, uma outra questão é levantada quando nos deparamos com o
questionamento levantado por Frances Quinn a respeito da identidade humana de
Byerley: o que faz do homem humano? A narrativa mostra que as feições, emoções e
atitudes de uma pessoa não são suficientes para confirmar sua natureza:

The face of Stephen Byerley is not an easy one to describe. He was


forty by birth certificate and forty by appearance – but it was a
healthy, well-nourished good-natured appearance of forty; one that
automatically drew the teeth of the bromide about ‘looking one’s age.’


97


This was particularly true when he laughed, and he was laughing now.
It came loudly and continuously, died away for a bit, then began again
– 109 (ASIMOV, 1990c, p. 139)

Diferentemente dos sons emitidos pelo robô Cutie ao cantar, rir e caminhar, em
“Reason”, não se vê em Byerley nada que remeta a uma estrutura mecânica ou metálica.
Além disso, seu nome não é mais um mero apelido, ele possui nome e sobrenome, além
de ter um cargo público, de promotor. Mais do que isso, ele possui uma biografia e não
mais uma memória em branco antes de ser colocado em funcionamento.
Segundo a ciência, o que nos diferencia dos animais são características como:
nossa postura ereta, a capacidade da fala, a habilidade de manipular o fogo, o uso de
vestimentas, nossa capacidade de utilizar as mãos para manipular objetos e ferramentas,
nossa capacidade cognitiva extraordinária, as emoções que sentimos, a experiência de
uma infância longa e, por último, o fato de nos reproduzirmos e vivermos um bom
período após isso.110 No caso dos robôs, eles não podem se desenvolver biologicamente
(nascer, crescer e se reproduzir) e, portanto, apenas isso os diferenciaria de nós.
Seria simples, então, provar que Stephen Byerley não se trata de um ser humano,
caso ele não tivesse provas de ter passado pela infância; porém, a teoria de Francis
Quinn é a de que o verdadeiro Byerley teria criado um robô para substituí-lo após ter
sofrido um acidente que lhe deixou paraplégico. Desse modo, essa possibilidade torna-
se inválida.
Então, a robopsicóloga Susan Calvin, é convocada para realizar um teste no
promotor e avaliar sua humanidade:

Again Byerley turned to the woman, who still regarded him


expressionlessly. ‘Pardon me. I’ve caught your name correctly,
haven’t I? Dr. Susan Calvin?’
‘Yes, Mr. Byerley.’
‘You are the U. S. Robots’ psychologist, aren’t you?’
‘Robopsychologist, please.’
‘Oh, are robots so different from men, mentally?’


109
O rosto de Stephen Byerley não era fácil de descrever. Ele tinha quarenta anos pela certidão de
nascimento e aparentava quarenta anos – mas era uma aparência saudável e bem nutrida; uma que
lembrava o velho clichê sobre alguém aparentar a idade que tem. (ASIMOV, 2004a, p. 253)
E isso era particularmente verdadeiro quando ele ria. E Byerley estava rindo agora. Uma risada alta e
contínua, que diminuiu um pouco e depois começou de novo...
110
Fonte: Revista LiveScience <http://www.livescience.com/15689-evolution-human-special-
species.html> Acesso em 10 de abril de 2014.


98


‘Worlds different.’ She allowed herself a frosty smile, ‘Robots are
essentially decent.’111 (ASIMOV, 1990c, p. 142)

Observamos mais uma vez na obra de Asimov o olhar otimista sobre os robôs;
pressupõe-se que eles sejam melhores do que os humanos que os criaram, uma vez que
agem de forma mais correta e possuem uma índole aprimorada. Mas por que os robôs
agem de forma tão correta? A explicação dada pelo conto é de que eles não podem agir
de outra forma, pois são regidos pelas Leis da Robótica. Os Engenheiros Robóticos
acreditam na infalibilidade dessas Leis criadas por eles e creem que todas as
observações e avaliações baseadas nelas sejam, portanto, irrefutáveis.
Os testes quanto à natureza de Stephen Byerley seguem-se da seguinte forma:
Susan Calvin oferece a ele uma maçã; caso ele a coma, ficaria provado que ele é um
humano, uma vez que robôs não podem se alimentar. Byerley consegue ser aprovado
nesse teste, pois ingere a maçã normalmente, o que, todavia, não convence os
engenheiros:

‘I was curious to see if you would eat it, but, of course, in the present
case, it proves nothing.’
Byerley grinned, ‘It doesn’t?’
‘Of course not. It is obvious, Dr. Lanning, that if this man were a
humanoid robot, he would be a perfect imitation. He is almost too
human to be credible. After all, we have been seeing and observing
human beings all our lives; it would be impossible to palm something
merely nearly right off on us. It would have to be all right. Observe
the texture of the skin, the quality of the irises, the bone formation of
the hand. If he’s a robot, I wish U. S. Robots had made him, because
he’s a good job. Do you suppose then, that anyone capable of paying
attention to such niceties would neglect a few gadgets to take care of
such things as eating, sleeping, elimination? For emergency use only,
perhaps; as, for instance, to prevent such situations as are arising here.
So meal won’t really prove anything.’112 (ASIMOV, 1990c, p. 143)

111
Novamente Byerley virou-se para a mulher que ainda o observava sem emoção.
- Perdoe-me, será que ouvi seu nome corretamente? Doutora Susan Calvin?
- Sim, senhor Byerley.
- É a psicóloga da U. S. Robôs, não é?
- Robopsicóloga, por favor.
- Oh, são os robôs tão diferentes dos homens, mentalmente?
- Mundos de diferença. – Ela permitiu-se um sorriso gélido. – Os robôs são essencialmente decentes.
(ASIMOV, 2004a, p. 257)
112
- Eu estava curiosa para ver se a comeria, no caso atual, mas ela não prova nada.
Byerley sorriu.
- Não mesmo?
- É claro que não. É óbvio, doutor Lanning, que se este homem for um robô humanoide, ele será uma
imitação perfeita. Ele é quase humano demais para ser verdade. Afinal, estamos vendo e observando seres
humanos durante toda a nossa vida; seria impossível nos enganar com uma reprodução quase perfeita. Ela
teria que ser inteiramente perfeita. Observe a textura da pele, a qualidade da íris, a estrutura óssea da


99

Mais uma vez percebe-se que apenas o aspecto orgânico não serve característica
identitária para o homem. Por ter desenvolvido uma criatura tão semelhante a si, o
homem teria, agora, de encontrar outras formas de se definir e de se distinguir de
qualquer outra criatura. Aos poucos, o conto evidencia essa busca pela essência do que
é ser humano.
Após passar nesse teste, Byerley dirige-se a sua casa, onde se encontra com um
sujeito em uma cadeira de rodas, chamado John. O promotor se comporta de forma
submissa a John, carregando-o no colo até o jardim. Ao acompanharmos o diálogo entre
Byerley e o homem, temos, pela primeira vez, uma pista de que as suspeitas de Francis
Quinn estariam corretas:

‘Quinn’s campaign will be based on the fact that he claims I’m a


robot’
John’s eyes opened wide, ‘How do you know? It’s impossible. I won’t
believe it.’
‘Oh, come, I tell you it’s so. He had one of the big-shot scientists of
U. S. Robots and Mechanical Men Corporations over at the office to
argue with me.’
Slowly John’s hands tore at the grass, ‘I see. I see.’113 (ASIMOV,
1990c, p. 145)

Conforme vemos, John não considera suas suspeitas como algo absurdo. Em
seguida, Francis Quinn procura os engenheiros para que novos testes sejam realizados
em Byerley e, mais uma vez, propõem-se testes biológicos, a fim de se verificar sua
estrutura corporal. Susan Calvin sugere a utilização de um aparelho de raio-x para um
teste físico. Todavia, a robopsicóloga diz, ainda, que poderiam ser realizados testes
comportamentais, baseados nas Leis da Robótica. É interessante observar no diálogo
entre Calvin e Quinn que, segundo ela, talvez as Leis nada possam provar, uma vez que
um homem correto também deveria obedecê-las:

mão. Se ele é um robô, eu queria que a U. S. Robôs o tivesse feito, porque foi um bom trabalho. E não
acredita que alguém capaz de dar atenção a tais detalhes não deixaria de acrescentar algumas engenhocas
para cuidar de tais coisas como comer, dormir, e eliminar dejetos? Talvez apenas para usar numa
emergência, como por exemplo, evitar situações como a que temos aqui. Assim, uma refeição não
provaria realmente nada. (ASIMOV, 2004a, p. 258)
113
- A campanha de Quinn vai ser baseada no fato de que ele afirma que eu sou um robô.
Os olhos de John arregalaram-se.
- Como você sabe? É impossível. Eu não acredito.
- Ora, vamos, eu lhe falei. Ele mandou um dos chefões da Corporação Robôs e Homens Mecânicos dos
Estados Unidos ao escritório para discutir comigo.
Lentamente as mãos de John arrancaram algumas folhas de grama. - Sei, sei. (ASIMOV, 2004a, p. 261)


100

‘Because, if you stop to think of it, the three Rules of Robotics are the
essential guiding principles of a good many of the world’s ethical
systems. Of course, every human being is supposed to defer to proper
authority; to listen to his doctor, his boss, his government, his
psychiatrist, his fellowman; to obey laws, to follow rules, to conform
to custom – even when they interfere with his comfort or his safety.
That’s Rule Two to a robot. Also, every ‘good’ human being is
supposed to love others as himself, protect his fellow man, risk his life
to save another. That’s Rule One to a robot. To put it simply – if
Byerley follows all the Rules of Robotics, he may be a robot, and may
simply be a very good man.’114 (ASIMOV, 1990c, p. 146)

Assim, vemos que Asimov discute, aqui, outra questão que podemos enraizar na
filosofia: o que leva o homem a agir de forma correta? Apesar de os homens estarem
sujeitos a leis, conforme alega Susan Calvin, apenas os homens realmente muito bons
são capazes de segui-las. Por isso, Asimov considera que os robôs são superiores aos
homens: apesar de serem criados pelos humanos, eles são obrigados, por sua
programação, a seguirem as leis, sendo incapazes de praticar atos maldosos ou de
agirem por vingança. Assim, observaremos que, apesar de todas as tentativas de Quinn
em prejudicar Byerley, este apenas tenta se defender e não pretende atacá-lo de volta.
Não existe nenhuma lei humana que obrigue o homem a ser bom, a ter
compaixão por seu próximo; as boas ações são regidas pela essência de alguns seres
humanos. Agimos conforme aquilo que sabemos ser adequado aos olhos da sociedade,
de acordo com certas regras de convivência que aprendemos desde a infância. A escolha
por seguir ou não estas regras, segundo Susan Calvin, é o que determina o quão benigno
um homem é. Podemos, portanto, escolher se queremos ser bons ou maus; o robô, por
outro lado, não tem escolha: ele é programado para ser bom.
O apego às regras e às leis fica ainda mais claro, considerando-se que Stephen
Byerley é um advogado e promotor – portanto, um homem das leis - o que evidencia
sua dedicação àquilo que é regido por uma força maior, nesse caso, o Estado. Na
passagem em que Quinn envia oficiais à residência de Byerley, para, por meio de uma

114
Porque se parar para pensar nelas, as três Leis da Robótica são os princípios essenciais que guiam
muitos dos sistemas éticos do mundo. É claro que todo ser humano deve ter um instinto de
autopreservação. Esta é a lei número três para um robô. Igualmente, todo “bom” ser humano, com uma
consciência social e um senso de responsabilidade, vai seguir a autoridade adequada; ele ouvirá o que diz
seu médico, seu chefe, seu governo, seu psicólogo, seu companheiro, ele obedecerá às leis e seguirá as
regras, seguindo os costumes, mesmo quando isso interferir no seu conforto ou na sua segurança. Esta é a
lei número dois para um robô. E do mesmo, todo “bom” ser humano deve amar aos outros como a si
mesmo, protegendo seus companheiros, arriscando sua vida para salvar as vidas de outros. Esta é a lei
número um para um robô. Resumindo: se Byerley seguir todas as leis da robótica, ele poderá ser um robô,
mas também poderá ser apenas um homem muito bom. (ASIMOV, 2004a, p. 263)


101


procuração, buscar quaisquer provas de que este último seja, de fato, um robô, Byerley
se defende apenas pelo uso de seus direitos legítimos:

‘This, Mr. Byerley, is a court order authorizing me to search these


premises for the presence of illegal...uh...mechanical men or robots of
any description.’
Byerley half rose, and took the paper. He glanced at it indifferently,
and smiled as he handed it back. ‘All in order. Go ahead. Do your job
[...]’115 (ASIMOV, 1990c, p. 150-151)

O policial Harroway é autorizado a revistar sua casa, uma vez que está de posse
de uma autorização judicial. Por isso, sua entrada é tranquilamente autorizada pelo
proprietário. No entanto, quando se sugere que o próprio Byerley seja revistado, com o
uso de uma máquina de Raio-x, este, mais uma vez, faz uso da lei em seu favor:

‘Then I’m to have my X-ray photograph taken, hey? You have the
authority? [...] I read here as the description of what you are to search;
I quote: ‘the dwelling place belonging to Stephen Allen Byerley,
located at 355 Willow Grove, Evanstron, together with any garage,
storehouse or other structures or buildings thereto appertaining,
together with all grounds thereto appertaining’ [...] But, my good man,
it doesn’t say anything about searching my interior. I am not part of
the premises. You may search my clothes if you think I’ve got a robot
hidden in my pocket.’116 (ASIMOV, 1990c, p. 151)

É bastante significativo que Byerley fale sobre o fato de que seu interior não
pode ser investigado. Há muito tempo existe um grande medo da perda da privacidade,
de termos nossos espaços particulares invadidos e observados por outros. Desde o
advento da psicanálise, com Freud (1865-1939), verificou-se que muito daquilo que está
no inconsciente humano pode ser revelado, através do diálogo entre paciente e
psicanalista. O autor do texto não deixa dúvidas de que em I, Robot os robôs possuem
uma mente, um pensamento, que podem ser explorados e estudados: tanto que a história


115
- Esta, senhor Byerley, é uma ordem da corte autorizando a busca nesse domicílio à procura da
presença ilegal de... ah... homens mecânicos ou robôs de qualquer tipo.
Byerley ergueu-se e pegou e pegou a folha de papel. Ele a examinou de modo indiferente e sorriu
enquanto a devolvia.
- Tudo certo. Vá em frente. Faça o seu trabalho [...] (ASIMOV, 2004a, p. 269)
116
- Então vão fazer uma foto minha com raio X, hã? Você tem autorização para isso? [...]
- Eu leio aqui uma descrição do que deve procurar. Citando: “A moradia pertencente a Stephen Byerley,
localizada no número 355 da Willow Grove, Evanstron, junto com qualquer garagem, depósito ou outras
estruturas e prédios pertencentes ao domicílio, junto com todo o terreno pertencente” [...] Isso está em
ordem, mas, meu bom homem, aqui não diz nada sobre pesquisar o meu interior. Eu não sou parte da
propriedade. Pode revistar minhas roupas se quiser, se achar que eu tenho um robô escondido no meu
bolso. (ASIMOV, 2004a, p. 270)


102


nos é narrada por uma robopsicologa. Mas o que uma busca pelo interior de um robô
poderia revelar? Provavelmente carregaria muitos traços daqueles que foram
responsáveis pela criação dessas máquinas, isto é, do próprio homem. Aqui, portanto,
mais uma vez fica evidente o desejo por encontrar o próprio significado do homem, o
sentido de ser humano.
Além de se manter firme à obediência das Leis – tanto às robóticas, quanto às
dos homens – Byerley ainda deixa claro a indiferença de Quinn com relação ao
cumprimento das mesmas:

[...] ‘It’s rather symbolic of our two campaigns, isn’t it? You have
little concern with the rights of the individual citizen. I have great
concern. I will not submit to X-ray analysis, because I wish to
maintain my Rights on principle. Just as I’ll maintain the rights of
others when elected.’ 117 (ASIMOV, 1990c, p. 153)

Como podemos observar no fragmento acima, o robô faz uma distinção entre o
próprio caráter e o de Quinn, mostrando, nesse momento, que independentemente de
sua natureza – seja ele homem ou máquina – ele seria um governante melhor, pois
respeitava aquilo que, para o Estado e seu povo, é o mais importante: os Direitos do
cidadão. Vemos, portanto, uma busca da valorização individual, da manutenção da
integridade do sujeito, diante da corrupção do caráter do outro. Asimov vai construindo
a identidade dos dois políticos sempre em comparação uma com a outra, mostrando os
defeitos e as virtudes de ambos.
Assim, em meio a essa disputa, a narrativa nos diz que o povo, induzido pelas
ideias de Quinn, começa a se sentir incomodado e desconfiado de Beyrley. Junto de
John, portanto, este decide realizar um pronunciamento em rede nacional, prestando
esclarecimento a respeito do assunto em questão, apesar da preocupação com ataques
daqueles que são chamados de Fundamentalistas. Os Fundamentalistas, na obra de
Asimov, fazem parte de um grupo de pessoas que não aceitam a fabricação e o uso de
quaisquer tipos de robôs, seja para qualquer finalidade. Eles alegam que os seres
artificiais são perigosos e, por sua causa, essas máquinas são banidas da Terra. Percebe-
se que, para a criação desse grupo, Asimov se inspirou no movimento regido pela
comunidade protestante, no início do século XX. Os Fundamentalistas cristãos

117
- [...] É um tanto simbólico de nossas duas campanhas, não é? Você dá pouca importância aos direitos
do indivíduo. Eu me preocupo muito. Não vou me submeter a um exame de raios X porque desejo
salvaguardar meus direitos. Assim como protegerei os direitos dos outros se for eleito. (ASIMOV, 2004a,
p. 272)


103


acreditam que suas verdades são absolutas e resistentes a qualquer tipo de mudança que
não esteja fundamentada em suas próprias crenças. O termo foi expandido e é, hoje,
atribuído a qualquer grupo que se mostre extremista com relação a suas opiniões ou
dogmas. Assim como foi visto em “Reason”, Asimov coloca em questão o extremismo
religioso e mostra como as pessoas pertencentes a estes grupos são cegas a certas
verdades e podem ser facilmente enganadas.
Conforme vimos no início deste capítulo, a sociedade do início do século
apresentava temor à tecnologia e, sempre que se escreviam histórias de robôs, estes se
tornavam perigosos e ameaçadores. Asimov não aceitava essa premissa e propõe, em
sua literatura, uma visão absolutamente contrária; desse modo, pode-se perceber que
essa resistência ao desenvolvimento tecnológico tem representação crítica na obra do
autor, por meio da figura dos fundamentalistas.
No desfecho do conto, Stephen Byerley aparece diante de uma audiência revolta,
reunida pelos fundamentalistas, visando fazer um pronunciamento a respeito de sua
natureza. Em meio ao alvoroço e gritos proferidos pela multidão, o discurso de Byerley
é inaudível e malsucedido, em um primeiro momento, até que um homem tenta se
aproximar para fazer uma pergunta e o candidato pede para que ele suba até o balcão:

‘Have you a question?’


The thin man stared, and said in a cracked voice, ‘Hit me!’
With sudden energy, he thrust out his chin at an angle.
‘Hit me! You say you’re not a robot. Prove it. You can’t hit a human,
you monster.’
There was a queer, flat, dead silence. Byerley’s voice punctured it. ‘I
have no reason to hit you.’
The thin man was laughing wildly. ‘You can’t hit me. You wont’t hit
me. You’re not a human. You’re a monster, a make-believe man.’
And Stephen Byerley, tight-lipped, in the face of thousands who
watched in person and the millions who watched by screen, Drew
back his fist and caught the man crackingly upon the chin.’ 118
(ASIMOV, 1990c, p. 158)


118
- O senhor tem uma pergunta?
O homem magro olhou para ele e falou com uma voz estridente:
- Me acerte!
Com uma energia súbita ele ofereceu o queixo.
- Me bata! Você diz que não é um robô. Prove. Você não pode bater num humano, seu monstro.
Houve um silêncio estranho, abafado, mortífero. A voz de Byerley foi o único som ouvido.
- Eu não tenho motivo para bater em você.
O homem magro riu de um modo insano.
- Você não pode me bater. Você não vai me bater. Você não é humano. Você é um monstro, um homem
de mentira.


104

Assim, a impressão que o leitor tem nesse momento, é de que Byerley, que se
mostrou, ao longo de todo o conto, incapaz de quebrar qualquer lei e, até mesmo, de
simplesmente perder a paciência, finalmente foi tomado de ira e atingiu aquele que o
acusava injustamente. A narrativa está, aparentemente, resolvida e Francis Quinn acaba
sendo duplamente derrotado: perde sua credibilidade e, por isso, é vencido nas eleições.
Percebe-se, que para provar sua humanidade, Byerley precisa ter um ato irracional,
partindo para a agressividade. É como se ele tivesse de colocar para fora seus instintos
mais primitivos para mostrar que não é um ser de ações programadas. Aos olhos dos
humanos, um robô é um homem de mentira, de faz de contas, um monstro. Porém, vê-se
certa ironia no fato de que para não ser um monstro um homem seja obrigado a bater em
outro, sem nenhum motivo aparente. Os homens não conseguem a autoafirmação por
suas virtudes, somente por seus defeitos.
O desejo do narrador, porém, é que o leitor continue se questionando sobre a real
identidade de Byerley. Em uma última conversa entre Susan Calvin e ele, o homem
alega que sempre se interessou pelas Leis da Robótica e, assim, a doutora conclui que o
verdadeiro Stephen Byerley é o homem na cadeira de rodas que, obrigado a abdicar de
seu trabalho, construiu um robô, idêntico a ele mesmo, para ocupar seu lugar no mundo
político. Assim, a robopsicóloga explica, ao próprio Byerley e, consequentemente, ao
leitor, o que de fato ocorreu durante a agressão praticada no discurso:

‘I mean there is one time when a robot may strike a human being
without breaking the First Law. Just one time.’
‘And when is that?’
Dr. Calvin was at the door. She said quietly, ‘When the human to be
struck is merely another robot’
She smiled broadly, her thin face glowing. ‘Good-by, Mr. Byerley. I
hope to vote for you five years from now – for co-ordinator.’
Stephen Byerley chuckled. ‘I must reply that that is a somewhat
farfetched idea.’119 (ASIMOV, 1990c, p. 160)

E Stephen Byerley, com os lábios comprimidos, diante de milhares que o observavam em pessoa e
milhões que viam tudo pelas telas de vídeo, fechou a mão num punho e acertou um soco fulminante sob o
queixo do sujeito. (ASIMOV, 2004a, p. 278)
119
- Eu quero dizer que existe apenas uma ocasião em que um robô pode golpear um ser humano sem
violar a Primeira Lei. Só em uma ocasião.
- E quando é isso?
A doutora Calvin estava na porta. Ela disse suavemente:
- Quando o humano golpeado é meramente outro robô. Ela sorriu francamente, o rosto radiante. – Adeus,
senhor Byerley. Espero votar no senhor daqui a cinco anos, para coordenador.
Stephen Byerley sorriu.
- Eu devo dizer que esta é uma ideia extravagante. (ASIMOV, 2004a, p. 281)


105

Apesar de o autor não deixar claro no texto em nenhum momento, presume-se


que a teoria da Dr. Calvin esteja correta. Isso seria revelado pelo autor na introdução da
coletânea Robot Visions, quando ele alega que Stephen Byerley serviu de inspiração
para que ele escrevesse outras histórias sobre robôs humanoides, como o romance
Caves of Steel (1954).
Verificamos, assim, que além de o personagem robô possuir propriedades
corpóreas idênticas aos seres humanos, ele foi criado para substituir um homem
verdadeiro, em todas as suas funções. Uma vez debilitado e transfigurado, o real
Stephen Byerley criou uma cópia de si, um duplo, que pudesse impedir seu próprio
desaparecimento.
A respeito da figura do duplo, o teórico Otto Rank (1939) alega que o tema é
recorrente na literatura, no folclore e na mitologia, representando a luta do indivíduo
com a sua própria Personalidade. A criação do duplo seria uma tentativa de evitar a
própria morte e superar as fraquezas humanas, as limitações.
Segundo Françoise Dolto (2013), todos temos um duplo interior, inconsciente. O
robô é esse duplo estruturado e materializado; o duplo, sendo nossa própria imagem,
permite que nos reconheçamos em algo exterior, é um substrato de nossa identidade.
Podemos inferir, portanto, que um robô humanizado é uma forma de vermos a
nós mesmos, como em um espelho. Porém, ao contrário do espelho, este ser mecânico
capaz de ter vontades e sentimentos próprios, torna-se autônomo e também uma ameaça
à humanidade: o medo de sermos substituídos e de perdermos nosso espaço está
relacionado com o temor da perda da própria identidade.
O processo que observamos nos três contos analisados foi o da evolução do
robô: a princípio um ser artificial criado pelo homem, cujas ações foram programadas
para serem sempre previsíveis, levando-se em conta as Leis da Robótica. Essa
previsibilidade, contudo, foi sendo perdida à medida que os próprios homens foram
aperfeiçoando os mecanismos e, principalmente, o “cérebro” das criaturas artificiais.
Vemos em “Robbie” um robô com características e predileções infantis, capaz
de se afeiçoar a um ser humano com quem convive. O robô não possui capacidade de
fala, assim como o homem em seus primeiros meses de vida; do mesmo modo que um
bebê, Robbie é capaz de comunicar através de expressões corpóreas e se fazer entendido
pela menina, Glória.


