Você está na página 1de 16

CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA

QUILOMBO CACIMBINHA

cacim
binha
A realização do Quipea é uma
medida mitigadora exigida
pelo Licenciamento Ambiental
Federal, conduzido pelo Ibama.
O QUILOMBO
A Comunidade Quilombola de Cacimbinha
localiza-se na porção leste do município de
Presidente Kennedy, litoral sul do Espírito Santo,

CACIMBINHA
próxima à praia de Marobá.

Cacimbinha é parte de um conjunto territorial

E AS TERRAS DE
mais amplo, que inclui a comunidade vizinha
de Boa Esperança e outras comunidades como
Graúna, com as quais compartilham histórias

HERANÇA
de descendência comum, expressas na luta pelo
reconhecimento como quilombo. Essa origem
comum também se expressa no exercício de
ação política conjunta na gestão da Associação
dos Moradores Quilombolas de Boa Esperança
e Cacimbinha, fundada em 2014. Desde a
emissão da Certidão de Autodefinição Qui-
lombola, expedida pela Fundação Palmares
(FCP), Cacimbinha e Boa Esperança congregam
ações na esfera pública em prol da valorização
de sua identidade étnico-racial, bem como da
visibilidade social e salvaguarda de sua história,
práticas culturais e modo de vida.

As terras de herança, de doação, e de santo,


são nomes locais utilizados para se referir às
formas de ocupação tradicional dos territórios
do quilombo, com suas especificidades étni-
co-culturais, do ponto de vista dos usos (pelas
famílias ou coletivos), dos modos de produção
e organização social, da reprodução social das
O Quipea – Quilombos no Projeto de Educação famílias, e da manutenção das práticas culturais.
Ambiental, da empresa Shell Brasil, é uma Essas expressões manifestam na memória social
condicionante de mitigação do licenciamento as invocações ao passado escravista e as for-
ambiental conduzido pelo Ibama, que desde mas de pertencimento social, cultural, territorial
seu início em 2009, trabalha com Quilombos da comunidade. Tais formas são mobilizadas
certificados pela Fundação Cultural Palmares. no presente diante daqueles que ameaçam
Atualmente, atua em oito municípios, com 21 seus territórios tradicionais e a manutenção de
comunidades quilombolas. O projeto está em seus modos de vida, passando a orientar ações
sua terceira fase, e tem por objetivo fomentar coletivas em busca de novos destinos.
a autonomia das comunidades quilombolas do
Quipea no âmbito do licenciamento ambiental. Com um passado marcado pela escravidão, os
quilombos de Cacimbinha e Boa Esperança se
Para o cumprimento desse objetivo, há um formaram a partir dos caminhos de liberdade
conjunto de atividades planejadas e realizadas traçados por seus “pais fundadores”, Manoel
de modo articulado. Entre estas atividades está Batalha e Manoel João, considerados os
a Cartografia Social, que busca fomentar, em principais “troncos” de suas famílias. Há
cada comunidade, processos coletivos e parti- algumas versões dos descendentes de Manoel
cipativos que resultem no maior conhecimento Batalha e Manoel João sobre suas procedên-
e planejamento dos territórios quilombolas. cias, notadamente Campos dos Goytacazes,
O fascículo é um dos frutos desse processo no caso de Manoel João, mas também Barra
realizado em cada comunidade e foi concebido do Itabapoana – onde havia um porto de
a partir das falas de cada participante. Ao final desembarque dos navios negreiros mesmo
da publicação, constam maiores detalhes de após a proibição do tráfico intercontinental
como isso foi feito e quem colaborou. de africanos. Alguns descendentes de Manoel

2 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 1


João acreditam, inclusive, que ele teria nascido
na África. A antiga Fazenda Muribeca – cujo
matrimoniais, são reconhecidos os direitos de
herança da terra.
OS DOIS MAIS “Essa terra aqui é da minha avó. Eu “Eu cheguei a conhecer a meu tio Pelé
território se estendia do sul do Espírito Santo até VELHOS DO LUGAR não sei explicar de quem ela ganhou. [filho de Orci Batalha], mas nem sei
Campos dos Goytacazes – também é apontada Ainda que haja diferentes referências às origens É de minha avó, ela passou para porque chamavam ele assim, ele jo-
como uma das possíveis origens dos dois desses antepassados, seja da África, das sen- meu pai e o meu pai faleceu e fica- gava muita bola, era bom. O campo
patriarcas. Uma antiga história que circulava zalas da Fazenda Muribeca, do porto da Barra “Mané João e Manoel Batalha são mos nós aqui. Eu tirei o documento de futebol ficava do lado da casa
na região informava que as terras eram parte do Itabapoana ou da região de Campos dos os dois mais velhos do lugar que dessa terra aqui em 1998, antes não dele, e inclusive, a terra onde agora
da Fazenda Muribeca e foram doadas aos dois Goytacazes, o mais importante é que eles fize- eu conheci. Tinham outros mais tinha documento.” DICÓ BATALHA, 76 ANOS, é o campo era a terra do meu avô,
por eles terem nascido após a promulgação da ram dessas comunidades territórios livres para velhos, mas esses eu já não conheci.” NETO DE MANOEL BATALHA Orci Batalha, quem a herdou de Ma-
Lei do Ventre Livre, ocorrida em 1871. seus descendentes. Ali, ambos trabalharam por DICÓ BATALHA, 76 ANOS noel Batalha, meu bisavô. Também a
conta própria, conquistaram terras, casaram, terra da escola aqui de Cacimbinha
Junto à sede dessa fazenda, os padres jesuítas tiveram filhos, amigos, compadres e afilhados. era do meu avô, que a cedeu para a
estabeleceram a Igreja de Nossa Senhora das “A história que circulava antiga- comunidade construir a escola, que
Neves, até hoje visitada por muitos quilombolas Além das terras de herdeiros, a memória oral mente é que aconteceu o seguinte: inclusive leva o nome ‘Orci Batalha’
de Cacimbinha e Boa Esperança na ocasião da dos mais velhos relembra os usos que faziam Cacimbinha e Boa Esperança eram por causa dele. A terra onde fica a
festa da padroeira, ocorrida todos os anos no do “Campo de Muribeca” para pesca, criação, a fazenda grande, a Fazenda escola, a igreja, a pracinha, tudo
início do mês de agosto. Relatos indicam que caça e pastoreio, uma área de uso comum livre Muribeca. O avô de Pelé, que era isso foi dado pelo meu avô para
um dos locais de refúgio dos escravos na região ao manejo dos recursos ambientais pelas famí- Manoel Batalha, esse povo já nasceu a comunidade, quem a herdou do
era a Igreja Nossa Senhora das Neves, anexa lias quilombolas e demais famílias de pequenos na época da Lei do Ventre Livre; Mané Batalha.” LEOVÂNIO NEVES BATALHA
à Fazenda Muribeca. Essa igreja foi construída agricultores, criadores e pescadores ali residen- quem nascia depois daquela época
pelos escravos e nela havia um túnel onde tes, sem a interferência, portanto, de eventuais já não era mais escravo. (…) Então,
africanos provenientes da Barra do Itabapoana, proprietários. A região “era tudo mato fechado o que aconteceu? Aqui, Cacimbinha “Mané João era o pai da minha mãe,
local de desembarque dos navios negreiros, mesmo”. De um tempo para cá, vários proprie- foi doada a Manoel Batalha e Boa era meu avô. Eu acho que ele veio
se refugiavam. Se antes viviam nas “terras de tários que vieram “de fora” cercaram o campo, Esperança foi doada a Manoel João. do estado do Rio, de Campos dos
santos”, onde estavam protegidos, hoje vão obstaculizando o trânsito e os usos tradicionais Foi aí aonde que ele tinha bastante Goytacazes para cá, mas veja bem,
“buscar os santos” para abençoar suas terras e dessa área pelos ocupantes originários. terra.” ITAMAR BATALHA quando ele chegou, não chegou
trazer a chuva nos períodos de estiagem. muito difícil porque tinha terra aqui
Transformações ocorridas na região nos últimos “Eu não conheci meu avô Manoel e em vários outros lugares. Não sei
A família Batalha é uma das mais numerosas anos, a exemplo do estabelecimento de “pes- Batalha, mas Orci Batalha eu se ele comprou ou pegou, porque
de Cacimbinha e suas terras de herança foram soas de fora” no interior e vizinhanças de suas conheci sim, ele era meu pai. Eu naquela época também quando al-
legadas por Manoel Batalha. Um dos des- áreas de uso e ocupação – processo migratório não sei a origem do meu avô, teria guém chegava, entrava e sacava um
cendentes diretos de Manoel Batalha foi Orci em grande medida alavancado pela explora- que ser mais velho para poder dizer, pedaço e ninguém mexia não. Aí em
Batalha, nascido por volta de 1913 e falecido ção de petróleo e gás no litoral sul espírito-san- eu agora tenho 56 anos. Já meu todo lugar que ele entrava arranjava
aos 75 anos de idade. Ainda em vida, Orci tense – são interpretadas como ameaças aos pai morreu quando eu estava com uma mulher né, tinha uma em Graúna,
estabeleceu áreas de uso comum para toda a territórios tradicionais e aos modos próprios de 25 anos, ele morreu com 75 anos. lá embaixo tinha outras três ou quatro,
comunidade, onde foram construídas a igreja, a fazer, criar e viver. Nesse contexto, a abertura A minha mulher, Valdilina, é neta de tinha muitas.” MILTON, 63 ANOS
praça, a escola, além do campo de futebol de do procedimento de titulação de seus territórios Mané João.” OUDECIR BATALHA
Cacimbinha. Hoje, os descendentes de Manoel tradicionais, tanto para Cacimbinha como para
e Orci Batalha buscam sublinhar a importância Boa Esperança, se apresenta como alternativa “O pessoal dizia que meu pai
da família Batalha na formação de Cacimbinha. aos processos de expulsão a que têm sido [Manoel João] veio de Campos dos
submetidos os membros dessas comunidades, “Manoel Batalha era o meu avô, e o Goytacazes, uma neta dele falou
Os descendentes de Manoel João também são considerando a pertinência desse instrumento Pelé, Ildo, Aldecir, todos são meus com uma irmã minha mais velha e
muitos e estão entrelaçados por laços de matri- de regularização fundiária no contexto de seus primos. Antigamente, Mané Batalha lhe disse que ele veio de Campos; eu
mônio, parentesco e compadrio com os Batalha. territórios, identificados como terras de doação, era dono de boa parte de Cacimbi- mesmo não sabia, quando eu cresci
Originalmente, a maior parte das terras de he- de herança ou de santo, e portadoras ainda nha, ele morava perto de onde o Ildo e conheci meu pai ele já morava em
rança deixadas por “Mané João” ficava “mais de legitimação documental da “posse” familiar mora agora. Mané João já estava Boa Esperança.” EDNA, “EDINHA”, 86 ANOS
por Boa Esperança”. Manoel legou terras em dessas terras. mais por Boa Esperança, aqui em
Boa Fé (parte de Cacimbinha), Boa Esperança, Cacimbinha só ficava no que agora
Jiboia e Graúna, deixando em todas essas se conhece como Boa Fé. Mané João
localidades filhos, netos e bisnetos. A larga des- tinha terra lá na Jiboia também, tinha
cendência de Manoel João pode ser explicada muita terra ele.” REINALDO BATALHA
pelas muitas mulheres que teve, formando uma
família extensa, sendo que a todos os grupos
de filiação, constituídos mediante essas alianças

