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CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA

QUILOMBO DESERTO FELIZ

des
erto
feliz
A realização do Quipea é uma
medida mitigadora exigida
pelo Licenciamento Ambiental
Federal, conduzido pelo Ibama.
DESERTO FELIZ DA
RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO
À LIBERDADE ATUAL
DO QUILOMBO

A Comunidade Quilombola de Deserto Feliz foi expedida pela Fundação Palmares (FCP) em
O Quipea – Quilombos no Projeto de Educação está situada às margens da RJ-204, acerca de 2010 e o processo de titulação de suas terras
Ambiental, da empresa Shell Brasil, é uma 13 km de Praça João Pessoa, no município de está em andamento no Instituto Nacional de
condicionante de mitigação do licenciamento São Francisco de Itabapoana, Norte Fluminense. Colonização e Reforma Agrária (Incra).
ambiental conduzido pelo Ibama, que desde O território de ocupação atual da comunidade, De acordo com a memória dos “mais anti-
seu início em 2009, trabalha com Quilombos formada pelas relações entre diferentes famílias gos”, seus antepassados viveram no “tempo da
certificados pela Fundação Cultural Palmares. e seus laços de casamento, é identificado a escravidão”. Há também referências a relações
Atualmente, atua em oito municípios, com 21 partir de uma origem que remete ao “tempo de casamento. Todos eles trabalharam em gran-
comunidades quilombolas. O projeto está em da escravidão”. Seus herdeiros compartilham des propriedades rurais do sertão sanjoanense
sua terceira fase, e tem por objetivo fomentar modos, saberes e práticas de trabalho na terra: e vizinhanças, tendo sido esse “sertão” também
a autonomia das comunidades quilombolas do no cultivo de lavouras, capina e manutenção marcado pelo tráfico ilegal de africanos, fugas
Quipea no âmbito do licenciamento ambiental. de pastos e roças, criação de animais e na de escravos e a formação de quilombos no
Para o cumprimento desse objetivo, há um produção de farinha de mandioca, além de século XIX.
conjunto de atividades planejadas e realizadas atividades também historicamente ligadas ao Após a abolição, os ancestrais continuaram
de modo articulado. Entre estas atividades está cultivo nas áreas situadas no interior de grandes residindo e trabalhando na região de Deserto
a Cartografia Social, que busca fomentar, em fazendas da região, tomadas como referência Feliz e adjacências, estabelecendo-se no interior
cada comunidade, processos coletivos e parti- pelos moradores mais velhos da comunidade. dos engenhos de cana-de-acuçar e grandes
cipativos que resultem no maior conhecimento Atualmente a Comunidade Quilombola propriedades como colonos ou moradores, e/
e planejamento dos territórios quilombolas. de Deserto Feliz é organizada a partir dos ou nos chamados “cantos” (ou “cantos de
O fascículo é um dos frutos desse processo núcleos familiares de Dona Santinha, 83 anos, fazenda” conforme expressão utilizada), nome
realizado em cada comunidade e foi concebido dona Mariinha, 103 anos, seu Alcino, mais dado aos espaços intercalados com as áreas de
a partir das falas de cada participante. Ao final conhecido como “Cicino” ou “Coco” (mestre ocupação das fazendas, onde viviam livres.
da publicação, constam maiores detalhes de do jongo), X anos, e de seu Moreno, falecido No entanto, de acordo com os relatos dos
como isso foi feito e quem colaborou. em 2018, aos 84 anos; seus descendentes e “antigos”, o “tempo da escravidão” foi mais
vizinhos. Alguns de seus antepassados foram longo do que contam os livros de história.
escravizados em fazendas localizadas no então Formas de trabalho escravo prolongaram-se
denominado sertão sanjoanense e localidades por muitos anos após o fim formal do sistema
vizinhas, como Morro do Coco, em Campos escravista. Relatos sobre castigos físicos, traba-
dos Goytacazes. lho extenuante, parcos pagamentos e ameaças
Hoje, a comunidade reúne cerca de 50 famí- não são raros entre os moradores mais velhos
lias dedicadas, predominantemente, ao trabalho que chegaram a testemunhar os maus-tratos
rural, apesar dos grandes obstáculos fundiários, infligidos por alguns dos antigos “patrões”
laborais e socioambientais que vivenciam. A so- (fazendeiros) aos trabalhadores rurais, também
licitada certidão de autodeclaração quilombola chamados à época de “moradores”.

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As memórias sobre o “tempo da escravidão”
passadas de geração em geração são acio-
O TEMPO DA ESCRAVIDÃO mato, para fora. Só que nisso eles
ficavam todos rasgados, uns morriam,
Eles eram bichos de ruim. Não era
gente, né? Fazer uma malvadeza
nadas pelos moradores de Deserto Feliz para não aguentavam e morriam ali. Os dessas. (…) Eu não sei até quando o
afirmar a sua identidade étnico-racial enquanto “Meus pais sempre contaram pra outros vinham com as barrigas todas meu avô serviu a escravidão porque
comunidade quilombola. São inúmeras as histó- mim histórias sobre o tempo da ensanguentadas, todas rasgadas. eu era pequena ainda. Ele contava
rias sobre esse período que chamam a atenção escravidão, sobre como os pais O meu avô nos contava que era essas histórias para as filhas dele e
para os maus-tratos vividos pelos antepassados deles tinham sido escravos. Moreno assim que se trazia madeira. Aí se para a mulher dele. Aí a minha mãe,
nas antigas fazendas da região e pelos que era bem antigo, ele contava muita os comandantes não gostassem de quando ganhou a gente, era ela que
ainda vivem, sobre o tempo em que trabalha- história também. Eu por isso me sinto um cara – às vezes alguém fazia contava para a gente. Aí o meu avô
ram no interior desses grandes estabelecimentos quilombola.” DONA SANTINHA ou dizia alguma coisa que eles não quando já estava velhinho também
rurais, no período pós-abolição. Por isso, ainda gostavam –, eles o penduravam em contava alguma coisa para a gente.
assim, conforme afirma Quito, morador da um tronco, que tinha um gancho, e Ele sentava para contar casos, contar
comunidade, o que os define é a luta pela “O meu avô Moreno sempre falava mandavam passar um chicote de histórias; aí a gente já estava já
liberdade, pois “é a liberdade o que define o sobre o sofrimento dos antigos que arame de felpo para bater. Aí eles grandinho, mas quem sabia tudinho
quilombola”. apanhavam de corrente, que passa- mandavam tirar a roupa e batiam, era a mãe da gente. Meu avô casou
vam fome, que comiam feijão duro, batiam, o sangue pingando e eles com uma índia apanhada no mato.
comida seca, todo esse sofrimento continuavam batendo. Enquanto não Ele ia tirar madeira, aí veio aquele
dos antigos meu avô contava pra “Era o meu avô quem contava matavam eles não sossegavam. Aí povo cantando lá na mata; ele ouvia
nós.” LEILA histórias do tempo da escravidão. amarravam o pescoço dele na corda aquelas vozes bonitas … Aí quando
Quando a gente era criança as ca- e no cabo do cavalo e arrastavam passaram uns tempos – ele serviu a
mas eram altas e não tinha colchão, ele até lá embaixo na pirambeira. escravidão –, aí ele não podia pegar
“Meu avô falava muito do tempo dos eram aquelas esteiras compridas. Era assim. Meu avô não sofria muito a dona, a menina. Aí quem servia a
escravos, era um tempo muito ruim. Aí quando a escravidão vinha com porque ele era cozinheiro. Disse escravidão chegava à meia noite em
Dizem que os escravos presos fugiam, aquela cavalaria, aí meu avô falava que não lavava arroz, não lavava casa correndo – as casinhas tudo de
e se recapturavam matavam, batiam. para a mulher correr e colocar nós nada, era tudo a maior sujeira. Era palha de pindoba, eu sou nascida
Então é a liberdade o que define o crianças todas debaixo da cama e um tacho grande, com aqueles tijolos em casa de pindoba. Aí depois que
quilombola, porque os negros, os jogar a esteira para tapar. Aí eles altos, aí ele jogava sacos de arroz ele serviu a escravidão ele foi para a
escravos, já sofreram muito nas nos jogavam lá embaixo da cama sem lavar para dar aos coitados, aos mata tirar madeira para vender para
mãos dos outros, dos brancos, dos e falavam: ‘Não chora não, não camaradas, o que comer. Era arroz, os fazendeiros e ouvia aquelas vozes
fazendeiros.” QUITO chora não. Fiquem todos quietinhos, era feijão, nada lavado. Matava um bonitas cantando, aí quando ele viu
ninguém fala nada’. A casa era de boi e a carne com sangue e tudo aquela mocinha bonita ele jogou a
palha, aí os comandantes vinham e era cozinhada naquele tacho para corda e ela gritou. Então os outros
rodavam aquelas palhas – que hoje dar nas cuias; antigamente era muita saíram gritando ‘piu piu piu, piu piu
em dia o povo chama de barraca, cuia, então o prato deles era naque- piu’, mas ele laçou a menina e levou
mas que naquele tempo era casa – e las cuias, aí colocava a comida lá para casa. Aí por uns tempos ela só
não viam crianças chorando, não para os coitados dos camaradas co- comia folha de mato, aquele matinho
viam nada e iam embora. Os fogões merem. Muitos morreram assim, pu- verde, catava flor nos matos para
não eram dentro de casa não, xando madeira nos braços, da mata comer. Até quando ela engravidou
aqueles fogões de lenha ficavam lá lá para fora do cercado (…). Era um ela não comia comida de panela
fora. Cozinhava-se lá fora e a mãe sofrimento, mas meu avô não sofria não, ela saía procurando aonde
trazia a comida para dentro de casa muito porque ele era cozinheiro e tinha aquelas folhas de laranja, flor
para nós comermos. Mas era tudo ele não comia essas comidas, ele do mato, tudo para comer. Aí minha
escondido, o avô da gente chegava fazia a comida dele separado, mãe, depois que me teve, também
e ensinava ela como é que era para escondido também, tudo escondido. era assim. Ela contava para nós o
fazer com a gente quando a escravi- Os fazendeiros, se ficassem sabendo passado deles. Eu conheci os meus
dão chegava com aquela porção de que tinham crianças ali, chegavam avós; a minha avó tinha o cabelo
cavalaria. Aí se ele chegasse a pegar dentro do quarto, pegavam elas pelo todo ‘pegadinho’, ela não penteava.
uma criança, ele pegava, torcia o pescoço as jogavam no pasto. Aí as O meu avô era pretinho, minha avó
pescoço e jogava lá no mato. A es- mães precisavam correr para escon- era mais clara. Meus pais e meus
cravidão aí colocava os camaradas der as criancinhas. Aí quando elas avós eram todos daqui da região.”
para trabalhar na mata para tirar estavam maiores e não estavam mais DONA MARIINHA, 103 ANOS
aquelas madeiras pesadas. Eles colo- mamando, as levavam escondido lá
cavam correntes nas madeiras para para fora porque ali não podia criar
os coitados puxarem as madeiras do não porque eles matavam tudinho.

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“Eu trabalhei junto com Rubens (primo
de seu Cicino), o nosso patrão era
AQUI TODO MUNDO
É PARENTE OS “CANTOS” DAS FAZENDAS
COMO TERRITÓRIO LIVRE
ruim, ele mandava passar água de
sal nas costas. Um dia ele chegou a
cavalo e falou para Rubens que ia “Aqui todo mundo é parente, todo
bater nele até matar ele. Eu estava esse lado aqui é cheio de parentes
acabando de arrancar a ração para nesses corredores que tem por aqui
os porcos e escutei tudo, depois eu na comunidade.” EDMUNDO
falei para ele: ‘eu vou fugir, vou
embora hoje, Rubens, vamos fugir’,
mas ele falou que não ia não porque “A partir da casa da Dona Santinha
se o patrão o pegasse ia matar ele. são os parentes, são as raízes. Os
Mas eu fui, arrumei minha roupinha, familiares de dona Santinha e de
botei numa sacola, peguei a estrada seu Moreno foram casando um com
e caí fora. Cheguei na casa do meu o outro e aí estão até hoje. (…)”
cunhado na Pedra Santa, aí fiquei DONA DALVA
3 dias e depois fui embora, isso em
1958, não tenho nenhum arrependi-
mento de ter ido embora.” CICINO “O Moreno faleceu bem na virada
desse ano, 31 de dezembro de A vida de trabalho na terra é um tema central comunidade chegaram a nascer e/ou trabalhar
2018, (…). Ele foi enterrado no cemi- das histórias das famílias de Deserto Feliz, em áreas de grandes propriedades rurais da
“Sobre o tempo dos antigos, quem tério da comunidade de Santa Luzia, sendo parte fundamental de sua identidade região, a exemplo das fazendas Triunfo, Santa
falava muito era o falecido Rubens, o que fica em direção à Praça João cultural, mobilizando o sentimento de perten- Luzia, Santa Isabel, Beira Rio, Quilombo, Belo
pai de ‘Careca’, ele dizia que tinha Pessoa. Geralmente o povo daqui é cimento ao grupo e ao lugar. Relatos sobre o Horizonte, Araponga, Caldeirão, entre outras.
sido escravo trabalhando junto com enterrado lá, alguns são enterrados trabalho familiar em grandes lavouras e pastos Os quilombolas mais antigos consideravam-se
Cicino, contava que Cicino saiu fu- no cemitério do Morro do Coco, mas da região são numerosos. “moradores” desses estabelecimentos rurais, des-
gido daquela fazenda, mas o Rubens é pouca gente. Moreno era meu avô, Por muitos anos, as famílias da comunidade locando-se, trabalhando e residindo ao longo
ficou.” CLAUDIANA pai do meu pai, do Zemilto, mais co- viveram no interior das fazendas locais, em do tempo em diferentes fazendas da região,
nhecido como Merro. Os irmãos do casas de pindoba, palha, estuque e barro, “morando de favor”.
meu pai são Pereira, Magrelo, Inhã, trabalhando para os “patrões”, sem, no entanto, É assim que o “canto”, onde atualmente
“Eu me considero quilombola porque todos tios e tias, e ainda tem mais. deixarem de buscar formas de liberdade, como vivem as famílias de Deserto Feliz, somente foi
eu sou preto, né? E os quilombolas A maioria somos todos parentes aqui, o cultivo de suas próprias roças e a busca de definitivamente conquistado em passado rela-
vem dos negros escravizados, né? muitos parentes do seu Moreno. Essa alternativas para deixarem de “morar de favor tivamente recente, embora todos tenham sido
Meu pai [seu Moreno] contava muito aqui, minha filha Mikeli, seria bisneta na fazenda”. Essa longa trajetória não foi fácil nascidos e criados na “região”. A conquista
sobre isso.” MERRO do Moreno, ela foi nascida e criada de atravessar. São muitas as memórias sobre as do atual território de modesta dimensão se deu
aqui em Deserto Feliz.” LEILA dificuldades para sustentar os numerosos filhos principalmente por meio de compra de “terre-
e frequentes deslocamentos de suas famílias, nos” no interior da antiga Fazenda Quilombo,
“rodando e rodando”, de fazenda em fazenda. onde alguns já viviam “de favor” ou como
“Muitos dos meus filhos casaram com No passado, sempre que necessário, as “moradores”. Essa fazenda pertencia ao velho
os filhos do Moreno, sei que foram famílias da comunidade deslocavam-se de Manoel Azeredo, também conhecido como seu
4 filhos meus e 4 filhos de Moreno, fazenda em fazenda da região em busca de Maneco ou Zé Maneco. Após a sua morte, em
tudo misturado. O Cicino casou com trabalho, moradia e áreas para o cultivo de suas 1968, sua viúva, dona Conceição, resolveu
uma irmã minha, também somos roças e demais atividades tradicionais, como a lotear parte da fazenda, vendendo os “terrenos”
família.” DONA SANTINHA criação de porcos e galinhas, a produção de para as famílias de pequenos agricultores, hoje
farinha de mandioca, tapioca e biju, a pesca de autodeclaradas quilombolas. Um sobrinho de
DONA SANTINHA, SR. ALCINO “COCO/CICINO”, curimbatá, piabinha, traíra, morobá, tilápia e Manoel Azeredo e alguns dos descendentes de
SR. MORENO: ORIGEM DA COMUNIDADE acará nos rios, valões e brejos, a caça de preá, seu filho João Azeredo estabeleceram relações
E DA IDENTIDADE QUILOMBOLA tatu, lagarto, jacaré e capivara nas matas e de matrimônio com pessoas do lugar. Por isso,
brejos locais, além da coleta de frutos e ervas, a algumas famílias da comunidade indicam laços
exemplo do coité para fazer cuias, capim-limão, de parentesco com os Azeredo.
saião e erva passarinho para o preparo de chás Atualmente, as terras da comunidade
e xaropes, usados até os dias atuais. são insuficientes para os plantios e criações
Dessa forma, muitos dos moradores da tradicionais, sendo necessária a prática de

