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André Peixoto de Souza1

Lucas Cavini Leonardi2


Thais Rosiak da Luz3

O PAPEL DA ACUSAÇÃO, DA DEFESA E DO JUIZ


NOS ACORDOS DE CONFISSÃO NEGOCIADA NOS
EUA
THE ROLE OF THE PROSECUTION, THE DEFENSE, AND THE JUDGE IN
U.S.A. PLEA DEALS

RESUMO: Os acordos negociados configuram práƟcas consolidadas no coƟdiano do sistema de jusƟça


criminal dos Estados Unidos, integrando de forma orgânica a própria cultura jurídica daquele país.
ParƟndo dessa noção, o objeƟvo do presente estudo é analisar o papel desempenhado por cada um
dos atores do processo penal estadunidense – promotores de jusƟça, juízes e advogados de defesa – no
universo desse modelo consensual.

Palavras-chave: negociação; acordo; promotor; advogado; magistrado.

ABSTRACT: Plea bargaining is a very entrenched technique in American law, organically incorpora ng
its legal culture. Star ng from this no on, the present ar cle aims to analyze the role played by each
party involved in the north american criminal process - prosecutors, judges and defense a orneys -, in the
universe of plea deals.

Key-words: nego a on; deal; prosecutor; a orney; judge.

Sumário: 1 Introdução; 2 A extensão dos acordos de confissão negociada nos EUA; 3 Acusação; 3.1 A
discricionariedade dos promotores no common law; 3.2 Barganha no convencimento para depor; 4 A
defesa; 4.1 Amplitude de defesa e o acesso à prova: caso Brady v. Maryland; 4.2 Amplitude de defesa
e a aferição de credibilidade das testemunhas: cross-examina on exploratório; 5 O juiz; 5.1 A extensão
da atuação judicial e a possibilidade de envolvimento na negociação; 5.2 Posições sobre o envolvimento
judicial na barganha; 5.2.1 IncenƟvos à parƟcipação judicial nas negociações; 5.2.2 Oposições à parƟcipação
judicial nas negociações; 6 Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO
No direito brasileiro, as vias alternaƟvas ao processo penal tradicional possuem limites
taxaƟvamente impostos pela lei: a transação penal e o acordo de não persecução penal, por exemplo,

Doutor em Direito pela UFPR. Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor-pesquisador no PPGD-UNINTER. Professor da FD-UFPR. Membro do
Ins tuto Brasileiro de História do Direito. Advogado. Id La es: h p://la es.cnpq.br/6730905740474677. E-mail: andre.s@uninter.com.
Promotor de Jus ça tular da 1a Promotoria de Jus ça de crimes dolosos contra a vida de Curi ba. Mestre e Doutorando pela Universidade Federal do
Paraná. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Escola da Magistratura do Paraná. Id La es: h p://la es.cnpq.br/7518932468662892.
E-mail: lcleonardi@mppr.mp.br.
Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Pon cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Graduada em Direito pela Universidade Federal
do Paraná. Assistente na 1ª Promotoria dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Curi ba/PR. Id La es: h p://la es.cnpq.br/4411095661876903. E-mail:
thaisrl@mppr.mp.br.

* A data de submissão do presente ar go foi no dia 29/05/23 e a aprovação ocorreu no dia 21/08/23.

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são instrumentos admiƟdos somente nas hipóteses estritamente descritas no arƟgo 76 da Lei 9.099/95
e no arƟgo 28-A do Código de Processo Penal, respecƟvamente. Sem adentrar ao mérito dos beneİcios
ou prejuízos provocados por esse balizamento, o que se verifica é que o próprio ordenamento nacional
fornece aos atuantes no processo uma moldura fixa dentro da qual devem atuar no espaço de negociação.
Já no cenário do sistema de jusƟça dos Estados Unidos, essas fronteiras são muito mais flexíveis,
com amplo espaço de atuação, especialmente das partes, quando da celebração dos acordos. Dentre
outras hipóteses, cabe aos promotores e advogados de defesa, com possibilidade de intervenção dos
magistrados, decidirem entre si quais causas devem ir a julgamento e quais podem ser desde logo
resolvidas no escopo da negociação.
É justamente a magnitude do espaço negocial no processo penal estadunidense que torna
interessante o estudo do posicionamento de cada operador do direito durante a formulação de uma
avença, sendo este, como registrado, o objeto precípuo desta pesquisa.
Nessa direção, a fim de se examinar as nuances da aƟvidade profissional dos atores jurídicos no
processo penal nos Estados Unidos, serão pontuadas, brevemente, as principais modalidades negociais
usualmente uƟlizadas e suas respecƟvas peculiaridades. Em seguida, serão analisadas com mais
detalhes as posturas de cada personagem no cenário de um acordo: os promotores, e seu espaço de
discricionariedade; os advogados de defesa, e seus direitos e deveres consagrados pela jurisprudência;
e os magistrados, cujo envolvimento no universo negocial vem sendo reconhecido a nível insƟtucional.

2 A EXTENSÃO DOS ACORDOS DE CONFISSÃO NEGOCIADA NOS EUA


De início, mostra-se conveniente asseverar, quanto à própria possibilidade de celebração de
acordos, que a despeito de a ConsƟtuição Americana prever que, em grande parte, o julgamento de
casos penais se dá pelo júri (art. 3o, Seção 2a, Cláusula 3a e 6a Emenda), a Suprema Corte decidiu, em
Pa on v. United States (281 US 276 (1930), que o right to trial by jury é um direito do acusado, não um
standard processual, isto é, o acusado tem o direito e a prerrogaƟva de escolher desisƟr de um julgamento
completo (waivability) (Ramos, 2006, p. 110).
Dito isso, também antes de adentrar propriamente o exame acerca do comportamento processual
de cada um dos envolvidos no procedimento da barganha, é importante compreender qual a extensão da
jusƟça negociada nos Estados Unidos e quais parâmetros foram construídos sobre ela.
Os acordos de negociação, em regra, resultam, de um lado, em um prognósƟco mais favorável ao
acusado e, de outro, na redução do volume de sessões de julgamento a cargo dos promotores e juízes –
viabilizando, com isso, a oƟmização do tempo de trabalho dos servidores envolvidos e o realocamento
dos recursos que seriam uƟlizados para realização do julgamento. Em que pese o objeƟvo final dos
acordos seja basicamente o mesmo para os diversos réus – um resultado mais conveniente do que aquele
que potencialmente seria obƟdo através do julgamento tradicional –, a negociação pode ocorrer sobre
diferentes elementos do processo, notadamente, no que toca às acusações formuladas ou à própria
sentença a ser proferida. A opção por qual elemento será objeto de barganha fica primordialmente a
cargo do promotor, a depender do delito em concreto e das circunstâncias do crime, estando ela sujeita
à aceitação e aos requerimentos dos advogados de defesa.
Autores como Richard H. Uviller (1977) citam como uma das mais recorrentes modalidades de
acordo aquela em que, em troca da admissão de culpa por parte do acusado, a acusação aceita que
tal confissão se dê sobre um delito menos grave do que aquele verificado concretamente – seria o que
Uviller chamaria de acceptance of a lesser plea (Uviller, 1977, p. 108). Isso é possível na medida em que os
delitos, no direito estadunidense, são graduados em categorias de menor a maior gravidade (infrac ons,
misdemeanors e felonies), possibilitando que a classificação de determinados crimes em grau mais alto ou
mais baixo fique no campo de discricionariedade do promotor que oferecerá a denúncia. Essa dinâmica
fornece aos promotores e advogados de defesa um espaço mais amplo de negociação, transformando a

