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des
erto
feliz
A realização do Quipea é uma
medida mitigadora exigida
pelo Licenciamento Ambiental
Federal, conduzido pelo Ibama.
DESERTO FELIZ DA
RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO
À LIBERDADE ATUAL
DO QUILOMBO
A Comunidade Quilombola de Deserto Feliz foi expedida pela Fundação Palmares (FCP) em
O Quipea – Quilombos no Projeto de Educação está situada às margens da RJ-204, acerca de 2010 e o processo de titulação de suas terras
Ambiental, da empresa Shell Brasil, é uma 13 km de Praça João Pessoa, no município de está em andamento no Instituto Nacional de
condicionante de mitigação do licenciamento São Francisco de Itabapoana, Norte Fluminense. Colonização e Reforma Agrária (Incra).
ambiental conduzido pelo Ibama, que desde O território de ocupação atual da comunidade, De acordo com a memória dos “mais anti-
seu início em 2009, trabalha com Quilombos formada pelas relações entre diferentes famílias gos”, seus antepassados viveram no “tempo da
certificados pela Fundação Cultural Palmares. e seus laços de casamento, é identificado a escravidão”. Há também referências a relações
Atualmente, atua em oito municípios, com 21 partir de uma origem que remete ao “tempo de casamento. Todos eles trabalharam em gran-
comunidades quilombolas. O projeto está em da escravidão”. Seus herdeiros compartilham des propriedades rurais do sertão sanjoanense
sua terceira fase, e tem por objetivo fomentar modos, saberes e práticas de trabalho na terra: e vizinhanças, tendo sido esse “sertão” também
a autonomia das comunidades quilombolas do no cultivo de lavouras, capina e manutenção marcado pelo tráfico ilegal de africanos, fugas
Quipea no âmbito do licenciamento ambiental. de pastos e roças, criação de animais e na de escravos e a formação de quilombos no
Para o cumprimento desse objetivo, há um produção de farinha de mandioca, além de século XIX.
conjunto de atividades planejadas e realizadas atividades também historicamente ligadas ao Após a abolição, os ancestrais continuaram
de modo articulado. Entre estas atividades está cultivo nas áreas situadas no interior de grandes residindo e trabalhando na região de Deserto
a Cartografia Social, que busca fomentar, em fazendas da região, tomadas como referência Feliz e adjacências, estabelecendo-se no interior
cada comunidade, processos coletivos e parti- pelos moradores mais velhos da comunidade. dos engenhos de cana-de-acuçar e grandes
cipativos que resultem no maior conhecimento Atualmente a Comunidade Quilombola propriedades como colonos ou moradores, e/
e planejamento dos territórios quilombolas. de Deserto Feliz é organizada a partir dos ou nos chamados “cantos” (ou “cantos de
O fascículo é um dos frutos desse processo núcleos familiares de Dona Santinha, 83 anos, fazenda” conforme expressão utilizada), nome
realizado em cada comunidade e foi concebido dona Mariinha, 103 anos, seu Alcino, mais dado aos espaços intercalados com as áreas de
a partir das falas de cada participante. Ao final conhecido como “Cicino” ou “Coco” (mestre ocupação das fazendas, onde viviam livres.
da publicação, constam maiores detalhes de do jongo), X anos, e de seu Moreno, falecido No entanto, de acordo com os relatos dos
como isso foi feito e quem colaborou. em 2018, aos 84 anos; seus descendentes e “antigos”, o “tempo da escravidão” foi mais
vizinhos. Alguns de seus antepassados foram longo do que contam os livros de história.
escravizados em fazendas localizadas no então Formas de trabalho escravo prolongaram-se
denominado sertão sanjoanense e localidades por muitos anos após o fim formal do sistema
vizinhas, como Morro do Coco, em Campos escravista. Relatos sobre castigos físicos, traba-
dos Goytacazes. lho extenuante, parcos pagamentos e ameaças
Hoje, a comunidade reúne cerca de 50 famí- não são raros entre os moradores mais velhos
lias dedicadas, predominantemente, ao trabalho que chegaram a testemunhar os maus-tratos
rural, apesar dos grandes obstáculos fundiários, infligidos por alguns dos antigos “patrões”
laborais e socioambientais que vivenciam. A so- (fazendeiros) aos trabalhadores rurais, também
licitada certidão de autodeclaração quilombola chamados à época de “moradores”.
