Você está na página 1de 10

A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a

favor da qualidade da prática e da pesquisa docente

Dirce Mendes da Fonseca


Centro Universitário de Brasília

Resumo

O presente artigo foi desenvolvido tendo como eixo analítico a


obra de Gaston Bachelard na construção do “novo espírito cientí-
fico”, tendo como referência suas contribuições epistemológicas
traduzidas na pedagogia científica e análise do esgotamento do
positivismo como referencial da pesquisa em Ciências Sociais. Apre-
senta a epistemologia histórica de Bachelard — considera que todo
conhecimento é polêmico e que, nesse sentido, as construções
passadas devem ceder lugar às novas construções. Propõe a noção
de rupturas para indicar uma forma mais científica de produzir ci-
ências, a noção de processo dialético na produção de conheci-
mento científico e a concepção de conhecimento como progresso
contínuo de retificação. Busca relacionar a pedagogia científica à
prática pedagógica e apresenta as possibilidades de transformação
no campo da formação docente e da pesquisa, a partir de uma
visão peculiar de epistemologia e de uma prática científica crítica
e reflexiva. Uma pedagogia científica que deve ter como preocupa-
ção desenvolver ações formativas e estar inserida numa dupla pers-
pectiva — a educação entendida como prática social e histórica.
Tais reflexões encaminham para a articulação teoria-prática e para
a compreensão da pesquisa como uma atividade criativa. Desse
processo, deve resultar a compreensão do fazer científico, da prá-
tica interdisciplinar, da articulação teoria-prática e do aprendizado
integrado pesquisa/ensino.

Palavras-chave

Epistemologia — Metodologia — Pedagogia científica — Pesquisa,


ensino e prática científica.

Correspondência:
Dirce Mendes da Fonseca
SHIN Q.I. 06 conjunto 02 casa 22
71520-020 – Brasília – DF
E-mail: mendesdirce@yahoo.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 361-370, maio/ago. 2008 361
Bachelard’s scientific pedagogy: a reflection in favor of
the quality of teacher practice and research

Dirce Mendes da Fonseca


Centro Universitário de Brasília

Abstract

This article takes its analytical axis from the work of Gaston
Bachelard in the construction of the “new scientific spirit”, and is
based on his epistemological contributions as they appear in his
scientific pedagogy and analysis of the demise of positivism as a
research framework in the Social Sciences. The text introduces
Bachelard’s historical epistemology, in which all knowledge is
regarded as controversial, and that, therefore, old constructions
must give way to new constructions. It proposes the notion of
rupture to specify a more scientific way to produce science, the
notion of dialectic process in the production of scientific
knowledge, and the concept of knowledge as a continual process
of rectification. It seeks to correlate the scientific pedagogy with
pedagogical practice, and shows the possibilities of
transformation in the field of teacher education and research
based on a particular view of epistemology and of a critical and
reflective scientific practice. A scientific pedagogy that must have
its eyes on developing formative actions and on having a double
perspective: education understood as a social and historical
practice. These reflections lead us to articulate theory and
practice, and to understand research as a creative practice. From
such process should come forth our understanding of what it
means to do science, of interdisciplinary practice, of the
articulation between theory and practice, and of the integrated
learning of research and teaching.

Keywords

Epistemology — Methodology — Scientific pedagogy — Research,


teaching and scientific practice.

Contact:
Dirce Mendes da Fonseca
SHIN Q.I. 06 conjunto 02 casa 22
71520-020 – Brasília – DF
E-mail: mendesdirce@yahoo.com.br

