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A casa da ficção t e m muitas janelas, mas só duas o u três portas.
Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e t a l -
vez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo
sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só.
Qualquer outra coisa não vai parecer m u i t o uma narração, e pode
estar mais perto da poesia ou do poema em prosa.
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transgressão, então eu acho legítimo, nesse contexto, ser u m nar- que o narrador não está sendo confiável porque o autor, numa ma-
rador que conhece as regras e que sabe as respostas para certas per- nobra confiável, nos avisa dessa inconfiabilidade do narrador. Há
guntas. Mas acho que o curso da história nos fez perder essas cer- aí u m processo de sinalização do autor; o romance nos ensina a ler
tezas, e precisamos reconhecer nossa ignorância e limitação nesses o narrador.
assuntos para então tentar escrever de acordo com isso".* A narração inconfiavelmente não confiável é m u i t o rara -
quase tão rara quanto u m personagem de fato misterioso, ge-
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u m m o d o de escrever que Roland Barthes chamou de "código de ('"Ela parece tão infeliz', pensou consigo"), aliado a u m discurso
referência" (ou algumas vezes de "código c u l t u r a l " ) , em que u m indireto ou informado ("Imaginou o que d i z e r " ) . É a velha ideia
escritor recorre, com segurança, a uma verdade universal o u con- do pensamento de u m personagem como uma conversa consigo
sensual, o u a u m corpo de saberes científicos o u culturais comuns mesmo, uma espécie de discurso interior.
a toda a sociedade.* b) "Ele olhou a esposa. Ela parecia tão infeliz, pensou ele, quase
doente. Imaginou o que dizer." - É u m discurso i n d i r e t o ou i n -
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parece "possuir" as palavras. O escritor está livre para direcionar o
pensamento informado, para dobrá-lo às palavras do personagem
("Que raio diria ele?"). Estamos perto do fluxo de consciência, e é
a) "Ele o l h o u a esposa. 'Ela parece tão infeliz', pensou ele, 'quase essa direção que toma o estilo indireto livre no século x i x e no co-
doente.' Imaginou o que dizer." - É u m discurso direto o u citado meço do século x x : "Ele olhou para ela. Infeliz, sim. Doentiamente.
Claro, u m grande erro ter contado a ela. A estúpida consciência dele
* Barthes usa a expressão no livro s/z [1970; trad. Léa Novaes, São Paulo: Nova Fron- de novo. Por que deixou escapar? Tudo culpa dele, e agora?".
teira, 1992]. Designa a maneira como os escritores oitocentistas se referem a conheci-
mentos científicos ou culturais de aceitação geral, por exemplo, generalidades ideo- N o t e m que esse monólogo interior, sem aspas n e m sinaliza-
lógicas sobre as "mulheres". Amplio a expressão para abranger qualquer espécie de ções, se parece m u i t o com u m genuíno solilóquio dos romances
generalização autoral. Eis um exemplo em Tolstói: no começo de A morte de Ivan
setecentistas e oitocentistas (exemplo de u m aperfeiçoamento
Ilitch, três amigos de Ivan estão lendo seu necrológio, e Tolstói escreve que "o próprio
fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada
técnico que apenas renova, de maneira cíclica, u m a técnica o r i g i -
um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera nal básica e útil demais - real demais - para ser posta de lado).
outro e não ele". Como de costume: o autor se refere com facilidade e sabedoria a uma
verdade humana central, serenamente olhando o coração de três homens diferentes.
** Gosto da expressão de D. A . Miller para o estilo indireto livre, em seu livro Jane
Austen, or the Secret of Style [2003]: "escrita íntima".
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© ©
O estilo i n d i r e t o livre atinge seu m á x i m o quando é quase invisí- Graças ao estilo i n d i r e t o l i v r e , vemos coisas através dos olhos
vel o u inaudível: "Ted olhava a orquestra por entre lágrimas i d i o - e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e
tas". E m m e u exemplo, a palavra " i d i o t a s " mostra que a frase está da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciên-
no estilo i n d i r e t o livre. T i r e m o adjetivo, e teremos u m relato- cia e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem,
padrão: "Ted olhava a orquestra por entre lágrimas". O acréscimo e a ponte entre eles - que é o próprio estilo indireto livre - fecha
da palavra " i d i o t a s " levanta a questão: que palavra é essa? Não essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância.
