Você está na página 1de 15

Narrando

0
A casa da ficção t e m muitas janelas, mas só duas o u três portas.
Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e t a l -
vez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo
sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só.
Qualquer outra coisa não vai parecer m u i t o uma narração, e pode
estar mais perto da poesia ou do poema em prosa.

Na verdade, estamos presos à narração em primeira e terceira pes-


soa. A ideia c o m u m é de que existe u m contraste entre a narração
confiável (a onisciência da terceira pessoa) e a narração não con-
fiável (o narrador não confiável na primeira pessoa, que sabe me-
nos de si do que o leitor acaba sabendo). De u m lado, Tolstói, por
exemplo, e de outro, os narradores H u m b e r t H u m b e r t o u Zeno
Cosini, de Italo Svevo, o u Bertie Wooster. As pessoas supõem que
a onisciência do autor não existe mais, como não existe mais aquele
"imenso brocado musical roído de traças chamado religião".* Uma
vez W . G. Sebald me disse: "Para m i m , a literatura que não admite
a incerteza do narrador é uma forma de impostura m u i t o , m u i t o
difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de es-
crita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz
e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de l i v r o " . E mais: "Se
você fala em Jane Austen, você está falando de u m m u n d o que t i -
nha códigos de conduta aceitos por todo mundo. Como você t e m
aí u m m u n d o de regras claras, onde a pessoa sabe onde começa a

* No original: "The vest moth-eaten musical brocade called religion", do poema


"Aubade", de Philip Larkin. [N.E]

19
transgressão, então eu acho legítimo, nesse contexto, ser u m nar- que o narrador não está sendo confiável porque o autor, numa ma-
rador que conhece as regras e que sabe as respostas para certas per- nobra confiável, nos avisa dessa inconfiabilidade do narrador. Há
guntas. Mas acho que o curso da história nos fez perder essas cer- aí u m processo de sinalização do autor; o romance nos ensina a ler
tezas, e precisamos reconhecer nossa ignorância e limitação nesses o narrador.
assuntos para então tentar escrever de acordo com isso".* A narração inconfiavelmente não confiável é m u i t o rara -
quase tão rara quanto u m personagem de fato misterioso, ge-

© nuinamente insondável. O narrador anónimo de Fome, de K n u t


H a m s u n , é por demais não confiável e, no fim, incognoscível (o
Para Sebald e para m u i t o s outros escritores como ele, a narração fato de ser louco ajuda); o modelo de H a m s u n é o narrador sub-
onisciente padrão, em terceira pessoa, é uma espécie de trapaça terrâneo de Dostoiévski em Memórias do subsolo. Zeno Cosini,
que não se usa mais. Porém, os dois lados da questão estão sendo de Italo Svevo, talvez seja o melhor exemplo de narração real-
caricaturados. mente não confiável. Ele imagina que, contando sua história de
vida, está fazendo uma autoanálise (prometera ao analista que

© faria isso). Mas seu autoconhecimento, brandido com toda con-


fiança diante de nossos olhos, é tão ridiculamente cheio de furos
Na verdade, a narração em primeira pessoa costuma ser mais con- quanto u m a bandeira alvejada por tiros.
fiável que não confiável, e a narração "onisciente" na terceira pes-
soa costuma ser mais parcial que onisciente.
O narrador na primeira pessoa em geral é m u i t o confiável;
©
por exemplo, Jane Eyre, narradora e m primeira pessoa altamente Por outro lado, a narração onisciente poucas vezes é tão onisciente
confiável, conta sua história numa posição de quem compreende quanto parece. Para começar, o estilo do autor em geral tende a
o que já passou (depois de anos, casada com Rochester, ela agora fazer a onisciência da terceira pessoa parecer parcial e tenden-
pode enxergar a história de sua vida, assim como a visão de Ro- ciosa. O estilo costuma atrair nossa atenção para o escritor, para
chester volta aos poucos no final do romance). Até o narrador que o artifício da construção autoral e, portanto, para a marca pessoal
não parece confiável costuma ser confiavelmente não confiável. do autor. Daí o paradoxo quase cómico entre o famoso desejo de
Pensem no m o r d o m o de Kazuo Ishiguro em Os resíduos do dia, o u Flaubert de que o autor fosse "impessoal", como Deus, distante, e
em Bertie Wooster, o u mesmo em H u m b e r t H u m b e r t . Sabemos a extrema pessoalidade de seu próprio estilo, aquelas frases e m i -
núcias requintadas, que nada mais são do que vistosas assinatu-
ras de Deus em cada página: u m excesso para u m autor impessoal.
Essa entrevista se encontra na revista Brick, vol. 10. O sotaque alemão de Sebald
aumentava seu prazer, já bastante cómico, malicioso, bernhardiano, em acen- Tolstói é quem mais se aproxima de uma ideia canónica da onis-
tuar palavras como very [muito] e unacceptable [inaceitável]. ciência do autor, e ele usa com grande naturalidade e autoridade

20 21
u m m o d o de escrever que Roland Barthes chamou de "código de ('"Ela parece tão infeliz', pensou consigo"), aliado a u m discurso
referência" (ou algumas vezes de "código c u l t u r a l " ) , em que u m indireto ou informado ("Imaginou o que d i z e r " ) . É a velha ideia
escritor recorre, com segurança, a uma verdade universal o u con- do pensamento de u m personagem como uma conversa consigo
sensual, o u a u m corpo de saberes científicos o u culturais comuns mesmo, uma espécie de discurso interior.
a toda a sociedade.* b) "Ele olhou a esposa. Ela parecia tão infeliz, pensou ele, quase
doente. Imaginou o que dizer." - É u m discurso i n d i r e t o ou i n -