362 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 359-368, maio/ago. 2008
Este texto tem como objetivo apresentar as tanto dialoga como se contrapõe à tradição
contribuições de Gaston Bachelard referentes à científica fundamentada no cartesianismo, nos
pedagogia científica e aos fundamentos epistemo- métodos de dedução predominantes na práti-
lógicos que constituíram suas bases, bem como ca científica. Pensa a ciência como um proces-
discutir metodologicamente a apreensão dessa so de negação dos conhecimentos atuais. Acre-
pedagogia na prática científico-docente. dita que a filosofia está sempre defasada em
Parte-se do ponto de vista de que as dis- relação à ciência e insiste no caráter inovador
cussões de Bachelard nesse campo teórico-epis- do espírito científico contemporâneo. Para o
temológico são importantes para o pensamento autor, “o novo espírito científico” precisa ultrapas-
pedagógico, considerando que os pressupostos da sar os obstáculos epistemológicos que impedem
pedagogia científica são, de certa forma, insepa- a ciência de progredir. Critica as concepções
ráveis dos pressupostos epistemológicos que fun- continuístas da história da ciência e introduz a
damentam, na visão do autor, “o novo espírito noção de ruptura para mostrar a idéia de descon-
científico”. Elas contribuem para refletir acerca de tinuidade da ciência. O espírito científico deve se
práticas científicas pedagógicas centradas em formar enquanto se reforma.
epistemologias de cunho racio-nalista e de prá- Um ponto fundamental na obra de
ticas pedagógicas conservadoras e acríticas da re- Bachelard (2000) é a ruptura que propõe com o
alidade social, bem como sobre a forma de pro- determinismo científico, com o método cartesiano
duzir conhecimentos centrados nos pressupostos e com o pensamento objetivo. Para ele, a epis-
e na visão positivista de ciência. Nesse sentido, as temologia cartesiana é uma epistemologia em cri-
contribuições do autor têm reflexo na forma de se. Na crítica da epistemologia objetivista, afirma
pensamento e nas práticas pedagógicas que ori- que “o método cartesiano é redutivo, não é
entam a pesquisa. indutivo” (p. 121), e que os métodos de pesquisa,
Para a discussão da pedagogia científica e em algum momento do desenvolvimento do pen-
suas contribuições, faz-se necessário, ainda que de samento científico, perdem, conseqüentemente, a
forma resumida, apresentar os referenciais que fun- sua vitalidade. Contrapondo ao determinismo cien-
damentam a obra de Bachelard, considerando que tífico que se aplica e se prova nos fenômenos sim-
o conceito de pedagogia científica está diretamen- plificados, à intuição, às impressões primeiras, ao
te relacionado ao campo epistemológico que o equívoco das primeiras idéias, ele afirma que o
autor desenvolve. Feita tais considerações, o texto pensamento complexo é um “pensamento ávido
procura pontuar os principais referenciais propostos de totalidade” (p. 123). É essa noção de pensa-
pelo autor, a partir dos quais elabora o conceito de mento complexo que deve estar na base da peda-
“pedagogia científica". Tal conceito está fundamen- gogia científica que alimenta a ciência moderna.
tado numa epistemologia dialógica e crítica. Para Bachelard (2000):
A transformação da prática docente im-
plica em mudança de concepção do próprio Na realidade não há fenômenos simples; o
trabalho pedagógico, muitas vezes conservador, fenômeno é um tecido de relações. Não há
centrado em relações autoritárias, na reprodu- natureza simples, nem substância simples,
ção e manutenção do conhecimento acrítico e porque a substância é uma contextura de
deslocado da realidade e em métodos positi- atributos. Não há idéia simples, porque uma
vistas-racionalistas. É, nesse sentido, que a obra idéia simples, como viu Dupréel, deve ser
de Bachelard é atual e instigante, tanto do inserida, para ser compreendida, num sistema
ponto de vista epistemológico como do ponto complexo de pensamentos e experiências. A
de vista metodológico. aplicação é complicação. As idéias simples
Bachelard é um autor complexo para o são hipóteses de trabalho, conceitos de traba-
seu tempo. No campo da epistemologia, ele lho, que deverão ser revisadas para receber