é provável que eu queira chamar m e u personagem de i d i o t a só Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através
porque está o u v i n d o música n u m a sala de concertos. N ã o , numa dos olhos de u m personagem enquanto somos incentivados a ver
maravilhosa transferência alquímica, agora a palavra pertence, mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade
em parte, a Ted. Ele está ouvindo a música e chorando, e se sente idêntiçá^à do narrador não confiável em primeira pessoa).
constrangido - podemos imaginá-lo enxugando raivosamente os
olhos - por ter p e r m i t i d o que aquelas lágrimas " i d i o t a s " corres-
sem. Converta a frase para a p r i m e i r a pessoa, e teremos: ' " Q u e
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idiota, chorar por causa dessa peça boba de Brahms', pensou ele". Algun s dos exemplos mais claros dessa ironia dramática es-
Mas esse exemplo possui muitas palavras a mais, e perdemos a tão na literatura i n f a n t i l , que muitas vezes precisa p e r m i t i r que
presença complexa do autor. a criança - o u o representante da criança, u m animal - veja o
m u n d o com olhos limitados, ao mesmo tempo alertando o leitor
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McCloskey nos coloca d e n t r o da confusão do sr. Mallard; mas a Foi por causa dessas coisas que sua mãe conseguira contratá-la por
confusão é óbvia o suficiente para abrir uma grande distância iró- tão pouco, quase de graça: foi o que Maisie ouviu, u m dia em que a
nica entre o sr. Mallard e o leitor (ou o autor). Nós não ficamos sra. W i x a acompanhou até a sala de visitas e deixou-a lá, uma das se-
confusos como o sr. Mallard, embora sejamos levados a partilhar nhoras que lá estava - uma mulher de sobrancelhas arqueadas como
a confusão dele. cordas de pular e pespontos negros e espessos como a pauta de um ca-
derno de música nas belas luvas brancas - dizer para a outra. Maisie sa-
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© que, para deixar Maisie "falar", James se dispõe a sacrificar sua ele-
gância estilística numa frase como essa.)
O estilo indireto livre de James nos permite partilhar pelo menos
três perspectivas diferentes ao mesmo tempo: o juízo materno
e adulto oficial sobre a sra. W i x ; a versão de Maisie sobre a v i -
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são oficial; e a visão de Maisie sobre a sra. W i x . A visão oficial, O génio de James resume t u d o numa palavra: " constrangedora-
entreouvida p o r Maisie, é filtrada por sua própria voz, de q u e m mente" [embarrassingly]. E aí que recai toda a ênfase. "Era a mesma
entende mais o u menos do que se trata: " F o i por causa dessas sensação de segurança que lhe inspirava Clara Matilda, a qual estava
coisas que sua mãe conseguira contratá-la por tão pouco, quase no céu e, no entanto - constrangedoramente - , também estava em
de graça". A m u l h e r de sobrancelhas arqueadas que e n u n c i o u Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pequena e mal-ama-
essa crueldade está sendo parafraseada p o r Maisie, e parafra- nhada sepultura." De quem é a palavra "constrangedoramente"?
seada não de maneira especialmente cética ou revoltada, mas São de Maisie: para uma criança, é constrangedor presenciar a dor
c o m o respeito perplexo de u m a criança pela autoridade. Ja- de u m adulto, e sabemos que a sra. W i x começou a se referir a Clara
mes precisa nos fazer sentir que Maisie sabe m u i t o , mas não o Matilda como a "irmãzinha m o r t a " de Maisie. Podemos imaginar
suficiente. Maisie pode não gostar da m u l h e r de sobrancelhas Maisie ao lado da sra. W i x no cemitério de Kensal Green - é típico
arqueadas que falou assim da sra. W i x , mas ela ainda receia da narração de James que ele não mencione o nome do lugar até
seu j u l g a m e n t o , e podemos o u v i r u m a espécie de admirado esse m o m e n t o , deixando-nos o trabalho de descobri-lo - ; pode-
respeito na narração; o estilo i n d i r e t o livre é tão benfeito que mos imaginá-la ao lado da sra. W i x , sentindo-se constrangida e
aparece como pura voz - ele quer se reconverter na fala da qual embaraçada, ao mesmo tempo impressionada e u m pouco teme-
é paráfrase; podemos ouvir, como u m a espécie de sombra, M a i - rosa diante da dor da governanta. E eis a grandeza do trecho: M a i -
sie dizendo para a amiguinha que na verdade ela tristemente sie, apesar de seu enorme afeto pela sra. W i x , mantém com ela a
não t e m : "Sabe, mamãe a contratou por u m salário baixíssimo mesma relação que mantém com a mulher de sobrancelhas arquea-
porque ela é m u i t o pobre e t e m u m a filha que m o r r e u . V i s i t e i a das; as duas mulheres lhe causam certo embaraço. Ela não entende
sepultura dela, sabia?". plenamente nenhuma das duas, ainda que, sem saber por quê, pre-
A s s i m , há a opinião adulta oficial sobre a sra. W i x ; há o en- fira a primeira. "Constrangedoramente": a palavra codifica o e m -
tendimento de Maisie sobre essa desaprovação oficial; e então, baraço natural de Maisie e também o embaraço interior da opinião
para compensar, há a opinião pessoal, m u i t o mais calorosa, de adulta oficial ("Minha querida, é tão constrangedor, aquela mulher
Maisie sobre a sra. W i x , que pode não ser tão elegante quanto está sempre levando Maisie a Kensal Green!").