© formado, o discurso interno do marido informado pelo autor, e


sinalizado como tal ("pensou ele"). Esse é o código mais fácil de
A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora e m reconhecer, o mais corrente na narrativa realista convencional.
que alguém conta u m a história sobre u m personagem, a narra- c) "Ele o l h o u a esposa. É, ela estava tediosamente infeliz de
tiva parece querer se concentrar e m volta daquele personagem, novo^quase doente. Que raio diria ele?" - É o discurso o u estilo
parece querer se f u n d i r com ele, assumir seu m o d o de pensar e indireto livre: o pensamento o u discurso interior do marido não
de falar. A onisciência de u m romancista logo se torna algo como t e m mais a sinalização autoral; não há "ele disse a si m e s m o " n e m
compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expres- " i m a g i n o u " o u "pensou".
são que possui diversos apelidos entre os romancistas - "terceira Vejam o ganho de flexibilidade. A narrativa parece se afastar
pessoa í n t i m a " o u "entrar no personagem".** do romancista e assumir as qualidades do personagem, que agora

0
parece "possuir" as palavras. O escritor está livre para direcionar o
pensamento informado, para dobrá-lo às palavras do personagem
("Que raio diria ele?"). Estamos perto do fluxo de consciência, e é
a) "Ele o l h o u a esposa. 'Ela parece tão infeliz', pensou ele, 'quase essa direção que toma o estilo indireto livre no século x i x e no co-
doente.' Imaginou o que dizer." - É u m discurso direto o u citado meço do século x x : "Ele olhou para ela. Infeliz, sim. Doentiamente.
Claro, u m grande erro ter contado a ela. A estúpida consciência dele
* Barthes usa a expressão no livro s/z [1970; trad. Léa Novaes, São Paulo: Nova Fron- de novo. Por que deixou escapar? Tudo culpa dele, e agora?".
teira, 1992]. Designa a maneira como os escritores oitocentistas se referem a conheci-
mentos científicos ou culturais de aceitação geral, por exemplo, generalidades ideo- N o t e m que esse monólogo interior, sem aspas n e m sinaliza-
lógicas sobre as "mulheres". Amplio a expressão para abranger qualquer espécie de ções, se parece m u i t o com u m genuíno solilóquio dos romances
generalização autoral. Eis um exemplo em Tolstói: no começo de A morte de Ivan
setecentistas e oitocentistas (exemplo de u m aperfeiçoamento
Ilitch, três amigos de Ivan estão lendo seu necrológio, e Tolstói escreve que "o próprio
fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada
técnico que apenas renova, de maneira cíclica, u m a técnica o r i g i -
um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera nal básica e útil demais - real demais - para ser posta de lado).
outro e não ele". Como de costume: o autor se refere com facilidade e sabedoria a uma
verdade humana central, serenamente olhando o coração de três homens diferentes.
** Gosto da expressão de D. A . Miller para o estilo indireto livre, em seu livro Jane
Austen, or the Secret of Style [2003]: "escrita íntima".

22 23
© ©
O estilo i n d i r e t o livre atinge seu m á x i m o quando é quase invisí- Graças ao estilo i n d i r e t o l i v r e , vemos coisas através dos olhos
vel o u inaudível: "Ted olhava a orquestra por entre lágrimas i d i o - e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e
tas". E m m e u exemplo, a palavra " i d i o t a s " mostra que a frase está da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciên-
no estilo i n d i r e t o livre. T i r e m o adjetivo, e teremos u m relato- cia e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem,
padrão: "Ted olhava a orquestra por entre lágrimas". O acréscimo e a ponte entre eles - que é o próprio estilo indireto livre - fecha
da palavra " i d i o t a s " levanta a questão: que palavra é essa? Não essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância.
é provável que eu queira chamar m e u personagem de i d i o t a só Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através
porque está o u v i n d o música n u m a sala de concertos. N ã o , numa dos olhos de u m personagem enquanto somos incentivados a ver
maravilhosa transferência alquímica, agora a palavra pertence, mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade
em parte, a Ted. Ele está ouvindo a música e chorando, e se sente idêntiçá^à do narrador não confiável em primeira pessoa).
constrangido - podemos imaginá-lo enxugando raivosamente os
olhos - por ter p e r m i t i d o que aquelas lágrimas " i d i o t a s " corres-
sem. Converta a frase para a p r i m e i r a pessoa, e teremos: ' " Q u e
©
idiota, chorar por causa dessa peça boba de Brahms', pensou ele". Algun s dos exemplos mais claros dessa ironia dramática es-
Mas esse exemplo possui muitas palavras a mais, e perdemos a tão na literatura i n f a n t i l , que muitas vezes precisa p e r m i t i r que
presença complexa do autor. a criança - o u o representante da criança, u m animal - veja o
m u n d o com olhos limitados, ao mesmo tempo alertando o leitor

© mais velho dessa limitação. E m Make Wayfor Ducklings [Abram


caminho para os patinhos], de Robert McCloskey, o sr. e a sra.
O que há de tão útil no estilo indireto livre é que, no nosso exem- Mallard estão avaliando se adotam os Jardins Públicos de Boston
plo, uma palavra como " i d i o t a " de certa forma pertence ao autor e como novo lar quando u m barquinho Cisne ( u m pedalinho em
ao personagem; não sabemos m u i t o bem quem "possui" a palavra. forma de cisne, conduzido por u m h o m e m ) passa ao lado de-
Será que " i d i o t a " reflete uma leve aspereza ou distância por parte les. O sr. Mallard nunca tinha visto nada parecido. Naturalmente,
do autor? O u a palavra pertence totalmente ao personagem, e o McCloskey recorre ao estilo indireto livre: " B e m na hora que es-
autor, n u m acesso de empatia, "entregou-a", por assim dizer, ao tavam se preparando para ir embora, apareceu uma ave enorme e
sujeito em lágrimas? esquisita. Empurrava u m barco cheio de gente, e havia u m h o m e m
sentado na parte de trás. ' B o m dia', grasnou o sr. Mallard, sendo
educado. A grande ave era orgulhosa demais para responder". Em
vez de nos dizer que o sr. Mallard não entendia aquele barco-cisne,