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graduação do crime em um instrumento de barganha (Uviller, 1977, p. 108).
Além da opção qualitaƟva, isto é, pela classificação do crime em uma escala de graduação,
há categoria negocial que permite, também, um acordo sobre a quanƟdade de acusações que serão
formuladas. Uviller (1977, p. 108) alude a agreements not to prosecute other charges, que se traduzem
em acordos para que o acusado confesse um único crime que abarcará outras condutas criminosas
relacionadas - por exemplo, a confissão por um único crime de roubo abrangendo três outros praƟcados
pelo acusado. Há que se ressalvar, evidentemente, que a gravidade e o número de crimes concretamente
praƟcados pelo réu, assim como outras circunstâncias perƟnentes, são levadas em conta pela acusação
no momento de eleger qual será o crime a ser confessado pelo acusado.
Adiante, o autor elenca como outra modalidade de barganha aquela em que a moeda de troca
uƟlizada pelo promotor é sua própria influência sobre a sentença – o que seria chamado de helpful
intercession on the ma er of sentence (Uviller, 1977, p. 109). Em diversas jurisdições estadunidenses, o
espectro de discricionariedade dos magistrados ao dosar a pena é bastante amplo, sendo comum e aceito
pela cultura jurídica local que os promotores recomendem aos juízes qual pena eles entendem adequada
para o caso em análise.
Com isso, muitos acusados, ao buscarem um acordo, pretendem negociar exclusivamente sobre
a conduta do promotor, que, em troca da confissão, pode se comprometer a recomendar ao magistrado
uma sentença mais razoável – ou simplesmente se abster de recomendar uma elevação na pena. Por óbvio,
a relevância da parƟcipação do promotor na dosagem da pena depende do posicionamento individual
de cada magistrado, porém, ao que afirma Uviller, a intervenção da promotoria é frequentemente bem-
vinda e levada em consideração (Uviller, 1977, p. 109).
Ainda sobre a extensão das práƟcas negociais nos Estados Unidos, é perƟnente mencionar que as
negociações podem abranger, também, os testemunhos a serem prestados em dentro do processo.
Spencer MarƟnez (1999) chama atenção à discricionariedade insƟtucional Estado-acusação ao
escolher os testemunhos para determinado julgamento, autoridade esta que se estende às ofertas que
podem ser formuladas para atrair e incenƟvar as pessoas a deporem (MarƟnez, 1999, p. 144). Assim,
como melhor será visto a seguir, diante de um processo com diversos corréus, numa espécie de delação
premiada, é legíƟmo ao promotor nos Estados Unidos negociar com um dos acusados – geralmente, com
aquele cujo domínio sobre o fato criminoso seja de menor relevância –, na intenção de obter depoimento
endossando a responsabilidade do réu principal.
No mesmo senƟdo, quando o promotor de jusƟça dispuser da informação de que uma das
possíveis testemunhas em determinado processo responde individualmente por delito diverso, uma
oferta de leniência no processo penal em que a testemunha figura como ré também é aceita como técnica
processual no direito estadunidense, na intenção de convencê-la a fornecer seu depoimento, expondo o
que sabe sobre o crime, mesmo quando não haja nenhuma relação entre as infrações penais (MarƟnez,
1999, p. 144).

3 ACUSAÇÃO
Como já foi possível observar, a extensão da barganha abrange as acusações formuladas contra o
acusado, o conteúdo da sentença, e até mesmo quais testemunhas irão depor na eventualidade de haver
julgamento tradicional. O aspecto comum a todas essas categorias negociais é o protagonismo e o grande
espaço de discricionariedade do promotor, cuja análise será o objeto deste tópico.

3.1 A discricionariedade dos promotores no common law


Já se evidenciou neste trabalho que, quando o assunto é negociação no processo penal, o espaço

