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Lei, Justiça e Bom-Senso

carlos biasotti(*)

1. “Uma norma é a sua interpretação”, escreveu Miguel Reale, um dos


mais altos espíritos de que justamente se orgulha e envaidece a cultura
jurídica do País (1).

Ora:

“Interpretar, no sentido jurídico, é procurar o pensamento contido na lei, a


signicação das palavras, o alcance do texto, a explicação da frase” (2).

As mais das vezes a lei, de tão claros seus termos, escusa


interpretação ou exegese: não há senão aplicá-la ao caso concreto. “In
claris cessat interpretatio”, reza o retrilhado adágio latino, à maneira de
advertência de que se não deve perverter o raciocínio, pois a ninguém
é lícito negar o que a evidência mostra. Não é mister trazer o Sol ao
meio do rmamento para que todos o vejam!

Mas, ainda quando clara como água de regato, pode dar-se o


caso que a lei não seja de per si justa (e sequer, deitando a barra mais
longe, lídima expressão da vontade popular). Eis por que innito
número delas não resiste à arguição de inconstitucionalidade nem se
exime da tacha ou eiva de injustas, já que atentatórias dos princípios
que regem as sociedades civilizadas.

Sobretudo na esfera criminal — que é o lugar próprio à


reparação do direito violado por ofensa a bem jurídico penalmente
protegido —, a função do juiz resume-se em dar a cada um o que lhe
cabe. Encerrada a instrução do devido processo legal, se não liquidada
sua culpa, é o réu absolvido e mandado em paz; se, ao revés, a prova
obtida com estrita observância das regras do contraditório processual
e da plenitude do direito de defesa (3) não pôde menos de demonstrar-

(1) Filosofia do Direito, 2016, p. 571; Editora Saraiva.

(2) Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 74.

(3) “(...) só merece o nome de defesa a que for livre e completa” (José Soares de Mello, O Júri, 1941, p. 16).
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-lhe a responsabilidade criminal, em vão pelejará contra o gládio


implacável da Justiça. Não há aí que objetar. Tome a mão sobre o
árduo assunto o preclaro Nélson Hungria, autor do Código Penal e seu
mais abalizado exegeta: “A pena traduz primacialmente um princípio
humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que
merece” (4).

A essa conta, ninguém — exceto se penalmente inimputável —


poderá forrar-se ao rigor da lei, que a todos iguala.

É de ciência vulgar (isto se aprende não só nos bancos


acadêmicos mas também à porta do Fórum) que a impunidade passa
pelo mais poderoso estímulo do crime.

Atraiu, por isso, ultimamente, acerbas críticas a tese de que, por


amor do princípio constitucional da presunção de inocência, ou da
não-culpabilidade (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), a pena imposta ao réu
só era possível executar após o trânsito em julgado da decisão penal
condenatória.

Tal prática, a darmos crédito a resenhas que parecem dedignas,


somente o Brasil adota!

Embora nem sempre seja o número o melhor critério da


verdade, essa estonteante exceção faz grande abalo em todo ânimo
imparcial e avisado!

Tratando-se de autêntica “vexata quaestio”, àquele que a pretender


desatar (o juiz, em especial) cumprirá eleger primeiro o padrão
exegético por onde os sujeitos mais acreditados em saber e virtudes
costumavam agitá-la.

Faz ao intento a soberba lição que, em livro a mais de um


respeito admirável e digníssimo de ler (e ainda recomendar), ministrou
o Prof. Goffredo Telles Junior.: deve o juiz “interpretar as leis com a lógica
do jurista”. Advertiu, porém, o saudoso mestre das Arcadas: a lógica do
jurista “não deve ser sempre a lógica do racional. Frequentemente, deve o jurista,

(4) Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.


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em nome da justiça, substituir os rigores dessa lógica pela lógica do razoável,


como bem ensinou Luiz Recasens Siches” (5).

Ora, descendo ao particular, teria foros de razoabilidade a decisão


que, imolando na ara da presunção de inocência, obstasse a execução da
pena do réu logo após o julgamento da causa-crime pelo Juízo de
2º Grau de Jurisdição?!

Seria sensato armá-lo, se, falando pela via ordinária, o


argumento da inocência presumida cede, após a condenação do réu,
ao da presunção de sua culpabilidade?!

Conformar-se-ia com os ditames da reta razão isto de se


desconsiderarem os efeitos do julgado de 2a. Instância — derradeira
etapa de análise da prova com cognição plena — e remeter-se a
solução do litígio aos Tribunais Superiores, que já não versam matéria
de fato, mas apenas de direito?!

Era decoroso fazer alguém tábua rasa de acórdão que, no


julgamento de apelação (da Defesa ou da Acusação), proferiu o
Tribunal de Justiça — órgão de exaurimento da jurisdição ordinária,
com apuração inteira da responsabilidade criminal do réu — e,
destarte, protrair “ad innitum” o deslinde da controvérsia entretida nos
autos do processo?!