24 25
McCloskey nos coloca d e n t r o da confusão do sr. Mallard; mas a Foi por causa dessas coisas que sua mãe conseguira contratá-la por
confusão é óbvia o suficiente para abrir uma grande distância iró- tão pouco, quase de graça: foi o que Maisie ouviu, u m dia em que a
nica entre o sr. Mallard e o leitor (ou o autor). Nós não ficamos sra. W i x a acompanhou até a sala de visitas e deixou-a lá, uma das se-
confusos como o sr. Mallard, embora sejamos levados a partilhar nhoras que lá estava - uma mulher de sobrancelhas arqueadas como
a confusão dele. cordas de pular e pespontos negros e espessos como a pauta de um ca-
derno de música nas belas luvas brancas - dizer para a outra. Maisie sa-

© bia que as governantas eram pobres; a pobreza da srta. Overmore não


se comentava, e a da sra. W i x era comentada por todos. Porém nem
O que acontece, p o r é m , quando u m escritor mais sério quer que esse fato, nem o velho vestido marrom, nem o diadema, nem o botão,
a distância entre o personagem e o autor seja b e m pequena? O nada disso diminuía para Maisie o encanto que apesar de tudo se ma-
que acontece quando u m romancista quer que p a r t i l h e m o s a nifestava, o encanto que residia no fato de que junto à sra. W i x , com
confusão de u m personagem, mas não " c o r r i g e " essa confusão toda súa feiura e sua pobreza, ela experimentava uma sensação única
e não mostra como seria u m estado de não confusão? Podemos e tranquilizadora de segurança que nenhuma outra pessoa no mundo
avançar direto de McCloskey para H e n r y James. Existe u m a liga- lhe proporcionava - nem o papai, nem a mamãe, nem a mulher das
ção técnica, por exemplo, entre Make Way for Ducklings e Pelos sobrancelhas arqueadas, nem mesmo, por mais linda que fosse, a
olhos de Maisie, de H e n r y James. O estilo i n d i r e t o livre nos ajuda srta. Overmore, em cuja beleza a menina tinha a vaga consciência de
a compartilhar a confusão i n f a n t i l , neste caso a confusão de u m a que não era possível refestelar-se com igual sensação de aconchego e
garotinha, e não a de u m pato. James conta a história, e m terceira ternura. Era a mesma sensação de segurança que lhe inspirava Clara
pessoa, da m e n i n a Maisie Farange, cujos pais passaram por u m Matilda, a qual estava no céu e, no entanto - constrangedoramente
divórcio difícil. Ela é jogada de u m lado para o o u t r o , conforme - , também estava em Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pe-
se sucedem as governantas que lhe são impostas ora pela m ã e , quena e mal-amanhada sepultura.
ora pelo pai. James quer que o leitor compartilhe a confusão da
menina, e quer t a m b é m descrever a corrupção dos adultos vista Que exemplo de escrita! Tão flexível, tão capaz de ocupar diferen-
pelos olhos da inocência i n f a n t i l . Maisie gosta de u m a das g o - tes níveis de compreensão e de ironia, tão repleta de uma identifi-
vernantas, a sra. W i x , m u l h e r simples de classe média baixa, que cação pungente com a pequena Maisie, apesar de o tempo todo se
usa u m penteado bastante grotesco e que teve u m a filhinha cha- aproximar dela e depois se afastar, de volta para o autor.
mada Clara Matilda, a qual, quando t i n h a mais o u menos a idade
de Maisie, fora atropelada na H a r r o w Road e estava enterrada no
cemitério de Kensal Green. Maisie sabe que sua m ã e elegante e
inexpressiva não t e m a sra. W i x e m alta conta, mas Maisie gosta
dela mesmo assim:

26 27
© que, para deixar Maisie "falar", James se dispõe a sacrificar sua ele-
gância estilística numa frase como essa.)
O estilo indireto livre de James nos permite partilhar pelo menos
três perspectivas diferentes ao mesmo tempo: o juízo materno
e adulto oficial sobre a sra. W i x ; a versão de Maisie sobre a v i -
©
são oficial; e a visão de Maisie sobre a sra. W i x . A visão oficial, O génio de James resume t u d o numa palavra: " constrangedora-
entreouvida p o r Maisie, é filtrada por sua própria voz, de q u e m mente" [embarrassingly]. E aí que recai toda a ênfase. "Era a mesma
entende mais o u menos do que se trata: " F o i por causa dessas sensação de segurança que lhe inspirava Clara Matilda, a qual estava
coisas que sua mãe conseguira contratá-la por tão pouco, quase no céu e, no entanto - constrangedoramente - , também estava em
de graça". A m u l h e r de sobrancelhas arqueadas que e n u n c i o u Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pequena e mal-ama-
essa crueldade está sendo parafraseada p o r Maisie, e parafra- nhada sepultura." De quem é a palavra "constrangedoramente"?
seada não de maneira especialmente cética ou revoltada, mas São de Maisie: para uma criança, é constrangedor presenciar a dor
c o m o respeito perplexo de u m a criança pela autoridade. Ja- de u m adulto, e sabemos que a sra. W i x começou a se referir a Clara
mes precisa nos fazer sentir que Maisie sabe m u i t o , mas não o Matilda como a "irmãzinha m o r t a " de Maisie. Podemos imaginar
suficiente. Maisie pode não gostar da m u l h e r de sobrancelhas Maisie ao lado da sra. W i x no cemitério de Kensal Green - é típico
arqueadas que falou assim da sra. W i x , mas ela ainda receia da narração de James que ele não mencione o nome do lugar até
seu j u l g a m e n t o , e podemos o u v i r u m a espécie de admirado esse m o m e n t o , deixando-nos o trabalho de descobri-lo - ; pode-
respeito na narração; o estilo i n d i r e t o livre é tão benfeito que mos imaginá-la ao lado da sra. W i x , sentindo-se constrangida e
aparece como pura voz - ele quer se reconverter na fala da qual embaraçada, ao mesmo tempo impressionada e u m pouco teme-
é paráfrase; podemos ouvir, como u m a espécie de sombra, M a i - rosa diante da dor da governanta. E eis a grandeza do trecho: M a i -
sie dizendo para a amiguinha que na verdade ela tristemente sie, apesar de seu enorme afeto pela sra. W i x , mantém com ela a
não t e m : "Sabe, mamãe a contratou por u m salário baixíssimo mesma relação que mantém com a mulher de sobrancelhas arquea-
porque ela é m u i t o pobre e t e m u m a filha que m o r r e u . V i s i t e i a das; as duas mulheres lhe causam certo embaraço. Ela não entende
sepultura dela, sabia?". plenamente nenhuma das duas, ainda que, sem saber por quê, pre-