106


Em “Reason”, a semelhança da máquina com o ser humano assume um nível
mais elevado; agora, o robô Cutie não apenas possui a habilidade de falar e de se
comunicar, como também se tornou um ser racional, ao questionar sua essência. Sabe-se
que, de acordo com a biologia, o homem pertence à espécie dos homo sapiens; isso
significa que nos distinguimos das outras espécies por possuirmos características
específicas, como linguagem, raciocínio abstrato, racionalidade e autoconsciência.
Como poderíamos distinguir, portanto, um ser humano de um ser artificial que adquiriu
todas estas mesmas qualidades? Além disso, como reagiríamos se este ser tivesse, ainda,
uma estrutura física mais resistente e durável que a nossa?
Em “Evidence”, chegamos a um patamar ainda maior entre a semelhança entre
os homens e os robôs, sendo impossível, através da simples observação de seus aspectos
físicos e comportamentais, distinguir entre um e outro. Vemos, assim, o preconceito
revelado pelo homem diante dessa cópia quase perfeita de si e, também, a criação de
grupos que exigem o fim das máquinas.
Através da reatualização de histórias clássicas de nossa cultura, como os contos
de fadas, da reinterpretação de mitos e do emprego de teorias filosóficas, Asimov se
utilizou de suas histórias de robôs, de homens mecânicos, para, na verdade, falar sobre a
natureza humana, ao mostrar o “nascimento” dessas máquinas, sua infância, seu ganho
de consciência e sua vida adulta, na qual, diante de uma sociedade que discrimina o
diferente e o ameaça, se vê obrigado a igualar-se para provar sua normalidade.
Pode-se dizer que o robô passou por um processo de formação de identidade, de
constituição como sujeito, apoiado nas relações com seres humanos, com outros robôs e
com o meio social.


107

3. O CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA

Na obra Projecting Tomorrow: science fiction and popular cinema, os autores


apontam, de forma muito pertinente, o fato de que tanto a ficção científica, como
literatura, quanto o cinema são frutos da revolução tecnológica ocorrida no final do
período vitoriano. Sendo assim, ambas as formas de arte têm caminhado juntas:

The cinematograph was the ‘last machine’ of the Victorian age,


following the telephone (1876), internal combustion engine (1876),
cathode ray tube (1878), phonograph (1878) and wireless telegraphy
(1894). Science fiction also reflected the interest in technology and
modernity.120 (CHAPMAN; CULL, p. 1, 2013)

É importante lembrarmos, também, que a maior parte dos filmes de Ficção


Científica, senão todos eles, dependem dos avanços tecnológicos para que se criem
efeitos especiais que possam mostrar, por exemplo, viagens interplanetárias, ataques
alienígenas, máquinas que andam e falam, etc.
O primeiro filme a tratar de viagens interespaciais e de homens extraterrestres,
produzido em 1902, foi baseado em duas obras de ficção: De la terre à la Lune (1865),
de Júlio Verne, e First Men in the Moon (1901), de H. G. Wells. A película em questão
levou o nome de Le Voyage dans la Lune e foi escrita e dirigida pelo francês George
Méliès. Muitos consideram que este tenha sido o primeiro filme de ficção científica
produzido em toda a história. Sendo assim, desde os primórdios do cinema de ficção
científica, este já se baseava em textos literários para criar seus roteiros e inspirava-se
nas ideias futurísticas desse tipo de literatura para compor suas histórias.

George Méliès, um dos precursores do cinema mundial, também é conhecido


como o primeiro cineasta do fantástico. O ilusionista utilizava efeitos especiais para
produzir cenas de pessoas sem cabeça, notas musicais com cabeças flutuantes e seres do
mundo sobrenatural, como sereias e extraterrestres.


120
O cinematógrafo foi a ‘última máquina’ da era Vitoriana, seguida pelo telefone (1876), o motor de
combustão interna (1876), o tudo de raios catódicos (1878), o fonógrafo (1878) e o telégrafo sem fio
(1894). A Ficção Científica também refletiu o interesse na tecnologia e na modernidade. (tradução nossa)


108

Figura 11: Cena do filme de George Méliès 1


Fonte: <http://filmabinitio.blogspot.com.br/2010/05/films-first-cinemagician-magic-
of.html>

Figura 12: Cena do filme de George Méliès 2


Fonte: <http://thefilmstage.com/features/10-classic-films-you-must-watch-before-
seeing-martin-scorseses-hugo/>

Figura 13: Cena do filme de George Méliès 3


Fonte: <http://adar.com.br/adarblog/2012/07/as-invencoes-de-georges-melies/>


109


Os filmes do gênero fantástico de Méliès, tinham, do mesmo modo, base na
literatura, como bem lembra Pelosato:

Ce cinéma fantastique s’est immédiatement appuyé sur les grands


thèmes littéraires du genre, eux-mêmes, comme nous l’avons
indiqué, inspiré à la fois des terreurs de nos angoisses et de
traditions folkloriques. (2009, p. 50) 121

Os filmes com a temática do fantástico passaram a se mostrar cada vez mais


atraentes ao público e, além de Méliès, outros diretores interessaram-se em adaptar
obras literárias do gênero para o cinema, tendo na década de 1930 surgido filmes como
Dracula, de Tod Browning (1931), Frankenstein, de James Whale (1931) e The
Mummy, de Karl Freund (1932). Segundo Pelosato, os temas presentes na literatura e
no cinema são os mesmos, pois ambas as artes exprimem a natureza humana através de
metáforas e símbolos.

Antes disso, os monstros criados pelo inconsciente humano já estavam presentes


em filmes como Golem (1921), de Henrick Galeen e Nosferatu (1921), de Murnau,
ambos pertencentes ao cinema expressionista. As técnicas utilizadas nessas produções
estariam presentes, décadas mais tarde, em alguns dos mais famosos filmes de Ficção
Científica:

On retrouve également cette géométrie non euclidienne des villes


tentaculaires de Metropolis dans Blade Runner (1982) de Ridley
Scott, New York 1977 (1981) de John Carpenter, dans le monde
baroque et fou d’Alien 3 de David Fincher (1992) [...]
(PELOSATO, P. 52)122

Assim, conforme a literatura de ficção científica foi aperfeiçoando seus


contornos e ganhando espaço entre o público de leitores, o cinema, e também a
televisão, acabou se interessando cada vez mais por produzir histórias baseadas no


121
Esse cinema fantástico apoiou-se imediatamente nos grandes temas literários do próprio gênero, como
mostramos, inspirado tanto pelos terrores de nossas angústias como pelas tradições folclóricas. (tradução
nossa)
122
Encontramos, igualmente, essa geometria não euclidiana de cidades espalhadas de Metropolis em
Blade Runner (1982) de Ridley Scott, em New York 1977 (1981) de John Carpenter, no mundo barroco e
louco de Alien 3 de David Fincher (1922) […] (tradução nossa)


110


gênero. Essas duas mídias tiraram proveito das narrativas produzidas e publicadas em
larga escala, levando para as telas algumas de suas ideias mais instigantes, como
invasões alienígenas ao planeta Terra e uma vida cercada por tecnologias até então
quase fantasiosas.
Na década de 1950, a ameaça da guerra fria e o medo da invasão de uma
ideologia vinda de um país estrangeiro, o comunismo, levaram à adaptação de obras de
Ficção Científica que exploravam o tema do ataque alienígena ao planeta Terra, como
War of the Worlds (A guerra dos mundos, 1953) e The Thing (A coisa, 1951).
Notamos que o cinema de ficção científica está intimamente ligado ao cinema
fantástico. Ao contrário da literatura de ficção científica, o cinema do gênero não é, com
frequência, roteirizado e dirigido por especialistas em física, matemática, química, ou
outros campos da ciência. Possivelmente por isso, muitas vezes nos deparamos com
circunstâncias muito mais próximas do mundo imaginário do que do mundo científico
em algumas das produções mais populares do cinema de ficção científica, como é o
caso, por exemplo, do pesquisador que tem seu DNA fundido com o de uma mosca
após uma experiência com uma máquina de teletransporte, no longa The Fly (A mosca,
1986, refilmagem do filme homônimo de 1958).
Algo que chama atenção no cinema de Ficção Científica é que, muito mais do
que na literatura, a ênfase maior está em narrativas que mostram a humanidade em um
processo de autodestruição, seja por vírus criados em laboratórios e disseminados de
forma imprudente, seja por robôs que fogem ao nosso controle, seja pela degradação do
meio ambiente ocasionada pela crescente emissão de poluentes. Em quase todos os
filmes de Ficção Científica temos uma sociedade distópica, degradada e pessimista.
Segundo o SFE (The Encyclopedia of Science Fiction) a palavra distopia pode ser
definida da seguinte forma:

[…] is the commonly used antonym of ‘eutopia [...] and denotes


that class of hypothetical societies containing images of worlds
worse than our own. [...] Dystopian images are most invariably
images of future society, pointing fearfully at the way the world
is supposedly going in order to provide urgent propaganda for a
change in direction […]123

123
[...] é o antônimo comum de ‘eutopia’[...] e denota a classe de sociedades hipotéticas que contém
imagens de mundos piores do que os nossos. [...] Imagens distópicas são, mais invariavelmente, imagens
de sociedades futuras, apontando temerosamente para o caminho que o mundo está supostamente
seguindo, para promover uma advertência urgente para uma mudança de curso. (tradução nossa). Fonte:
http://www.sf-encyclopedia.com/entry/dystopias


111


Além do fato já apontado pela enciclopédia de que existe um desejo de mostrar o
que pode acontecer de ruim no mundo e levar o espectador a uma reflexão acerca das
ações do homem, há, em outras produções, a intenção de mostrar o homem superando
grandes ameaças e tornando-se herói diante dessas catástrofes. Alguns exemplos desse
tipo de filme são os famosos Terminator (O Exterminador do Futuro, 1984), em que os
humanos precisam salvar a terra da ameaça de robôs e Armageddon (1998), o qual conta
a história de astronautas que procuram um meio de destruir um meteoro gigante que
está prestes a destruir a Terra.
Temos visto no cinema, nas últimas décadas, uma grande presença de filmes
cuja ênfase se dá na interação entre o homem e o robô (ou outros seres dotados de
inteligência artificial, como supercomputadores, androides e ciborgues). Apenas no
últimos três anos, foram lançados Her (Ela, 2013), Big Hero 6 (Operação Big Hero,
2014), Chapie (2015) e Ex Machina (2015):

With this concerted focus on the human body, I would suggest, these
films reflect a central concern of the genre, one that underlies those
various images of disaster [...]: an anxiety about our own nature. In
these images of human replication are bound up all our qualms about
artifice – science, technology, mechanism – and, what is more
important, about our nature as artificers, constructor of the real, and of
the self – homo faber. (TELOTTE, 1995, p. 5)124

Se nas lendas, mitos e contos populares a imaginação levava à criação de


monstros humanizados, como múmias, vampiros, duendes, entre outros, a ciência foi
capaz de concretizar estes seres que se parecem com o homem, mas não são humanos;
assim, os seres artificiais permanecem tendo algo de obscuro, de misterioso. Não
sabemos o que se passa dentro do “pensamento” de uma máquina que, por ser tão
parecida conosco, pode também ser ameaçadora.
Para H. G. Wells, o cinema era uma forma de disseminar ideias. Wells engajou-
se na área cinematográfica, tendo mais de quarenta obras adaptadas. Outros escritores
de Ficção Científica que surgiram após Wells começaram a se interessar


124
Com esse foco centrado no corpo humano, eu diria, esses filmes refletem uma preocupação central do
gênero, a qual fundamenta as várias imagens do desastre [...]: uma ansiedade sobre a própria natureza. A
essas imagens da réplica humana estão atreladas todas as nossas dúvidas sobre o artifício – ciência,
tecnologia, mecanismo – e, o que é mais importante, sobre nossa natureza como artífices, construtores do
real, e do eu – homo faber. (tradução nossa) . Fonte: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&lr=&id=oT7Jwm-
IzQ4C&oi=fnd&pg=PP9&dq=science+fiction+movie&ots=GhAndvq9Ih&sig=QMzXM3MTeylTwC-
_iPCWaLFIwKg#v=onepage&q=science%20fiction%20movie&f=false> Acesso em 12 de julho de 2015.