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arrendamento de terras para a produção A GENTE JÁ NASCEU com água até a cintura desde nova, porcos, e assim, muita coisa não pre-
agrícola em áreas localizadas fora do território
comunitário. As atividades tradicionais de
TRABALHANDO ajudando a minha mãe na lavoura.
A gente arrancava aquelas taboas na
cisava ser comprada, tudo saia de
casa mesmo. (…) Nós tivemos que
pesca, caça e coleta também são realizadas mão e jogava para fora para tirar da sair desse terreno depois que o dono
com grandes dificuldades na medida em que a “A gente nasceu os dentes já traba- água. Aí com uma cavadeira, que vendeu a fábrica de farinha.” ANTÔNIA
região foi altamente impactada pelas atividades lhando [risos]. Éramos pequenos e cada um tinha a sua, fazíamos bura-
rurais dos grandes proprietários, perdendo a meu avô dizia assim: ‘vamos todos quinhos e jogávamos um punhado de
maior parte da cobertura vegetal que os mais para a roça’. Aí iam meus irmãos, arroz para plantá-lo. Quando colhia, “Eu morei 35 anos lá nessa fazenda
antigos rememoram com detalhes. As periódicas aquela criançada dos vizinhos, vinha a enchente e tínhamos que co- que fica ali perto dos morros que
estiagens (falta de chuva) também trazem gran- sobrinhos, tia com uma porção de lher o arroz dentro d’água. Acho que estão por lá, a fazenda Belo Hori-
des obstáculos para o trabalho nas lavouras e a criancinhas, cada um com uma é por isso que hoje em dia eu tenho zonte, quem tomava conta de lá era
pesca, influenciando inclusive o volume de água enxadinha nas costas. Na hora de muita câimbra, porque trabalhei muito um tal de Milton Terra Abreu, o dono.
dos “valões” e “brejos” locais. Por isso, a pesca- levantar era ‘benção pai, benção assim durante muito tempo. Esse arroz Mas lá é fora da comunidade (…)
ria é realizada muitas vezes em terras cercadas mãe’ e beijava na mão. Aí eles nos a gente plantava na fazenda do Ma- Tinham muitas fazendas por aqui pela
pelas fazendas, algumas delas localizadas em abençoavam e a gente ia tomar café, noel Azeredo, na vala que hoje fica região onde o povo trabalhava, a
locais distantes em relação à comunidade. sentávamos no banco e na mesa tinha ali no Dunga. Quando vinha enchente fazenda Triunfo, a fazenda Santa Ana,
Além disso, o sugestivo nome da antiga aqueles bijus de milho, tapioca, às a água chegava no portão de nossa várias outras. (…) Essa fazenda Belo
fazenda (Quilombo) apresenta interessante vezes tinha pamonha, papa. Tomá- casa, ali alagava muito, tudo era vár- “Meu pai, Moreno, me tirou aos 7 Horizonte ainda existe, tem até alguns
correlação com o nome Deserto Feliz. Embora vamos um café bem reforçado e eles zea, aí plantávamos arroz. A gente anos da escola para trabalhar na mais novos da comunidade que acho
a maioria desconheça a origem do nome de diziam: ‘está todo mundo de barriga plantava o arroz naquela várzea toda, roça junto com ele, ele tinha seus 11 que ainda trabalham ali, eu fiz muita
sua comunidade, uma antiga história contada cheia? Então vamos agora para a até lá embaixo no Barreto. Aí na hora filhos trabalhando junto. Nós passá- lavoura lá, trabalhava fazendo tudo.
por João Azeredo dizia que a denominação De- roça plantar para fazer fartura para de colher a gente pegava a caçamba, vamos muita fome, comíamos muita Lembro que ganhava 6 ‘merréis’ por
serto Feliz se referia ao distanciamento dessas vocês comerem’. Aí cada um ia com colocávamos ela nas costas e então batata, cozinhávamos ela na gordura semana, os outros ganhavam 4.” CICINO
terras em relação às fazendas e aos engenhos, a enxadinha nas costas. A gente lim- cortávamos o arroz e jogávamos para e comíamos com farinha, foi muito
à paisagem e ao som das risadas dos “escravos pava a terra todinha, justávamos os trás. Aí estendíamos aquele encerado sofrido para meus pais criar 11 filhos.
que moravam atrás das montanhas”. ciscos e os matos, aí depois, quando no terreiro e colocávamos o arroz A lavoura era no canto do Eliso, aqui
Deus mandava a chuva, os homens para secar.” DONA MARIINHA, 103 ANOS mesmo em Deserto Feliz, e a gente
iam cavando e a gente ia plantando morava na fazenda de Eliso também.
aqueles carocinhos de feijão.” (…) A gente trabalhava o dia todinho,
Quando eu era criança eu morava “Eu nasci lá em Morro do Coco, aí era aipim e milho que tinha, batata
em um lugar próximo ao Ponto de casei e depois com meu esposo fo- também, que era pra nós. Só nós que
Cacimbas de Praça João Pessoa. Eu mos rodando e rodando, primeiro lá trabalhávamos para o patrão, ficá-
fui criada numa fazenda que tinha lá para Santa Luzia, moramos também vamos dentro da fazenda numa casa
chamada São Tomé. Aí tinha um rio em Ponto de Cacimbas, depois com de palha que tinha lá (…).” MERRO PROPRIEDADES RURAIS
e meu avô ia trabalhar do outro lado Manoel Azeredo. A gente morava
do rio, ele ia de canoa. Tinha muito em casas de fazenda, meu marido
inhame, batata e taioba do outro lado trabalhava na fazenda. Se trabalhava “Eu nasci por aqui mesmo, mais reti-
do rio, aí tudo era trazido de canoa. durante a semana, no sábado se rado um pouco, nasci na Santa Luzia,
Eles levavam a gente na canoa e nós recebia um dinheirinho, era por lá tinha uma fazenda, era a mesma
brincávamos muito naquelas águas semana que recebíamos. Meu marido coisa do que aqui. Morava com meus
do rio; fui criada lá para depois vir trabalhava fazendo de tudo no ser- pais, meus irmãos. Meus pais traba-
para cá na fazenda de “Zé Maneco”, viço, com a foice, a enxada, na plan- lhavam lá, o trabalho era a mesma
quando eu já era moça.” (…) Eu já tação, tudo. A gente morava dentro coisa que aqui, trabalhavam na roça,
trabalhei muito meu filho, ajudando da fazenda, numa casinha. Aí saímos fazendo serviço, capinando. Eu já
o velho a criar essa filharada eu tra- dali e íamos para outra casa dentro moro aqui há 44 anos (…).” ISABEL
balhei muito. Já trabalhei até de foice, da fazenda também. Mas depois a
até de foice eu já rocei. Depois que minha filha comprou esse terreno pra
o velho morreu aí eu era obrigada mim, ela morreu já. Minha filha traba- “A casa do meu pai era ali do lado
a trabalhar para ajudar as crianças, lhava no Rio, numa casa de família, da fábrica de farinha, mas a gente
para não esperar só pelos filhos, aí ela juntou um dinheirinho para não cresceu ali, nós viemos de outra
né? A gente trabalhava, ia lá para comprar um terreninho onde fomos fazenda para Deserto, eu cheguei
Beira Rio trabalhar. Eu sou mãe de morar eu, meu marido e os filhos, eu aqui com 7 anos. O dono daquela
nove filhos, três já falecidos. (…) Eu tive 13 filhos.” DONA SANTINHA primeira fábrica de farinha deu um
trabalhei muito nas várzeas de arroz, terreno pra meu pai morar, criar

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AQUI ERA TUDO morava na fazenda desse Manoel
Azeredo, era morador de fazenda,
de lá também e fomos para Rubinho,
outra fazenda. Quando saímos lá do
comunidade aqui foi construída após
a morte dele. Aí o seu Riscadinho, “O Manoel Azeredo eu não cheguei
LISO, TUDO LIMPO porque isso aqui era tudo dele, Rubinho fomos para onde Ricardo, que também já faleceu, comprou ali a conhecer não, somente conheci
limitava com a fazenda Santa Lúcia, depois Ricardo vendeu as suas onde mora o Careca e quando eu o meu tio, João Azeredo. Mas a
eram quase 60 alqueires de terra terras para Manoel Lino, precisou cheguei aqui já tinha aquela casa ali relação dele, Manoel Azeredo, com
“É um mito a origem do nome Deserto nessa época, então tinham muitos nós sair, Ricardo pagou meu pai e que foi o genro do seu Riscadinho a comunidade era boa. Ele tinha
Feliz. Meu sogro, João Azeredo, fa- moradores que faziam os serviços foi com isso que a gente comprou que comprou. Só não tinha a casa muita moral porque ele era delegado
lava que o Deserto Feliz tem essa de- e que ficavam por aí morando, mas essa casinha que agora temos ali. de Benedita, mas tinha a sede que também. Na época quem mandava
nominação porque aqui era um lugar depois foram morrendo, saindo, e foi Meu pai comprou de ‘Vasoso’, mas eu até cheguei a morar lá. Depois da em Deserto era o delegado, que era
que só tinha montanhas e os escravos acabando” SALVADOR não sei de quem ele comprou esse morte de Manoel Azeredo, a esposa ele. Ele não andava com arma, mas
moravam atrás das montanhas e o terreno, pode ter comprado da viúva dele, Dona Conceição, vendeu as ele tinha um chicote que as pessoas
eco do sorriso, da risada deles, era do Manoel Azeredo. Eu só sei que terras e o lado de cá ficou para os respeitavam. Chamavam ele por
ouvido de longe. Então é o lugar que “O Zé Maneco deu a terra para a eu cheguei aqui quando tinha 7 ou herdeiros, filhos de Manoel Azeredo: delegado, aí o pessoal respeitava
não tinha grande movimento, que gente morar. Ali onde o Pedro mora 8 anos, era pequeno. Nós éramos João, Rita e Maria. O João, que muito.” SÉRGIO
não era muito povoado, mas que se é herança do meu marido, que Zé 3 irmãos, um é vivo, o Careca, já era filho único de Dona Chiquinha
ouvia o eco das risadas nesse deserto Maneco deu. Eu acabei de me criar o caçula, Reinaldo, morreu, eu era com Manoel Azeredo, é o pai do
que era um deserto feliz.” DONA DALVA na casa de Zé Maneco, vim moça de o irmão do meio. Desde os 7 anos meu marido. Rita e Maria são irmãs “A terra onde fica a igreja e a escola
“Eu já trabalhei muito na minha vida, lá da fazenda do outro lado quando que eu moro aqui em Deserto Feliz, do segundo casamento, com Dona daqui da comunidade foi o antigo
trabalhava por aqui mesmo nas minha mãe perdeu o marido e não continuo morando no mesmo barraco, Conceição. O lado de cá, até a dono dessa terra (Manoel Azeredo)
fazendas, a gente ia de trator, de quis ficar mais lá, aí ela veio para estamos ainda no mesmo local que jaqueira, ficou para a viúva Dona que doou.” CARECA
carreta. Na época minha casinha era as terras de Zé Maneco. Aí fui para meu pai comprou.” LUCIANO Conceição. Ela ficou com a sede
ruim, era antiga, de barro, quando a casa dele e de lá eu casei com o onde fica aquela figueira e com a
chovia passava a água, era muito sobrinho dele. Quando o Zé Maneco casa que ia até a jaqueira; isso é
triste. Mas eu trabalhando comprava faleceu eu já tinha criado essa filha- “Eu fui nascida e criada aqui, quando praticamente todo Deserto Feliz, já
a telha, comprava o tijolo, agora rada toda. O Zé Maneco é o Manoel eu nasci a casa nossa era de barro, o lado de cá ficou para os filhos. Aí
tenho minha casinha.” INHÃ MORROS Azeredo, já o João Azeredo é filho tinha lamparina, não tinha geladeira Maria e Rita venderam a parte delas.
dele.” DONA MARIINHA, 103 ANOS nem televisão. Era a casa dos meus Maria comprou uma fazenda em Fle-
pais, mas não lembro como eles a cheira (Campos dos Goytacazes) e
“Meus pais moravam numa fazenda “Aqui era tudo liso, tudo limpo, conseguiram; quando eu nasci, eles Rita foi para Alegria dos Anjos, que
próxima chamada Santa Isabel, só tinha o Manoel Azeredo, seu “Nós morávamos no Eliso ali, depois já trabalhavam para Valdir Português, fica em São Francisco do Itabapoana IGREJA IMACULADA CONCEIÇÃO
trabalhavam na roça lá e morávamos Maneco, que tinha essa banda que meu pai comprou um terreno aqui naquela fazenda que é de Roberto e tem até hoje. Já seu João ficou
lá também. Eu também não estudei, era sua propriedade; eu morava de em Deserto e nós saímos de lá, mas agora. O Roberto deve ter comprado com a parte da herança e parece
meu pai colocou seus filhos pra traba- favor ali do lado, e a sede dele era quando que foi isso eu não me essa fazenda há 5 anos, é recente, que também comprou alguma coisa, “Quando eu cheguei na comunidade,
lhar na lavoura, era uma vida muito mais pra lá. O pessoal morava na lembro, eu devia ter já uns vinte e por isso esse campo pra jogar bola ficando com terras ali da jaqueira em 1977, (…) só tinha a casa do
apertada, era duro. A gente não fazenda de favor, aí quando morreu poucos anos ou menos. Meu pai ali é recente também, fomos nós que para lá onde tem até a fazenda João seu Riscadinho, que, depois, o seu
passava fome porque meu pai criava, Manoel Azeredo e a viúva vendeu, comprou esse terreno aqui do irmão fizemos. Era tudo de Valdir Português, Carlos Barreto. Ali ele vendeu para Rubem – esse que levou muitas
porque tinha lavoura de batata, foi os que ali moravam foram saindo, dele, conhecido como ¨Boquinha¨. Já ele teve a fazenda muito tempo, mas o Cristóvão que continua com as pancadas e chicotadas – foi morar
assim que meu pai nos criou, mas alguns compraram, mas o pessoal o ¨Boquinha¨ comprou do seu João faleceu e os filhos foram vendendo a terras até hoje. (…) João foi o único ali; a casa que morava a filha do
era uma vida muito dura.” JERUSA foi saindo e por isso foi ficando com Azeredo, que era o dono de tudo fazenda.” CLAUDIANA filho de Manoel Azeredo que ficou Seu Riscadinho, Dona Elira, e que
pouco morador aqui. (…) Nós fomos isso aqui. Eu cheguei a conhecer ele, aqui. João teve dois casamentos, o hoje mora Cristiane e Raphael, neto
criados aqui mesmo nessa fazenda ele era bom.” MERRO primeiro com a Dona Olga e depois do Seu Cristóvão; e tinha a sede,
“Eu não fui para a escola, sempre e não saímos mais não. Aí o dono “Eu não morava aqui, mas o pessoal com a minha sogra, Dona Irene. Ele onde Salvador mora, mas não era
trabalhei de roça, desde pequeno. daqui, Manoel Azeredo, morreu, e conta que, no início, aqui somente teve vinte e um filhos no total, com ele que morava ali, era um senhor
Trabalhava roçando capoeira de passou para outro filho dele, que era “Desde quando eu saí da proprie- tinha a casa da fazenda do seu três mulheres. Por conta disso, boa chamado Laerte, que até tinha
foice, plantando capim, cortando o tal de João Azeredo, e aí foi só dade do João Manteigo, proprietário Maneco, a escola e a casa dos parte da herança dele foi dissolvida um comércio e depois ficou para
limão, tudo desde criança.” CARECA repassando, foram vendendo, outros da fazenda Santa Isabel, eu moro em pais de Salvador. Não tinha mais entre os filhos. Ele era uma das pes- Deci. Tinha também a casa do Seu
foram comprando, outros já foram Deserto Feliz. Eu nasci lá porque meu casa de ninguém; não tinha a caixa soas mais ricas da região. O pessoal Moreno que fica no mesmo lugar de
vendendo para outros, cada um pai, o Rubens, trabalhava lá nessa fa- d’água, a casa de Pedro, de Dona mais antigo conta que ele tinha mui- hoje, onde tem a venda, a casa que
pegava a herança, e ai nós ficamos zenda. Meu pai trabalhava cortando Santinha e nem a casa de Moreno. tas mulheres, era muito namorador. hoje mora Claudiana e a casa de
nessa parte aqui, do lado do marido capim, arando terra, aí seu Manteigo A comunidade foi criada depois, Quando eu cheguei, ele já era um Pedro, de estuque, que era onde a
de Dona Dalva. Então aqui é a cedeu um espaço para a gente morar. de cinquenta anos para cá. Parece santo [risos].” DONA DALVA Dona Mariinha morava. Por último,
parte do meu pai, já a minha mãe O Manteigo faleceu e nós ficamos que faz cinquenta e um anos que tinha uma casa comprida onde é a
é do pessoal dos Germano, Maria ainda, mas todo mundo foi indo em- o Manoel Azeredo faleceu. Foi no jaqueira. O senhor plantou essas três
Benedita Germano; o pessoal dela bora da fazenda e depois nós saímos dia 9 de agosto de 1968. Então, a jaqueiras por causa de acidente de