2 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 3


“Eu sou de 1936, e quando eu
conheci Mané João eu era pequeno,
“A nossa propriedade não faz divisa
diretamente com Boa Fé, faz divisa
AGORA MISTUROU
AS PAISAGENS DO LUGAR:
TOPÔNIMOS, ESPAÇOS RESIDENCIAIS
enquanto que ele já tinha seus filhos com uma pequena propriedade da “Eu vim de fora, e há 24 anos atrás,
tudo criados. Ele era um homem dona Edinha que recebeu como quando vim pela primeira vez, eu
forte, a turma respeitava ele mesmo. herança parte do Mane João; já do era vista como branca por eles. Mas

E SOCIOPRODUTIVOS
Antigamente a terra de Cacimbinha lado daquela propriedade fica Boa eu casei com Rosinaldo Batalha, e
era de Mané Batalha e já “Marra-É- Fé, onde também tem descendentes depois de mim, outras pessoas tam-
gua” [Boa Esperança] era mais de de Mané João.” ROSINALDO BATALHA bém vieram, conheceram, gostaram,
Mané João. De Manoel Batalha não ficaram, e foi dessa mistura toda que
lembro dele casado, mas a gente hoje está do jeito que está, graças
sabe que ele tinha uma mulher só. TUDO PARENTE a Deus. Depois de 24 anos, por
Agora, o finado Mané João tinha exemplo, é difícil não dizer que eu
várias, e era difícil que em qualquer sou quilombola. Eu mesma participei
lugar que ele tivesse uma mulher, ele “Manoel João era o meu avô. Ele muito do processo de Certificação,
não comprasse um pedaço de terra era pai da minha mãe, Edenilza das participei de muitas reuniões.”
para ela. Ele tinha uma mulher em Neves. Oudecir, meu marido, já é SILVIA, ESPOSA DE ROSINALDO BATALHA
Boa Fé, no “Marra-Égua”, na Jiboia, parente dos Batalha. Nós temos um
e comprava terra para as mulheres casal: Raquel e Leovânio das Neves
tomar conta. Aqui em Cacimbinha Batalha, que são descendentes de
Mané João comprou um terreno na Mané João, por parte de mãe, e
Boa Fé, apanhou uma mulher que de Mané Batalha, por parte de pai.
morava aqui em Cacimbinha e botou Tânia [moradora de Boa Esperança]
pra lá.” ROBEL RIBEIRO, 83 ANOS é minha prima. Neisiane [moradora
de Boa Esperança] também é parente
minha porque a avó dela é minha tia,
“(…) era muito justo. Esse pedaço porque a avó dela mora com meu tio.
aqui foi herança do meu pai, a O Oudecir, meu marido, já é parente Até os anos 70 e 80, predominavam na pai- em suas respectivas cacimbinhas e a existência
herança da minha mãe fica mais dos Batalha.” VALDILINA DAS NEVES sagem de Cacimbinha as matas e os piscosos de roças familiares em áreas de “herança”
embaixo, na Boa Fé. Minha mãe brejos ou “valas” que serpenteavam a planície ajudam a contar a vida incorporada aos usos
morava com a mãe dela na Boa Fé, periodicamente inundada, sendo as beiras dos desses espaços dos quilombos.
mas casou com meu pai e veio morar “Na verdade, esse Manoel João brejos os locais onde as famílias cavaram as
aqui, mas ainda tem a herança dela ficou com um pedacinho de terra “cacimbinhas”, tradicional fonte de água para a A pesca, a caça e a coleta são práticas comuns
lá. O meu pai acho que era campista, lá embaixo, outro aqui onde é Boa comunidade e origem de seu topônimo. nos brejos e matas locais. Tais atividades,
porque ele contava para a gente que Fé, ficou com um pedaço de terra também eram exercidas em terras pouco mais
tinha um irmão lá em Campos, e de em Graúna. Em cada lugar ele “Eu me sinto, eu sou quilombola. (…) Além das cacimbinhas e dos brejos, ao mesmo distantes, como o “Campo de Muribeca”,
vez em quando ia visitar os irmãos.” botava uma mulher. Já o Manoel E hoje, nós, quilombolas, somos tempo fonte de recursos e marca da presença e considerado também como terra “solta” para o
MILTON, 63 ANOS, NETO DE MANOEL JOÃO Batalha escolheu só Cacimbinha. (…) todos iguais, até pela diferença das relações sociais, ambientais e territoriais da pastoreio do gado. Hoje, acentuadas mudanças
Depois as duas famílias acabaram de cor, porque agora misturou.” comunidade no lugar e no tempo, foram mapea- na paisagem são relatadas, especialmente
juntando e aí casa um com outro, aí NELBA, “NELBINHA” dos diversos topônimos em torno da delimitação quanto a diminuição da flora, fauna e do vo-
é onde acaba que basicamente todo dos espaços residenciais, socioprodutivos, dos lume de água nos brejos. As atividades de caça
mundo que reside aí são parentes.” grupos domésticos e de uso comunal, que mar- e extração, como a coleta de frutos, ervas e raí-
ITAMAR BATALHA cam a presença da comunidade na paisagem zes, abundantes no passado, vêm se tornando
local. Dentre alguns topônimos de referência cada vez menos frequentes. A coleta de aroeira
estão: “Boa Fé”, local originalmente ligado ainda é praticada por alguns, tanto para o uso
à parentela de Manoel João, “Corredor das medicinal como para o comércio desse fruto.
Guarandas”, trecho arborizado e relacionado à
ocorrência de fenômenos sobrenaturais, “Curral A agricultura familiar é atividade central no
do Turco”, onde vários moradores trabalharam cotidiano das famílias de Cacimbinha. Há ge-
nos serviços da pecuária, e a “Curva do Romá- rações, a cultura da mandioca ocupa lugar de
rio”, local que marca o espaço doméstico do destaque entre os gêneros agrícolas cultivados,
falecido Romário Batalha, onde até hoje vivem embora hoje as plantações de abacaxi também
seis de seus oito filhos. A disposição espacial representem importante fonte de renda para
dos grupos domésticos, as “marcas” familiares as famílias. Ainda assim, os desafios não são

4 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 5


poucos: o aumento das estiagens, o atual uso
de defensivos agrícolas – especialmente nas
O escasseamento das águas é um grande
problema para a comunidade, sendo hoje muito
ERA TUDO MATO “Muribeca era um lugar que se você “De primeira tinha muita cacimba por
plantações de abacaxi –, o alto custo para a agravado pelo adensamento ocupacional e FECHADO MESMO quisesse criar qualquer animal, você aqui, todas as casas tinham cacimba
manutenção desse tipo de plantio, a “queda da pela intensificação da monocultura, sobretudo poderia soltar lá. Muribeca era um porque não tinha água encanada.
produtividade da terra” e os baixos preços dos do abacaxi e da cana de açúcar, e o decor- campo, era muito grande e tinha Não dá pra ver mais a cacimba que
produtos agrícolas vendidos aos atravessadores, rente desmatamento das fontes, mananciais e “Meu pai caçava aqui, tinha muito muito peixe, muito peixe. Lá você a gente tinha porque já foi tapada.”
são alguns dos problemas enfrentados pelos nascentes. De fato, o fenômeno da “desertifica- animal, lá pelos anos 1970, 1980, não ia pescar não, você ia buscar o ALDECIR BATALHA
agricultores de Cacimbinha. ção” tem sido alvo de um conjunto de iniciativas era tudo mato fechado mesmo. (…) peixe, de tanto peixe. Era caminhão,
no estado do Espírito Santo desde 2010, era mata virgem, tinha ninho de carroça, cargueiro todo o santo
Os produtos das lavouras são comercializados por meio da ação Instituto Estadual de Meio abelha, muita cobra, quase não tinha dia. A Muribeca era um campo “Cacimba é o que mais tinha, porque
pelas famílias na Feira Livre do Agricultor Ambiente e Recursos Hídricos – Iema, indicando estrada. Para pegar ônibus a gente muito grande e ali se podia criar de primeiro não tinha poço, agora
Familiar de Presidente Kennedy, ou por meio que se trata de um problema grave enfrentado tinha que ir até a BR, antigamente a quantos animais quisesse, ninguém a gente tem poço. A minha cacimba
da ação de atravessadores, que os revendem por sua população que vive majoritariamente gente tinha que caminhar seis quilô- embargava. Uns anos atrás, muitos era aqui no terreiro e eu tapei por
no Rio de Janeiro. Toda quinta-feira a prefeitura em áreas rurais. O município de Presidente metros para ir até a escola, agora os anos, teve um tal de Teodoro, não causa das crianças.” VALDILINA DAS NEVES
disponibiliza um espaço para a realização da Kennedy encontra-se situado numa zona ônibus descem e pegam as crianças sei de onde, que veio embargar que
feira, a qual reúne esses e outros pequenos considerada de risco para o estado, sendo clas- na porta de casa.” NEILMA o campo tinha dono. Aí era o Seu
produtores rurais do município. sificado como “área sujeita aos efeitos da seca Domirinho, era o Seu Evaldo Paes, “Antigamente toda casa tinha sua
e susceptível a processos de desertificação”. um tal de Edgar Corrêa, um tal de cacimba, mas agora, há 10 ou 15
A pecuária, principalmente leiteira, também é “A gente olha tudo isso aqui antiga- Seu Élvio Henrique, Seu Bastião Hen- anos que temos água encanada, e a
exercida por diferentes famílias da comunidade. Atualmente, a comunidade de Cacimbinha, em mente era mata, tinha taboa na beira rique, só gente grande… Pequeno água é boa. Na escola Orci Batalha
Hoje, grande parte dessa produção é fornecida parceria com a comunidade de Boa Esperança, dos brejos, tinha tudo. Aí o homem não tinha vez mais não. Antes disso, tem um poço onde tem água com
à cooperativa leiteira situada na vizinha planeja desenvolver formas de autonomia para entrou e foi formando aqueles clarões todo mundo tinha [acesso ao] campo, mais de 100 metros de profundidade,
comunidade de Santana Feliz. Essa produção é o incremento da produção familiar local des- na mata, foram tirando taboa, foram até os pequenos tinham campo.” é um poço artesiano que fizeram com
diariamente fornecida à cooperativa e de lá é tinada à venda por meio de uma cooperativa tirando tudo… Aí hoje a gente DICÓ BATALHA, 76 ANOS bomba para encanar a água, ela
vendida para uma grande indústria de laticínios denominada Coquiba (Cooperativa Familiar está só sofrendo as consequências, sobe e se distribui. Melhorou muito
localizada no município de Cachoeiro de Itape- Agrícola Quilombola). Nos últimos anos, o né? Hoje a água escasseou tudo.” porque antigamente tínhamos que
mirim Alguns, no entanto, criam o gado leiteiro aumento das estiagens tem obstaculizado a ITAMAR BATALHA descer e subir com água da cacimba,
principalmente para o “consumo da casa” e concretização de alguns projetos, como o subíamos com baldes cheios de água;
para a produção de queijo e requeijão. fabrico de fécula de polvilho, polvilho azedo e por isso que eu sou magrinho assim,
doce. Ainda assim, ambas as comunidades têm “O pessoal daqui pescava nas valas, de tanto subir esse morro e colocar
Embora as famílias de Cacimbinha sempre buscado encontrar soluções conjuntas para o nos brejos.” NELBA, “NELBINHA” água para acima. Essa água servia
tenham vivido predominantemente das ativi- incremento da produção e do beneficiamento para tudo, para lavar, cozinhar, to-
dades agropastoris, da produção de farinha de produtos de subsistência, como a mandioca, mar banho, tudo. E era todo dia que
de mandioca e da pesca nos brejos em suas voltados à comercialização. tínhamos que descer e trazer água.
próprias terras, a busca por atividades laborais
remuneradas fora da comunidade não é um
TODAS AS CASAS A gente armazenava a água numa
talha de barro feita com barro branco
fenômeno recente. A saída temporária de TINHAM CACIMBA que saía do fundo das cacimbas, com
jovens para as cidades, o trabalho em usinas esse barro branco fazíamos o fogão
de açúcar e para seus fornecedores, os serviços a lenha também.” MILTON, 63 ANOS
prestados em fazendas de terceiros, entre outros “Antigamente nós pegávamos água
variados serviços, ocorrem com frequência. da cacimba e com isso fazíamos
tudo, lavávamos a roupa, e assim,
até no final dos anos 1980 que
chegou a luz elétrica, e até que
chegou a água encanada, que veio
pouco tempo atrás, talvez há 10
anos. Antes de ser encanada a gente
pegava a água com balde e levava
para cima.” NEILMA