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© que não é. O Princípio do tio Charles é apenas uma versão do estilo
indireto livre. Joyce é mestre nisso. O conto "Os m o r t o s " começa
Retire da frase a palavra "constrangedoramente", e mal teríamos assim: " L i l y , a filha do zelador, estava literalmente com o coração
u m estilo indireto livre: "Era a mesma sensação de segurança que na boca". Mas ninguém fica literalmente com o coração na boca. O
lhe inspirava Clara Matilda, a qual estava no céu e, n o entanto, que ouvimos é Lily dizendo a si mesma ou a algum amigo (com
também estava e m Kensal Green, onde elas duas foram ver sua grande ênfase justamente na expressão mais imprópria, e com so-
pequena e mal-amanhada sepultura". O simples acréscimo dessa taque bem carregado): " E u 'tava lite-ra-mentico'o coração na boca".
palavra nos aprofunda na confusão de Maisie, e nesse m o m e n t o
o leitor se transforma nela - as palavras passam de James para
Maisie, são dadas a Maisie. Nós nos fundimos com ela. N o entanto,
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na mesma frase, após essa breve fusão, somos arrancados dela: "Sua O e x e m p l o de Kenner é u m pouco diferente, mas não é n o v o .
pequena e mal-amanhada sepultura". "Constrangedoramente" é A poesia setecentista, e m t o m heróico-cómico, arranca risadas
uma palavra que Maisie podia usar, mas "mal-amanhada" [huddled] porque aplica a linguagem épica o u bíblica a pessoas simples. E m
não. Esta palavra é de H e n r y James. A frase pulsa, avança e recua, The Rape ofthe Lock [O roubo da madeixa], de Pope, os artigos de
aproxima-se e afasta-se do personagem - quando topamos com toucador e de mesa de Belinda são apresentados como "tesouros
"mal-amanhada", somos lembrados de que foi o autor que nos per- incontáveis", "gemas refulgentes da í n d i a " , "aragens de toda a
m i t i u a fusão com o personagem, que seu estilo grandiloquente é o Arábia emanando de longínqua caixa", e assim por diante. U m a
envelope que carrega esse generoso pacto. parte da brincadeira é que se trata do t i p o de linguagem que a
grande figura - e u m a "grande figura" é justamente u m elemento
heroico-cômico - poderia usar para se referir a si mesma; a o u -
tra parte consiste na efetiva pequenez daquela figura. Pois b e m ,
O crítico H u g h Kenner escreve sobre uma passagem de Um re- o que é isso, se não u m precoce exemplo de estilo indireto livre?
trato do artista quando jovem em que t i o Charles "se endereça" No começo do capítulo 5 de Orgulho e preconceito, Jane Aus-
ao alpendre. "Endereçar-se" [repairs] é u m verbo pomposo que ten nos apresenta Sir W i l l i a m Lucas, ex-prefeito de Longbourn, o
faz parte da ultrapassada convenção poética. É " m á " escrita. Joyce, qual, consagrado como cavaleiro pelo rei, chegou à conclusão de
com seu olhar agudo para os clichés, só usaria uma palavra dessas que é importante demais para a cidadezinha e precisa mudar para
de propósito. Kenner diz que, portanto, deve ser uma palavra do outro lugar:
tio Charles, a palavra com que ele se referiria a si mesmo na tola
fantasia acerca da própria importância ("E então eu me endereço Sir W i l l i a m Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde acu-
ao alpendre"). Kenner dá a isso o nome de Princípio do tio Charles. mulara uma fortuna tolerável e onde, também, fora agraciado pelo rei
E exagera dizendo que é "algo novo na literatura". Mas sabemos com um título de cavaleiro, enquanto exercia as funções de prefeito.