112


progressivamente por ter seus livros levados ao cinema ou, simplesmente, tiveram os
direitos de suas obras liberados para que roteiristas as adaptassem.
Assim, temos exemplos de alguns autores, como Phillip K. Dick, o qual teve três
de seus livros transformados em filmes bastante conhecidos – Blade Runner, Total
Recall e Minority Report – todavia, o enredo dos filmes pouco lembra os livros.
No ano de 2004, tentou-se realizar uma transposição para o cinema a partir do
livro I, Robot, de Isaac Asimov. No entanto, o longa-metragem não foi baseado em
nenhum dos contos de forma específica e nem segue, nem mesmo de forma aproximada,
a narrativa criada pelo conjunto desses textos. Estrelado por Will Smith, pode-se apenas
dizer que o que a história carrega daquilo que foi criado por Asimov são as três leis da
robótica e a personagem robopsicóloga, Susan Calvin. Como de costume em filmes de
Ficção Científica, o ambiente criado pelo roteiro é distópico, ao contrário daquilo que
Asimov descrevia.
Para Chapman e Cull (2013), um dos motivos pelo qual alguns filmes de Ficção
Científica perdem muito de seu conteúdo ou são profundamente modificados quando
roteirizados é o fato de muitos deles serem contos. É complicado fazer com que um
conto se transforme em um filme de 120 minutos. Além disso, os teóricos enfatizam o
fato de quem a literatura de Ficção Cientifica, geralmente, levanta ideias especulativas e
conceitos que nem sempre são bem traduzidos para a mídia cinematográfica. Se
pensarmos no conto “Reason”, percebemos que apenas um roteiro e uma direção muito
engajada seria capaz de traduzir as ideias filosóficas que estão por trás da narrativa.
Segundo Chapman e Cull, o cinema de Ficção Científica pode ser dividido em
alguns períodos mais significativos, que são:

In the 1920s and 1930s there were very few major science fiction
films. As those were products of different national cinemas – the
Soviet Union (Aelita, 1924), Germany (Metropolis, 1926), America
(Just Imagine, 1930) and Great Britain (Things to come, 1936) […]
These films were all expensively produced and were notable for their
detailed representation of futuristic urban spaces and ordered societies
[…] At the other end of the production scale, however, science fiction
flourished in Hollywood’s serials (or ‘chapter plays’) of the 1930s and
1940s: The Phantom Empire, […] Flash Gordon (and its two sequels),
Buck Rogers […] and Captain Video. The serial represented an
alternative mode of film practice produced with juvenile audiences in
mind. Their sources were the ‘pulps’ and comic strips […].
The first major cycle of SF films came from Hollywood in the 1950s.
This period is now regarded as a ‘golden age’ of science


113


fiction cinema with films including […] The Day the Earth Stood
Still, When Worlds Collide, The war of the Worlds […], Invasion of
the Body Snatchers […] and Time Machine.
There were several reasons for the emergence of science fiction as a
major production trend at this time. One was that science fiction was
an ideal genre for the new technologies […]. Another was that science
fiction offered film-makers a medium for exploring the political and
cultural anxieties of Cold War in America. […]
Science fiction was less prominent in the 1960s, but the success of
two major films in 1968 – Planet of the Apes and 2001: A Space
Odyssey – kick-started another cycle that lasted until the mid-1970s
[…] The recurring motif of these films is a dehumanized, dystopian
future, where individual liberty and freedom of thought have been
suppressed by technology. The pessimistic vision of the future in
1970s SF cinema has been understood as an expression of the mood of
disillusion and despair that affected America following Vietnam and
Watergate […] they all demonstrated, once again, how SF cinema
functioned as a vehicle for social commentary. […] However, the
annus mirabilis for SF cinema was in 1977 when the extraordinary
impact of two films – George Lucas’s Star Wars and Steven
Spielberg’s Close Encounters of the The Third Kind – transformed the
prevailing view of the genre’s popular appeal. […] Since then SF
films have consistently been among the biggest-grossing films,
including E.T.: The Extra-Terrestrial, Jurassic Park, Independence
Day, The Matrix […], Avatar and the six Star Wars sequels and
prequels. (2013, p. 4, 5)125


125
Nas décadas de 1920 e 1930 havia muitos poucos filmes de Ficção Científica. Estes eram produtos de
diferentes cinemas nacionais – a União Soviética (Aelita, 1924), Alemanha (Metropolis, 1926), América
(Just Imagine, 1930) e Grã-Bretanha (tThings to come, 1936) [...] Estes filmes foram todos produzidos
com um alto investimento e chamaram a atenção pela sua representação futurística detalhada de espaços
urbanos futurísticos e sociedades ordenadas [...] Do outro lado da escala de produção, porém, a ficção
científica prosperou nos seriados de Hollywood (ou ‘cinesseriados’) das décadas de 1930 e 1940: The
Phantom Empire, [...] Flash Gordon (e suas duas sequências), Buck Rogers [...] e Captain Video. O
seriado representou uma modalidade alternativa de prática fílmica produzida para um público jovem. Eles
eram baseados nas ‘pulps’ e nas revistas em quadrinhos [...].o primeiro grande ciclo de filmes de Ficção
Científica veio de Hollywood, na década de 1950. Esse período é hoje conhecido como a ‘era de ouro’ do
cinema de Ficção Científica, com filmes como [...] O dia em que a Terra parou, O fim do mundo, Guerra
dos mundos, [...] Invasores de corpos, [...] e A Máquina do Tempo.
Houve diversas razões para o crescimento da Ficção Científica como uma grande tendência de produção
nessa época. Uma era que a Ficção Científica era um gênero ideal para as novas tecnologias [...]. Outra
era de que a Ficção Científica oferecia aos cinegrafistas um meio para explorar as ansiedades políticas e
culturais da Guerra Fria na América. [...]
A Ficção Científica foi menos proeminente na década de 1960, mas o sucesso de dois grandes filmes em
1968 – Planeta dos Macacos e 2001: uma odisseia no espaço – deram início a um novo ciclo que durou
até meados da década de 1970 [...]. O tema recorrente nesses filmes é a desumanização, o futuro
distópico, no qual a liberdade individual e a liberdade de pensamento foram suprimidas pela tecnologia.
A visão pessimista do futuro no cinema de Ficção Científica da década de 1970 foi entendida como uma
expressão do sentimento de desilusão e desespero que afetava a América pós Vietnã e Watergate [...] tudo
isso demonstrava, mais uma vez, como o cinema de Ficção Científica funcionava como um veículo para
um comentário social. [...] No entanto, o annus mirabilis do cinema de Ficção Científica foi 1977, quando
o extraordinário impacto de dois filmes – Star Wars, de George Lucas e Contatos imediatos de terceiro
grau, de Steven Spielberg – transformando a visão e o apelo público do gênero. [...] Desde então, os
filmes de Ficção Científica têm estado constantemente entre os mais rentáveis, incluindo ET: o
extraterreste, Jurassic Park, Independence Day, Matrix [...], Avatar as seis sequências e os capítulos
anteriores de Star Wars. (tradução nossa)


114


Como herança de toda essa trajetória, podemos dizer que atualmente o cinema
de Ficção Científica dialoga com características de todos esses períodos. As produções
de hoje espelham nas telas o desenvolvimento tecnológico atual, por meio do uso de
efeitos especiais, mostrando sociedades desumanizadas, distópicas, ou com seres
humanos tendo sua intimidade invadida pelas tecnologias. A visão do futuro é, quase
sempre, pessimista e os enredos trazem, de forma implícita ou explícita, discussões
acerca do mundo. Se pensarmos na questão da Ficção Científica como um “comentário”
sobre o período em que ele é produzido, por qual motivo tende-se tanto a mostrar a
destruição de nosso mundo e a substituição dos humanos por seres artificiais?
A fim de explorar mais a fundo como o cinema de Ficção Científica retrata as
relações entre o homem e a máquina e, principalmente, observar de que modo os seres
criados pelo próprio homem, à sua imagem, podem se tornar ameaçadores, é importante
restringirmos a análise a um corpus específico. Para isso, nas páginas seguintes,
selecionamos o filme Artificial Intelligence (Inteligência Artificial, 2001)126.
Enfatizamos que o estudo do filme será feito sob a mesma perspectiva de análise dos
contos de Asimov, mostrando de que modo a produção visa mostrar as relações entre o
homem e o robô, construindo a imagem dessas máquinas como um reflexo do humano,
uma representação de seus criadores. Além disso, deseja-se investigar quais
características do filme foram inspiradas em aspectos da obra de Asimov que já foram
destacados no presente trabalho, como o preconceito, a alteridade, a crença no
sobrenatural, entre outros temas.

3.1 ARTIFICIAL INTELLIGENCE

O filme Artificial Intelligence pode ser analisado a partir de diversos pontos,


dentre os quais escolhemos os seguintes: seu diálogo com a literatura, em particular,
com os contos de fadas; as imagens construídas em determinadas cenas do filme e seus
significados; as falas dos personagens e seus significados. A partir desses aspectos,
mostraremos os temas presentes na história, verificando de que modo eles são tratados e
a intencionalidade da obra, intencionando analisar os mesmos aspectos tratados nos
contos.


126
Não selecionamos a adaptação cinematográfica da obra I, Robot, realizada em 2004 (dirigida por Alex
Proyas), pois ela tem muitos poucos elementos que remetem ao texto de Isaac Asimov.


115


3.1.1 O diálogo com os contos de fadas

Logo no início do filme, temos a presença de um narrador que explica o


contexto em que a história irá se passar: uma era em que as calotas polares derreteram,
fazendo com que muitas cidades litorâneas desaparecessem. Além disso, muitos países
subdesenvolvidos foram devastados pela fome e outros só prosperaram após a
implantação de leis de controle de natalidade. Nesse ambiente, os robôs se tornaram um
objeto extremamente viável, pois não necessitam de recursos, além dos de fabricação,
para serem mantidos. Desse modo, a história é colocada em uma localização temporal
indefinida. Sabemos que se trata de algum ponto no futuro, mas não é possível dizer
exatamente quando. Além de essa atemporalidade ser uma das marcas dos textos de
Ficção Científica que tratam do futuro – algo que pudemos observar no conto “Robbie”,
de Asimov – ela já estava presente nas narrativas de contos de fadas, que
frequentemente se iniciam com as palavras “era uma vez”127.

O diálogo constante entre o filme e os contos de fada fica evidente em várias


sequências do longa. Quando Mônica, a mãe, vai visitar seu filho que se encontra em
estado de coma, adentra uma sala cuja parede é decorada com cenas de histórias
infantis. Conforme a personagem caminha, pode-se ver na parede a figura de Alice e
Humpty Dumpty, seguida por uma imagem de Tweedledee e Tweedledum, também
personagens de Alice no país das maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, 1865),
Pinóquio e Chapeuzinho Vermelho. É possível perceber uma forte relação entre
algumas das temáticas apresentadas por essas histórias fantásticas, histórias
maravilhosas e a narrativa fílmica.

Humpty Dumpty tornou-se bastante popular através de uma nursery rhyme128, a


qual acredita-se ter surgido a partir de uma charada129. A primeira versão registrada da
rima data de 1870 e foi produzida por um compilador de rimas infantis, chamado James

127
Não se sabe ao certo quando a expressão “once upon a time” surgiu. O Oxford English Dictionary tem
exemplos da frase sendo usada ainda em 1385, nos textos de Canterbury Tales. Mais tarde, ela foi
traduzida para o francês pelo autor Charles Perrault e incorporada aos contos de fadas. Sempre que nos
deparamos com essa expressão inicial em uma narrativa, sabemos que, por mais fantástica que a história
contada possa parecer, podemos acreditar em seus elementos.
128
Rima infantil ou cantiga de ninar.
129
As charadas (riddles) eram bastante frequentes na poesia em língua inglesa antiga (Old English). Elas,
geralmente, eram divididas em dois tipos: o enigma, cujo sentido era metafórico, ou as conundra , frases
que jogam com o duplo sentido de uma expressão ou palavra.