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 361-370, maio/ago. 2008 363
seu justo papel epistemológico. As idéias sim- da ciência e apresenta uma concepção de co-
ples não são a base definitiva do conheci- nhecimento científico como um “processo con-
mento; aparecerão, por conseguinte, com um tínuo de retificação” movido pela superação dos
outro aspecto quando forem dispostas numa obstáculos epistemológicos. Apela por um diá-
perspectiva de simplificação a partir das idéi- logo entre razão e experiência, por uma razão que
as completas. (p. 130) procura desaprender, por uma metodologia cons-
ciente, o que significa pensar uma pedagogia “em
A epistemologia de Bachelard rompe com ruptura com o conhecimento usual”, caracterizan-
as evidências cartesianas, propõe uma pedago- do, assim, por uma evolução metodológica, uma
gia do pensamento complexo e reafirma a ne- mudança de lógica, um profundo exercício de
cessidade de sempre reler o simples sob o múl- “todas as dialéticas”. É nesse sentido que se pode
tiplo e a partir de uma visão de complexidade. tomar a pedagogia bachelardiana com uma peda-
Permite um novo olhar sobre a prática gogia criativa que permite instituir novos saberes
científico-docente, ao introduzir o conceito de a partir de rupturas com o senso comum, com a
ruptura com a epistemologia cartesiana. Vale di- epistemologia cartesiana e permite pensar numa
zer que o pré-construído está posto, faz parte dos pedagogia dialética no sentido mais amplo. Uma
lugares comuns e está imerso no mundo social. pedagogia capaz de orientar os passos de educa-
As rupturas implicam pôr em suspenso as pré- dores para se livrarem das visões estreitas e de
noções, os dados do senso comum, as formas de todo o pragmatismo ingênuo.
pensamento que orientam práticas científicas Para Bachelard (2000), a noção de obstá-
centradas nos enfoques estritamente racionalistas- culo epistemológico pode ser estudada no desen-
positivistas. Destaca Bachelard (2000) que, na volvimento histórico do pensamento científico e
construção de objetos de pesquisa, há de consi- na prática da Educação, e nesta, afirma ele:
derar que o objeto sempre se apresenta como um
complexo tecido de relações e, para apreendê-lo, Muitas vezes me tenho impressionado com
tanto o pensamento quanto os métodos necessi- o fato de os professores de ciências, mais
tam exercitar todas as dialéticas. ainda, se possível, do que os outros, não
Ao romper com epistemologia cartesiana, compreenderem que não se compreenda.
essa forma de pensamento busca o complexo e o Muito poucos são aqueles que investigaram
indeterminado, ensejando os fundamentos a psicologia do erro, da ignorância e da
epistemológicos da razão aberta e do espírito ci- irreflexão. (p. 168)
entífico. Apóiam-se, essencialmente, na retificação
do saber e nas categorias históricas críticas, apre- Para ele, a tarefa do professor
ende o mundo social e os objetos do conhecimen-
to nas suas múltiplas ralações, interações e com- [...] consiste no esforço de mudar de cultu-
plexidades. Tais categorias e referências embasam ra experimental, de derrubar os obstáculos
uma forma de pensamento que pode contribuir já amontoados pela vida cotidiana, de pro-
para fundamentar a pesquisa crítica e reflexiva. Os piciar rupturas com o senso comum, com
fundamentos epistemológicos centrados nos pres- um saber que se institui da opinião e com
supostos da pedagogia científica inovam o fazer a tradição empiricista das impressões pri-
científico e o pensamento pedagógico. meiras. Assim, o epistemólogo tem de to-
mar os factos como idéias, inserindo-os
Para uma pedagogia científica num sistema de pensamento. (p. 168)

O autor, ao tratar da pedagogia científi- Um fato pouco compreendido ou mal


ca, faz uma primeira reflexão sobre a filosofia interpretado constitui um obstáculo, um