Aquela moça bonita está numa casa para poder bater tambor,
ou também quando faziam forró. Eu
tiver fé.” CICINO levava café, bolo. Depois eles iam
para outra casa, e assim, ficavam de
grande pra jogar. A gente já jogou
contra Santo Eduardo, contra o time
tocando esse tambor aprendi a dançar jongo, mas já não “(…) Sempre que Cicino está ali na casa em casa, porque tinha muita de Marra-égua, lá em Boa Esperança,
Vou morar com você. brincam e dançam o jongo.” SALVADOR na escola agora. Meu pai também
não dançava jongo não, mas ele
Graúna, vamos nos encontrar com as
outras comunidades da região no 6to
“Eu jogo no time de Deserto Feliz,
hoje vai ter um treino aqui mais
CICINO acompanhava.” CARECA Evento Cultural do Quipea.” TECA tarde. Vai ser aqui no campinho, nós
“Eu tenho filhos que batem o tambor temos que arrumar um lugar para
comigo, tem uma filha minha que fazer um campo maior, porque esse
canta comigo também. Eu aprendi “Os mais velhos contavam que anti- aqui é bem pequeno. O dono daqui
o jongo com meu sogro, que era o gamente plantavam uma bananeira deu pra fazer um outro campo mais DESERTO FELIZ FUTEBOL CLUBE
pai da dona Santinha, ele tinha um à meia noite durante o jongo e já lá na frente, ali na baixada. Seria
tambor com o que fazia festas, eu dava cacho de banana, os mais bom porque o campo daqui é muito
desde pequenininho aprendi com ele. antigos contam que tinham alguns pequenininho, ele só emprestaria
Lembro que nas festas de São João que conseguiam fazer isso, mas isso o espaço, o espaço vai continuar
DEFINE O QUILOMBOLA
falava que eu não era quilombola comunidade, algumas coisas dão
“A identidade quilombola acho que porque pensava que quilombola era para entender, mas outras são
é recente. Fomos procurando aos só escravo ou preto, por isso eu não meio complicadas de entender.
poucos a história do quilombo, um dizia que eu era. Os meninos que Geralmente são as mulheres que vão,
dia chegou um povo e falou sobre estudam na Praça João Pessoa não porque quando saem as reuniões os
esse negócio de quilombo pra mim falam na escola que são quilombolas homens estão trabalhando, difícil que
e pra minha neta Valquíria, e nós porque as outras crianças zoam eles, participem.” CLAUDIANA
fomos nos informar. A dona Dalva e eles ficam com vergonha. Mas nós
estava presente também, e pouco a nos sentimos quilombolas, com o
pouco, com as informações fomos tempo chegaram mais informações “Eu sou quilombola porque gosto
nos informando melhor.” DONA SANTINHA sobre o que era ser quilombola e nós da liberdade. Muitos não sabem e
reparamos que nós somos sim quilom- pensam que quilombola é só alguém
bolas mesmo. Eu tenho cinco filhos, e de cor de pele negra, mas não é
“A gente passou a se reconhecer os cinco sabem que são quilombolas, só por causa da cor. Eu acredito
como quilombola, hoje em dia eu me se sentem quilombolas.” LEILA que quilombola é quem luta pela
reconheço, meus filhos também, o fi- liberdade.” QUITO
nado Moreno também. Quando tinha
Em meio a todas as dificuldades, de tempos passeios ou eventos dos quilombolas “Eu não acompanhei muito a asso-
passados e presentes, Deserto Feliz se perpetua ele sempre ia pra todo e qualquer lu- ciação quilombola, mas eu me reco-
como uma comunidade que compartilha meios gar, mas depois que adoeceu parou, nheço como quilombola sim. Meu pai,
de vidas e raízes históricas, culturais e tradicio- parou ele e parei eu também, mas Rubens, também se reconhecia, ele
nais. Sucessivas gerações, desde o tempo da continuo sendo quilombola.” ISABEL sempre falava sobre isso.” CARECA
escravidão ao presente acometido pelas secas,
encontraram nestas terras de Deserto Feliz um
lugar para traçar seus caminhos de liberdade. “Minha mãe era quilombola, meu pai “Eu sou quilombola, minha família
Nesse território, adquiriram autonomia para não tanto, ele já tinha outra descen- toda é.”. WEZIO
viver principalmente do que produziam, ou dos dência, mas eu me sinto quilombola
recursos ambientais disponíveis. Casaram, cons- sim. Minha mãe sempre falava
truíram famílias, compraram e compartilharam sobre seus antepassados, que eram “Eu sou parte da associação quilom-
terras, dançaram, festejaram e contaram muitas negros, quilombolas, mas quando eu bola, sempre tem reunião quando Ed-
histórias. era mais novo quase nem prestava mundo marca, a reunião é na escola.