Tanque no terreno
da Dona Loloca.
Criação de tilapia,
traíra e cará

6 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 7


“O nome da comunidade é Cacim-
TODO MUNDO JUNTO “A feira da prefeitura ajuda muito “Cheirosa né? Isso aqui que é “Nós somos uma família só, então “Vai bastante veneno no abacaxi, se
binha porque cada lugar era beira àqueles que tem roça, a prefeitura Aroeira. Aí lá embaixo tem vários uns plantam abacaxi aqui, outros não, não dá não, é adubo e veneno
de brejo aí o pessoal fazia aqueles “Eu moro aqui, meu irmão mora do dá remédio de mato, bomba para pés que o pessoal cata, que é nosso mandioca ali, e depois a gente muda para não estragar. Esse abacaxi aqui
buraquinhos, e os buraquinhos eram lado, a minha mãe do lado também, lavar, dá uma ajuda. Eu tinha muita mesmo. [É de vocês, mas o povo e vamos levando assim devagar. tem seis meses, daqui a seis meses
muito bons de água. Então faziam meu sobrinho está construindo lá horta, mas agora doente não dá.” vem e pegar?] É porque a gente Para vender a gente conhece muitas puxa a fruta, e pra colher tem que ser
uma porção de cacimbinhas e cada em cima, o outro sobrinho também APARECIDA, 77 ANOS não faz conta não né, eu mesmo pessoas, e oferecemos a um ou a depois de mais seis meses, um ano e
um [família] tinha sua cacimba. está fazendo uma casa ali na não cato… Então deixa o povo outro; o preço do abacaxi hoje está meio no total” MILTON
[…] Por isso o nome Cacimbinha.” frente, mora todo mundo junto.” catar. (…) A Aroeira serve para dois reais a unidade, dois e pouco.
NELBA, “NELBINHA” MILTON, 63 ANOS (FILHO DE DONA EDINHA) “Antigamente o forte da cultura era muita coisa: para sabonete íntimo, é Mas quando tem muito o preço fica lá
a mandioca, como é até agora. antibiótico… O que nós fazemos da embaixo, quando tem pouco o preço A ÁGUA FOI SUMINDO
Quer dizer, a cultura de mandioca Aroeira é chá mesmo. Para fazer um sobe. A mandioca aqui se vende a
continua, mas hoje varia muito, é chá para aliviar a dor, você pega quilo, 10 centavos o quilo, quatro
mandioca, abacaxi, cana, mas uma casca do tronco dela e ferve. reais a caixa de 20 quilos. Mas eu “Antigamente aqui tinha muita água
antigamente era só mandioca.” É bom também para infecção. Se já vendi mandioca a 33 centavos o e era mais fácil pescar nos brejos,
ROSINALDO BATALHA você tem um machucado, você pega quilo, não sei há quantos anos atrás, mas a água foi sumindo, antes dava
isso aqui, lava direitinho e torra, no mas nunca mais consegui, agora é 20 muita enchente, mas hoje em dia não
forno mesmo, no tabuleiro, e faz centavos, 25 no máximo. E não dá enche mais. São poucas as pessoas
“Você acha aqui também bastante um pozinho e joga no machucado, para deixar a roça parada para dar que pescam no mar, dessa turma
plantação de milho. Porque quando entendeu? Assim sara também, mas o preço porque ela não aguenta, o aqui não acha mais do que cinco
a gente planta uma roça de man- arde…” DONA ENERILDA (DOLA) máximo que uma roça aguanta é um pessoas que pescam no mar, já na
“(…) A propriedade do meu pai era dioca, você planta o milho junto, ano e quatro meses, se passar não praia de Marobá sim tem bastante
aqui, ele faleceu e a terra ficou para porque enquanto a mandioca vem presta mais, por isso somos obrigados gente. Antigamente aqui tinha muita
“Para chegar até a nossa cacimba é
só descer até a beira do brejo, tem
seus filhos, que ficamos herdeiros.
Até mais ou menos dois anos atrás
você tira o milho primeiro. Então já
se aproveita: na mesma terra que
HOJE PARECE QUE A a vender. A vida é meio pesada, uma
luta danada.” MILTON, 63 ANOS
água e era mais fácil pescar nos bre-
jos, mas a água foi sumindo, antes
um sinal embaixo da nossa cacimba, estava tudo junto, mas agora resolve- você planta a mandioca, você joga o TERRA ENFRAQUECEU dava muita enchente, mas hoje em
e tinha outra mais na frente que era mos dividir para que cada um tome milho junto.” SILVIA dia não enche mais.” MILTON
do meu filho, ele não tampou a sua posse do seu espaço. Nós éramos “Esse abacaxi aqui por exemplo não
cacimba não. A nossa nós já temos 10 irmãos, desses tem dois mortos, e “E hoje parece que a terra enfraque- é nosso, nossa é a propriedade,
tapado, acontece que quando o fa- agora restaram 8, e entre os 8 repar- “Antigamente aqui dava muita roça ceu mais um pouco, pois antigamente que foi arrendada para um pessoal “Aquele brejo é do Criador, uma outra
lecido Rubens morreu numa cacimba timos a terra. Eu tenho dois irmãos de milho, feijão; chovia mais, o povo a gente plantava e você via que de Marataízes. Até porque hoje o comunidade que fica aqui em baixo;
funda, todo mundo tomou medo de que trabalham fora, mas final de plantava mais milho, feijão e coisa as mandiocas saiam grandes, sau- custo de manter abacaxi é muito o brejo faz parte dela, mas quando a
cacimba; morreram três homens lá semana estão aqui, a raiz continua e tal. Fazia farinha… Vocês sabem dáveis; mas agora você planta e alto. Mas essa roça de mandioca carne está ruim, a gente às vezes vai
em Santo Eduardo, um foi acudir o aqui.” ROSINALDO BATALHA que fazer farinha não era a motor já não vê a mesma qualidade que daqui sim é nossa, a minha parte lá e pega um peixinho.” ROSINALDO
outro e assim morreram todos os três.” não, era manual. Só que essas coisas tinha antigamente. Naquela época ficou nesse lote daqui, entre essas
DONA EDNA, “EDINHA”, 86 ANOS aqui por agora, não chove mais, está a gente plantava, mas não aplicava duas varas, descendo até a estrada.