Frisaria com a gravidade dos negócios da Justiça desfazer em


decisão colegiada, proferida com escrupulosa observância do devido
processo legal, para (em liberdade o réu, nada obstante condenado a
penas extremadas) aguardar, não raro com insofrível delonga, a
chancela da Superior Instância, que sói conrmá-la?! As reformas dos
julgados inferiores na perspectiva do mérito, com efeito, segundo os
cálculos mais favoráveis, não excedem o percentual ínmo (1%)!

Procederia com discrição aquele que, mentindo à sua particular


e honrosa condição de aplicador da lei, tivesse em pouco o princípio
da tutela judicial efetiva, tornando desta sorte írrita a resposta penal
do Estado?!

(5) Goffredo Telles Junior, A Folha Dobrada, 1999, p. 161; Editora Nova Fronteira.
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Atenderia, em suma, aos conselhos da prudência o que, só por


generosa (e quiçá mal compreendida) inteligência do texto da lei,
zesse mais caso e cabedal da exceção do que da regra geral?!

Perguntadas sobre esses quesitos, as pessoas de alguma


ilustração e decerto probas — de boas entranhas, diriam nossos maiores
— não hesitariam em enunciar a resposta curial e aceitável, e isto com
argumentos mui atendíveis.

2. Está além de toda a dúvida que, fenômeno intelectual inerente à


condição humana, a variedade de opiniões tem entre nós a força e a
ecácia de postulado ou garantia fundamental: “É livre a manifestação do
pensamento”, dispõe a Constituição da República (art. 5º, nº IV).

A ciência da Filosoa patenteia o substrato dessa diversidade, e


até antagonismo de ideias (6) ; é a área do Direito, no entanto, a que lhe
depara maior voga e desembaraço. Com efeito, entre os que professam
as carreiras jurídicas, máxime os investidos de função judicante, passa
por moeda corrente o conhecido brocardo “cada cabeça, cada sentença”
(“quot capita, tot sententiae”). (7)

Ser constante em suas opiniões e el aos seus pontos de vista,


eis a pedra de toque do homem honrado. Todavia, “porque para saber e
acertar não há mais que um caminho, e para errar innitos”, conforme aquilo
do profundo Vieira (8), poderá suceder que somente lá para o diante
caiamos na conta que o melhor alvitre era haver tomado por outra
direção.

(6) “(...) até entre os anjos pode haver variedade de opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria nem de sua
santidade”, pregou o eloquente Vieira (Sermões, 1959, t. IV, p. 216; Porto).

(7) O vulgo profano, cuja malícia e criatividade sobreexcedem a toda medida, cunhou o anexim:
“Duas coisas em que se não pode confiar: b. de criança e cabeça de juiz” (cf. Rubem Alves, Ostra Feliz não Faz
Pérola, 2008, p. 33; Editora Planeta do Brasil).

(8) Op. cit., t. VIII, p. 209.


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Matéria não é essa para escrúpulos, nem pode meter em


confusão caracteres sem jaça: anal, mudar de parecer (“para melhor”,
que entendido) é próprio do sábio (9).

Nas tenazes desse dilema esteve por vezes também o mais


eminente dos brasileiros: Rui Barbosa. O teor de seu proceder, nessas
conjunturas, qual foi? Conheçamo-lo por inteiro:

“Felizes os que variam da ignorância para a ciência, do erro para a


verdade. Afortunado o que, pecando um dia contra a verdade, ou contra a justiça,
acorda, a tempo, do seu engano, e se retrata ainda utilmente do seu desvio.
Benditas as mudanças de opinião, quando se operam neste sentido. Elas não
abalam a consideração pública a quem a merecer. Antes recomendam à estima,
ao respeito e à conança de seus semelhantes o homem, que não se desdoire de as
confessar, e sem rubor pratique a nobre ação de se desdizer abertamente, pondo a
consciência acima do interesse, o dever acima da vaidade, antes que o desacerto,
circulando abonado com o prestígio de um nome autorizado, comece a produzir
consequências malfazejas” (Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 213).

Feriu de novo o ponto num de seus mais reputados livros:

“Pelo que toca ao variar das opiniões, deixem-me ter, mais uma vez, o
consolo de trazer à praça como coisa de que me prezo, e não me pesa, a deliciosa
culpa dos homens de consciência, a única em que hei de morrer impenitente.
Beata, beata, beatissima culpa! Não mo tenham a mal os imutáveis. Deus os
desencrue. Deus os reverta da pedra e cal em homens. Deus os ensine a mudar.
Porque todo o aprender, todo o melhorar, todo o viver é mudar. De mudar nem
mesmo o céu, o inferno ou a morte escapam. Mudar é a glória dos que
ignoravam, e sabem, dos que eram maus, e querem ser justos, dos que não se
conheciam a si mesmos, e já melhor se conhecem, ou começam a conhecer-se”
(Rui Barbosa, Queda do Império, 1921, t. I, p. LXXX).