8 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 9


carro naquela curva. Essas eram as
casas que tinha aqui naquele tempo. “A gente tem um recibo de compra
ERA TUDO COLHIDO EM CASA moinho que tinha numa fazenda pró-
xima no tal de Pedra Lisa, perto de
O Benedito morava na fazenda de e venda de terras, porque aqui era Morro do Coco. Nesse moinho fazía-
Bitinho Abreu, aquele que Seu Cicino uma fazenda, cujo dono inclusive é “(…) era quase tudo de roça, não mos o fubá, levávamos um saco de
sempre fala que foi patrão dele. Nós aquele que dá nome à nossa escola, comprávamos quase nada em milho e voltávamos com meio saco
da família de seu João morávamos Manoel Azeredo. Ele doou para vendas. Feijão, arroz, muita batata, de fubá de milho, levávamos um saco
ali e continuamos no mesmo lugar. o Estado o terreno onde agora se muita banana, criávamos muitos de arroz e voltávamos com meio de
Salvador que foi morar naquela casa encontra a escola, escola que não ESCOLA porcos, galinha. Até na minha época saco de fubá de arroz, porque tinha
ali também continuou na mesma é mais estadual, e sim municipal. mesmo eu criei com a filharada uma aquele negócio da meia. Tinha um
família. Já dona Santinha morava Antigamente a escola não tinha fartura de criação de animais: ganso, carro de leite que passava por aqui
numa propriedade de Manoel Tereza, prédio próprio, então a fazenda, “A estrada não passava aqui, ela pato, peru, muita coisa. Ninguém e que ia até Pedra Lisa levando leite,
lá na frente na beira do valão. Esse que era uma só cortada pela atual passava ali por trás. Dona Mariinha comprava arroz, era tudo pilado em e ali combinávamos com o motorista
terreno que ela tem aqui foi a filha rodovia estadual RJ-204, foi dividida falou que essa estrada foi um primo casa; café nós não comprávamos e ele levava os nossos sacos de
dela que comprou e deu para ela porque Manoel Azeredo vendeu o dela que construiu no governo do e como fazíamos café de cana era “A família da minha mãe trabalhava arroz e milho pra gente, para poder
porque ela morava de favor. Depois lado direito para um proprietário Celso Peçanha. Ela foi construída muito difícil a gente comprar açúcar. na roça, plantando, colhendo, trocar por fubá. Por isso te falo que
da casa de Santinha tem a casa de rural, Valdir Português, sendo que o com uma máquina e a Dona Marii- Nós fazíamos melado, fazíamos cevando porco, galinha, plantando antigamente quase que não comprá-
seu Moreno, que era de Caldeirão outro lado da fazenda ficou com a nha falava: ‘Dona Dalva, a máquina rapadura, tudo da cana. A gente mandioca, trabalhando na casa de vamos, só comprávamos querosene
e se mudou para cá. Aí os filhos de viúva dele, Dona Conceição. (…) No vinha rasgando, veio rasgando de pelava e torrava aquele café vindo farinha, raspando mandioca, era as- e o sal, depois era tudo colhido
Santinha, depois que ela se mudou decorrer do tempo, dona Conceição Praça João Pessoa até Mutuca’. Essa do cafezal, era assim. Era muito sim, vivíamos essa vida. Vendíamos em casa. Quando matávamos um
para ali, casaram com os filhos de e suas filhas venderam a maior parte é a estrada de Deserto Feliz; foi o difícil comprar as coisas em venda. porcos gordos em Santo Eduardo porco tínhamos carne e banha
Moreno e ficaram ali próximos e do seu lado da fazenda para o Mário Barreto que era dono da Fa- O arroz a gente vendia também, e se fazia um dinheiro para viver.” direto, quando alguém matava uma
construíram casas. Esse terreno de irmão do seu Moreno. O irmão do zenda Rio Preto que foi o responsável eram sacos e mais sacos. Em dia de (…) Antigamente a gente quase não rês distribuía com o pessoal.” (…)
Moreno, aquela área, era do irmão seu Moreno e o próprio seu Moreno pela construção dessa nova estrada feira o meu avô pegava o carro de tinha gasto com o negócio de venda, Antigamente a alimentação era sadia,
dele, chamado Buquinha. Isso aí foram dividindo e vendendo esse aqui. Aí ele conta a mim aonde é boi e ia lá para Gargaú, levava saco o que a gente comprava mais de não tinha remédio, não tinha nada
foi antes de eu chegar aqui. Aí seu grande terreno.” DONA DALVA que tem os caminhos, e aqui no de arroz, saco de feijão, saco de mi- primeiro era o sal e o querosene, de ruim. Por isso que esse pessoal
Moreno comprou de Buquinha esse fundo era uma raia (uns falam raia, lho … ele enchia o carro e o carro ia do resto a gente colhia cana, fazia antigo tem até hoje uma saúde boa,
terreno e conforme os filhos foram outros parelha, em alguns lugares é cantado. Ele levava uns cinco ou seis o café de cana, não comprava não tinha óleo, era banha de porco,
casando eles foram fazendo as casas “Eu cheguei a estudar na escola hipismo).” DONA DALVA dias lá em Gargaú e quando voltava açúcar, o pó de café a gente tinha a carne era toda sem remédios, toda
na terra do pai. Ali perto de Dona daqui da comunidade, na escola trazia sacos de sal, sacos de bagre um pessoal aqui que fazia lavoura criado no terreno, as verduras não
Santinha, Ricardo comprou. O resto Manoel Azeredo, que é muito antiga. salgado e latas de querosene para a de café grande, e quando era a tinham remédios para madurar, hoje
é tudo do seu Moreno (…) Depois de Naquela época a gente não ligava “O Zé e o Dunga (fazendeiro vizinho) lamparina. Quando não tinha quero- época de colheita eles iam colher um em dia o abacaxi, por exemplo, só
Moreno – onde mora Toninha, que muito para estudo, eu fui até a são irmãos, e a esposa de Zé é a sene a gente usava azeite de baga café, e quando chegava o tempo da tem remédio aplicado para crescer
tem até uma venda na frente – foi terceira ou quarta série, mas depois irmã da minha esposa, da Edilse, na lamparina (socávamos a baga e colheita minha mãe ia colher café e amadurecer, fica todo sem gosto.
seu Orbílio que comprou aquele parei porque isso tudo aqui era de então elas são concunhadas. O Zé colocávamos ela no fogo com água com o pessoal, trabalhar dias lá, e Antes o abacaxi madurava no tempo
terreno ali da dona Conceição. Aí um tio do meu pai, essa fazenda então pegou essa parte daqui que era até o óleo dela subir para podermos voltava trazendo sacolas de café, dele, por isso tinha o gosto da fruta
ele construiu aquela venda na frente, aqui toda, ai nós fazíamos muita herança do pai da minha esposa e tirá-lo e ter o azeite). O dinheiro que de caroço. A gente tinha um pilão mesmo, a banana, a laranja igual.”
que era um salão para forró, e roça, isso aqui tudo era água, era da de Zé, aí quando o pai da minha meu avô fazia vendendo os sacos grande de madeira que tinha um bu- SALVADOR
construiu a casa; quando eu cheguei uma lagoa grande, então chegava esposa morreu, o João Azeredo, que de arroz e feijão ele comprava essas raco no meio e de noite minha mãe
aqui ele estava construindo. Quando de manhã cedo e tínhamos que dar era filho de Manoel Azeredo, foi parti- coisas para trazer para cá. Meu pai pegava os caroços de café, colocava
seu Orbílio adoeceu e foi para Santa ração aos porcos para cevar eles, lhando a parte da herança dele. O Eli, ia junto com o meu avô também. No ali dentro e pilava, socava, coava
Maria, ele vendeu até lá embaixo no soltávamos os porcos, fazíamos a marido de Dalva, pegou sua parte tempo do Zé Maneco ele ia também e limpava tudinho, e no outro dia
valão para Zé Antônio, que loteou roça, então a escola a gente não também, o Zé e a sua esposa, e já eu para Gargaú trazer as coisas, ela pegava aquele café, torrava na
e vendeu vários pedações de terra” ligava muito não, dava terceira ou peguei essa parte aqui por causa da porque era muito difícil ter venda por panela no fogão a lenha, botava de
DONA DALVA quarta série, em que a gente tinha minha mulher, por parte da herança aqui.” DONA MARIINHA, 103 ANOS novo no pilão, e depois enchia lata e
que ir estudar para outros lugares, que lhe deixou o pai dela.” SALVADOR. mais latas de pó de café e guardava.
e a gente terminava ficando por Ai quando acabava a coleta de pó
aqui para trabalhar. O nome do tio “Quando era criança lembro que meu de café a gente só utilizava o café
do meu pai era Manoel Azeredo, pai trabalhava criando porco, gali- daquelas latas em casa. E sobre a VENDA DE ABELARDO
o mesmo que dá o nome para a nha, e quando casei lembro que meu cana, tinha um moinho onde a gente
escola.” SALVADOR pai vendeu os animais de casa para moía a cana, fazia aquele baldão
fazer meu casamento (…).” ANTÔNIA (…) e tomava no café. Já o feijão a
gente colhia da roça, o arroz a gente
SALÃO PARA FORRÓ plantava e colhia, e o milho a gente
colhia o milho e levávamos para um

