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Ubuntu.

“Eu sou
porque nós
somos”

Dirk Louw
Ser por meio dos outros: o ubuntu
como cuidado e partilha

E mais:
Mogobe Ramose
A importância vital do “Nós” >> Eduardo Tomazine Teixeira:
As UPPs. Uma incógnita

353
Ano X
Dalene Swanson
Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à
Ricardo Bins de Napoli:
>>
Evolução, transumanismo e o
06.12.2010 globalização econômica neoliberal advento de um novo ser humano
ISSN 1981-8469
Ubuntu. “Eu sou porque nós somos”

Dos povos originários da África, surge uma concepção ética que desafia o estilo de vida da sociedade
contemporânea: o ubuntu. Para os povos de língua bantu, esse termo significa “eu sou porque nós somos”.
Essa “filosofia do Nós” pensa a comunidade, em seu sentido mais pleno, como todos os seres do universo.
Todos nós somos família.

Grande parte da luta contra a colonização na África e contra o apartheid, especialmente a partir das
contribuições dadas pelo prêmio Nobel Desmond Tutu, arcebispo anglicano emérito da Cidade do Cabo, na
África do Sul, encontrou sua força nessa filosofia.

A edição desta semana da IHU On-Line, junto com a edição 340, intitulada Sumak Kawsay, Suma Qamaña,
Teko Porã. O Bem-Viver, busca contribuir, em parceria com escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial no
Brasil, com a reflexão sobre uma Ética Mundial a partir dos povos originários do nosso continente e dos demais
povos que aqui chegaram.

Na discussão sobre o tema contribuem o filósofo e psicólogo sul-africano Dirk Louw, que afirma que nós
somos por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os seres do universo; o filósofo sul-africano
Mogobe Ramose, para quem a comunidade que nasce do ubuntu é uma “entidade dinâmica” entre os vivos,
os mortos-vivos e os ainda não nascidos; a educadora sul-africana Dalene Swanson, que vê o ubuntu como
uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal; o teólogo norte-americano Charles Haws,
que analisa o ubuntu como “liberdade indivisível” a partir das contribuições do arcebispo Tutu; o teólogo
congolês e doutor em sociologia Bas’Ilele Malomalo, que situa o ubuntu dentro do contexto social brasileiro;
e a filósofa e advogada norte-americana Drucilla Cornell, que reflete sobre as contribuições do ubuntu para
as lutas feministas e dos grupos de direitos humanos em geral.

Publicamos ainda, nesta semana, uma entrevista com Eduardo Tomazine Teixeira, mestrando em Ciência
Política na Universidade de Paris VIII, sobre as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs e com Horácio Costa
que é organizador, juntamente, com Berenice Bento, Wilton Garcia, Emerson Inácio e Wiliam Siqueira,
do livro Retratos do Brasil Homossexual. – Fronteiras, Subjetividades e Desejos, recentemente lançado pela
Edusp.

O artigo “Televisão e interesse público”, de Carine Prevedello, doutoranda e pesquisadora do Grupo


CEPOS, e uma entrevista com Ricardo Bins di Napoli, professor na Universidade Federal de Santa Maria
– UFSM, sobre o tema Evolução e transumanismo, completam a edição.

A todas e todos, uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@
Expediente

unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão:
Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de De-
sign Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas (greyceellen@
unisinos.br), Rafaela Kley, Cássio de Almeida e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às
segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das
8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos
- Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | Dirk Louw: Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha
PÁGINA 08 | Mogobe Ramose: A importância vital do “Nós”
PÁGINA 11 | Dalene Swanson: Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal
PÁGINA 13 | Charles Haws: “O ubuntu é ‘liberdade indivisível’”
PÁGINA 16 |Bas’Ilele Malomalo: “Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu
PÁGINA 18 | Drucilla Cornell: As relações entre o “eu” e o “outro”: o ubuntu como prática ética da singularidade

B. Destaques da semana
» Entrevista da Semana
PÁGINA 21 | Eduardo Tomazine Teixeira: As UPPs. Uma incógnita
PÁGINA 21 | Ricardo Bins di Napoli: Evolução e transumanismo: o advento de um novo ser humano?
» Livro da Semana
PÁGINA 25 | Horácio Costa: Estamos no começo de um longo caminho a percorrer
» Coluna do Cepos
PÁGINA 30 | Carine Prevedello: Televisão e interesse público
» Destaques On-Line
PÁGINA 32 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» IHU Repórter
PÁGINA 36 | Rosane Martins da Rocha

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 


 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353
Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha
Para o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas,
mas também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto,
também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres não
humanos, afirma o filósofo e psicólogo sul-africano Dirk Louw

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

N
ão apenas ser porque tu és, mas também ser por meio de ti: essa é, em resumo, a ética ubuntu,
segundo Dirk Louw, psicólogo e filósofo da África do Sul. Por isso, afirma, “ser humano significa
ser por meio de outros”, sejam estes vivos ou mortos, humanos ou não.
Em um sentido mais geral, ubuntu também “significa simplesmente compaixão, calor huma-
no, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra, amor”,
explica Louw, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Por isso, para Louw, os recentes episódios políticos da sociedade sul-africana, como a superação do apar-
theid, foi primordialmente “o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com
a coexistência pacífica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças”.
Louw indica ainda que “o ubuntu é resilientemente religioso”, já que “não só os vivos devem comparti-
lhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros”. Nesse sentido, afirma, “o
conceito africano de comunidade inclui toda a humanidade. Todos nós (isto é, os vivos e os mortos-vivos ou
ancestrais) somos família”. E não só: por ter nascido em um pensamento holístico como o africano, o ethos
do ubuntu afirma que uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também é uma pes-
soa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos, explica Louw.
Dirk J. Louw é psicólogo clínico da província de Limpopo e ex-professor de filosofia da University of the
North, na África do Sul. Estudou na Universidade de Utrecht, na Holanda, na Universidade da África do Sul
e na Stellenbosch University, também na África do Sul. É pesquisador da pesquisador da Universidade de Jo-
anesburgo e do Centro de Ética Aplicada da Stellenbosch University e membro do Institute of Transpersonal
Psychology. É membro fundador da South African Philosopher Consultants Association, ex-membro do comitê
executivo da Sociedade Filosófica da África do Sul e ex-editor do South African Journal of Philosophy. Entre
suas publicações, destacamos seu livro Ubuntu and the Challenges of Multiculturalism in Post-apartheid
South Africa (Center for Southern Africa, Utrecht University, 2001) e seu artigo Ubuntu: An African Assess-
ment of the Religious Other. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significa ubun- ou até cruel para com os outros”. Essa Entretanto, em um sentido comum
tu? Quais são as noções centrais para é, grosso modo, a forma como a ética ou, se se preferir, secular, ubuntu sig-
essa filosofia e estilo de vida? ubuntu africana descreve e também nifica simplesmente compaixão, calor
Dirk Louw – O sentido de ubuntu está prescreve o ser humano. humano, compreensão, respeito, cui-
resumido no tradicional aforismo afri- Em um sentido estritamente tra- dado, partilha, humanitarismo ou, em
cano “umuntu ngumuntu ngabantu” dicional ou, se se preferir, religioso, uma só palavra, amor.
(na versão zulu desse aforismo), que ubuntu significa que só nos tornamos
significa: “Uma pessoa é uma pessoa uma pessoa ao ser introduzidos ou IHU On-Line – Como o ubuntu se rela-
por meio de outras pessoas”, ou “eu iniciados em uma tribo ou em um clã ciona com a história e a cultura afri-
sou porque nós somos”. Ser humano específicos. Nesse sentido, “tornar-se canas? Quais são as suas fontes?
significa ser por meio de outros. Qual- uma pessoa por meio de outras pesso- Dirk Louw – As questões referentes às
quer outra forma de ser seria “des- as” implica em passar por vários está- fontes do ubuntu e à sua relação com a
umana” no duplo sentido da palavra, gios, cerimônias e rituais de iniciação história e a cultura africanas são contro-
isto é, “não humano” e “desrespeitoso prescritos pela comunidade. versas. Alguns pesquisadores sustentam
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 
que o ubuntu tem sido comunicado por pendem uns dos outros.
meio de histórias de geração a geração
“A pessoa que devemos A ética ubuntu ajuda a melhor de-
desde tempos imemoriais, e que as arti- senvolver um diálogo inter-religioso
culações africanas dos valores do cuida-
nos tornar ‘por meio de verdadeiro condensando precondições
do e da partilha são muito mais antigas vitais para esse diálogo. Essas precondi-
do que suas articulações ocidentais – ou
outras pessoas’ é, em ções incluem um respeito pela religiosi-
até que as articulações ocidentais têm dade, individualidade, particularidade
suas raízes nas articulações africanas.
última análise, um e historicidade ou natureza processual
Outros pesquisadores parecem sugerir dos outros, assim como a valorização
que o ubuntu não passa de uma cortina
ancestral. E, da mesma do consenso ou do acordo.
de fumaça autofabricada para as atroci-
dades cometidas por africanos no passa-
forma, essas ‘outras IHU On-Line – O que o ethos do ubun-
do e no presente. tu tem a ensinar às outras tradições,
Então, o ubuntu existe? Os africanos
pessoas’ incluem os culturas e religiões não africanas?
de fato seguem o ubuntu? Essa pergunta Que aspectos o ubuntu pode ajudar
merece mais atenção do que é possível
ancestrais” a aprimorar na ética ocidental?
aqui. Entretanto, ao menos quatro ob- Dirk Louw – Permita-me reformular
servações parecem apropriadas. Em pri- contá-la e recontá-la. ligeiramente essas perguntas: o ethos
meiro lugar, afirmar que o ubuntu existe Em terceiro lugar (ou formulando as do ubuntu é unicamente africano? O
não significa necessariamente sustentar duas primeiras observações de forma ubuntu só faz parte da herança cultural
que a compaixão que ele expressa pre- diferente), antes de começar a negar africana? Seria etnocêntrico e absurdo
valece ou prevaleceu sempre e em toda ou afirmar a existência de algo, seria sugerir que a ética ubuntu de cuidado
parte nas sociedades africanas. É cla- de bom alvitre se envolver em análises e partilha é unicamente africana. Afi-
ro que não prevaleceu nem prevalece. conceituais relevantes. O que exata- nal de contas, os valores que o ubun-
Contudo, depois que se conseguir olhar mente está sendo negado ou reafirma- tu procura promover também podem
para além das manchetes populares, po- do? Neste caso: o que exatamente se ser identificados em várias filosofias
dem-se detectar os mais anônimos atos quer dizer com “ubuntu” ou “existe”? da Eurásia. Isso não significa negar a
de compaixão entre os africanos. Para Finalmente, mesmo afirmando a exis- intensidade com que esses valores são
citar apenas um exemplo: a transição tência do ubuntu, deve-se cuidar para expressos pelos africanos. Mas o mero
relativamente não violenta da socieda- não exagerar a influência normativa da fato de serem expressos intensamente
de sul-africana, que passou de um Es- ética africana tradicional nas comuni- por africanos não torna, por si só, esses
tado totalitário para uma democracia dades africanas. valores exclusivamente africanos.
multipartidária, não foi meramente o Entretanto, embora a compaixão, o
resultado das negociações transigentes IHU On-Line – Qual a relação entre calor humano, a compreensão, o cui-
de políticos. Ela foi também – e talvez o ubuntu e a religião? Como a ética dado, a partilha, o humanitarismo etc.
primordialmente – o resultado do sur- ubuntu pode ajudar a melhor desen- sejam sublinhados por todas as princi-
gimento de um ethos de solidariedade, volver um verdadeiro diálogo inter- pais cosmovisões, ideologias e religi-
um compromisso com a coexistência pa- religioso? ões do mundo, eu gostaria, no entan-
cífica entre sul-africanos comuns a des- Dirk Louw – O ubuntu é resilientemen- to, de sugerir que o ubuntu atua como
peito de suas diferenças. te religioso. Para um ocidental, a má- uma justificação distintivamente afri-
Em segundo lugar, embora talvez se xima “Uma pessoa é uma pessoa por cana dessas formas de se relacionar
duvide da existência do ubuntu como meio de outras pessoas” não tem co- com os outros. O conceito de ubuntu
uma realidade plenamente vivida, difi- notações religiosas óbvias. Ele prova- dá um sentido distintivamente africa-
cilmente se pode negar a sua existência velmente a interpretará apenas como no e uma razão ou motivação distin-
como um conceito, narrativa ou mito um apelo geral para tratar as outras tivamente africanas para uma atitude
proeminente na África e certamente pessoas com respeito e decência. amorosa para com o outro.
no sul da África. Chamar a ética ubuntu Na tradição africana, entretanto, O que, então, o ethos do ubuntu
de “mito” não significa negar sua “ver- essa máxima tem um sentido profun- tem a “ensinar” às tradições, culturas
dade factual” – embora o termo seja damente religioso. A pessoa que de- e religiões não africanas (incluindo as
muitas vezes usado neste sentido. A vemos nos tornar “por meio de outras ocidentais)? Ele pode servir como um
palavra “mito”, da forma como é usa- pessoas” é, em última análise, um importante incentivo para reavaliar o
da aqui, descreve a ética ubuntu como ancestral. E, da mesma forma, essas “ser por meio de outros” em tradições,
uma história duradoura que – indepen- “outras pessoas” incluem os ances- culturas e religiões não africanas, para
dentemente de sua “verdade factual” trais. Os ancestrais são a família ex- reenfatizar os imperativos do cuidado e
– inspira moralmente e revela o sentido tensa. Morrer é um último voltar para da partilha com os outros.
(isto é, a relevância ou importância) casa. Por conseguinte, não só os vivos
da vida para as pessoas que participam devem compartilhar e cuidar uns dos IHU On-Line – Qual a importância da
dela, ou seja, que contribuem para outros, mas os vivos e os mortos de-

 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


comunidade e da família para a ética
ubuntu?
“O conceito africano Em um mundo globalizado, o que o
ubuntu pode oferecer para que se
Dirk Louw – É lógico que a comunida-
de/família é muito importante para a
de comunidade, em seu ultrapassem as diferenças culturais,
políticas, econômicas e religiosas en-
ética ubuntu. Afinal, o ubuntu significa
“ser por meio de outros”. Mas o que
mais pleno sentido, tre os povos?
Dirk Louw – É importante que ninguém
exatamente “a comunidade/família”
significa nesse contexto? Espera-se que
inclui toda a seja um estranho em termos do suposto
alcance da comunidade que é o ubuntu,
uma ética da compaixão seja inclu-
siva, e não exclusiva, isto é, que ela
humanidade. Todos nós dado o potencial do ubuntu para dege-
nerar em um comunitarismo totalitário
inclua, e não exclua; que abra espaço,
e não aliene. Mas quão inclusiva é a
somos família – ninguém – isto é, dada a sua tendência de excluir,
e não de incluir, como se esperaria de
comunidade que o ubuntu descreve e
prescreve? Às vezes, é difícil evitar a
está excluído” uma ética do cuidado e da partilha.
Como uma ética excludente, um ubuntu
impressão de que o ubuntu não preten- desvirtuado representa a fortificação e a
“a ênfase do ubuntu sobre o respei-
de ser exatamente uma “lei universal preservação de uma identidade dada por
to pela particularidade é vital para a
do amor”. Por exemplo: o sentido dos meio da limitação e da segregação. Nos
sobrevivência da África do Sul pós-
ritos de iniciação em sociedades afri- termos dessa ética, o slogan simunye
apartheid”. Nesse sentido, que as-
canas tradicionais parece implicar que (“nós somos um”) sinaliza, ironicamen-
pectos o ubuntu ajudou a forjar na
o ubuntu funcionava (e ainda funciona) te, a pureza de classe, cultura ou etnia;
sociedade e política sul-africanas? O
como uma ética vinculativa exclusiva- racismo e xenofobia – um fenômeno com
que poderia ser ainda aprimorado?
mente dentro dos limites de um clã o qual os (sul) africanos estão por demais
Dirk Louw – O desafio da sociedade e
específico. Essa compreensão exclusiva familiarizados.
da política da África do Sul é o desafio
da comunidade que é o ubuntu com- O verdadeiro ubuntu se opõe a ten-
de afirmar a unidade ao mesmo tempo
bina com o óbvio potencial do ubuntu dências totalitárias levando a plurali-
em que valoriza a diversidade, isto é,
de desencadear conflitos étnicos. Ela dade a sério. Ao mesmo tempo em que
de forjar a unidade na diversidade e,
(ou uma versão dela) também parece constitui o “ser pessoa” por meio de ou-
igualmente, a diversidade na unidade.
constituir a base da forma pela qual al- tras pessoas, ele valoriza o fato de que
O ubuntu ajudou a forjar a unidade na
guns negros sul-africanos tendem a ver “outras pessoas” sejam assim chama-
diversidade por meio de sua ênfase na
o ubuntu como “a” diferença definitiva das, justamente porque, em última aná-
comunidade, expressada por palavras
entre eles próprios como africanos e os lise, nunca podemos “ficar inteiramente
como simunye (“nós somos um”, isto é,
não africanos (incluindo as chamadas na pele delas” ou “enxergar completa-
“unidade é força”) e slogans como “um
“pessoas de cor”, asiáticos e brancos). mente o mundo através de seus olhos”.
dano causado a um é um dano causado
Ser membro da comunidade que Portanto, quando o “ubuntuísta” lê “so-
a todos”.
é o ubuntu não parece, portanto, ser lidariedade” e “consenso”, ele também
Ele também forjou a diversidade
fácil para os não africanos ou, ao me- lê “alteridade”, “autonomia” e “coope-
na unidade através de reavaliações
nos, para os africanos não negros. Os ração” (observe: não “cooptação”).
criativas desse conceito, que acen-
defensores do ubuntu parecem estar
tuam a importância da alteridade no
divididos no tocante a isso. Em ter- IHU On-Line – Como o ethos do ubun-
ethos do ubuntu. Essas reavaliações
mos gerais, todos eles enfatizam sua tu compreende a nossa relação com
operam com conceitos de consenso ou
inclusividade. Entretanto, alguns pro- a natureza e a proteção das vidas
de solidariedade que condizem com
ponentes do ubuntu dão a impressão não humanas?
um regime democrático em comuni-
de que, embora a comunidade que é Dirk Louw – O pensamento africano é
dades políticas africanas. Talvez seja
o ubuntu transcenda os limites de um holístico. Como tal, ele reconhece a ín-
necessário trabalhar mais nesse senti-
clã específico, ela só inclui aqueles tima interconectividade e, mais preci-
do. Uma compreensão emancipatória
cujas origens estão na África. Outros samente, a interdependência de tudo.
da democracia ubuntu (democracia
salientam que a comunidade que é o De acordo com o ethos do ubuntu, uma
comunitária) poderá, por exemplo,
ubuntu também inclui “estranhos”, pessoa não só é uma pessoa por meio de
exigir que os indivíduos recebam tanta
isto é, pessoas que não estão relacio- outras pessoas (isto é, da comunidade
oportunidade quanto possível para fa-
nadas por sangue, parentesco ou casa- em sentido abrangente: os demais se-
zer mudanças e decidir por si mesmos
mento. Por fim, para alguns autores, o res humanos assim como os ancestrais),
como são governados.
conceito africano de comunidade, em mas uma pessoa é uma pessoa por meio
seu mais pleno sentido, inclui toda a de todos os seres do universo, incluin-
IHU On-Line – O ubuntu também está
humanidade. Todos nós (isto é, os vivos do a natureza e os seres não humanos.
relacionado ao respeito pela par-
e os mortos-vivos ou ancestrais) somos Cuidar “do outro” (e, com isso, de si
ticularidade do outro e ao respeito
família – ninguém está excluído. mesmo), portanto, também implica o
pela individualidade. Assim, como
cuidado para com a natureza (o meio
o ubuntu vê a noção de “outro”?
IHU On-Line – O senhor afirma que ambiente) e os seres não humanos.
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 
A importância vital do “Nós”
Segundo o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, para a filosofia ubuntu, “a comunidade é
lógica e historicamente anterior ao indivíduo” e por isso tem a primazia sobre este. Essa
comunidade, explica, é uma “entidade dinâmica” entre três esferas: a dos vivos, a dos
mortos-vivos e a dos ainda não nascidos

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

S
e o ubuntu pode ser compreendido como uma ontologia, uma epistemologia e uma ética, sua noção
mais fundamental é “a filosofia do ‘Nós’”, segundo o filósofo sul-africano Mogobe Bernard Ramose.
Em termos coletivos, o ubuntu se manifesta nos princípios da partilha, da preocupação e do cuidado
mútuos, assim como da solidariedade.
Por isso, Ramose, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, explicou que, na filosofia ubuntu, “a
comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo. Com base nisso, a primazia é atribuída à comu-
nidade, e não ao indivíduo”. Essa comunidade é definida como uma “entidade dinâmica” entre três esferas:
a dos vivos, a dos mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos ainda não nascidos.
Entretanto, afirma, dentro desse contexto, o indivíduo não perde sua identidade pessoal e sua autonomia.
“A luta contra a colonização na África se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No
caso da colonização, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo à
autonomia ou à liberdade”, explica.
Segundo Ramose, sua luta atual é que o ubuntu tenha uma “presença real e visível” na Constituição sul-
africana, a exemplo do que aconteceu no Equador e na Bolívia com relação aos princípios do sumak kawsa.
Nesse sentido, para outras culturas, o ubuntu pode “enfatizar a importância vital de levar o ‘Nós’ a sério”.
Ou seja, na prática, um polílogo entre culturas e tradições para uma melhor compreensão mútua e a defesa
da vida humana.
Mogobe Bernard Ramose é professor de filosofia da Universidade da África do Sul – Unisa e diretor do
Centro de Aprendizagem Regional da Unisa, em Adis Abeba, na Etiópia. Doutor em filosofia pela Katholieke
Universiteit Leuven, da Bélgica, desenvolve sua pesquisa nos campos da filosofia africana e da filosofia da
política, direito e relações internacionais. Trabalhou na Universidade do Zimbábue e de Venda, na África,
assim como na Tilburgh University, na Holanda. É autor, dentre outros, de African philosophy through ubuntu
(Mond Books, 1999). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significado de tima acepção, o ubuntu tem três sen- ras da África indígena ao sul do deser-
ubuntu? tidos inter-relacionados básicos: como to do Saara são principalmente orais,
Mogobe Ramose – Ubuntu é um termo uma 1) ontologia, 2) epistemologia e isto é, desprovidas de escrita. Mas essa
que se encontra em várias línguas ban- 3) ética. concepção é questionável, porque tem
to. Trata-se de duas palavras em uma, uma acepção restrita do significado da
a saber: “ubu” e “ntu” no grupo nguni IHU On-Line – Quais são as origens escrita e também porque não se aplica
de línguas; botho, “bo” e “tho”, no culturais e históricas do ubuntu? à totalidade da África subsaariana, já
grupo sotho de línguas; e hunhu, “hu” Mogobe Ramose – A linguagem e o que a Etiópia, por exemplo, tem sua
e “nhu” em xona. pensamento andam de mãos dadas. própria língua escrita, o amárico. A
É um conceito filosófico no sentido O pensamento é o instrumento para o persistência dessa concepção questio-
comum da filosofia como amor à sabe- cultivo e a construção da cultura. As- nável tornou a “tradição oral” como
doria. Mas é também um conceito filo- sim, a linguagem – na acepção ampla uma das fontes da filosofia ubuntu.
sófico no sentido estreito da filosofia de fala, ação e escrita – é a fonte do Através do veículo da “tradição oral”,
como disciplina acadêmica. Nesta úl- ubuntu. É comum pensar que as cultu- a cultura ubuntu e a história dos po-