364 Dirce FONSECA. A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a favor...


contrapensamento. Assim, torna-se importante nar os objectos pela sua utilidade, coíbe-se
na formação do professor a reflexão e a apre- de os conhecer. Nada se pode fundar a par-
ensão da concepção de conhecimento que tir da opinião; é necessário, antes de mais,
fundamenta a sua prática científica. Bachelard destruí-la. Ela constitui o primeiro obstácu-
(2000) afirma que o problema do conhecimen- lo a ultrapassar. [...] O espírito científico
to científico deve ser pensado com base na proíbe-nos de ter uma opinião sobre ques-
noção de obstáculo. A superação de obstácu- tões que não compreendemos, sobre ques-
los se inicia com uma nova pedagogia, aquela tões que não sabemos formular claramente.
que ele chama de pedagogia científica, na qual É preciso, antes de tudo saber formular
o esforço do professor consiste em fazer com problemas. [...] É precisamente o sentido do
que os alunos se afastem da cultura científica problema que dá a marca do verdadeiro espí-
adquirida e da percepção apreendida na vida rito científico. Para um espírito científico, todo
cotidiana pelo senso comum. É impossível edu- o conhecimento é uma resposta a uma ques-
car por simples referência a um passado de tão. Se não houver uma questão, não pode
educação. É necessário pensar numa ciência haver conhecimento científico. Nada é natural.
em mutação e num pensamento aberto que se Nada é dado. Tudo é construído. (p. 166)
renova. O “espírito científico” tem que se fun-
dar, deformando-se. Assim, o conhecimento se A pedagogia científica instrui a prática e
estrutura na fronteira do desconhecido e do a cultura científicas para a aquisição de uma
conhecido, instaurando a permanente necessi- forma de conhecimento e de pensamento que,
dade de rupturas e abertura a uma dialética da na visão de Bachelard, pode se traduzir auto-
descontinuidade, de olhares múltiplos para um maticamente numa reforma do espírito.
mesmo objeto. Ainda no campo da noção de O autor postula a construção de uma
rupturas epistemológicas, o autor afirma que a cultura a partir da ciência como a grande
Ciência se opõe à opinião. Em ciência, a opi- estruturadora dessa nova pedagogia. Tendo em
nião está na esfera de outros campos, nada é vista tais referências, a epistemologia que fun-
dado, tudo se constrói. O senso comum e as damenta a prática científica contém uma filo-
outras formas de manifestação, o conhecimento sofia e expressa uma visão de mundo sobre a
vulgar, a sociologia espontânea, a experiência problemática da produção de conhecimento. A
cotidiana são opiniões, formas de expressão, pesquisa se desenvolve com a formação do
que não representam e não têm o valor de professor, da epistemologia e da concepção de
conhecimento científico. conhecimento ou de teoria do conhecimento
A epistemologia bachelardiana fundamen- nas quais sua prática está fundamentada. A
tada no racionalismo aberto chama a atenção para compreensão epistemológica do professor tor-
o risco da não cientificidade das impressões pri- na, sem dúvida, sua atividade científica mais
meiras e do pensamento simplista. Em Bachelard, consolidada e permite fundamentar as bases da
epistemologia e pedagogia se entrelaçam para pesquisa como dimensão da pedagogia consci-
formar um pensamento orgânico que se renova e ente. O autor chama de pedagogia consciente
que não se conforma com as impressões primei- aquela que denota novas práticas científicas em
ras e com os dados do senso comum e da apre- rupturas com os paradigmas cartesianos-lógi-
ensão da realidade por meios não científicos. cos-racionais e com a apreensão da realidade
Na prática científica, alerta Bachelard pelos dados do senso comum.
(2001): A ciência e a prática científica têm raízes
em várias epistemologias (epistemologia lógica,
A opinião pensa mal; ela não pensa, traduz, genética, histórico-crítica). No entanto, é no
necessidades em conhecimentos. Ao desig- interior de concepções abertas e dialéticas que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 361-370, maio/ago. 2008 365