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de discricionariedade dos promotores estadunidenses é bastante amplo. Porém, para além disso, é
preciso se ter em mente que essa abrangência não é vista como um excesso, mas aceita como status
quo da estrutura processual, fazendo parte da própria cultura jurídica do país. Nesse senƟdo, autores
como William Pizzi (1993) afirmam que essa caracterísƟca é consequência do sistema de jusƟça penal
em que atua o órgão de acusação dos Estados Unidos, aduzindo que as escolhas dos promotores em um
sistema common law são substancialmente mais livres quando em comparação à atuação dos promotores
atuantes em sistemas civil law (Pizzi, 1993, p. 1.325).
Segundo Pizzi (1993), isso acontece porque os promotores em sistemas civil law são servidores
públicos que trabalham em uma insƟtuição hierarquicamente organizada, em que a nomeação e promoção
a cargos mais elevados é realizada através de uma análise de critérios predeterminados, ficando os agentes
afastados, ao menos diretamente, do aspecto políƟco (Pizzi, 1993, p. 1331).
Em acréscimo, não é demais lembrar, os sistemas da civil law são orientados pelo princípio da
obrigatoriedade da ação penal (compulsory prosecu on) – segundo o qual, estando presentes as
condições da ação, o órgão acusador deve oferecê-la (CouƟnho, 1998, p.183). Por tais razões, muitos
promotores preferem o caminho seguro de oferecer a denúncia e dar início ao processo quando verificam
evidências suficientes, uma vez que a decisão de não processar precisaria ser revisada judicialmente ou
por superiores hierárquicos, os quais tendem a ser mais conservadores.
O sistema common law, em contraparƟda, amplia o espaço de discricionariedade dos promotores,
na medida em que boa parte de suas decisões não estão sujeitas à revisão hierárquica ou judicial. Não é
por acaso que a discricionariedade do órgão de acusação, ao mesmo tempo em que é consequência do
common law, é também elemento que o sustenta enquanto sistema. Em verdade, a ausência de codificação
do direito torna a legislação penal estadunidense demasiadamente esparsa e, por vezes, paradoxal, de
forma que os promotores são obrigados a constantemente se posicionar para evitar inconsistências (Pizzi,
1993, p. 1339).
É justamente nesse senƟdo que a amplitude do espaço decisivo do órgão de acusação é tão bem
aceita nos Estados Unidos. Trata-se do reflexo de uma escolha políƟca por controle local em detrimento
de um controle centralizado em práƟcas governamentais, que tem como fruto, em certa medida, alguma
desuniformidade na aplicação da lei penal, que passa a variar de acordo com a visão do gabinete do
promotor e de seu eleitorado.
No sistema da common law, em especial no âmbito da negociação, a discricionariedade do promotor
é pouco limitada pela ação do magistrado. Via de regra, os acordos de barganha precisam ser aprovados
pela Corte local, que pode rejeitá-los caso verifique que tal acordo não serve ao interesse público ou que
não expressa a real vontade do invesƟgado. Entretanto, ressalva William Pizzi que essa limitação não se
manifesta como um controle externo sobre a aƟvidade do órgão acusador, na medida em que muitos
magistrados não julgam correto negar às partes a prerrogaƟva de negociar e, consequentemente, obrigá-
las a enfrentar um julgamento tradicional (Pizzi, 1993, p. 1357).
Na realidade, o verdadeiro controle sobre a aƟvidade das promotorias estadunidenses, inseridas
no common law, se dá por mecanismos indiretos, na esfera do políƟco: por serem os promotores de
jusƟça agentes eleitos, há uma necessidade de defesa da reputação e conservação de eleitorado, que não
existe em sistemas de civil law (Pizzi, 1993, p. 1337).
Dessa necessidade de manutenção da credibilidade políƟca nasceu a cultura da criação de diretrizes
internas aos gabinetes, hábito comum nas promotorias estadunidenses. A criação de um “manual” de
atuação para a equipe garante ao promotor que o trabalho produzido por seu gabinete tenha algum
grau de uniformidade – por exemplo, sobre quais casos denunciar e a quais réus oferecer acordos. Essa
profissionalização do serviço realizado pela promotoria, enquanto equipe, é usual, principalmente, quando
o promotor tem interesse em ser reeleito (Pizzi, 1993, p. 1344). Assim, uma vez que eventual escândalo
envolvendo a discricionariedade do promotor poderia prejudicar suas chances de reeleição, a criação de

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diretrizes que pretendem garanƟr decisões mais justas e uniformes é outro exemplo de controle que se
opera sobre a aƟvidade dos promotores no common law.
De qualquer forma, a despeito das formas de controle, é certo que aos promotores no common
law, notadamente nos Estados Unidos, é assegurado um espaço decisivo de grande porte. Mais certo
ainda é o fato de que essa amplitude deliberaƟva é inerente à cultura local, e que a tentaƟva de impor
controle judicial à atuação da acusação demandaria uma reforma sistêmica e, ao fim e ao cabo, resultaria
inefeƟva (Pizzi, 1993, p. 1362).
O precedente firmado em Bordenkircher v. Hayes (434 U.S. 357 (1978)) bem ilustra o alcance do
poder de negociação dos promotores estadunidenses. Trata-se de caso em que o réu Paul Lewis Hayes foi
acusado de crime semelhante ao de moeda falsa no cenário nacional, cuja punição nos Estados Unidos
varia de dois a dez anos de reclusão. Neste caso, o promotor de jusƟça ofereceu a Hayes o seguinte
acordo: a confissão em troca de uma pena de cinco anos de reclusão; em caso de recusa, o promotor
informou que pleitearia a condenação na forma do Kentucky Habitual Criminal Act, que levaria o acusado
à prisão perpétua por ser mulƟrreincidente.
Paul Hayes optou por recusar o acordo, e o promotor cumpriu com sua promessa, promovendo
pela exasperação da pena do réu. Diante disso, Hayes arguiu que o órgão de acusação teria usado sua
discricionariedade de forma vingaƟva, o que não deveria ser aceito pelo ordenamento.
A Suprema Corte estadunidense, contudo, firmou entendimento de que não há que se falar em
retaliação na dinâmica do plea bargaining quando o acusado é livre para rejeitar ou aceitar a oferta da
acusação. Restou decidido que a barganha envolve propostas que contêm vantagens mútuas e, quando
resguardados os direitos do réu à assistência técnica e às demais garanƟas procedimentais, ele deve ser
presumido capaz de fazer uma escolha inteligente em resposta à persuasão da promotoria. Em acréscimo,
a Corte julgou que, apesar de a possibilidade de uma condenação mais severa desencorajar o réu a
exercer seu direito de ir a julgamento, a imposição dessa escolha é um atributo inevitável de um sistema
que tolera e, em verdade, esƟmula acordos de barganha. Concluiu-se que, por ter exposto abertamente
ao réu a integralidade de suas opções, não houve violação ao devido processo legal no caso Bordenkircher
v. Hayes.
Em resumo, privilegia-se a autonomia dos promotores de jusƟça no direito estadunidense,
parƟndo da ideia de que, por sua própria natureza, o insƟtuto da barganha presume que as partes são
suficientemente capazes de conceber as consequências jurídicas de suas escolhas, sendo esta presunção
sustentada e endossada a nível sistêmico.