10 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 11


da minha casa, meu filho Sérgio era
“Aqui no Deserto tinha uma venda pequeno, e eu ajudei bastante o pes-
que era do Seu Deci e depois foi soal porque eles não sabiam muito
para o meu sogro. Meu sogro tinha como funcionava o trabalho. Muita
uma venda lá em cima, depois da gente trabalhou lá, tinham muitas
jaqueira e também tinha o seu Abe- mulheres para raspar mandioca. Em
lardo aqui. Eu sei que essas vendas tempos de plantação de mandioca
todas tinham secos e molhados, tinha eu e o velho Amaro que íamos para
tudo, até tecido tinha. Era tipo um a roça tomar conta dos camaradas e
bazar. Eu não comprava porque eu BOLANDEIRA (CASA DE FARINHA) eu que tinha que estar na frente para
vinha trabalhar, mas eu sei que tinha. ensinar as mulheres como é que se
Aí depois eu passei a morar aqui e jogava as mandibas na terra para
o pessoal vendia muita carne seca – “Na bolandeira tinha um raspador de plantar. Ia uma porção de gente
eles matavam o boi e aquelas carnes raspar mandioca e tinha um lavador covando na frente e eu ia ensinando
do açougue que sobravam eles que era um tambor bem grande. De- aquelas meninas novas que não
vendiam assim. Eu lembro que na pois que a mandioca estava mais ou sabiam o processo. Eu acordava
casa do seu João tinha uma gamela menos lavada elas eram colocadas de madrugada, fazia almoço para
de madeira, tipo uma canoa, e eles no chão e a gente pecava a faca e quando chegar 5h da manhã estar
enchiam aquela gamela de carne limpávamos tudinho. Tinha um carri- tudo prontinho para irmos à roça
já salgada e vendiam nos arredores, nho que ficava de baixo do lavador DONA MARIINHA, 103 ANOS
nas vendas. Nas vendas aqui tinha que jogava a mandioca. Aí jogava a
queijo, o pessoal fazia muito queijo; mandioca lá, o carrinho vinha e nós
tinha toucinho e linguiça caseira, por-
que o pessoal criava muitos porcos
A ANTIGA FÁBRICA raspando a mandioca. Meu irmão
inclusive trabalhou na fábrica de
sentados limpávamos a mandioca
com a faca. Depois jogava na ceva-
e então colocavam nas vendas; ven- DE FARINHA farinha, muita gente daqui trabalhou. deira lá e ia rodando. Isso é nesse
diam requeijão pré-cozido, aqueles Mas a bolandeira parou, teve dois tempo agora, mas na minha época
que ficam em forma de queijo. Tinha donos, o primeiro dono era de Praça mesmo era de roda de braço. Tinha
laranja, muita laranja. De Praça João “Tinha uma antiga fábrica de farinha, João Pessoa, ele trabalhou muitos aquela roda de veia e o rodete cheio
Pessoa para cá, as melhores terras a bolandeira, saíam caminhões lota- anos e depois ele vendeu para o de serrinha e a gente girava a roda
para agricultura estão aqui. Lá em dos dali. Eu trabalhei ali muito tempo, dono que está aqui hoje, na verdade no braço, igual a um motor. O braço
Barra é litoral, então é mais peixe, eu sei que com 11 anos que eu saí esse segundo dono já é falecido, da gente que era o motor [risos],
assim como em São Francisco do para trabalhar fora, eu já trabalhava mas são os filhos que assumiram e puxando a roda. Aí fazíamos sacos
Itabapoana. Até a pastagem para na fábrica, desde os 9 anos mais deixaram a bolandeira toda jogada, e mais sacos de farinha, fazíamos
lá é tudo escassa, já daqui de Praça ou menos. A farinha era vendida parada, não tocaram mais. Era uma biju, tapioca, farinha de tapioca, era
João Pessoa até Santa Luzia, Mico, para fora, e a mandioca vinha das fonte importante de renda, quando assim. A mandioca era arrancada na
Boa Sorte, Itaperuna, Santa Maria de fazendas, a mandioca que o pessoal a bolandeira fechou o pessoal que roça, juntavam homens e mulheres
Campos, Morro do Coco e até Minas plantava demorava uns 9 meses trabalhava lá foi tentar procurar e eles iam para a roça arrancar
Gerais o pasto é melhor. Aqueles para tirar mais ou menos. Ás vezes emprego em fazendas né, alguns mandioca. Aí de lá nós pegávamos
caminhões de leite que passam aqui os fazendeiros faziam “meia” com o saíram fora para procurar emprego o cesto de mandioca e jogávamos
são todos dessa região de Praça pessoal daqui da comunidade. Mas também.” ANTÔNIA em cima do carro de boi, enchíamos
João Pessoa para cá. Então ainda hoje não tem mais fábrica de farinha, as carroças e vínhamos para raspar
tem o leite, mas o leite nem fica mais hoje o que se planta é aipim e como mandioca na bolandeira. A bo-
por aqui, vai pra Morro do Coco.” não tem mais bolandeira levam pra landeira era grande, de palha de
DONA DALVA vender no Rio. Mas eu trabalhei pindoba, aí jogava a mandioca ali
nessa bolandeira raspando man- e a gente raspava. A gente raspava
dioca, era outro pessoal da fábrica tudo na faca e depois jogávamos
que fazia a farinha, o dono pagava a mandioca para dentro do cocho,
a gente só para raspar mandioca. esses cochos grandes, e ia lavando
Ele tinha também um outro pessoal enquanto outros iam cevando. Essa
da comunidade que torrava a farinha, bolandeira era lá para os lados
que mexia no forno, que fazia a de Praça João Pessoa. Eu trabalhei
massa, polvilho, mas isso já era mais muita raça de anos nessa bolandeira,
com os adultos, no caso as crianças desde pequena. Quando abriu a
e as mulheres trabalhávamos mais bolandeira em Deserto Feliz, pertinho

12 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 13


MEMÓRIAS, SABERES ANTIGAMENTE AQUI
TINHA MUITA PARTEIRA “Antigamente aqui tinha muita
parteira, de primeiro era só parteira,
“Tinha aquela tradição também de
apresentar o filho para a lua, eu

E PRÁTICAS “Eu fui parteira durante muito tempo,


o menino mais novo que eu ajudei a
esse negócio de hospital era difícil,
a minha mãe mesmo era uma das
que fazia o negócio de parto, que
mesma já cheguei a apresentar.
O pessoal falava que se não se apre-
sentava a criança pra lua a criança

TRADICIONALMENTE ganhar é aquele menino que agora


tem 9 anos, que é o filho da minha
neta. Eu aprendi porque antigamente
ajudava ao pessoal a ganhar neném.
Vinham trazer as mulheres aqui para
fazer o parto, a minha vó, uma tal de
ficava amarela. Antigamente era as-
sim, e o pessoal acreditava muito. Se
pegava a criança quando a luz da

COMPARTILHADAS tinha uma parteira, uma tal de Elvira,


que já morreu, aí quando ela ia fazer
parto eu sempre estava junto com ela
Maria Estela, também era parteira,
a minha outra vó por parte de mãe
também era, e era assim, quando
lua estava brilhando e falavam assim:
Lua, luar, pega essa criança e me
ajuda a criar, depois de criado torne
trabalhando, assistindo. Ela não era alguém da comunidade sentia que o a me dar. Eu fiz isso com meus filhos,
nem médica nem nada, era parteira, neném estava vindo, pegavam o ca- se fazia numa noite só.” ANTÔNIA
aí ela me ensinava e eu aprendi, valo e vinham rapidinho até a casa.
tanto que depois os meus filhos eu Mas de um tempo pra cá, com esse
até ganhava comigo mesmo. A mais negócio de hospital e pronto socorro, “Eu não fiz isso (sobre apresentar o
nova minha que eu fiz o meu próprio o pessoal começou a ir pra lá para filho para a lua), mas a minha mãe
parto está agora com 44 anos hoje, ser atendido, mas antes era tudo fazia com os meus, com seus netos.
a minha caçula. Graças a Deus todos feito em casa, ninguém saia pra fora Outra coisa que eu lembro é que os
Boas lembranças, saberes e práticas culturais os partos que eu assisti deram certo. não.” (…) Antes para dar banho nas dentes das crianças a gente jogava
estão presentes na memória e no cotidiano da A caçula minha deu um problema, crianças se enchia a bacia de alumí- em cima da telha das casas, não
comunidade. As rodas e os tambores do jongo, mas a tal de Elvira morava ali nio cheia de água e se colocava no sei pra quê, só lembro que se fazia
o forró, o futebol, a festa e a cavalgada de pertinho e eu mandei o meu marido sol, esquentava lá e com isso se dava muito.” EDILSE
São João, assim como as antigas parelhas de chamar ela. Porque essa minha ca- banho para as criancinhas, para as
cavalos, as parteiras, o ritual de apresentação çula veio de pé, aí precisava de um crianças ficarem fortes com a água
dos recém-nascidos para a lua, as procissões ajudante, é bem mais fácil quando o esquentada no sol.” SALVADOR REZAR PELAR CHUVA,
e trocas de santos para chamar a chuva são
parte das inúmeros expressões culturais tradicio-
neném vem de cabeça, mas quando
é de pé tem que ir se ajeitando,
TROCANDO OS SANTOS DAS
nais, cuja lembrança e manutenção contribuem puxando um pé, depois o outro, dá “A Mariinha era parteira também, ela CASAS PARA QUE CHOVESSE
para o fortalecimento da identidade de Deserto para ajeitar. Mas agora mudou tudo, e a Santinha ajudaram em alguns
Feliz como comunidade quilombola. as mulheres ganham filho no hospital, dos meus partos. Elas eram boas, a
Dentre estas várias práticas culturais desta- de cesária, não tem parteira mais Santinha fazia até o próprio parto “Antigamente tudo mundo era cató-
ca-se o jongo e as grandes festas realizadas também não.” DONA SANTINHA dela.” JERUSA lico, aqui não tinha ninguém “crente”
em torno deste no passado, onde fogueiras não, só agora que vários ficaram
iluminavam e aqueciam aos que ali se congre- “crentes” ali. Nós somos católicos,
gavam para assistir ou participar das “rodas de “Eu já servi a algumas mulheres QUANDO A CRIANCINHA lembro que antigamente se trocavam
DONA SANTINHA SEGURANDO
O LIVRO INTITULADO
tambor” que se prolongavam durante a noite
toda. Mesmo aqueles que, por sua pouca idade,
como parteira, mas meu marido
não gostava não. Porque naquela
NASCE TEM QUE VER A LUA os santos das casas para que cho-
vesse, e chovia, era só ter fé. Mas
A COZINHA DOS QUILOMBOS: não chegaram a participar diretamente dessas época não tinha médico, não tinha agora acabou isso, antes se rezava
SABORES, TERRITÓRIOS festividades, passaram a incorporar essas me- nada, aí aquelas mulheres, naquela “Quando a criancinha nasce, e já para a virgem, se ia para a casa dos
E MEMÓRIAS, PUBLICADO mórias transmitidas por seus pais e avós às suas hora, não tinham quem fizesse o está com 3 ou 4 dias, tem que ver a outros rezar pela chuva.” MERRO
PELO INSTITUTO DEGAZ próprias histórias. Dessa forma, o jongo em parto. No tempo de minha mãe ela lua. Aí quando a lua aparece tinha
Deserto Feliz, longe de ser só uma dança, teve era parteira, eu nunca precisei sair que falar três vezes: ‘Lua, luar, toma
e tem uma dupla importância na integração para fora, ganhei meus filhos todos a criança e me ajuda a criar, depois
comunitária. No passado, foi responsável pela dentro de casa com a minha mãe. Aí de criado, torne a me dar’. Era um
abertura de espaços sociais que permitiram depois de minha mãe eu passei a dia só que se falava, podia ser com
constituir redes de parentesco e compadrio. ajudar as mulheres como parteira.” qualquer lua. Eu fiz isso com todos
No presente, consolida um espaço de origem DONA MARIINHA, 103 ANOS os meus filhos, e meus filhos, e até
comum, ao qual as novas gerações se remetem netos também, fazem isso até agora.”
e sobre o qual constroem novas perspectivas e DONA SANTINHA
projetos identitários que apontam ao futuro da
comunidade.