o conhecimento pode encontrar a possibilida- não”, a que procede, em nós e fora de nós, uma
de de renovação, de construção e de recons- atividade construtiva. Essa filosofia afirma que o
trução. Tais concepções epistemológicas indi- espírito é, no seu trabalho, um fator de evolu-
cam ao professor a adoção de metodologias ção. Pensar corretamente o real é aproveitar as
conscientes que privilegiem uma pedagogia em suas ambigüidades para modificar e alertar o
constante ruptura com o conhecimento usual. pensamento “a criar condições para a diale-
“Chega uma altura em que o espírito gosta tização”. Tal pedagogia incentiva relações peda-
mais daquilo que confirma o seu saber do que gógicas construtivas e permitem desenvolver a
daquilo que o contradiz, prefere as respostas às capacidade de autonomia intelectual, de cons-
perguntas” (Bachelard, 2001 p. 167). É esse o trução de novos conhecimentos e de novas
risco de o professor ensinar sempre as respos- questões científicas que possam se contrapor à
tas certas. Na pedagogia científica, o erro se visão empiricista.
instrui a partir de uma dinâmica pedagógica Uma pedagogia fundamentada numa
que coloque o conhecimento em permanente epistemologia aberta e reflexiva fundamentará
estado de crise, criando sempre a necessidade uma interpedagogia do ensino, o que, sem
de retificar-se. dúvida, propicia uma ressignificação da relação
Na visão de Bachelard, a formação do pedagógica e da prática científica. Isso estimula
professor contemplaria uma prática pedagógi- dinâmicas criativas.
ca, “uma metodologia consciente” que privile- A relação pedagógica implica interações
giasse uma pedagogia em ruptura com o co- humanas e psicológicas, de confiança e de res-
nhecimento usual. Assim, “de um modo mais peito intelectual. Desenvolve-se a partir do inte-
positivo, apreender-se-á a essência da psicolo- resse do professor no crescimento intelectual,
gia do espírito científico na reflexão pela qual moral, ético e científico do aluno e, como assi-
as leis descobertas na experiência são pensadas nala Bachelard, um desejo de que o aluno pos-
sob forma de regras aptas a descobrir novos sa superar o mestre. Todo mestre deve formar
fatos” (Bachelard, 2000, p. 122). O verdadeiro seus discípulos. No entanto, a Educação carece
espírito científico se forma na dialética estabe- dessa dimensão que, aos poucos, está se per-
lecida por tensões e na abertura integral. Assim, dendo devido à racionalidade, à burocracia aca-
dialetizar o pensamento é aumentar a possibilida- dêmica, ao controle pelo controle de um saber
de de apreender e de criar cientificamente fenô- instrumental prático e pouco estimulante do
menos complexos, de regenerar novas dimensões ponto de vista intelectual. A vida acadêmica e a
não percebidas por meio do pensamento ingênuo intelectual necessitam de predisposição afetiva
e acrítico. A produção de conhecimento e os e, ao mesmo tempo, de uma inquietação perma-
processos pedagógicos se justapõem. nente de uma imaginação crítica e reflexiva.
A nova pedagogia científica pensada por Para Bachelard (2001), toda cultura ci-
Bachelard é essencialmente crítica e estimula pro- entífica deve começar por uma catarse intelec-
fessores e alunos a exercitarem o pensamento tual e afetiva e pela compreensão de uma
aberto na busca de fenômenos e problemáticas “consciência em mutação” e “por um ensino
complexas e na capacidade de formular questões- não dogmático”. O que é um ensino dogmático?
problemas e de construir objetos de pesquisa, Que concepções e práticas científicas esse en-
“procurando no real aquilo que contradiz conhe- sino gera? São questões que interessam ao
cimentos anteriores” (Bachelard, 1991 p. 13). Po- campo da Educação e da Pedagogia.
der-se-ia dizer que Bachelard, ao tratar da peda- Para a ciência e o conhecimento, enten-
gogia científica, trata também da pedagogia do didos como um processo contínuo de retifica-
pensamento. Com tal posicionamento, ele faz um ção, é tarefa pedagógica do professor “colocar
apelo ao exercício da prática da “filosofia do a cultura científica em estado de mobilização