3.2 Barganha no convencimento para depor


Ainda a confirmar o ambiente de discricionariedade em que atuam os promotores estadunidenses,
é importante anotar que a eles é conferida a autoridade para escolher, observados alguns critérios, a
quais réus serão oferecidos acordos, visando à sua cooperação no processo, e quais deverão seguir o
rito do processo penal tradicional, isto é, enfrentar um julgamento em toda sua extensão (full trial). Em
assim sendo, quando um caso penal envolver uma mulƟplicidade de corréus, e na hipótese do conjunto
probatório disponível à acusação assim o sugerir, admite-se que o promotor escolha um dos autores para
oferecer proposta de leniência em troca de informação sobre os demais réus, tomando por base uma
análise da culpabilidade e periculosidade de cada acusado (MarƟnez, 1999, p. 144).
Não obstante, algumas regras devem ser obedecidas para que referida técnica seja validada. Nesse
senƟdo, dentre os vários precedentes das Cortes norte-americanas a respeito dos beneİcios cedidos
às testemunhas no contexto da obtenção de provas, serão analisados abaixo dois julgados bastante
representaƟvos acerca dos limites construídos ao redor dessa práƟca.
No caso Giglio v. United States (405 U.S. 150 (1972)), Robert Taliento, coautor do crime praƟcado

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por John Giglio e única pessoa que o conecta à práƟca do delito, confessou ter auxiliado Giglio a passar
ordens de pagamento falsificadas, e narrou ao júri sua parƟcipação no crime quando este foi a julgamento.
Apesar de oficialmente considerado coautor, Taliento não foi formalmente acusado.
Giglio, em contraparƟda, além de acusado, foi condenado e sentenciado a cinco anos de reclusão.
Enquanto o recurso de apelação estava pendente de julgamento, a defesa de Giglio descobriu que a
acusação havia omiƟdo suposto acordo firmado com Robert Taliento, a quem foi assegurada imunidade
em troca de seu depoimento. Neste caso, o promotor que ofereceu o acordo a Taliento não foi o mesmo
que atuou no julgamento de Giglio, de forma que o agente da acusação que parƟcipou do júri não tomou
ciência de que a testemunha, de fato, prestou seu depoimento tendo em mente uma promessa de
leniência.
Uma vez que a controvérsia chegou à Suprema Corte estadunidense, restou decidido que a falha
de comunicação entre os promotores não exclui a responsabilidade da promotoria enquanto órgão uno,
de modo que o acordo firmado por um promotor vincula os demais. Foi levado em consideração, também,
que, dada a elevada importância do depoimento de Taliento, os jurados Ɵnham o direito de aferir a
credibilidade da testemunha para alcançar um veredito e, para tanto, precisavam saber da existência de
um acordo prévio à sua declaração. Com base nisso, à luz do precedente firmado em Brady v. Maryland
(373 U.S. at 373 U. S. 87) – segundo o qual a supressão de evidência material jusƟfica a renovação do
julgamento, independentemente da boa ou má-fé da acusação –, foi assegurado a Giglio um novo júri.
Da análise do caso acima, verifica-se que a Suprema Corte estadunidense não quesƟonou a
autoridade da acusação em acordar com a testemunha-chave do processo, bem como não contestou
a oferta de imunidade formulada pela promotoria. Contudo, foi imposta, como limite à liberdade do
promotor em negociar com o depoente, a obrigação de expor essa negociação aos jurados e à defesa
técnica do réu, assegurando-lhes a prerrogaƟva de conhecer a natureza do acordo e inquirir (ou
contraditar) a testemunha a esse respeito.
A legiƟmidade da acusação em negociar testemunhos favoráveis foi novamente examinada no
julgamento de United States v. Dailey (759 F.2d 192 (1985)). O réu Kevin R. Dailey foi acusado de violar
a lei de drogas norte-americana e, em seu julgamento, testemunharam contra ele os coautores Robert
L. Frappier e Timothy I. Minnig – que haviam concordado em cooperar com a promotoria meses antes
do júri. Neste caso, Dailey argumentou que as ofertas formuladas a Frappier e Minnig condicionavam
os beneİcios que eles receberiam à condenação do primeiro acusado, de forma que o acordo os teria
influenciado a menƟr.
Em um primeiro momento, a Corte Distrital deferiu o desentranhamento dos depoimentos, porém,
tal decisão foi reverƟda pela Corte de Apelação, restando decidido que Frappier e Minnig poderiam
testemunhar. Entendeu-se suficiente para garanƟr o devido processo legal, no contexto da negociação
com testemunhas, a aplicação de procedimentos de segurança considerados “padrão”: a leitura do teor
do acordo aos jurados e sua disponibilização no momento das deliberações; a garanƟa à defesa do direito
de inquirir as testemunhas sobre a extensão do negócio; e o alerta aos jurados sobre as conƟngências do
acordo oferecido às testemunhas e os riscos daí derivados. Finalmente, a Corte afirmou, ainda, no que
tange a futuras negociações, que deve constar expressamente do teor do acordo que o falso testemunho
é considerado violação à cooperação contratada, viciando o resultado da oferta.
Uma vez mais, é possível constatar que a liberdade de negociação dos promotores estadunidenses
é fortalecida pela jurisprudência, que, em vez de balizar o espaço negocial da promotoria, constrói
parâmetros para assegurar a legalidade do acordo. No caso acima, assim como em Giglio v. United States,
apura-se que os critérios estabelecidos se relacionam à elucidação dos jurados e da defesa técnica,
visando, respecƟvamente, a um veredito bem informado e à ampla defesa.
O que se conclui, portanto, é que, havendo respeito às prerrogaƟvas da defesa e ao livre
convencimento dos julgadores, em tese, qualquer acordo é válido para obtenção de depoimentos

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perƟnentes para a instrução do caso penal.

4 A DEFESA
Conforme o registrado logo acima, a atuação da acusação no direito estadunidense, em especial
no contexto dos acordos de negociação, é ampla, mas tem como barreiras necessárias as garanƟas e os
direitos defensivos. Passa-se, então, à análise das peculiaridades da defesa nesse cenário.