14 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 15


é pasto, é perto da casa do Salvador. cavalgada, a maior cavalgada que
“Quando eles não queriam ir rezar lá “Tinham procissões que saiam da Hoje em dia fazem cavalgadas, elas sai é a cavalgada de São João, sai “Há muitos anos que não tem festa
na igreja, aí trocavam os santos. Por igreja da comunidade e iam até a vêm de fora, mas o pessoal daqui da comunidade de Mutuca e vai se grande por aqui na comunidade, só
exemplo: pegava o santo daqui e caixa de água, saiam levando os acompanha, geralmente vem de São juntando todo mundo até chegarem festa da igreja que tem por aqui,
colocava naquela casa lá, aí rezava. santos. Era no dia 24 de junho, dia Luiz de Mutuca, e vem até a igreja na frente da igreja daqui de Deserto. todo ano, em junho, São João, e
Depois deixava o santo lá e pegava de São João, e em dezembro, dia da daqui de Deserto. Sempre tem som Esse dia tem leilão da igreja também, em dezembro, Nossa Senhora da
o de lá e trazia para a casa da nossa Senhora da Conceição.” CICINO tocando, tem almoço, tem o leilão os fazendeiros doam alguns porcos, Conceição. Dia 20 de novembro,
gente e rezava. Aí quando chovia FORRÓ de animais que os fazendeiros doam, boi, é assim. Geralmente demora dia da consciência negra, tem uma
destrocava, cada um pegava o seu todo ano tem, é a maior festa.” CICINO umas 3 horas, mas é porque é muita comemoração no colégio também, as
santo e levava para casa, mas todo “Tinha uma procissão que saia da gente e vai parando, tem carros de crianças dançam jongo ali. Ontem
mundo rezava. Lá em casa tinha um igreja católica e ia até a caixa “Nós dançávamos muito baile tam- som, cavalos, muita coisa.” LUCIMAR teve cavalgada em Mutuca, (…), e
oratório grande com aqueles santos d’água, tudo dentro da comunidade. bém. Eu fui criada nos bailes, desde “A gente recebia tourada, recebia agora no sábado vai ter um forró
e a gente rezava.” (…) A igreja que A procissão ia até a caixa d’água e os dez anos eu caía no baile. Che- circo … hoje em dia está mais difícil, aqui na comunidade em frente ao bar
a gente ia era lá em Santa Luzia, era depois voltava. Às vezes ainda tem, gava à noite e os vizinhos juntavam ninguém quer mais liberar esse tipo “Tinha uma raia aqui também, até da Isabel, vai ser o Joílson que vai
uma igrejinha pequena, uma capela. quando tem a gente participa, vem aquela meninada e rapaziada toda de coisa. Quando tinha esses eventos campo de futebol, isso aqui era bem tocar, o sobrinho da Isabel; ele tocou
Quando o meu pai ou a minha mãe um padre lá do Morro do Coco e para brincar de roda. Não tinha quem doava o terreno era sempre animado de primeira. Tinha uma raia o outro dia na cavalgada também,
faziam alguma promessa, nós íamos dirige a procissão. O Padre na frente, briga, não tinha zanga. Era baile, a família Azeredo, eles sempre para carreira de cavalo que come- mora em Travessão.” WEZIO
a pé para a igreja, bem pequenini- o pessoal acompanhando e o carro era parelha de cavalo aos domingos, gostaram e sempre animaram. Não çava de lá de baixo, perto de onde
nhos, cada um com um santinho na de som atrás.” SALVADOR era jogo de bola.” (…) Quando quer dizer que são melhores do que mora o Edmundo, antes não tinham
frente rezando. Quando levava uns o povo queria qualquer coisa ninguém, mas hoje tem pessoas que casas ali, a raia tinha 250 braças,
dois meses sem chuva aí eles saiam (casamento, essas coisas) quem agia até têm mais condições, mas não e a raia parava bem aqui perto de
rezando. Aí parava no caminho e era ele, Manoel Azeredo (antigo liberam mais um palmo de terra, por minha casa. E isso aqui juntava muita
rezava, rezava; quando a gente fazendeiro). Aí a festa saia lá mesmo. causa dos direitos, por causa das gente, vinha o pessoal de Morro
vinha vindo era debaixo de chuva. Era em tempo de lua cheia que se leis.” DONA DALVA do Coco, de Praça João Pessoa,
Isso era só a família da gente que ia, faziam as festas, porque não tinha Travessão de Campos, todos traziam
para pagar a promessa, não ia toda lâmpada, não tinha nada. Então era cavalo para botar na parelha, muita
a comunidade. Eu ainda tenho a em tempo de lua cheia que faziam as gente. Antigamente aqui ficava tudo
lembrança da reza, que era cantada BICA DA PROCISSÃO festas e também faziam fogueira, eles lotado de carro, gente, vinha muita BAR DA ISABEL
assim: ‘Vou falar para o São Barnabé juntavam aquelas mudas de lenha e gente para campeonato de jogo
para mandar chover na terra. Vou fazia aquela fogueira grande para de bola também, vinha até gente
subir naquela serra, eu vou falar com
São Barnabé para mandar chover ISSO AQUI ERA poder iluminar o povo. Ficava a noite
inteira aquela fogueira e juntava
de Campos dos Goytacazes jogar
aqui, vinham de Travessão de Barra,
BATER TAMBOR E
na terra. Manda a chuva que nos BEM ANIMADO muita gente. A festa era isso. Tinha Barrinha, Barra de Itabapoana, São DANÇAR O JONGO
consola, manda a chuva que nos con- muita música também, meus tios to- CAVALGADA Francisco de Itabapoana, quando
tenta, manda o pão que nos consola, cavam sanfona, pandeiro, violão, ca- era domingo vinha muita gente jogar
manda chover na terra’. Aí ficava “Antigamente era muito bom esse vaquinho, isso tudo. Aí todo sábado aqui, os carros faziam fila nessa “Meu marido, Zé Carlos, era filho de
todo mundo ajoelhado na rua, fica- tempo nosso, a gente inventava na era aquela foliada para a moçada “Dia de São João tem festa na igreja estrada, tudo isso há muitos anos, faz Santinha, e eu sou filha de Moreno.
vam todos ajoelhados naquela rua hora de fazer um forró em casa, eu dançar. Tinha tambor, tinha chocalho, da comunidade, sai uma cavalgada tempo já.” SALVADOR Moreno tinha muita história, ele
cheia de areia rezando. Aí rezava, mesmo já fiz muito na minha casinha era animado.” DONA MARIINHA, 103 ANOS lá de Mutuca e vem até aqui. Hoje sempre contava que o pai dele era
rezava e então andava mais um que era de palha. A gente antes não vai ter cavalgada em Mutuca, tem jongueiro. Moreno não era muito
bocadinho até chegar lá na capela podia comprar telha para fazer as um pessoal daqui que vai, sempre jongueiro, ele contava muita história
de Santa Luzia. Aí nós entravamos casas não. Aí a gente inventava o “Eu lembro que fazia festas na minha depois da cavalgada tem um forró do jongo, mas era o pai dele que era
na capelinha, pequenininha, e todo forró na hora, a gente ligava o toca- casa, o pessoal levava a bebida e também.” PEDRO muito jongueiro.” INHÃ
mundo rezava ajoelhado. Quando -discos e em pouco tempo se juntava a comida ficava por minha conta.
nós saímos, que os mais velhos nos tudo mundo, era muito bom. Lembro Eu tinha um fogão a lenha em casa,
colocavam na frente, estava aquela que naquela época se cobrava não dava pra preparar leitão, peru, gali- “Hoje vai ter uma cavalgada, vai
chuva grossa caindo. Chegávamos sei se era um real ou dois reais, ou nha, frango, matávamos e assávamos desde a igreja azul que fica na CAMPO ANTIGO
todos molhados em casa. A reza era mil réis, mas era muito bom. Mas muita coisa. A gente dançava o dia comunidade de São Luiz de Mutuca
para a chuva, era muito bonito todo hoje em dia não se pode fazer mais todo, Nossa Senhora, era muita até a comunidade de Mutuquinha.
mundo rezando. O avô, pai, avó, isso não.” MERRO dança, era muito bom.” (…) Tinha Vai ter forró e cavalgada, e quem
mãe, as irmãs, as filhas, todos. Era uma parelha aqui, uma raia pra vai tocar o forró vai ser o filho da
somente a minha família, mas toda corrida de cavalos, numa estrada Dalina, daqui de Deserto. O pessoal
família fazia.” DONA MARIINHA, 103 ANOS que tinha ali perto da vala, na beira daqui vai, tem um pessoal que gosta.
do brejo, mas não existe mais, agora Em São João também tem outra

16 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 17


não foi em nosso tempo. Agora eu sendo dele, mas aí a gente faz o
“O jongo era feito lá em São Fran- estou ensinando o jongo às crianças campo e joga. As meninas daqui
cisco, em Quissamã. Quando eu era na escola. Já fomos a vários lugares jogam também.” WEZIO
pequena não me lembro muito do apresentar o jongo, já fomos para
jongo, mas sei que meu pai batia São Francisco de Itabapoana, Gua-
muito tambor. Eu lembro mais do xindiba, Preto Forro, já fomos para a
tempo do forró, das festas que iam região do Imbé, onde participamos
até o dia clarear. Essas festas eram do evento cultural em que se junta-
com sanfona, violão, mas agora ram 21 comunidades quilombolas, e
acabou isso né? O jongo aqui reco- agora em outubro vamos pra Graúna.
meçou há pouco, teve esse resgate Lá cada comunidade vai apresentar
do jongo, que é legal, eu não danço o seu grupo.” CICINO CAMPINHO NOVO
agora porque estou um pouco doente,
mas se estivesse bem eu ia dançar
SEU ALCINO, CONHECIDO também. O jongo agora vem sendo “Na época do jongo eu ainda era “Deserto não tem um campo de
POR TODOS COMO “CICINO”, feito em frente da escola, é na árvore muito criancinha, mas ainda me futebol, tem um Society pequeno
CANTANDO UM JONGO do jongo que o Cicino ensina as lembro, saía muito jongo na casa aqui para as crianças, foi o Robertão
DURANTE A OFICINA DE crianças.” DONA SANTINHA desse pessoal dos antigos, era (fazendeiro) que doou para a comu-
CARTOGRAFIA SOCIAL bonito, eu era pequeno, mas a gente nidade, para que as crianças possam
REALIZADA NA COMUNIDADE acompanhava junto com a minha jogar uma peladinha, e foi a alegria
mãe e meus irmãos. Eram os antigos das crianças, a maioria das crianças
que faziam o jongo, o avô do pai da fica brincando lá todo dia e toda

Eu vim aqui, não foi “Lembro que antigamente tinha jongo


antigamente se passava por cima
das brasas, eu já passei duas vezes,
minha mãe, vários outros se juntavam
numa casa e começavam a tocar o
hora. Até nós jogamos lá também,
treinamos lá, tem que ter escala com
ninguém que me chamou, aqui, o Cicino sabe contar bem não queima não. Se atravessa para tambor, também se juntavam para as crianças porque eles têm que ter

Eu vim aqui, não foi melhor do que eu. Eu era pequena,


mas lembro que o povo se reunia nas
pedir proteção ao santo, isso tudo
depois do jongo, tem que ser de noite
tocar o cavaquinho, o acordeão, vio-
lão, era aquela foliada toda bonita,
seus dias de jogo também. Tem um
time de futebol aqui, Deserto Futebol
ninguém que me chamou, casas das pessoas assim, se juntava também. Só se queima quem não JONGO e o pessoal ia até aquelas casas e Clube, o que não tem é campo

Aquela moça bonita está numa casa para poder bater tambor,
ou também quando faziam forró. Eu
tiver fé.” CICINO levava café, bolo. Depois eles iam
para outra casa, e assim, ficavam de
grande pra jogar. A gente já jogou
contra Santo Eduardo, contra o time
tocando esse tambor aprendi a dançar jongo, mas já não “(…) Sempre que Cicino está ali na casa em casa, porque tinha muita de Marra-égua, lá em Boa Esperança,

Ah, toca moça bonita, danço mais, agora só as crianças


que dançam, minha filha dança, tem
“Meu pai (Moreno) não gostava muito
do jongo, mas eu canto e bato tam-
escola ensinando jongo para as
crianças eu vou lá ver, meu sobrinho
casa por aqui, agora já tem menos.
E a criançada se juntava para ouvir
que acho que é Senegal o nome do
time deles, jogamos contra Jaqueira,
Aqui na boca do tambor. um grupo aqui de jongo mirim, eles bor, eu mesmo aprendi cantar, tocar, dança, minha sobrinha também esse barulho batendo, o barulho da com Campina, Mineirinho, já roda-
cantam e dançam junto com o ‘Coco’ bater. Lembro daquelas festas que dança.” WEZIO turma do jongo, mas depois o jongo mos Espirito Santo todinho jogando
CICINO
(Cicino). LEILA tinha quando eu era criança, tinha acabou e começou a ter mais baile, com eles, perguntem lá quem é o
muito, a minha sogra, que morreu, baile de forró.” SALVADOR time de Deserto que todo mundo vai

Uma me dá de comer “Quando sai o jongo no colégio ali


brincava muito também.” ZENILDO “Sempre quando sai o negócio de
jongo a gente se encontra; quando
saber explicar. O Time é bom, não
é ruim não, tem os reservas e tudo.”
A outra me dá de beber é bem bonito ver Cicino batendo um sai o pessoal para fazer jongo fora, DESERTO FELIZ GUILHERME

Vou te dar uma casa tambor com aquela turma no meio de


toda essa cantoria, tem uma árvore
“Nós nunca brincamos de jongo não,
mas já vimos muito Alcino, Cicino,
vai junto à comunidade também, e aí
a gente se encontra. Agora mesmo
FUTEBOL CLUBE
bonita morena muito bonita lá onde as crianças dançando, ele ensina às crianças vai ter um evento em outubro, em

Vou morar com você. brincam e dançam o jongo.” SALVADOR na escola agora. Meu pai também
não dançava jongo não, mas ele
Graúna, vamos nos encontrar com as
outras comunidades da região no 6to
“Eu jogo no time de Deserto Feliz,
hoje vai ter um treino aqui mais
CICINO acompanhava.” CARECA Evento Cultural do Quipea.” TECA tarde. Vai ser aqui no campinho, nós
“Eu tenho filhos que batem o tambor temos que arrumar um lugar para
comigo, tem uma filha minha que fazer um campo maior, porque esse
canta comigo também. Eu aprendi “Os mais velhos contavam que anti- aqui é bem pequeno. O dono daqui
o jongo com meu sogro, que era o gamente plantavam uma bananeira deu pra fazer um outro campo mais DESERTO FELIZ FUTEBOL CLUBE
pai da dona Santinha, ele tinha um à meia noite durante o jongo e já lá na frente, ali na baixada. Seria
tambor com o que fazia festas, eu dava cacho de banana, os mais bom porque o campo daqui é muito
desde pequenininho aprendi com ele. antigos contam que tinham alguns pequenininho, ele só emprestaria
Lembro que nas festas de São João que conseguiam fazer isso, mas isso o espaço, o espaço vai continuar

18 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 19


longe, de moto ou de carro deve dar
meia hora até lá, não é perto, mas “A mãe da gente fazia aquele xarope
também não é longe. Eu não voltei de mato para dar para as crianças.
lá também por causa da distância, Até hoje eu faço o meu xarope, eu
a última vez que eu cacei lá eu não coloco cidreira, folha de capim-limão,
lembro, mas já era velho. Já peguei limão galego, folha de eucalipto,
muito tatu, lagarto, preá.” CARECA jenipapo, folha de laranja da China,
folha de laranja cravo e mais uma
porção de ervas; aí deixa ferver
“(…), isso aí, é o impacto que a bem fervido, tira aquele bagaço
comunidade sofreu. Porque também para fora e aí coloca açúcar e deixa
houve o desmatamento, o ambiente engrossar. Se a pessoa está gripada
degradou.” SALVADOR é só tomar. O xarope da farmácia
MENINOS DO QUILOMBO DE quase não combate a tosse não, o
DESERTO FELIZ SE PREPARANDO caseiro que é bom (e não estraga).”
PARA JOGAR FUTEBOL DONA MARIINHA, 103 ANOS

“Isso aqui é árvore de coité, a gente


“Hoje as crianças vão jogar futebol “Meu avô (Moreno) contava muita “A carne de caça nossa era muito abria o fruto, quando estava verde
em João Pessoa, vão jogar contra o história de assombração para dar jacaré, era capivara que pegávamos limpávamos ele por dentro, colocá-
time de Praça João Pessoa, hoje é só medo na gente, a gente ficava com no brejo. Nós tomávamos óleo e vamos pra secar e fazíamos cuias,
sub-10 e sub-15, a criançada gosta um medo danado. Nem lembro muito, dávamos óleo às crianças pequeni- MATA SANTO CRISTO como se fossem canequinhas. (…)
muito.” INHÃ tinha uma que falava sobre uma mula ninhas. As crianças nasciam e não A minha mãe fazia muito remédio de
sem cabeça que ficava lá embaixo dava coceira, não dava nada. Tudo mato, dava um banho pra a gente

TINHA MUITA ASSOMBRAÇÃO


assustando a gente ali embaixo perto
do valão.” LEILA
era assim, muito peixe, lagarto,
jacaré, tatu.” DONA MARIINHA, 103 ANOS
ATÉ HOJE SE FAZ REMÉDIO com água de lavandeira e sal. Se
tivéssemos uma tosse ela fazia chá