Resistindo às imposições e demandas de atenção porque naquele tempo A última reunião foi há pouco tempo,
tempos duros, a comunidade continua repro- quase não tinha ninguém que acom- foi sobre a Cartografia Social, e já
duzindo suas práticas e saberes tradicionais, panhasse isso. Mas agora, depois um mês antes foi sobre os cursos que
A CHAMADA “ÁRVORE DO JONGO”, que simbolizam suas conquistas coletivas. de uns tempos para cá, por meio das iriam vir. Pelo menos está vindo uma
LOCALIZADA AO LADO DA ESCOLA, ONDE A identidade quilombola das famílias é hoje reuniões feitas no colégio, na comuni- melhoria porque a gente vai fazer
OS MAIS VELHOS ENSINAM O JONGO reconhecida e constantemente reivindicada dade, nós fomos sabendo mais sobre os cursos de predaria, para enfeitar
PARA AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE em práticas de renovação e fortalecimento dos nossos direitos e sobre nossa história, sandália, e bordado. Isso foi um
laços comunitários.. e foi assim que a gente foi tomando pedido da gente, eu que dei aquela
Como se diz em Deserto feliz, ser quilom- conhecimento sobre o que era ser ideia, porque assim pelo menos
bola é adquirir “a capacidade de ser livre”. quilombola.” SALVADOR poderemos ganhar um dinheirinho.
Nessas reuniões também sempre
ficam falando sobre os impactos do
petróleo na Bacia de Campos, a
gente fica sabendo sobre isso, mas
dá pouca gente nas reuniões, muito
pouca gente.” LEILA
Na Comunidade Quilombola de Deserto Feliz, na equipe executora do Quipea, dentre eles Ed- Equipe Executora do Quipea Equipe da Cartografia Social
a Cartografia Social, projeto demandado pelas mundo, apoiador local, Brenda, representante
próprias comunidades quilombolas do Quipea, na Comissão Articuladora do Quipea, Miriam, COORDENAÇÃO GERAL COORDENAÇÃO
se deu por meio da realização de diferentes ilustradora quilombola e Tânia, educadora Lílian Gonçalves Eliane Cantarino O’Dwyer
atividades ocorridas durante os anos de 2019 popular. (conferir nomes completos). Deborah Bronz
e 2020. COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Em junho de 2019, os trabalhos foram Tânia Fernandes EQUIPE DE PESQUISA E MAPEAMENTO
iniciados com os primeiros contatos da equipe Danilo Borghi
de pesquisadores com os moradores de Deserto ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA Diego Perez Olveda Del Arco
Feliz, para o reconhecimento de seu território. Carlos Frederico Loureiro Márcia Malheiros
Em setembro do mesmo ano, a atividade Leonardo Freitas
“Oficina de Cartografia Social” reuniu 35 mora- ILUSTRADOR QUILOMBOLA João Hostzmaster Oswaldo Cruz
dores na escola local (Escola Municipal Manoel Magno Castro Flávio Souza Brasil Nunes
Azeredo). Nos dias seguintes à oficina, foram
colhidos dos depoimentos. A comunidade de APOIADORA LOCAL DEPOENTES DA COMUNIDADE
Deserto Feliz recebeu em suas casas a equipe Neisiane Alves QUILOMBOLA DE BOA ESPERANÇA
de pesquisadores do Quipea. Foram realizadas [inserir nomes]
entrevistas, conversas informais e rodas de EDUCADORA POPULAR
conversa. Além disso, representantes da comu- Tânia Ferreira PROJETO GRÁFICO
nidade acompanharam os pesquisadores pelo Thiago Lacaz
território de uso e ocupação para a localização EDUCADORA AMBIENTAL
dos pontos que foram marcados no mapa do Elaine Souza
Quilombo Deserto Feliz.
Entre os quilombolas que protagonizaram
e colaboraram ativamente com esse trabalho,
destacaram-se: Dona Dalva, presidente da
Associação Quilombola de Deserto Feliz, Seu
Alcino (“Cicino”), Dona Santinha, Dona Inha,
Mariinha, Salvador, Edilse, Sérgio, Dona
Teca, Pedro, Dona Antônia (“Tonha”), Wezio,
Merro, Leila, Zenildo, “Quito”, Guilherme,
Lucimar, Isabel, Claudiana, Walquiria, Careca,
Cristiane. Também foi fundamental o apoio dos
representantes da comunidade de Deserto Feliz