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A honra fora talvez demasiadamente apreciada. Inspirara-lhe uma re- pobre sr. Biswas se deita? É, como volta e meia Naipaul nos diz
pulsa pelo seu negócio e pela pequena cidade comercial em que habi- deliberadamente, u m a "cama Rei do Descanso": n o m e certo
tava. Abandonando as duas coisas, mudou-se com a família para uma para u m h o m e m que pode ser u m rei o u u m pequeno deus na
casa situada a mais ou menos uma milha de Meryton, denominada a própria cabeça, mas que nunca será nada além de "sr.". E é claro
partir daquela data Lucas Lodge, onde podia pensar com prazer na sua que a decisão de Naipaul e m tratar Biswas c o m o "sr. B i s w a s "
própria importância. durante o romance i n t e i r o t e m certa i r o n i a própria do heroico-
cômico. Isso porque o "sr." é ao m e s m o t e m p o o t r a t a m e n t o
A ironia de A u s t e n dança como o p e r n i l o n g o do poema de Yeats: mais c o m u m e, n u m a sociedade pobre, u m a conquista nada fácil.
" O n d e acumulara u m a f o r t u n a tolerável". O que é, o u o que se- " Sr. Biswas", digamos, é a súmula do estilo i n d i r e t o livre: Biswas
ria, u m a fortuna "tolerável"? Intolerável para q u e m , tolerada por gosta de pensar que é "sr.", mas é só isso o que ele vai ser na vida,
quem? Mas o grande exemplo de heroico-cômico está n o trecho j u n t o c o m o resto do m u n d o .
"denominada a partir daquela data Lucas Lodge". Lucas Lodge já é
bastante engraçado: é como Toad de Toad H a l l o u Shandy Hall,*
e podemos ter certeza de que a casa não chega à altura da gran-
deza aliterativa. Mas a pomposidade de " d e n o m i n a d a a partir Existe mais u m refinamento do estilo indireto livre - que pode-
daquela data" é engraçada porque imaginamos Sir W i l l i a m d i - mos chamar de ironia do autor - quando qualquer distância en-
zendo a si mesmo: "Agora v o u denominar a casa, a partir desta tre a voz do autor e a voz do personagem parece sumir, quando
data, Lucas Lodge. Sim, isso soa estupendo". O heroico-cômico a voz do personagem parece se amotinar e se apoderar de toda a
é quase igual, nesse p o n t o , ao estilo i n d i r e t o livre. A u s t e n repas- narração. " A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase
sou as palavras a Sir W i l l i a m , mas ainda m a n t é m u m controle só por velhos, que m o r r i a m tão raro que isso até causava des-
mordaz sobre elas. gosto." Que começo admirável! É a p rimeira frase do conto " O
U m mestre m o d e r n o do heroico-cômico é V. S. Naipaul, e m violino de R o t h s c h i l d " , de Tchekhov. Seguem as frases: "Poucas
Uma casa para o sr. Biswas: " Q u a n d o ele chegou e m casa, pre- eram t a m b é m as encomendas de caixão do hospital e da cadeia.
parou u m a dose de Pó Estomacal MacLean, bebeu-a, despiu-se, Em suma, os negócios i a m pessimamente". O restante do pará-
deitou-se e c o m e ç o u a ler E p i c t e t o " . A s m a i ú s c u l a s c ô m i c o - grafo nos apresenta u m fazedor de caixões m u i t o mesquinho, e
patéticas da marca do antiácido e a presença de Epicteto - n e m percebemos que o conto começou em pleno estilo indireto livre:
Pope teria feito melhor. E qual é o m o d e l o da cama e m que o "Habitada quase só por velhos, que m o r r i a m tão raro que isso até
causava desgosto". Estamos na cabeça do fazedor de caixões, para
o qual a longevidade é u m aborrecimento financeiro. Tchekhov
* Referência ao sapo Mr. Toad, personagem do livro infantil The Wind in the
subverte a neutralidade que se espera no começo de u m conto ou
Willows [O vento nos salgueiros], de Kenneth Grahame, e à casa de Laurence
Sterne, que recebeu o nome de seu personagem Tristram Shandy. [N.E.] de u m romance, que poderia abrir com uma panorâmica antes de
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estreitar o foco ("A cidadezinha de N . era menor que u m vilarejo, careless rapture" ' ele está sendo u m poeta, tentando encontrar
e tinha duas ruas pequenas e imundas" e t c ) . Mas se Joyce, em "Os a melhor imagem poética; mas quando Tchekhov, no conto "Os
m o r t o s " , joga seu estilo indireto livre para Lily, Tchekhov começa mujiques", diz que o grito de u m pássaro parecia o de u m a vaca
a usá-lo antes mesmo de identificar o personagem. E Joyce aban- que ficou trancada a noite inteira n u m barracão, ele está sendo es-
dona a perspectiva de Lily, passando p r i m e i r o para a onisciência critor de ficção: está pensando como u m de seus mujiques.