 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


vos de língua banto continuam sendo justificação da Comissão da Verdade e
transmitidas de uma geração a outra. “A noção de Reconciliação a partir da base teológi-
É importante lembrar que o nome ca de que o “Deus” cristão endossou a
“África” não foi dado ao continente comunidade na filosofia reconciliação ao assumir a carne hu-
pelos povos indígenas que vivem nele mana (a encarnação) como meio e mé-
desde tempos imemoriais. É como um ubuntu provém da todo para restaurar a relação rompida
nome de batismo imposto aos povos do entre “Deus” e Adão e Eva, alienados
Norte do continente primeiro pelos an- premissa ontológica de por causa da queda.
tigos gregos e romanos e, subsequen- O problema dessa justificação é
temente, a todo o continente pelos que a comunidade é que o mesmo “Deus” até agora não
colonizadores. A divisão da África em tem disposição nem capacidade para
duas partes com base no deserto do lógica e historicamente restaurar a relação rompida entre Ele
Saara também é uma imposição. Por e Lúcifer, que O ofendeu com o pecado
conseguinte, é crucial reconhecer que anterior ao indivíduo” da soberba. Mesmo sem esse questio-
quem nomeia ou batiza faz isso a par- namento da justificação teológica da
tir de uma posição de poder. A partir não se segue que o indivíduo perca a reconciliação, fato é que a sociedade
disso, não surpreende constatar que identidade pessoal e a autonomia. O sul-africana contemporânea continua
alguns intelectuais indígenas do conti- indivíduo é considerado autônomo e, em grande parte irreconciliada, na
nente rejeitam o nome “África” como portanto, responsável por suas ações. medida em que o abismo entre ricos e
uma forma de expressar resistência ao De outra forma, toda a teoria e a pobres aumenta, e os pobres se afun-
poder do nomeador que nomeia. prática do lekgotla – um fórum para dam em um abissal buraco negro. Há
a resolução de disputas entre indiví- um imperativo ético de se corrigir isso
IHU On-Line – Quais são os conceitos duos, assim como entre o indivíduo urgentemente. O ubuntu pode ajudar
centrais envolvidos na ética e na fi- e a comunidade – não teriam sentido nesse sentido, insistindo no reconhe-
losofia ubuntu? justamente porque a pressuposição da cimento, no respeito, na proteção e
Mogobe Ramose – É muito importan- autonomia individual não se aplicaria. na promoção de sua máxima ética, ex-
te notar que, de acordo com a onto- A luta contra a colonização na Áfri- pressada pelo provérbio “feta kgomo o
logia do ubuntu, be-ing [em inglês, ca se baseia justamente no reconhe- tshware motho” – se a pessoa está em
o verbo “ser”], diferentemente de cimento da autonomia individual. No uma situação em que precisa optar en-
being [o substantivo “ser”], não tem caso da colonização, essa luta se ma- tre proteger e salvaguardar a riqueza
um centro. Assim falamos das noções nifesta como um povo que defende e ou preservar a vida humana, ela deve
duradouras que até agora têm sido as reafirma seu direito como grupo à au- então optar pela preservação da vida
marcas de autenticidade do ubuntu. A tonomia ou à liberdade. humana.
noção fundamental da epistemologia e
ética ubuntu é – tomando o termo em- IHU On-Line – Em que aspectos o IHU On-Line – Como o ubuntu conce-
prestado de Tshiamalenga – a filosofia ubuntu ajudou a forjar a sociedade be a lei, o direito e a justiça?
do “Nós”. Nos termos dessa filosofia, e a política da África do Sul? Nesse Mogobe Ramose – A concepção ubuntu
os princípios da partilha, da preocupa- sentido, em sua opinião, que pontos do direito é parte integrante da filo-
ção e do cuidado mútuos, assim como ainda precisam ser mais desenvolvi- sofia do “Nós” que define a comunida-
da solidariedade, constituem coletiva- dos? de como uma entidade dinâmica com
mente a ética do ubuntu. Mogobe Ramose – A primeira fase da três esferas, a saber: a dos vivos, a dos
transição para a “nova” África do Sul mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos
IHU On-Line – Qual a relação exis- foi parcialmente impulsionada pelo ainda não nascidos. A justiça é a efe-
tente entre a ética ubuntu e a noção ubuntu na medida em que esse concei- tivação e a preservação de relações
africana de comunidade, autonomia to foi usado para dar sentido à cons- harmoniosas em todas as três esferas
e colonização? tituição interina de 1993. Ironicamen- da comunidade, e o direito é o instru-
Mogobe Ramose – A noção de comu- te, mas por razões bastante táticas, o mento para alcançar esse fim.
nidade na filosofia ubuntu provém da ubuntu está completamente ausente
premissa ontológica de que a comu- da Constituição final de 1996. IHU On-Line – Na América Latina, al-
nidade é lógica e historicamente an- Apesar disso, o ubuntu foi usado, guns países incluíram a ética “sumak
terior ao indivíduo. Com base nisso, de maneira bastante discutível, para kawsay” (bem viver) em suas Consti-
a primazia é atribuída à comunidade, justificar a abolição da pena de mor- tuições, como o Equador e a Bolívia.
e não ao indivíduo. Entretanto, disso te e para dar credibilidade ao projeto E o senhor defende que “não há uma
 Ignace-Marcel Tshiamalenga Ntumba (1932-): Verdade e Reconciliação. No tocante razão a priori pela qual o ubuntu não
teólogo e sacerdote nascido no Zaire. É dou- a este último projeto, alguns clérigos
tor em Teologia pela Universidade Católica deveria ser a filosofia básica para a
de Louvain, na Bélgica, e em Filosofia pela cristãos assumiram a vanguarda na democracia constitucional na África
Universidade de Frankfurt, Alemanha. Desde  Projeto Verdade e Reconciliação: formado do Sul”. Por quê?
1971, é professor de Filosofia na Universidade para investigar os abusos da era do apartheid,
de Kinshasa. (Nota da IHU On-Line). na África do Sul. (Nota da IHU On-Line) Mogobe Ramose – Eu gostaria de sa-

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 


“Para outras culturas, o
ubuntu pode enfatizar
a importância vital de Ubuntu, uma “alternativa
levar o ‘Nós’ a sério. Na ecopolítica” à globalização
prática, isso significaria
econômica neoliberal
um polílogo de culturas
A ética do ubuntu se pronuncia contra uma interpretação
e tradições” ideológica capitalista da realidade. Sua filosofia nativa espiritu-
al está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas
ber mais sobre “sumak kawsay”. Em
formas vivas, afirma a educadora sul-africana Dalene Swanson
uma resposta anterior, fiz referência
ao fato de que, por alguma ironia e
certamente por razões táticas, o ubun- Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander
tu ficou de fora da Constituição final

R
de 1996. A exclusão do ubuntu dessa
Constituição é o que estou contestan- econhecido como “um sistema de crenças, uma epistemologia,
do, porque ela significa: 1) a rejeição uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da
de uma filosofia e de um modo de vida África”, o ubuntu é, em suma, “uma forma ética de conhecer e
que têm sustentado e continuam sus- de ser em comunidade”. Essa é a opinião da doutora em Educa-
tentando os povos indígenas vencidos ção nascida na África do Sul e hoje residente no Canadá, Dalene
nas guerras injustas de colonização da
Swanson.
África do Sul; 2) a integração forçada
Professora adjunta da University of British Columbia, em Vancouver, e de
desses povos em um paradigma cons-
titucional que não é deles, na medida Alberta, em Edmonton, ambas no Canadá, Dalene encontra no ubuntu uma das
em que descartou deliberadamente a formas de “humanismo africano”. Mas, diferentemente da filosofia ocidental
sua filosofia; 3) a mudança tática do derivada do racionalismo iluminista, “o ubuntu não coloca o indivíduo no cen-
princípio da supremacia (soberania) tro de uma concepção de ser humano”: “A pessoa só é humana – explica – por
parlamentar para a supremacia consti- meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é
tucional é a transmutação da injustiça definida por meio de sua humanidade para com os outros”.
da colonização e de suas consequên- O ubuntu, afirma Dalene, “é uma expressão viva de uma alternativa eco-
cias na justiça e, portanto, a negação política” e também “a antítese do materialismo capitalista”. Mas hoje, diz, a
da justiça para os povos indígenas ven- industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam corrom-
cidos da África do Sul. per esse modo de ser africano tradicional, pois o ubuntu se posiciona “contra
Para a filosofia ubuntu, o tempo
essa interpretação ideológica da realidade por meio de uma filosofia nativa
não muda a verdade, nem tem o poder
espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas
de transformar uma injustiça em jus-
tiça. É por essa razão que eu defendo formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte”.
a presença real e visível do ubuntu na Dalene Swanson é professora adjunta da Faculdade de Educação das Uni-
Constituição sul-africana ainda a ser versity of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, Ca-
acordada. nadá. Nascida na África do Sul, é membro associada do Centre for Cultu-
re, Identity and Education da University of British Columbia. É doutora em
IHU On-Line – O que o ubuntu pode Educação pela University of British Columbia, com a pesquisa Voices in the
ensinar a outras tradições, culturas e Silence: Narratives of disadvantage, social context and school mathematics
ética não africanas? in post-apartheid South Africa. Sua tese lhe garantiu diversos prêmios de ex-
Mogobe Ramose – Para outras culturas, celência, dentre eles o Canadian Association of Curriculum Studies Award de
o ubuntu pode enfatizar a importância 2005; o prêmio Ted T. Aoki, do mesmo ano; e o American Educational Research
vital de levar o “Nós” a sério. Na prá-
Association Award de 2006. Dentre outras publicações, é autora do capítulo
tica, isso significaria um ‘polílogo’ [ou
Where have all the fishes gone?: Living ubuntu as an ethics of research and
polidiálogo] de culturas e tradições
que promova a filosofia intercultural pedagogical engagement, do livro In the Spirit of ubuntu: Stories of Teaching
para a melhoria da compreensão mú- and Research [No espírito do ubuntu: Histórias de ensino e pesquisa] (Sense
tua e a defesa da vida humana. Publications, 2009). Confira a entrevista.

10 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


IHU On-Line – Fala-se do ubuntu “O ubuntu é uma forma tário e de que a dignidade e a identidade
como uma noção filosófica, um con- são alcançadas por meio do mutualismo,
ceito abstrato, um fundamento ético ética de conhecer e de da empatia, da generosidade e do com-
ou uma ideologia nacionalista africa- promisso comunitário. O adágio de que
na. Afinal, o que é ubuntu? ser em comunidade. “é preciso uma aldeia inteira para criar
Dalene Swanson – Ubuntu é um sistema uma criança” está alinhado com o espíri-
de crenças, uma epistemologia, uma Nesse sentido, é uma to e a intenção do ubuntu. Assim como o
ética coletiva e uma filosofia humanis- apartheid ameaçava corroer esse modo
ta espiritual do sul da África. Dentre as forma de humanismo de ser africano tradicional – embora, em
quatro categorias que você menciona alguns casos, ele ironicamente o fortale-
na pergunta, o ubuntu é mais um fun- africano” ceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao
damento ético coletivo (ou um sistema criar solidariedade entre os oprimidos
de crenças) do que qualquer outra coi- sentido coletivo, uma maior humani- –, da mesma forma a industrialização, a
sa, embora também seja considerado dade que transcende a alteridade de urbanização e a globalização crescentes
uma forma de filosofia e epistemologia todas as formas” (p. 55). ameaçam fazer o mesmo (p. 53-54)”.
africanas nativas. É uma forma ética de
conhecer e de ser em comunidade. Nes- IHU On-Line – Sendo o ubuntu, portan- IHU On-Line – Quais aspectos o ubun-
se sentido, é uma forma de humanismo to, uma filosofia do humanismo africa- tu pode ajudar a aprofundar na ética
africano. É muito menos um conceito no, qual o significado e o valor do ser ocidental? O que ele pode ensinar a
abstrato do que uma expressão cole- humano dentro desse contexto? outras tradições e culturas?
tiva cotidiana de experiências vividas, Dalene Swanson – Diferentemente da Dalene Swanson – Este é um ponto
centradas em uma ética comunitária filosofia ocidental derivada do raciona- crucial. Vivemos em uma era de globa-
do que significa ser humano. lismo iluminista, o ubuntu não coloca o lização econômica neoliberal profun-
Em Swanson (2007), eu o descre- indivíduo no centro de uma concepção damente perturbadora. Nossas pautas
vi da seguinte maneira: “Ubuntu é de ser humano. Este é todo o sentido de desenvolvimento foram sequestra-
uma abreviação de um provérbio isi- do ubuntu e do humanismo africano. das por esse modelo econômico que
Xhosa da África do Sul, proveniente A pessoa só é humana por meio de sua se apresenta como a forma “certa” ou
de Umuntu ngumuntu ngabantu: uma pertença a um coletivo humano; a hu- única de promover o desenvolvimen-
pessoa é uma pessoa por meio de seu manidade de uma pessoa é definida por to. Moldado por relações capitalistas
relacionamento com outros. O ubuntu meio de sua humanidade para com os de produção, esse modelo é subscrito
é reconhecido como a filosofia africa- outros; uma pessoa existe por meio da pelo materialismo, pelo individualismo
na do humanismo, ligando o indivíduo existência dos outros em relação inex- e pela competição, e normaliza uma
ao coletivo através da ‘fraternidade’ tricável consigo mesma, mas o valor elite rica sobre os pobres privados de
ou da ‘sororidade’. Ele dá uma contri- de sua humanidade está diretamente direitos (em que a raça, a classe, a na-
buição fundamental às ‘formas nativas relacionado à forma como ela apoia cionalidade, o gênero, a etnia e o credo
de conhecer e ser’. Com ênfases histó- ativamente a humanidade e a dignida- estão, na maioria das vezes, envolvidos
ricas diversificadas e (re) contextuali- de dos outros; a humanidade de uma diferencialmente). Para maximizar os
zações ao longo do tempo e do espaço, pessoa é definida por seu compromisso lucros, pensa-se que algo tem de ser
é considerado uma forma espiritual ético com sua irmã e seu irmão. explorado. Em termos geopolíticos,
de ser no contexto sociopolítico mais isso assume a forma de uma subclasse
amplo do sul da África. Essa aborda- IHU On-Line – Quais são as origens humana, mas, em termos ecológicos,
gem não é apenas uma expressão de culturais e históricas do ubuntu? também inclui a devastação do meio
uma filosofia espiritual em seu sentido Dalene Swanson – O ubuntu tem sido ambiente em sua esteira. O discurso
teológico e teórico, mas uma expres- uma expressão vivida de uma filosofia prevalecente apoiaria isso como um
são da vivência cotidiana. Isto é, uma coletiva ética entre os povos sul-afri- direito e uma exigência necessária da
forma de conhecimento que fomenta canos há séculos. Ele também tem segurança econômica nacional.
uma jornada rumo a ‘tornar-se huma- expressões linguísticas e vividas em Uma ética do ubuntu se pronunciaria
no’ (VANIER, 1998) ou ‘que nos torna outros povos africanos mais ao norte. contra essa interpretação ideológica da
humanos’ (TUTU, 1999), ou, em seu Nesse sentido, é uma das normas cul- realidade por meio de uma filosofia na-
turais mais poderosas e universais que tiva espiritual que está em maior conso-
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Swanson, D. M. Ubuntu: An African contribu- nância com a Terra, suas criaturas e suas
tion to (re)search for/with a “humble togeth- vinculam as pessoas em todo o conti-
erness”. The Journal of Contemporary Issues nente e transcende línguas, tribos e lo- formas vivas, e isso diz respeito a toda
in Education, University of Alberta, v. 2, n.
cais como uma ética humana coletiva. a humanidade em toda parte. Visto que
2, p. 53-67, 2007. Special Edition on African o princípio central do ubuntu é o res-
Worldviews. Disponível em: http://migre.me/ Em Swanson (2007), afirmei: “Da for-
1YZrO. ����������������������
(Nota da entrevistada) ma como cheguei a entender o conceito, peito mútuo, ele está em consonância
 Vanier, J. Becoming human. Toronto: Anansi
o ubuntu nasce da filosofia de que a for- com a epistemologia africana de modo
(CBC), 1998. (Nota da entrevistada) mais geral, que é circular em sua com-
 Tutu, D. No future without forgiveness. New ça da comunidade vem do apoio comuni-
York: Doubleday, 1999. (Nota da entrevistada) preensão e, consequentemente, está
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 11
mais em harmonia ecológica com a Terra mológicas históricas e contemporâneas
do que a epistemologia do racionalismo
“A industrialização, que vieram e que estão vindo da África.
ocidental, que é linear, exploradora e Em muitos casos, ela também osten-
insustentável. Portanto, o ubuntu tem
a urbanização e a ta sofisticação e criatividade industrial
uma contribuição crítica a dar não só e tecnológica, embora isso raramente
para uma filosofia nativa interconectada
globalização seja reconhecido através das lentes dos
globalmente, mas como uma abordagem poderes dominantes e dos discursos he-
contra-hegemônica a uma cosmovisão
crescentes ameaçam gemônicos.
globalizante que exalta a riqueza mate- Não obstante, voltando à sua pergun-
rial às custas da dignidade humana e da
corroer o ubuntu” ta, segue-se o que escrevi em Swanson
sustentabilidade ecológica. (2007), a respeito do papel do ubuntu na
África do Sul. Ser solidário com outro
Discursivamente, a globalização Comissão de Verdade e Reconciliação na
ser oprimido, nesse sentido, constitui-
econômica torna as alternativas não África do Sul pós-apartheid: “O ganhador
ria um envolvimento com o ubuntu. E,
existentes. O ubuntu, como contribui- do prêmio Nobel, o arcebispo Desmond
como extrapolação disso, ele tem mui-
ção para uma filosofia nativa, é uma Mpilo Tutu, que, em 1995, tornou-se o
to a ver com a descolonização. Dessa
expressão viva de uma alternativa presidente da Comissão de Verdade e
forma, sua importância para com a des-
ecopolítica. Em um mundo crescen- Reconciliação na África do Sul pós-apar-
colonização não tem tanto a ver com
temente movido a vigilância, o futuro theid, era um vigoroso defensor da fi-
a resistência a um poder colonial em
dos direitos humanos (e ecológicos), losofia e do poder espiritual do ubuntu
uma frente nacional, como tem sido o
da dignidade humana e da sobrevivên- na recuperação da ‘verdade’ por meio
legado da África, mas agora também a
cia de nosso planeta em termos am- de narrativas das atrocidades da era do
novas formas de colonialismo através
plos dependem de noções filosóficas e apartheid. Ele também o viu como ne-
da globalização econômica neoliberal e
ideológicas nativas como o ubuntu. cessário nos processos mais importantes
uma agenda de desenvolvimento cuja
e subsequentes de perdão, reconcilia-
estrutura ideológica é definida dentro
IHU On-Line – Como a ética do ubun- ção, transcendência e cura que surgem
dos moldes político-econômicos dos po-
tu se relaciona com a noção africana por meio do processo catártico de dizer
deres imperiais.
de comunidade, autonomia e desco- a verdade. Nesse sentido, o alcance das
lonização? noções de ‘verdade’ com relação ao
IHU On-Line – Em uma sociedade
Dalene Swanson – O ubuntu é central mandato da Comissão de Verdade e Re-
marcada pela violência e pela po-
para uma noção de comunidade, não conciliação superava uma noção forense
breza como a africana, quais são as
em um sentido simplista de “comunita- de ‘descoberta da verdade’ para incluir
contribuições e os limites da ética do
rismo primitivo”, mas comunidade em três outras noções de busca da verda-
ubuntu?
termos de solidariedade com os estão de que abrangiam a verdade pessoal ou
Dalene Swanson – Creio que é preciso
sendo oprimidos e cuidado e preocu- narrativa, a verdade social ou dialógica
ser cuidadoso para não homogeneizar
pação sinceros pelo próximo, indepen- e a verdade curativa ou restauradora
“a sociedade africana” e falar dela
dentemente de classe, casta, credo (MARX, 2002, p. 51). Uma percepção da
inteiramente em termos de “déficit”.
ou circunstância. Essa é uma ética de  Desmond Tutu (1931): Bispo anglicano sul-
Nem toda a sociedade africana é mar-
responsabilidade pelo “Outro” em ter- africano. Trabalhou como professor secundário
cada por “violência e pobreza”. Essa e, em 1960, ordenou-se sacerdote anglicano.
mos de ubuntu, e testemunhar ou par-
terminologia também sugere que as Após estudar teologia por cinco anos na Ingla-
ticipar da diminuição da humanidade
sociedades não africanas talvez não se- terra, foi nomeado deão da catedral de Santa
do outro equivale à diminuição de sua Maria, em Joanesburgo, sendo o primeiro ne-
jam marcadas por violência e pobreza, gro a ter tal nomeação. Sagrado bispo, dirige a
própria humanidade.
ou o sejam menos. Há muita violência diocese de Lesoto de 1976 a 1978, ano em que
Você menciona a palavra “autono-
na América do Norte, por exemplo. A se torna secretário-geral do Conselho das Igre-
mia”. Não creio que este seja um cri- jas da África do Sul. Sua proposta para a so-
natureza e a extensão podem ser di- ciedade sul-africana inclui direitos civis iguais
tério crucial do ubuntu. A autonomia
ferentes, mas o capitalismo pode ser para todos; abolição das leis que limitam a
sugere uma separação de alguma outra
uma ideologia muito violenta. Embora circulação dos negros; um sistema educacio-
coisa. Se nós respeitamos a humanida- nal comum; e o fim das deportações forçadas
uma parte dessa violência talvez seja de negros. Sua firme posição antiapartheid – a
de do outro, de qualquer outro, não po-
simbólica, ela é, não obstante, alta- política oficial de segregação racial – lhe vale,
demos estar separados de sua humani- em 1984, o Prêmio Nobel da Paz. As Notícias
mente destrutiva e cúmplice na ne-
dade. O ubuntu sugere que nós estamos do Dia, do sítio do IHU, publicaram uma confe-
gação da dignidade e dos direitos de rência de Tutu, no evento Global Ethic Lectu-
sempre inextricavelmente conectados
muitos. res, organizado pela Fundação Ética Mundial,
com outro ser humano – todos os outros
A África também tem muito a se orgu- em que o arcebispo faz uma análise aprofun-
seres humanos, que definem a nossa dada e pessoal da relação entre o ubuntu, a
lhar em termos de sua beleza e presen- ética e as religiões mundiais. O texto, intitu-
própria humanidade. Suponho que você
ça, mas também da beleza, resiliência, lado Ubuntu: uma perspectiva africana sobre
considere que a “autonomia” entre em
compaixão e humanidade de muitos de ética e dignidade humana, 30-04-2010, está
jogo no sentido de sugerir solidarieda- disponível em http://migre.me/1Z3W0. (Nota
seus povos. Além disso, há muitas pro- da IHU On-Line)
de. Sim, o ubuntu teve certa importân-
fundas contribuições e inovações episte- MARX, C. Ubu and ubuntu: On the dialectics
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cia na solidariedade antiapartheid na of apartheid and nation building. Politikon:

12 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


epistemologia africana ressoa por essas particularmente em Swanson (2007), lismo, a África do Sul vem se tornando
postulações da ‘verdade’ em sua formu- (2009a) e (2009b). cada vez mais materialista, de tal modo
lação e exposição. Como linha filosófi- que o abismo que separa “os que têm” e
ca da epistemologia africana, o ubuntu IHU On-Line – Em que aspectos o “os que não têm” aumentou considera-
foca as relações humanas, atentando ubuntu ajudou a forjar a sociedade, velmente, mesmo que as configurações
para a consciência moral e espiritual do a política e a economia sul-africanas? raciais dessa hierarquia tenham mudado
que significa ser humano e estar em re- Onde ainda é preciso melhorar? até certo ponto. Isso representa uma
lação com um Outro. Isso se expressa no Dalene Swanson – Toquei em algumas ameaça para o ubuntu. Poder-se-ia sus-
anúncio da Comissão de que ele ‘desloca dessas questões ao fazer referência à tentar que é somente por meio da força
o foco primordial do crime, passando da Comissão de Verdade e Reconciliação. do ubuntu e de um conjunto coletivo
violação das leis ou infrações contra um O ubuntu também tem sido usado em de valores e de responsabilidades que
Estado sem rosto para uma percepção do nível de governo para incentivar a for- honrem a humanidade, a dignidade e
crime como violações contra seres hu- mação da nação, curar as cicatrizes os direitos igualitários dos outros que o
manos, como dano ou mal feito a outra do apartheid e a desconfiança entre status quo poderia ser superado – talvez
pessoa’ (apud Marx, 2002, p. 51). Mais as raças que aquele regime engen- uma nova luta pela libertação.
uma vez, o imperativo da busca da ver- drou. Embora isso tenha sido até certo
dade por parte da Comissão é sustenta- ponto bem-sucedido em uma frente, IHU On-Line – Qual a relação entre o
do por uma concepção da epistemologia o problema é que foi implementado ubuntu e a transcendência, em sen-
africana e do ubuntu em sua incorpora- de cima para baixo, não sendo uma tido teológico?
ção da verdade pessoal ou narrativa, da abordagem organizacional crescente Dalene Swanson – Acho que se pode
verdade social ou dialógica e da verdade que parte das bases. Os limites dessa ver isso na forma como o arcebispo
curativa ou restauradora (p. 53)”. abordagem podem ser vistos nas pou- Desmond Tutu deu ao ubuntu uma in-
cas semanas de violência xenófoba do terpretação especificamente teológica
IHU On-Line – A senhora define o ano passado contra refugiados e imi- quando presidiu a Comissão de Verdade
ubuntu como “humble together- grantes de outros países africanos que e Reconciliação. Empregado como um
ness”, intimidade humilde, estar vivem e trabalham na África do Sul. fórum espiritual para a recuperação da
juntos em humildade. Qual o signi- Nesse contexto, o ubuntu parecia verdade e para fomentar as condições
ficado dessa definição para a relação se aplicar apenas aos companheiros para o arrependimento e o perdão, o
entre o indivíduo e a sociedade em “sul-africanos” dentro da “nação do ubuntu foi mesclado com o cristianis-
geral? arco-íris” e não aos “estrangeiros” mo (com o qual estaria estreitamente
Dalene Swanson – Cunhei o termo – um sinal de uma formação de nação aliado em termos dos princípios cris-
“humble togetherness” para exempli- que deu muito errado. Pode-se susten- tãos autossacrificadores do “ama teu
ficar como o ubuntu atua não através tar que, no primeiro caso, há uma dis- próximo como a ti mesmo”) para levar
de relações de poder, em que uma cordância entre as bases filosóficas do a efeito um ethos para a reconciliação
pessoa é superior a outra e mostra ubuntu que promovem a fraternidade e a transcendência.
compaixão ou oferece ajuda de forma e a sororidade universais, extensivas a Isso não era incomum, pois, em boa
patriarcal ou paternalista, mas através toda a humanidade, e o conceito de parte do contexto africano, a filosofia
do ato de se tornar humilde diante de uma “nação” que invoca fronteiras e espiritual africana está integrada ou é
outra pessoa, de ver o outro como uma diferencia as pessoas (e sua humanida- compatibilizada com a ética cristã. No
pessoa igual, que contribui e é digna, de) de acordo com a cidadania, garan- fim das contas, entretanto, lealdades
que tem uma presença na qual nossa tindo direitos a alguns e não a outros. e alianças são uma questão de inter-
própria humanidade se reflete. Eu discuto esse problema com maior pretação. O ubuntu continua sendo es-
Trata-se de uma conexidade abnega- profundidade em Swanson (2007). sencialmente uma filosofia viva que é
da, voltada para fora, para o bem-estar Outro aspecto que pode ser destaca- praticada nas vidas de pessoas comuns
de outra pessoa e o seu reconhecimento do é que o ubuntu assinala a antítese do em uma miríade de contextos em todo
como pessoa. É uma forma de mutu- materialismo capitalista. Com o adven- o continente, mostrando ‘humanita-
alismo em que o orgulho de si mesmo to contínuo da globalização econômica riedade’, solidariedade, compaixão e
depende inteiramente de se sustentar a e mediante a adesão a um modelo de uma sabedoria espiritual coletiva que
dignidade do outro ou da comunidade. desenvolvimento moldado pelo capita- oferece dignidade, respeito e humani-
Falei sobre como o ubuntu sustenta uma ������������������������������������������
SWANSON, D. M. Roots / Routes (Part II), dade em sua expressão.
metodologia de pesquisa mais reflexi- Qualitative Inquiry. Sage Publications, v. 15,
n. 2, p. 58-78, 2009a. Disponível
����������������������
em: http://  As Notícias do Dia, do sítio do IHU, publi-
va por meio de um conceito de “estar migre.me/1Z2We. (Nota da entrevistada) caram uma conferência de Desmond Tutu, no
juntos em humildade” e sobre como ela SWANSON, D. M. Where have all the fishes
���������������� evento Global Ethic Lectures, organizado pela
contribui para uma pedagogia e prá- gone?: Living ubuntu as an ethics of research Fundação Ética Mundial, em que o arcebispo
and pedagogical engagement. In: Caracciolo, faz uma análise aprofundada e pessoal da rela-
tica da educação e da vida em alguns D.; Mungai, A. (Eds.). In the spirit of ubuntu: ção entre o ubuntu, a ética e as religiões mun-
de meus artigos e capítulos de livros, Stories of teaching and research. Rotterdam: diais. O texto, intitulado Ubuntu: uma perspec-
South African Journal of Political Studies, v. Sense Publications, 2009b. p. 3-21. (Transgres- tiva africana sobre ética e dignidade humana,
29, n. 1, p. 49-69, 2002. (Nota
������������������
da entrevis- sions: Cultural Studies and Education). (Nota
������ 30-04-2010, está disponível em http://migre.
tada) da entrevistada) me/1Z3W0. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 13


“O ubuntu é ‘liberdade indivisível’”
Para me envolver com o Outro como sujeito, como indivíduo livre como eu mesmo, como
outro ser humano, eu também tenho de me tornar sujeito, reconhecendo nossa sujeição
comum à história, à contingência e ao destino, explica o teólogo norte-americano
Charles Haws

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

A
partir da ótica do ubuntu, a liberdade e a autonomia do indivíduo andam de mãos dadas com a res-
ponsabilidade pelos outros. É por isso que “ubuntu significa principalmente a interconexidade dos
seres humanos”, ou seja, seres fundamentalmente livres em relação – uma liberdade indivisível.
Para o teólogo norte-americano Charles Graham Haws, essa relação entre sujeitos livres ocorre
a partir do momento em que eles reconhecem sua “sujeição comum à história, à contingência e ao
destino”. “Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros. Sempre existimos tanto
no singular quanto no plural”, sintetiza.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Haws também aborda as relações entre o ubuntu e
o cristianismo. Para ele, “o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de ‘comunidade cristã’, lembrando-nos
de um tipo de kenosis na busca da justiça”, explica.
Além disso, o ubuntu nos ajuda também a compreender nossas relações com outros “sujeitos” não hu-
manos. Segundo Haws, “para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a
natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir
plenamente humano em relação com a humanidade apenas”.
Charles Graham Haws é formado em filosofia e ciências religiosas pelo Carson-Newman College, no Ten-
nessee, dos EUA. Também é mestre em teologia pela McAfee School of Theology, da Mercer University, de
Atlanta, nos EUA, com a dissertação Re/writing Tradition and the Tradition of Re/writing: The Crucified
God as the Foundation and Criticism of Christian Theology. É membro da American Academy of Religion e da
Society of Biblical Literature. Dentre outros, é autor do artigo Suffering, Hope, and Forgiveness: The Ubuntu
Theology of Desmond Tutu, publicado no Scottish Journal of Theology. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as noções relação ao ubuntu e que chama a minha de reconhecer minha própria liberdade
centrais para se compreender o atenção, algo que também Robert Orsi indivisível, de que eu sou quem eu sou
ethos do ubuntu? comunica no último Harvard Divinity em relação com outros. Envolvemo-nos
Charles Haws – Ubuntu significa princi- Bulletin. Para me envolver com o outro com o mundo, continua Orsi, através
palmente a interconexidade dos seres como sujeito, como um indivíduo livre das circunstâncias dentro das quais nos
humanos, que é uma determinação da como eu mesmo, como outros seres hu- encontramos junto com eles – é assim
compreensão dos seres humanos como manos, eu “também tenho de me tor- que eu compreendo o ubuntu.
seres fundamentalmente livres – livres, nar sujeito” através do “reconhecimen- Também é importante reconhecer
por exemplo, de qualquer limitação fora to de nossa sujeição comum à história, que o ubuntu é um termo sul-africa-
da pessoa individual. Como o traduz a à contingência e ao destino”. Eu tenho no que representa um ethos africano
proverbial expressão xhosa, ubuntu un-  Robert Orsi: historiador norte-americano e polissêmico humanista e religioso.
gamntu ngabanye abantu, “a humani- professor de estudos católicos da cátedra Gra- Variações do conceito proliferam nas
dade de cada indivíduo está idealmen- ce Craddock Nagle da Northwestern Universi- línguas banto, que se multiplicam na
ty, dos EUA. Foi professor da Fordham Univer-
te expressa na relação com outros” ou, sity, da Indiana University, da Harvard Divinity África central, oriental e meridional.
se me é permitido parafrasear Tutu, o School e da Harvard University. Também presi- Elas geralmente expressam comunita-
ubuntu é “liberdade indivisível”. É jus- diu a American Academy of Religion entre 2002 riedade, respeito, dignidade e genero-
e 2003. (Nota da IHU On-Line)
tamente essa tensão que me intriga em ��������������������������������������������
ORSI, Robert A. Theorizing Closer to Home. sidade.
Harvard Divinity Bulletin, v. 38, n. 1 e 2, p. 36, 2010. ����������������������
(Nota do entrevistado)

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IHU On-Line – Qual a contribuição da injustiça. expresso em uma desconsideração
teologia do reverendo Tutu para a geral pela comunidade e tradição,
compreensão do ubuntu? IHU On-Line – Para o senhor, “a teo- passou a ser uma parte central não
Charles Haws – Uma compreensão logia do ubuntu de Tutu é desafiado- só da ideologia americana, na qual
popular do ubuntu em evidência hoje ra para a compreensão dominante da De Tocqueville se concentrou, mas
deriva do uso do conceito como nome teologia ocidental”. Por quê? também da teologia ocidental. A esse
de um sistema operacional de código- Charles Haws – O ubuntu se distingue individualismo do Ocidente, contra-
fonte aberto desenvolvido pela Linux tanto do individualismo cartesiano põe-se a ideia da “vontade geral”
. O sistema é movido por uma filoso- quanto do coletivismo homogêneo da de Rousseau: o indivíduo se submete
fia de software livre. De fato, como submissão à “vontade geral” de Rous- à república aderindo ao contrato so-
visa a difundir e a levar os benefícios seau. Em A democracia na América, cial, e o contrato social representa a
do software para todas as partes do De Tocqueville compara o pai da filo- conformação ou homogeneização dos
mundo, a filosofia ubuntu expressa sofia moderna, Descartes, com o pai interesses individuais em interesses
pela Linux enfoca a liberdade, a li- do protestantismo, Lutero, satirizan- coletivos. O indivíduo transfere seus
berdade de “baixar, rodar, copiar, dis- do: “Quem não percebe que Lutero, direitos à comunidade para suprimir
tribuir, estudar, compartilhar, mudar Descartes e Voltaire empregaram o a anarquia e alcançar segurança da
e melhorar seu software para qual- mesmo método?”. Seu método co- vida e da propriedade; seu propósito
quer propósito, sem pagar taxas de li- mum de dependência de si mesmo, é formar uma sociedade a que ele se
cenciamento”; de “usar seu software  Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): filó- submeteria completamente.
na língua de sua escolha”; e de “usar sofo franco-suíço, escritor, teórico político e De acordo com o ubuntu, nenhuma
softwares mesmo que trabalhem sob compositor musical autodidata. Uma das figu- dessas opções combina satisfatoria-
ras marcantes do Iluminismo francês, Rousse-
uma deficiência”. au é também um precursor do romantismo. As mente a liberdade e a autonomia do
A compreensão popular apresenta- ideias iluministas de Rousseau, Montesquieu indivíduo com sua responsabilidade
da pelo software da Linux dificilmen- e Diderot, que defendiam a igualdade de to- pelos outros; nenhuma das opções o
dos perante a lei, a tolerância religiosa e a
te constitui a concepção robusta que livre expressão do pensamento, influenciaram chama a assumir o fato de ser livre
Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se a Revolução Francesa. Contra a sociedade de somente na medida em que está in-
concentra não na liberdade de indiví- ordens e de privilégios do Antigo Regime, os terconectado, e que sua liberdade é
iluministas sugeriam um governo monárquico
duos, mas na interconexidade desses ou republicano, constitucional e parlamentar. inseparável de sua busca por justiça.
indivíduos ou, como eu disse acima, na (Nota da IHU On-Line) De fato, a compreensão teológica do
“liberdade indivisível”. É isso que me  Alexis Carlis Clerel de Tocqueville (1805- ubuntu por parte de Tutu afirma que
1859): pensador político e historiador francês,
atrai tanto no conceito, no seu poten- autor do clássico A democracia na América Deus criou a humanidade indissolu-
cial: o fato de compreender a liberda- (São Paulo: Martins Fontes, 1998-2000). (Nota velmente interconectada. Mas o in-
de em relação a certo tipo de unidade, da IHU On-Line) dividualismo prolifera em muitas te-
 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico
um tipo de unidade cuja possibilidade e matemático francês. Notabilizou-se sobretu- ologias ocidentais, tanto acadêmicas
não reside na mesmidade, mas na jus- do pelo seu trabalho revolucionário da Filoso- quanto eclesiais: elas tendem a cen-
tiça. É isso que Tutu diz em Hope and fia, tendo também sido famoso por ser o in- tralizar o indivíduo em termos de ex-
ventor do sistema de coordenadas cartesiano,
Suffering (p. 23): “Para que haja uni- que influenciou o desenvolvimento do cálculo periência religiosa – o indivíduo tem
dade, ela deve se basear, em última moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- uma revelação pessoal, muitas vezes
análise, no valor da justiça”. dador da filosofia e matemática modernas, ins- inexplicável – ou em termos de auto-
pirou os seus contemporâneos e gerações de
Agora, o ubuntu avança rumo à filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ridade religiosa – o crente individual
justiça, não à vingança; ele se dirige ele iniciou a formação daquilo a que hoje se é responsável diante de Deus por sua
rumo à restauração, não à retaliação. chama de racionalismo continental (suposta- aceitação ou rejeição do evangelho.
mente em oposição à escola que predomina-
A teologia de Tutu entrelaça o ubun- va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição O ubuntu enfoca não só a divisão de
tu no tecido da história cristã, afir- filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. indivíduos, mas também a divisão de
mando que Deus criou a humanidade (Nota da IHU On-Line) grupos, a confrontação de grupo con-
 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo ale-
indissoluvelmente interconectada. A mão, considerado o pai espiritual da Reforma tra grupo.
declaração do ubuntu é a declaração Protestante. Foi o autor da primeira tradução Tutu acreditava que esse era o caso
de uma esperança transformadora, da Bíblia para o alemão. Além da qualidade da Igreja sul-africana branca na ques-
da tradução, foi amplamente divulgada em
uma esperança por reconciliação e sua decorrência da sua difusão por meio da im- tão do apartheid, cuja cumplicidade
concretização em meio à vida huma- prensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. se refletiu fortemente nas convicções
na, que está fragmentada e repleta de Sobre Lutero, confira a edição 280 da IHU On- teológicas da Igreja. Se a Igreja sul-
Line, de 03-11-2008, intitulada Reformador da
 Confira nas Notícias do Dia 04-08-2007 do Teologia, da igreja e criador da língua alemã. africana branca não se considerava
site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU: O material está disponível para download em responsável por intervir, por condenar
“‘Não é fácil derrotar a Microsoft”. Uma con- http://bit.ly/duDz1j. (Nota da IHU On-Line) a sistemática segregação do apartheid,
versa com o criador do Ubuntu: http://migre.  Voltaire (1694-1778): pseudônimo de Fran-
me/2K6AY (Nota da IHU On-Line) çois-Marie Arouet, poeta, ensaísta, dramatur- então ela não tinha qualquer percep-
Google. About Ubuntu: The Ubuntu Story.
��������� go, filósofo e historiador iluminista francês. ção de sua conexidade com os negros.
Disponível em: http://www.ubuntu.com/ Uma de suas obras mais conhecidas é o Dicio-
products/whatisubuntu. Acesso em: 25 maio nário Filosófico, escrito em 1764. (Nota da IHU
��������
2010. (Nota do entrevistado) On-Line) IHU On-Line – A partir da ética do
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 15
mundo, como é possível compreen- “Para me envolver com são responsáveis? O que significaria se,
der a importância e o sentido da re- olhando pela ótica do ubuntu, os EUA
conciliação e da justiça? o outro como sujeito, “não se sentissem ameaçados pelo
Charles Haws – Citando Derrida10, fato de outros serem capazes e bons”
poderíamos dizer que a afirmação da eu também tenho de me e “se situassem em um todo maior e
conexidade em meio ao apartheid por fossem diminuídos quando outros são
parte de Tutu – que os africânderes11 tornar sujeito através do humilhados ou diminuídos, quando ou-
não estavam livres dos povos xhosa ou tros são torturados ou oprimidos”13?
zulu (ou vice-versa) – era efetivamen- reconhecimento de nossa
te desobediência civil, “não desafio da IHU On-Line – Qual o valor e o signifi-
lei, mas desobediência com relação a sujeição comum à cado do ser humano e da vida huma-
alguma disposição legislativa em nome na para o ubuntu?
de uma lei melhor ou superior”12. A lei história, à contingência Charles Haws – A autonomia luterano-
superior do ubuntu é a justiça em um cartesiana mencionada anteriormente
sentido total e restaurador, não par- e ao destino” impregna o sujeito humanista, pois,
cial ou retributivo. A “ética” ubuntu como “o ser humano é a medida de
pressupõe a reconciliação na medida todas as coisas”, ele é o autor de to-
em que define justiça em termos de globalizado, da exploração de so- dos os sentidos e tem o domínio sobre
socialidade, de relação com o Outro; ciedades abertas e da tentativa de si mesmo e seu mundo. Heidegger14
para alcançar a justiça, especialmente afirmar (embora de maneiras calcu- questiona essa tradição no Ocidente:
em contextos repletos de divisões, é ladas) as regras da lei democrática e “Pelo fato de estarmos falando contra
necessário restaurar as relações entre dos direitos humanos, o que o ubun- o ‘humanismo’, as pessoas temem uma
o meu próprio “eu” e o meu próprio tu busca? Como professor visitan- defesa do desumano e uma glorificação
Outro. A justiça definida dessa manei- te do programa “Semester at Sea”, da brutalidade bárbara. Pois, o que é
ra equivale à lei superior que o ubuntu durante a primavera de 2007, Tutu mais ‘lógico’ do que isto: quem nega o
quer continuamente nos trazer à lem- discutiu o clima de medo existente humanismo, não lhe resta senão afir-
brança. nos EUA depois do 11 de setembro mar a desumanidade? (...) Deveria es-
Assim, em uma era de terrorismo – uma terrível atmosfera de insegu- tar mais claro agora que a oposição ao
rança. Mas Tutu tinha a esperança ‘humanismo’ de forma alguma implica
10 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo de que os norte-americanos veriam na defesa do desumano, mas, ao con-
francês, criador do método chamado des- sua segurança vinculada com a se-
construção. Seu trabalho é associado, com trário, abre outras perspectivas”.15
frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- gurança de todos os demais. Lembro TUTU, Desmond. No Future Without For-
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modernismo. Entre as principais influências de de assistir aos acontecimentos do giveness. ����������������������������������
New York: Doubleday, 1999, p. 31.
Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin dia 11 de setembro na televisão da (Nota do entrevistado)
Heidegger. Entre sua extensa produção, figu- 14 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
ram os livros Gramatologia (São Paulo: Pers- sala de aula, estupefato e atônito, alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
pectiva, 1973), A farmácia de Platão (São Pau- junto com todos os meus colegas, (1927). A problemática heideggeriana é am-
lo: Iluminuras, 1994), O animal que logo sou praticamente sem entender o que pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
(São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina (São sobre o humanismo (1947), Introdução à meta-
Paulo: Estação Liberdade, 2004) e Força de lei estava acontecendo. Qualquer que física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line
(São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). De- tenha sido a justificativa para come- publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo
dicamos a Derrida a editoria Memória da IHU çar a Guerra no Iraque, a presença O pensamento jurídico-político de Heidegger
On-Line edição 119, de 18-10-2004, disponí- e Carl Schmitt. A fascinação por noções fun-
vel para download em http://migre.me/s8bA. norte-americana no Oriente Médio dadoras do nazismo, disponível para download
(Nota da IHU On-Line) se concentra agora no “terrorismo”, em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger,
11 Os bôeres, bóeres ou boeres (também em desmantelar suas raízes para que confira as edições 185, de 19-06-2006, intitu-
denominados africânderes): descendentes de lada O século de Heidegger, disponível para
colonos calvinistas dos Países Baixos e também seus ramos não alcancem as praias download em http://migre.me/uNtv, e 187, de
da Alemanha e França, tendo-se estabelecido norte-americanas de novo. 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
na África do Sul nos séculos XVII e XVIII, cuja Não faço parte da geração de nor- trução da metafísica, que pode ser acessado
colonização disputaram com os britânicos. De- em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda,
senvolveram uma língua própria, o africânder, te-americanos que seguiu Bush para o o nº 12 do Cadernos IHU Em Formação inti-
derivado do neerlandês com influências limi- Iraque. Mas faço parte da geração de tulado Martin Heidegger. A desconstrução da
tadas de línguas indígenas, do malaio e do in- norte-americanos que precisam lidar metafísica, que pode ser acessado em http://
glês. Atualmente, o africânder é uma das onze migre.me/uNtL. Confira, também, a entrevis-
(Nota da IHU
línguas oficiais da África do Sul. ��������� com suas consequências, a herança do ta concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
On-Line) 11 de setembro e de um clima interna- revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponí-
BIRNBAUM, Jean; DERRIDA, Jacques. Learn-
������������������������������������ cional de radicalização e antecipação. vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O
ing to Live Finally. New York: Allen & Unwin, biologismo radical de Nietzsche não pode ser
2007, p. 43. ���������������������������������
Quanto à ideia de desafiar a lei Se o ubuntu realmente é um conceito minimizado, na qual discute ideias de sua con-
em nome da lei, veja o ensaio de Derrida no robusto, devo perguntar qual é seu pa- ferência A crítica de Heidegger ao biologismo
volume editado por ele e dedicado a Mande- pel nesse contexto. Como os “interes- de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte
la: DERRIDA, Jacques. The Laws of Reflection: integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da
Nelson Mandela, in Admiration. In: DERRIDA, ses nacionais” do “meu” país se rela- diferença - pré-evento do XI Simpósio Interna-
Jacques; TILILI, Mustapha (eds.). For Nelson cionam com o ubuntu? Com que Outro cional IHU: O (des)governo biopolítico da vida
Mandela. New York: Seaver, 1987, p. 11-42. os EUA estão relacionados e por quem (Nota da IHU On-Line)
humana. ���������
(Nota do entrevistado) ��������������������������������������
HEIDEGGER, Martin. Letter on “Human-