NÓS VIVEMOS DA difícil.” ILDO veneno em roça, naquela época


a gente limpava na enxada, e o
A propriedade tem oito divisórias de
lotes, um para cada irmão, graças a
“A chuva está passando por longe,
agora choveu um pouquinho graças
AGRICULTURA trabalho ia da manhã até tarde; hoje Deus nossos pais deixaram a gente a Deus e foi bom porque pelo
“Antigamente a gente tinha farinheira, quase ninguém se dá ao trabalho bem. E essa mandioca aqui dos menos refrescou. Mas dizer que isso
mas como a gente não tem mais, de ficar limpando, preferem botar lotes não tem nem cinco meses, é resolveu alguma coisa, não. A gente
“A maior parte ainda vive mesmo da a gente planta e quando chega a um “remédio” que sai mais em conta, mandioca brava para poder fazer planta e espera a chuva que vem do
agricultura, das nossas plantações, época a nossa mandioca vai para fica bem mais barato. Então eu acho farinha. Você pode ver aqui como a céu, é papai do céu quem manda, é
que é a fonte de renda principal de o estado do Rio, porque aqui no que a produtividade da roça caiu terra caiu tanto de produção, porque ele quem vai resolver esse caos aí
Cacimbinha.” SILVIA Espírito Santo a gente não tem por causa disso daí, muito ‘remédio’. antigamente você via uma mandioca mandando uma aguazinha.” ROMILDO
compradores de mandioca. Os com- Além disso, naquela época o tempo de cinco meses com um tamanho
pradores fortes que temos vem do Rio, também ajudava muito, chovia muito, muito maior, hoje cinco meses é
eles trazem a turma deles, cortam e já hoje a chuva está mais escassa; uma miudeza. A produtividade caiu
levam; são atravessadores que com- então uma coisa se junta com a muito.” ROSINALDO BATALHA
pram de nós e depois vendem com outra, mas nós estamos aí vivendo.”
um valor agregado. Assim vamos ROSINALDO BATALHA
devagarzinho, da maneira que Deus
quer, e assim vamos caminhando.”
ROSINALDO BATALHA

8 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 9


EU TAMBÉM TENHO “Descendo esse morro aqui estamos “Antigamente tinha um caminhão que
coisa, trabalhando na roça, e depois
fui arranjando filhos, tenho 3 filhos “Eu trabalhei para a Usina Barcelos,
O SONHO É FAZER COM QUE
UMA VAQUINHA AQUI construindo um curralzinho nosso que coletava para a cooperativa, mas de- que já cresceram. Os jovens da co- Cambaíba. Era comum na minha A COOPERATIVA EMPREGUE
meu genro está fazendo. Esse aqui pois eles passaram a botar um tanque munidade agora conseguem empre- época o pessoal ir para Campos
é meu mesmo. A minha filha casou resfriador comunitário lá em Santana gos em Marataízes, Rio, Cachoeiro, cortar cana. E nós trabalhávamos por
“O leite vai lá para Santana Feliz com um rapaz que já tem filhos de Feliz; em cada comunidade tem um muitos trabalham perto e por isso é dia. Ia uma turma daqui trabalhar “Aquela fábrica ali (localizada em
(comunidade vizinha não quilombola) outro casamento e ele tem umas tanque que aquelas pessoas inscritas fácil ir e voltar. Alguns trabalham de lá. A gente embarcava lá em Campo Cacimbinha), que foi fruto de uma
onde fica a cooperativa. Todo dia vaquinhas no pasto do tio e aí ele vai ali vão lá e depositam o leite. Já um segurança, fazendo faxina, café e Novo, o caminhão vinha buscar a parceria entre o Banco do Brasil com
levamos leite para lá, pode ser pouco trazer as duas vaquinhas dele para caminhão vai apanhar de tanque almoço, outros trabalham na área da gente lá da usina para cortar cana a Petrobras, foi criada para ser uma
ou pode ser muito, mas todo dia vai cá. Eu também tenho uma vaquinha em tanque para levar para a Selita fisioterapia, outros estudam. Antiga- no mês de maio, porque a moagem cooperativa de fécula de polvilho, só
leite. Nós levamos o latão na garupa aqui com o filho de Dona Sireia, (marca de leite industrial). Aqui em mente era mais mandioca, corte de começa em maio. Caminhão de que ela nunca chegou a funcionar
da moto. Essa cooperativa de leite aquele meu afilhado Dudu, aí vamos Cacimbinha não tem tanque resfriador; lenha, cana, hoje em dia menos, só fueiro, trinta ou quarenta homens porque na época veio a questão da
existe desde a década de 1970, trazer tudo para cá. Vamos vender fizeram até um projeto e tudo, mas aqueles que não conseguiram estudar para trabalhar. E naquela época tam- seca, nós passamos por um processo
mas antes era em Santa Eduarda. para laticínio, até porque com esses não caminhou não. Fizeram a casinha, direitinho, mas de qualquer forma bém não tinha ponte na máquina… de seca muito grande que nos im-
Aí agora as coisas foram mudando, tijolos que vocês estão vendo aqui fizeram tudo, mas não caminhou não. hoje não está fácil o emprego não.” Eu voltava para cá a cada seis meses, pediu de poder plantar a mandioca
foram aumentando, acabou lá em nós vamos fazer um resfriador de Era junto daquela fábrica ali em cima, MILTON, 63 ANOS um ano. Mas eu era solteiro. Eu casei para poder utilizar essa matéria
Santa Eduarda e agora arrumaram leite.” ENERILDA, “DOLA” que também não deu certo.” ITAMAR em 1962.” DICÓ BATALHA prima. E depois veio a questão da
esse resfriador (tanque) aqui perto energia e a questão de capacitar as
de Cacimbinha, na comunidade de “Mas nós passamos fome, fome pessoas para elas poderem trabalhar
Santana Feliz. O tanque é da coope- mesmo, e eu trabalhando e bata- “Eu trabalho com cana, hoje voltei dentro daquela fábrica, e por isso a
rativa, mas ele foi colocado para nós lhando e batalhando para ter hoje mais cedo porque a cana dessa fábrica não saiu do papel. Pra você
também, para poder produzir leite e o que nós temos. Hoje eu posso semana acabou. (…) Comigo ter uma fábrica desse tipo você tem
fornecê-lo à cooperativa. Toda minha dizer que eu sou uma milionária trabalham outras 14 pessoas, 6 que ter um depósito para escoar o
vida eu trabalhei com gado, sempre porque tenho minhas terras, tocava são das comunidades quilombolas. resíduo, e o resíduo da mandioca é
gostei de ter animaizinhos para poder bolandeira, tinha boi, tinha vaca de A gente vai de moto, trabalhamos tóxico. Então não teve essa prepa-
vender leite, queijo, requeijão.” NELBA leite, tinha fábrica de farinha tocada de segunda a sexta, mas quando o ração, eu não sei quem elaborou o
por mim, tinha dois lavadores e dois patrão está precisando muito mandar projeto, mas não teve essa prepara-
fornos, eu acordava 3 horas da cana para a usina, a gente trabalha ção, porque a partir do momento que
SAIR FORA PARA manhã para dar comida, 9 horas no sábado também. O pagamento é você joga o resíduo tóxico aquele

PODER TRABALHAR EM tinha que dar café, e 11 horas tinha


que dar almoço a 4 camaradas, eu
cada 15 dias, não tem carteira assi-
nada, eu preferi não assinar, porque
espaço fica improdutivo, você não
pode nem utilizar.” TÂNIA (COMUNIDADE
“Temos umas nove vacas, um boi e OUTROS SERVIÇOS batalhei muito. Hoje eu vou para o pode assinar. Essa Usina Paineiras QUILOMBOLA DE BOA ESPERANÇA)
umas quatro bezerras. (…) É pra médico e ele me diz que eu já traba- é muito antiga, tanto que meu pai
consumo de casa mesmo, de vez em lhei demais, que meus ossos estão falou que trabalhou lá empacotando
quando dá para fazer um queijinho, “Com 18 anos a gente tinha que sair fracos. Por isso hoje eu vivo a minha açúcar. A usina iniciou com açúcar, “(…) pretendemos movimentar a coo-
um requeijão, mas aqui a gente não fora para poder trabalhar em outros vida mais tranquila do que vivia, eu mas cresceu e agora produz álcool perativa de um modo que empregue
vende pra a cooperativa de Santana serviços para poder ajudar aos trabalhei muito na enxada, trabalhei também.” ALDECIR BATALHA uma quantidade boa de pessoas
Feliz não.” ROBERTO outros irmãos mais novos, a gente fora, trabalhei muito no curral do utilizando a mão de obra local.
ia para um canto ou para outro. Eu Turco também.” APARECIDA, 77 ANOS O sonho é qualificar as pessoas
fui pra Rio trabalhar uma época, tra- para que ocupem e dividam cargos,
balhei até no Galeão, no aeroporto tocar a frente esse projeto. O sonho
internacional, trabalhei naquela obra “Meu avô era trabalhador, trabalhava é fazer com que a cooperativa
pela Odebrecht como pedreiro. Mas muito na roça, por isso nós somos empregue pelo menos a metade da
não gostei do Rio de Janeiro não, tudo trabalhador também. Eu já não comunidade, tanto na parte admi-
toda a vida foi muito agitada, então posso trabalhar agora que estou ma- nistrativa, como na parte de mão de
a pessoa tem que andar correndo, chucado, tenho saudade de trabalhar. obra em roça, em vendas, transporte,
atravessar a rua correndo, pegar Já trabalhei muito ali nas terras dum etc., o pensamento é esse. Porque
ônibus correndo, subir o morro cor- fazendeiro que se chama Turco, que a cooperativa tem suporte pra isso.”
rendo (…) Eu achei que não estava agora mora em Santa Eduarda, ali no ALOAN, 32 ANOS (COMUNIDADE QUILOMBOLA DE
bom e decidi voltar para cá outra curral do Turco já trabalhei demais, BOA ESPERANÇA)
vez, casei logo também, e graças a tirava leite de tarde, levava o leite
Deus está indo. Casei com uma moça de carroça lá para Santo Eduardo
de Cacimbinha mesmo, e comecei onde tinha um deposito de leite, fazia
a trabalhar por aqui, fazendo muita cercas, já fiz muita coisa.” REINALDO

10 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 11


ENTRE TAMBORES
Embora as estiagens tenham aumentado
significativamente nos últimos anos, períodos de
escassez de chuva sempre existiram na região.

E PROCISSÕES:
Em Cacimbinha, a fim de “chamar a chuva”,
práticas simbólicas relacionadas ao catolicismo
popular eram ritualizadas por meio de procis-

FESTAS, FOLIAS
sões e trocas de santos com comunidades vizi-
nhas. Embora hoje tais práticas não sejam mais
realizadas, principalmente devido à expansão

E DEVOÇÕES
de igrejas evangélicas, a memória social
sobre esses antigos rituais de fé é fartamente
registrada. Os caminhos de fé traçados pelos
devotos nas terras que pertenciam à Igreja são
parte dos territórios de ocupação tradicional da
comunidade de Cacimbinha, marcando simboli-
camente sua relação com o lugar.