POR AQUI DE MATO AQUI de eucalipto e limão, era difícil que


nos resfriasse. Ela utilizava folha de
CAÇAR NAS ANTIGAS MATAS laranja da china, folha de laranja
“Tinha muita assombração por aqui,
mas agora acabou. Tinha história
QUE HOJE TEM DONO “Até hoje se faz remédio de mato
aqui, eu falo pra meus netos,
cravo, saião e eucalipto, fazia
aquela panelada, aquela xaropada,
de caixão de fogo, era um caixão prepara saião, água de passarinha, e de primeiro o que cuidava da
completo que era cheio de fogo, “Tudo aqui para cima era tudo mato, que é feito de um matinho, flor de gente era isso. Quando alguém
tinha um tatu também que aparecia a gente saia para caçar preá, tatu, mamão macho também é bom, se machucava o pé utilizávamos arnica,
em cima duma porteira, mas não era lagarto, lembro que meu pai pegava lavam as ervas, se coloca no fogo, se cozinhava arnica com sal, ainda
um tatu, era como se fosse um tatu a sua lanterna e saía iluminando de ANTIGAS MATAS e quando estiver fervendo as folhas existe arnica por aqui, lavandeira
de verdade, mas não era. Lobisomem noite os olhos dos jacarés, chegava vão manchar, se tiram as folhas, se também, eu mesmo aqui pela casa
dizem que tinha muito, eu nunca vi pertinho, vinha aos bichinhos quieti- coa aquela água, e se bebe como tenho um pé de arnica, de saião,
não, mas já ouvi falar. Dizem que nhos, chegava pertinho dos bichinhos “Eu já cacei muito, mas depois de um chá.” ANTÔNIA capim-limão, alguns remédios que a
aqui o lobisomem era um velho que que ficavam estendidos na beirada que eu ouvi uma voz mandando gente tinha em casa de primeiro, por-
já morreu, o ‘velho Papudo’, o povo da água, pegava a foice e matava, embora nunca mais eu cacei não. que era difícil a gente ir pra farmácia,
conta que já viram ele desvirando arrastava o bicho e aí, dava aquela Isso aí foi na Mata Monte Cristo, “O que nos sarava antigamente era o era tudo feito em casa com remédios
lobisomem na porteira de casa. fritada no outro dia. Dava muito essa mata agora é de Roberto, ele chamado remédio de mato, os chás caseiros.” SALVADOR
Quando ele morreu não teve mais preá também, quando era criança é dono dessa terra. Aquela voz que que fazíamos com isso. Utilizava-se a
lobisomem, porque era ele.” CARECA a gente saía pra caçar muito preá eu ouvi era voz desses bichos do casca de um ou outro pau ou planta
com a criançada, tatu já ficava um mato que espantam pessoas, matam como o boldo, saião, muita coisa. Se
pouquinho mais pra fora, se caçava pessoas e as pessoas nem ficam sa- misturava tudo e se fazia um xarope,
com cachorro isso.” SALVADOR bendo. A voz só falou pra nós pegar ainda fazemos ainda. A Mariinha
nossos cachorros e irmos embora, fazia esses xaropes.” JERUSA
não era voz de pessoa, era voz de
assombração.” (…) Mas nessa Mata
Santo Cristo ninguém mais vai caçar
lá, que eu saiba não. Não fica muito

20 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 21


PERÍODOS DE SECA, para o cultivo, se materializam em necessidades
que contrariam em certa medida algumas prá-
ticas locais. Como exemplo, cita-se a utilização
TEM UM TEMPO JÁ
QUE NÃO CHOVE
“Eu já trabalhei na fazenda Santa
Isabel, mas agora não estou
quem vai são as mulheres, porque os
homens estão trabalhando na roça,
trabalham de diaristas. Lá dá pra pe-

A PESCA NOS VALÕES de produtos agrotóxicos para viabilizar os plan-


tios, tradicionalmente repelido e refutado, mas
que acaba entrando nos cálculos econômicos “Tem um tempo já que não chove,
trabalhando, está em falta o serviço,
acabou a cana, deu essa seca que
não quer chover, aí parou o serviço.
gar traíra, acará, tilápia, muita coisa.
Tem outra fazenda, Santa Isabel,
onde o povo trabalha de foice, ali

E A AGRICULTURA e socioculturais da comunidade como opção


pouco desejável, mas emergencial.
A oferta de trabalho nas propriedades rurais
está bem seco por aqui, há como
5 anos que está bem seco, quando
chove bastante, tudo enche, fica
Nem lembro quando foi a última
vez que choveu pra valer por aqui,
está seco, não tem trabalho aqui por
também dá pra pescar.” LUCIANO

SEM ‘REMÉDIO’ vizinhas ao quilombo tem diminuído muito nos


últimos anos devido às secas, à ampliação do
uso de máquinas e de defensivos agrícolas, os
como um pântano, só água. Quando
está com água dá pra pescar, agora
só dá pra pescar em alguns poucos
perto.” LUCIANO “A gente sempre sobe pra uns brejos
procurando peixe, eu e minha irmã
sempre vamos para os brejos, mas
chamados “remédios” ou “venenos”. O largo lugares.” CICINO “Quando chove aparece serviço por- está muito ruim de peixe. Agora
uso de agrotóxicos pelas fazendas da região que aí crescem os matos e os pastos, está difícil achar peixe porque os
é considerado como prejudicial à saúde e de e dá para trabalhar capinando, mas brejos estão muito secos, só enche
grande impacto socioambiental. “(…) isso aqui tudo era água, era se não chover não tem serviço. Vai quando chove. Todo ano tem seca e
Somado a isto, também como efeito mais uma lagoa grande (…).” SALVADOR chegando a metade do ano aqui tem cheia, agora só Deus que sabe
notável, a necessidade de busca de emprego em Deserto Feliz e vai piorando o quando vai começar a chover de
fora da comunidade apresenta-se como fator serviço.” LEILA novo. Mas quando chove tem traíra,
de dispersão e fragmentação da vida coletiva, acará, morobá, peixe grande.” ISABEL
A comunidade em vários momentos de sua histó- aliada ainda a dificuldade de obtenção de
ria sofreu com os períodos de estiagem, desde trabalho e insuficiência de terras para plantio “A maioria aqui trabalha a dia
o tempo dos antigos, aprendendo a viver nesse dentro do território comunitário. As fazendas, mesmo, quase ninguém trabalha “Quando no mês de outubro em
território árido e ainda sobrevivendo de seus usinas, indústrias e outras instalações vizinhas por conta própria, quase ninguém diante começa a chuva esse valão
recursos naturais. Muitas manifestações culturais à comunidade se apresentam como alternativas arrenda para fazer. E quando não aqui enche de água, o pessoal vem
locais compartilhadas, como a prática de trocar mais comuns, mas nem sempre disponíveis, LAGOA tem emprego não tem alternativa, aqui pescar e até a tomar banho,
imagens de santos para chamar a chuva, são sendo cada vez mais constante a diminuição da tem que ir segurando, segurando. mas só quando enche mesmo. Já
consolidadas a partir dos ciclos de chuva/seca população da comunidade em função da migra- Agora, também há quase dois meses quando chega o frio vai secando de
que historicamente se desenvolvem na região. ção para regiões e localidades mais afastadas, “De um tempo pra cá acho que a que não chove aqui, aí complica, se novo, e assim vai mudando. (…) Às
Entretanto, a história recente da comunidade em busca de meios de sustento. vida piorou, piorou muito. Não tem tu passas por aqui na segunda-feira vezes quando dava enchente vinha
se apresenta marcada por períodos de estia- A restrição fundiária, as prolongadas mais roça para trabalhar, porco não agora tu vais ver mais de vinte muito peixe aqui pelo rio, curimbatá,
gem mais prolongada, que impõem adaptações estiagens e a “falta de trabalho” remunerado pode criar mais porque é muito difícil, homens parados, todo mundo recla- piabinha, aí eu lembro que meu pai
às práticas e modos de vida cotidianos comuns, são hoje alguns dos maiores obstáculos para não chove.” DONA SANTINHA mando da vida. E para sustentar à ia pra lá de cargueiro de noite para
impulsionadas por limitações e dificuldades a produção local de alimentos e o sustento das família fica complicado, alguns tem pescar de tarrafa, e de manhã cedo
de subsistência. Neste cenário, evidenciam-se famílias. Tendo em vista o grande número de Bolsa Família, felizes os que ainda ele voltava pra casa com o cargueiro
as necessidades de se recorrer mais frequen- parentes e vizinhos que saíram da comunidade “Se chover o serviço melhora para têm, porque para os que não tem fica cheio de peixes. O povo ajudava a
temente a alternativas que, embora sejam em busca de trabalho, hoje há muito menos nós porque aí tem plantação. Agora mais difícil.” GUILHERME catar, a limpar, e aí meu pai repartia
tradicional e historicamente parte das práticas famílias residentes do que no passado. tem muita terra tombada esperando também, com o resto a gente esten-
comunitárias, ganham importância mais vital Outras dificuldades estruturais vivenciadas a chuva, e na hora que chover vão dia no terreiro, num arame, deixava
dentro das dinâmicas locais, transformando-se são relacionadas à deficiência de serviços chamar a gente para poder plantar. GERALMENTE SÃO AS secar, depois colocávamos os peixes
de atividades complementares em meios funda-
mentais de sustento, como no caso da pesca
públicos básicos, como a coleta de lixo regular,
as insuficientes opções de transporte público e
Geralmente começa a chover em
outubro, ali que é bom de chuva,
MULHERES QUE VÃO PESCAR todos sequinhos ali no cesto e daí
a gente ia comendo aos poucos.”
nos valões. a disponibilidade de água potável. Há energia enche tudo de água, e isso continua SALVADOR
Os valões compõem uma parte importante elétrica na comunidade, mas o acesso à água até março. Quando chove bem a “Tem vários lugares onde o pessoal
da paisagem local e detêm um papel relevante é problemático. A comunidade dispõe apenas chuva sobe até em cima, alaga muita vai pescar aqui, no Beira Rio, no
na vida cotidiana de Deserto Feliz. Eles forne- de uma caixa d’água para armazenagem e dis- coisa. Por isso que todo ano no frio, sítio Santa Luzia, vários lugares.
cem uma certa variedade de peixes que são fre- tribuição de água de poço. O lixo é queimado, em agosto que não chove e não tem O pessoal vai lá porque tem mais
quentemente pescados pelos moradores locais e também causando grande desconforto para os nada, o emprego fica pior.” MERRO peixe por lá, o dono de Santa Luzia
armazenam uma valorosa quantidade de água moradores. deixa pescar. O pessoal vai de moto,
em uma região bastante impactada pela seca, vai de carro, não dá uma hora até
principalmente em determinadas épocas do ano. lá, e geralmente são as mulheres que
A agricultura tradicional é afetada por vão pescar, é muito difícil os homens
condições de urgência que, além daquelas mais daqui irem até lá. Do povo de lá são
observáveis pelo efeito da ausência de chuvas os homens que pescam, mas daqui VALÃO PEDRA SANTA

22 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 23


“Nós aqui não passávamos fome
não amoleceu. Por isso esse ano eu
não vou colocar veneno não. O pes-
ALGUNS TEM ROÇA FORA “Vamos cevar aquele porco que já
trabalhados. Por isso é importante
fazer as contas direitinho para não
não, nós tínhamos uma tarrafinha e soal coloca muito para não gastar, foi capado e daqui a 30 dias vai perder a empreitada. (…) Mas,
pescávamos no valão, mas agora se- para não ter que limpar de enxada, “Pra poder ganhar um dinheirinho o dar para vender ele, a gente vende mesmo assim eu gosto de trabalhar
cou tudo. A gente descuidou, deixou mas eu limpo mesmo, dá trabalho, povo aqui tira leite, limpa roça de para açougue, tem um comprador porque eu penso, dentro de casa eu
de limpar, foi juntando de mato e mas é melhor. Tem que colocar foice, tudo feito fora da comunidade, que compra com 30 dias de prazo vou fazer o quê, ficar parado? Aqui
entupiu, secou tudo. Nos verões que remédio na terra o dia seguinte de ter quase que todo mundo trabalha fora para nos pagar. O mesmo comprador na comunidade e na Praça João
chove com força tem uma parte aqui plantado a semente, mas aí o aipim porque aqui dentro não tem serviço chega aqui mesmo e mata o porco, Pessoa está todo mundo reclamando
que enche, fica a coisa mais linda fica duro, não amolece não, vai ao não. (…) Dentro da comunidade nin- ele mesmo mata. Tem um porque aqui que não tem serviço não.” MERRO
do mundo, mas só naqueles verões.” Ceasa e volta.” MERRO POMAR DE LARANJA E LIMÃO guém tem roça, mas alguns tem roça que é o reprodutor, esse aqui que
MERRO fora, tem a meia com fazendeiros. está ‘colhudo’, não precisa dar muita
Meu marido por exemplo faz a meia, ração para ele não. Pra castrar o “A relação com os fazendeiros é ruim,
“Aqui eu tenho um pomar com manga, “Numa época dessas, em setembro, ele planta abóbora e agora acho bicho sofre muito, tem que derrubar tem muito serviço braçal que pode-
QUANDO PLANTAMOS NÃO coco, acerola, carambola. Tem era época de muito milho para fazer que está plantando aipim. A meia ele e segurar ele, se precisam de 4 riam dar, mas não dão pra ninguém,