16 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


De fato, o apartheid seria a bru- grafo Anthony Sampson22, Mandela23
talidade desumana e bárbara a ser “O ubuntu combina foi educado com a noção africana
denunciada, e o ubuntu ofereceria da fraternidade humana, ou ubun-
um “humanismo” alternativo ao sa- satisfatoriamente a tu, que descrevia uma qualidade de
bor do apartheid, de gosto amargo. responsabilidade e compaixão mútu-
O ubuntu criticaria o sujeito huma- liberdade e a autonomia as.24 Mandela contava histórias so-
nista como dominador e autônomo bre uma pessoa que viajava por um
– no caso do apartheid sul-africano, do indivíduo com sua país e parava em um vilarejo para
o africânder como superior – definin- pedir água e comida. O que levava
do o “sujeito”, pelo contrário, como responsabilidade pelos os habitantes da aldeia a dar aquilo
relacional... Junto com a obra de de que o estrangeiro necessitava era
Lévinas16, Derrida, Nancy17 e outros, outros” o ubuntu, diz ele. Esse certamente
o que eu encontro no ubuntu é um parece ser o ethos cultivado pelas
tipo de movimento duplo que “não em relação uns com os outros. Não histórias de Jesus em que ele anda
converte a relação anárquica e assi- existe um eu singular que preexis- pelo mundo greco-romano somente
métrica com o Outro na visão sinóti- ta a nossas relações com os outros; com uma túnica e sandálias. Certa-
ca da totalidade social, nem institui sempre existimos tanto no singular mente concordo que certos aspectos
um novo princípio de justiça basea- quanto no plural; seres singulares das histórias que os cristãos contam
do no ideal comunitário dos valores existem apenas em uma “socialida- sobre Jesus ilustram o ubuntu, mas
morais compartilhados”18. de” original. Essa é a ideia do con- considero, em última análise, que o
Voltando a Heidegger, uma das ceito de compearance – que conside- ubuntu transcende, inclusive ultra-
percepções mais importantes e te- ro muito semelhante ao ubuntu em passa, as fronteiras do cristianismo.
máticas centrais de Jean-Luc Nancy sua acepção mais básica – que apa- De fato, o ubuntu é tanto humanis-
é que os indivíduos de forma alguma rece em The Inoperative Community ta quanto religioso (talvez sem afirmar
estão fundamentalmente separados (1991) de Nancy, no ensaio em Poli- uma dicotomia entre ambos os aspec-
um do outro, o que é muitíssimo se- tical Theory intitulado La Comparu- tos). Eu diria que ele cultiva uma re-
melhante à concepção de Heidegger tion/The Compearance (1992) e em ligião humanista ou um humanismo
a respeito de Mitsein [“ser-com”] Being Singular Plural. Ou, nas pala- religioso que milita contra sua própria
em Ser e tempo (1929). Apesar da vras de Derrida, já estamos envolvi- colonização. Considerando que as co-
radical dissolução da comunidade dos na “relação com o Outro antes de munidades tendem a neutralizar as
na era pós-moderna, Nancy amplia qualquer socius organizado”19. E, no diferenças, tratando todos os mem-
sua perspicácia filosófica para nos entanto, embora existamos em uma bros da mesma forma (por exemplo,
lembrar de nossa existência singu- “socialidade” original, não devemos o outro pertence à minha comunidade
lar-plural – que sempre-já existimos conceber “o ‘comum’ [commun]” somente na medida em que é igual a
ism”. In: MCNEILL, William (ed.). Pathmarks. como “o como-um [comme-un]”20, mim), e a definir a si mesmas segundo
New York: Cambridge University Press, 1998, pois a própria “respiração de toda
p. 263. (Nota do entrevistado) ‘comunidade’”, explica Derrida, é 22 Anthony Sampson (1926-2004): escritor
16 Emmanuel Lévinas (1906-1995): filósofo e jornalista britânico, formado na University
francês nascido numa família judaica na Lituâ- “um certo desenredamento inter- of Oxford em 1950. Mudou-se para a África do
nia. Bastante influenciado pela fenomenologia ruptor (...) do ‘vínculo social’”21. Sul, onde se tornou editor da revista antiapar-
de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim theid Drum. Na África do Sul, conheceu vários
como pelas obras de Martin Heidegger e Franz líderes do Congresso Nacional Africano, in-
Rosenzweig, o pensamento de Lévinas parte IHU On-Line – Como o ubuntu pode cluindo Steve Biko e Nelson Mandela, de quem
da ideia de que a Ética, e não a Ontologia, é nos ajudar a entender a noção de se tornou amigo íntimo e que o escolheu para
a Filosofia primeira. É no face a face humano “comunidade cristã”? Podemos dizer escrever sua biografia depois de 26 anos de
que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do prisão: Mandela: The Authorised Biography,
Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe que Jesus também viveu o ethos do publicada em 1999. (Nota da IHU On-Line)
vem à ideia o infinito. A IHU On-Line dedicou ubuntu? 23 Nelson Rolihlahla Mandela (1918): advo-
sua edição 277, de 18-10-2008, a Lévinas e a Charles Haws – Como escreve o bió- gado, líder rebelde e ex-presidente da África
majestade do Outro, disponível em http://mi- do Sul de 1994 a 1999. Principal representante
gre.me/26iFE (Nota da IHU On-Line) do movimento antiapartheid, como ativista,
17 Jean-Luc Nancy (1940-): filósofo francês, sabotador e guerrilheiro. Considerado pela
considerado um dos pensadores mais influen- 19 DERRIDA, Jacques. The Politics of Friend- maioria das pessoas um guerreiro em luta pela
tes da França contemporânea, professor emé- ship. Trad. Gabriel Motzkin. The Journal of liberdade, era tido pelo governo sul-africano
rito de filosofia na Universidade Marc Bloch de Philosophy, v. 85, n. 11, p. 633, 1988. (Nota
������ como um terrorista. Em 1990 foi-lhe atribuí-
Estrasburgo e colaborador das Universidades do entrevistado) do o Prêmio Lênin da Paz, recebido em 2002.
de Berkeley e Berlim. De sua obra, foram pu- 20 DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. A Confira, nas Notícias do Dia de 19-07-2010,
blicados em português os livros O mito nazista Taste for the Secret. ���������������������
Trad. Giacomo Donis. as notícias ONU declara ‘Dia Internacional de
(Iluminuras, 2002) e O título da letra: Uma Cambridge: Polity Press, 2001, p. 25. (Nota do Mandela’ em aniversário de ex-líder, disponí-
leitura de Lacan (Escuta, 1991). (Nota da IHU
��������� entrevistado) vel em http://migre.me/26mWe, e A homena-
On-Line) DERRIDA, Jacques. Faith and Knowledge:
��� gem do Soweto a Mandela, disponível http://
���ZIAREK, Ewa Plonowska. An Ethics of Dis- The Two Sources of “Religion” at the Limits (Nota da IHU On-Line)
migre.me/26mQW. ���������
sensus: Postmodernity, Feminism, and the of Reason Alone. In: DERRIDA, Jacques; VAT- Veja SAMPSON, Anthony. Country Boy: 1918-
��������
Politics of Radical Democracy. ���������������
Stanford: Stan- TIMO, Gianni (eds.). Religion. Stanford: Stan- 1934. In: Mandela: The Authorized Biography.
ford University Press, 2001, p. 77. (Nota do ford University Press, 1998, p. 64. (Nota
���������
do New York: Alfred A. Knopf, 2008. (Nota do en-
entrevistado) entrevistado) trevistado)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 17


uma lógica de oposição (por exemplo, IHU On-Line – A partir do ethos do
excluindo o outro que não é como eu)
“O ubuntu não pode ubuntu, qual a compreensão da nos-
– que são fatores muito atuantes no sa relação com a natureza e da pro-
cristianismo –, o ubuntu nos devolve
se limitar a dizer que o teção das vidas de seres não huma-
à interconexidade dos seres humanos nos?
sem a presunção de semelhança.25
humano só pode se sentir Charles Haws – Se compreendemos
Além disso, eu identificaria, com corretamente que “a humanidade de
Nancy, “a essência do cristianismo
plenamente humano em cada indivíduo se expressa em ter-
como abertura: uma abertura do ‘eu’ mos ideais na relação com outros”
e do ‘eu’ como abertura”26. Assim, eu
relação com a ou que “eu sou eu mesmo somente
diria que o ubuntu nos ajuda a com- em relação com outros”, temos de
preender a noção de “comunidade
humanidade apenas” perguntar até que ponto este “eu”
cristã” lembrando-nos de um tipo de – assim como esse “outro” – está
kenosis27 na busca da justiça que não à bondade universal de Deus”.28 Essa limitado ao gênero homo. De fato,
espera para perguntar a quem você ideia de reconciliação e de perdão é as questões sobre o que constitui a
reza (ou não reza). essencial ao cristianismo. O perdão “humanidade” e qual será o legado
da humanidade por Deus em Cristo e do “humanismo” se renovam, pois a
IHU On-Line – O senhor afirma que, à a formação da comunidade sobre esse própria ideia de uma “humanidade”
luz do ubuntu, “o perdão (…) deve se fundamento caracteriza o cristianismo compartilhada – algo que o ubuntu
mostrar mais profundamente quan- por excelência. Ter fé na possibilidade defenderia – sofre sob o peso da his-
do toda a esperança está perdida”. da reconciliação e do perdão segue e tória e capenga em crise. Para que
Em sociedades com forte violência e dá esperança quando toda a esperança o ubuntu não se associe ao mito da
pobreza, como as africanas e as la- está perdida. Tutu compreende que o predominância da humanidade sobre
tino-americanas, qual a contribuição perdão não é decorrência de mérito, a natureza ou l’animot (como escre-
do ubuntu para a construção de uma que a reconciliação procede da con- ve Derrida), ele não pode se limitar a
sociedade mais justa? vicção ubuntu – a percepção da inter- dizer que o humano só pode se sentir
Charles Haws – Escrevi em um artigo conexidade. plenamente humano em relação com
anterior que, para Tutu, “Deus, em O perdão, mesmo em sociedades a humanidade apenas. Repetindo: o
Jesus Cristo, reconcilia a humanidade marcadas por violência e pobreza, efe- que é o “humano” e de que forma
com o divino, afirmando a particula- tiva-se, de acordo com o ubuntu, ao ele se difere do “animal”?
ridade humana na particularidade de buscar a reconciliação, ao recusar per- Na busca do ubuntu por cultivar co-
Jesus Cristo, ao mesmo tempo em petuar ciclos de sujeição à retaliação munidade, responsabilidade e justiça
que também conecta a humanidade ou de responsabilização do tipo “toma nos seres humanos, ele certamente se
lá, dá cá”. O ubuntu nos coloca estas opõe à exploração, presumivelmente
25 Veja MORIN, Maria-Eve. Putting Commu- perguntas: cremos que pertencemos também à exploração da natureza.
nity Under Erasure: Derrida and Nancy on the a um todo maior e somos diminuídos Mesmo assim, a concepção científica
Plurality of Singularities. Culture Machine, 8, ocidental da natureza, que provém do
2006. (Nota do entrevistado)
quando outros são humilhados ou di-
����NANCY, Jean-Luc. Dis-enclosure: The De- minuídos, e, parafraseando Mandela, humanismo renascentista e glorifica a
construction of Christianity. Trad. ��������
Bettina vamos perdoar, procurar a reconcilia- capacidade humana de explorar e con-
Bergo, Gabriel Malenfant e Michael B. Smith. trolar a natureza, vendo a natureza
In: CAPUTO, John D. (ed.). Perspectives in
ção – viver de acordo com o ubuntu – a
Continental Philosophy. New York: Fordham fim de possibilitar que as comunidades agora como uma distribuição probabi-
University Press, 2008, p. 145. ������������
(Nota do en- ao nosso redor sejam capazes de me- lística de energia com uma tendência
trevistado) à entropia, não facilita um senso de
27 Kenosis: palavra grega que significa ‘es-
lhorar?
vaziamento’, ‘aniquilamento’. Tornou-se um justiça mais do que humano. Talvez os
conceito importante para a teologia cristã, HAWS, Charles G. Suffering, Hope, and For-
��� recentes desastres ambientais e suas
pelo uso que faz Paulo de Tarso, na Carta aos giveness: The Ubuntu Theology of Desmond devastações façam essa questão voltar
Filipenses, capítulo 2, versículo 8. ���������
(Nota da Tutu. Scottish Journal of Theology, v. 62, p.
IHU On-Line). 483, 2009. (Nota do entrevistado) à mesa de discussão.

www.ihu.unisinos.br

18 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


“Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu
Para o teólogo congolês e doutor em sociologia Bas’Ilele Malomalo, toda existência é
sagrada para os africanos, ou seja, há um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso,
“o Ubuntu retrata a cosmovisão do mundo negro-africano”

Por Moisés Sbardelotto

“S
ou porque nós somos”: em uma frase, esse seria o resumo da ética ubuntu. Porém, é na
construção histórica e cultural dessa ética que nasce na África, que se encontra a sua
riqueza. Para o filósofo e teólogo congolês Bas’Ilele Malomalo, toda existência é sagrada
para os africanos, ou seja, há um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso, “o ubun-
tu retrata a cosmovisão do mundo negro-africano”.
É por isso que o suposto antropocentrismo que poderia estar por trás do ubuntu é “relativista”, segundo
Malomalo, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “O ser humano africano sabe que nem tudo
depende da sua vontade”, afirma. “Esta depende também da vontade dos ancestrais, dos orixás”, em suma,
do sagrado.
Por outro lado, ubuntu e felicidade são conceitos que andam juntos: “Na África, a felicidade é concebida
como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro”. E quem é o meu “outro”? “São meus orixás, an-
cestrais, minha família, minha aldeia, os elementos não humanos e não divinos, como a nossa roça, nossos
rios, nossas florestas, nossas rochas”. Dessa forma, resume Malomalo, para a filosofia africana, “o ser huma-
no tem uma grande responsabilidade para a manutenção do equilíbrio cósmico”.
Bas’Ilele Malomalo é natural do Congo, África, e possui graduação em Filosofia pelo Grand Seminaire Fra-
çois Xavier – Filosoficum e em teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp. É mestre em
ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e é doutorando em sociologia pela Universida-
de Estadual Paulista – Araraquara. Atualmente é pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas
Africanas e da Diáspora Negra da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Cladin-Unesp.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é e quais as ori- ubuntu retrata a cosmovisão do mun- apontados: dos deuses e antepassados,
gens do ubuntu? do negro-africano. É o elemento cen- dos humanos e da natureza.
Bas’Ilele Malomalo – Etimologicamen- tral da filosofia africana, que concebe Com as migrações intercontinen-
te, ubuntu vem de duas línguas do o mundo como uma teia de relações tais e a emergência de outras civili-
povo banto, zulu e xhona, que habi- entre o divino (Oludumaré/Nzambi/ zações em outros espaços geográficos,
tam o território da República da África Deus, Ancestrais/Orixás), a comuni- essa mesma noção vai se expressar em
do Sul, o país do Mandela. Do ponto dade (mundo dos seres humanos) e a outros povos que pertencem às socie-
de vista filosófico e antropológico, o natureza (composta de seres animados dades ditas pré-capitalistas ou pré-
 Nelson Rolihlahla Mandela (1918): advoga- e inanimados). Esse pensamento é vi- modernas. É dessa forma que se pode
do, líder rebelde e ex-presidente da África do venciado por todos os povos da África afirmar que essa forma de conceber
Sul de 1994 a 1999. Principal representante do negra tradicional e é traduzido em to- o mundo, na sua complexidade, é um
movimento antiapartheid, como ativista, sabo-
tador e guerrilheiro. Considerado pela maioria das as suas línguas. patrimônio de todos os povos tradi-
das pessoas um guerreiro em luta pela liber- A origem do ubuntu está na nossa cionais ou pré-modernos. Cada um
dade, era tido pelo governo sul-africano como constituição antropológica. Pelo fato expressa isso através de suas línguas,
um terrorista. Em 1990 foi-lhe atribuído o Prê-
mio Lênin da Paz, recebido em 2002. Confira, de a África ser o berço da humanida- mitos, religiões, filosofias e manifesta-
nas Notícias do Dia de 19-07-2010, as notícias de e das civilizações, bem cedo nossos ções artísticas.
ONU declara ‘Dia Internacional de Mandela’ ancestrais humanos desenvolveram Como elemento da tradição afri-
em aniversário de ex-líder, disponível em
http://migre.me/26mWe, e A homenagem do a consciência ecológica, entendida cana, o ubuntu é reinterpretado ao
Soweto a Mandela, disponível http://migre. como pertencimento aos três mundos longo da história política e cultural
me/26mQW. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 19


pelos africanos e suas diásporas. Nos Se estes revelarem, através de um so-
anos que vão de 1910-1960, ele apa-
“Ubuntu é o elemento nho, de um Ifá, de um sacerdote, do
rece em termos do panafricanismo e seu pai ou da sua mãe, um aconteci-
da negritude. São esses dois movimen-
central da filosofia mento, será preciso prestar atenção.
tos filosóficos que ajudaram a África a Por outro lado, o antropocentrismo
lutar contra o colonialismo e a obter
africana, que concebe o africano entende que uma boa prática
suas independências. Após as indepen- religiosa só existe naquela que traz a
dências, estará presente na práxis fi-
mundo como uma teia de felicidade para o ser humano. Como
losófica do Ujama de Julius Nyerere, este não pode ser concebido fora das
na Tanzânia; na filosofia da bisoité ou
relações entre o divino, relações sociais, na África, a felicida-
bisoidade (palavra que vem da língua de é concebida como aquilo que faz
lingala, e traduzida significa “nós”) de
a comunidade e bem a toda coletividade ou ao outro.
Tshiamalenga Ntumba; nas práticas Os outros são meus orixás, ancestrais,
políticas que apontam para as reconci-
a natureza” minha família, minha aldeia, os ele-
liações nacionais nos anos de 1990 na mentos não humanos e não divinos,
África do Sul e outros países africanos gras, movimentos negros, congadas, como a nossa roça, nossos rios, nossas
em processo da democratização. moçambique, imprensas negras. florestas, nossas rochas. Dessa forma,
A tradução da ideia filosófica que para a filosofia africana, o ser humano
veicula depende de um contexto cul- IHU On-Line – Como podemos com- tem uma grande responsabilidade para
tural a outro, e do contexto da filoso- preender a religião ou o sagrado por a manutenção do equilíbrio cósmico.
fia política de cada agente. Na Repú- meio do ubuntu? De que forma ele
blica Democrática do Congo, aprendi tenciona a noção religioso-transcen- IHU On-Line – Em uma época de crise
que ubuntu pode ser traduzido nestes dental? ecológica e ambiental, como o ubun-
termos: “Eu só existo porque nós exis- Bas’Ilele Malomalo – Para os africanos tu pode nos ajudar a desenvolver
timos”. E é a partir dessa tradução que e seus descendentes, toda existência uma nova relação com os demais se-
busco estabelecer minhas reflexões é sagrada, quer dizer, há um pouco do res não humanos?
filosóficas sobre a existência. Muitos divino em tudo o que existe. A religião, Bas’Ilele Malomalo – Do ponto de vis-
outros intelectuais africanos vêm se como instituição social e sistema sim- ta filosófico, a crise planetária atual
servindo da mesma noção para falar bólico, apresenta-se como o espaço encontra suas raízes na expansão oci-
da “liderança coletiva” na gestão da privilegiado de alimentação da “cons- dental desde a Idade Média até o sur-
política e da vida social. ciência ubuntuística”. Através de seus gimento da modernidade. A hegemonia
ritos, seus sacerdotes e adeptos a rea- da “razão indolente” (Boaventura de
IHU On-Line – Como um princípio ético tualizam. Os mitos, as celebrações, os Sousa Santos) nas suas manifestações
nascido na África, que manifestações cantos e encantamentos desempenham através do colonialismo, positivismo, ra-
do ubuntu podemos encontrar na cul- essa função de nos religar com nossos cismo científico, capitalismo selvagem,
tura brasileira ou afro-brasileira, tão deuses, antepassados, com a comuni- tem sido o instrumento de aprofunda-
marcada por raízes africanas? dade, conosco mesmos, com o cosmos mento dos males da nossa civilização.
Bas’Ilele Malomalo – É preciso voltar e a natureza. Além dos ritos sagrados, Esse pensamento absolutizou tanto o
à história para capturar as manifes- os profanos também desempenham a homem que este voltou-se contra suas
tações do ubuntu em suas diásporas mesma função mística. Na África, os divindades, contra a natureza e contra
transatlânticas. No Brasil, a noção ritos de iniciação, de entronização dos seus semelhantes. O seu “antropocen-
do ubuntu chega com os escravizados reis ou rainhas estão sempre conecta- trismo absolutista” criou as condições
africanos a partir do século XVI. Estes dos com a ancestralidade. de destruição da sua própria espécie e
trouxeram a sua cultura nos seus cor- das espécies não humanas.
pos, e ela foi reinventada a partir do IHU On-Line – Dentro da ética ubun- Qual é a saída que os pensamentos
novo contexto da escravidão. Por isso, tu, qual é o papel do ser humano e alternativos têm sugerido? Boaventura
falar de ubuntu no Brasil é falar de so- da comunidade?
lidariedade e resistência. Como outros Bas’Ilele Malomalo – A concepção afri-  Boaventura de Sousa Santos (1940-): dou-
tor em sociologia do direito pela Universidade
registros histórico-antropológicos que cana do mundo é antropocêntrica. Não de Yale e professor catedrático da Faculdade
expressam o “ubuntu afro-brasileiro”, no sentido absolutista da filosofia ilu- de Economia da Universidade de Coimbra. É
podemos citar os quilombos, as religi- minista ocidental, que pensa que o ser um dos principais intelectuais da área de ci-
ências sociais, com mérito internacionalmente
ões afro-brasileiras, irmandades ne- humano é o centro do mundo e que reconhecido, tendo ganho especial populari-
ele pode tudo e pode fazer tudo o que dade no Brasil, principalmente, depois de ter
 Julius Kambarage Nyerere (1922-1999): quiser. O antropocentrismo africano é participado nas três edições do Fórum Social
foi presidente da ex-república da Tanganica Mundial em Porto Alegre. Confira a entrevista
(atual Tanzânia), desde sua independência em “relativista”. Quer dizer, o ser humano especial concedida por Boaventura às Notícias
1962 e, posteriormente, da Tanzânia, até se africano sabe que nem tudo depende do Dia do IHU, em 30-01-2010, disponível em
retirar da política em 1985. Em 1985, foi-lhe da sua vontade. Esta depende também http://migre.me/2K7Hy, intitulada O Fórum
atribuído o Prêmio Lênin da Paz. (Nota da IHU Social Mundial desafiado por novas perspecti-
On-Line). da vontade dos ancestrais, dos orixás. (Nota da IHU On-Line)
vas. ���������

20 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


de Sousa Santos alega que é preciso
acionar a “razão cosmopolita”; Edgar
“Na República ritos africanos têm por função peda-
gógica lembrar aos vivos o seu paren-
Morin sugere o uso de uma epistemo-
logia da complexidade; Leonardo Boff
Democrática do Congo, tesco com os seres do mundo invisível
e visível (seres humanos e seres não
tem sugerido a espiritualidade ecoló-
gica. É na busca da união umbilical,
aprendi que o ubuntu humanos). Todos os mitos africanos se
pautam nessa lógica. Como os mitos
afirma Boff, que se encontraria a sal-
vação da humanidade, a superação da
pode ser traduzido judaicos, os mitos africanos nos infor-
mam que os seres humanos têm um
crise ecológica atual.
Na filosofia africana, Tshiamalenga
nestes termos: ‘Eu só pouco de divino; cada um é filho de um
orixá; e um pouco da natureza. Conta
Ntumba tem interpretado o ubuntu
em termos de Bisoidade. Tal práti-
existo porque nós um mito da criação que Oludumaré
(Deus supremo) deu ao orixá Obata-
ca se caracterizaria pela abertura ao
diferente, encará-lo como parte de
existimos’” lá a missão de criar o ser humano, e
este o fez a partir do barro (elemento
nós. Nessa direção, o mundo da fé, da natureza). Eis a nossa irmandade
das divindades, dos orixás, dos ances- feito isso, poderiam ter condições de planetária. A cosmovisão africana do
trais deve dialogar com o mundo dos cuidar do meio em que vivem. Insisto mundo tem uma importância no sen-
seres humanos e não humanos (natu- nisso, porque há um certo pensamento tido de contribuir para o pensamento
reza/cosmos). Esse conceito vislumbra ambientalista ligado à razão indolente. ecológico contemporâneo.
o encontro ético e político do “Nós”. Muitos falam do meio ambiente para
Trata-se do “nós ecológico”. Para esse lucrar. Essa opção leva esses ativistas IHU On-Line – Em uma sociedade
filósofo congolês, a existência significa e cientistas a ocultar as misérias huma- embasada em valores ocidentais e
uma interação entre as três dimensões nas. O ubuntu é uma crítica à visão sim- modernos como a nossa, que ques-
da cosmovisão africana. As crises polí- plista e interesseira. Pensar o desenvol- tionamentos políticos, econômicos e
ticas, econômicas, culturais e sociais vimento ambiental nessa perspectiva é sociais o ubuntu pode fomentar?
que têm afetado o continente africa- perceber, como Boff, que deve se levar Bas’Ilele Malomalo – O ubuntu per-
no, para ele, ocorrem porque o ser hu- as coisas no contexto da dialética da tence ao pensamento alternativo, que
mano se esqueceu de cuidar do “biso” complexidade, na qual o teológico, o cogita o mundo a partir da complexi-
ou do “nós ecológico”. antropológico e o cosmológico-ambien- dade. E é oportuno reafirmar que toda
Dessa forma, antes dos humanos tal dialogam sabiamente. Somos nós, filosofia carrega valores e antivalores.
cuidarem dos não humanos, precisam os humanos, que devemos procurar o Para a filosofia de ubuntu, não se pode
cuidar da sua casa. Quer dizer, rever estabelecimento desse equilíbrio pla- falar de economia e política sem levar
suas práticas filosóficas e científicas netário. As responsabilidades têm que em consideração os valores da comu-
dentro dos parâmetros éticos. Uma vez ser apuradas, e evitar o discurso da hi- nidade cósmica. Os profissionais de
 Edgar Morin (1921-): sociólogo francês, au- pocrisia burguesa. todos os campos da teologia, das ciên-
tor da célebre obra O Método. Os seis livros da cias sociais e da natureza, políticos, o
série foram tema do Ciclo de Estudos sobre “O
Método”, promovido pelo Instituto Humanitas IHU On-Line – Como interpretar nos- homem e a mulher comuns, todos de-
Unisinos em parceria com a Livraria Cultura, de sa memória, nosso passado, nossa vem ser ouvidos. O ubuntu luta contra
Porto Alegre, em 2004. Embora seja estudioso ancestralidade a partir do ubuntu? os reducionismos impostos pela razão
da complexidade crescente do conhecimento
científico e suas interações com as questões Bas’Ilele Malomalo – Na filosofia negro- indolente no fazer política e econo-
humanas, sociais e políticas, se recusa a ser africana, a ancestralidade é eixo do en- mia. A democracia participativa em
enquadrado na Sociologia e prefere abarcar tendimento da nossa existência. É tudo todos os campos é tida como um va-
um campo de conhecimentos mais vasto: filo-
sofia, economia, política, ecologia e até bio- aquilo que nos proporciona a vivência lor. A economia não se reduz ao cres-
logia, pois, para ele, não há pensamento que do nosso presente (sasa, em swahili) cimento. Este tem a ver também com
corresponda à nova era planetária. Além de O e nosso futuro (lobi, em lingala), ten- o social e com o cultural. O valor de
Método, é autor de, entre outros, A religação
dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do aqueles que pertencem ao passado solidariedade é também importante.
do Brasil, 2001). (Nota da IHU On-Line) (zamani, em swahili), os que nos ante-
 Leonardo Boff (1938-): teólogo brasileiro, cederam, divindades, orixás e antepas- IHU On-Line – Diante da violência e
autor de mais de 60 livros nas áreas de teo-
logia, espiritualidade, filosofia, antropologia e sados como ponto de leitura das duas das desigualdades, que significado
mística. Boff escreveu um depoimento sobre primeiras dimensões da existência. têm o perdão, a reconciliação e a
as razões que ainda lhe motivam a ser cris- A vontade das divindades, geral- compaixão para a ética ubuntu?
tão, publicado na edição especial de Natal da
IHU On-Line, número 209, de 18-12-2006, e mente, concretizam-se pelas vontade Bas’Ilele Malomalo – É preciso dizer,
concedeu uma entrevista sobre a Teologia da dos orixás e ancestrais presentes na primeiro, que as vítimas da violência
Libertação na IHU On-Line número 214, de sabedoria popular, nos mitos. Os sa- e das desigualdades são aquelas que
02-04-2007. Sua contribuição mais recente à
nossa revista aconteceu na edição 238, de 01- cerdotes e pessoas mais velhas vivas compõem a classe dos excluídos por
10-2007, intitulada Francisco. O santo, com a têm o papel de interpretá-la através motivos raciais, de gênero, de opção
entrevista A ecologia exterior e a ecologia in- dos ritos e práticas do cotidiano. sexual ou religiosa. Os seres não huma-
terior. Francisco, uma síntese feliz. (Nota da
IHU On-Line) Desse ponto de vista, os mitos e nos também pertencem a essa classe
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 21
dos dominados pelo fato de interagir “Para a filosofia do zer a política na modernidade. Nesse
com as classes dominantes, agentes aspecto, a legitimidade dos dirigentes
da razão indolente, de uma forma de- ubuntu, não se pode se fundamenta na prática da lealdade,
sigual. Com isso, estou querendo afir- na busca do bem-estar do povo, e não
mar a historicidade da violência e das falar de economia e o contrário.
desigualdades.
Olhando para a história africana e política sem levar em IHU On-Line – Em um contexto so-
da sua diáspora brasileira, quero citar cial como o brasileiro, como a ética
alguns casos em que o ubuntu se ma- consideração os valores ubuntu pode contribuir na situação
terializou ou foi tensionado para ser contemporânea?
traduzido em termos de perdão, re- da comunidade cósmica” Bas’Ilele Malomalo – Uma coisa que
conciliação e compaixão. o ubuntu tem para nos ensinar, nesse
A África do Sul, após a libertação momento histórico de experimentação
de Mandela e o fim do apartheid, co- parte dos dirigentes dos outros Esta- de políticas públicas de ações afirma-
locou-se como o exemplo histórico da dos houve resistência. Pois muitos não tivas e cotas, é a consideração dos
tradução do ubuntu no projeto políti- queriam assumir a sua responsabilida- elementos de perdão, reconciliação e
co multicultural. Esse país, através de de histórica. Afinal de contas, a con- compaixão. Para mim, perdoar signi-
suas lideranças políticas, religiosas e ferência condenou a escravidão como fica antes de tudo a identificação das
sociais, soube fazer uso dos princípios crime contra a humanidade. causas de nossos males. Os males, que
éticos dessa filosofia através do esta- Esses dois exemplos devem inspi- justificam a situação do subdesenvol-
belecimento da Comissão da Verdade rar todas as sociedades multiculturais vimento da população negra quando
e Reconciliação. Tratava-se da recria- que pretendem propiciar um destino comparada com a branca, têm nomes:
ção de um espaço de diálogo da co- melhor para todos os seus cidadãos. o nosso passado escravista e o racismo
munidade de inspiração nos “palabres Os países africanos que ainda brigam contemporâneo. Há outros fatores,
africanos”. Palabre é uma palavra por causa da hegemonia política ou da mas esses dois são suficientes. Para a
francesa, que se refere aos espaços de gestão dos recursos naturais; os paí- teologia afro-brasileira, eles são iden-
mediação de conflitos da comunidade, ses da América Latina, como o caso do tificados aos pecados.
que contam com a habilidade do uso Brasil, onde as sequelas do escravismo As instituições e as pessoas repro-
da palavra por parte dos mais velhos e do racismo dividem, proporcionando dutoras dessas práticas têm que as-
ou sábios. Não se tratava de um es- aos seus cidadãos o acesso aos direitos sumir suas responsabilidades perante
paço de condenação dos torturadores políticos, econômicos, sociais e cultu- Deus e a humanidade. Num país de
ou racistas, mas sim de um encontro rais de forma diferenciada, devem se maioria cristã como o Brasil, exercer
do povo sul-africano consigo mesmo, servir dos exemplos citados, para que a compaixão significa colocar-se no lu-
com seus problemas do passado, com o ubuntu se torne uma profecia da es- gar do outro. As Igrejas cristãs como
o seu presente e com o seu futuro a perança cumprida. parte da sociedade civil brasileira de-
ser construído. Um encontro com a sua No caso dos países africanos em si- vem exercer o seu papel profético ao
memória de dor, sofrimento e de espe- tuação das ditaduras militares, da de- lado das igrejas, comunidades, pasto-
rança. Após esse processo, esse país se mocracia de fachada ou da democracia rais negras, em vez de ficar “em cima
define hoje como uma Nova África do fraca e do pós-conflito, cabe apelar do muro”. A Igreja latino-americana
Sul, que se reconhece como um país ao ubuntu como uma nova forma de dos anos 1970 precisa voltar. O grito
multicultural, onde brancos e negros se pensar e fazer política. Governar, de Maranata aqui significa que as co-
podem conviver juntos. Dessa forma, nesse sentido, significa ouvir os opo- munidades religiosas têm o dever éti-
o zamani [passado] de sofrimento se sitores, presentes em outros partidos co de fazer ouvir a sua voz e interagir
transformou num sasa-lobi [presente- políticos, nas organizações da socie- no debate atual sobre as políticas pú-
futuro] de esperança. dade civil, nas aldeias para a elabora- blicas para negros e indígenas.
Em 2001, com a Conferência Mun- ção de um projeto nacional coletivo. Reconciliação na perspectiva do
dial contra o Racismo, a Discriminação Perdoar significa também fazer justi- ubuntu, no Brasil atual, é um encontro
Racial, a Xenofobia e a Intolerância ça em relação às mulheres vítimas de entre nós mesmos, com o nosso passa-
Correlata (31 de agosto a 8 de setem- estupros, de genocídios, de matanças do de dor, resistência e esperança. É
bro de 2001), em Durban, na África do por razões de egoísmo dos senhores de um encontro entre nós mesmos como
Sul, as vítimas do escravismo colonial guerras africanas. Reconciliação, nes- povo brasileiro. Um povo marcado pela
europeu, africanos e seus descenden- se contexto, significa esclarecimento miscigenação emancipatória e não um
tes, exigiram aos Estados europeus, perante a comunidade dos problemas falso discurso de miscigenação colo-
americanos e africanos um pedido de que afetam as nações, e a partilha das nialista. A diferença é que o primeiro
perdão pelos atos cometidos. Os Esta- responsabilidades. É uma volta à me- discurso assume a pluralidade como
dos africanos através do representan- mória ancestral, aos valores africanos valor, já o segundo o nega e o encara
te da União Africana o fizeram, mas da do passado, mas atualizados no pre- como uma ameaça.
sente, e o seu uso no exercício de fa-
22 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353
As relações entre o “eu” e o “outro”: o ubuntu como
prática ética da singularidade
No ubuntu, fazer justiça a alguém tem a ver com cuidar da sua singularidade como uma
pessoa única, explica a filósofa e advogada norte-americana Drucilla Cornell. Por isso,
o ubuntu pode ser extremamente útil para as feministas ou demais grupos de direitos
humanos

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

S
ingularidade e alteridade: entre a relação tensa entre esses dois âmbitos, o ubuntu pode ser um
caminho para se entender – e para ser – humano. Para a professora da Rutgers University, dos Esta-
dos Unidos, Drucilla Cornell, a ética do ubuntu nos ajuda a perceber que “viemos a um mundo com
obrigações para com os outros, e esses outros têm obrigações para conosco”, pois são eles que nos
ajudam “a encontrar nosso caminho para nos tornarmos uma pessoa única e singular”.
Por isso, ela descarta qualquer aproximação entre o ubuntu e o conceito de comunitarismo. Diferente-
mente deste, o ubuntu nos leva a “realizar uma individualidade verdadeira e nos erguer acima de nossa mera
distintividade” por meio “do envolvimento e do apoio aos outros”, explica.
Em suma, segundo Drucilla, “o ubuntu está intermitentemente conectado ao porquê e ao como o ser
humano é uma prática ética”. Isso se explica pelo fato de que “sempre nascemos com obrigações para com
os outros e não podemos escapar delas, assim como elas, por sua vez, têm de ser pessoas éticas na medida
em que nos ajudam a formar nosso caminho para nos tornarmos pessoas”.
Drucilla Cornell é professora de Ciências Políticas, Literatura Comparada e Estudos da Mulher da Rutgers
University, de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Também é professora visitante das University of Pretoria,
na África do Sul, e do Birkbeck College, da Universidade de Londres. Antes de começar sua vida acadêmica,
Cornell foi líder sindical e feminista ativa durante muitos anos. Doutorou-se em direito pela University of Ca-
lifornia, em 1981. Ela também produziu um documentário sobre a ética do ubuntu, intitulado ubuntu Hokae.
De 2008 até o final de 2009, Cornell foi professora da cátedra em direito, valores indígenas e jurisprudência
da National Research Foundation, na University of Cape Town, na África do Sul. Ela fundou o projeto Ubuntu
em 2003 e continua sendo sua codiretora junto com Chuma Himonga, no qual se busca compreender a impor-
tância do ubuntu na nova África do Sul e sua possível tradução na lei e no direito. É autora de diversos livros
sobre teoria crítica e feminismo, como Feminismo como Crítica da Modernidade (Rosa dos Tempos, 1987), de
coautoria de Seyla Benhabib. Destacamos também seu artigo Interpreting ubuntu: Possibilities for Freedom
in the New South Africa, escrito com Karin van Marle. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora inter- Há razões importantes para reconhe- ubuntu será sempre contestada, e é
preta o conceito ubuntu? cer os valores africanos como cruciais um erro reduzi-la a uma ideologia na-
Drucilla Cornell – Ubuntu é uma no- para o diálogo da humanidade, já que cionalista africana.
ção fundamentalmente ética do que eles foram excluídos durante muito
significa ser um ser humano. Por con- tempo. Mas o ubuntu, como uma ética IHU On-Line – Como um princípio éti-
seguinte, é um aspecto crucial do que em que praticamos o que significa ser co, quais são seus pilares fundamen-
veio a ser conhecido como humanismo humano em nossas atividades cotidia- tais? Podemos encontrar algumas
africano. É claro que o ubuntu teve nas, não se justifica apenas devido a similaridades com outras escolas de
certa importância na política sul-afri- suas raízes indígenas na África do Sul, pensamento filosófico?
cana e foi muitas vezes aplicado como mais especificamente nas línguas zulu Drucilla Cornell – Sabe-se que, na tra-
uma ideologia nacionalista africana. e xhosa. Por isso, uma ética como o dição xhosa e zulu, quando os bebês
SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 23
nascem, seu cordão umbilical é enter- “A realização da – produzir um mundo humano e tornar-
rado, e o local do enterro assinala o se uma pessoa nesse mundo humano
início de sua jornada a se tornar uma singularidade como para fazer uma diferença nele é algo
pessoa. A realização da singularidade que não tem fim. Portanto, o ubuntu
como pessoa sempre é um projeto in- pessoa sempre é um acarreta um vínculo social, que está
separável das obrigações éticas nas sempre sendo remoldado pelas exi-
quais se participa, de uma forma ou projeto inseparável das gências éticas que ele coloca a seus
de outra, desde o início da vida. Nós participantes. O ubuntu condensa,
nascemos dentro de uma língua, de obrigações éticas nas em sentido profundo, as obrigações
um grupo de parentesco, de um orgu- morais dos seres humanos que devem
lho, de uma nação, de uma família. quais se participa desde viver juntos, o que constitui a base
Mas essa inscrição não pode ser sim- de qualquer noção do direito que vai
plesmente reduzida a um fato social. o início da vida” além da limitada noção anglo-ameri-
Viemos a um mundo com obrigações cana do direito. O ubuntu implica em
para com os outros, e esses outros têm uma moralização fundamental das re-
Drucilla Cornell – Obviamente, o
obrigações para conosco no sentido de lações sociais, e essa moralização é o
ubuntu tem implicações importantes
nos ajudar a encontrar nosso caminho aspecto imutável do ubuntu, que nos
para o significado do direito, da jus-
para nos tornarmos uma pessoa única ensina que nunca podemos escapar do
tiça e da reconciliação. Para o gran-
e singular. mundo ético que compartilhamos. Mas
de filósofo africano Kwasi Wiredu, a
Seria um equívoco profundo con- quero mais uma vez deixar claro o que
diferença participativa – em que cada
fundir o ubuntu com o conceito anglo- é o ubuntu: não é perdão na acepção
um de nós é diferente – se confunde
americano de comunitarismo. É só por cristã; no ubuntu, se um mal foi come-
com o princípio da imparcialidade sim-
meio do envolvimento e do apoio aos tido por alguém na comunidade, então
pática, em que procuramos imaginar a
outros que somos capazes de realizar seria necessário que o malfeitor com-
nós mesmos e aos outros como seres
uma individualidade verdadeira e nos pensasse a pessoa à qual fez o mal.
singularmente únicos. A imparcialida-
erguer acima de nossa mera distinti- O perdão é um conceito cristão que,
de simpática, nesse sentido singular,
vidade. Poderíamos, portanto, dizer às vezes, foi imposto na Comissão da
nos chama não a buscar a semelhan-
que uma pessoa está eticamente en- Verdade e Reconciliação da África do
ça, mas a imaginar os outros em sua
trelaçada com os outros desde o iní- Sul sobre a noção de ubuntu e não faz
diferença com relação a nós. O pro-
cio. Esse entrelaçamento não constitui justiça a essa noção.
blema de como desenvolvemos tal li-
quem elas são e quem devem se tornar.
gação com a alteridade – crucial para
Pelo contrário: cada um de nós precisa IHU On-Line – Qual é o valor do ser
a justiça e, com efeito, para qualquer
encontrar uma forma de se tornar uma humano e da vida humana para o
sistema jurídico – explica-se em parte
pessoa singular em relação ao resto. ubuntu?
porque já estamos tentando desenvol-
Nessa singularidade, elas se tornam al- Drucilla Cornell – Como vimos, o as-
vê-la com os outros e eles são, em um
guém que define suas próprias respon- pecto aspiracional do ubuntu é de
sentido profundo, parte de nós.
sabilidades éticas à medida que vai se que precisamos nos esforçar juntos
Os críticos do ubuntu, incluindo os
tornando uma pessoa. Se, então, uma para alcançar um bem público em um
críticos que confundem o ubuntu com
comunidade está comprometida com a mundo compartilhado, de modo que
uma modalidade obsoleta de coesão e
individuação e a realização de um des- possamos sobreviver e florescer, cada
hierarquia social, cometem o erro de
tino único para cada pessoa – muitas um e cada uma de nós em sua singu-
reduzir o ubuntu a uma ontologia ética
vezes dissecada pelo nome, mas não laridade. Mas, ao mesmo tempo, cada
de um mundo supostamente compar-
determinada por ele –, então a pessoa um de nós em nossas relações éticas
tilhado. O que se deixa de perceber
tem obrigações para com a comuni- está produzindo o que significa ser um
nessa crítica é justamente o ativismo
dade que a apoia, não simplesmente ser humano – um ser humano ético. É
inerente à diferença participativa que
como um dever abstrato correlacio- a inserção do ubuntu em nossas rela-
marca cada um de nós como a nossa
nado com direitos, mas é uma forma ções que a torna transformadora em
própria pessoa. O ubuntu contém cla-
de participação que permite que uma seu cerne, e essa transformação nunca
ramente um fim aspiracional e ideal
comunidade busque ser fiel à diferen- pode ser eliminada da moralização das
ça e à singularidade. Parte dessa dife-  Kwasi Wiredu (1931-): um dos filósofos vi- relações sociais. Teria sido absurdo há
rença é que também somos chamados vos mais importantes da África, Wiredu nasceu 500 anos se o ubuntu tivesse exigido
a fazer a diferença contribuindo para em Kumasi, em Gana. Estudou na University of eletricidade, já que nem havia aces-
Ghana, em Legon. Após graduar-se em 1958,
a criação e a manutenção de uma co- foi para a University College, em Oxford, na so à eletricidade. Agora, entretanto,
munidade humana e ética. Inglaterra. Foi
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professor na University College não é nada absurdo fazer tal propos-
of North Staffordshire (agora University of ta, porque a eletricidade é parte in-
Keele). Retornou
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para a Universidade de Gana,
IHU On-Line – Para a ética do ubuntu, onde foi o primeiro chefe do departamento de tegrante da vida humana na sociedade
qual é o significado e a importância filosofia. Hoje, é professor na University of moderna. Por conseguinte, o ubuntu
da justiça e do direito? South Florida, em Tampa, nos EUA. (Nota da está intermitentemente conectado ao
IHU On-Line)