4.1 Amplitude de defesa e o acesso à prova: caso Brady v. Maryland


Dentre as garanƟas materiais e processuais conferidas aos réus em processos criminais, convém
destacar a ampla defesa, cujo presơgio em procedimentos judiciais se faz essencial em qualquer Estado
DemocráƟco de Direito. A amplitude de defesa, como é sabido, é composta, de um lado, pela autodefesa
– materializada, principalmente, no momento do interrogatório – e, de outro, pela assistência técnica
prestada pelos advogados. Dito isso, é possível afirmar que a atuação da defesa técnica deve ser
especialmente precisa no universo da negociação, em que a troca de vantagens pode acabar a expor a
risco as mencionadas garanƟas.
ParƟndo desse cenário, convém analisar precedente que se tornou emblemáƟco no direito
estadunidense, afetando posiƟva e consideravelmente a atuação dos advogados de defesa, na medida
em que consagrou o direito da defesa técnica a acessar as informações de que dispõe a acusação, quando
forem favoráveis ao réu e essenciais à verificação da culpa ou da pena. Trata-se do caso Brady v. Maryland
(373 U.S. at 373 U. S. 87), em que os acusados John L. Brady e Charles Boblit foram considerados culpados
por um crime de homicídio.
Neste caso, os réus Ɵveram seus julgamentos desmembrados, e Brady foi julgado primeiro. Em seu
interrogatório, ele admiƟu ter parƟcipado do crime, mas apontou Boblit como responsável pela execução,
razão pela qual sua defesa pediu aos jurados que o veredito não fosse pela sentença de morte. O que
torna o caso emblemáƟco é o fato de, previamente ao julgamento, a defesa de John Brady ter solicitado
à promotoria acesso às declarações extrajudiciais de Charles Boblit, ao que o órgão de acusação cedeu,
omiƟndo, contudo, justamente aquela em que Boblit admiƟu ser o executor.
Como a informação acerca da supressão de evidências chegou ao conhecimento da defesa de
Brady somente após sua condenação, foi formulado requerimento de novo julgamento, tomando por
base a prova recém-descoberta e intencionalmente omiƟda pela parte contrária. Com isso, a Corte
de Apelação de Maryland acolheu o pedido do recorrente, e entendeu que a supressão de evidências
acarretou violação ao devido processo legal, concedendo o direito a novo júri restrito à rediscussão da
pena, vedada a reanálise de culpa.
Foi essa restrição no entendimento da Corte estadual que levou o caso à Suprema Corte norte-
americana, que se debruçou sobre a seguinte questão: John Brady teve um direito federal violado pela
Corte de Apelação de Maryland por ter seu novo julgamento restringido à rediscussão da pena?
A Suprema Corte acompanhou o voto do JusƟce Douglas, que concordou com o entendimento da
Corte Estadual no senƟdo de que a supressão da confissão de Boblit provocou violação ao devido processo
legal, previsto pela 14ª Emenda da ConsƟtuição norte-americana. Assim, formou-se o precedente de que
a supressão, pela acusação, de evidência favorável ao acusado, quando for requisitada pela defesa, viola
o devido processo legal sempre que a evidência for essencial à apuração da culpa ou pena a ser atribuída
ao acusado.
A respeito dos limites do novo julgamento, contudo, restou compreendido que não houve violação
de direito federal pela restrição desse júri à rediscussão da pena. No Estado de Maryland, a própria Corte,
e não os jurados, é quem decide sobre a admissibilidade das provas. Por isso, na medida em que a Corte

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de Apelação entendeu que nada na confissão que foi suprimida poderia reduzir a acusação a algo menos
do que um homicídio, o procedimento foi regular e não houve direitos violados.
É possível afirmar que o precedente acima narrado serviu para desobstruir o acesso dos advogados
de defesa às provas disponíveis para acusação, influenciando sobremaneira as nuances da atuação
defensiva. Em outras palavras, desde o momento em que a jurisprudência norte-americana passou a
compreender o comparƟlhamento de informações entre as partes como um dever, o desconhecimento
desse material por parte dos advogados passou a ser inescusável. Assim, além de um avanço em termos
de cooperação no contexto da barganha, a Brady Doctrine também impôs à advocacia criminal novos
parâmetros de atuação, na medida em que a eficiência na descoberta de informações exculpatórias
em posse da promotoria passou a ser um indicador de qualidade da prestação de serviços advocaơcios
(Zacharias, 1998, p. 153).
De qualquer modo, apesar de a regra ser o acesso a tais evidências, a jurisprudência também
traçou limites sobre a atuação defensiva. A ơtulo de exemplo, cita-se o caso Pennsylvania v. Ritchie (480
U.S. 39 (1987)), em que o réu foi acusado da práƟca de crimes sexuais contra sua filha menor de idade. A
questão foi apresentada ao Children and Youth Services (CYS), agência de proteção voltada à invesƟgação
de situações de maus tratos ou negligência. Antes de ir a julgamento, Ritchie pleiteou o acesso aos
registros da CYS, na intenção de idenƟficar o nome de testemunhas que lhe pudessem ser favoráveis ou
obter evidências exculpatórias. A CYS, contudo, recusou-se a cooperar, alegando que seus registros são de
natureza sigilosa e protegidos pela lei local, concordando em cedê-los somente mediante ordem judicial.
O juízo não concedeu a ordem que obrigaria a CYS a fornecer seus registros. O réu foi a julgamento
e a principal testemunha de acusação foi sua filha, que foi devidamente acareada pelos advogados de
defesa.
Uma vez condenado, o réu apresentou recurso de apelação e levou o caso à Pennsylvania Supreme
Court. A Corte, por sua vez, entendeu que a falta de acesso aos depoimentos prestados pela filha de
Ritchie ao CYS violou a confronta on clause, prevista na Sexta Emenda à ConsƟtuição dos EUA. Assim, foi
anulada a condenação, tendo-se assegurado à defesa o direito de revisar a integralidade dos registros da
CYS para procurar evidências.
Finalmente, o caso foi levado à Suprema Corte dos Estados Unidos, que reverteu a decisão do
tribunal local, firmando posicionamento no senƟdo de que ao réu não deveria ter sido concedido o direito
de consultar a totalidade da documentação sigilosa. Restou decidido que o direito do réu de acessar
provas exculpatórias não inclui a autoridade para examinar documentos invesƟgaƟvos sem supervisão e
decidir, por si só, acerca da relevância das informações obƟdas.
Tendo em mente o precedente firmado em Brady, manteve-se o entendimento de que devem
ser expostas as provas favoráveis ao acusado quando houver probabilidade de que, uma vez reveladas,
possam alterar o resultado do julgamento. Contudo, julgou-se mais apropriado que a Corte revisasse os
documentos para verificar seu teor e decidir se conƟnha informações importantes para o deslinde do
julgamento. Caso houvesse, o réu deveria ser julgado novamente; se não, a Corte manteria o resultado
original.
O que se vislumbra, portanto, não é flexibilização da doutrina Brady, mas a consagração da
relevância da atuação do juízo competente enquanto garanƟdor da boa-fé processual, para que seja
resguardada a paridade de armas entre as partes e evitar o abuso no exercício de direito.