USAMOS REMÉDIO NÃO alguns tomatinhos também, salsinha,


cebolinha.” ANTÔNIA
papa e pamonha. Hoje não tem, isso
aí, é o impacto que a comunidade
funciona assim, tem o fazendeiro que
tem o terreno, aí o fazendeiro não
pessoas para segurar ele. Aí se faz
um corte nos testículos, se joga fora o
não dão nada. Eles só trabalham
com dois ou três empregados, e
sofreu. Porque também houve o faz nada, mas depois da colheita e ovo tudo, se tira com uma faca. Tira- quando tem trabalho é só por alguns
“Aqui na nossa terra quando plan- desmatamento, o ambiente degradou. depois de vender se tem que dividir -se para ele poder engordar, além de dias, são ricos, mas falam que não
tamos não usamos ‘remédio’ não, Hoje todos os alimentos têm agrotó- com ele o dinheiro.” LEILA que se não se castra o porco a carne tem dinheiro.” ZENILDO
mas lá para fora eles usam muito xico, até nas roças de mandioca eles catinga, fica com cheiro ruim. Tem
‘remédio’. Agora está tudo seco, mas colocam agrotóxico para não crescer um porco pequeno que ainda não
geralmente a gente planta milho, fei- mato. Antes, quando tinha esse mi- “Pra plantar nós plantamos de meia castramos porque estamos querendo “A gente pede aos fazendeiros por
jão, abóbora, aipim, cana, banana, lharal, o pessoal cevava o milho para com os fazendeiros, mas não com o deixar crescer, sempre tem que serviço, mas eles não dão, dizem
limão, quiabo, muita coisa, mas tudo dar aos porcos, não tinha agrotóxico um deles, porque esse homem é ter um reprodutor. A gente vende o não ter dinheiro, eles são podres de
na época da chuva, na seca agora no milho, era uma coisa saudável. Já ruim, ele só trabalha com boi. Eu porco por arroba, uma arroba são 15 ricos e não dão trabalho. Até porque
só tem cana.” PEDRO hoje você compra a ração e já vem estou plantando ‘meia’ de aipim, por quilos, e isso se vende por 120 reais. hoje em dia tudo é trator, é remédio,
PÉ DE MANGA tudo com agrotóxico, é uma coisa enquanto, com Demardo, um homem Eu tenho fé em Deus que vou vender não tem esse serviço que tinha
industrializada. Aqui, no passado, a da Praça João Pessoa. Ele tombou a aquele porco com 8 arrobas.” MERRO antigamente não, antes chamavam a
“A gente não está botando remédio gente colhia feijão, sem agrotóxico e terra dele e me deu de meia, é longe, gente para trabalhar, mas agora não
na mandioca porque na hora de “Aqui na comunidade temos pés de conservante, e colocávamos naquele lá em Boa Sorte, dá uma meia hora mais.” PEDRO
comprar o pessoal vai examinar e se manga, coco, banana, mamão, aba- saco furado chamado juta e durava de moto. Não é tudo dia que vou pra ESTÁ MUITO RUIM
tem muito remédio os compradores
não querem não. Ano passado se
cate, jaca, muita fruta que não tem
veneno para nós comer.” JERUSA
um tempão. Assávamos a carne de
porco e a colocávamos numa lata de
lá não, só quando tive que plantar
que fui direito, a mandioca está
DE EMPREGO “Os fazendeiros daqui de perto são
perdeu muita roça porque botaram biscoito com banha, também durava grande já.” MERRO muito ruins, não dá pra criar um
muito veneno e com isso a mandioca meses. Café de cana, xarope de “Ultimamente está muito ruim de porco solto porque os fazendeiros
mato, era tudo assim. Por isso que emprego, ficou muito difícil. Os fa- acham ruim, não gostam nada, os
a Dona Mariinha está com cento e “O pessoal que mora na roça (em zendeiros não estão querendo gastar fazendeiros não gostam de pobre
poucos anos, a minha tia também.” Deserto Feliz), meu irmão, meu so- não, não dão serviço à gente. Você não. Acham que porque eles são
DONA DALVA brinho, planta abóbora e aipim para vê que tem serviço aí, mas ninguém ricos são melhores do que nós, acho
sobreviver. (…)” SÉRGIO quer dar serviço pra nós, por isso que eles pensam isso. Às vezes eles
que estamos parados. Eles deixam têm serviço para dar, mas não dão,
tudo cheio de mato, só pra não ter às vezes eles preferem botar remédio
É PRA CONSUMO PRÓPRIO que pagar. Esse morro ali atrás fui eu nos pastos ou no mato para não ter

E PRA VENDER TAMBÉM quem roçou o ano passado, adoeci,


mas terminei, (…). Muita gente dizia
que dar serviço para limpar de foice,
e o remédio depois faz mal aqui na
que eu não dava conta, mas dei comunidade, o cheiro do remédio
“Aqui dentro só tem criação de porco, conta sim, demorei um mês e pouco vem tudo pra cá, às vezes também
galinha, lá embaixo mesmo tem a pra fazer tudo. A empreitada é assim, preferem trabalhar a roça de trator
criação de porco do meu pai, é eles te dão aquilo que você pediu, se só pra não dar serviço. Quem tem
pra consumo próprio e pra vender você ganhar na empreitada você não serviço tirando leite está tirando leite,
também.” LEILA vai entregar o dinheiro que sobrou mas para quem trabalha a dia, ro-
para eles não, mas se você perder çando, está bravo, por isso a maioria
LEILA LIMPANDO OS na empreitada você não vai ganhar dos homens da comunidade estão
PEIXES PARA O JANTAR mais pelos dias a mais que foram parados.” LEILA

24 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 25


a sorte é a Bolsa Família que eles ga- para lá quando pinta serviço. Lá tem
nham que já ajuda, a Bolsa Família “Agora está bem complicado porque muita gente já, tem mais de cento e “O problema é o serviço, porque se “O Orlando, meu irmão, foi nascido e
ajuda muito, mesmo que seja pouco não tem serviço, você trabalha um cinquenta pessoas em Angra. A maio- juntar todos dessa comunidade nossa criado aqui, mas agora ele mora em
ajuda muito.” TECA dia e leva uma semana, trabalha ria foi embora de Deserto por causa não teria trabalho para todos. É Rio das Ostras, trabalha embarcado
uma semana e leva um mês parado, da falta de serviço por aqui. Em Rio muita gente para empregar, por isso para a Petrobras, mas ele sempre
está complicado. Durante a semana das Ostras mora muita gente de lá de que muita gente vai pra fora, tenho volta para visitar a família. Já tem uns
“Depois da nossa cerca tem o terreno eu trabalho em São Luiz de Mutuca, Deserto também, mas muita gente, em muita família minha que mora em Rio cinco anos que ele trabalha lá, daqui
de Cristóvão Lemos, a gente nem vê fica a uns 7 quilômetros e meio da- Búzios e Macaé também. Em Macaé das Ostras, Angra dos Reis, tenho da comunidade só ele que trabalha
PASTO/GADO esse homem, ele manda camaradas qui, só de deslocamento já tem des- tem muito trabalho também.” SÉRGIO uma irmã que mora em Araruama, embarcado. Ele saiu fora e fez um
pra olhar o gado ali. Então esse aqui pesa saindo e voltando de moto; se então é assim. Aqui não veio gente curso de soldador, aí arrumou esse
é um limite da comunidade quilom- trabalhasse aqui teria menos despesa. de fora, só a família do pessoal mais emprego.” DIEGO
“Eu sou filho de Moreno, fui nascido bola, a comunidade quilombola vai E temos que correr atrás para poder “Eu fui nascida e criada aqui, já saí, novo mesmo, só gente da família
e criado aqui, trabalho quando tem desde o colégio até aqui, onde tem dar uma vida boa para os filhos. Eu já trabalhei fora, mas o foco meu foi mesmo que foi crescendo.” ANTÔNIA
serviço né, mas agora zerou, estão três pés de jaca.” TECA trabalho de lavrador, tudo o que tiver aqui dentro. Eu saí menina, com 11 AQUI É MUITO ESQUECIDO
colocando muito remédio no pasto e para fazer na roça eu faço, tirar leite, anos de idade eu fui trabalhar em
o serviço braçal está difícil, há muito passar trator, trabalhar com enxada, Campos dos Goytacazes, no Farol, “Muita gente foi embora da comuni-
tempo que está assim, e não tem enxadão, machado, tudo. E são vá- no Rio, sempre em casa de família. A dade, tenho muitos amigos fora. O “Aqui é muito esquecido, não dá para
trabalho. Agora estou parado, estou rias fazendas onde eu faço o serviço, gente saía para trabalhar porque aqui pessoal vai pra Angra dos Reis, Rio contar com a prefeitura aqui não.
um mês já parado, não tem trabalho às vezes eles vêm chamar, às vezes era um lugar que não tinha quase de Janeiro, Rio das Ostras, trabalham Você vai para o hospital e nem tem
em lugar nenhum aqui perto, muita ligam, porque aqui a maioria tem serviço né, então a gente saí para tra- em alguma firma, em hotéis, em remédio para dar para o paciente,
gente parada. Às vezes quando telefone. Mas não tem serviço certo balhar fora, trabalhei muito.” ANTÔNIA construção.” WEZIO o posto fica em Ponto Cacimba, em
surge trabalho eles vêm e chamam não, hoje tem, amanhã não tem, a direção a João Pessoa, segue direto.
as pessoas, mas também é um dia ou semana que vem tem, é assim, não Deserto não tem ambulância se tiver
dois e parou de novo. Bom é quem tem nada certo não, é complicado.” “Nós temos seis filhos, três moram em “Os filhos foram embora, só ficou um algum paciente aqui ficaria difícil.
tem serviço certo, quem tira leite e tal, PÉS DE JACA GUILHERME Rio das Ostras e três moram aqui. aqui comigo, outro mora em Morro No meu ponto de vista teria que
mas para quem não tira leite é bravo. Dos três filhos tem uma que mora do Coco e todos os outros moram em ter um posto médico aqui, a saúde
Durante a semana eu fico à toa cui- aqui do lado de casa, outra mora Campos dos Goytacazes. Esse aqui sempre em primeiro lugar. Transporte
dando dos meus animais, vou para “Meu esposo trabalhava em fazenda ANTIGAMENTE TINHA MUITA lá na fazenda de Mario Barreto, ela que mora comigo está parado igual a também não tem nada, se você pre-
Praça João Pessoa procurar alguma
coisa, volto, mas lá está muito difícil
também, tivemos 3 filhos, os 3
moram aqui. O meu filho mais
GENTE MORANDO AQUI mora lá porque o marido dela é
empregado na fazenda, e o terceiro,
mim, porque não tem serviço.” MERRO cisa sair daqui por um caso de saúde,
vamos supor, precisa fazer um exame
também, está bravo, bravo.” ZENILDO novo trabalha numa fazenda aqui o filho homem mora ali perto da casa ou algo do tipo, se você não tiver
perto tirando leite. Ele bota leite no “Antigamente tinha muita gente de Inhã.” TECA “Aqui muitos parentes já foram em- condição você não vai.” LUCIMAR
resfriador, tem vários caminhões que morando aqui, mas eles mesmos bora, da minha família mesmo duas
“A relação com alguns fazendeiros é passam pegando leite. Quem traba- foram embora por falta de serviço, irmãs minhas foram embora para
boa, mas tem alguns fazendeiros que lha com leite não para, trabalha todo foram trabalhar fora. Meu pai nunca “Antigamente tinha mais trabalho, Angra dos Reis para trabalhar em “A gente mora aqui nesse lugar e
são osso aí. Muito fazendeiro prefere dia, com carteira assinada e tudo; já quis ir embora, mas eu mesmo tenho antigamente era melhor, tinha mais casas de família. Muitos foram para não tem ônibus, não tem uma van;
tacar veneno no pasto porque facilita quem trabalha com roça tem que pa- filhos que moram em Conceição da pessoas na comunidade, mas o negó- Rio das Ostras e Cabo Frio também. quando a mãe está grávida e quer
pra eles, assim não dão trabalho e rar sempre porque quando não tem Taboa, Rio das Ostras. Eu também já cio vai ficando escasso e o pessoal O pessoal vai embora porque aqui fazer o pré-natal, tem dias que perde
economizam dinheiro. Aqui perto chuva para o serviço, agosto e setem- fui pra fora, fui para Rio das Ostras, vai saindo fora, vai indo embora, fica ruim de serviço, mas quem foi o médico porque não há condição
não colocam muito veneno por causa bro são os piores meses por causa trabalhar como servente de pedreiro, porque em Deserto não tem emprego, gosta muito daqui; os pais ficam por de transporte, só tem mesmo a ambu-
das crianças, colocam mais nas disso, a partir de outubro melhora. mas não volto mais não, vou ficar não tem nada. A maioria foi embora aqui e os filhos sempre voltam para lanciazinha ali do Martins, mas ela
áreas de retirada, aqui perto não Mas nem todos sabem tirar leite, meu aqui, não saio mais daqui não. Aqui procurar trabalho.” GUILHERME visitar. Por enquanto deu uma parada só pode assegurar à gente que está
colocam tanto não.” GUILHERME filho sabe porque seu pai era tirador a vida é mais tranquila, é melhor, já isso, porque muita gente está aqui passando mal, doente; se você quiser
de leite, por isso ele entende tudo saí para vários lugares, mas eu quero ainda esperando a chuva. Eu mesma ir ao médico marcando exame para
sobre leite de boi.” ANTÔNIA ficar aqui.” ZENILDO “Eu morei pouco tempo em Deserto me lembro que quando saí daqui não você fazer não pode porque não tem
“Eu sempre trabalhei, criei meus seis Feliz, somente a minha infância. gostei não, eu gosto muito daqui.” transporte, ali nós ficamos naquela
filhos trabalhando, mas só que hoje Morei mais em Campos, em Angra CLAUDIANA entradinha ali das 6 da manhã até
em dia não tem mais trabalho, não “Ali em Deserto Feliz já morou muito também; tenho muitos primos por lá. meio dia ou uma hora da tarde
dá nem para sustentar a família. E o mais gente, era o dobro do que tem Hoje em dia moro aqui em Morro porque não tem condição para levar
dia que tem serviço é só três ou qua- hoje. Somente lá em Angra dos Reis do Coco e trabalho em uma fábrica nós, a gente tem que ficar esperando
tro dias só; agora, para um pai de eu tenho mais de trinta primos. Eles de pão. Desde 1992 eu trabalho carona, a gente nem sabe se vai
família que tem, 4 ou 5 filhos, para foram todos criados em Deserto. Isso na ‘Pão de Mel’; sou motorista, sou vir algum carro para dar carona.
comprar a comida, o gás, conta de fora os outros que vão para lá através vendedor, faço um pouco de tudo A estrada também é ruim aqui, o
luz, coisas de colégio, é complicado, desses primos que levam o pessoal naquela firma ali.” SÉRGIO padeiro chega aqui às 10 da manhã