Além das antigas procissões, a festa de Nossa


Senhora das Neves, ocorrida em Muribeca,
sempre contou com a ampla participação
das famílias de Cacimbinha. Atualmente, os
moradores católicos da comunidade participam
mais ativamente da festa e da procissão em Arraial de
homenagem à santa. Cacimbinha e
Boa Esperança.
Ainda que a devoção aos santos católicos, a Quadrilhas
exemplo de Nossa Senhora das Neves e São
Jorge – padroeiro da antiga igreja local – tenha
diminuído significativamente, a realização do morados com alegria pelos mais velhos. A “festa
tradicional “Canjicão”, ocorrido todos os anos do boi”, por exemplo, acontecia tanto em Cacim-
durante a “semana santa”, continua a ser um cos- binha como em Boa Esperança, em locais como
tume muito popular em Cacimbinha, expressão o bar do Pelé, o bar do Mito e no campo.
de sua coesão social e relações de compadrio.
Embora o forró e os tambores do Boi Pintadinho
Por vezes, o catolicismo popular também serve tenham ficado menos audíveis com o passar
de pano de fundo para alguns dos registros do tempo, os tambores do jongo continuam
sobre o mundo sobrenatural, a exemplo da cor- cada vez mais fortes. Hoje, o jongo é “a marca
relação entre datas importantes do calendário li- de Cacimbinha”, a “porta” de entrada para
túrgico e a aparição do lobisomem – associado a comunidade e a expressão cultural mais
à “gente branca” e antigamente recorrente “na representativa da identidade e da trajetória de
época da semana santa” – além do fenômeno resistência e autonomia quilombola. O jongo
da “árvore que chora”, o qual, segundo alguns, converteu-se em uma espécie de “escudo”
ocorria no dia 24 de dezembro. O “Corredor indispensável na luta conjunta das comunidades
das Guarandas”, especialmente no período de Cacimbinha e Boa Esperança por reco-
noturno, também é considerado um local de nhecimento, respeito e salvaguarda de suas
ocorrência de fenômenos sobrenaturais. memórias, terras e modo de vida. A reverência
aos mestres do jongo, como o falecido Jorginho
Em relação às folias, festas e brincadeiras e Dona Edinha, além da grande participação
comunitárias, a cultura do Boi Pintadinho, com de crianças e jovens no grupo de jongo local,
os tradicionais personagens “Mãe Maria e Pai “Grupo de Jongo Mãe África, Pátria Amada Bra-
João”, reunia toda a comunidade e os parentes sil”, são também uma forma encontrada pelas
e afins de Boa Esperança. O forró, com sanfona novas gerações para manifestarem que o futuro
Igreja Nossa e pandeiro, os bailes, o toque do cavaquinho, o de suas comunidades deve estar alicerçado no
Senhora das Neves jongo e as festas de São João também são reme- conhecimento e respeito às suas tradições.

12 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 13


VAMOS BUSCAR OS SANTOS “Eu participei muito de procissão.
A IGREJA DAS NEVES “Eu sempre vou para a festa da igreja
O CANJICÃO AINDA É aos mais velhos, aí o pessoal entrava
e o caldeirão de canjica já estava
NA CASA QUE ELES MORAM Hoje não, hoje eu estou mais pro NUNCA AFUNDOU NÃO das Neves, mas o ano passado eu COSTUME DAQUI ali. (…) Era passando de casa em
lado do evangélico, mas antigamente não fui não porque esses dias estava casa, até a noite. Dava oito, nove,
a gente era católico e tinha ali a chovendo. Mas agora eu vou, a dez horas da noite e tinha gente
“Aqui tinha procissão daqui do Igreja de São Jorge, que fica ali “A festa da igreja das Neves é uma minha esposa sempre vai, é uma “(…) Meu Deus, quero ver uma casa chegando dentro de casa. Tinha que
quilombo até a igreja católica de em frente ao campo. Tinha vez que festa, Nossa Senhora, aquilo enche festa grande, tem até procissão para aqui em Cacimbinha que não faz o ter canjica para todo mundo. Isso
Santana Feliz. Essa procissão era ficava muito seco e a gente fazia de gente. Tem uma caminhada para a igreja das Neves que sai de Presi- tal do Canjicão. Quando faz o Can- ainda continua, mas hoje a gente faz
para chamar a chuva, levávamos os procissão, tirava o santo, todo mundo a igreja das Neves que sai lá de Ken- dente Kennedy. Antigamente também jicão, minha filha, é todo mundo… até meio dia. Mas antes, parece que
santos, os deixávamos lá, e quando ia pelas estradas orando e levando o nedy, vai ambulância, carro pequeno, saia uma procissão daqui quando Aqui ainda continua, toda sexta-feira era dia de festa, o pessoal chegava,
chovia íamos buscar os santos. Eu santo. Aí deixava lá na outra igreja médico para as pessoas que cansam. o tempo ficava muito ruim de chuva, santa, são multidões, é coisa da você via aquela festança, aquela
mesma já fui, e chovia, chovia, com de Santana Feliz. Em poucos dias a A igreja das Neves nunca afundou saia a procissão e chovia. Mas a comunidade… Quando chega na gente animada, era criança… E
8 ou 9 dias que o santo estava lá chuva vinha.” ROSINALDO BATALHA não, o povo dizia que a igreja ia festa na igreja das Neves é muito sexta-feira santa, lá fora todo mundo outra coisa, ninguém vinha de moto,
a gente via chover, chovia e íamos acabar, mas continua ali. Dizem grande, dá muita gente, ninguém faz torta, mas aqui é o Canjicão. era andando, era a pé. Tem carro
buscar os santos. Aí a gente cantava que essa igreja foi construída por convida ninguém e todo mundo vai, Agora, tem uma coisa, esse dia é dia em casa? Tem, mas não iam de carro
assim: Vamos gente vamos, e vamos “[O pessoal não faz mais essa pro- escravos, a parede dessa igreja é de não dá nem para andar, aparece de visita. Então já se sabe que todas não, eles tinham que ir a pé, só a pé
sem demora. Vamos buscar os cissão] acabou porque entrou muita grande grossura. A festa lá começa gente de todo e qualquer canto, é as casas fazem canjica, mas não é para comer canjica.” SILVIA
santos, na casa que eles moram.” religião. A procissão era da religião dia 1º de agosto, é festa mesmo, uma festa tradicional mesmo. Já ouvi dizer que é panelinha não, tem que
DONA APARECIDA, 77 ANOS católica. Até essa Igreja das Neves vem até gente de fora, de SP, de RJ, falar que essa igreja foi construída fazer bastante porque todo mundo
as pessoas saíram daqui a pé e é festa mesmo, não é brincadeira por escravos, é muito antiga. Eu que visita sua casa tem que comer “A tradição do Canjicão continua,
percorriam essa distância; iam para não. Daqui do quilombo o povo vai sou católico, mas minha esposa canjica. Eu não sei o que quer dizer isso não para não… Só parou para
qualquer igreja, mas era católica. encontrar a procissão da igreja das não; de qualquer forma ela gosta isso, é uma tradição daqui. Aí, eu as outras religiões, agora, para
Agora é uma porção de religião, é Neves lá na estrada grande. Mas de ir. A gente gosta de ir no dia 5 lembro que quando a gente estava os católicos não pararam não.”
uns criticando os outros… Uns dizem quem vai daqui é só Telma, Teresa, de agosto, o último dia, a gente vai aqui e era quinta-feira (véspera da DONA NELBA, “NELBINHA”
que isso [a procissão] é bobagem, Ilda e só, o resto é tudo crente, tem e volta porque o ônibus passa por sexta-feira santa) o pessoal ia pegar
outros não acreditam e aí a gente mais crentes do que católicos.” aqui. Tem reza, baile de salão, muita o leite. E outra, o pessoal que tem
não sai… [Você tem religião?] Eu DONA APARECIDA, 77 ANOS coisa, muita comida. Toda sexta-feira curral, que tira leite, nesse dia o leite “O povo ainda come o Canjicão da
sou católica. [Os católicos não man- santa também tinha canjica, se cozi- não é vendido, é doado para todas sexta-feira santa, mas agora a gente
tiveram a tradição da procissão?]. nhava um tarro de canjica, a gente as casas. Então você tinha que ir lá compra a canjica direto, porque
Não, por isso, porque uns católicos “Agora em agosto vai ser a festa na ainda prepara, sempre sai ainda.” com um balde, com um litro, com um antigamente a gente socava no pilão
“Fazia a procissão e não chovia? passaram para essas outras religiões, igreja das Neves, eu ia muito, mas ALDECIR BATALHA, 56 ANOS tonel, com o que você quisesse para o milho vermelho, mas agora já se
Fazia outra, até dar certo. Fazia a entendeu?” DONA NELBA, “NELBINHA” há muitos anos eu não vou, sei lá, de- tirar o leite. Aí fazia a canjica, e ela compra feita.” REINALDO BATALHA
procissão, chegava lá, trocava os sanimei, mas meus filhos vão. Algu- era cozinhada a noite no fogão a
santos de lá da igreja de Santana mas pessoas saiam da comunidade “A Igreja das Neves foi a primeira lenha, eu lembro aqueles caldeirões
Feliz e trazia pra cá; e os daqui caminhando, mas outros vão de igreja que eu conheci. Quando eu grandões. Aí quando dava de ma- “Isso é muito antigo e, se não me en-
deixavam lá. Só destrocava de novo carro, de ônibus. Antigamente tinha cresci só tinha a Igreja das Neves. nhã, meu amigo, 6h da manhã você gano, é tipo assim: por exemplo, se
quando chovesse.” ITAMAR BATALHA muita procissão também, para fazer Depois de muito tempo veio a Igreja via entrar um, dois lá na porteira… a semana santa é amanhã, hoje de
chover levavam o santo daqui de Batista, no Criador aqui embaixo e A benção tinha que ser de joelhos meio dia pra frente você não podia
Cacimbinha até a igreja, mas o povo Santo Eduardo. Daí em diante que e beijo na mão. Aí davam bênçãos correr, não podia andar a cavalo…
desanimou.” DONA EDNA, “EDINHA”, 86 ANOS vieram as outras igrejas, porque hoje Era aquele respeito mesmo. Aí no
tem uma igreja em cima da outra aí. outro dia até meio dia que era a can-
Mas naquela época não tinha. Meus jica, por exemplo, se eu fizesse uma
pais, meus avós morreram tudo sem canjica aqui, aí vinha aquele grupo
“Aqui em Cacimbinha o povo que conhecer o evangélico, porque não de gente lá de dez, quinze, vinte. Aí
rezava a novena acabou, a minha tinha, naquele tempo era a Igreja das chegava aqui e comia, comia, comia.
irmã mesmo rezava, tinha a avó Neves [católica]. Eu aceitei a Igreja Aí daqui já saia, e a gente já saia
da Dola que rezava também, mas Evangélica no dia 11de abril de junto também e íamos todos para a
agora acabou, morreu muita gente” 2000.” DICÓ BATALHA, 76 ANOS casa da Dona Sireia. Íamos a pé. Aí
DONA EDNA (EDINHA), 86 ANOS chegava lá, comia. Aí saia o grupo,
incluindo o pessoal da Dona Sireia
e assim ia… Era uma coisa muita
tradicional mesmo.” ROSINALDO BATALHA