116


William Elliot, na Inglaterra e seus versos eram compostos da seguinte forma:

Humpty Dumpty sat on a wall,


Humpty Dumpty had a great fall.
All the king's horses and all the king's men
Couldn't put Humpty together again.130

Existem várias teorias de quem poderia ter sido Humpty Dumpty, sendo que
alguns até o associam com figuras históricas, como o rei Ricardo III, da Inglaterra.
Porém, o que se percebe apenas pela análise dos versos da rima é que se trata de alguém
que sofreu uma grande queda e suas partes não puderam ser reconstruídas. Em 1865, o
autor Lewis Carroll colocou Humpty Dumpty como uma de suas personagens
antropomórficas no livro Alice’s Adventures in Wonderland. Observamos em uma das
ilustrações da obra que Humpty Dumpty é, na verdade, um ovo:

Figura 14: Alice e Humpty Dumpty


Fonte: <http://wordyenglish.com/alice/lg-ch06.html>

A representação desse personagem como um ovo dá um novo sentido à rima,


pois se um ovo caísse de cima de um muro alto, provavelmente se partiria em inúmeros
pedaços. Seria possível que tentassem juntar suas partes novamente, mas provavelmente
bastante improvável que se conseguisse. Essa imagem da queda de Humpty Dumpty
tem sido frequentemente associada à metáfora da fragilidade do homem e foi utilizada
em outras obras literárias, como Finnegans Wake (1939), de James Joyce, ao retratar a
queda do homem. Segundo Worthington (1957, p. 37),


130
Humpty Dumpty sentou-se no muro/ Humpty Dumpty teve uma grande queda/ Todos os cavalos e
homens do rei não conseguiram juntar as peças de Humpty novamente. (tradução nossa)


117


In James Joyce Finnegans Wake, the story of Finnegan is the story of
every man and every civilization. It is a story, briefly, of birth, sin,
fall, and resurrection; of spring, summer, autumn, and winter131, which
leads to spring again. [...] In the Irish-American ballad from which
Joyce’s great work takes its name, Tim Finnegans Wake, the hod
carrier Finnegan falls from his ladder, is laid out in his coffin and
waked; [...] he sits up and proclaims that is not dead at all. The hero of
Joyce’s work is not only the hod carrier but Finn McCool (Finn-again)
of Irish legend; Humphrey Chimpden Earwicker, a Dublin pub-
keeper; Humpty Dumpty; and other men – and civilizations – which
have fallen, and yet survived, sometimes through their children and
sometimes through their works, both being forms of creation. 132

A associação entre Artificial Intelligence e Humpty Dumpty, levando em


consideração a citação acima, é de que o filme também trata da queda do homem. Para
começar, o contexto da história mostra uma situação desfavorável para sua
sobrevivência – uma era de degelo das calotas polares e de extinção de parte da
população. Além disso, observamos, ao longo de todo o filme, um conflito entre o
homem e sua própria criação, o robô, o qual se mostra mais forte do que seu próprio
criador. Em um documentário sobre o filme, disponível nos extras do DVD, o diretor
Steven Spielberg afirma que a narrativa se passa momentos antes de uma guerra civil
entre homens e máquinas. No final, vemos que os homens foram derrotados, uma vez
que, dois mil anos depois, apenas uma civilização de robôs super desenvolvidos habita o
planeta Terra.

Quando David é encontrado e resgatado, após ter permanecido em um


submarino por dois mil anos pedindo para a Fada Azul transformá-lo em um menino de
verdade, seus “salvadores” tratam-no como uma relíquia, pois o menino fora – ao
contrário deles, que foram construídos por outros robôs –, criado pelas mãos de


131
Essa associação entre as fases da vida de um homem ou de uma civilização é marcada também através
das estações do ano nos contos que deram origem ao filme AI: “Supertoys last all summer long”,
“Supertoy when winter come” e “Supertoys in other seasons”.

132
Em Finnegans Wake, de James Joyce, a história de Finnegan é a história de todo homem e
de toda civilização. É uma história, brevemente, do nascimento, do pecado, da queda, e da
ressureição; da primavera, do verão, do outono, e do inverno, que leva novamente à primavera.
[...] Na balada irlandesa-americana da qual o grande trabalho de Joyce herdou seu nome, Tim
Finnegans Wake, o carregador de cocho, Finnegan, cai de sua escada, é colocado em seu caixão
e despertado; [...] ele se senta e proclama que não está morto. O herói da obra de Joyce não é
apenas um carregador de cocho, mas é o Finn McCool (Finn novamente) da lenda irlandesa;
Humphrey Chimpden Earwicker, um dono de pub; Humpty Dumpty; e outros homens – e
civilizações – que caíram, e mesmo assim sobreviveram, as vezes através de seus filhos e outras
pelas suas obras, ambas formas de criação. (tradução nossa)


118


verdadeiros humanos e é a imagem de seus próprios criadores. Assim, comprovamos a
tese de Worthington de que após a queda, as civilizações se levantam, mesmo que seja
através de seus filhos ou de seu trabalho, frutos de sua criação.

A próxima imagem reproduzida na parede, a dos personagens Tweedledee e


Tweedledum, trata do conceito de simulacro e simetria. A origem desses personagens é
atribuída a um poema do inglês John Byrom e, também, a uma nursery rhyme;
culturalmente, os personagens são associados a duas pessoas que se parecem muito
fisicamente. Porém, estas figuras ficaram mais famosas apenas após também
aparecerem em uma obra de Lewis Carroll, dessa vez, em Through the Looking-Glass
and what Alice found there.

Figura 15: Tweedledee e Tweedledum


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Tweedledum_and_Tweedledee

Tweedledee e Tweedledum são exatamente iguais, como se fossem imagens


refletidas em um espelho. Podem-se fazer três associações entre essas figuras e o filme
Artificial Intelligence; a primeira, mais clara, é a do robô como cópia, como reprodução
do ser humano. A perfeição da estrutura do corpo do menino artificial é admirada por
aqueles que o cercam durante todo o filme. Em uma das cenas, David e seu irmão
Martin estão na piscina e os colegas do humano insistem em tocá-lo e em observar o
quanto ele parece real; em outra cena, quando David é capturado e levado ao Mercado
de Pele juntamente com outros robôs para ser destruído diante de uma plateia, um dos
responsáveis pelo evento usa um dispositivo, com um raio X, para verificar se o garoto
possui órgãos e esqueleto ou um mecanismo internamente. Em seguida, quando levado
para ser destruído, o público se apieda de David, devido a sua semelhança muito
próxima com uma criança de verdade. A questão do robô como cópia do homem chega


119


a seu momento mais importante em uma das cenas finais, quando descobrimos que
David, na verdade, foi inspirado no filho falecido do cientista que o criou, como se
fosse um verdadeiro clone.

A segunda associação que fazemos é com o fato de David imitar o movimento


dos humanos o tempo todo, para tentar se aproximar deles. Na hora do jantar, por
exemplo, apesar de não precisar se alimentar, o robô aproxima os copos e talheres da
boca, sempre que o pai ou a mãe fazem isso. É uma forma encontrada por ele de
participar desse momento familiar, de tentar aprender o que é ser humano.

Figura 16: David com os pais

Por fim, a última associação observada é o fato de David não ser o único de sua
“espécie”. Quando consegue, finalmente, chegar à fábrica em que foi criado, a
Cybertronics, encontra outro David, exatamente como ele, sentado em uma poltrona.
Até então, o menino acreditava que seria amado pela mãe por ser único e, por isso,
especial. Diante de sua cópia, porém, sente-se inseguro e ameaçado, com medo de
perder o amor que seria devido somente a ele. Em um ataque de ciúmes e fúria, David
destrói a outra máquina, acertando-a na cabeça com uma luminária. A decepção
aumenta, ainda mais, quando, ao caminhar pela fábrica, ele se depara com outras
infinitas cópias de si mesmo embaladas em caixas para serem distribuídas a outros
clientes.


120

Figura 17: David e suas cópias

Podemos entender esse encontro de David com suas cópias também pela
perspectiva do duplo, tratada por Otto Rank. Ao citar Rank, o psicanalista Sigmund
Freud (Das Unheimliche, 1919) associa a figura do duplo com algo que é, ao mesmo
tempo, estranho e familiar. Tudo aquilo que é estranho, ou unheimliche, de acordo com
o autor, provoca medo, terror; assim, a identificação do sujeito com outro igual a ele
provoca medo de que seu eu (self) seja substituído pelo de outro. O duplo se desdobra,
imita o indivíduo e passa a ter existência própria, tornando-se uma ameaça.

Rank afirma que a busca por si mesmo, pela compreensão do próprio interior ou
da própria essência pode levar a uma divisão da personalidade. Além disso, Carl Gustav
Jung, partindo do conceito de duplo, definiu que a busca pela compreensão do que é
interno (inconsciente) e externo (consciente) no sujeito equivale a uma busca pela
individuação. Podemos entender a busca de David por se tornar um menino de verdade
como uma busca por si mesmo, uma tentativa de entender quem ele é; assim como é
possível pensar que ao criar um robô, o homem também está em busca de colocar no
mundo exterior aquilo que tem dentro de si. No filme, portanto, verificamos uma busca
pela individuação tanto por parte dos homens, quanto por parte dos robôs. Contudo, os
homens não conseguem ser bem sucedidos nessa tarefa, entram em guerra com suas
cópias, seus outros “eus”, e acabam extintos. David consegue permanecer nesse busca e,
por isso, sobrevive.

A imagem de contos de fadas que aparece em seguida é a do boneco de


madeira, Pinóquio. Podemos considerar que esta tem uma forte simbologia ao longo do
filme. O conto “Supertoys last all summer long”, de Brian W. Aldiss, foi publicado
pela primeira vez no ano de 1969. De acordo com a Science Fiction and Fantasy writers


121


of America (SFWA)133, o único motivo pelo qual o autor vendeu os direitos de sua
história a Stanley Kubrick, em 1982, foi por questões financeiras. Após a morte de
Kubrick, que deixou o projeto inacabado, Steven Spielberg tornou-se o novo
proprietário dos direitos desse texto e pôde, assim, prosseguir com as filmagens do
longa.

Entretanto, conforme citado anteriormente, seria muito difícil transformar um


conto de aproximadamente dez páginas em um filme de 146 minutos sem que os
roteiristas, Ian Watson e o próprio Spielberg, realizassem inúmeros acréscimos,
supressões, reinterpretações, entre outras mudanças à história.
O conto, assim como suas duas sequências, “Supertoys when winter comes” e
“Supertoys in other seasons”, narra a história de um robô criança, chamado David, que é
adotado por uma mulher, Mônica, proibida de ter filhos. David faz esforços incontáveis
para conseguir fazer sua mãe feliz e dizer a ele que a ama, mas, aparentemente, sua
programação linguística não permite que ele encontre as palavras corretas para
expressar seus sentimentos. Porém, a mãe, humana, não consegue amar esta criança
artificial, apesar de todos os seus esforços.
Na versão de Steven Spielberg, a construção de David é resultado de um projeto
ambicioso para tornar os robôs o mais próximo possível do humano. O filme mostra que
essas máquinas são, aparentemente, idênticas aos seres humanos, mas no momento de
explicarem o que é o amor, só conseguem apenas defini-lo, como se fosse um
dicionário. Por isso, um novo programa é introduzido no computador do robô para que
ele aprenda o que é o amor; tais seres entram em um processo de testes e uma família,
cujo filho estava em coma por muitos anos, é escolhida para adotá-lo.
Após sua mãe, Mônica, ativar a programação necessária para ativar os
sentimentos do pequeno robô, David começa a perceber que ela não consegue amá-lo.
Por isso, começa a nutrir o desejo de se tornar um menino de verdade, assim como o
personagem Pinóquio, conhecido através das histórias que a mãe contava para ele antes
de dormir.
O filme passa, então, a mostrar a jornada de David à procura pela Fada Azul,
personagem que, no conto infantil, atende o desejo do boneco de madeira e transforma
Pinóquio em um menino de verdade.

