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Catalogo Índios, nós.

Museu de Etnologia, Lisboa 2000

"Não sabíamos que existiam limites..."

Dominique Tilkin Gallois


Universidade de São Paulo/ USP

Aldeia Taitetuwa, num dia de festa. Moradores e convidados vestiram tangas


vermelhas novas e se enfeitaram com miçangas. A dona da festa, que preparou a
cerveja de mandioca fermentada, começa a servir a bebida aos músicos que
ensaiam suas flautas. Os anfitriões terminaram de limpar a praça, onde em breve
todos vão dançar. Matapi, chefe da aldeia, chama seus netos: eles devem retirar o
marco de cimento que ocupa o centro da praça de dança. Seis crianças extraem da
terra o pesado marco, com ajuda de alavancas e, já sem forças, o deixam cair na
borda do terreiro. Será recolocado no seu lugar no dia seguinte, sob os cuidados
do chefe.
Em outras ocasiões, quando o professor ou enfermeiro convidam os jovens da
aldeia para uma partida de futebol, o marco da demarcação também é retirado,
para ser recolocado cuidadosamente, depois do jogo, no ponto exato onde foi
colocado em 1995, pela equipe de engenheiros encarregada de realizar os
medições da demarcação da terra dos Waiãpi.

A aldeia Taitetuwa foi, efetivamente, uma das primeiras visitadas pela equipe de
geodesia responsável pelos cáculos da demarcação física da Terra Indígena e, sem
conhecer ainda o modo de vida dos Waiãpi, decidiu fincar a peça bem no centro da
praça. Na perspectiva dos engenheiros este era o ponto ideal para o marco, que
deveria ser apropriado como um monumento, em torno do qual a aldeia poderia
crescer, como qualquer povoado. Os engenheiros recomendavam cuidados com o
marco, que deveria ficar no lugar para sempre, identificando o ponto exato a partir
do qual foram realizados os cálculos da obra demarcatória (1).

Trinta e duas plaquetas de bronze, numeradas, foram inseridas em marcos de


cimento como aquele, solidamente fincados no solo da terra Waiãpi. Esses marcos,
instalados em algumas aldeias e em todas as clareiras abertas nas cabeceiras dos
rios que delimitam a terra indígena, constituem-se em testemunhos perenes da
demarcação física realizada conforme normas técnicas da Funai, com vistas a
garantir aos Waiãpi o direito exclusivo de posse e uso naquela terra. Além dos
marcos de cimento, a visibilidade dos limites deve ser garantida por placas
instaladas ao longo dos rios limítrofes e por picadas com seis metros de largura,
1
Para realizar os cálculos, a equipe de geodesia instalou marcos em todas as principais aldeias,
que seriviram para medir - com apoio de GPS - a distância entre esses pontos e os marcos
instalados nas clareiras abertas nos limites da terra indígena.
que rasgam a floresta para marcar os limites nos trechos de linhas secas. Os
Waiãpi participaram diretamente dos trabalhos da demarcação física de sua terra,
realizada entre 1994 e 1996 (2). Foram eles que identificaram e abriram as
clareiras nos pontos que eles sabem corresponder aos extremos da área que foi
delimitada segundo suas indicações, nos anos anteriores. Eles também se
responsabilizaram pela abertura das picadas e pelo plaqueamento dos rios
limitrofes. As dificuldades de um trabalho tão intenso foi pontuado por inúmeras
peripécias. Jovens que carregavam sacos de cimento dias e dias seguidos,
atravessando serras e baixões, resolveram furar os sacos para aliviar o peso, mas
tiveram que voltar e percorrer todo o caminho de novo, com o cimento
indispensável para a confecção do marcos. A equipe de topografia teve de
interromper seus trabalhos toda vez que os membros das equipes indígenas eram
convidados a participar de festas nas aldeias por onde passavam. Carregar nas
costas, através da floresta, grandes placas de metal com as indicações “Ministério
da Justiça, Funai: Área proibida, Terra Indígena com acesso interditado a pessoas
estranhas...", também resultou em muita discussão. Mas os Waiãpi acabaram
concordando com esta medida, e instalaram as placas em todos os afluentes dos
rios limitrofes e nas zonas mais sujeitas à invasões, como uma forma, entre outras
de garantir visibilidade aos limites que estavam demarcando.

Que limites são esses ?


“Antes, não havia limites. Só floresta. Não precisava estabelecer limites. Toda essa
floresta era nossa. Os antigos só falavam das roças, onde ficavam suas moradas.
Delas, abriam caminhos para caçar e visitar outras aldeias. Nossos antepassados
só abriam caminhos de caça. Só marcavam esses trechos, só faziam esses
percursos. Quando acabava a caça numa área, abriam caminhos em outra direção.
E lá ficavam de novo....” (Chefe Waiwai, Okakai, 1995).