3. Quanto lhe custa, ao que muda de opinião, o renunciar a


primitivas e inveteradas convicções, bem se adivinha. Ao discursar do

(9) “Sapientis est mutare consilium”, afiança o prolóquio.


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tema, observou muito de estudo Orosimbo Nonato, provecto e


laborioso ministro do Supremo Tribunal Federal:

“Todos os homens erramos. Ninguém possui a pedra lídia da verdade.


(…) Ao juiz, essa conssão se torna penosa não apenas por afeição paternal que
dedicamos aos partos do nosso entendimento, como dizia frei Luís de Sousa,
senão ainda pelo reconhecimento dos grandes males suscitados pelas oscilações de
uma jurisprudência voltária e exível, matriz de inseguranças perturbadoras do
comércio jurídico e das relações do consórcio civil.

Mas, a verdadeira coerência é a moral, e tributo constante e infalível só é


devido à verdade que o juiz julga identicar em face de novos estudos reticadores
de erros passados. Se a consciência dessa situação se lhe impõe com as cores da
evidência, todas as demais considerações se dissipam e se evaporam: confessará ele
o engano e decidirá de modo diferente em obséquio à verdade” (Revista Forense,
vol. 177, p. 143).

Isto mesmo sentiu o culto e austero ministro Carlos


Maximiliano, como revelam as memoráveis palavras que pronunciou
na oração de despedida do Supremo Tribunal Federal: “Não trepidei em
mudar de voto, pública e declaradamente, toda vez que novos argumentos ou
provas concludentes me convenceram do desacerto do veredictum anterior: acima
do melindre pessoal de cada um está a sacrossanta causa da Justiça”
(Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16a. ed., p. 377; Editora Forense).

Tais exemplos de dignidade de inteligência deram, pouco há,


Ministros do Supremo Tribunal: obrando com bom-senso — que é a
estrela-guia do Direito —, e imbuídos de altiva e desusada coragem
moral, tomaram a seu cargo interpretar embaraçosos textos de lei
segundo a craveira do razoável (10). Sobre fazer justiça, como é de regra,

(10) O estado da questão. A execução provisória da pena repugna ao princípio da presunção de


inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.)? O tema foi exposto em toda a luz pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição, no julgamento do “Habeas Corpus”
nº 126.292-SP. Após considerar que, “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de
jurisdição a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”, propôs
orientação que restaurou tradicional entendimento a respeito do ponto especial, isto é: “A execução
provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência” (STF; HC nº 126.292-SP;
Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; 17.2.2016).
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realçaram o lustre da veneranda Instituição e avigoraram a conança


que nela deve ter o povo. Conspiraram, ao demais, para segurar a
Pátria contra o execrando agente que a estiola e desbra: a corrupção.

Animados de igual propósito, já tocaram a rebate, com boa


fortuna, e levantaram-se em benemérita cruzada, para pôr cobro às
graves mazelas que aigem os brasileiros, os briosos patrícios Miguel
Reale Júnior, Hélio Bicudo, Janaína Paschoal, Modesto Carvalhosa,
Luís Carlos Crema, Laercio Laurelli, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa,
Aloísio de Toledo César, Luiza Eluf Nagib, Roberto Livianu, Augusto
Nunes, Felipe Moura Brasil, Marco Antonio Villa, José Maria Trindade,
Vera Magalhães, Claudio Tognolli, Carlos Andreazza, Marcelo
Madureira, Joice Hasselmann, José Paulo de Andrade, Salomão Ésper,
Rafael Colombo (por nomear apenas alguns dentre os principais).

A quantos — nos circuitos da Justiça, do Direito e da Imprensa


— tiveram a honra e a glória de merecê-los, convêm conscientes
aplausos, não apenas a simpatia e o incentivo dos homens de bem, que
amam o Brasil, praticam a Justiça e professam a Verdade!

(*) (Desembargador aposentado do TJSP e


ex-presidente da Acrimesp)

Ao julgar o Agravo Regimental nº 964.246-SP, o Pretório Excelso, por maioria de votos, reafirmou
a jurisprudência dominante sobre a matéria. Contém a conclusão do aresto a seguinte substância:
“(...) a reafirmação da atual jurisprudência desta Corte, fixando, para efeitos de repercussão geral, a tese de que a
execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial
ou extraordinário, não compromete o princípio da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, inc. LVII, da
Constituição Federal” (STF; ARE nº 964.246-SP; Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; j. 11.11.2016).

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