A s s i m , há a opinião adulta oficial sobre a sra. W i x ; há o en- fira a primeira. "Constrangedoramente": a palavra codifica o e m -

tendimento de Maisie sobre essa desaprovação oficial; e então, baraço natural de Maisie e também o embaraço interior da opinião

para compensar, há a opinião pessoal, m u i t o mais calorosa, de adulta oficial ("Minha querida, é tão constrangedor, aquela mulher

Maisie sobre a sra. W i x , que pode não ser tão elegante quanto está sempre levando Maisie a Kensal Green!").

a governanta anterior, a srta. Overmore, mas que parece m u i t o


mais segura: a provedora daquela sensação única "de aconchego
e ternura" [tucked-in andkissed-for-good-nightfeeling]. (Notem

28 29
© que não é. O Princípio do tio Charles é apenas uma versão do estilo
indireto livre. Joyce é mestre nisso. O conto "Os m o r t o s " começa
Retire da frase a palavra "constrangedoramente", e mal teríamos assim: " L i l y , a filha do zelador, estava literalmente com o coração
u m estilo indireto livre: "Era a mesma sensação de segurança que na boca". Mas ninguém fica literalmente com o coração na boca. O
lhe inspirava Clara Matilda, a qual estava no céu e, n o entanto, que ouvimos é Lily dizendo a si mesma ou a algum amigo (com
também estava e m Kensal Green, onde elas duas foram ver sua grande ênfase justamente na expressão mais imprópria, e com so-
pequena e mal-amanhada sepultura". O simples acréscimo dessa taque bem carregado): " E u 'tava lite-ra-mentico'o coração na boca".
palavra nos aprofunda na confusão de Maisie, e nesse m o m e n t o
o leitor se transforma nela - as palavras passam de James para
Maisie, são dadas a Maisie. Nós nos fundimos com ela. N o entanto,
©
na mesma frase, após essa breve fusão, somos arrancados dela: "Sua O e x e m p l o de Kenner é u m pouco diferente, mas não é n o v o .
pequena e mal-amanhada sepultura". "Constrangedoramente" é A poesia setecentista, e m t o m heróico-cómico, arranca risadas
uma palavra que Maisie podia usar, mas "mal-amanhada" [huddled] porque aplica a linguagem épica o u bíblica a pessoas simples. E m
não. Esta palavra é de H e n r y James. A frase pulsa, avança e recua, The Rape ofthe Lock [O roubo da madeixa], de Pope, os artigos de
aproxima-se e afasta-se do personagem - quando topamos com toucador e de mesa de Belinda são apresentados como "tesouros
"mal-amanhada", somos lembrados de que foi o autor que nos per- incontáveis", "gemas refulgentes da í n d i a " , "aragens de toda a
m i t i u a fusão com o personagem, que seu estilo grandiloquente é o Arábia emanando de longínqua caixa", e assim por diante. U m a
envelope que carrega esse generoso pacto. parte da brincadeira é que se trata do t i p o de linguagem que a
grande figura - e u m a "grande figura" é justamente u m elemento
heroico-cômico - poderia usar para se referir a si mesma; a o u -
tra parte consiste na efetiva pequenez daquela figura. Pois b e m ,
O crítico H u g h Kenner escreve sobre uma passagem de Um re- o que é isso, se não u m precoce exemplo de estilo indireto livre?
trato do artista quando jovem em que t i o Charles "se endereça" No começo do capítulo 5 de Orgulho e preconceito, Jane Aus-
ao alpendre. "Endereçar-se" [repairs] é u m verbo pomposo que ten nos apresenta Sir W i l l i a m Lucas, ex-prefeito de Longbourn, o
faz parte da ultrapassada convenção poética. É " m á " escrita. Joyce, qual, consagrado como cavaleiro pelo rei, chegou à conclusão de
com seu olhar agudo para os clichés, só usaria uma palavra dessas que é importante demais para a cidadezinha e precisa mudar para
de propósito. Kenner diz que, portanto, deve ser uma palavra do outro lugar:
tio Charles, a palavra com que ele se referiria a si mesmo na tola
fantasia acerca da própria importância ("E então eu me endereço Sir W i l l i a m Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde acu-
ao alpendre"). Kenner dá a isso o nome de Princípio do tio Charles. mulara uma fortuna tolerável e onde, também, fora agraciado pelo rei
E exagera dizendo que é "algo novo na literatura". Mas sabemos com um título de cavaleiro, enquanto exercia as funções de prefeito.