4.2 Amplitude de defesa e a aferição de credibilidade das testemunhas: cross-examina on exploratório


Ainda da perspecƟva das garanƟas conferidas aos acusados em processos criminais e,
especialmente, no cenário negocial, autores como Spencer MarƟnez (1999) citam a prerrogaƟva de
acarear as testemunhas como um dos direitos mais expressivos conferidos aos réus, cuja concreƟzação, ao

31
fim e ao cabo, será promovida pelo advogado de defesa, a quem incumbirá a formulação das perguntas.
A cross-examina on, protegida pela Sexta Emenda, é vista pela Suprema Corte como uma oportunidade
de expor possíveis tendências, interesses ou moƟvos da testemunha para menƟr. No mesmo senƟdo,
MarƟnez (1999) a classifica como a principal forma de atestar a veracidade de um depoimento e revelar
os perigos dos acordos de cooperação enquanto possíveis incenƟvadores ao perjúrio.
Tanto é a acareação de testemunhas um momento decisivo para construção da tese defensiva
que a jurisprudência estadunidense possui um acervo de julgados em que sua importância é atestada, a
exemplo do caso Alford v. United States (282 U.S. 687 (1931)).
A acusação, no referido caso, arrolou como testemunha um ex-funcionário do réu Alford, que
prestou depoimento desfavorável ao acusado. Durante a inquirição da testemunha, a defesa de Alford a
quesƟonou sobre seu local de residência, ao que a promotoria se opôs, alegando que tal quesƟonamento
seria imperƟnente e impróprio ao momento da cross-examina on. A objeção do órgão de acusação foi
acolhida pelo juízo.
Adiante, como forma de convencimento quanto à necessidade de indagar a testemunha sobre
seu domicílio, os advogados de defesa de Alford esclareceram que obƟveram a informação de que tal
testemunha estaria sob custódia das autoridades federais norte-americanas, fato este que precisaria
ser exposto durante a acareação, na intenção de revelar possíveis tendências ou interesses escusos
do depoente. Ainda assim, a Corte local manteve seu entendimento prévio, sustentando que eventual
condenação da testemunha poderia ser exibida pela defesa, mas não a questão acerca de sua custódia.
Quando o caso chegou à Corte de Apelação, esta reiterou a decisão do juízo de origem. Ficou
decidido que as testemunhas não estão sob julgamento e não deveriam ter de se proteger de perguntas
indiscretas. No mesmo senƟdo, firmou-se o entendimento de que, caso a testemunha em questão
esƟvesse presa por fato relacionado ao julgamento de Alford e a intenção da defesa fosse demonstrar que
o depoimento foi prestado sob promessa de imunidade, então a limitação imposta à inquirição teria sido
prejudicial. Porém, ao que analisou a Corte de Apelação, a defesa de Alford não demonstrou interesse
específico nessa linha defensiva, de forma que seus quesƟonamentos configurariam uma espécie de
“pescaria probatória” (fishing expedi on).
Finalmente, a controvérsia alcançou a Suprema Corte dos Estados Unidos, que analisou a questão
sob outra óƟca. Ao contrário do que havia sido reconhecido anteriormente, a Suprema Corte entendeu
que a cross-examina on deve ser necessariamente exploratória, pois os advogados de defesa, na
maioria das vezes, não têm como adiantar quais fatos relevantes podem ser extraídos da inquirição da
testemunha. Em assim sendo, foi reconhecido que ao defensor deve se fornecer uma laƟtude considerável
para exploração do depoimento testemunhal; caso contrário, seria impossível contextualizar a declaração
das testemunhas e testar sua credibilidade, impedindo, com isso, que os jurados possam avaliá-las
propriamente.
Dessa maneira, a Suprema Corte reverteu as decisões das instâncias inferiores, decidindo que o
quesƟonamento acerca do endereço da testemunha é uma questão preliminar adequada, na medida
em que teria aberto caminho para revelar a custódia da testemunha pelas autoridades federais
estadunidenses. Tal situação, segundo a Suprema Corte, poderia expor que o depoimento foi prestado
sob coação, medo ou interesse diverso, de forma que essa abordagem por parte da defesa seria legíƟma.
Por fim, firmou-se o precedente de que nenhum juízo tem a obrigação de proteger a credibilidade das
testemunhas, cuja desconstrução em cross-examina on é permiƟda; ao contrário, admite-se a limitação
da inquirição tão somente para proteger os depoentes de assédio, discriminação ou humilhação – o que
não aconteceu em Alford v. United States.
Não são raros os casos em que a prova oral é a grande responsável por robustecer o conjunto
probatório. Por assim ser, o precedente criado em Alford favoreceu a práƟca defensiva, uma vez que
consagrou um amplo espaço de exploração para os advogados avançarem na inquirição de testemunhas,

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permiƟndo aos jurados que construam seus vereditos sobre bases sólidas.
Em conclusão, tem-se que a atuação defensiva, no contexto da negociação, encontra seu ápice
no resguardo de garanƟas: assegurar, ao réu, o acesso a todas as evidências exculpatórias, aos acordos
realizados com demais corréus e aos possíveis interesses por detrás de um depoimento testemunhal.
5 O JUIZ
Observadas as condutas, deveres e direitos das partes – acusação e defesa –, passa-se, a seguir, a
tratar da figura do juiz e do seu papel na jusƟça penal negociada dos Estados Unidos.