366 Dirce FONSECA. A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a favor...


permanente, substituir o saber fechado e está- apresentar os fatos, determinar as relações
tico por um conhecimento aberto e dinâmico, matemáticas ou lógicas, ou a estrutura in-
capaz de se reconstruir e de se retificar. Segun- terna dos valores culturais, e outra coisa é
do esse ponto de vista, a pedagogia da razão responder a perguntas sobre o valor, cultu-
deve valer-se de todas as oportunidades de ra e seus conteúdos individuais, e à ques-
raciocinar e de pensar, empregando todas as tão de como devemos agir na comunidade
variações do pensamento. Pergunta Bachelard cultural e nas associações políticas. São
(1991): “Que seria uma função sem possibilidade problemas totalmente heterogêneos. Se
de funcionar? Que seria uma razão sem possibili- perguntarmos porque não devemos nos
dade de pensar?” (p. 135). Devem ser aplicados ocupar de ambos os tipos de problemas na
todos os ensinamentos da ciência, por muito es- sala de aula, a resposta será: porque o pro-
peciais que sejam, para a aquisição de uma forma feta e o demagogo não pertencem à cáte-
de conhecimento que se traduza, automaticamen- dra acadêmica. (p. 172-173)
te, numa “forma de espírito (p. 118). Japiassu (s/
d) complementa esse pensamento no sentido da Tal afirmação é importante para a refle-
renovação no campo da pesquisa científica: xão da atividade prática docente. Uma contri-
buição da pedagogia científica é noção de
A dificuldade e a discussão fazem parte do catarse intelectual e afetiva na relação pedagó-
dinamismo psicológico da pesquisa científi- gica. A atividade acadêmica intelectual se dá
ca. E não só da pesquisa, mas também da em ambiente de dúvida e inquietação. Assim,
pedagogia da ciência. Tanto o trabalho ci- todas as práticas científicas e pedagógicas
entífico de pesquisa quanto o de seu ensi- devem estar lastreadas por relações positivas.
no exigem que os pesquisadores e os edu- Com isso, o autor confere à prática acadêmica
cadores criem dificuldades para si próprios. e científica um significado pedagógico-afetivo.
O importante é que saibam criar dificulda- O dogmatismo desconstrói toda criatividade e
des reais e eliminar os obstáculos falsos ou gera uma paralisa mental. O professor, na prá-
as dificuldades simplesmente imaginárias. tica pedagógico-científica, pode ser muito
Devem sentir uma espécie de apetite pelos menos alguém que ensina e mais alguém que
problemas difíceis. (p. 73) desperta, estimula, provoca, questiona e se
deixa questionar. Tal atitude permite estabele-
Enquanto Bachelard sugere uma pedago- cer relações pedagógicas colaborativas, abertas
gia da superação, uma epistemologia da plura- e construtivas. A ambiência afetiva e pedagógi-
lidade, da razão aberta para pensar “e para ca estimulará, com certeza, o aluno a criar,
tentar desaprender muito daquilo que apren- criticar, produzir, inovar, pesquisar etc.
deu”, Weber (1982) apela para o que chama de A pedagogia formativa, no sentido que
integridade intelectual do professor. No texto “A expressa Bachelard, pressupõe formação cien-
ciência como vocação”, define a vocação cien- tífica e vocação para a ciência. Tais pressupos-
tífica como uma vocação íntima e enfatiza a tos implicam mudança de cultura na prática
tarefa do professor como aquela de “servir aos científica e nos processos pedagógicos, de for-
alunos com o seu conhecimento e experiência ma a tornar o pedagógico mais científico, e
e não impor suas opiniões pessoais”. Para este, este, mais pedagógico.
não é possível demonstrar cientificamente o Nessa perspectiva, a prática pedagógica
dever de um professor: deve refletir a prática científica e vice-versa.
Segue-se que tornar o científico mais pedagó-
[...] só podemos pedir dele que tenha inte- gico significa utilizar formas de pedagogia que
gridade intelectual de ver que uma coisa é situem os alunos como sujeitos críticos, que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 361-370, maio/ago. 2008 367
problematizem o conhecimento, que lancem no pensamento de Bachelard, seria depreender