Para avaliarmos, mesmo que brevemente, a complexidade da tradução cultural


envolvida no processo de regularização fundiária de uma área indígena, é
necessário distinguir “terra” de “território”, em acordo com a diferença de
perspectiva dos atores envolvidos no processo de demarcação. O primeiro conceito
refere-se ao processo político jurídico conduzido sob a égide do estado, enquanto
o segundo remete à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma
sociedade específica e sua base espacial. Uma reflexão sobre a experiência dos
Waiãpi na demarcação de sua terra exige que se distingua, de um lado, a atuação
do órgão oficial na proteção de terras indígenas, via de regra conduzida num
formato protecionista, e, do outro, a criação e apropriação, por parte dos índios,
de um conceito de terra, que supõe autodeterminação na condução da defesa de
seu espaço. A representação que os Waiãpi tem hoje da terra que eles ajudaram a
demarcar, é o produto de uma longa construção, antes de tudo conceitual. Os

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Esta experiência de demarcação com participação indígena foi viabilizada através de um Projeto
envolvendo a Funai, a Sociedade Almã de Cooperação / GTZ e o Centro de Trabalho Indigenista /
CTI, responsável pela execução dos trabalhos, junto com a comunidade indígena
trabalhos da demarcação física dos quais eles participaram ativamente
representam uma etapa, entre várias outras que ainda estão por vir, de um
processo de transformação nas relações que eles mantêm há mais de dois séculos
com diversos segmentos da sociedade nacional. Nesta fase de sua trajetória, a
terra foi o mote de uma forma nova de busca pela autonomia. Hoje, procuram
alternativas de desenvolvimento (3) para a exploração exclusiva dos recursos da
terra cujos limites eles construíram, ao longo de muitos anos, modificando as
formas de gestão de seu espaço. Assim, se a experiência dos Waiãpi tem algum
valor para a reflexão sobre concepções de territorialidade, é porque ela
representou para esta comunidade indígena um exercício bem sucedido de manejo
coletivo, que é na verdade uma dimensão essencial da soberania que, enquanto
"índios", procuram exercer sobre porções de seu antigo território tradicional.

No início de 1993, quando decidiram executar eles mesmos a demarcação de sua


terra (e para isso partiram em busca de apoio externo - 4), os Waiãpi provaram
que haviam alcançado uma etapa significativa na regulação da convivência
interétnica. Demarcar sua terra significava assumir sua diferença, enquanto etnia,
e a partir daí exercer de fato a posse exclusiva de uma porção de terra que
consideram, agora, uma base territorial indispensável à reprodução desta
diferença. A noção de um “nós” Waiãpi só surgiu a partir da apropriação de uma
territorialidade limitada. Ambas são construções, interdependentes. Vale
mencionar as etapas desta transformação.

Entre a primeira proposta de delimitação da área encaminhada à Funai em 1978 e


a conclusão da demarcação, em 1996, os Waiãpi modificaram radicalmente sua
auto-imagem. Era antes constituída como uma esparsa rede interna de relações
entre diferentes grupos locais, que as ameaças externas não chegavam à
enrijecer. Hoje, todas as relações com o exterior encontram-se integradas à rede
interna.
A transformação de uma territorialidade aberta para o projeto de defesa de uma
terra demarcada pode ser comparado, grosso modo, à passagem de uma auto-
representação não centralizada e não territorializada (5) - onde os conceitos de

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Esperam de fato ampliar suas atuais alternativas econômicas, ente elas, a comercialização de
pequenas quantidades de ouro aluvionar , a produção incipiente de frutíferas, a venda de
artesanato. É significativo mencionar também que foi no contexto da demarcação que os chefes de
aldeia criaram um Conselho (também denominado APINA), cujos atuais líderes se preocupam em
atender a demanda diferenciada dos grupos locais, que se distribuem hoje entre 29 aldeias.
4
cfr. documentários "A saga do chefe Waiwai" (1989), de Geoffrey O'Connor, "Meu amigo
garimpeiro..." (1995) e "Placa não fala" (1996), Video nas Aldeias / CTI .
5
Uma característica das sociedades amazônicas, entre as quais os estudos etnográficos enfatizam
a inexistência de uma noção de território como base estruturante da cosmologia e da organização
social: “A relação entre uma sociedade indígena e seu território não é natural ou de origem... Não é
da natureza das sociedades indígenas estabeleceram limites territoriais precisos para o exercício
de sua sociablidade. Tal necessidade advém exclusivamente da situação colonial a que essas
sociedades são submetidas” (Oliveira,1989).
organização e ocupação territorial limitavam-se à percursos de ocupação
historicamente rememorados entre os membros de diferentes grupos locais - wan
para um “nós Waiãpi”, que surgiu no contexto de enfrentamento com um modo de
ser alheio e que, para existir, fixou-se numa base territorial que passou a ser
denominada "jane yvy, nossa terra". Esse termo só existe enquanto conceito
genérico acoplado à um “nós”, Waiãpi. Não faria sentido atribuir aos grupos locais,
concebidos na forma de um conjunto de relações acumuladas numa história de
relações interpessoais, uma base territorial. Não se diz “Mariry wan yvy”, “Wiririry
wan yvy”. Só há terra se há “Waiãpi”.