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porquê e ao como o ser humano é uma
prática ética. O ubuntu tem implica-
“Viemos a um mundo gações para com os animais, indo além
da noção jurídica de direitos animais.
ções importantes para a noção do que
significa ter uma vida humana: em úl-
com obrigações para com IHU On-Line – Como o ubuntu pode
enriquecer as culturas e a ética das
tima análise, que a vida humana deve
ser uma vida ética.
os outros, e esses outros sociedades não africanas?
Drucilla Cornell – Um dos meus alunos
Por isso, ele tem certa ressonância
com o pensador Immanuel Kant. Para
têm obrigações para de pós-graduação está trabalhando
ele, diferentemente de quase todos
os outros pensadores do mundo oci-
conosco” atualmente em uma tese que sustenta
que a noção de Amartya Sen, segundo
dental, a liberdade é inseparável da a qual liberdade é desenvolvimento,
obrigação. Em Kant, é ao menos uma de que, como criaturas da razão práti- pode ser melhor concebida através
possibilidade prática que os seres hu- ca, podemos harmonizar nossos fins, o da herança intelectual do humanismo
manos se postulem como autônomos, que nos permite reconciliar a obriga- africano. Em seu mais recente livro,
na medida em que podem formular ção com a liberdade. Essa reconcilia- The Idea of Justice (Cambridge: Be-
uma lei entre si mesmos. Assim, po- ção também é crucial para o ubuntu, lknap Press/Harvard University Press,
demos, por sua vez, nos representar o que explica por que Kant continua 2009), o próprio Sen sustenta que pre-
como livres de nossos desejos cotidia- desempenhando um papel tão impor- cisamos introduzir ideias de diferentes
nos que nos impulsionam e, com efei- tante na herança intelectual do huma- heranças intelectuais em nossos diálo-
to, nos tratam duramente. A relação nismo africano. gos sobre a justiça. Mas nem mesmo o
entre o âmbito da liberdade interior melhor diálogo nos levaria necessaria-
(da moral), e o âmbito da liberdade IHU On-Line – A partir do ubuntu, mente a um acordo.
exterior (do direito ou Recht), tem como o ser humano pode e deve se Em última análise, o ubuntu nos
sido muito debatida na pesquisa sobre relacionar com a natureza? Que tipo ajuda a entender por que o conflito
Kant. Mas está claro que precisa haver de relação deve haver entre os seres é sempre inevitável entre os seres
uma ligação entre os dois. Se não hou- humanos e não humanos? humanos e por que nem mesmo uma
ver ligação, não há terreno para a li- Drucilla Cornell – O ubuntu, assim ética da solução de conflitos jamais le-
berdade exterior em que coordenamos como expusemos anteriormente, vará necessariamente a um conjunto
mutuamente nossos fins. tem a ver primordialmente com uma único de princípios éticos ou a regras
É exatamente por isso que o expe- prática de ser humano que seja éti- jurídicas.
rimento hipotético kantiano na imagi- ca. Houve, entretanto, uma série de No direito, o ubuntu sempre de-
nação, em que podemos configurar as pensadores do ubuntu que tentaram sempenhou um papel importante ao
condições em que os seres humanos sustentar que essa forma de praticar nos lembrar que precisamos olhar
podem aspirar ao grande ideal do Rei- a humanidade implica efetivamente para o contexto, por exemplo, de por
no dos Fins, desperta a possibilidade uma relação muito diferente e não ex- que um determinado indivíduo roubou
 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- ploradora com a natureza e a proteção um carro, ao invés da lei do sentido
no, considerado como o último grande filósofo da vida dos seres não humanos. É claro do roubo de carros. É essa insistên-
dos princípios da era moderna, representante
do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus que, no humanismo africano, a noção cia de que olhemos para o conflito e
pensadores mais influentes da Filosofia. Kant do humano é expandida para incluir o resolvamos que tornou o ubuntu tão
teve um grande impacto no Romantismo ale- quase todo o mundo na comunidade importante em várias áreas de peso
mão e nas filosofias idealistas do século XIX,
tendo esta faceta idealista sido um ponto de humana. do direito constitucional na África do
partida para Hegel. Kant estabeleceu uma Dito isso, o ubuntu é uma forma de Sul atualmente – incluindo a jurispru-
distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si ser humano que não desperta nenhu-
(que chamou noumenon), isto é, entre o que  Amartya Sen (1933): economista indiano.
nos aparece e o que existiria em si mesmo. ma capacidade que nos separe dos ani- Em 1998, a Real Academia da Suécia conferiu o
A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser mais, mas nos devolve a uma relação prêmio Nobel de Economia a Sen “por devolver
objeto de conhecimento científico, como até mais holística com a natureza. Acredi- uma dimensão ética ao debate dos problemas
então pretendera a metafísica clássica. A ci- econômicos vitais”. Foi galardoado com o pré-
ência se restringiria, assim, ao mundo dos to que o ubuntu pode ser um conceito mio em memória de Alfred Nobel das ciências
fenômenos, e seria constituída pelas formas muito útil para repensar nossas obri- econômicas, pelas suas contribuções ao Welfa-
a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e re Economics. Autor do livro Desenvolvimento
pelas categorias do entendimento. A IHU On- 1804) como a “ligação sistemática, por meio com liberdade, publicado em 2000. As ideias
Line número 93, de 22-03-2004, dedicou sua de leis comuns, tanto de diversos seres racio- de Sen foram abordadas no Ciclo Repensando
matéria de capa à vida e à obra do pensador nais enquanto fins em si, como também dos os Clássicos da Economia - Quarta com Cul-
com o título Kant: razão, liberdade e ética, próprios fins que cada ser racional se dê” (em tura Unisinos, em 12 de abril, pelo Prof. Dr.
disponível para download em http://migre. sua obra Fundamentação da Metafísica dos Flávio Vasconcellos Comim (UFRGS), e volta-
me/uNrH. Também sobre Kant foi publicado Costumes, 1785). Assim, o conceito de pessoa ram a debate em 02-08-2006 no II Ciclo de Es-
este ano o Cadernos IHU em formação nú- autônoma tem, portanto, duas características tudos Repensando os Clássicos da Economia,
mero 2, intitulado Emmanuel Kant - Razão, centrais: uma dignidade absoluta – uma pessoa na Unisinos. Para maiores detalhes, confira a
liberdade, lógica e ética, que pode ser aces- é fim em si mesma, e não meio para outros fins entrevista concedida por Comim à edição 175,
sado em http://migre.me/uNrU. (Nota da IHU – e a sociabilidade – a pessoa é membro de um de 10 de abril de 2006, sob o título Amartya
On-Line) reino de pessoas, o reino dos fins, no qual o ser Sen e uma nova ética para a economia. O ma-
 O conceito de Reino dos Fins foi trabalhado racional é o legislador universal, exercendo a terial está disponível para download na página
pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724- sua vontade. (Nota da IHU On-Line) www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)

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dência muito importante que está se “O ubuntu tem sociedade comunista se basearia na
desenvolvendo em torno dos direitos ideia “de cada um de acordo com sua
sociais e econômicos. implicações importantes capacidade, a cada um de acordo com
Por isso, em um sentido profundo, o sua necessidade”. Essa é, com efeito,
ubuntu tem muito a nos ensinar sobre para a noção do que a ética mais individuada da justiça que
a cultura e a ética africanas, porque se possa imaginar. O ubuntu entende
ele nos ajuda a pensar sobre o sentido significa ter uma vida por que essa noção de obrigação e
do desenvolvimento como liberdade, de nossas próprias responsabilidades
pois entendemos que a liberdade tem humana: em última como pessoas com capacidades não
um vínculo intrínseco com nossas obri- tornaria necessário que tentássemos
gações para com os outros. análise, que a vida alcançar o máximo possível por nossa
própria conta. Mas, ao invés disso, ele
IHU On-Line – De que forma o ubuntu humana deve ser uma nos leva a criar uma comunidade justa
nos ajuda a repensar as questões de em que possamos viver junto com ou-
gênero ou feministas hoje? vida ética” tras pessoas.
Drucilla Cornell – O ubuntu foi mui- Lembrem-se de que há uma verda-
tas vezes criticado por feministas que de no ubuntu: sempre nascemos com
sustentam que ele oferece uma ética Essa é uma compreensão equivocada obrigações para com os outros e não
patriarcal em que as mulheres são ne- da noção muito ativa do ubuntu como podemos escapar delas. Assim como
cessariamente colocadas abaixo dos uma virtude ética em que damos vida elas, os outros, por sua vez, têm de
homens. Como sustentei, o ubuntu ao nosso ser humano através de nossas ser pessoas éticas na medida em que
não nos dá uma ontologia social está- ações para com os outros. nos ajudam a formar nosso caminho
tica. Pelo contrário, ele é uma noção para nos tornarmos pessoas.
ativa de como nos tornamos humanos IHU On-Line – Em sua opinião, como o Isso nos leva a um último aspecto
em nossa própria prática cotidiana da ubuntu pode ser uma alternativa – ou de por que o ubuntu é importante para
ética. fomentar algumas alternativas – para as feministas. Muitas feministas sus-
Então, o que isso tem a ver com o a modernidade capitalista neoliberal tentam que existe um conflito, ou ao
feminismo? Pense-se, por exemplo, no e à cultura ocidental? menos uma tensão, entre a justiça e
caso Shilubana, em que uma mulher Drucilla Cornell – Muitos dos movi- o cuidado. Mas, no ubuntu, fazer jus-
se tornou chefe. A associação de mu- mentos de base apelam ao ubuntu tiça a alguém sempre tem a ver com
lheres da área rural sustentou vigoro- como uma forma de justificar sua pró- cuidar da sua singularidade como uma
samente que o direito consuetudiná- pria militância de base e, de fato, seu pessoa única. Por isso, o ubuntu pode
rio vivo da África do Sul, incluindo a apelo a uma ética socialista. Parte da ser extremamente útil para as femi-
ética do ubuntu, sempre permitiu que razão pela qual os valores nativos são nistas que veem isso como uma tensão
se desse grande flexibilidade ao que é aplicados é, sem dúvida, por causa do que não pode ser superada. Em últi-
a resposta certa em uma situação es- legado colonial da borracha, do apaga- ma análise, o ubuntu inspirou muitos
pecífica, que não pode ser reduzida a dor. Como observei repetidamente em movimentos a se chamarem explicita-
uma noção jurídica do que a lei nos diz minhas respostas, essa não é a forma mente de socialistas ou até a pratica-
o que fazer. Assim, no caso de uma mu- pela qual o ubuntu se justifica. O ubun- rem o comunismo vivo ao procurarem
lher da área rural, elas argumentaram tu se justifica como uma prática ética corresponder às obrigações cotidianas
que o direito consuetudinário sempre universalizável do que significa ser um que todos nós aceitamos se entende-
foi flexível e que elas buscavam a jus- ser humano, visto que temos sempre, mos que as relações sociais mútuas
tiça para permitir que uma mulher se desde o início, obrigações para com os são primordialmente éticas e que isso
tornasse chefe. outros e precisamos expandir as ne- inclui a nossa noção de eu-econômico,
Por isso, discordo dos críticos que cessidades de nossa humanidade tan- que é completamente incompatível
dizem que o ubuntu implica em uma to quanto possível para incluir todos com a visão capitalista de mundo.
ontologia social que necessariamente aqueles que podem estar excluídos do
implica em desigualdade de gênero. registro da humanidade.
Assim, não surpreende que muitas
 Em 1968, o líder do povo valoyi, na África
do Sul, faleceu. Sua filha única, Tinyiko Shi-
pessoas relacionem o ubuntu com a no- http://migre.me/s7lq. Também sobre o autor,
lubana, assumiu seu lugar. Porém, foi desqua- ção de Karl Marx segundo a qual uma confira a edição número 278 da IHU On-Line,
lificada em virtude de seu gênero, pois a lei  Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, de 20-10-2008, intitulada A financeirização do
e os costumes da tribo afirmam que apenas cientista social, economista, historiador e re- mundo e sua crise. Uma leitura a partir de
homens podem ser chefes – ou Hosi. Assim, seu volucionário alemão, um dos pensadores que Marx, disponível para download em http://
tio Richard assumiu o posto de Hosi. Em 2001, exerceram maior influência sobre o pensamen- migre.me/s7lF. Leia, igualmente, a entrevista
antes de morrer, Richard devolveu a liderança to social e sobre os destinos da humanidade no Marx: os homens não são o que pensam e de-
do clã para Shilubana. Mas seu primo, então, século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estu- sejam, mas o que fazem, concedida por Pedro
quis assumir o lugar do falecido Hosi. O caso dos Repensando os Clássicos da Economia. A de Alcântara Figueira à edição 327 da revista
chegou até a Corte Constitucional, e, após di- edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível para
versas derrotas, Shilubana finalmente venceu autoria de Leda Maria Paulani tem como título download em http://migre.me/Dt7Q. (Nota
o processo em 2008. (Nota da IHU On-Line) A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em da IHU On-Line)

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Entrevistas da Semana
As UPPs. Uma incógnita
Na visão de Eduardo Tomazine Teixeira, ainda é cedo para julgar as implicações das Uni-
dades de Polícia Pacificadora nas favelas ocupadas no Rio de Janeiro, a sua relação com a
instituição policial da qual elas fazem parte e, ainda, as suas consequências para o espa-
ço da cidade como um todo

Por Graziela Wolfart

“I
sso precisa ser denunciado: a violência causada por uma política econômica liberal”. A opinião
é de Eduardo Tomazine Teixeira, em entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU
On-Line. Na entrevista ele analisa a guerra ao tráfico no Rio de Janeiro e sobre o papel das
Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs. Para Eduardo é preocupante o modo como está sendo
conduzida essa guerra ao tráfico no estado do Rio, principalmente “a famigerada utilização
das Forças Armadas para a segurança pública interna”. E explica: “ao Estado, o uso das Forças Armadas para
estes fins até pode ser conveniente, usando a massa ociosa do contingente militar e desonerando, assim, o
investimento em polícia. Seria, digamos, a solução neoliberal para a segurança pública. Agrada também a
uma opinião pública cada vez mais conservadora, manipulada pelo discurso oficial que é reproduzido e am-
pliado pela grande mídia. Mas os riscos para a democracia são evidentes. Primeiro porque as Forças Armadas
não têm preparo para exercer funções de polícia. Depois, e, sobretudo, pelo imaginário que se fortalece
entre a população, desrespeitamos a constituição em prol da manutenção da ordem. Isto não nos deveria
lembrar alguma coisa?”, provoca.
Eduardo Tomazine Teixeira é bacharel e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ. Atualmente é mestrando em Ciência Política na Universidade de Paris VIII, na França, onde reside. Confira
a entrevista.

IHU On-Line - Como você vê a pre- acreditar que o Rio de Janeiro tem uma paulista como refém da facção agres-
sença da Polícia Pacificadora no Rio política de segurança pública que vem sora. Eu diria que, se hoje o estado do
de Janeiro e em situações particula- sendo eficaz e que os narcotraficantes Rio de Janeiro, após uma situação de
res como a que a cidade vive? estão desesperados pela perda do seu crise tão grave como a atual, saiu com
Eduardo Tomazine - Antes de falar poder. Fazer esse tipo de manobra com a sua imagem fortalecida diante da
sobre as Unidades de Polícia Pacifica- a opinião pública parece algo óbvio, opinião pública, isto se deve, mais do
dora em si mesmas, acho interessante dado, mas não é. Basta lembrar o que que à ocupação do Complexo do Ale-
destacar a associação, feita na própria aconteceu quando dos ataques do PCC mão, às UPPs. Sobre a minha opinião a
pergunta, sobre os atuais acontecimen- em São Paulo em 2008: na ocasião, a  Complexo do Alemão: complexo de favelas
tos no Rio e as UPPs. É preciso reco- opinião pública considerou o estado da Zona Norte do Rio de Janeiro, constituído
nhecer que a estratégia de comunica- por um conjunto de 13 favelas, estando algu-
 Primeiro Comando da Capital (PCC): organi- mas das mais violentas da cidade. Seu núcleo é
ção social do governo do Estado – com zação de criminosos existente no Brasil, criada o Morro do Alemão, e poucos moradores da ci-
o apoio da grande mídia – foi vitoriosa, para defender os direitos de cidadãos encar- dade sabem que se trata de um bairro oficial,
pois as pessoas aceitaram a explicação cerados no país. Surgiu no início da década sendo parte de sua área muitas vezes tratada
de 1990 no Centro de Reabilitação Penitenci- como parte dos bairros vizinhos: Ramos, Pe-
dos ataques como uma reação dos trafi- ária de Taubaté, local que acolhia prisioneiros nha, Olaria, Inhaúma e Bonsucesso. O bairro
cantes de drogas à implementação pro- transferidos por serem considerados de alta foi construído sobre a serra da Misericórdia,
gressiva das UPPs (mesmo que nem to- periculosidade pelas autoridades. Hoje a or- uma formação geológica de morros e nascen-
ganização é comandada por presos e foragidos tes, quase toda destruída pela construção do
dos confiem muito nisso). Isso significa principalmente no estado de São Paulo. (Nota Complexo. (Nota da IHU On-Line)
que a opinião pública foi conduzida a da IHU On-Line)

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respeito destas unidades, eu acho pre-
ciso evitar o simplismo. Tenho identifi-
“Do que adiantam o que ocorrerá. Não apenas porque a
dinâmica da atuação policial é imprevi-
cado dois tipos de respostas simplistas
sobre o papel das UPPs: o primeiro é
ganhos de qualidade de sível, mas também porque a capacidade
de organização da população é funda-
que elas são uma maravilha, a resolu-
ção do problema de segurança na ci-
vida, por exemplo, com mental nisso.

IHU On-Line - Que papel as UPPs de-


dade e a libertação da população das
favelas “pacificadas”. O segundo é um
uma sociedade sempenham na produção do espaço
urbano carioca?
simplismo mais à esquerda, para o qual
as UPPs são mais do mesmo, que não
politicamente tutelada?” Eduardo Tomazine - As UPPs cumprem
trazem nada de novo no histórico de um papel fundamental nos projetos de
política de segurança no Rio de Janei- formalização dos serviços de luz e de TV alguns setores capitalistas, associados
ro, que elas não são acompanhadas de a cabo, o que compete para encarecer aos gestores políticos que atualmente
mudanças importantes nas comunida- a vida nessas favelas. Já os serviços pú- governam a cidade e o Estado do Rio de
des onde são implementadas, etc. No blicos gratuitos, como a coleta de lixo, Janeiro. Há mais de 30 anos que o espaço
entanto, para além dessas opiniões ex- os postos de saúde e as creches ainda carioca vem sendo produzido em meio à
tremas, acho que a maioria das pessoas estão sendo aguardados. Na favela da estagnação econômica e à desarticula-
ainda vê as UPPs como uma incógnita. Babilônia, por exemplo, um ano após ção política. Em decorrência – e em fun-
Estas últimas, na minha opinião, têm a instalação da UPP, ainda havia pro- ção da localização estratégica do Rio de
razão, pois é cedo para julgar as impli- blemas de abastecimento de água por Janeiro no circuito mundial do comércio
cações das UPPs nas favelas ocupadas, falta da instalação de um reservatório. de drogas –, os negócios que mais prospe-
a sua relação com a instituição policial Já o presidente da Associação Comercial raram na cidade foram de caráter ilegal
da qual ela faz parte e, ainda, as suas do Rio de Janeiro relata, com orgulho, e violento (o tráfico de drogas e armas)
consequências para o espaço da cidade que o furto de energia elétrica na fa- e um tipo de negócios formais umbili-
como um todo. vela Santa Marta (a primeira a receber calmente ligado a eles, como o merca-
uma UPP, em 2008) caíra de 70% para do imobiliário dos condomínios exclusi-
IHU On-Line - Quais os principais im- 1%. Percebe-se, pois, uma assimetria vos, as empresas de segurança privada
pactos que as Polícias Pacificadoras entre direitos e deveres nas áreas ocu- e seus produtos (sistemas de câmeras
trazem às favelas ocupadas e como padas por UPPs, entre serviços privados de monitoramento, blindagens de car-
elas interferem na questão da demo- e gratuitos. ros, etc.) e a corrida armamentista por
cracia? parte do Estado e dos narcotraficantes
Eduardo Tomazine - Mesmo sendo ain- O contraste (informalmente, e, em grande medida,
da muito cedo para avaliar com preci- tendo como vendedores os próprios po-
são os impactos das UPPs nas favelas Mas, em contraste com a imagem liciais). Nos espaços segregados, como
onde elas são implementadas, pode-se de prestadores de serviços e de amigos favelas e loteamentos irregulares, em
dizer, desde já, que eles são ambíguos, da comunidade transmitida pela PM, há meio à decadência econômica e à falta
contraditórios. De um lado, não há mais denúncias de abusos cometidos por al- de serviços públicos oferecidos pelo Es-
a presença armada dos traficantes de guns policiais das UPPs. É fácil imaginar tado, a associação ao negócio do tráfico
drogas, não há mais os conflitos, nes- as tensões decorrentes de um espaço se tornou uma estratégia de sobrevivên-
tas favelas, entre facções do tráfico e ocupado quotidianamente por pessoas cia (entre as estratégias possíveis) para
entre os traficantes e a polícia quando armadas, sejam elas de quadrilhas ou da muitos, principalmente para os jovens e
das suas históricas incursões bárbaras. polícia. Ocorre que, agora, a ocupação adolescentes. Agora que o país começa
Isto não pode ser subestimado. Por ou- é feita por uma instituição a qual, mes- a retomar uma dinâmica de crescimento
tro lado, há agora a presença ostensiva mo com todos os problemas que conhe- econômico, em que o estado do Rio de
da Polícia Militar, e, por mais que sejam cemos, tem um grau de controle, por Janeiro é impulsionado pela indústria
recrutas com uma formação especial, a parte da sociedade, incomparavelmen- petroquímica e que se tem costurada
coabitação quotidiana com a polícia é, e te maior – ao menos potencialmente. Aí uma inédita articulação política entre
sempre será, tensa. Ainda mais quando entra em jogo a questão da democra- as esferas municipal, estadual e federal
a polícia em questão é a polícia brasi- cia. Não com relação à dinâmica elei- de governo, há certas frações do capital
leira, herdeira não apenas do regime toral, mas em relação à capacidade de que vislumbram a possibilidade de fa-
opressor de 1964, mas de uma história determinação, por parte dos moradores zerem negócios na cidade, sobretudo o
escravocrata e racista. A favela ainda é favelados sobre o seu próprio espaço de grande capital imobiliário e da indústria
considerada como a senzala a ser con- vida. Antes, eles eram cativos da arbi- do turismo. Mas, para que isso aconte-
trolada e abusada, ou o quilombo a ser trariedade e da violência dos chefetes ça, é preciso resolver alguns “gargalos”
combatido. O governo repete que, em das quadrilhas de narcotraficantes. Res- da cidade, como a falta de estrutura de
seguida às UPPs, vem a “invasão de ser- ta lutar para que não fiquem cativos da transportes; mas, sobretudo, as exter-
viços”. No entanto, são os serviços priva- arbitrariedade e da violência policiais. nalidades produzidas pela hegemonia
dos que têm vindo à frente, sobretudo a Mas ressalvo: ainda é cedo para saber do que podemos chamar de “indústria