133
Organização profissional que reúne autores de Ficção Científica, Fantasia e gêneros afins. Já fizeram
parte dessa associação autores como Isaac Asimov e Ray Bradburry. Fonte: <https://www.sfwa.org/>.
Acesso em 27 de maio de 2015.


122


A associação feita entre a narrativa de “Supertoys last all summer long” e Le
avventure di Pinocchio. Storia di un burattino (As aventuras de Pinóquio, 1881-1883),
de Carlo Collodi, é o principal ponto do filme. Porém, esse detalhe não consta do texto
escrito por Brian Aldiss. Trata-se de um acréscimo feito por Stanley Kubrick, ao
adquirir os direitos autorais e produzir o roteiro.
O livro Le avventure di Pinocchio. Storia di un burattino foi publicado em série
em um jornal infantil no final do século XIX. Antes de ser popularizado em uma versão
mais infantil e amena criada pelos estúdios Walt Disney, o texto criado por Collodi era,
de fato, bastante sombrio e moralizante. No livro, a Fada Azul é um personagem
extremamente importante, até mais do que o próprio Grilo Falante – o personagem que
aconselha Pinóquio a agir corretamente e que, ironicamente, acaba sendo esmagado
pelo boneco. Seu nome em inglês, Blue Fairy, que é utilizado em Artificial Intelligence,
foi criado pela animação da Disney. Na verdade, no texto fonte seu nome era The Fairy
with the Turquoise Hair, ou La Fata dai Capelli Turchini, em italiano. A imagem da
fada é construída de forma bem sombria (gótica) e não semelhante às dos contos
maravilhosos. Sua primeira aparição na história se dá quando Pinóquio, ao fugir da
Raposa e do Gato, a encontra dentro de uma casa na floresta. Nessa passagem, a fada
alega que na verdade é uma garota morta, a espera de seu caixão.
Além disso, na primeira versão da história, o menino de madeira era punido com
a morte por todo seu mau comportamento - como sua fuga para a Playland, onde foi
transformado em burro - sendo enforcado em uma árvore. Algum tempo mais tarde,
Collodi reescreveu o final do texto, permitindo que a Fada Azul o livrasse e o
transformasse em um menino de verdade.
Em uma breve análise, podemos perceber que para se tornar um menino de
verdade e deixar de ser um garoto “artificial”, Pinóquio necessita passar por uma
humanização, ou seja, ele tem de deixar de lado instintos primitivos como o impulso de
matar aqueles que o aborrecem e o de se entregar a prazeres e diversões sem levar em
conta suas obrigações. Assim, é como se, para poder se tornar humano ele precisasse se
integrar aos costumes sociais e deixar de lado a liberdade.
O que podemos concluir a partir dessas observações é que os diálogos de
Artificial Intelligence com o texto de Carlo Collodi, além de criar um ambiente de
fantasia, próprio do universo infantil, são introduzidos para mostrar um mundo frio,
onde as regras sociais devem ser respeitadas para que não haja punições severas; um


123


lugar em que se pode fugir para uma ilha de prazeres, mas esta não suprirá, não trará
satisfação de seus desejos mais íntimos.
Esse clima de contos de fadas que permeia o filme leva o espectador a crer na
possibilidade de David tornar-se um menino de verdade no final da história. Apesar de
vermos que o mundo ali apresentado não possui elementos mágicos e que, apesar de se
tratar de uma sociedade diferente da nossa em certos aspectos, em função da tecnologia
mais avançada, o universo construído é muito próximo do que conhecemos, o filme nos
faz crer que, a qualquer momento, algo fantástico ou maravilhoso poderia acontecer. No
entanto, estando diante da Fada Azul, a qual não passa de uma estátua construída para
um parque de diversões, o robô não tem seu desejo realizado. Este é o momento que
fica clara a diferença entre o fantástico e a Ficção Científica: David não é ajudado por
uma fada e não pode se tornar real; porém, é resgatado por um grupo de robôs que
conseguem dar a ele uma pequena fração daquilo que ele sempre buscara: o amor de sua
mãe. Através de alguns fios de cabelo de Mônica, os quais haviam sido conservados
pelo urso Ted, os robôs do futuro são capazes de fazer um clone da mulher, o qual só
pode viver por um dia. Desse modo, David é capaz de se reencontrar com a mãe e ter
um dia especial com ela (conforme ela o prometera, de forma enganosa, no dia em que
o abandonou). O filme termina com Mônica adormecendo para nunca mais acordar e
David deitado ao seu lado. Não sabemos o que acontece depois disso, mas o que
permanece é um clima de “viveram felizes para sempre”.
Tanto no filme como nos contos de fadas, os personagens vivem felizes para
sempre, pois deixamos de acompanhar suas histórias e só conhecemos aquilo que nos é
passado até o final da narrativa. Não sabemos o que acontecerá no futuro. Assim, temos
uma conclusão satisfatória para a jornada de David, apesar de sabermos que ele não
alcançou, realmente, aquilo que procurava. Essa conclusão satisfatória, no entanto, foi
criada por meio de elementos científicos possíveis no mundo como conhecemos, ou
seja, é possível acreditarmos que dentro de alguns anos a ciência estaria tão
desenvolvida a ponto de viabilizar a clonagem humana. Por outro lado, se o filme
tivesse feito a Fada Azul transformar David em um menino de verdade, não poderíamos
mais dizer que esta se trata de uma obra de Ficção Científica, e sim passaria a ser um
conto maravilhoso, em que seres mágicos existem e podem conceder desejos.


124

3.1.2 O filme e suas imagens

A companhia responsável pela criação dos robôs, no filme, é chamada de


Cybertronics e como toda companhia, ela possui um símbolo que a representa. A
primeira vista, o símbolo é um simples robô, com os braços abertos, olhando para cima,
mas se prestarmos atenção, notamos que, na verdade, ele remete à famosa pintura do
italiano Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus. O quadro apresenta a deusa romana
Vênus surgindo em uma concha, ao mesmo tempo em que é conduzida por Zéfiro (o
Vento) e Aura (a Brisa) recebe um manto florido da Hora da Primavera. Segundo o
Neoplatonismo, a obra representaria o nascimento do amor e a beleza espiritual como
elementos fundamentais à vida. A semelhança se dá, pois o símbolo da Cybertronics
traz uma figura com contornos femininos, dentro de algo que se parece uma concha.

Figura 18: O nascimento de Vênus


Fonte: <http://www.uffizi.org/artworks/the-birth-of-venus-by-sandro-botticelli/>


125

Figura 19: Cybertronics

Existem duas versões para o nascimento de Vênus, na mitologia. Em uma delas,


a deusa romana teria surgido de dentro de uma concha, gerada pelas espumas do mar.
Em outra versão, ela seria filha de Júpiter e Dione.
No filme, os robôs não são criados por deuses, mas por homens. No entanto, a
fala e a postura do cientista, Professor Henry, na primeira cena do filme, sugere que a
capacidade do homem de produzir estes seres é um dom, praticamente, divinal:

To create an artificial being has been the dream of man since the birth of
science. Not merely the beginning of the modern age, when our forebears
astonished the world with the first thinking machines: primitive monsters that
could play chess. How far we have come. The artificial being is a reality of
perfect simulacrum, articulated in limb, articulate in speech, and not lacking
in human response [...]I believe that my work on mapping the impulse
pathways in a single neurone can enable us to construct a mecha of a
qualitatively different order. I propose that we build a robot, who can love. 134
135

Ao ser questionado por um de seus ouvintes sobre qual seria a responsabilidade


do homem sobre um robô que ama, o cientista responde: “Mas Deus não criou Adão
para amá-lo?”. Essa reflexão mostra que a visão do cientista é de que os robôs, por
serem suas criaturas, deveriam ser submissos aos homens e amar seu criador de forma
incondicional. Mas com o filme, vemos que a responsabilidade do homem é maior do
que ele mesmo crê. O amor de David pela mãe deveria ter sido criado em benefício


134
Fonte: <https://indiegroundfilms.files.wordpress.com/2014/01/a-i.pdf>. Acesso: 12 mar. 2016.
135
Criar um ser artificial tem sido o sonho do homem desde os primórdios da ciência. Não só no inicio
da era moderna, quando os nossos ancestrais criaram as primeiras máquinas pensantes, monstros
primitivos que sabiam jogar xadrez. Vejam onde chegamos. O ser artificial é uma realidade, um
simulacro perfeito, com membros articulados, fala articulada e provido de reações humanas [...]. Eu
acredito que o meu mapeamento do impulso em um único neurônio, nos permitirá construir um meca de
um nível de qualidade superior. Eu proponho construir um robô que consiga amar. (Fonte: legendas do
filme)


126


dela mesma, mas um robô que ama, tem desejos, vontades e sonhos a perseguir. As
consequências da criação desse amor são responsabilidade também do criador.

Figura 20: Programação

Para que David deixe de ser apenas um robô e possa amar sua mãe, é necessário
que seja feita uma programação específica para isso. Ele apenas desenvolverá seus
sentimentos por uma pessoa específica, que seja capaz de habilitá-lo para isso. Mônica
recebe um guia com uma série de palavras que devem ser ditas em uma ordem certa
para ativá-lo. As palavras são as seguintes: Cirrus, Socrates, Particle, Decibel,
Hurricane, Dolphin, Tulip, Monica, David. São palavras relacionadas a elementos da
natureza e ao pensamento humano: céu, mundo das ideias, mundo material, som,
destruição, animais, vegetais, o nome da mãe e do robô, respectivamente. É como se o
robô fosse conectado ao mundo, à natureza e à sua mãe para poder se equiparar ao seu
criador.
Em outra cena, David caminha pela casa e vê, pela primeira vez, uma foto do
verdadeiro filho do casal. Ele se aproxima do porta-retratos e seu reflexo se sobrepõe à
foto da família. Assim, observamos o desejo do menino não de substituir qualquer
membro da família, mas sim de estar incluso nela. Porém, ele não está verdadeiramente
na foto, ele se insere nela de maneira, também, artificial, por meio apenas de sua
imagem – uma provável referência ao fato de ele ser apenas uma representação, e não
um menino de verdade.


127

Figura 21: A família de David

Quando David é abandonado por Mônica na floresta, descobre que existem


homens perseguidores de robôs, que levam máquinas velhas e sem identificação para
uma Feira. A forma com que estes homens perseguem os robôs é através de um enorme
balão em forma de lua. O uso da imagem da lua nessa cena foi vista por muitos como
uma referência do diretor Steven Spielberg à clássica cena do filme ET (1982), quando
o personagem principal, o garoto Elliott, faz um voo em uma bicicleta para salvar seu
amigo extraterrestre da polícia. Porém, podemos ir além de pensarmos que esta seria
apenas uma auto-homenagem de Spielberg, uma vez que o uso da imagem da lua é
recorrente na mitologia, na literatura, no cinema e em outras manifestações artísticas.
Várias dessas referências mostram homens que habitam o satélite da terra, em lendas
existentes desde o século X, como é o caso da lenda folclórica japonesa The Tale of the
Bamboo Cutter. Como mencionado anteriormente nesse trabalho, diversas obras de
Ficção Científica tratam da viagem à lua, antes mesmo de ela ter sido realizada por
astronautas norte-americanos.
Podemos dizer que o balão em formato de lua, presente no filme, é símbolo das
conquistas e do domínio tecnológico do homem. Do mesmo modo, os caçadores de
robôs, estando dentro desse balão, posicionam-se em um situação elevada às máquinas,
mostrando seu domínio sobre elas; o castigo dos robôs vem de cima, como se, mais uma
vez, os seres humanos fossem deuses agindo sobre suas criaturas.