26 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO DESRTO FELIZ 27


com o pão para nós tomar café, e “Mudaram muitas coisas porque
já está tudo cheio de poeira porque “Eu sou nascido e criado aqui, minha “O caminhão do lixo também não antigamente remédios e essas coisas
o coitado teve que rodar muito para mãe, meu pai, todos eles são daqui passa e aqui o pessoal queima, não tinham, não tinha telefone, não
chegar até aqui. Então, se o Deserto mesmo, pessoal antigo daqui mesmo. todas as famílias queimam, sobe o tinha internet, não tinha acesso de
fosse bom para nós ter o prazer de Aí eles foram morrendo, os mais cheiro direto. Sobre saneamento aqui nada, hoje já temos acesso a muitas
dizer ‘eu amo meu lugar’, se tivesse antigos foram acabando, mas minha cada casa tem sua fossa, não enche coisas. A única coisa que falta aqui,
(…) hospital, condição para nós sair mãe ainda mora em Morro do Coco, não. A gente mesmo que faz a fossa, que antigamente tinha, é ônibus. Se
trabalhar e voltar, mas não tem nada Dona Mariinha, ela já está com 102 faz tudo no braço, são 6 ou 5 metros você vem de Campos é no máximo
disso.” TECA anos, mas tem que ver como que de profundidade, se afundar mais dá LIXÃO CAIXA D’ÁGUA (BICA) até a Mutuca ou Morro do Coco, e
ela é, ela ainda faz tudo, dá gosto água por causa do valão que fica daí tem que ter carro ou moto para
conversar com ela, está muito bem. perto.” LUCIMAR chegar até aqui. O transporte ficou
“A vida aqui piorou, tudo complicou. Ela é desse tempo antigo, do pessoal “Esse negócio de água encanada “A luz elétrica demorou pra chegar. horrível, mas a maioria das outras
Hoje em dia para poder ir até Praça dos antigos que carregam a história não existia, a gente pegava água na Lembro que antigamente lá em cima coisas foi melhor.” ANTÔNIA
João Pessoa tem que se esperar por quilombola. Ela sempre vem passear “O caminhão de lixo passava aqui cacimba, e usava a talha de barro tinha uma venda, aí de noite a gente
uma carona, às vezes se espera até aqui na comunidade, ela volta, fica duas vezes por semana. Depois da para conservar a água fresca. Todos às vezes ia lá para fazer hora, tinha
a uma da tarde. Quem tem seu car- uma semana na minha casa, na casa queda da ponte ele parou de passar. tínhamos nossas cacimbas, mas muita gente que ia fazer compras e “Aqui é muito pobrezinho, tem muita
rinho ou sua moto vai e volta rápido, do meu irmão Pedro que fica aqui Na internet tem um cronograma de isso acabou, agora a gente compra se formava uma turma ali que ficava criança, às vezes não tem o alimento
mas quem não tem se complica. A também. Minha mãe foi pra Morro coleta de lixo na região e Deserto água mineral, galão. A gente ainda conversando. Quando era 8horas certo. Mas nós somos felizes aqui, é
gente às vezes pega carona com o do Coco porque temos um irmão que Feliz não está na relação. Depois tem uma cacimba, está ativa, mas a da noite assim, a gente chegava na tranquilo, não tem ladrão, dormimos
ônibus da escola para ir até Praça, mora lá também, e ela foi lá porque que a ponte caiu e tinha que desviar gente não usa mais para beber. Tem estrada e nós que éramos crianças com as portas abertas. Lá fora é um
mas quando as crianças entram de ali é um lugar de maiores recursos, por dentro das fazendas o caminhão gente na comunidade que tem água pegávamos vários vagalumes e perigo, está muito perigoso.” JERUSA
férias não tem mais carona. Já pra tem mais facilidades de locomoção, de lixo parou de passar.” DONA DALVA encanada porque puxa ali da caixa caminhávamos com eles acessos, nós
ir até Morro de Coco a gente pega para sair de repente para um hos- d’água, mas tem uma porção aqui vínhamos iluminando o caminho com
carona com o caminhão de leite.” pital né? Da para sair mais rápido que não puxou; já nós temos um isso.” SALVADOR “Teve uns anos atrás em que precisa-
CICINO para o Hospital de Campos, por poço aqui e por isso não puxamos ram dar sacolão aqui porque não
exemplo, já daqui é mais difícil, se da caixa d’água.” SALVADOR tinha serviço, o prefeito teve que dar
aqui está chovendo não dá nem pra “A prefeitura coloca ônibus para levar esse tipo de cesta básica para ajudar
“Aqui a gente passa necessidade de gente sair. (…) aqui chove e fecha a alunos para a escola que fica em o povo. Mas esse ano por enquanto
muita coisa, não temos transporte estrada.” SALVADOR “Essa água daqui só vive dando de- Praça João Pessoa, tem uma van con- não chegou nada para nós aqui.”
nenhum, nem ambulância. Para fazer feito, já deu problema várias vezes, tratada também para puxar alunos MERRO
um exame da minha filha vou ter que não no poço, mas a caixa de água numa escola que fica num lugar cha-
pagar transporte pra ela até Morro “Caminhão de lixo também não passa PONTE às vezes entope.” WEZIO mado Muribeca, a prefeitura ajuda
do Coco, e não tem transporte.” mais por aqui, nós somos muito sacri- em coisas assim. Agora, estradas “Dentro de tudo aqui é bom de se mo-
CLAUDIANA ficados aqui em Deserto Feliz, o lixo a não têm, não sabemos quando vão rar porque é tranquilo, é seguro, um
gente queima, eu queimo lá em baixo, “A prefeitura não ajuda em nada, asfaltar essa estrada. Já asfaltaram lugar sossegado, bom de se morar,
na casa do meu irmão. Eu queimo um poderia colocar transporte, poderia as estradas que vão de Praça até o pessoal pode ficar até tarde com
“Quando a gente quer fazer alguma dia sim e um dia não, sobe um cheiro construir uma creche aqui porque têm certo lugar chamado Caldeirão, e a casa aberta, aqui é tudo família.
compra vamos para a Praça João ruim quando queima.” LEILA muitas crianças na comunidade que tem outra asfaltada que vai de Morro Mas o dia que tiver mais serviços vai
Pessoa, eu vou a cada 2 ou 3 saem do colégio e ficam por aí. Não do Coco até São Luís de Mutuca, ser melhor ainda.” CLAUDIANA
semanas fazer compras. Às vezes passa caminhão de lixo também, eu mas nós aqui ficamos presos na
eu vou de moto com meu filho ou junto e queimo todo dia.” ISABEL estrada de chão, de Caldeirão pra
com meu irmão, tem que pegar uma POÇO D’ÁGUA POTÁVEL cá é estrada de chão. A prefeitura “Aqui levou o nome de Deserto Feliz
carona porque não tem transporte diz que o asfaltamento da nossa porque aqui tudo mundo vive feliz,
público. Eu vou lá para o culto que “O caminhão de lixo de primeira pas- estrada tem que ser feito pelo Estado, é um nome que ficou pra a comuni-
tem na igreja Universal também, é sava, agora parou de passar, deve “A caixa de água da comunidade por isso que as obras não chegam dade e ainda agora muitas vezes tem
quarta-feira, domingo. Aqui na ter mais de dois anos disso. Mas quem deu foi a prefeitura, só que até aqui, eles dizem que não é deles. gente que escuta e duvida né, mas
comunidade não tem igreja, teve um agora que parou de passar, a gente mais nada aqui pra nós deu. E nem Igual tem uma ponte que caiu ali e aqui, felizmente e graças a Deus,
pastor de Praça que alugou um bar tem que queimar o lixo. A gente tem pra mim serve direito porque nós levou um bocado de tempo para que todo mundo é feliz sim.” LUCIMAR
que tinha aqui embaixo e ele vinha CHEIRO RUIM um lugar pra queimar, lá pra atrás nem estamos utilizando mais a água comecem as obras, só agora que
toda semana, mas depois o dono num poço velho que tem lá, quase da caixa d’água, é muito ruim, nós a reconstrução da ponte começou,
parou de alugar e o pastor parou de tudo dia que a gente queima, joga fizemos um poço aqui, meu genro fez mas depois de muito tempo, e está
vir.” ISABEL o lixo lá embaixo do poço, joga o um poço aqui perto pra nós. A água sendo uma obra muito cara. E está
álcool e queima.” EDILSE da caixa tem gosto de ferrugem, é demorando muito.” SALVADOR
muito ruim.” TECA

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É A LIBERDADE O QUE IDENTIDADE E LIBERDADE “Antigamente eu não entendia muito
bem o que era ser quilombola, eu
“Sempre que eu posso participo
das reuniões (do Quipea) aqui na

DEFINE O QUILOMBOLA
falava que eu não era quilombola comunidade, algumas coisas dão
“A identidade quilombola acho que porque pensava que quilombola era para entender, mas outras são
é recente. Fomos procurando aos só escravo ou preto, por isso eu não meio complicadas de entender.
poucos a história do quilombo, um dizia que eu era. Os meninos que Geralmente são as mulheres que vão,
dia chegou um povo e falou sobre estudam na Praça João Pessoa não porque quando saem as reuniões os
esse negócio de quilombo pra mim falam na escola que são quilombolas homens estão trabalhando, difícil que
e pra minha neta Valquíria, e nós porque as outras crianças zoam eles, participem.” CLAUDIANA
fomos nos informar. A dona Dalva e eles ficam com vergonha. Mas nós
estava presente também, e pouco a nos sentimos quilombolas, com o
pouco, com as informações fomos tempo chegaram mais informações “Eu sou quilombola porque gosto
nos informando melhor.” DONA SANTINHA sobre o que era ser quilombola e nós da liberdade. Muitos não sabem e
reparamos que nós somos sim quilom- pensam que quilombola é só alguém
bolas mesmo. Eu tenho cinco filhos, e de cor de pele negra, mas não é
“A gente passou a se reconhecer os cinco sabem que são quilombolas, só por causa da cor. Eu acredito
como quilombola, hoje em dia eu me se sentem quilombolas.” LEILA que quilombola é quem luta pela
reconheço, meus filhos também, o fi- liberdade.” QUITO
nado Moreno também. Quando tinha
Em meio a todas as dificuldades, de tempos passeios ou eventos dos quilombolas “Eu não acompanhei muito a asso-
passados e presentes, Deserto Feliz se perpetua ele sempre ia pra todo e qualquer lu- ciação quilombola, mas eu me reco-
como uma comunidade que compartilha meios gar, mas depois que adoeceu parou, nheço como quilombola sim. Meu pai,
de vidas e raízes históricas, culturais e tradicio- parou ele e parei eu também, mas Rubens, também se reconhecia, ele
nais. Sucessivas gerações, desde o tempo da continuo sendo quilombola.” ISABEL sempre falava sobre isso.” CARECA
escravidão ao presente acometido pelas secas,
encontraram nestas terras de Deserto Feliz um
lugar para traçar seus caminhos de liberdade. “Minha mãe era quilombola, meu pai “Eu sou quilombola, minha família
Nesse território, adquiriram autonomia para não tanto, ele já tinha outra descen- toda é.”. WEZIO
viver principalmente do que produziam, ou dos dência, mas eu me sinto quilombola
recursos ambientais disponíveis. Casaram, cons- sim. Minha mãe sempre falava
truíram famílias, compraram e compartilharam sobre seus antepassados, que eram “Eu sou parte da associação quilom-
terras, dançaram, festejaram e contaram muitas negros, quilombolas, mas quando eu bola, sempre tem reunião quando Ed-
histórias. era mais novo quase nem prestava mundo marca, a reunião é na escola.
Resistindo às imposições e demandas de atenção porque naquele tempo A última reunião foi há pouco tempo,
tempos duros, a comunidade continua repro- quase não tinha ninguém que acom- foi sobre a Cartografia Social, e já
duzindo suas práticas e saberes tradicionais, panhasse isso. Mas agora, depois um mês antes foi sobre os cursos que
A CHAMADA “ÁRVORE DO JONGO”, que simbolizam suas conquistas coletivas. de uns tempos para cá, por meio das iriam vir. Pelo menos está vindo uma
LOCALIZADA AO LADO DA ESCOLA, ONDE A identidade quilombola das famílias é hoje reuniões feitas no colégio, na comuni- melhoria porque a gente vai fazer
OS MAIS VELHOS ENSINAM O JONGO reconhecida e constantemente reivindicada dade, nós fomos sabendo mais sobre os cursos de predaria, para enfeitar
PARA AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE em práticas de renovação e fortalecimento dos nossos direitos e sobre nossa história, sandália, e bordado. Isso foi um
laços comunitários.. e foi assim que a gente foi tomando pedido da gente, eu que dei aquela
Como se diz em Deserto feliz, ser quilom- conhecimento sobre o que era ser ideia, porque assim pelo menos
bola é adquirir “a capacidade de ser livre”. quilombola.” SALVADOR poderemos ganhar um dinheirinho.
Nessas reuniões também sempre
ficam falando sobre os impactos do
petróleo na Bacia de Campos, a
gente fica sabendo sobre isso, mas
dá pouca gente nas reuniões, muito
pouca gente.” LEILA

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A CARTOGRAFIA SOCIAL
EM DESERTO FELIZ

Na Comunidade Quilombola de Deserto Feliz, na equipe executora do Quipea, dentre eles Ed- Equipe Executora do Quipea Equipe da Cartografia Social
a Cartografia Social, projeto demandado pelas mundo, apoiador local, Brenda, representante
próprias comunidades quilombolas do Quipea, na Comissão Articuladora do Quipea, Miriam, COORDENAÇÃO GERAL COORDENAÇÃO
se deu por meio da realização de diferentes ilustradora quilombola e Tânia, educadora Lílian Gonçalves Eliane Cantarino O’Dwyer
atividades ocorridas durante os anos de 2019 popular. (conferir nomes completos). Deborah Bronz
e 2020. COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Em junho de 2019, os trabalhos foram Tânia Fernandes EQUIPE DE PESQUISA E MAPEAMENTO
iniciados com os primeiros contatos da equipe Danilo Borghi
de pesquisadores com os moradores de Deserto ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA Diego Perez Olveda Del Arco
Feliz, para o reconhecimento de seu território. Carlos Frederico Loureiro Márcia Malheiros
Em setembro do mesmo ano, a atividade Leonardo Freitas
“Oficina de Cartografia Social” reuniu 35 mora- ILUSTRADOR QUILOMBOLA João Hostzmaster Oswaldo Cruz
dores na escola local (Escola Municipal Manoel Magno Castro Flávio Souza Brasil Nunes
Azeredo). Nos dias seguintes à oficina, foram
colhidos dos depoimentos. A comunidade de APOIADORA LOCAL DEPOENTES DA COMUNIDADE
Deserto Feliz recebeu em suas casas a equipe Neisiane Alves QUILOMBOLA DE BOA ESPERANÇA
de pesquisadores do Quipea. Foram realizadas [inserir nomes]
entrevistas, conversas informais e rodas de EDUCADORA POPULAR
conversa. Além disso, representantes da comu- Tânia Ferreira PROJETO GRÁFICO
nidade acompanharam os pesquisadores pelo Thiago Lacaz
território de uso e ocupação para a localização EDUCADORA AMBIENTAL
dos pontos que foram marcados no mapa do Elaine Souza
Quilombo Deserto Feliz.
Entre os quilombolas que protagonizaram
e colaboraram ativamente com esse trabalho,
destacaram-se: Dona Dalva, presidente da
Associação Quilombola de Deserto Feliz, Seu
Alcino (“Cicino”), Dona Santinha, Dona Inha,
Mariinha, Salvador, Edilse, Sérgio, Dona
Teca, Pedro, Dona Antônia (“Tonha”), Wezio,
Merro, Leila, Zenildo, “Quito”, Guilherme,
Lucimar, Isabel, Claudiana, Walquiria, Careca,
Cristiane. Também foi fundamental o apoio dos
representantes da comunidade de Deserto Feliz

32 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA


Equipe executora Realização

A realização do Quipea é uma medida


mitigadora exigida pelo Licenciamento
Ambiental Federal, conduzido pelo Ibama.

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