Para tanto, foi necessário gerir novas formas de relacionamento inter-comunitário,


em moldes muito diferentes do intercâmbio tradicional, sempre marcado por
tensões (nas trocas matrimoniais, rituais e sobretudo agressões xamanísticas).
Quando assumiram realizar a demarcação, numa decisão que envolveu
praticamente todos os grupos locais, os Waiãpi haviam alcançado uma
configuração sócio-política interna profundamente articulada ao seu entorno.

“Antes, não sabíamos que existiam limites para a terra, só sabíamos que tudo era
floresta... Agora, demarcamos nossa terra, porque é só o que sobra dos lugares
ocupados pelos antigos. Os nossos netos precisam defender esta terra para
continuar vivendo como waiãpi” (Kumai, chefe da aldeia Aramirã, março 1996).

Se a terra é hoje um suporte da etnicidade do grupo, tal afirmação resultou de um


processo que só se cristalizou com a apropriação de limites, sem os quais nada
precisava ser coletivo. A expressão "jane ywy" é uma invenção dos anos 80, usada
como sinônimo da auto-designação Waiãpi, que raramente era pronunciada nos
anos 70. Ambas são construções em constante transformação.Os limites que a TI
Waiãpi apresenta atualmente tomaram forma a partir do amalgamo entre
elementos da memória oral - relativa aos locais e percursos de ocupação dos
antigos - e da avalição coletiva dos impactos das práticas assistencialistas e da
crescente ocupação na região (6). O produto mais recente desta reflexão (a
demarcação e o plano de uso e fiscalização) é o valor, antes inexistente, dado à
"terra". Se, no passado, havia um consenso difuso - uma tradição - sobre uma
prática própria da territorialidade, o consenso atual se funda num conteúdo
histórico, que é novo. Como repetem todos os chefes, esta terra é o que nos resta
dos deslocamentos sem limites dos antigos. A atual territorialidade manifesta de
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O novo conceito de “limites” surgiu no confronto com invasores. Guiados por alguns líderes mais
conscientes da inoperância da proteção oficial, os Waiãpi assumiram expulsar os garimpeiros.
Entre 1983 e 1993, sucederam-se cerca de 20 operações, sob exclusivo controle dos índios. É
essencial esclarecer que se os Waiãpi foram capazes de “limpar” sua terra das invasões, é porque
essas eram dispersas e de pequeno porte: 10 a 30 garimpeiros em cada local podiam ser retirados
com métodos mais humilhantes (despidos e reconduzidos à Macapá, sob agressões verbais) que
violentos. As trilhas das invasões foram vigiadas, a partir de acampamentos que as famílias iam
abrindo, alguns transformados em aldeias. Ao mesmo tempo em que recuperavam porções da
área, os Waiãpi passaram a explorar as grotas antes usados pelos garimpeiros, integrando essa
atividade ao seu ciclo anual.
forma transparente práticas sociológicas novas, que o intenso relacionamento
interétnico impôs. Por isso, os Waiãpi sabem que sua terra só poderá ser
defendida pelo controle dessas relações com seu entorno. E é nesse sentido que a
demarcação é uma abertura (7) para o exterior e não um fechamento. Esta nova
concepção só pode ser entendida como resultado de uma expansão das relações
sociais que, agora, incluem os não-índios, sejam eles vizinhos ou distantes. As
afirmações de identidade contidas no discurso waiãpi não são necessariamente
limitadas à contraposição étnica: os índios de um lado, os não-índios do outro. Elas
representam sobretudo afirmações de caráter cultural. O que os Waiãpi pretendem
para o futuro é a continuidade de um “modo de ser”, que implica num formato de
relações internas que a aceitação de limites territoriais não necessariamente
inviabilizou. Como afirmava Ajareaty: "Agora estamo,s satisfeitos, porque vamos
poder continuar a dispersar nossas aldeias, visitar uns aos outros, passear de
aldeia em aldeia e os netos poderão abri novos caminhos de caça, longe..."
(Aramirã, julho de 1995).