autoral e depois para o ponto de vista de Gabriel Conroy, ao passo
que o conto de Tchekhov continua a narrar os acontecimentos pe-
los olhos do fazedor de caixões.
O u talvez seja mais exato dizer que o conto é escrito de u m Sob tal l u z , não há quase nenhuma área da narração que não seja
p o n t o de vista mais p r ó x i m o do coro de u m a aldeia do que de alcançada pelo longo dedo do estilo indireto livre - o u seja, pela
u m indivíduo. Esse coro local enxerga a vida com a mesma b r u - ironia. Vejam o penúltimo capítulo de Pnin, de Nabokov: o cómico
talidade do fazedor de caixões - " E n c o n t r o u pouca gente na fila professor russo acabou de dar uma festa e recebeu a notícia de que
e assim não teve de esperar m u i t o , só umas três horas" - , mas o colégio onde dá aula não quer mais seus serviços. Triste, ele está
continua a enxergar esse mesmo m u n d o depois que ele m o r r e . lavando a louça e u m quebra-nozes lhe escapa da mão ensaboada e
O escritor siciliano Giovanni Verga (quase da mesma época de cai dentro da pia, aparentemente quase quebrando uma linda tigela
Tchekhov) usa esse tipo de narração em coro de m o d o m u i t o mais que está debaixo d'água. Nabokov escreve que o quebra-nozes cai
sistemático do que seu colega russo. Os contos de Verga são escri- das mãos de Pnin como u m h o m e m caindo de u m telhado; Pnin
tos tecnicamente na terceira pessoa, mas parecem emanar de uma tenta agarrá-lo, mas "a coisa pernuda" escorrega dentro da água.
comunidade de camponeses sicilianos; são repletos de provérbios, "Coisa pernuda" é uma imagem metafórica fantástica: enxergamos
truísmos e analogias rústicas. imediatamente as pernas compridas do quebra-nozes genioso,
Podemos dizer que é u m "estilo indireto livre não identificado". como se caísse do telhado e fosse embora. Mas "coisa" é ainda me-
lhor, justamente porque é indefinida: Pnin está esgrimindo com
o i n s t r u m e n t o , e que palavra transmite melhor u m a arremetida,
uma estocada no sentido verbal, do que "coisa"? Agora, se o b r i -
Como desenvolvimento lógico do estilo i n d i r e t o livre, não ad- lhante adjetivo "pernuda" é de Nabokov, a "coisa" infeliz é de Pnin,
m i r a que Dickens, Hardy, Verga, Tchekhov, Faulkner, Pavese, e Nabokov utiliza aqui uma espécie de estilo indireto livre, prova-
H e n r y Green e outros tenham criado analogias e metáforas que, velmente sem sequer pensar nisso. Como sempre, se transformar-
mesmo b e m resolvidas e literárias em si, sejam o tipo de analogias mos esse trecho numa fala em primeira pessoa, poderemos ouvir
e metáforas que os próprios personagens poderiam criar. Quando
Robert B r o w n i n g descreve o som de u m pássaro cantando duas
* Tradução literal: "Recapturar/ O primeiro belo arroubo espontâneo", in "Home
vezes seguidas a mesma melodia, para " Recapture/The first fine Thoughts from Abroad" [1845]. [N.T]
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de que modo a palavra "coisa" pertence a Pnin e como quer ser dita: tediosamente autorais, como se eu estivesse tentando encontrar
"Venha aqui, você, você... o h . . . sua coisa chata!" Chuá..* uma maneira m u i t o especial de descrever aquelas lágrimas.