128

Figura 22: Gigolo Joe e a lua

A partir da segunda metade do filme, a busca pela Fada Azul vem a ser o tema
central. Percebe-se, assim como no conto “Reason”, de Asimov, uma das coisas
adquiridas pelo robô ao se aproximar da natureza humana é a capacidade de
mistificação e a crença no sobrenatural. David crê que a fada pode satisfazer seu desejo,
assim como o homem crê que suas necessidades serão ouvidas e satisfeitas por um ser
superior.
Ao observarmos algumas imagens no filme, veremos diversas menções ao tema
da religiosidade, encarando-a ora de forma crítica, ora como algo próprio à natureza
humana. Gigolo Joe leva David a Pleasure Island, uma espécie de Las Vegas do futuro,
onde é possível encontrar um supercomputador que, supostamente, tem a resposta para
todas as perguntas. Este robô é chamado de Dr. Know e, por ser conhecedor de todas as
coisas, podemos vê-lo como um deus, ao qual se pede auxílio nos momentos de
dificuldade. Para poder falar com Dr. Know, porém, David precisa desembolsar todo o
dinheiro que tem antes de iniciar a máquina.
Ao chegar na Pleasure Island, um dos primeiros estabelecimentos com o qual
David se depara é uma igreja, a qual possui uma estátua da Nossa Senhora do Coração
Imaculado na porta. O robô pergunta à santa se ela é a Fada Azul, mas Gigolo Joe
responde que os homens estão sempre procurando por seu criador e por isso vão à
igreja, cantam, entrelaçam as mãos; quando saem de lá, no entanto, estão novamente
diante dos carnalidade do mundo e buscam robôs criados para satisfazer suas
necessidades sexuais. Além da clara associação da Fada Azul à imagem da santa pura,


129


ou seja, uma mulher sem pecados a quem os fiéis prestam devoção, prostram-se e
dedicam respeito, vemos uma crítica à hipocrisia humana. Os homens são, ao mesmo
tempo, espirituais e carnais; no entanto, para ele, a carnalidade sempre supera o lado
espiritual. Mesmo aqueles que vão à igreja e pedem perdão por seus pecados caem na
tentação de terem seus desejos satisfeitos com prostitutas e outras diversões ilícitas,
como o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Quando David finalmente encontra a Fada Azul no fundo do mar, que é
representada por uma estátua de um antigo parque de diversões, agora, submerso,
verifica-se que a imagem da fada remete às imagens de santos colocadas nos altares das
igrejas. Mais especificamente, a fada é basicamente a imagem da Virgem Maria, exceto
pelo fato de possuir asas. Então, o garoto-robô coloca-se diante dela, dentro de seu
submarino, e permanece em uma oração interminável, pedindo para que seu desejo de
se tornar um menino de verdade seja concedido. Aqui tem-se uma referência, também,
ao misticismos daqueles que creem na santidade das imagens, fazendo pedidos,
rezando, deixando suas orações, apesar de saberem que aquela é uma mera
representação, e não uma santa verdadeira.

Figura 23: A Fada Azul

No filme, compara-se a artificialidade da Fada à do robô. Isso fica bastante


evidente no momento em que ele a vê através do vidro do submarino e seus reflexos se
sobrepõem. David e a estátua são ambos reproduções do humano, porém nenhum deles


130


é real. O robô está, nesta cena, diante de sua própria condição de ser sintético e
fabricado, apesar de não perceber.

Figura 24: David e a Fada Azul

Uma reviravolta inesperada no roteiro ocorre quando, repentinamente, uma nave


de aspecto metálico surge dos céus e captura o submarino congelado com David e Ted
em seu interior. Logo em seguida, o espectador é informado de que dentro daquela nave
estão presentes robôs extremamente evoluídos, capazes de lerem pensamentos, trazerem
pessoas de volta do mundo dos mortos através de clonagem, reproduzirem ambientes a
partir da memória do outro, etc. Apesar dessas habilidades descritas serem possíveis
devido à alta tecnologia destes seres, estes são praticamente figuras sobrenaturais,
próximos a verdadeiros deuses. Aliás, eles sim podem conceder a David a realização de
seu desejo.
Ao analisarmos a aparição desses robôs, lembramo-nos de que tais soluções
inesperadas e improváveis, criadas para concluir a narrativa de uma obra ficcional já era
empregada no teatro clássico grego, nos quais o enredo das peças dramáticas eram,
muitas vezes, solucionado pelo surgimento de um deus baixado mecanicamente por um
guindaste em meio à cena. Para isso, os gregos davam o nome de Deus ex Machina, que
literalmente significa “Deus advindo da máquina”. Aqui, a referência implícita ao termo
não está ligada apenas ao surgimento inesperado desses seres. Há um sentido quase que
literal, o qual mostra que a evolução dos robôs, criados pelos homens, foi capaz de
originar deuses, seres perfeitos. Assim, a busca do homem pela sua perfeição e
imortalidade ocorreu através da sua criação, porém, sucedida apenas quando os robôs –
que foram se tornando criaturas independentes e mais evoluídas – puderam criar outros
robôs.


131

Figura 25: Deus ex Machina

Figura 26: Robôs do futuro

O filme possui muitos diálogos e textos bastante significativos que devem ser
levados em conta para uma análise mais aprofundada. Destacamos, porém, apenas
aquelas ligadas ao assunto proposto pelo presente trabalho, que contribuem para
reforçar a ideia do robô, de sua evolução, sua humanização, sua condição enquanto
criatura provinda do homem, como duplo do ser humano.


132


3.1.3 Artificial Intelligence e Isaac Asimov

Pode-se perceber diversos aspectos pertencentes ao universo criado por Isaac


Asimov em suas histórias de robôs que são retomados no filme Artificial Intelligence.
Em primeiro lugar, há uma clara intertextualidade entre o filme e o conto “Robbie”, no
que concerne à figura do Dr. Know. No conto, como visto anteriormente, a menina
Glória se encontra com “The Talking Robot”, supostamente capaz de responder a todas
as perguntas. Porém, ao perguntar por seu amigo Robbie à máquina, esta acaba não
resistindo à enorme quantidade de informações. O encontro de David com Dr. Know
guarda algumas semelhanças com a referida passagem do conto. Percebemos que Dr.
Know nada mais é do que uma enciclopédia eletrônica. Hoje em dia, poderíamos dizer
que se trata de um Wikipedia ou de um software semelhante ao SIRI, do Iphone, mas
em uma verão tridimensional e mais interativa. Assim, a inteligência artificial dessas
máquinas é limitada às informações que são incluídas em seus sistemas por seres
humanos e, por isso, elas não são capazes de responder a qualquer coisa, como é
proposto.
Dr. Know dialoga também com um outro conto de Isaac Asimov, um dos mais
famosos e o preferido pelo autor, chamado “The Last Question”. O conto fala de um
supercomputador que tem a resposta para todas as perguntas, exceto uma: como evitar
que toda a energia do mundo se consuma e, assim, impedir o fim do mundo? A história
se passa ao longo de milhões de anos, mas o computador permanece incapaz de
encontrar a resposta. Por fim, quando toda a humanidade deixou de existir e tudo o que
resta é a escuridão, a máquina finalmente encontra a resposta e, a partir do nada,
consegue recriar o universo. É possível notar, também, outro dialogo com o filme, ao
lembrarmos dos super-robôs do futuro que possuem poderes sobrenaturais e sobrevivem
à extinção do homem.
Além disso, existem outras ideias criadas por Asimov que acabaram, também,
incorporadas ao filme, como a questão de que as máquinas não podem ferir ao homem
(1a Lei da Robótica) e a necessidade de autopreservação dos seres artificiais (3a Lei da
Robótica). Isso se comprova uma vez que os robôs são caçados e destruídos, mas não
reagem, não atacam os humanos. Por outro lado, eles tendem a fugir, se esconder e
tentar convencer de suas habilidades e de sua utilidade, a fim de que os homens não os
descartem.


133


O que podemos perceber, tanto na temática dos contos de Isaac Asimov, quanto
na do filme de Steven Spielberg é o interesse em se discutir as relações humanas: como
tratamos uns com os outros, de que forma agimos diante do medo de sermos
substituídos ou superados pelo outro. Além disso, tanto nos contos como no filme, o
leitor e o espectador são levados a desenvolver empatia pelos robôs e estes se tornam
heróis das histórias. Torce-se para que Robbie não seja devolvido à fábrica, não se tem
raiva de Cutie, mesmo que ele se ache superior aos cientistas e deseja-se que a
verdadeira identidade de Stephen Byerley não seja descoberta por seu oponente. No
caso de David, em Artificial Intelligence, a narrativa é contada a partir do ponto de vista
desse personagem e o público sofre com a rejeição da qual ele é vítima. Ao perceber a
possibilidade de identificação com esses personagens, confirmamos, mais uma vez, que
a Ficção Científica propõe, acima de tudo, uma discussão sobre a natureza humana.
Ficamos indignados com o comportamento dos homens que, no filme, querem destruir o
robô e com a atitude da mãe ao abandonar David, pois não aceitamos nossa própria
incapacidade de, muitas vezes, demonstrar amor, da nossa impulsividade destrutiva,
enfim, de nossas falhas diante de nossas próprias criações ou diante do outro.
Conforme foi visto, Artificial Intelligence – assim como outros filmes de Ficção
Científica – apresenta temas e componentes criados pela literatura do gênero. No
entanto, no último século, as mídias visuais, como a televisão, os jogos de vídeo game
e, em especial, o cinema, têm contribuído para uma grande popularidade do gênero. Isso
não significa, porém, que os livros de Ficção Científica estejam desaparecendo. Pelo
contrário, milhares de novos autores publicam a cada ano, mesmo que poucos leitores
que não são fãs de Ficção Científica tenham acesso a eles. Assim, o grande público só
vem a conhecer as histórias narradas por vários desses livros quando eles são adaptados
pelo cinema.


134


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observamos, a Ficção Científica é um gênero que ainda demanda muito


estudo, pesquisa e observação, a fim de que se possa aperfeiçoar seu entendimento e
caracterizá-lo de forma mais delimitada. É necessário que deixemos de pensá-lo como
apenas um subgênero, mas sim como um gênero autônomo, que traduz, como nenhum
outro, a sociedade contemporânea, expondo nossos pensamentos, temores, reflexões e
projeções futuras. Nenhum outro gênero, aliás, tem refletido de forma tão concreta a
respeito do futuro da humanidade como a Ficção Científica. Essa reflexão se dá tanto
em um âmbito mais externo, quando pensamos na questão da preservação do planeta e
das consequências da intervenção humana no mundo, quanto em um âmbito interno,
quando a literatura trata das questões psicológicas e das aflições e das ansiedades que a
convivência com a tecnologia e com a inteligência artificial pode causar.
Segundo Sigmund Freud, na obra O mal-estar na civilização,

[...] o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo


que existe exteriormente que só é forçado a surgir através de
uma ação especial [...] para o reconhecimento de um ‘exterior’,
de um mundo externo – é proporcionado pelas frequentes,
múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer [...]
Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode
tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um
puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um
‘exterior ‘estranho e ameaçador. (2012, p. 34)

Assim, através das palavras do psicanalista, compreendemos a existência de uma


angústia humana em sua relação com o mundo, com objetos que sejam externos ao
próprio eu. Vimos, através dos contos e do filme abordados nesse trabalho, que o objeto
externo ao homem em questão é o robô. Esse robô, no entanto, é também algo que faz
parte do próprio homem, uma vez que foi criado por ele e é, também, seu reflexo quase
perfeito. Ao mesmo tempo, o robô é algo interno, que causa dependência e admiração
no homem, e algo externo, levando a um sentimento de desprazer, por ser algo estranho
e ameaçador.
Verificou-se que fatores históricos, como as guerras e grandes processos de
industrialização, foram fundamentais para o surgimento da Ficção Científica como