Nos argumentos a respeito da sustentabilidade da demarcação, os Waiãpi também


refletem sobre suas relações com a população do entorno da área. “Placa não fala,
placa não tem boca, placa não segura a terra”, afirmava o líder Sara. Ou seja, o
esforço de sinalização dos limites de nada adianta se os donos do lugar não se
manifestam. Seu padrão de defesa territorial não se satisfaz, como prevê o manual
de demarcação da Funai, em tornar os limites “visíveis”. O que os Waiãpi postulam
é a necessidade de um novo tipo de relações com o mundo exterior, no qual
vigora a separação entre modos de viver a exclusividade. Defender a terra não é
apenas resguardar um meio de produção, mas um espaço de afirmação política de
diferença: o resultado que esperavam da demarcação era a manutenção de uma
posição de distância controlada em relação ao modo de vida dos não-índios.

Mas é importante salientar que quando os Waiãpi afirmam “demarcamos nossa


terra para que nossos netos continuem vivendo como nos sempre vivemos,
separados de vocês, karai-ko” (Seremete), tal projeção para o futuro não significa
total fechamento aos bens, conhecimentos e serviços alheios. Os Waiãpi, aliás, já
demostraram seu interesse nos saberes dos karai-ko - como são chamados os não-
índios - em múltiplas demandas: não querem estudar apenas em sua língua na
escola, mas desejam aprender matemática e português; além da venda de
artesanato que dificilmente satisfaz as demandas familiares em bens
industrializados, eles selecionaram atividades economicamente viáveis, como a
exploraração de ouro e grandes plantações de frutíferas; querem ter professores,
agentes de saúde, motoristas, mecânicos, videastas, todos Waiãpi. Mas todas
7
cfr. Viveiros de Castro, “é irreal imaginar uma soberania absoluta das comunidades indígenas
dentro de seu território; as sociedades indígenas não são autarquias: dependem economicamente
da sociedade nacional. A garantia pura e simples de um territoria tribal não assegura a
sobrevivência das populações indígenas. Se não meditar sobre as condições de comunicação
econômica entre a economia indígena e a economia nacional, haverá um esvaziamento das
possíveis reservas/áreas”.
essas novas alternativas continuam sendo inseridas num calendário sazonal
pautado pelo ritmo dos trabalhos agrícolas e por práticas extrativistas que
dispersam a população em um número crescente de aldeias e acampamentos
dispersos pelo território.

A expectativa que os Waiãpi tem hoje, de verem seus "limites" respeitados, não se
relaciona apenas a conceitos fundiários de cunho jurídico, mas expressa profundas
conexões entre esta sociedade e seus ambientes, conforme uma estrutura social
que regula o uso coletivo da terra e revela instituições políticas locais que
proporcionam a gestão direta dos recursos.
O respeito à essa demanda dos Waiãpi exige reconhecermos que suas aspirações
não se limitam à preservação de florestas, mas à criação de um espaço de
relações sociais e políticas mais equilibradas com seu entorno. O espaço social,
muito mais que o natural, é quem define a qualidade de vida diferenciada que os
Waiãpi, como outras sociedades indígenas, reivindicam.

Referências bibliográficas

Centro de Trabalho Indigenista - Relatório Final do Projeto Demarcação Waiãpi -


São Paulo, 1996.
- Terra Indígena Waiãpi: Alternativas para o Desenvolvimento Sustentável, CTI &
NHII & GEA, 1999.
Gallois, D.T - O discurso Waiãpi sobre o ouro: um profetismo moderno, Revista de
Antropologia, vol.30/31/32, São Paulo, 1987/88/89.
- Jane karakuri: o ouro dos Waiãpi. A experiência de um garimpo indígena - in:
Sociedades Indígenas e Transformações Ambientais, Org. A.C.Magalhães,
NUMA/UFPA, Belém, 1993.
- Participação indígena: a experiência da demarcação Waiãpi - in: Demarcações de
Terras Indígenas, GTZ & Funai, 1999.
Oliveira, João Pacheco - Terras indígenas no Brasil: uma tentativa de abordagem
sociológica - Boletim do Museu Nacional, vol.44, Rio de Janeiro, 1983.
- Os poderes e as terras indígenas - PPGAS, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1989.
Seeger, A. & Viveiros de Castro, E. - Terras e territórios indígenas no Brasil,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978.

textowaiapi.rtf - 14.05.2000

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