novas questões, gerando novos desafios e no- reflexões pedagógicas que instruem a prática cien-
vas questões-problema/soluções, “retificando” a tífica e o pensamento aberto.
ciência e os métodos científicos. Uma pedagogia científica é antes de tudo
Assim, para a ciência e para o espírito uma pedagogia do pensamento e, assim, estará
científico, todo conhecimento representa res- inserida em uma dupla perspectiva – a educação,
posta a uma dúvida, a uma questão. É o sen- entendida como uma prática filosófica, histórica
tido da dúvida e de problema é que dá a mar- e social, e uma perspectiva crítica. Tais reflexões
ca do verdadeiro espírito investigador. Se não encaminham para a articulação epistemologia/
houver problemas, não há respostas. A pedago- pedagogia científica e para a compreensão da
gia científica de que fala Bachelard procura pesquisa como uma atividade criativa e crítica de
estimular o aluno na capacidade de inquietar- produção de novos conhecimentos. Desse proces-
se, de colocar sempre novas questões e de estar so, deve resultar a compreensão do fazer cientí-
em permanente estado de inconformismo com fico, da prática interdisciplinar, da articulação
o conhecido, com a ciência dita “normal” e teoria/prática e do aprendizado integrado pesqui-
com o conhecimento estabelecido. Para a ciên- sa/ensino no processo de produção do conheci-
cia, a opinião representa uma desconstrução. mento. Dessa forma, o professor/orientador exer-
O pensamento científico é também um ce duplamente a ação pedagógica: a de ensinar
pensamento político: remete ao uso, ou seja, à e pesquisar, a de aprender e ensinar. Ambas são
utilidade social da pesquisa. Assim, uma política atividades interligadas.
de pesquisa deverá ser, também, uma política Esse enfoque de pesquisa, interligada à
social. A pedagogia científica, vista sob a óti- ação pedagógica, pressupõe a atuação do pesqui-
ca de Bachelard, enseja maior interação entre sador e do aluno sobre o objeto do conhecimen-
aluno e professor, fortalecendo os vínculos to e o desenvolvimento de práticas científicas
acadêmicos e a formação de docente, o apro- mais científicas. Assim, a formação do aluno es-
fundamento teórico metodológico e a capaci- tará voltada para o desenvolvimento da autono-
dade intrínseca do risco e da incerteza. mia intelectual. Na formação do aluno/pesquisa-
Assim, a prática docente cria oportuni- dor, um aspecto importante é, sem dúvida, a
dades para o aluno desenvolver processos sis- formação multidisciplinar e interdisciplinar, de tal
temáticos de pesquisa, participando de todas as forma que um problema possa ser compreendido
fases da pesquisa, desde a elaboração do pro- pelos conceitos e métodos de outras ciências.
jeto de desenvolvimento e conclusão da pes- Uma ciência se torna objeto da outra.
quisa. Nesse sentido, pesquisa e ensino consti- O caráter multidisciplinar amplia a for-
tuem processos interligados e interativos, no mação do aluno e o exercício do pensamento
qual se possa criar uma cultura em que o complexo permitindo estabelecer diálogos teó-
mestre se torne verdadeiramente aluno e em rico-metodológicos mais apropriados à produ-
que o aluno se torne realmente mestre. ção de conhecimento. No entanto, para pensar
Bachelard (2001) compreende a prática o ensino articulado à pesquisa, torna-se neces-
pedagógica quando ela se realiza no interior de sário reverter a lógica do ensino tradicional e
uma “interpedagogia do ensino”, o que significa integrá-lo à lógica da pesquisa. Integrar ensi-
dizer que todo aquele que aprende só saberá ver- no e pesquisa pressupõe uma nova relação com
dadeiramente quando sua aprendizagem for o aluno e uma nova condição de ensino. O
consubstanciada na prática de ensinar. Por outro aluno é o centro da ação pedagógica. Ele deve
lado, a cultura científica coloca a necessidade produzir, refletir, observar, indagar e, essencial-
permanente de inquietar a razão, dialetizar o co- mente, adquirir formação e ações básicas de
nhecimento. Desconstruir a ciência já construída, quem investiga. Este processo pedagógico