5.1 A extensão da atuação judicial e a possibilidade de envolvimento na negociação


A respeito da parƟcipação judicial na formulação de acordos, os autores Ronald F. Wright e Nancy
J. King (2016) conduziram uma pesquisa de campo em dez Estados norte-americanos, e concluíram que
o envolvimento de juízes nos acordos de barganha, mesmo visto com parcimônia, é mais frequente e
insƟtucionalizado do que se pensava, ocorrendo especialmente por meio de conferências.
Há um encontro obrigatório entre o juiz e as partes, para discuƟrem o status do acordo, logo no
começo do processo. Afirmam os mencionados autores que a ideia de ter uma conferência pré-agendada
com o magistrado faz com que os promotores se decidam mais rápido acerca do teor da oferta que farão
aos réus (isso se for o caso de firmar acordo, é claro). No mesmo senƟdo, a expectaƟva do encontro
com a autoridade judicial faz com que os réus também se posicionem de forma mais célere, decidindo
previamente quanto ao aceite ou não da barganha (King; Wright, 2016, p. 338).
Wright e King apontam que, dentre os dez Estados norte-americanos que parƟciparam da pesquisa,
oito incorporaram essa conferência à roƟna processual penal. Esclarecem que as parƟcularidades dessa
reunião variam de acordo com cada jurisdição, mas algumas caracterísƟcas são comuns a todas: via
de regra, as conferências acontecem na presença do juiz, dos advogados, dos promotores e, quando
necessário, na companhia de funcionários do tribunal responsáveis pela organização do ato (King; Wright,
2016, p. 338).
A parƟcipação dos réus e das víƟmas nessas conferências é excepcional, afirmam os referidos
pesquisadores, sendo comum apenas nos Estados de Oregon, Missouri e North Carolina. Nessas
jurisdições, entende-se que a parƟcipação do réu é importante para permiƟr que ele próprio escute
diretamente o magistrado, além de ser uma oportunidade de “humanização” do imputado aos olhos do
promotor e do juiz. Ainda no viés humanitário, é assegurado aos réus parƟcipantes dos encontros que
tudo o que for dito nessa oportunidade não poderá ser usado pela parte contrária em julgamento (King;
Wright, 2016, p. 339).
No mesmo senƟdo, se as partes não Ɵverem alcançado um acordo antes do agendamento da
conferência, esta pode ser manƟda para apresentação ao juiz de uma espécie de sumário sobre as minúcias
do caso e os antecedentes do réu. Isso oportuniza ao magistrado, de certa forma, adiantar às partes seu
entendimento sobre a matéria e até mesmo qual seria, numa prognose, a sentença. Evidentemente, o
nível de interferência varia de acordo com cada magistrado, a depender de sua convicção pessoal acerca
do comparƟlhamento dessas informações (King; Wright, 2016, p. 340).
Ademais, a pesquisa conduzida revelou que, em algumas jurisdições estadunidenses, essas
conferências são realizadas de forma coleƟva. Não é raro que os juízes encontrem todos os advogados
e promotores atuantes nos casos em pauta de uma única vez, na sala dos jurados ou em seus gabinetes.
Nesse encontro, cada advogado relatará o caso de seu cliente ao juiz, ao passo em que aos demais
advogados presentes é permiƟdo ouvir e, inclusive, se manifestar. São duas as principais vantagens
atribuídas a essa dinâmica: em primeiro lugar, a oƟmização do expediente dos magistrados; em segundo,
o fato de que a presença de várias pessoas no mesmo local incenƟva as partes a serem mais razoáveis
no curso das negociações, levando-as a adotar postura civilizada e resoluƟva (King; Wright, 2016, p. 342).

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O resultado da pesquisa apontou, também, que em alguns condados essas conferências com o
magistrado acontecem no contexto de um procedimento mais formal, cujas etapas são operacionalizadas
a nível insƟtucional. Trata-se de um programa chamado Differen ated Case Management (DCM),
que abrange casos em que há maior probabilidade de acordo e os direciona a uma pauta específica,
normalmente para magistrados que atuam especificamente em negociações (King; Wright, 2016, p. 343).
Um exemplo de avanço em termos de procedimentalização dessas audiências é o Estado de
Michigan. Segundo Wright e King, nesta jurisdição, há três pautas diferentes em que os casos penais
podem ser incluídos: réus prontos para julgamento serão designados para um juiz que irá sentenciar;
réus que desejam nova conferência com o magistrado serão encaminhados a outro juiz; e réus que estão
prontos para confessar serão dirigidos a um terceiro juiz, que estará disponível para receber confissões e
proferir sentenças imediatamente. Segundo os autores, esse método permite que cada magistrado atue
de acordo com seus pontos fortes, além de evitar que o juiz que presenciou as negociações se valha das
informações obƟdas na eventualidade de o acusado ir a julgamento (King; Wright, 2016, p. 347).
No Estado de Oregon, por sua vez, há uma forma de intervenção judicial nos acordos de barganha
Ɵda como uma espécie de conferência pró-negociação (special se lement conferences), realizada em
casos penais de grande relevância. Nessas hipóteses, as partes escolhem um juiz diferente daquele
designado para o julgamento tradicional, valendo-se, na maioria das vezes, do serviço de magistrado de
outra jurisdição. O magistrado, então, encontrará cada parte separadamente na intenção de promover
um acordo.

5.2 Posições sobre o envolvimento judicial na barganha


De todo o mencionado, é possível afirmar que a parƟcipação judicial, dentro de determinados
parâmetros, é comum no universo da negociação no processo penal estadunidense contemporâneo,
afastando-nos da impressão – comum, porém ultrapassada – de que o envolvimento dos magistrados
na barganha é obrigatoriamente tendencioso ou coator. Os resultados da pesquisa acima referida
indicam que a interferência judicial na formulação de acordo não é oculta ou escusa, mas, ao contrário,
operacionalizada a nível insƟtucional.
Esses programas e políƟcas voltados à minimização de atrasos e promoção de acordos mais rápidos
tornaram-se caracterísƟcas estruturais do procedimento adotado por alguns tribunais norte-americanos.
Tanto é assim, que organizações como a Na onal Center of State Courts (NCSC) e a Conference of State
Court Administrators (CSCA) oferecem treinamentos, ferramentas e recursos para auxiliar a capacitar as
Cortes estaduais e viabilizar a celeridade na implantação ou aprimoramento desses programas.
Sobre a aceitação dessas práƟcas que promovem o envolvimento judicial para acelerar o trâmite
dos acordos, há posicionamentos diversos – o que não poderia ser diferente, considerando que a barganha
no âmbito processual penal por si só divide opiniões.
Nesse senƟdo, mostrou-se perƟnente ponderar, como fechamento deste trabalho, argumentos
favoráveis e contrários à aƟva parƟcipação judicial nas avenças.

5.2.1 IncenƟvos à parƟcipação judicial nas negociações


O primeiro beneİcio decorrente dos programas de incenƟvo à negociação relatado nas entrevistas
conduzidas é o corte de gastos, uma vez que a criação de um fluxo de negociações viabiliza a redução de
custos (King; Wright, 2016, p. 357). Ainda, os defensores da postura aƟva do juiz ressaltam que os esforços
dessas políƟcas não estão voltados para converter mais julgamentos em acordos, mas, sim, em auxiliar
casos que estão prontos para as confissões negociadas a nelas chegar mais rapidamente.
A antecipação das negociações reduz o número de audiências necessárias para cada caso,