30 31
A honra fora talvez demasiadamente apreciada. Inspirara-lhe uma re- pobre sr. Biswas se deita? É, como volta e meia Naipaul nos diz
pulsa pelo seu negócio e pela pequena cidade comercial em que habi- deliberadamente, u m a "cama Rei do Descanso": n o m e certo
tava. Abandonando as duas coisas, mudou-se com a família para uma para u m h o m e m que pode ser u m rei o u u m pequeno deus na
casa situada a mais ou menos uma milha de Meryton, denominada a própria cabeça, mas que nunca será nada além de "sr.". E é claro
partir daquela data Lucas Lodge, onde podia pensar com prazer na sua que a decisão de Naipaul e m tratar Biswas c o m o "sr. B i s w a s "
própria importância. durante o romance i n t e i r o t e m certa i r o n i a própria do heroico-
cômico. Isso porque o "sr." é ao m e s m o t e m p o o t r a t a m e n t o
A ironia de A u s t e n dança como o p e r n i l o n g o do poema de Yeats: mais c o m u m e, n u m a sociedade pobre, u m a conquista nada fácil.
" O n d e acumulara u m a f o r t u n a tolerável". O que é, o u o que se- " Sr. Biswas", digamos, é a súmula do estilo i n d i r e t o livre: Biswas
ria, u m a fortuna "tolerável"? Intolerável para q u e m , tolerada por gosta de pensar que é "sr.", mas é só isso o que ele vai ser na vida,
quem? Mas o grande exemplo de heroico-cômico está n o trecho j u n t o c o m o resto do m u n d o .
"denominada a partir daquela data Lucas Lodge". Lucas Lodge já é
bastante engraçado: é como Toad de Toad H a l l o u Shandy Hall,*
e podemos ter certeza de que a casa não chega à altura da gran-
deza aliterativa. Mas a pomposidade de " d e n o m i n a d a a partir Existe mais u m refinamento do estilo indireto livre - que pode-
daquela data" é engraçada porque imaginamos Sir W i l l i a m d i - mos chamar de ironia do autor - quando qualquer distância en-
zendo a si mesmo: "Agora v o u denominar a casa, a partir desta tre a voz do autor e a voz do personagem parece sumir, quando
data, Lucas Lodge. Sim, isso soa estupendo". O heroico-cômico a voz do personagem parece se amotinar e se apoderar de toda a
é quase igual, nesse p o n t o , ao estilo i n d i r e t o livre. A u s t e n repas- narração. " A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase
sou as palavras a Sir W i l l i a m , mas ainda m a n t é m u m controle só por velhos, que m o r r i a m tão raro que isso até causava des-
mordaz sobre elas. gosto." Que começo admirável! É a p rimeira frase do conto " O
U m mestre m o d e r n o do heroico-cômico é V. S. Naipaul, e m violino de R o t h s c h i l d " , de Tchekhov. Seguem as frases: "Poucas
Uma casa para o sr. Biswas: " Q u a n d o ele chegou e m casa, pre- eram t a m b é m as encomendas de caixão do hospital e da cadeia.
parou u m a dose de Pó Estomacal MacLean, bebeu-a, despiu-se, Em suma, os negócios i a m pessimamente". O restante do pará-
deitou-se e c o m e ç o u a ler E p i c t e t o " . A s m a i ú s c u l a s c ô m i c o - grafo nos apresenta u m fazedor de caixões m u i t o mesquinho, e
patéticas da marca do antiácido e a presença de Epicteto - n e m percebemos que o conto começou em pleno estilo indireto livre:
Pope teria feito melhor. E qual é o m o d e l o da cama e m que o "Habitada quase só por velhos, que m o r r i a m tão raro que isso até
causava desgosto". Estamos na cabeça do fazedor de caixões, para
o qual a longevidade é u m aborrecimento financeiro. Tchekhov
* Referência ao sapo Mr. Toad, personagem do livro infantil The Wind in the
subverte a neutralidade que se espera no começo de u m conto ou
Willows [O vento nos salgueiros], de Kenneth Grahame, e à casa de Laurence
Sterne, que recebeu o nome de seu personagem Tristram Shandy. [N.E.] de u m romance, que poderia abrir com uma panorâmica antes de

32 33
estreitar o foco ("A cidadezinha de N . era menor que u m vilarejo, careless rapture" ' ele está sendo u m poeta, tentando encontrar
e tinha duas ruas pequenas e imundas" e t c ) . Mas se Joyce, em "Os a melhor imagem poética; mas quando Tchekhov, no conto "Os
m o r t o s " , joga seu estilo indireto livre para Lily, Tchekhov começa mujiques", diz que o grito de u m pássaro parecia o de u m a vaca
a usá-lo antes mesmo de identificar o personagem. E Joyce aban- que ficou trancada a noite inteira n u m barracão, ele está sendo es-
dona a perspectiva de Lily, passando p r i m e i r o para a onisciência critor de ficção: está pensando como u m de seus mujiques.
autoral e depois para o ponto de vista de Gabriel Conroy, ao passo
que o conto de Tchekhov continua a narrar os acontecimentos pe-
los olhos do fazedor de caixões.
O u talvez seja mais exato dizer que o conto é escrito de u m Sob tal l u z , não há quase nenhuma área da narração que não seja
p o n t o de vista mais p r ó x i m o do coro de u m a aldeia do que de alcançada pelo longo dedo do estilo indireto livre - o u seja, pela
u m indivíduo. Esse coro local enxerga a vida com a mesma b r u - ironia. Vejam o penúltimo capítulo de Pnin, de Nabokov: o cómico
talidade do fazedor de caixões - " E n c o n t r o u pouca gente na fila professor russo acabou de dar uma festa e recebeu a notícia de que
e assim não teve de esperar m u i t o , só umas três horas" - , mas o colégio onde dá aula não quer mais seus serviços. Triste, ele está
continua a enxergar esse mesmo m u n d o depois que ele m o r r e . lavando a louça e u m quebra-nozes lhe escapa da mão ensaboada e
O escritor siciliano Giovanni Verga (quase da mesma época de cai dentro da pia, aparentemente quase quebrando uma linda tigela
Tchekhov) usa esse tipo de narração em coro de m o d o m u i t o mais que está debaixo d'água. Nabokov escreve que o quebra-nozes cai
sistemático do que seu colega russo. Os contos de Verga são escri- das mãos de Pnin como u m h o m e m caindo de u m telhado; Pnin
tos tecnicamente na terceira pessoa, mas parecem emanar de uma tenta agarrá-lo, mas "a coisa pernuda" escorrega dentro da água.
comunidade de camponeses sicilianos; são repletos de provérbios, "Coisa pernuda" é uma imagem metafórica fantástica: enxergamos
truísmos e analogias rústicas. imediatamente as pernas compridas do quebra-nozes genioso,
Podemos dizer que é u m "estilo indireto livre não identificado". como se caísse do telhado e fosse embora. Mas "coisa" é ainda me-
lhor, justamente porque é indefinida: Pnin está esgrimindo com
o i n s t r u m e n t o , e que palavra transmite melhor u m a arremetida,
uma estocada no sentido verbal, do que "coisa"? Agora, se o b r i -
Como desenvolvimento lógico do estilo i n d i r e t o livre, não ad- lhante adjetivo "pernuda" é de Nabokov, a "coisa" infeliz é de Pnin,
m i r a que Dickens, Hardy, Verga, Tchekhov, Faulkner, Pavese, e Nabokov utiliza aqui uma espécie de estilo indireto livre, prova-
H e n r y Green e outros tenham criado analogias e metáforas que, velmente sem sequer pensar nisso. Como sempre, se transformar-
mesmo b e m resolvidas e literárias em si, sejam o tipo de analogias mos esse trecho numa fala em primeira pessoa, poderemos ouvir
e metáforas que os próprios personagens poderiam criar. Quando
Robert B r o w n i n g descreve o som de u m pássaro cantando duas
* Tradução literal: "Recapturar/ O primeiro belo arroubo espontâneo", in "Home
vezes seguidas a mesma melodia, para " Recapture/The first fine Thoughts from Abroad" [1845]. [N.T]