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da ilegalidade violenta e do medo”. “Ter uma sociedade civil vestimentos em segurança do governo
do estado, em 2009, responderam por
IHU On-Line - Quais implicações as forte e bem organizada mais de 7% do orçamento, e vem cres-
UPPs trazem para a práxis dos ativis- cendo com a implementação das UPPs. A
mos urbanos? é ainda mais importante consequência é a falência da educação e
Eduardo Tomazine - Esta é, para mim, da saúde estaduais. O principal respon-
uma questão central. Pois o principal do que ter bons partidos sável, portanto, por uma política que
critério de avaliação de uma política invista em informação e tecnologia das
pública, seja ela de segurança ou não, políticos ou um Estado polícias, e também em educação e re-
é, de um ponto de vista libertário, a sua duções de desigualdades socioespaciais,
implicação na capacidade de a socieda- eficiente, pois a é a União, que, em decorrência da sua
de se autodeterminar de maneira livre política econômica, tem os investimen-
e bem informada. É claro que a ques- sociedade civil é a base tos sociais acorrentados em benefício da
tão do bem-estar é importante, mas do manutenção das taxas elevadas de ju-
que adiantam ganhos de qualidade de de toda sociedade ros e do superávit primário. Isso precisa
vida, por exemplo, com uma sociedade ser denunciado: a violência causada por
politicamente tutelada? A liberdade e a democrática” uma política econômica liberal.
democracia são, pois, fundamentais, e
toda política deve ter em vista, de uma IHU On-Line - De modo geral, como
pedidos de realizar esse trânsito pelas
maneira ou de outra, o seu robusteci- você avalia que está sendo conduzi-
rivalidades entre facções. Mas a ambi-
mento. Pensando desta maneira, ter da essa “guerra ao tráfico” no RJ?
guidade da UPP é, como eu já disse, a
uma sociedade civil forte e bem orga- Eduardo Tomazine - De maneira pre-
troca de um controle armado por outro,
nizada é ainda mais importante do que ocupante. Não que os ataques orques-
de maneira que o primeiro e mais impor-
ter bons partidos políticos ou um Estado trados pelos traficantes devessem ficar
tante desafio dos ativismos urbanos será
eficiente, pois a sociedade civil é a base sem uma resposta contundente e rá-
a organização da população nas áreas
de toda sociedade democrática. Os ati- pida. O problema é a maneira como a
“pacificadas” para controlar os policiais
vismos urbanos, por sua vez, são os seto- coisa toda foi feita, e os precedentes
e participar diretamente na manuten-
res da sociedade civil que se organizam que isso abre. Em primeiro lugar, a in-
ção de uma verdadeira segurança na
visando, com a sua atuação, uma trans- capacidade de estabelecer diálogo, por
suas comunidades, evitando qualquer
formação progressista da sociedade, e meio dos intermediadores oficiais que
forma de abuso.
são elas que podem, concretamente, se ofereceram. Não para fazer eventu-
tornar os seus espaços melhores e mais ais concessões, mas para assegurar a in-
IHU On-Line - Por que não investir
justos (auto-organização), e, igualmen- tegridade dos que se rendessem. Talvez
mais em inteligência e tecnologia na
te, pressionar o Estado por conquistas e isto pudesse evitar algumas mortes e fu-
Polícia?
para evitar que ele cometa abusos (lutas gas, não sabemos. Mas o principal é que
Eduardo Tomazine - O deputado esta-
institucionais). tal atitude poderia abrir um canal de
dual Marcelo Freixo tem insistido, corre-
diálogo com a sociedade: o que vamos
tamente, na importância da inteligência
Consequências contraditórias fazer com estes indivíduos? Qual políti-
e da tecnologia como alternativas mais
ca carcerária queremos em nosso estado
eficazes à política de confrontação – in-
As UPPs trazem, mais uma vez, con- e no nosso país? Afinal, se não podemos
sistência importante em um momento
sequências contraditórias aos ativismos isentar os indivíduos pela sua culpa ao se
passional como este, em que todos
urbanos, sobretudo à auto-organização envolver com a criminalidade, tampou-
aplaudem as ações bélicas. Mas não po-
dos moradores das favelas ocupadas. É co podemos isentar o Estado brasileiro
demos partir do pressuposto de que os
inegável que o controle ostensivo dos da sua responsabilidade. Mas o que mais
gestores políticos responsáveis pela se-
narcotraficantes armados praticamente preocupa é a famigerada utilização das
gurança no estado do Rio e no país como
inviabiliza um trabalho político que se Forças Armadas para a segurança públi-
um todo não investem em informação
pretenda autônomo e radicalmente crí- ca interna. Ao final, se viu que a neces-
simplesmente porque não querem. É
tico do status quo. Seja pela ingerência sidade da intervenção dos mil e tantos
preciso, portanto, investigar as razões
direta exercida pelos traficantes, seja militares mobilizados para as operações
de base para essa lacuna. Em primeiro
pelas brechas abertas pela sua presen- da Vila Cruzeiro e do Alemão é duvidosa.
lugar, há problemas institucionais que
ça incidiosa às ações intempestivas e Se se trata da superioridade numérica,
precisam ser resolvidos, como a comu-
autoritárias da polícia. As UPPs abrem, as polícias Militar e Civil têm mais de 40
nicação entre as diferentes polícias. Há,
em tese, espaço para que a população mil homens só no Rio de Janeiro à dis-
por exemplo, uma série de conflitos de
destes locais volte a se organizar politi- posição. Se se trata da tal superioridade
competência, além, claro, de conflitos
camente de maneira crítica e indepen- material, não vejo muito claramente em
de interesses políticos e de outros me-
dente, inclusive permitindo a circulação quê dezenas de blindados do Exército e
nos nobres. Finalmente, o cobertor da
de ativistas de favelas diferentes que, da Marinha, que nem ao menos podem
segurança é curto, muito curto. Os in-
antes, eram muito frequentemente im- entrar nos becos das favelas, podem

30 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


ajudar concretamente. Trata-se, pois,
de recolocar na ordem do dia o empre-
go das Forças Armadas em assuntos de
segurança pública interna. Ao Estado,
o uso das Forças Armadas para estes
fins até pode ser conveniente, usando Evolução e transumanismo: o
a massa ociosa do contingente militar e
desonerando, assim, o investimento em
polícia. Seria, digamos, a solução neo-
advento de um novo ser humano?
liberal para a segurança pública. Agra-
O conceito de antropocentrismo ruiu com as constatações da
da também a uma opinião pública cada
vez mais conservadora, manipulada Teoria da Evolução, e o transumanismo se vale da técnica para
pelo discurso oficial que é reproduzido melhorar a vida dos seres humanos, aponta o filósofo Ricardo
e ampliado pela grande mídia. Mas os
Bins di Napoli. Filósofos, juristas e cientistas devem debater o
riscos para a democracia são evidentes.
Primeiro porque as Forças Armadas não tema em conjunto
têm preparo para exercer funções de
polícia. Depois, e, sobretudo, pelo ima-
Por Márcia Junges
ginário que se fortalece entre a popula-
ção, desrespeitamos a constituição em

“O
prol da manutenção da ordem. Isto não transumanismo é um pensamento com princípios éticos
nos deveria lembrar alguma coisa?
no sentido de tomar a dianteira e orientar as mudanças
do homem futuro. Ele se baseia na ideia que temos que
IHU On-Line - Como fica a imagem
do Brasil fora do país a partir deste usar a ciência e a técnica de forma racional para me-
episódio? lhorar a vida no planeta, minimizando o sofrimento”.
Eduardo Tomazine - Eu moro, atu- A explicação é do filósofo Ricardo Bins di Napoli na entrevista que concedeu
almente, na França, de maneira que por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião, “entre a fé cega na tecnociência
posso acompanhar bem a impressão e a sua demonização há um caminho de responsabilidade que deve buscar o
que se tem aqui fora do Brasil com controle e regulamentação do seu uso das novas tecnologias. Para isso, pre-
este episódio. É claro que isto abala a cisa-se que filósofos, juristas e cientistas trabalhem juntos, sem, contudo,
imagem do país, mas eu acredito que dissociar-se da sociedade”. Outra ideia que traz ao debate é de que o tran-
o Brasil esteja com um certo “crédito” sumanismo também tem uma “posição democrática”, e ao invés de proibir
diante da opinião pública internacio- ou banir a inovação tecnológica, é melhor que ela seja regulada e discutida
nal. Lula é muito popular por aqui, e a
paulatinamente. E completa: “a sobrevivência da espécie implica, ao mesmo
grande mídia (ao contrário da brasilei-
tempo, perceber-se que o homem perdeu a sua centralidade na natureza. Ele
ra) não se cansa de fazer elogios a ele
e à emergência do Brasil. Eles sabem também é fruto da evolução”.
que a situação de violência no Brasil, e Ricardo Bins di Napoli é professor na Universidade Federal de Santa Maria -
no Rio em particular, é antiga. Filmes UFSM. Possui doutorado em Filosofia, iniciado na Ludwig-Maximilliams Universi-
como Cidade de Deus e Tropa de Elite tät, de Munique (Alemanha), e concluído na Pontifícia Universidade Católica do
fizeram muito sucesso pelo mundo, de Rio Grande do Sul - PUCRS. É mestre em Filosofia pela Universidade Federal do
maneira que a violência dos conflitos Rio Grande do Sul - UFRGS. Atua na área de Filosofia Moral e Política. Publicou
entre a polícia e os traficantes não é Ética e compreensão do outro: a ética de Wilhelm Dilthey sob a perspectiva
novidade para ninguém. Ocorre que, do encontro interétnico (Porto Alegre: Edipucrs, 2000) e juntamente a outros
diante dos últimos episódios, a mídia autores organizou Ética e Justiça (Santa Maria: Palotti, 2003), com textos sobre
aqui tem sido mais cautelosa, indican- J. Rawls e outros filósofos, abordando a justiça, e Norberto Bobbio: Direito,
do o discurso oficial no Brasil, segundo
Ética e Política (Ijuí: Editora Unijuí, 2005). Confira a entrevista.
o qual houve uma grande e decisiva
vitória, mas colocando sob suspeição
a capacidade de controle da situação IHU On-Line - Quais são os princi- nimo duas alternativas de ação que
no longo prazo. O fato é que o governo pais dilemas morais do desenvolvi- têm o mesmo valor moral. É um di-
do Rio tem sido habilidoso na imple- mento técnico-científico? lema porque temos que realizá-las,
mentação da sua estratégia, e estes Ricardo Bins di Napoli - Há muitos mas não podemos fazê-las ao mesmo
estertores agora, em 2010, têm um dilemas envolvendo o desenvolvi- tempo. Por causa disto, ao se optar
impacto muito diferente do que se mento técnico-científico. Todo o di- por uma das alternativas, não se
houvessem ocorrido às vésperas da lema moral genuíno envolve no mí- pode realizar a outra que também
Copa e das Olimpíadas.

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 31


deveria moralmente ser realizada. “Esse aspecto dual de por exemplo, não é controlada por de-
Embora faça uma das coisas, se sen- cisão política em uma região da Terra,
te arrependimento por não ter sido um melhoramento então a decisão é por extermínio da-
possível realizar a outra. Alguns falam quela população. Veja-se o caso das
em sentimento de remorso ou culpa. científico traz o dilema doenças que se disseminam em países
De certo modo, então, quando não se com precárias condições sanitárias e
consegue combinar coisas igualmente moral que envolve a médicas.
importantes a serem feitas do ponto
de vista moral ao mesmo tempo, fica- decisão se se deve ou Melhoramento da espécie
se em uma situação dilemática. O di-
lema é uma situação em que o agente não levá-lo adiante” Entretanto, se pode não só aplicar
tem consciência da obrigação moral técnicas presentes na evolução para
de realizar as duas ações. melhorar animais e humanos através
Nem toda decisão difícil implica evolução e transumanismo? de seleção. Mas com o desenvolvimen-
um dilema. Por exemplo, quando se Ricardo Bins di Napoli - A evolução to científico da engenharia genética,
pensava que o desenvolvimento eco- permitiu que o homem como espécie pode-se talvez melhorar rapidamen-
nômico era incompatível com a pre- chegasse a ser o que é, sendo capaz te a espécie. Há, porém, riscos nesse
servação ambiental, a modernização tanto de cooperar com outros homens, processo, que não podemos negar. A
industrial parecia um dilema, porque como de destruir o seu semelhante. sociedade, por isso, precisa ser convi-
ou se agia defendendo-a ou se preser- Se o homem chegou onde está por dada a regular esse processo jurídica,
varia o meio ambiente. Hoje se sabe meio da seleção é porque genetica- política e moralmente.
que era um falso dilema, pois há mui- mente ele sobreviveu como espécie. O transumanismo é um pensamen-
tas formas de desenvolvimento eco- Muitas vezes se esquece isso. Contu- to com princípios éticos no sentido
nômico que pode ser compatível com do, a sobrevivência da espécie impli- de tomar a dianteira e orientar as
a preservação ambiental do planeta. ca, ao mesmo tempo, perceber-se que mudanças do homem futuro. Ele se
Muitos dos genuínos dilemas morais o homem perdeu a sua centralidade baseia na ideia que temos que usar
hoje envolvem o início e o fim da vida na natureza. Ele também é fruto da a ciência e a técnica de forma racio-
humana. O desenvolvimento da gené- evolução. Essa ideia parece que não é nal para melhorar a vida no planeta,
tica está cada vez mais colocando a ainda muito bem compreendida pelas minimizando o sofrimento. Dois filó-
disposição do homem comum novas pessoas e não está de todo assimilada sofos, Nick Bostrom e David Pearce
possibilidades de escolha. Por exem- no nosso cotidiano. (que esteve recentemente em Santa
plo, para os pais que têm na família O desenvolvimento tecnológico Maria), fundaram a Associação Mun-
doenças hereditariamente transmissí- surgiu quando o homo sapiens já exis- dial Transumanista em 1998. O pen-
veis, pode-se evitar transmitir a doen- tia e de certo modo foi um processo samento transumanista não se limita
ça para seus filhos. Mas a terapia ge- fascinante. Creio, por outro lado, que à transformação genética do homem,
nética poderia ser usada também para não podemos ser ingênuos ao ponto de mas incorpora a criação de máquinas
se criar pessoas com mais força física. não perceber os problemas sociais que e partes artificiais (eletrônicas e me-
As novas capacidades, que superam estão envolvidos no desenvolvimento cânicas) que possam resolver proble-
as do que um ser humano normal, po- tecnológico. Não quero, entretanto, mas e melhorar capacidades huma-
dem ser aproveitadas, por exemplo, demonizar a técnica como fizeram nas. O desenvolvimento de robôs e de
nas competições esportivas no futuro. Rousseau e a Teoria Crítica da Socie- inteligência artificial faz parte disso.
Mas esse tipo de melhoramento pode- dade e mesmo, em parte, Heidegger. Máquinas ultrainteligentes precisarão
ria também ser usado a fim de se criar Temos que aprender a lidar com ela de códigos morais de conduta. Se em
indivíduos para combate militar em e com os poderes que ela disponibi- trinta anos pudermos criar essas má-
conflitos armados. Então, desenvolver liza ao homem que a controla. Mes- quinas teremos passado para uma era
tais tecnologias parece ser eticamen- mo com a bioética se corre o risco de pós-humana. Teremos realizado previ-
te condenável nesse caso, pois criaria dar uma aparência de discurso moral sões de romances e filmes de ficção
seres soldados geneticamente modifi- às nossas deliberações, que podem científica como Blade Runner, Inteli-
cados. Seria isso moralmente aceitá- simplesmente, dependendo como se  Nick Bostrom: filósofo sueco, fundador da
vel? Esse aspecto dual de um melhora- proceder, dar uma ilusão de que se Associação Transumanista Mundial, em 1998, e
mento científico traz o dilema moral está fazendo escolhas éticas nos pro- diretor do Instituto do Futuro da Humanidade,
criado na Faculdade de Filosofia de Oxford.
que envolve a decisão se se deve ou cedimentos da biomedicina. A medici- (Nota da IHU On-Line)
não levá-lo adiante. Deve-se ver que na aliada ao poder passa ser mais do  David Pearce: filósofo britânico, abolicio-
ou realizamos o melhoramento huma- que uma prática preventiva, curativa nista. Junto com Nick Bostron é fundador da
Associação Transhumanista Mundial. (Nota da
no, ou deixamos que os geneticamen- e reabilitadora. Ela também passou a IHU On-Line)
te doentes morram. ser planificadora, pois permite, por  Blade Runner, O Caçador de Andróides:
exemplo, controlar as populações de filme de ficção científica, dirigido por Ridley
Scott. No ano de 2019, um ex-policial é obri-
IHU On-Line - Qual é o nexo que une muitos modos. Se uma epidemia letal, gado a descobrir e eliminar replicantes, que

32 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


gência Artificial e Eu, robô. A nano- “A fé, no cristianismo, da independência dos domínios da fé
tecnologia também abriu um novo em relação aos da política e da ciên-
campo de investigações e já há juris- tem um fundamento cia. Não vejo uma razão, portanto, para
tas estudando a regulamentação dos que (uma vez que as liberdades sejam
usos dessas tecnologias como é o caso dogmático na crença em garantidas, os direitos e os deveres dos
do professor Dr. Wilson Engelmann da cidadãos estejam definidos) não se possa
Unisinos. um ser absoluto, criador deixar um espaço de deliberação indivi-
dual, permitindo a cada pessoa ou grupo
IHU On-Line - Quais são os limites e de todo o universo. A religioso lidar adequadamente com suas
possibilidades que se descortinam a preferências religiosas em um Estado
partir do poder criador conferido ao razão científica não pode laico. Evidentemente surgirão conflitos,
homem pelas tecnologias por ele in- mas eles deverão ser resolvidos caso a
ventadas? ser dogmática e deve caso. É importante salientar que mui-
Ricardo Bins di Napoli - É responsa- tos valores morais como a compaixão e
bilidade da sociedade contribuir para aceitar o princípio da o amor têm origem e apoio na religião
a regulação dessas inovações. Entre a cristã, por exemplo.
fé cega na tecnociência e a sua demo- falseabilidade”
nização há um caminho de responsa- IHU On-Line - Como ficam as ques-
bilidade que deve buscar o controle e tões da alteridade e da representa-
regulamentação do seu uso das novas lhem juntos, sem, contudo, disso- ção democrática ao supormos que o
tecnologias. Para isso, precisa-se que ciar-se da sociedade. Esse trabalho pós-humano é autopoiético?
filósofos, juristas e cientistas traba- dependerá de muitos. Para se garantir Ricardo Bins di Napoli - Deve-se ima-
retornam à Terra para cobrar vida mais longa
à ciência um máximo de liberdade, ginar que o transumanismo também
ao seu criador. Com direção de Ridley Scott devem-se buscar os valores que estão tenha uma posição democrática. E em
(Gladiador) e Harrison Ford, Daryl Hannah e sendo colocados em jogo a cada dia e
Rutger Hauer no elenco. Recebeu 2 indicações um governo democrático se pode ima-
ao Oscar. Confira a entrevista Pós-máquinas ci-
buscar-se discutir a justificação para ginar maior possibilidade de o Estado
berhominizadas? O pós-humano e o movimen- adotá-los, ou não. tenha um papel de regulação das novas
to social do capital, concedida por Giovanne
Alves à edição 252 da Revista IHU On-Line, de tecnologias para a segurança de todos
31-03-2008, disponível em http://migre.me/
IHU On-Line - Em que medida esse e que a garantia que os benefícios se-
2KaO9. O filme foi exibido no Ciclo de Filmes poder de criação sedimenta o re- jam extendidos progressivamente a
e Debates - Subjetividade e Normalização: lativismo de valores e, inclusive, a
Discutindo políticas de identidade e saúde todos os cidadãos de um Estado ou Co-
mental na sociedade contemporânea - Pré-
fragmentação do divino e do próprio munidade de Estados, e não só a uma
evento ao XI Simpósio Internacional IHU: O sujeito? minoria mais rica.
(des)governo biopolítico da vida humana, em Ricardo Bins di Napoli - O relativismo
09-09-2010, e debatido pelo Prof. Dr. Carlos
Gadea. (Nota da IHU On-Line)
absoluto é uma falácia, pois se tudo IHU On-Line - Gostaria de acrescen-
 Nanotecnologia: ciência associada a diver- é relativo, até mesmo o que seu de- tar algum aspecto não questionado?
sas áreas (como a medicina e eletrônica) de fensor falante diz ser relativo é rela-
pesquisa e produção na escala nano. O prin- Ricardo Bins di Napoli - É bom reforçar
cípio básico da nanotecnologia é a construção
tivo. Logo, a própria afirmação do re- a ideia de que não é desejável se omi-
de estruturas e novos materiais com base nos lativismo estaria destruída. Há muitos tir deste debate. Pior ainda seria tomar
átomos (como se fossem tijolos). É uma área valores universais que são muitas ve-
promissora, mas que dá apenas seus primeiros decisões sem informação. É importan-
passos, mostrando, contudo, resultados sur-
zes obscurecidos diante do argumento te conhecer-se o trabalho da evolução
preendentes, como na produção de semicon- relativista: os direitos da pessoa (ela para saber por que chegamos a ser o
dutores, por exemplo. Sobre o assunto, a IHU poderia incluir alguns animais) e a
On-Line publicou a edição 120, de 25-10-2004, que somos. Por isso, é importante co-
intitulado O mundo desconhecido das nano-
paz, por exemplo. nhecer a psicologia humana, o cérebro,
tecnologias, disponível em http://migre.me/ a cognição e a fisiologia humana, entre
2K9cl, e a edição 259, de 26-05-2008, intitula- IHU On-Line - Se o ser humano é seu outras coisas. Evidentemente, nem to-
da Nanotecnologias: possibilidades incríveis e
riscos altíssimos, disponível em http://migre.
próprio experimento, qual seria o das as pessoas têm sido defensores do
me/2K9h0. (Nota da IHU On-Line) espaço de Deus na atualidade? transumanismo. Creio que podemos ter
 Wilson Engelmann: Mestre em Direito e Es- Ricardo Bins di Napoli - A questão é re-
pecialista em Direito Político pela Unisinos, vários argumentos contrários e Fukuya-
onde é professor das disciplinas Introdução
levante para muitas pessoas. Coloca o ma definiou o transumanismo como “a
ao Estudo do Direito e Teoria Geral do Direi- problema da razão e sua relação com a
to. É integrante da Comissão de Coordenação fé. A fé, no cristianismo, tem um funda-  Francis Fukuyama (1952): professor ame-
do Curso de Graduação em Direito na mesma ricano de economia política internacional da
universidade. Confira a entrevista As nanotec-
mento dogmático na crença em um ser Paul H. Nitze School of Advanced International
nologias. Uma reflexão ética a partir de John absoluto, criador de todo o universo. A Studies, na Johns Hopkins University, nos EUA.
Finnis, concedida por Engelmann às Notícias razão científica não pode ser dogmática Seu primeiro livro, O fim da história e o último
do Dia 12-01-2008, disponível em http://mi- homem (1992), figurou nas listas de mais ven-
gre.me/2K8Zh. Confira, também, o IHU Re-
e deve aceitar o princípio da falseabili- didos de diversos países, como EUA, França,
pórter realizado com Engelmann, disponível dade. Além disso, faz parte das socieda- Japão e Chile, tendo ganhado o Los Angeles
em http://migre.me/2K91t. (Nota da IHU On- des democráticas ocidentais a aceitação Times Book Critics Award e o Prêmio Capri (Itá-
Line) lia). Outros livros representativos de sua obra

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 33


“Alguns transumanistas
e mesmo os chamados
bioconservadores são
Livro da Semana
contra a eugenia
COSTA, Horácio; BENTO, Berenice; GARCIA, Wilton; INÁCIO, Emerson; e SIQUEIRA,
inspirada em motivos Wiliam (org.). Retratos do Brasil Homossexual. – Fronteiras, Subjetividades e
Desejos (São Paulo: Edusp, 2010).
racistas ou em Estados
autoritários ou
Estamos no começo de um longo
totalitários”
caminho a percorrer
ideia mais perigosa hoje”. Outros colo-
cam o problema em termos de “crime Ao destacar alguns aspectos da obra Retratos do Brasil Homos-
contra a humanidade”.
Entretanto, alguns transumanis-
sexual, Horácio Costa reflete sobre a questão da homofobia no
tas e mesmo os chamados biocon- Brasil hoje
servadores são contra a eugenia ins-
pirada em motivos racistas ou em
Por Graziela Wolfart
Estados autoritários ou totalitários.
Os problemas morais implicados são,