368 Dirce FONSECA. A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a favor...


poderá contribuir para desenvolver sua própria te, pensa-se o verdadeiro como retificação his-
autonomia intelectual, tornando-se um intelec- tórica de um longo erro, pensa-se a experiência
tual independente, capaz de assumir atitudes como retificação da ilusão comum e primeira.
científicas no seu futuro profissional. Toda a vida intelectual da ciência move-se
A discussão da pedagogia científica e dialeticamente sobre esse diferencial do conhe-
das bases epistemológicas que a constitui teve cimento na fronteira do desconhecido. “A pró-
como objetivos refletir a prática da pesquisa e pria essência da reflexão é compreender que não
apresentar referenciais para refletir sobre uma se compreenderá” (Bachelard, 2000, p. 147).
nova pedagogia centrada na epistemologia de
Bachelard. Assim, é de fundamental importân- Considerações finais
cia desenvolver práticas e metodologias que
levem o aluno a pensar criticamente, a desen- Em suma, este artigo buscou focalizar a
volver sua própria autonomia intelectual, a discussão epistemológica da obra de Bachelard
desenvolver uma atitude de busca de aprender com vistas a apreender o conceito de pedago-
num processo contínuo a partir de um pensa- gia científica e suas relações com as práticas
mento dialetizante, a utilizar conceitos e novas pedagógicas: o ensino e a pesquisa. Focalizou
elaborações, como instrumento de construção a contribuição de Bachelard na posição do ob-
e reconstrução de novos saberes. jeto como perspectiva das idéias, o que signifi-
O pensamento crítico desenvolve práti- ca que os fatos não contêm uma única autono-
cas pedagógicas também críticas, geradoras de mia de verdade. Pela introdução da noção de
novas questões, estabelecendo diálogos multi- ruptura epistemológica, desenvolve uma radical
disciplinares com outras áreas de conhecimento. oposição ao pensamento positivista e cartesiano.
Uma pedagogia crítica propicia as condições Mostra que o progresso do espírito científico se
que dão ao campo acadêmico e científico a faz por rupturas com o senso comum e que a
oportunidade epistemológica de formular, per- experiência científica deve contradizer a experi-
manentemente, questões-problema. Assim, o ência orientada pelo senso comum.
verdadeiro educador precisa reconhecer-se em Da reflexão aqui pontuada, alguns pon-
estado de “infância cerebral”. tos merecem ser destacados:
Bachelard (2001) apela por uma razão
aberta; por uma nova comunicação pedagógi- • A reflexão sobre a produção de conhecimen-
ca; por uma escola que deve ser contínua ao to é uma reflexão que afeta os pressupostos
longo da vida; por uma educação permanente; da racionalidade científica e da racionalidade
e por uma pedagogia do descontínuo e da pedagógica.
incerteza. Na prática educativa, chama a aten- • A discussão epistemológica do fazer científi-
ção para dois aspectos pedagógicos: o do co não pode estar dissociada da prática do-
mestre que, em um processo contínuo de cente, considerando que “o ato de ensinar não
aprender, se converte em estudante, pois “per- se destaca tão facilmente quanto se crê, da
manecer estudante deve ser o anseio secreto de consciência de saber” (Bachelard, 1997, p. 19).
todo mestre” e, por outro lado, “aquele que • O autor reforça o conceito de metodologia
aprende deve ensinar”, consubstanciando uma consciente que se depreende de uma prática
interpsicologia do ensino. científica crítica e reflexiva e atenta às ruptu-
O espírito cientifico é, essencialmente, ras epistemológicas do saber apreendido no
uma retificação do saber, um alargamento dos cotidiano a partir das impressões primeiras.
quadros do conhecimento. Julga seu passado • A nova pedagogia de Bachelard é, antes de
histórico, condenando-o. Sua estrutura é a cons- tudo, epistemológica, a qual pode contribuir
ciência de suas faltas históricas. Cientificamen- para alimentar o debate e o pensamento pe-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 361-370, maio/ago. 2008 369
dagógico para uma nova cultura científica. e na construção epistemológica centrada na
• Assim concebido, o conceito de pedagogia idéia do conhecimento construído historicamen-
cientifica não se separa da forma de pensa- te e reconstruído a partir de retificações perma-
mento e da epistemologia que o constitui. nentes. Todas essas questões constituem um
suporte para as discussões metodológicas e para
A epistemologia de Bachelard tem, pois, uma prática científica aberta, crítica e reflexiva
uma conseqüência na forma de produzir ciência no campo da Pedagogia e da Formação Docente.

Referências bibliográficas

BACHELARD, G. A epistemologia
epistemologia. Lisboa: Edições 70, 2000.

______. A filosofia do não


não. Lisboa: Abril Cultural, 1991.

______. O novo espírito científico


científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001.

O racionalismo aaplicado
______.O plicado
plicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

JAPIASSU, H. Para ler Bachelard


Bachelard. Petrópolis: Vozes, (s.d).

WEBER, M. Ensaios de sociologia


sociologia. Guanabara: Rio de Janeiro, 1882.

Recebido em 15.08.07
Aprovado em 16.06.08

Dirce Mendes da Fonseca é professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB);
coordenadora do Núcleo de Estudos da Infância e Juventude do Centro de Estudos Multidisciplinares (CEAM) da UnB;
professora do programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), é autora de livros e artigos no
campo da gestão e da política educacional.

370 Dirce FONSECA. A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a favor...

Você também pode gostar