34 35
de que modo a palavra "coisa" pertence a Pnin e como quer ser dita: tediosamente autorais, como se eu estivesse tentando encontrar
"Venha aqui, você, você... o h . . . sua coisa chata!" Chuá..* uma maneira m u i t o especial de descrever aquelas lágrimas.
Vejam John U p d i k e no romance Terrorista. Na terceira página

® do livro, ele apresenta o protagonista, A h m a d , u m fervoroso m u -


çulmano americano de dezoito anos, indo para a escola pelas ruas
E i n s t r u t i v o ver bons escritores cometendo erros. M u i t o s au- de uma cidade fictícia de Nova Jersey. Como o romance m a l co-
tores excelentes tropeçam n o estilo i n d i r e t o l i v r e . O estilo meçou, U p d i k e ainda precisa estabelecer a identidade de A h m a d :
i n d i r e t o l i v r e resolve m u i t a coisa, mas acentua u m p r o b l e m a
presente e m toda narração literária: as palavras usadas pelos Ahmad tem dezoito anos. Estamos no início de abril; mais uma vez o
personagens parecem as palavras que eles u s a r i a m , o u soam verde penetra sorrateiro, semente por semente, nas fendas de terra da
mais como palavras do autor? cidade cinzenta. Ele olha do patamar de sua altura recém-conquistada
Quando escrevo: "Ted olhava a orquestra por entre lágrimas e pensa que, para os insetos invisíveis na grama, ele seria, se eles ti-
x

idiotas", o leitor não t e m dificuldade em atribuir " i d i o t a s " ao per- vessem uma consciência como a sua, Deus. No ano passado Ahmad
sonagem. Mas, se escrevesse "Ted olhava a orquestra por entre cresceu sete centímetros, chegando a 1,82 metro - mais forças mate-
lágrimas avolumadas e pegajosas", os adjetivos logo i a m parecer rialistas invisíveis a exercer sua vontade sobre ele. Ele não vai crescer
mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na outra. Se houver
uma outra, u m demónio interior murmura. Que provas, além das
Nabokov é o grande criador de um tipo de metáforas extravagantes que, segundo
os formalistas russos, serviam para o "estranhamento" ou para a desfamiliarização palavras ardentes e divinamente inspiradas do Profeta, garentem que
(um quebra-nozes tem pernas, um guarda-chuva preto semienrolado parece um existe outra vida? Onde ela estaria escondida? Q u e m estaria eterna-
pato de luto, e assim por diante). Os formalistas gostavam do modo como Tolstói,
mente abastecendo as fornalhas do Inferno? Que fonte infinita de
digamos, insistia em ver coisas adultas - como a guerra ou a ópera - do ponto de
vista infantil, para lhes dar um ar estranho. Mas, para os formalistas russos, esse energia haveria de manter o Éden opulento, alimentando as huris de
hábito metafórico mostra emblematicamente que a ficção não se refere à reali- olhos negros, fazendo crescer os frutos pesados nas árvores, reno-
dade, é um dispositivo fechado em si (tais metáforas, então, são as jóias da arte ex-
vando os riachos e chafarizes em que Deus, conforme a nona sura do
cêntrica e solipsista do autor); ao passo que eu considero essas metáforas, como a
"coisa pernuda" de Pnin, profundamente relacionadas com a realidade: elas bro- Alcorão, eternamente se regozija? E a segunda lei da termodinâmica?
tam dos próprios personagens e são frutos do estilo indireto livre. Chklóvski se
indaga, em O teohiprozy [Sobre a teoria da prosa], se Tolstói tomou sua técnica
A h m a d está andando pela rua, olhando em t o r n o e pensando - a
de estranhamento de autores franceses como Chateaubriand, mas parece muito
mais provável que foi de Cervantes - como quando Sancho chega pela primeira clássica atividade dos romances pós-flaubertianos. As p r i m e i -
vez a Barcelona e vê os navios a remo na água, e metaforicamente confunde os ras linhas são bastante corriqueiras. E então U p d i k e quer tornar
remos com pés: "Não podia Sancho imaginar como podiam ter tantos pés aqueles
o pensamento teológico, e faz uma transição canhestra: "Ele não
vultos que no mar se moviam". É uma metáfora de estranhamento derivada do
estilo indireto livre; com ela, o mundo parece peculiar, mas Sancho parece muito vai crescer mais do que isso, pensa A h m a d , nesta vida n e m na o u -
familiar. Voltarei a isso no intertítulo 109. tra. Se houver uma outra, u m demónio interior m u r m u r a " . Parece