Vejam John U p d i k e no romance Terrorista. Na terceira página
idiotas", o leitor não t e m dificuldade em atribuir " i d i o t a s " ao per- vessem uma consciência como a sua, Deus. No ano passado Ahmad
sonagem. Mas, se escrevesse "Ted olhava a orquestra por entre cresceu sete centímetros, chegando a 1,82 metro - mais forças mate-
lágrimas avolumadas e pegajosas", os adjetivos logo i a m parecer rialistas invisíveis a exercer sua vontade sobre ele. Ele não vai crescer
mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na outra. Se houver
uma outra, u m demónio interior murmura. Que provas, além das
Nabokov é o grande criador de um tipo de metáforas extravagantes que, segundo
os formalistas russos, serviam para o "estranhamento" ou para a desfamiliarização palavras ardentes e divinamente inspiradas do Profeta, garentem que
(um quebra-nozes tem pernas, um guarda-chuva preto semienrolado parece um existe outra vida? Onde ela estaria escondida? Q u e m estaria eterna-
pato de luto, e assim por diante). Os formalistas gostavam do modo como Tolstói,
mente abastecendo as fornalhas do Inferno? Que fonte infinita de
digamos, insistia em ver coisas adultas - como a guerra ou a ópera - do ponto de
vista infantil, para lhes dar um ar estranho. Mas, para os formalistas russos, esse energia haveria de manter o Éden opulento, alimentando as huris de
hábito metafórico mostra emblematicamente que a ficção não se refere à reali- olhos negros, fazendo crescer os frutos pesados nas árvores, reno-
dade, é um dispositivo fechado em si (tais metáforas, então, são as jóias da arte ex-
vando os riachos e chafarizes em que Deus, conforme a nona sura do
cêntrica e solipsista do autor); ao passo que eu considero essas metáforas, como a
"coisa pernuda" de Pnin, profundamente relacionadas com a realidade: elas bro- Alcorão, eternamente se regozija? E a segunda lei da termodinâmica?
tam dos próprios personagens e são frutos do estilo indireto livre. Chklóvski se
indaga, em O teohiprozy [Sobre a teoria da prosa], se Tolstói tomou sua técnica
A h m a d está andando pela rua, olhando em t o r n o e pensando - a
de estranhamento de autores franceses como Chateaubriand, mas parece muito
mais provável que foi de Cervantes - como quando Sancho chega pela primeira clássica atividade dos romances pós-flaubertianos. As p r i m e i -
vez a Barcelona e vê os navios a remo na água, e metaforicamente confunde os ras linhas são bastante corriqueiras. E então U p d i k e quer tornar
remos com pés: "Não podia Sancho imaginar como podiam ter tantos pés aqueles
o pensamento teológico, e faz uma transição canhestra: "Ele não
vultos que no mar se moviam". É uma metáfora de estranhamento derivada do
estilo indireto livre; com ela, o mundo parece peculiar, mas Sancho parece muito vai crescer mais do que isso, pensa A h m a d , nesta vida n e m na o u -
familiar. Voltarei a isso no intertítulo 109. tra. Se houver uma outra, u m demónio interior m u r m u r a " . Parece
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m u i t o improvável que u m estudante refletindo sobre o quanto aceitamos a farsa alegremente. Mesmo os narradores de Faulkner em
cresceu no último ano pense: " N ã o v o u crescer mais, nesta vida As / Lay Dying [Enquanto agonizo] quase nunca parecem crianças
nem na outra". As palavras " n e m na outra" estão ali só para dar a ou iletrados.
U p d i k e a oportunidade de discorrer sobre a ideia islâmica do pa- Mas a mesma tensão t a m b é m existe na narração e m terceira
raíso. Estamos apenas na quarta página, mas qualquer tentativa de pessoa: q u e m realmente acha que é Leopold B l o o m , em pleno
acompanhar a voz de A h m a d já ficou de lado: o fraseio, a sintaxe fluxo de consciência, que nota "o jato fraco de cerveja" sendo des-
e o l i r i s m o são de U p d i k e , não de A h m a d ( " Q u e m estaria eter- pejado na sarjeta, o u que aprecia "os pinos m u r m u r a n t e s " de u m
namente abastecendo as fornalhas do Inferno?"). A penúltima garfo n u m restaurante - e em palavras tão bonitas? Essas percep-
linha é expressiva: " E m que Deus, conforme a nona sura do Al- ções refinadas e expressões magnificamente precisas são de Joyce,
corão, eternamente se regozija" (grifo meu). A o contrário, como e o leitor t e m de fazer u m acordo, aceitando que B l o o m às vezes
H e n r y James queria nos fazer entrar na mente de Maisie, quantas vai soar como B l o o m e às vezes vai soar mais como Joyce.