135


gênero literário e que o meio em que esses textos foram publicados, as revistas ‘pulp’,
possibilitaram discussões entre leitores, editores e autores. Esse fato possibilitou que
esse tipo de texto se propagasse de forma bastante rápida e se desenvolvesse de forma
constante, tendo assim passado, no intervalo de poucas décadas, por etapas diversas
chamadas de Golden Age, New Wave e Cyberpunk. A Ficção Científica muda por
consequência das transformações que ocorrem no mundo e molda-se conforme novas
tecnologias surgem.
Vimos que Isaac Asimov, representante da Golden Age, apresentava uma visão
mais otimista a respeito de como seria um futuro cercado por máquinas. Os robôs
trariam benefícios e substituíram o homem em trabalhos que fossem arriscados,
cansativos ou enfadonhos. O autor tinha, também, um olhar de que os seres artificiais
não seriam capazes de herdar as falhas mais “perigosas” da natureza humana, como a
capacidade de ferir um ser humano ou de cometer um assassinato. Desse modo, há em
sua obra uma visão de que a maior ameaça à humanidade é o próprio homem, com sua
violência, intolerância (retratada no conto “Robbie” e “Reason”), capacidade de
manipulação (bem retratada pelas atitudes políticas mostradas em “Evidence”) e busca
apenas por seus interesses próprios (conforme se pode observar nos três contos).
À medida que a Ficção Científica foi se desenvolvendo, a visão sobre o mundo
foi se tornando cada vez mais pessimista: máquinas e seres humanos confrontam-se na
busca pelo domínio da sociedade. No filme analisado, Artificial Intelligence, a
perspectiva de um mundo em decadência, ocasionada, nesse caso, pelo derretimento das
calotas polares, está presente de forma bastante clara. Porém, assim como em Asimov, a
máquina é colocada ao lado do homem para destacar as falhas da natureza humana e
não para enaltecê-lo ou alertar sobre qualquer perigo que a tecnologia possa trazer. Pelo
contrário, os únicos seres capazes de demonstrar amor e cuidado ao próximo no filme
são os robôs – David, por sua mãe, Gigolo Joe e o urso Ted, por David. O longa
metragem é todo regido por um sentimento que deveria ser humano, mas notamos que o
homem se tornou muito egoísta para possuí-lo.
Tanto na literatura de Ficção Científica, quanto no cinema, vemos, então, uma
tendência a se realizar uma crítica social, a uma reflexão sobre valores, sobre ética,
sobre a forma como o homem age no mundo. Muitas vezes não somos capazes de
realizar esse tipo de reflexão se nos deparamos, apenas, com textos objetivos e
demasiadamente realistas. Apenas para que entendamos isso de outra forma, levemos
em conta que para uma criança entender certas ameaças ou para que ela possa refletir


136


sobre determinadas questões, utilizamo-nos de imagens, símbolos e metáforas, tão
recorrentes na literatura infantil. A criança é representada nas narrativas literárias por
outros seres, como animais, bonecos animados ou personagens antropomorfizados. A
Ficção Científica utiliza desse mesmo recurso, a antropomorfização de um outro ser,
como a máquina, para sensibilizar o leitor ou o espectador.
Será que essa identificação homem-máquina ocorre apenas na ficção? Fica claro
que isso tem ocorrido de modo cada vez mais frequente no mundo real, quando lemos
notícias sobre alguns fatos, como o ocorrido no dia 9 de setembro de 2015: um homem
de 60 anos, no Japão, agrediu um robô, apelidado de Pepper, que prestava atendimento
a uma loja de telefonia móvel, a Softbank. O robô foi desenvolvido para identificar
emoções humanas e, até mesmo, consolar pessoas quando estão tristes.

Figura 27: Pepper


Fonte: <http://www.camacarinoticias.com.br/noticias/3/4454,homem-ce-preso-apcos-
agredir-robco-que-era-funcioncario-de-uma-loja-no-japcao.html>

Essa história acabou com o homem sendo preso por destruir propriedade alheia e
com o robô tendo várias partes de seu sistema interno danificado. Assim, tanto na ficção
quanto na vida real deparamo-nos com atitudes inexplicáveis em relação à tecnologia
que nos cerca. O homem sabia que a máquina não era um ser humano, mas nem por isso
deixou de esperar do robô um comportamento mais adequado em relação às suas
expectativas. A semelhança entre esse fato e as agressões e ameaças enfrentados pelos
robôs nas narrativas estudadas são muito relevantes, pois constatamos, mais uma vez, a
capacidade que esses textos têm de revelar fatos sobre nosso futuro e sobre nossos
sentimentos e nossa essência.


137


Na ficção, a tecnologia não elimina o humano. Entretanto hoje, a questão do
humano está cada vez mais associada à produção tecnocientífica. As novas tecnologias
de comunicação e de informação, ao esmaecerem as fronteiras entre homens e
máquinas, possibilitam a criação de seres artificiais ou híbridos (ciborgues) e mundos
possíveis, modificando o conceito de humano e sua capacidade de intervenção no
mundo.
Talvez, o maior pesadelo do mundo atual seja que todo o potencial tecnológico
permaneça sob o domínio dos países ricos e das megacorporações. É preciso, pois, estar
atento para que as experiências possíveis decorrentes de novas tecnologias não se
restrinjam às pesquisas acadêmicas e que as histórias de ficção científica possam
sempre desvelar os temores do homem moderno em relação ao desenvolvimento da
tecnociência e as consequências que tal desenvolvimento poderá trazer à condição humana.
Sugerimos, a partir das questões levantadas nesse trabalho, uma contínua
observação quanto aos temas tratados pela Ficção Científica, propondo estudos de
outros textos, de outras questões apresentadas por eles, valorizando um gênero que é
considerado irrelevante, por muitos, ou menos importante, por outros, mas que tem se
apresentado como um importante meio para questionarmos a sociedade. Da mesma
forma, deixa-se também um espaço para que pensemos para onde a ciência tende a levar
o homem. A tecnologia se humanizará e nós nos tornaremos menos humanos? A
narrativa sobre a aventura da humanidade não está concluída. Quem escreverá os
próximos capítulos: a ficção científica ou a tecnociência?


138


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142

ANEXO A – UMA CRONOLOGIA DE EVENTOS E OBRAS


IMPORTANTES PARA O DESENVOLVIMENTO DA FICÇÃO
CIENTÍFICA136


1516 Utopia, de Thomas More
1543 Copérnico divulga sua teoria de que a Terra gira em torno do Sol
1609 Galileu constrói o telescópio
1634 Somnium, de Kepler
1640 John Wilkins escreve The Discovery of a New World, em que se especula sobre a
viagem à lua.
1667 John Milton especula sobre vida em outros mundos (Paradise Lost, Livro VIII)
1726 Jonathan Swift escreve Gulliver’s Travels
1752 Voltaire escreve Micromegas, que trata sobre a visita de uma alienígena do
planeta Sirius à Terra.
1818 Mary Shelley publica Frankenstein
1859 Charles Darwin e Alfred Russel Wallace propõem a Teoria da Evolução pela
seleção natural.
1864 Júlio Verne publica Viagem ao Centro da Terra.
1865 Gregor Mendel propõe as leis da hereditariedade, que servem como base para a
engenharia genética.
1865 Júlio Verne publica De la Terre à la Lune.
1869 Dmitri Mendeleev formula o modelo de tabela periódica mais utilizado.
1869 Júlio Verne publica Vigt Mille Lieu Sur le Mer.
1873 James Clerk propõe a teoria do eletromagnetismo.
1895 Wilhelm Conrad Roentgen descobre o Raio-X.
1895 H. G. Wells escreve The Time Machine.
1896 Henri Becquerel descobre a radioatividade.
1896 H. G. Wells escreve The Island of Doctor Moreau.
1897 H. G. Wells escreve The Invisible Man.
1898 H. G. Wells escreve The War of the Worlds


136
Fonte: SAWYER, Andy; WRIGHT, Peter (org.). Teaching science fiction. Londres:
Palgrave Macmillan, 2011.


143

1905 Albert Einstein propõe a Teoria da Relatividade.


1908 H. G. Wells escreve The War in the Air.
1911 Hugo Gernsback escreve Ralph 124C 41+
1912 Edgar Rice Burroughs escreve Under the Moons of Mars.
1913 Niel Bohr propõe o modelo atômico.
1914-1918 Primeira Guerra Mundial.
1915 Albert Einstein publica a Teoria Geral da Relatividade e Karl Schwarzchild
descobre o “rádio de Schwarzchild”, que possibilita a identificação de buracos negros.
1917 Revolução Russa.
1920 Karel Capek lança o filme R.U.R.
1922 Edgar Rice Burroughs publica At the Earth’s Core.
1923 H. G. Wells publica Men like Gods.
1926 Hugo Gernbeck funda a revista Amazing Stories.
1927 Georges Lemaitre demonstra a teoria do Big Bang na televisão.
1928 E. E. ‘Doc’ Smith publica The Skylark of Space.
1929 Edwin Hubble propõe a Lei do Universo em Expansão.
1929 Quebra da Bolsa.
1932 Aldous Huxley escreve Brave New World.
1933 Roosevelt propõe o New Deal.
1933 Edwin Balmer e Philip Wylie escrevem When Worlds Collide e H. G. Wells
publica The Shape of Things to come.
1937 John W. Campbell Jr. assume a editoria da revista Astounding Science Fiction.
1938 C. S. Lewis publica Out of the Silent Planet.
1939-1945 Segunda Guerra Mundial.
1942 A. E. Van Vogt publica “The Weapon Shop”.
1943 Oswald Avery estabelece que o DNA é o componente genético do cromossomo.
1945 Os Estados Unidos jogam a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki.
1947 Robert Heinlein escreve Rocketship Galileo.
1949 Os soviéticos testam sua primeira bomba atômica.
1949 George Orwell publica Nineteen-Eighty Four.
1950-53 Guerra da Coreia
1950 Isaac Asimov publica I, Robot e Ray Bradbury publica The Martian Chronicles.
1951 Isaac Asimov publica Foundation.
1952 Isaac Asimov publica Foundation and Empire.


144

1953 John Watson e Francis Crick descobrem a estrutura de dupla hélice do DNA.
1953 Isaac Asimov publica Second Foundation; Ray Bradbury publica Fahrenheit 451;
Arthur C. Clarke publica Childhood’s End.
1954 Isaac Asimov publica The Caves of Steel e Richar Matheson lança I am Legend.
1957 O primeiro satélite, Sputnik, é lançado pela União Soviética; início da Era
Espacial.
1959 Robert Heinlein escreve Starship Troopers.
1961 Robert Heinlein publica Stranger in a Strange Land.
1962 Anthony Burgess escreve A Clockwork Orange e Philip K. Dick lança The Man
in the High Castle.
1964 A China explode sua primeira bomba atômica.
1964 A empresa IBM apresenta o computador 360.
1965-73 Guerra do Vietnã
1965 Frank Herbert publica Dune, Philip K. Dick escreve The Three Stigma of Palmer
Eldritch.
1966 Robert Heinlein publica The Moon is a Harsh Mistress.
1967 É realizado o primeiro transplante de coração, por Christiaan Barnard.
1968 Philip K. Dick publica Do Androids Dream of Electric Sheep? e Stanley Kubrick
dirige 2001: a space Odyssey.
1969 A Apollo 11 chega à lua e Neil Armstrong é o primeiro homem a andar em solo
lunar.
1973 Arthut C. Clarke publica Rendezous with Rama.
1974 Suzy McKee Charnas publica Walk to the End of the World e Philip K. Dick
escreve Flow my tears, the Policeman said.
1976 Marge Piercy escreve Woman on the Edge of Time.
1981 Philip K. Dick escreve VALIS.
1984 O vírus da AIDS é isolado por cientistas franceses.
1986 Desastre nuclear em Chernobyl.
1986 Orson Scott Card escreve Ender’s Game.
1987 Lucius Shepard publica Life During War Time.
1989 Queda do muro de Berlim.
1990 William Gibson e Bruce Sterling publicam The Difference Engine.
1991 Fim da União Soviética.
1992 Kim Stanley Robinson escreve Red Mars.


145

1993 Kim Stanely Robinson escreve Green Mars.


1994 John Clute e Peter Nicholls escrevem The Encyclopedia of Science Fiction.
1997 A primeira sonda pousa em Marte.
1999 Greg Bear publica Darwin’s Radio, Peter F. Hamilton lança The Naked God e
Vernor Vinge escreve A Deepness in the Sky.
2001 A primeira seção do genoma humano é completado; Terroristas atacam o World
Trade Center.
2002 William Gibson publica Pattern Recognition.
2003 Audrey Niffenegger escreve The Time Traveller’s Wife.
2007 Brian W. Aldiss escreve Harm; William Gibson publica Spook Country.
2007 Steve Jobs e a Apple Inc. lançam a primeira versão do Iphone.
2010 O cientista Craig Venter desenvolve uma célula viva controlada por DNA
sintético; Mark Zuckenberg funda a rede social Facebook Inc.
2010 Alastair Reynolds escreve Terminal World.


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ANEXO B - Ficha Catalográfica do Filme

Artificial Inteligence (A. I.)

Direção: Steven Spielberg

Roteiro: Steven Spielbert, Ian Watson, Brian Aldiss

Elenco: Haley Joel Osment, Jude Law, Frances O’Connor, William Hurt

Ano de Lançamento: 2001

Gênero: Ficção Científica/Drama

Duração: 146 minutos

Título em Português: Inteligência Artificial

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