36 37
m u i t o improvável que u m estudante refletindo sobre o quanto aceitamos a farsa alegremente. Mesmo os narradores de Faulkner em
cresceu no último ano pense: " N ã o v o u crescer mais, nesta vida As / Lay Dying [Enquanto agonizo] quase nunca parecem crianças
nem na outra". As palavras " n e m na outra" estão ali só para dar a ou iletrados.
U p d i k e a oportunidade de discorrer sobre a ideia islâmica do pa- Mas a mesma tensão t a m b é m existe na narração e m terceira
raíso. Estamos apenas na quarta página, mas qualquer tentativa de pessoa: q u e m realmente acha que é Leopold B l o o m , em pleno
acompanhar a voz de A h m a d já ficou de lado: o fraseio, a sintaxe fluxo de consciência, que nota "o jato fraco de cerveja" sendo des-
e o l i r i s m o são de U p d i k e , não de A h m a d ( " Q u e m estaria eter- pejado na sarjeta, o u que aprecia "os pinos m u r m u r a n t e s " de u m
namente abastecendo as fornalhas do Inferno?"). A penúltima garfo n u m restaurante - e em palavras tão bonitas? Essas percep-
linha é expressiva: " E m que Deus, conforme a nona sura do Al- ções refinadas e expressões magnificamente precisas são de Joyce,
corão, eternamente se regozija" (grifo meu). A o contrário, como e o leitor t e m de fazer u m acordo, aceitando que B l o o m às vezes
H e n r y James queria nos fazer entrar na mente de Maisie, quantas vai soar como B l o o m e às vezes vai soar mais como Joyce.
coisas ele c o m p r i m i u naquela única palavra: "constrangedora- E algo tão velho quanto a literatura: os personagens de Shakespeare
mente"! Porém Updike não t e m certeza de querer entrar na mente soam como eles mesmos e também sempre como Shakespeare. Não
de A h m a d e, sobretudo, de nos fazer entrar na mente de A h m a d , é Cornwall quem usa uma maravilhosa "geleia abjeta" para se referir
por isso finca suas grandes bandeiras de autor e m toda a área m e n - ao olho de Gloucester antes de arrancá-lo - embora seja ele a dizer as
tal do personagem. E por isso precisa identificar a sura exata que palavras - , e sim Shakespeare, que forneceu a expressão.
menciona Deus, pois, se fosse A h m a d , ele saberia onde está a pas-
sagem e não precisaria se lembrar dela.*

U m escritor contemporâneo como David Foster Wallace quer levar


essa tensão ao limite. Ele escreve sobre e de dentro dos personagens,
De u m lado, o autor quer ter sua palavra, quer ser dono de u m es- e assim procede para explorar questões de linguagem mais gerais e
t i l o pessoal; de outro, a narrativa se volta para os personagens e abstratas. Neste trecho do conto "The Suffering Channel" [O canal
para a maneira deles de falar. O dilema aumenta na narração em sofredor], ele evoca o jargão empobrecido da mídia de Manhattan:
primeira pessoa, que em geral é uma trapaça e tanto: o narrador
finge falar para nós enquanto de fato é o autor q u e m nos escreve, e A outra parte de Style mencionada pelo editor associado se referia a
The Suffering Channel, uma grade de programação de tevê a cabo que
Basta imaginar uma versão cristã dessa narração para avaliar a inábil distância Atwater tinha conseguido que Laurel Manderley desse u m jeito e pas-
que Updike guarda em relação ao personagem. Imagine um rapaz cristão prati- sasse direto para a editoria de internacional em What in the World [O que
cante andando na rua, e o texto dizendo algo assim: " E Sua vontade não se faria
se passa no mundo]. Atwater era um dos três jornalistas em tempo
para sempre, como está descrito na quarta linha do pai-nosso?". O estilo indi-
reto livre existe justamente para contornar a falta de jeito. integral a cargo dos noticiários da W I T W , que recebia 0,75 página de

38 39
editorial por semana, e era a coisa mais próxima que qualquer semanário degradar inteiramente nossa própria linguagem. Pynchon, DeLillo,
da BSG conseguia em tablóides ou matérias sensacionalistas, e era objeto 1 )avid Foster Wallace são, em certa medida, herdeiros de Lewis
de discussão nos mais altos escalões de Style. Os especiais com equipe (provavelmente apenas nesse aspecto),* e Wallace leva seu método
e chamada em destaque significavam que Skip Atwater estava oficial- de imersão total aos extremos da paródia: ele não hesita em narrar
mente contratado para uma matéria de quatrocentas palavras a cada três vinte ou trinta páginas no estilo reproduzido anteriormente. Sua
semanas, só que o mais novato do W I T W tinha ficado em meio período ficção dá seguimento a u m caloroso debate sobre a decomposição
desde que Eckleschafft-Bod obrigou a sra. Anger a cortar o orçamento da linguagem nos Estados Unidos, e ele não teme decompor - e
editorial para qualquer coisa que não fosse notícia de celebridades, de descompor - o próprio estilo para nos p e r m i t i r percorrer com ele
modo que na verdade eram três matérias completas a cada oito semanas. esses Estados Unidos linguísticos. "Isso são os Estados Unidos, é aí
que você vive; você deixa rolar", como escreve Pynchon em O lei-
Eis mais u m exemplo do que chamei "estilo i n d i r e t o livre não lão do lote 49. W h i t m a n diz que os Estados Unidos são "o maior de
identificado". Como no conto de Tchekhov, a linguagem paira todos os poemas", mas, se esse for o caso, ele pode representar u m
em t o r n o do personagem (o jornalista A t w a t e r ) , mas na verdade perigo mimético para o escritor, que vê seu poema acumulando-se
emana de uma espécie de "coro local" - é u m amálgama daquele com esse poema rival, os Estados Unidos. Auden apresenta bem o
tipo de linguagem que esperaríamos dessa comunidade específica, problema geral no poema "The Novelist" [O romancista]: o poeta
se fosse ela a contar a história. pode arremeter como u m hussardo, mas o romancista precisa i r
mais devagar, precisa aprender a ser " c o m u m e desajeitado" e t e m
de "se tornar a plenitude do tédio". Em outras palavras, a tarefa do
romancista é encarnar, tornar-se aquilo que ele descreve, mesmo
A linguagem da narração não identificada de Wallace é pavorosa- quando o assunto em si é baixo, vulgar, tedioso. D a v i d Foster
mente feia e dói por páginas a fio. Tchekhov e Verga não t i n h a m Wallace é m u i t o b o m em encarnar a plenitude do tédio.
esse problema porque não enfrentavam a saturação imposta à l i n -
guagem pelos meios de comunicação de massa. Mas, nos Estados
Unidos, as coisas são diferentes: Dreiser em Sister Carrie (publi-
cado em 1900) e Sinclair Lewis em Babbitt (1922) têm o cuidado A s s i m , existe u m a tensão fundamental nos contos e romances:
de reproduzir na íntegra os anúncios, as cartas comerciais e os fo- podemos reconciliar as percepções e a linguagem do autor c o m
lhetos de divulgação que querem tratar literariamente. as percepções e a linguagem do personagem? Quando o autor e
Assim se inicia a perigosa tautologia inerente ao projeto l i t e -
rário contemporâneo: para evocar uma linguagem degradada (a
Isto é, em certa medida são realistas norte-americanos à moda antiga, apesar de
linguagem degradada que o personagem usaria), teríamos de nos suas credenciais pós-modernas: a linguagem deles está mimeticamente repleta
dispor a apresentar essa linguagem mutilada no texto, e talvez da linguagem norte-americana.