coisas ele c o m p r i m i u naquela única palavra: "constrangedora- E algo tão velho quanto a literatura: os personagens de Shakespeare
mente"! Porém Updike não t e m certeza de querer entrar na mente soam como eles mesmos e também sempre como Shakespeare. Não
de A h m a d e, sobretudo, de nos fazer entrar na mente de A h m a d , é Cornwall quem usa uma maravilhosa "geleia abjeta" para se referir
por isso finca suas grandes bandeiras de autor e m toda a área m e n - ao olho de Gloucester antes de arrancá-lo - embora seja ele a dizer as
tal do personagem. E por isso precisa identificar a sura exata que palavras - , e sim Shakespeare, que forneceu a expressão.
menciona Deus, pois, se fosse A h m a d , ele saberia onde está a pas-
sagem e não precisaria se lembrar dela.*
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editorial por semana, e era a coisa mais próxima que qualquer semanário degradar inteiramente nossa própria linguagem. Pynchon, DeLillo,
da BSG conseguia em tablóides ou matérias sensacionalistas, e era objeto 1 )avid Foster Wallace são, em certa medida, herdeiros de Lewis
de discussão nos mais altos escalões de Style. Os especiais com equipe (provavelmente apenas nesse aspecto),* e Wallace leva seu método
e chamada em destaque significavam que Skip Atwater estava oficial- de imersão total aos extremos da paródia: ele não hesita em narrar
mente contratado para uma matéria de quatrocentas palavras a cada três vinte ou trinta páginas no estilo reproduzido anteriormente. Sua
semanas, só que o mais novato do W I T W tinha ficado em meio período ficção dá seguimento a u m caloroso debate sobre a decomposição
desde que Eckleschafft-Bod obrigou a sra. Anger a cortar o orçamento da linguagem nos Estados Unidos, e ele não teme decompor - e
editorial para qualquer coisa que não fosse notícia de celebridades, de descompor - o próprio estilo para nos p e r m i t i r percorrer com ele
modo que na verdade eram três matérias completas a cada oito semanas. esses Estados Unidos linguísticos. "Isso são os Estados Unidos, é aí
que você vive; você deixa rolar", como escreve Pynchon em O lei-
Eis mais u m exemplo do que chamei "estilo i n d i r e t o livre não lão do lote 49. W h i t m a n diz que os Estados Unidos são "o maior de
identificado". Como no conto de Tchekhov, a linguagem paira todos os poemas", mas, se esse for o caso, ele pode representar u m
em t o r n o do personagem (o jornalista A t w a t e r ) , mas na verdade perigo mimético para o escritor, que vê seu poema acumulando-se
emana de uma espécie de "coro local" - é u m amálgama daquele com esse poema rival, os Estados Unidos. Auden apresenta bem o
tipo de linguagem que esperaríamos dessa comunidade específica, problema geral no poema "The Novelist" [O romancista]: o poeta
se fosse ela a contar a história. pode arremeter como u m hussardo, mas o romancista precisa i r
mais devagar, precisa aprender a ser " c o m u m e desajeitado" e t e m
de "se tornar a plenitude do tédio". Em outras palavras, a tarefa do
romancista é encarnar, tornar-se aquilo que ele descreve, mesmo
A linguagem da narração não identificada de Wallace é pavorosa- quando o assunto em si é baixo, vulgar, tedioso. D a v i d Foster
mente feia e dói por páginas a fio. Tchekhov e Verga não t i n h a m Wallace é m u i t o b o m em encarnar a plenitude do tédio.
esse problema porque não enfrentavam a saturação imposta à l i n -
guagem pelos meios de comunicação de massa. Mas, nos Estados
Unidos, as coisas são diferentes: Dreiser em Sister Carrie (publi-
cado em 1900) e Sinclair Lewis em Babbitt (1922) têm o cuidado A s s i m , existe u m a tensão fundamental nos contos e romances:
de reproduzir na íntegra os anúncios, as cartas comerciais e os fo- podemos reconciliar as percepções e a linguagem do autor c o m
lhetos de divulgação que querem tratar literariamente. as percepções e a linguagem do personagem? Quando o autor e
Assim se inicia a perigosa tautologia inerente ao projeto l i t e -
rário contemporâneo: para evocar uma linguagem degradada (a
Isto é, em certa medida são realistas norte-americanos à moda antiga, apesar de
linguagem degradada que o personagem usaria), teríamos de nos suas credenciais pós-modernas: a linguagem deles está mimeticamente repleta
dispor a apresentar essa linguagem mutilada no texto, e talvez da linguagem norte-americana.