14 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 15


O POVO AQUI FALAVA… “Também tinha um outro que botava
TINHA MUITA FESTA “Eu não dançava Jongo, a dona
um Juquiá na cabeça, aquele Edinha que dançava muito, eu já
“O povo aqui falava que tinha lobi- negócio com o que se pesca peixe, “Aqui antigamente toda época de gostava muito de forró. Os bailes
somem, mas eu nunca vi não. Eles ele se vestia, colocava o Juquiá na São João se fazia Jongo, fogueira eram em muitos lugares, na casa
falavam que era só gente branca, cabeça, e saia com um chicote, saia grande, quadrilha. Se fazia num de Nelbinha, na casa de Loloca, lá
mas eu não sei, nunca vi. Falavam chicotando todo mundo, eu corri canto, se fazia em outro, saiam no bar do Pelé também tinha forró.”
que quando chegava a época de muito, era muito legal. Isso era no aqueles forrós como maior respeito REINALDO BATALHA
semana santa tinha um velho que mesmo dia do Boi Pintadinho, o na casa de um amigo, depois lá na
virava lobisomem, virava um porco nome daquilo era Mãe Maria e Pai casa de outro amigo, as pessoas
no meio da rua, tem gente que fala João, tinha a fêmea e o macho, aí levavam a família para ir para lá, O JONGO É A PORTA
que já viu.” MILTON, 63 ANOS o macho tinha ciúme da fêmea, e
se você ia para o lado da fêmea, aí
todo mundo respeitava direitinho. Eu
cheguei a conhecer um forró que
DE CACIMBINHA
o macho sai com seu chicote pra te tinha lá embaixo, em Cacimbinha,
“Eu almoçava embaixo da árvore bater, mais era muito legal, muito onde o pessoal dançava, levava as “O Jongo é tradição de Cacimbinha,
que chora, ficava quebrando milho legal mesmo. O Boi Pintadinho tem o famílias, a dona do forró levava a é uma das festas quilombolas; na
ali. Ficava do lado do seu Turco, ela tambor também que faz barulho, mas lamparina, botava o óleo e saia no verdade, o jongo é a porta de
chorava com o sol quente, o chão é diferente do jongo, Boi Pintadinho meio da casa para ver se estava tudo Cacimbinha. Quando se trata de
aparecia todo molhado, escorria é uma parte, o jongo é outra coisa, direitinho, maior respeito, o negócio Jongo se trata sobre a comunidade
muita água. Alguns diziam que tem outro toque. Mas a coisa era era bom.” MILTON, 63 ANOS de Cacimbinha, dos quilombolas. O
chorava só 24 de dezembro, mas boa, não tinha briga, não tinha mestre do jongo morreu recentemente,
sempre chorava com o sol quente.” ‘disse me disse’, não tinha fofoca, era seu Jorginho. Hoje viva só resta
DONA APARECIDA, 77 ANOS uma coisa boa mesmo, de você ficar “Meu irmão Dicó tem uma sanfona, a dona Edinha como mestra. (…)
“Lá em casa na sexta-feira santa se “Toda sexta-feira santa tinha o ali, de dançar até mais tarde porque mas ele já não toca porque adoeceu. O Jongo é a marca de Cacimbinha e
fazia muita canjica porque era muita Canjicão também, o meu padrinho era dia de sábado e domingo você Eu batia o pandeiro para ele, tocá- por isso não pode parar, tem que se
criança que ia tomar benção. Naquele fazia um tonel de canjica com HÁ MUITO TEMPO QUE O podia levantar mais tarde, gente, era vamos juntos, eu tocava cavaquinho dar continuidade. É muito lindo, e a
tempo as crianças esperavam que as
pessoas entregassem alguma coisa
amendoim, queijo, aquela canjica
ficava amarela de tanta coisa. E ele
BOI PINTADINHO NÃO SAI muito bom. Hoje você já não pode ir
a nenhum lugar, tem tiro, morte, falta
também. (…) Lembro que foi meu pai,
Joaquim Batalha, quem me ensinou a
gente vê quando o pessoal de agora
começa a dançar e cantar as músicas
para eles né? Se não recebiam nada, fazia eu comer, comia muito, no de ordem, brigalhada danada; por tocar cavaquinho; já a meu irmão foi que são todas de antigamente, eles
não voltavam mais para a casa dos caminho eu botava tudo para fora, e “(…) O Boi Pintadinho era feito com isso há muito tempo que o Boi Pinta- um tal de Mané Francisco, que mo- se encantam, assim como todos os
seus padrinhos. Aí quando a pessoa me faziam comer mais. A gente saía um pano especifico, faziam o chifre dinho não sai.” DONA APARECIDA, 77 ANOS rava em Jaqueira, quem lhe ensinou que vêm de fora.” SILVIA
não tinha jeito de fazer a canjica, às para as casas tomando benção, mas dele, o rabo dele, e ele ia para cima a tocar a sanfona.” REINALDO BATALHA
vezes trocava um dinheirinho, um miu- hoje você não vê ninguém, os crentes da gente, era lindo, era lindo o Boi
dinho, e a aqueles que iam chegando não podem nem sair para a casa de Pintadinho. E o pessoal batendo com “Eu toquei muito Boi Pintadinho. To- “O Jongo era de quem quisesse fazer.
lhes ia entregando.” LOLOCA ninguém não. Crente também não tambor atrás, e o Boi Pintadinho na quei Boi Pintadinho, quadrilha, baile, Eu mesmo fiz Jongo aqui em casa.
faz mais canjica, se o crente chegar frente, dançando, dançando, era toquei muito baile. Hoje em dia Boi Não tinha dono não, era aquele
aqui ele até come aqui, mas na casa meu cunhado que ficava embaixo do Pintadinho é difícil, por aqui acho que inventava de fazer. “Vou fazer
“Mas não é como hoje que você deles não fazem mais. Eu até agora pano e fazia de boi, e a tal da Nida que acabou, mas naquela época jongo tal dia”, aí vinha gente do
tem só um afilhado, antigamente faço minha canjiquinha toda sexta- que inventava o Boi Pintadinho, ela tinha.” DICÓ BATALHA, 76 ANOS estado do RJ, vinha gente de outro
você tinha 8 ou mais. Aqui nesse -feira santa porque vem minhas filhas morava perto do bar do Mito, perto lugar para tocar um tambor aí.”
lugar eu só tenho 6 padrinhos, um do Rio, de Campos dos Goytacazes. da casa da Simone, é tia da Simone, DICÓ BATALHA, 76 ANOS
monte. E tínhamos a tradição de toda O pessoal que mora na cidade gosta mas agora mora em Santo Eduardo, “O Boi Pintadinho acabou porque o
sexta-feira santa ir a tomar benção, e de vir na roça passar o feriado, fazer ele saberia contar tudo sobre o Boi povo que brincava morreu e esses
naquela sexta-feira era proibido co- um churrasco.” DONA APARECIDA, 77 ANOS Pintadinho. Era uma festa que se mais novos acho que nem sabem
mer carne, só sábado que se podia fazia, por exemplo para arrumar o que é isso, não gostam de mexer “Ô MARIA DE CATULINA,
comer, é assim.” NEILMA um dinheirinho, faziam uma festa,
juntavam o povo e vendiam comida,
com isso aí não.” REINALDO BATALHA
QUANDO PRECISA ME
bebida, doce, tudo para juntar um CHAMA, EU TENHO MEDO
dinheirinho, mas isso não tinha data
fixa não. Era muito legal, a gente le-
DE ANDAR, EM LUGAR
vava até as 3hrs ou 4hrs da manhã.” DESCONHECIDO, EU TENHO
DONA APARECIDA, 77 ANOS
MEDO DA PEROBA, BATER
NO PÉ DO OUVIDO”

16 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 17


“O Jongo era feito de 15 em 15
dias, era mais no Pele. Ele não era
jongueiro, mas tinha um boteco que
ficava do lado do campo de futebol,
e aí a comunidade toda ia. Mas
muita gente não dançava não, muitos
iam só assistir. Antigamente tinha
batedor bom, mas tinha batedor
que não batia direto não; o Loro de
Marra-égua batia tambor, o falecido
Nilton, que morreu anteontem, tam-
bém batia. Tem um tal de mago de
Marra-égua que bate bem também.”
DONA EDNA (EDINHA), 86 ANOS

“Os mais famosos mesmo do Jongo SENHOR REINALDO


era a Edinha, e o falecido meu BATALHA, seu filho
cunhado Jorginho, o pai da Efigênia. Sidnei e netos
Ele dançava Jongo mesmo, ele ia
longe dançar Jongo, e ele abaixava,
e pulava para frente, pulava para “Nunca dancei Jongo não, só assistia. “Eu trabalho com a comunidade, eu
atrás, era muito bonito, muito Tinha uma música que dizia: ‘Ô Ma- coordeno algumas coisas, eu viajo
divertido o Jongo quilombola aqui. ria de Catulina, quando precisa me levando o grupo de Jongo. Nós
DONA EDINHA, Tinha muita gente da Marra-égua chama, eu tenho medo de andar, em temos umas 8 pessoas junto com
jongueira de que tocava, lá em Boa Esperança; lugar desconhecido, eu tenho medo a Neisiane, que trabalha comigo.
Cacimbinha esse que morreu agora então, Nossa da peroba, bater no pé do ouvido’. Antigamente tinha Jongo em Cacim-
Senhora, batia tambor a noite inteira. Aí depois o tambor começava a tocar. binha. Eu mexo com qualquer coisa,
Ele batia o tambor e chamava gente Peroba é uma madeira que o povo toco tambor também. O Jongo não
de longe só de repicar o tambor, tinha medo porque servia para meter acabou, mas depende do pedido
“O Jongo era feito no bar de Pelé, a ‘pam, pam, pam, pam, pam, pam, o cacete. Alguém cantava e todo das pessoas, depende de onde irão
minha mãe sempre ia. Geralmente pam, pam, pam’, a gente estava mundo repetia aquilo ali, depois tira- ser as apresentações, depende do
primeiro tinha um jogo, a gente ia aqui e sabia quando ele chegava vam outro Jongo e assim. Tinha outra contrato. (…) Quando meu mestre
para o jogo e quem ganhasse ou no tambor. Tinham uns quatro que que era ‘Ô zé mineiro, zé mineiro, estava trabalhando comigo, o mestre
quem perdesse não interessava por- batiam o tambor, hoje em dia tem o pra que que me chama aqui…’ eu Jorginho, nós sempre tínhamos um
que muitas vezes as pessoas vinham Pedro que bate tambor, é o resistente até esqueci como é que soa porque é dinheiro, mas depois que o mestre
do Rio de Janeiro, de Cabo Frio, e de Boa Esperança e continua batendo tanto tempo que não me lembro mais. morreu nós não estamos conseguindo
depois todo mundo ficava. A minha o tambor. Aqui em Cacimbinha Mas o Jongo era um troço muito di- mais nada não. Agora eu trabalho
mãe ajudava a fazer comida, na virou tudo crente e deixou de tocar.” vertido, a gente cantava a noite toda, com a Neisiane, a Edinha, que
época não eram coxinhas e salga- DONA APARECIDA, 77 ANOS quando tocavam o tambor direitinho também é mestre, Loloka também…
dinho, era uma espécie de coxa de o sol ia saindo e ia comendo o e agora nós estamos fazendo curso
frango, frango talhado, e se vendiam tambor embaixo. E aqueles que não [de jongo] para as crianças, para
aos pedaços lá no Pele. Praticamente iam para dançar iam para namorar.” que elas depois saibam o que elas
todos os domingos lá era um ponto ROBÉL RIBEIRO, 83 ANOS estão fazendo. Nós fazemos o curso
de encontro.” NEILMA no posto de saúde e vão as crianças
de Boa Esperança e Cacimbinha,
deve ter umas 10 crianças que vão.”
JORGE TAVARES DA SILVA