40 41
o personagem estão integralmente fundidos, como na passagem
de Wallace, temos, por assim dizer, "a plenitude do tédio" - a l i n -
0
guagem corrompida do autor apenas m i m e t i z a uma linguagem O u t r o exemplo de romancista que se sobrepõe ao personagem
corrompida que existe na realidade, que todos nós conhecemos surge (brevemente) e m Agarre a vida, de Saul Bellow. T o m m y
até demais e da qual queremos desesperadamente fugir. Mas, se o W i l h e l m , u m vendedor desempregado que se encontra n u m a
autor e o personagem ficam m u i t o distantes, como na passagem maré de azar, e que não é n e m u m esteta n e m u m intelectual, ob-
de U p d i k e , sentimos o hálito frio de u m afastamento atravessar o serva ansioso o quadro numa bolsa de mercadorias de Manhattan.
texto, e começamos a nos incomodar com os esforços "super lite- Perto dele, u m escriturário idoso, chamado sr. Rappaport, fuma
rários" do estilista. Updike é u m exemplo de esteticismo (o autor u m charuto. " U m a cinza longa e perfeita formou-se na ponta do
se intromete); Wallace é u m exemplo de aparente antiesteticismo charuto, o fantasma branco de uma folha, com todas as suas ner-
(o personagem é tudo): mas ambos, na verdade, são espécimes do vuras e seu cheiro, mais leve. O velho não lhe deu atenção, apesar
mesmo esteticismo, que no fundo é a exibição forçada de estilo. de sua beleza. Pois era bela. Tampouco deu atenção a W i l h e l m . "
É uma frase linda, musical, característica de Bellow e da nar-
rativa literária moderna. A ficção afrouxa o passo a f i m de chamar
nossa atenção para uma superfície o u textura que poderia passar
O romancista, p o r t a n t o , está sempre trabalhando pelo menos desapercebida - u m exemplo de "pausa descritiva",* que nos é
c o m três linguagens. Há a linguagem, o estilo, os i n s t r u m e n t o s familiar quando a ação de u m romance é suspensa, e o autor diz:
de percepção etc. do autor; há a suposta linguagem, o suposto es- "Agora v o u lhes contar sobre a cidade de N . , que ficava aninhada
t i l o , os supostos instrumentos de percepção etc. do personagem; no sopé dos Cárpatos", o u "Jerome vivia n u m castelo grande e
e h á o que chamaríamos de linguagem do m u n d o — a linguagem sombrio, situado e m 50 m i l acres de férteis pastagens". Mas, ao
que a ficção herda antes de convertê-la e m estilo literário, a l i n - mesmo tempo, esses são detalhes vistos, aparentemente, não pelo
guagem da fala cotidiana, dos jornais, dos escritórios, da p u b l i c i - autor - o u não só pelo autor - , e s i m pelo personagem. E é a esse
dade, dos blogs e dos e-mails. Nesse sentido, o romancista é u m respeito que Bellow hesita; ele reconhece uma ansiedade inerente
t r i p l o escritor, e o romancista contemporâneo sente ainda mais a à narrativa moderna, que a própria narrativa moderna tende a apa-
pressão dessa triplicidade, devido à presença onívora do terceiro gar. A cinza é notada, e Bellow comenta: " O velho não lhe deu
cavalo dessa troica, a linguagem do m u n d o , que i n v a d i u nossa atenção apesar de sua beleza. Pois era bela. Tampouco deu aten-
subjetividade, nossa intimidade. I n t i m i d a d e que, para James, de- ção a W i l h e l m . " Agarre a vida é narrado n u m a terceira pessoa
veria ser a própria m i n a do romance e que ele chamava (numa m u i t o p r ó x i m a , n u m estilo i n d i r e t o livre que enxerga a maior
troica toda sua) " o íntímo-presente palpável".* parte da ação pelos olhos de T o m m y . Bellow, aqui, parece sugerir

* Carta a Sarah Orne Jewett, 5 de outubro de 1901. * Expressão de Gerard Genette em Narrative Discourse [1980].

42 43
que T o m m y nota a cinza porque era bela, e que T o m m y , i g n o - Flaubert e a narrativa moderna
rado pelo velho, também é belo de alguma maneira. Mas o fato
de Bellow nos contar isso é certamente u m a concessão à nossa
objeção implícita: como e por que T o m m y haveria de notar essa
cinza, e notar tão b e m , com estas belas palavras? A o que Bellow,
de fato, responde ansioso: " B e m , você podia achar que T o m m y
era incapaz dessa delicadeza, mas ele realmente n o t o u esse belo
fato, e é por isso que ele também é belo de alguma forma".

A tensão entre o estilo d o autor e o estilo dos personagens au-


menta quando três elementos coincidem: quando u m estilista
notável está e m ação, como B e l l o w o u Joyce; quando esse esti-
lista t a m b é m t e m o compromisso de acompanhar as percepções
e os pensamentos de seus personagens ( c o m p r o m i s s o geral-
m e n t e d e t e r m i n a d o pelo estilo i n d i r e t o l i v r e o u p o r seu d e r i -
vado, o fluxo de consciência); e quando o estilista t e m interesse
especial na apresentação do detalhe.
Estilo; discurso indireto livre; detalhe: eis Flaubert, cuja obra
inaugura e tenta resolver essa tensão, e quem é de fato seu fundador.

44

Hfeí

Você também pode gostar