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o personagem estão integralmente fundidos, como na passagem
de Wallace, temos, por assim dizer, "a plenitude do tédio" - a l i n -
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guagem corrompida do autor apenas m i m e t i z a uma linguagem O u t r o exemplo de romancista que se sobrepõe ao personagem
corrompida que existe na realidade, que todos nós conhecemos surge (brevemente) e m Agarre a vida, de Saul Bellow. T o m m y
até demais e da qual queremos desesperadamente fugir. Mas, se o W i l h e l m , u m vendedor desempregado que se encontra n u m a
autor e o personagem ficam m u i t o distantes, como na passagem maré de azar, e que não é n e m u m esteta n e m u m intelectual, ob-
de U p d i k e , sentimos o hálito frio de u m afastamento atravessar o serva ansioso o quadro numa bolsa de mercadorias de Manhattan.
texto, e começamos a nos incomodar com os esforços "super lite- Perto dele, u m escriturário idoso, chamado sr. Rappaport, fuma
rários" do estilista. Updike é u m exemplo de esteticismo (o autor u m charuto. " U m a cinza longa e perfeita formou-se na ponta do
se intromete); Wallace é u m exemplo de aparente antiesteticismo charuto, o fantasma branco de uma folha, com todas as suas ner-
(o personagem é tudo): mas ambos, na verdade, são espécimes do vuras e seu cheiro, mais leve. O velho não lhe deu atenção, apesar
mesmo esteticismo, que no fundo é a exibição forçada de estilo. de sua beleza. Pois era bela. Tampouco deu atenção a W i l h e l m . "
É uma frase linda, musical, característica de Bellow e da nar-
rativa literária moderna. A ficção afrouxa o passo a f i m de chamar
nossa atenção para uma superfície o u textura que poderia passar
O romancista, p o r t a n t o , está sempre trabalhando pelo menos desapercebida - u m exemplo de "pausa descritiva",* que nos é
c o m três linguagens. Há a linguagem, o estilo, os i n s t r u m e n t o s familiar quando a ação de u m romance é suspensa, e o autor diz:
de percepção etc. do autor; há a suposta linguagem, o suposto es- "Agora v o u lhes contar sobre a cidade de N . , que ficava aninhada
t i l o , os supostos instrumentos de percepção etc. do personagem; no sopé dos Cárpatos", o u "Jerome vivia n u m castelo grande e
e h á o que chamaríamos de linguagem do m u n d o — a linguagem sombrio, situado e m 50 m i l acres de férteis pastagens". Mas, ao
que a ficção herda antes de convertê-la e m estilo literário, a l i n - mesmo tempo, esses são detalhes vistos, aparentemente, não pelo
guagem da fala cotidiana, dos jornais, dos escritórios, da p u b l i c i - autor - o u não só pelo autor - , e s i m pelo personagem. E é a esse
dade, dos blogs e dos e-mails. Nesse sentido, o romancista é u m respeito que Bellow hesita; ele reconhece uma ansiedade inerente
t r i p l o escritor, e o romancista contemporâneo sente ainda mais a à narrativa moderna, que a própria narrativa moderna tende a apa-
pressão dessa triplicidade, devido à presença onívora do terceiro gar. A cinza é notada, e Bellow comenta: " O velho não lhe deu
cavalo dessa troica, a linguagem do m u n d o , que i n v a d i u nossa atenção apesar de sua beleza. Pois era bela. Tampouco deu aten-
subjetividade, nossa intimidade. I n t i m i d a d e que, para James, de- ção a W i l h e l m . " Agarre a vida é narrado n u m a terceira pessoa
veria ser a própria m i n a do romance e que ele chamava (numa m u i t o p r ó x i m a , n u m estilo i n d i r e t o livre que enxerga a maior
troica toda sua) " o íntímo-presente palpável".* parte da ação pelos olhos de T o m m y . Bellow, aqui, parece sugerir
* Carta a Sarah Orne Jewett, 5 de outubro de 1901. * Expressão de Gerard Genette em Narrative Discourse [1980].
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que T o m m y nota a cinza porque era bela, e que T o m m y , i g n o - Flaubert e a narrativa moderna
rado pelo velho, também é belo de alguma maneira. Mas o fato
de Bellow nos contar isso é certamente u m a concessão à nossa
objeção implícita: como e por que T o m m y haveria de notar essa
cinza, e notar tão b e m , com estas belas palavras? A o que Bellow,
de fato, responde ansioso: " B e m , você podia achar que T o m m y
era incapaz dessa delicadeza, mas ele realmente n o t o u esse belo
fato, e é por isso que ele também é belo de alguma forma".
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Hfeí