18 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 19


AS ANTIGAS CADA CASA MAIORZINHA
TINHA UMA CASA
“Basicamente cada casa maiorzinha
tinha uma casa de farinha. (…) Por-
“Praticamente as casas de farinha
eram o meio de sobrevivência

BOLANDEIRAS DE FARINHA que você tinha que fazer para o con- das pessoas, era o modo de não
sumo [próprio]. Lá as famílias eram comprar pão de manhã, de ter
grandes, eram dez filhos, doze… farinha na hora de almoço para
“A gente fazia farinha na farinheira Você tinha que fazer para o consumo. poder ajudar junto com o feijão, o
da Dona Edinha e ali na Loloca. Lá Aí quem não tinha também vinha arroz e a farinha. Então, como se diz,
Por longos anos, a produção artesanal de na casa de Edinha tinha prensa e na para cá e fazia também para levar. praticamente era como matar dois
farinha de mandioca, tapioca e biju reunia as Loloca era tipiti. Tipiti é um negócio Quem não tinha a casa de farinha coelhos com uma paulada só, porque
famílias e vizinhos nas casas de farinha de Ca- feito de palha que a gente enchia fazia a meia: eu faço um bocado, de manhã a gente tinha o beiju e
cimbinha, também chamadas de bolandeiras e de massa e pendurava em um pau; levo um bocado e deixo um bocado a tapioca para o café, que muitas
farinheiras. Era um trabalho duro, afinal, grande embaixo botava uma porção de pra você em pagamento.” ITAMAR vezes era feito com a cana de açúcar
parte da produção de farinha “era a motor peso, aí a massa secava para a moída, caldo de cana, porque nem
não, era manual”. Fosse na prensa ou no tipiti, gente torrar. Saía o líquido todo e aí sempre tinha açúcar. Aí moíam o
torrada ou crua, a farinha era “sagrada” pois depois a gente peneirava e torrava, “A gente fazia farinha para comer, caldo de cana, ferviam, passavam
alimentava toda a comunidade. e já na prensa a gente ia fazendo as tinha um monte de criança pra no coador, e aquilo era o café para
camadas. Hoje não se faz mais isso… alimentar. A mandioca era nossa, e os grandes.” NEILMA “Acho que caiu a produção de man-
De lá para cá, algumas mudanças ocorreram: Hoje isso só tem lá no estado do Rio tínhamos um “puxado de boi”, o boi dioca porque lá para fora, na Bahia
o número de filhos – antes “dez, doze” por de Janeiro. Agora aqui a gente com- se mexia para torrar a farinha. Mas e outros cantos, as terras estão mais
família – foi diminuindo, muitos jovens migra- pra a farinha, porque acabaram as as crianças foram crescendo, foram “A casa de farinha era enorme, era fortes e a mandioca produz com seis
ram para as cidades em busca de trabalho, os farinheiras. Mas a farinha produzida cada uma tomando seu destino e por uma maravilha, e praticamente a ou oito meses, e aqui tem que se espe-
principais produtores de farinha envelheceram, aqui era melhor porque era a gente isso deixamos de fazer, passamos a renda familiar toda vinha da farinha rar mais de um ano. E acontece que
a “farinha da Bahia” foi tomando espaço no mesmo que torrava, era quentinha. comprar farinha.” LOLOCA de mandioca. A gente vendia para vem muita farinha de lá para cá, os
mercado local e, assim, as bolandeiras foram Tinha aquele forno, botava fogo um rapaz que morava em Campo mercados enchem de farinha de fora e
sendo desativadas. As memórias sobre elas, embaixo e a gente apanhava as pás Novo, ele vinha, comprava da nossa por isso está tudo barato aí. A farinha
porém, continuam nítidas e ajudam a contar a e ia mexendo; tinha o rodo também “A farinheira acabou, só restou mão, e saía vendendo; ele comprava sempre varia de preço, há dois anos a
história de Cacimbinha. que a gente imprensava pra lá e o parafuso e a roda, mas tinha só da gente até porque na época o farinha está ruim de preço.” MILTON
para cá para descansar os braços. bolandeira aqui, onde a gente fazia maior tarefeiro de farinha aqui éra-
Aí a pessoa que torrava a farinha já a farinha brava. Nós fazíamos e mos nós, e a gente fazia em grandes
vinha pelo cheiro da farinha. O pro- o pessoal que tinha roça também quantidades. A gente fechava com
cesso envolvia três pessoas: dois vinha fazer farinha aqui. Primeiro a ele, quem nos comprava sacas de
para puxar na roda, um de um lado bolandeira ficava na Boa Fé, meu farinha para depois sair revendendo.
e o outro do outro, e uma pessoa no pai tinha uma lá embaixo; depois Já com o tempo foram sendo criadas
rodete. E o processo não demorava que meu pai morreu nós viemos outras farinheiras, como a da dona
muito, da mandioca crua a gente para aqui. Ao todo a bolandeira Edinha, que também foi um grande
raspava conforme tivesse o rodete deve ter funcionado por mais de 70 sucesso. Mas meus pais produziam
amolado. Aí você ia torrando a fari- anos, agora eu estou com 86 anos, muita farinha, trabalharam muito,
nha, mexendo e você ia percebendo e quando a gente foi ficando com naquela época era muito difícil,
o cheiro da farinha. Aí era uma mais idade, fomos parando com o passamos necessidade, foi uma luta
farinha cheirosa. Se você quisesse negócio da farinha.” EDINHA muito grande, mas graças a Deus
bem torrada, você torrava, se você conseguimos vencer.” ROSINALDO
não quisesse, deixava ela meio crua.
Quanto mais torrada, mais cheirosi-
nha ela ficava.” NELBA

20 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 21


NOVOS TEMPOS, JUNTO COM O PROGRESSO
Atualmente, as mudanças decorrentes da arreca-
dação e dos usos dos royalties do petróleo pelo “Muitos alagoanos vieram morar em “Nosso município é muito rico, o outro
município de Presidente Kennedy, bem como os VÊM OS BONS, VÊM OS RUINS Boa Esperança, tanto pelo assunto dia eu vi até passando na televisão

NOVOS DESAFIOS:
impactos trazidos pela da construção do Porto do porto, como para trabalhar no que nosso município é um dos mais
Central, um complexo portuário privado de corte de cana, eles cortam bastante ricos do Brasil.” ROSINALDO BATALHA
multiuso projetado para funcionar sobre o re- “Hoje, com esse negócio dos royalties cana. O corte de cana vai do mês de

OS ROYALTIES E
gime de condomínio entre as localidades Praia do petróleo em Presidente Kennedy, maio até outubro, antigamente ia até
do Morobá e Praia das Neves, são algumas todo mundo quer descer pra cá. É novembro, mas não tem mais cana “Mas, parece ser um dos municípios
das maiores preocupações dos moradores de igual em Boa Esperança, onde rendeu como antes. Ai aqueles que vão vindo, mais ricos? Nós, os pequenos, não

A EXPLORAÇÃO DE
Cacimbinha. muita gente, quase que a gente não vão ficando, vão trazendo a família, sabemos para onde vai todo esse di-
conhece mais ninguém. Porque anti- porque se aqui está ruim, ali de onde nheiro que tinha que ser investido. É
Muitos moradores observam melhorias locais gamente, como eram poucos, você eles vêm deve estar pior.” MILTON por isso que tem essa confusão pela

PETRÓLEO NAS
oriundas dos royalties do petróleo em relação conhecia todo mundo. Agora tem prefeitura de Kennedy.” SILVIA
aos incentivos oferecidos aos jovens para a muito morador que você não conhece.
formação universitária, especialmente em rela- Então junto com o progresso vêm os “Agora, com esse boom do petróleo

PRAIAS DE MOROBÁ
ção aos investimentos nas escolas municipais bons, vêm os ruins.” ITAMAR BATALHA muitos voltaram para trabalhar com o “Bastante gente tem vindo para cá.
e no Programa de Desenvolvimento do Ensino asfaltado das estradas e outras coisas, Isso aí envolve muitas questões, po-
Técnico e Superior (Prodes). Entretanto, a che- e assim terminaram ficando por aqui líticas e sociais. As pessoas vêm em

E DAS NEVES
gada de “gente de fora”, o crescente mercado “Veio muita gente de fora atrás de um de novo.” NEILMA, FILHA LOLOCA busca de melhores condições: “Ah,
de aluguéis de imóveis, o alargamento da tal de Porto que ia sair na praia das lá a prefeitura está cedendo casas”.
oferta de mão de obra braçal – dificultando e Neves. Dizem que esse porto não Então eles dão um jeito e vêm para
barateando o valor dos serviços prestados pelos vai sair mais, teve muito informação AQUI TEM MAIS HISTÓRIA cá, vem atraídos pelos royalties. Mas
moradores de Cacimbinha e Boa Esperança,
notadamente no corte de cana-de-açúcar –, a
que foi longe, saiu até nos jornais,
por isso veio tanta gente. Fora dos
DE PROGRESSO DO QUE esses royalties não chegam à nossa
comunidade (…) Então as pessoas
pouca transparência sobre os usos dos royalties alagoanos que todo ano descem para PROGRESSO MESMO daqui iam vendendo ou alugando
do petróleo pela municipalidade, a falta de cortar cana, esse povo todo que está seus pedacinhos de terra e aí che-
empregos e as informações desencontradas morando em Marra Égua de casa gavam mais e mais pessoas de fora.
prestadas pelas autoridades e empresas sobre alugada veio atrás desse porto que “Aqui tem mais história de progresso E hoje ainda tem gente vivendo de
a construção do Porto Central têm trazido diziam que ia sair, porque diziam do que progresso mesmo. Esses aluguel, mas eles vieram contando
enormes preocupações para as comunidades que ia sair emprego, veio muita gente royalties quase não giram, porque com casa popular, essas coisas todas.
quilombolas. Todos esses fatores também mesmo. E até agora estão esperando você não vê quase benfeitorias disso.” Acabou que hoje a comunidade não
contribuem para o agravamento da qualidade o porto sair, mas eu ouvi falar que ITAMAR BATALHA é mais a mesma. Antes você poderia
ambiental dos ecossistemas locais, afetando as esse porto não vai sair mais.” APARECIDA largar uma bicicleta em um tal lugar
atividades produtivas, de extração e cultivo. e ao voltar ela estar no mesmo lugar,
hoje você não pode; antes a gente
“Veio muita gente de fora, isso foi por saía e deixava a casa aberta, hoje
causa da prefeitura, por conta dos ro- já não podemos fazer isso. Então
yalties, saiu até no jornal isso e agora mudou bastante, isso tem de quatro
todo mundo quer vir para Presidente a cinco anos mais ou menos.” EFIGÊNIA,
Kennedy, mas hoje está difícil, tem PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES
muita gente sem emprego. Eles diziam QUILOMBOLAS DE BOA ESPERANÇA E CACIMBINHA
que vinha o porto, que vinha a Pe-
trobras fazer não sei o que, mas não
saiu nada do papel. Esses royalties aí,
para quem trabalha na prefeitura está
bom, mas para quem precisa correr
atrás disso é mais difícil.” MILTON