E
de fato, muitos. Deve-se pensar nas
stá sendo lançado o livro Retratos do Brasil Homossexual. – Fron-
alterações dos nossos valores que
teiras, Subjetividades e Desejos (São Paulo: Edusp, 2010). A IHU
essa tecnologia poderia produzir.
Não tenho uma posição bem defini- On-Line entrevistou por e-mail um dos organizadores da obra, o
da a respeito, mas estou inclinado a professor Horácio Costa, da Universidade de São Paulo – USP. Segun-
pensar que é melhor irmos regulando do ele, um dos objetivos do livro é reunir um expressivo número de
e discutindo a inovação tecnológica ensaios escritos majoritariamente por acadêmicos brasileiros, de diferentes
do que banirmos ou proibi-la total- procedências, assim como por intelectuais hispano-americanos e brasileiros,
mente. É melhor planejar o futuro sobre o tópico LGBTT e da homocultura no Brasil de hoje, passados 80 anos
e orientar esse processo. Não temos daquele Retrato do Brasil de Paulo Prado, um dos livros fundacionais do pen-
certeza de muitas coisas ainda hoje. samento sociológico no país, livro que, a não ser subsidiariamente, menciona
Mesmo a prometida revolução ge- os ‘sodomitas’ nessa visão panorâmica do povo brasileiro. Para Costa, no Bra-
nética com o mapeamento do geno- sil somos exemplarmente hipócritas, em termos históricos: filhos de menta-
ma humano não produziu os efeitos
lidades tridentinas que elegeram a instituição de dois pesos e duas medidas
anunciados na época.
como forma de relacionar-se com o real desde o século XVI.
José Horácio de Almeida Nascimento Costa é graduado em Arquitetura e
Leia Mais... Urbanismo pela USP. Na New York University, realizou mestrado em Artes, e na
Yale University, o mestrado e doutorado em Filosofia. É, atualmente, professor
>> Ricardo Bins di Napoli já concedeu outra
entrevista à IHU On-Line. Confira. da USP e autor de diversas obras de poesia, entre as quais Satori (São Paulo:
* “A serenidade é a outra face da política”. Publi- Iluminuras, 1989), Quadragésimo (São Paulo: Ateliê Editorial, 1999) e Fracta
cada na IHU On-Line número 335, de 28-06-2010,
disponível em http://migre.me/2FK4f. (São Paulo: Perspectiva, 2004). Confira a entrevista.

são Confiança (1995), A grande ruptura (1999) IHU On-Line - Qual o principal ob- ricanos e brasileiros, sobre o tópico
e Nosso futuro pós-humano (2002), todos pu- jetivo da obra Retratos do Brasil LGBTT e da homocultura no Brasil de
blicados pela Editora Rocco, de São Paulo. Homossexual? hoje, passados 80 anos daquele Re-
Especialista em questões políticas e militares
da Europa e do Oriente Médio, Fukuyama já Horácio Costa - Reunir um expressivo trato do Brasil de Paulo Prado, um
integrou o Conselho de Planejamento Político número de ensaios escritos majorita-
do Departamento de Estado norte-americano. riamente por acadêmicos brasileiros,  Paulo Prado (1869-1943): escritor e ensaís-
Atualmente, ele é membro do Conselho Pre- ta brasileiro, considerado junto de Monteiro
sidencial de Ética em Biotecnologia, dentre de diferentes procedências, assim Lobato um dos que melhor dominaram a arte
diversos outros títulos e cargos de prestígio como por intelectuais hispano-ame- e a prática de interpretar. (Nota da IHU On-
internacional. (Nota da IHU On-Line) Line)

34 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


dos livros fundacionais do pensamen- nessa corrente de verdadeirização
to sociológico no país, livro que, a não e renovação moral da forma mentis
ser subsidiariamente, menciona os como um todo.
sodomitas nessa visão panorâmica do
povo brasileiro. IHU On-Line - Que relações podem
ser estabelecidas entre homocultu-
IHU On-Line - Como poderia ser defi- ra e Direitos Humanos?
nida a subjetividade do homossexu- Horácio Costa - A homocultura é um
al brasileiro? conceito em devir frente aos direi-
Horácio Costa - Impossível de respon- tos humanos que tem mais de 200
der. Ou, por oposição: como se defini- anos de estabelecimento na França.
ria a subjetividade do heterossexual Portanto, diríamos que aquela é sub-
brasileiro? E ainda: será a subjetivi- sidiária destes, assim como muitos
dade dos políticos e dos oligarcas tão direitos assentes, após serem con-
igualitariamente espalhados do Oia- quistados nesse lapso de tempo, sob
poque ao Chuí tão subjetiva quanto a a rubrica humanos, em diferentes
dos homossexuais que lutam por seus sociedades ocidentais. O exercício

na página eletrônica do IHU


direitos civis? E mais: a subjetividade da homossexualidade, ou da prefe-
dos que acreditam em impedimentos rência sexual, deve ser garantido

Leia as Notícias do Dia


morais e/ou religiosos é tão subjetiva não apenas na intimidade física dos

www.ihu.unisinos.br
quanto a das mulheres que têm que cidadãos, como, em princípio, já o
frequentar clínicas de aborto clan- é, mas também em suas manifesta-
destinas? ções mais etéreas e/ou subjetivas,
onde reconhecemos a homocultura.
IHU On-Line - Como entender que Daí para a formalização em aras da
o país com a maior Parada Gay do legislação, da pluralidade, e da di-
mundo ainda tenha um índice tão ferença das minorias homossexuais
alto de ódio contra homossexuais? e conexas, um passo: nenhum direi-
Horácio Costa - Somos exemplar- to garantido por princípio à maioria
mente hipócritas, em termos histó- dos brasileiros nos deve ser nega-
ricos: filhos de mentalidades triden- do. Como disse no meu discurso de
tinas que elegeram a instituição de abertura da IV Associação Brasileira
dois pesos e duas medidas como for- de Estudos da Homocultura - ABEH,
ma de relacionar-se com o real des- um Estado que nos negue tal possi-
de o século XVI. Ainda, e um pouco bilidade democrática é um Estado
em função disso, pois temos valores provedor de infelicidade, um Esta-
retóricos de encobrimento e desvio do infelicitante, e daí moralmente
da realidade realmente fabulosos: se comprometido. A garantia de tais
eu não falar sobre ela, a questão não direitos aos homossexuais se insere,
existe (foi assim com a escravatura, de fato, na renovação moral do Esta-
não?). Ou seja, no que concerne ao do brasileiro, que a nação tem exi-
problema da homofobia; estamos no gido de muitas maneiras. Sem essa
mesmo patamar de (alta voltagem garantia, o Brasil jamais estará livre
de) hipocrisia como com relação a das distorções que o caracterizaram
outras questões que afetam a nossa ao longo da história.
vida em sociedade. Só que, antes,
não se falava dele. Agora os homos-
sexuais brasileiros estão levando
este debate ao grande cenário nacio- Leia Mais...
nal, e há algumas respostas positivas >> Horácio Costa já concedeu outra entre-
e algumas negativas outras: algo já vista à IHU On-Line:
aconteceu no processo, mas sinto * A memória homossexual como campo de reivindi-
cação política. Entrevista publicada nas Notícias do
que estamos no começo de um longo Dia do sítio do IHU, em 28-05-2009, e disponível em
caminho a percorrer. Esse debate, http://bit.ly/evQVyw.
juntamente com outros conexos, re-
sultará em benefício para a socieda-  A IV Associação Brasileira de Estudos da Ho-
de como um todo, e não apenas para mocultura aconteceu de 9 a 12-09-2008, na
o segmento LGBTT, já que se insere Universidade de São Paulo (USP). (Nota da IHU
On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 35


Televisão e interesse público
Por Carine Prevedello*

O segmento das emissoras públicas No entanto, esse é um debate que está


reúne, no Brasil, uma multiplicidade de associado, do ponto de vista teórico, a
caracterizações e finalidades que aca- questões ainda não resolvidas.
bam por delinear esse grupo em torno Consideradas segundo uma lógica de
da complexidade de configurações. São concorrência capitalista, sobre a qual
consideradas televisões públicas, de repousa uma tímida regulamentação
acordo com os Ministérios da Educação, que, ao invés de assegurar espaços de
Cultura e Comunicação, as emissoras interesse público, preserva privilégios
educativas, estatais, universitárias, hereditários e de classe no sistema de
comunitárias, e as ligadas aos poderes concessões políticas, emissoras vincula-
Executivo, Legislativo e Judiciário. Se das ao Estado, à sociedade civil e a en-
os canais comerciais têm um vínculo tidades privadas dividem um espectro
obrigatório com a manutenção de pa- eletromagnético de propriedade públi-
trocinadores, o que está, por sua vez, ca e concessão estatal (nível federal de
relacionado ao perfil dos programas, governo). Há, neste cenário, o reconhe-
os canais públicos tornam-se o meio cimento de três modelos estruturais: as
de suprir a demanda por programação organizações comerciais, que atendem
educativa, cultural, científica e relacio- à finalidade de lucro e são de proprie-
nada à cidadania. É coerente, por essas dade privada, as organizações público-
características, considerá-las como te- estatais, vinculadas ao Estado (soma-
levisões de interesse público, também das às mídias dos poderes), e ainda as
por estarem relacionadas a temas de organizações não comerciais, onde se
interesse coletivo. Entretanto, assim localizam as emissoras mantidas por
como a noção de interesse público, as entidades de direito privado, mas sem
formas de organização e de financia- finalidade lucrativa, ou a associações
mento das emissoras públicas carregam da sociedade civil.
consigo uma série de imposições que Entre aquilo que se denominam
significam limitações à independência organizações não comerciais, situam-
editorial e produção alternativa. se os canais controlados por entida-
A posição da Economia Política Crí- des filantrópicas ou sem finalidade
tica aponta a contradição entre a pro- lucrativa. Ainda, entretanto, que não
priedade privada dos meios de comu- apresentem finalidade comercial por
nicação e a característica de serviço determinação legal, muitas dessas
público que este setor presta, especial- emissoras são exploradas com fins de
mente na produção de bens simbólicos. marketing privado ou institucional, o
 De acordo com definição do Fórum Nacio- que reduz sua legitimidade enquanto
nal de TVs Públicas, entidade que desde 2006 televisões de interesse público, espe-
congrega as emissoras públicas.

* Jornalista, mestre em Comunicação pela UFSM, doutoranda pela Unisinos, pesquisadora do


Grupo CEPOS (Comunicação, Economia Política E Sociedade), apoiado pela Fundação Ford.

36 SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353


cialmente no caso das comunitárias. “A relação da nas. Não só nas questões diretamente
No segmento das TVs público-estatais, políticas, [...] o acesso aos espaços
localizam-se as vinculadas, exploradas comunicação como comunicacionais acaba sendo funda-
e mantidas pelo Estado, com orçamen- mental no processo de publicização”,
to público e administração exercida serviço público também ressalta Brittos. É uma reflexão que
por instituição estatal. Enquadram-se encontra consonância no pensamento
neste segmento também as televisões está embasada na de Gentilli, que identifica nas funções
operando como sociedades de econo- de publicização das campanhas gover-
mia mista, como é o caso da TV Cultu- associação dos direitos namentais de saúde, educação e sa-
ra de São Paulo e, mais recentemente, neamento, assim como de divulgação
da TV Brasil. sociais e culturais com a de estratégias para valorização das
A discussão do interesse público con- peculiaridades regionais e integração
frontando o interesse privado é outro concepção da cultural, atividades essenciais desen-
foco de debate pertinente à dicotomia volvidas pelos meios de comunicação
entre televisões públicas e comerciais. centralidade do direito à na promoção do direito à informação:
De um lado, apreende-se o conceito “nas sociedades modernas, estrutu-
de interesse privado como finalidade informação para o radas como democracias represen-
ou objetivo intrínseco às atividades e tativas, todos os direitos em alguma
organizações de propriedade privada. exercício da cidadania” medida relacionam-se com o direito à
Estão, de uma forma bastante objeti- informação.”
va, comprometidos com um interesse Dados esses argumentos, propomos
que é individual, restrito à pessoa ou pública é a finalidade própria da ad- cercar a noção de interesse público
grupo, e não à coletividade. Por outro ministração pública, enquanto provê alinhada às organizações de comuni-
lado, o conceito de interesse públi- à segurança do Estado, à manutenção cação como um arcabouço de valores
co, por ser difuso e estar associado à da ordem pública e à satisfação de adaptado mais coerentemente às insti-
pretensão de definir valores coletivos, todas as necessidades da sociedade”, tuições público-estatais em função da
encontra uma série de resistências em considerando-se os serviços de comu- atenção aos princípios constitucionais
nível de definição teórico. nicação como direito à informação e regentes da administração pública e
Frente à dificuldade de se obter à cultura. ao reconhecimento do direito à infor-
consenso acerca de uma teorização A relação da comunicação como mação como premissa para a efetiva-
sobre interesse público, são úteis as serviço público também está embasa- ção dos demais direitos.
ponderações da área do Direito, que da na associação dos direitos sociais e  BRITTOS, Valério. Digitalização, democra-
associa o conceito aos princípios nor- culturais com a concepção da centra- cia e diversidade na fase da multiplicidade da
lidade do direito à informação para o oferta. In: BRITTOS, Valério (org.). Digitaliza-
teadores da administração pública, ção, diversidade e cidadania: convergências
previstos na Constituição Federal, e exercício da cidadania. “A mídia exer- Brasil e Moçambique. São Paulo: Annablume,
ao princípio da utilidade pública como ce um papel fundamental no exercício 2009, p. 17-29, p. 25-26.
da cidadania nas democracias moder-  GENTILLI, Victor. Democracia de massas:
caracterizador das entidades às quais jornalismo e cidadania – Estudo sobre as so-
se aplicariam as previsões relaciona-  LIMA, Rui Cirne. Princípios do Direito Admi- ciedades contemporâneas e o direito do ci-
das ao interesse público. “A utilidade nistrativo. 5ª edição. São Paulo, Ed. Revista dadão à informação. Porto Alegre: EDIPUCRS,
dos Tribunais, 1982, p. 15-16. 2005, p. 129.

SÃO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 353 37


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis mento


nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) de Entrevista com Heitor Costa, físico
30-11-2010 a 04-12-2010. Confira nas Notícias do Dia 02-12-2010
Disponível no link http://migre.me/2v2NJ
As mudanças da geografia política atual “Não se pode aceitar a irresponsabilidade dos governantes de
Entrevista com Francisco Whitaker, arquiteto, cofundador quererem fazer crer a população que o crescimento econômi-
do Fórum Social Mundial co, a qualquer custo, é uma panaceia para todos os males do
Confira nas Notícias do Dia 30-11-2010 país”, afirma o pesquisador
Disponível no link http://migre.me/2FNDF
Whitaker analisa avanços, problemáticas e retrocessos do
processo político atual e indica os reacertos que o Brasil pre- A lógica da economia do eucalipto
cisa fazer. “Apesar de a desigualdade social ser uma realidade Entrevista com Dirce Suertegaray, geógrafa
absolutamente concreta e absurda no Brasil, a consciência Confira nas Notícias do Dia 03-12-2010
disso ainda é muitíssimo baixa”, afirma. Disponível no link http://migre.me/2FOCn
Um estudo recente apontou que, em menos de dez anos, o
A ação policial e militar no Complexo do Alemão é uma Brasil reservou 720 hectares por dia para plantações de eu-
regressão calipto e a maior parte dessas terras pertence a empresas es-
Entrevista com Ignácio Cano, sociólogo trangeiras.
Confira nas Notícias do Dia 01-12-2010
Disponível no link http://migre.me/2FOb9 A Mata Atlântica fragmentada
Para Cano, a “grande ação” de ocupação do Alemão “é uma Entrevista com Maury Abreu, biólogo
regressão no sentido dessas políticas públicas reativas que Confira nas Notícias do Dia 04-12-2010
consistiam numa retaliação territorial contra áreas cujos Disponível no link http://migre.me/2KbIy
dirigentes criminosos, teoricamente, teriam ordenado as “O maior dos problemas na Mata Atlântica é, sem dúvida,
ações na cidade”. a fragmentação do hábitat”, diz o pesquisador. Para ele, os
órgãos responsáveis pela fiscalização e manutenção dessas
Brasil tem condições de criar novo caminho de desenvolvi- áreas são ineficientes.

Leia a Entrevista do Dia em


www.ihu.unisinos.br

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http://twitt
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IHU Repórter

Rosane Martins da Rocha


Por Graziela Wolfart | Fotos Arquivo Pessoal

Q
uem vai até o posto de atendimento das Ciências da Comunicação da Unisinos
conhece o sorriso dela: Rose é a entrevistada da edição desta semana, quando
conta os aspectos mais marcantes da sua trajetória pessoal e profissional. “Tudo
que fiz na minha vida eu faria de novo. Não me arrependo de nada. Sou uma pes-
soa calma e tranquila, até que me tirem do sério. Sou tolerante e justa. Procuro
agir dentro dos parâmetros da imparcialidade. Estou sempre rindo e brincando. E aceito as
pessoas como elas são. Sei conviver em paz e cordialmente, respeitando o outro. As pessoas
falam em igualdade, mas não em respeito. Quando se aprende a respeitar o outro, ele passa
a ser igual a nós”. Saiba mais sobre essa mulher que sonha em escrever um livro:

Origens – Nasci em São Leopol- presa Guedes, que fabricava bolsas, tirem “gente”. Posso querer mais do
do. Minha mãe não trabalhava fora por oito anos. Quando surgiu uma vaga que isso?
de casa e meu pai era taxista. Tenho aqui e comecei a trabalhar, em 1992,
três irmãos, sendo que o mais velho já me apaixonei, tanto pelos professores Família – Conheci meu marido na
é falecido. Aos 10 anos fui morar com como pelos alunos e pelo trabalho. Sou escola, no segundo grau. Fomos casa-
meus avós, por opção minha. Eu amava apaixonada pela Unisinos há 18 anos, dos durante 18 anos e estamos sepa-
demais meus avós e minhas referências que é o tempo em que estou aqui. Co- rados desde 2004. Temos uma filha de
de vida sempre foram eles. Eram pes- mecei como secretária da direção do 20 anos. Fui feliz no meu casamento,
soas simples, trabalhadoras, que me “antigo centro 3” e desde 2000 traba- mas terminou porque tinha que termi-
passaram valores éticos e morais que lho no posto de atendimento das Ciên- nar. Mantemos uma relação harmonio-
me orientam até hoje. Vivi com eles cias da Comunicação. Para mim, é um sa. Nossa filha se chama Angélli, e é
até quando me casei, aos 22 anos. prazer vir trabalhar. a razão da minha vida. Somos muito
amigas. Ela está cursando o ensino
Formação – Estudei na Escola Irmão Sala de aula – Além de trabalhar na médio no Científico e termina no ano
Weibert, aqui de São Leopoldo, depois Unisinos, tenho outra atividade mais que vem. Adoro meus irmãos e meus
na Escola Santa Terezinha, que era par- voltada para a área da Pedagogia, des- sobrinhos.
ticular e não existe mais. A pessoa que de 2004. Dou aulas no Senai, no pro-
mais me incentivou a estudar foi meu jeto “Soldado Cidadão”, que é uma Autores – Francisco do Espírito
avô. Já na Unisinos, cursei Pedagogia parceria entre o Senai e o governo fe- Santo Netto, Chico Xavier, Paulo Frei-
com ênfase em educação na empresa. deral. Dou aulas para os soldados que re, Ruben Alves e vários outros.
No ano que vem pretendo fazer uma estão dando baixa do quartel. Traba-
especialização em gestão social. lho com a parte de cidadania e postu- Livro – A Cabana, de William Young;
ra profissional. E leciono essas mesmas e As dores da alma, de Francisco do
Trajetória profissional – Traba- disciplinas para outros projetos vincu- Espírito Santo Netto.
lho desde os 14 anos de idade, mas a lados ao Senai. É um trabalho que faço
Unisinos sempre foi um objetivo para com prazer e que é muito gratificante; Filme – Nosso lar, de Wagner de
mim. Fui funcionária da empresa Ama- me dá um retorno muito positivo. Os Assis; e Minha vida na outra vida, de
deo Rossi durante seis anos e da em- alunos dizem que eu os faço se sen- Marcus Cole.
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Um sonho – Ter uma vida tranquila e ver
minha filha bem. Outro sonho é escrever um
livro, onde eu possa falar de experiências,
ideias, pensamentos e vivências que possam
levar o leitor a um momento de reflexão.

Nas horas livres – Adoro artesanato. Então,


nas minhas horas de folga, eu caminho, leio
e faço artesanato. Também gosto muito de
praia.

Relação com Deus – Tenho muita fé e con-


fiança em Deus, independente de qualquer
doutrina. Ele está acima de tudo. Acredito
que existe um caminho traçado, por isso que
algumas coisas que queremos não se realizam.
Tenho meus objetivos, mas sempre peço a ava-
liação d’Ele primeiro. Sou espírita praticante.

Unisinos – Uma porta para o mundo. Basta


entrar aqui com clareza do que se quer. O sim-
ples fato de passar aqui por dentro modifica a
vida das pessoas. Com a Unisinos, vemos que
o mundo é muito maior do que se pode ima-
ginar.

IHU – Um elo afetivo que une os diferen-


tes públicos na Unisinos: alunos, funcionários,
professores. É uma referência. Leio a revista
sempre que posso, e reservo uma para um alu-
Rosi com a filha, com os irmãos Sandra e Elia-
no que sempre vem buscar. Ele coleciona a
no e, abaixo, com a mãe, Luci. IHU On-Line.

Confira outras edições da IHU On-Line no


endereço www.ihu.unisinos.br
Destaques
Atualização diária das Notícias do Dia
A cada manhã as Notícias do Dia do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU são atualizadas.
Notícias, artigos e entrevistas veiculadas na mídia do Brasil e do mundo e textos enviados por
especialistas de diversas áreas do conhecimento, são colocados à disposição de milhares de leitores
e leitoras do Brasil e do exterior. Sua leitura oferece subsídios fundamentais para os/as internautas
ficarem sintonizados/as com os grandes temas da contemporaneidade. Para receber a Newsletter
das Notícias do Dia em seu e-mail, basta preencher seu nome e e-mail no link Cadastre-se. Acesse
www.ihu.unisinos.br.

Entrevista do Dia do IHU: exclusividade e dinamismo


Diariamente o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publica uma entrevista ex-
clusiva e especial. Temas abordados nas Notícias do Dia, sempre atuais, instigantes e
polêmicos, em pauta no Brasil e no mundo, são abordados e debatidos sob diferentes
pontos de vista. Para acompanhar a Entrevista do Dia do IHU, acesse a página www.
ihu.unisinos.br.

Um jesuíta no Império do Dragão


Padre Matteo Ricci (Macerata, Itália, 6-10-1552 — Pequim, 11-5-1610) foi um sacer-
dote jesuíta, missionário, cientista, geógrafo e cartógrafo renascentista italiano. É
conhecido pela sua atividade missionária na China da dinastia Ming e considerado o
fundador das modernas missões católicas na China, contribuindo, de modo deci-
sivo, para a introdução do catolicismo na neste país. A edição 347 da Revista IHU
On-Line, de 18-10-2010, teve como título Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o
signo da amizade, disponível para download em http://migre.me/2Ke9Q.
Valendo-se da trajetória emblemática desse missionário para debater a missão do Instituto Human-
itas Unisinos – IHU dentro do contexto da Companhia de Jesus, será exibido em 16-12-2010, das 17
às 19h, o documentário Matteo Ricci, um jesuíta no Reino do Dragão. O local da exibição e do de-
bate é a Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros. A direção do documentário é de Gjon Kolndrekaj.

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