ROSINALDO (“ALBUÍNO”)
segurando uma pedra
da antiga bolandeira
de Seu Romário

22 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 23


PELO MENOS NA
A CARTOGRAFIA
Em junho de 2019, os trabalhos foram iniciados
“Você vai pra a faculdade e ganha com a realização da atividade “Campo de
EDUCAÇÃO A PREFEITURA a expectativa de sair formado. Mas Reconhecimento”, quando moradores de Ca-
DE PRESIDENTE
SOCIAL EM
quando você retorna ao seu lugar cimbinha e a equipe executora do Quipea reu-
(na comunidade) você não acha niram-se na própria comunidade para debater
KENNEDY INVESTE emprego, o que faz com que você os objetivos, expectativas locais e a dinâmica

CACIMBINHA
fique “apagado” porque sente que mais apropriada para o desenvolvimento da
indo lá na faculdade você conheceu Cartografia Social em seu território tradicional.
“Agora, pelo menos na educação a uma outra realidade que não vai Em julho de 2019, a atividade “Oficina de
prefeitura de Presidente Kennedy in- ter mais na hora de voltar, porque Cartografia Social” – conjunto de ações partici-
veste. Se você quiser faculdade você pra cá muitas vezes se volta para o pativas para a identificação e o debate sobre o
não paga um centavo, o ônibus te trabalho com o gado. Quer dizer, o As informações aqui apresentadas foram projeto e os elementos territoriais, socioculturais
pega na porta e te leva. Tem alguns pessoal se forma em alguma coisa, levantadas, discutidas e organizadas durante e socioambientais a serem cartografados – re-
critérios para isso, o assistente social mas depois continua trabalhando a atividade Cartografia Social, uma das uniu em um galpão localizado na Comunidade
tem que comprovar a condição dos naquilo que trabalhava antigamente.” ações participativas promovidas pelo Quipea, Quilombola de Cacimbinha 63 moradores das
alunos, tem que ter morado oito anos ITAMAR BATALHA Projeto de Educação Ambiental conduzido pelo comunidades de Cacimbinha e Boa Esperança.
em Kennedy, etc. Isso aí eu acho que Ibama no contexto das medidas mitigadoras
está certo porque se não, tudo mundo do processo de licenciamento ambiental dos Em agosto do mesmo ano, a comunidade de
brinca lá fora e depois volta aqui só FICA SÓ ENTRE OS GRANDES empreendimentos de exploração de petróleo e Cacimbinha recebeu em suas casas durante
pra fazer faculdade.” SILVIA gás da Shell Brasil na Bacia de Campos. Na uma semana a equipe de pesquisadores do
Comunidade Quilombola de Cacimbinha, a Quipea. Nessa ocasião, além de entrevistas,
“Nós participamos de reuniões com Cartografia Social, atividade demandada pelas conversas informais e rodas de conversa, repre-
“Estou terminando a minha faculdade a Shell, também com o Ibama, com próprias comunidades quilombolas do Quipea, sentantes da comunidade, junto aos pesquisado-
de educação física no município de o pessoal do Porto, várias reuniões. se deu por meio da realização de diferentes res, percorreram o seu território de uso e ocupa-
Cachoeiro de Itapemirim, estou no Mas até agora uma resposta concreta ações participativas ocorridas durante os anos ção e georreferenciaram os pontos de destaque
último período. A minha irmã formou sobre o porto nós não tivemos, eles de 2019 e 2020. para a elaboração da autocartografia de sua
o ano passado em pedagogia e já nunca abrem o português para nós.
está atuando na área, trabalha em Sobre o Porto não conseguem nos pas-
Cachoeiro. Para estudar é a prefeitura sar algo certo. Parece que a empresa
daqui de Kennedy que paga, de um que ia construir o porto abriu mão Croqui da
tempo para cá foi assim, mas antiga- e agora vai vir uma outra empresa, comunidade
mente não era assim não, se quisesse inclusive dizem que a Shell tinha desenhado
fazer uma faculdade tinha que pagar comprado vários terrenos por lá, mas durante a
[o transporte] do bolso. Final do ano a gente não está sabendo detalhes. oficina de
eu me formo, eu já até comecei a dar A gente só sabe que esse porto vai cartografia
aula de treinamento funcional em Boa sair, sempre dizem que vai ter serviços social
Esperança, para ganhar experiência. e emprego, mas até hoje nada.” SILVIA
Eu tenho o sonho também de fazer
uma academia no primeiro andar da
minha casa, mesmo que seja pequena, “Eu creio que essa informação, e essa
porque eu vejo que a nossa comu- clareza ali, fica só entre os grandes,
nidade precisa de uma academia, entre os grandes diretores para assim
de uma padaria, e de várias outras poder lucrar, sendo que nós da comu-
coisas. LEOVANI nidade ficamos nessa situação (de de-
sinformação). E eu não vejo que esse
porto chegue a decolar.” ROSINALDO

24 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA QUILOMBO CACIMBINHA 25


Equipe Executora do Quipea Equipe da Cartografia Social

COORDENAÇÃO GERAL COORDENAÇÃO


Lílian Gonçalves Eliane Cantarino O’Dwyer
Deborah Bronz
COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Tânia Fernandes EQUIPE DE PESQUISA E MAPEAMENTO
Danilo Borghi
ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA Diego Perez Olveda Del Arco
Carlos Frederico Loureiro Márcia Malheiros
Leonardo Freitas
ILUSTRADOR QUILOMBOLA João Hostzmaster Oswaldo Cruz
Magno Castro Flávio Souza Brasil Nunes

APOIADORA LOCAL DEPOENTES DA COMUNIDADE


Neisiane Alves QUILOMBOLA CACIMBINHA
Dicó Batalha, Reinaldo Batalha,
EDUCADORA POPULAR Aldecir Batalha, Ildo Batalha, Dona
Tânia Ferreira Edna (“Edinha”), Milton, Sílvia e
Rosinaldo Batalha, Itamar Batalha,
EDUCADORA AMBIENTAL Sr. Robel Ribeiro, Licanor dos
Elaine Souza Santos, Dona Nelba (“Nelbinha”),
Dona Aparecida, Loloca, Neilma,
Valdilina das Neves e Oudecir
Batalha, Leovânio das Neves
comunidade. Em março de 2020, foi realizada (de Boa Esperança, sobrinha de Dona Edinha Batalha, Nadir, Dona Enerilda
a devolutiva desse trabalho, quando os textos, e neta de Dona Bela, uma das esposas de (“Dona Dola”), Roberto, Jorge
imagens e, notadamente, o mapa social que Manoel Batalha); Dona Enerilda (“Dona Dola”); Tavares da Silva, Thieres e Romildo
compõe essa publicação foram apresentados, Roberto; Jorge Tavares da Silva (um dos coorde-
discutidos e validados pelos moradores da nadores do grupo de jongo); Thieres e Romildo. PROJETO GRÁFICO
Comunidade Quilombola de Cacimbinha. Thiago Lacaz
A presente publicação só foi possível devido à
Entre os quilombolas que protagonizaram e generosa partilha dos conhecimentos, memórias
colaboraram ativamente com esse trabalho, e vivências de todas as pessoas acima citadas
destacaram-se: Sr. Dicó Batalha (76 anos), seu e por meio da calorosa acolhida oferecida à
irmão Reinaldo Batalha e seus primos Aldecir equipe do Quipea pela Comunidade Quilom-
Batalha (56 anos) e Ildo Batalha (todos netos bola de Cacimbinha, a qual é assim chamada
de Manoel Batalha); Dona Edna – “Edinha” (86 devido à importância das fontes de água (ca-
anos, filha de Manoel João e mestra do jongo) cimbas/cacimbinhas) que eram utilizadas pelas
e seu filho Milton (63 anos); Sílvia e seu esposo famílias antes da chegada da água encanada
Rosinaldo Batalha, neto de Manoel Batalha; já nos anos 2000. Tais cacimbas abundavam
Itamar Batalha; Sr. Robel Ribeiro (83 anos); pelo território desde quando a região “era mata
Licanor dos Santos; Dona Nelba (“Nelbinha”); virgem mesmo e ficavam situadas, sobretudo,
Dona Aparecida (77 anos); Loloca (irmã de na “beira de brejo”. Com a esperança de que
uma das afilhadas de Manoel João e mestra brejos, águas, matas e variadas roças voltem a
jongueira); Neilma (filha de Loloca); o casal abundar e que os conhecimentos, memórias e
Valdilina das Neves e Oudecir Batalha (sendo modo de vida aqui compartilhados alcancem a
ela neta de Manoel João – e filha de Edenilza visibilidade e o respeito que merecem, encerra- [ficha catalográfica]
das Neves – e ele neto de Manoel Batalha) e mos esse fascículo.
seu filho Leovânio das Neves Batalha;, Tânia
(liderança de Boa Esperança e Educadora Po-
pular do Quipea); Neisiane (jovem quilombola
de Boa Esperança, colaboradora do grupo de
jongo e Apoiadora Local do Quipea); Nadir

26 CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA


Equipe executora Realização

A realização do Quipea é uma medida


mitigadora exigida pelo Licenciamento
Ambiental Federal, conduzido pelo Ibama.

Você também pode gostar