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desobstruindo a agenda de advogados, promotores, juízes e funcionários dos tribunais e delegacias. Além
disso, confissões mais céleres reduzem as despesas com inƟmação, orientação e alimentação dos jurados,
cujos serviços não serão mais necessários; bem como os custos com a prisão processual de acusados que
viriam a ser postos em liberdade quando firmado o acordo.
Para além da perspecƟva econômica, também são apontadas vantagens do ponto de vista da
tecnologia da informação. Com a implementação dos programas em comento, tornou-se possível para
os tribunais calcular quanto tempo demora para um processo criminal se movimentar dentro do sistema.
Com isso, oportunizou-se o cálculo, também, do dinheiro que se economiza através de técnicas mais
agressivas de gerenciamento dos casos penais, viabilizando a quanƟficação da performance de cada
tribunal (King; Wright, 2016, p. 359).
Ainda no que diz respeito a dados de performance, King e Wright afirmam que os experts
em gerenciamento de tribunais posicionam-se favoravelmente ao envolvimento de magistrados na
negociação, alegando que esta é a forma mais eficiente de manejar o tempo de trâmite de um acordo.
Segundo os pesquisadores, a maioria dos entrevistados acredita que a interferência judicial não altera o
número de casos que resultam em acordos, mas contribuem sobremaneira em termos de oƟmização de
tempo (King; Wright, 2016, p. 363).
Quanto ao posicionamento das partes processuais acerca do envolvimento judicial na barganha,
as entrevistas conduzidas pelos pesquisadores revelaram que boa parte dos promotores e advogados de
defesa encontra vantagem nessa dinâmica.
Da perspecƟva dos promotores, a interferência do magistrado é posiƟva na medida em que os
auxilia no relacionamento com as víƟmas, a polícia, a imprensa e a população em geral, especialmente
em casos mais sensíveis ou de apelo midiáƟco. Considerando que os promotores de jusƟça são eleitos
nos EUA, a parƟcipação do juiz em um acordo acaba por protegê-los poliƟcamente (King; Wright, 2016,
p. 369).
Já os advogados de defesa entrevistados relataram apreciar a parƟcipação judicial na barganha, uma
vez que, frequentemente, as sentenças obƟdas em contato com o magistrado são mais lenientes do que
aquelas que resultam de acordos propostos exclusivamente pelo promotor. No mesmo senƟdo, aduzem
ter um grau mais elevado de certeza acerca dos termos da sentença quando os ouvem diretamente do
magistrado. Finalmente, encontram vantagem, também, nas conferências coleƟvas realizadas juntamente
aos juízes, pois estas permitem que advogados principiantes aprendam sobre estratégias processuais
observando profissionais mais experientes (King; Wright, 2016, p. 369).

5.2.2 Oposições à parƟcipação judicial nas negociações


Wright e King (2016, p. 389) também pontuaram, com base nas entrevistas que conduziram, os
moƟvos mais comuns que levam os magistrados a se recusarem a parƟcipar ou interferir no universo
negocial.
Em primeiro lugar, simplesmente, tem-se a falta de necessidade. Nas jurisdições rurais, por exemplo,
o número de processos criminais é menor em comparação a regiões mais populosas ou mais propensas
à criminalidade. Dessa forma, os juízes não se sentem incenƟvados pela demanda a parƟciparem de
negociações.
De outra perspecƟva, nem sempre os magistrados se sentem confortáveis em expor suas opiniões
em conferências públicas ou audiências privadas com advogados. Assim, juízes mais inexperientes ou
poliƟcamente vulneráveis preferem não intervir.
Finalmente, há que se ter em mente, também, que alguns magistrados se orientam por
determinados valores, omiƟndo-se de parƟcipar da negociação por acreditarem que seu envolvimento
violaria as práƟcas tradicionais e subverteria o papel do juiz em um processo criminal. Sendo assim, sua

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parƟcipação nos acordos de barganha acabaria por infringir a independência entre os poderes e a própria
autonomia das partes. Desta forma, é possível concluir que a extensão do envolvimento do juiz varia
principalmente de acordo com as convicções de cada profissional, bem como da Corte perante a qual
atua e as diretrizes da respecƟva jurisdição.

6 CONCLUSÃO
À luz do analisado, é possível concluir que o posicionamento dos atores jurídicos estadunidenses
– promotores, advogados de defesa e magistrados – no cenário da celebração de acordos é fortemente
influenciado pelo sistema de jusƟça vigente nos Estados Unidos, pela cultura e estrutura jurídica local e por
construções jurisprudenciais, que, no mais das vezes, incenƟvam e chancelam a jusƟça penal negociada.
O amplo espaço de discricionariedade dos promotores é viabilizado pela dinâmica do common
law, em que não se consagra o princípio da obrigatoriedade da ação penal, caracterísƟco do civil law.
Com isso, o órgão de acusação tem liberdade para analisar os casos penais com os quais se depara, e
optar pelo oferecimento ou não de um acordo conforme suas próprias diretrizes internas, sem estar
condicionado à revisão judicial ou de superiores hierárquicos. Em outras palavras, é plenamente aceito que
os promotores de jusƟça são legiƟmados a escolher quem processará formalmente e a quem oferecerá
proposta de acordo, definindo qual o conteúdo e termos da oferta, exsurgindo uma série de precedentes
que estabelecem que essa liberdade de atuação faz parte da dinâmica da barganha.
Em igual senƟdo, quanto aos advogados de defesa, o entendimento jurisprudencial norte-
americano, em especial a parƟr de Brady v. Maryland, consagrou à defesa o direito de acesso às
informações exculpatórias em posse da acusação. Considerando a elevada importância dos precedentes
em um sistema common law, essa compreensão afetou significaƟvamente a práƟca local no que tange à
aƟvidade dos advogados, na medida em que a descoberta de informações passou a ser uma medida da
competência dos serviços advocaơcios, de modo a colocar o invesƟgado numa posição mais favorável na
mesa de negociação.
A respeito dos magistrados, pode se afirmar que a insƟtucionalização de sua parƟcipação nos
acordos de barganha é mais comum e habitual do que se imaginava. Em termos de gerenciamento
processual, as Cortes têm encontrado várias vantagens no envolvimento dos juízes no processo de
negociação, vislumbrando acordos mais rápidos e com menores despesas. Essa compreensão, dentro de
determinados parâmetros e limites, tem feito com que o envolvimento judicial nos acordos de confissão
passe a ser aceito de forma cada vez mais orgânica na realidade jurídica norte-americana.
Desse modo, é possível afirmar que nos Estados Unidos o posicionamento dos atores processuais
no universo negocial está calcado em caracterísƟcas sistêmicas, bem como em opções por políƟcas
públicas de controle local, em detrimento de balizas legais. Reconhecendo-se que, naquele país, são
poucas restrições quanto aos casos penais que podem ser objeto de acordo, compreende-se que é
justamente essa regulação local e o maior espaço de liberdade das partes que viabiliza o funcionamento
e a perpetuação no tempo da confissão negociada enquanto técnica processual.
Diante de todo o estudado sobre as peculiaridades do processo penal estadunidense, conclui-
se que, apesar de o ordenamento jurídico brasileiro se regular de maneira sistemicamente diversa, a
experiência nacional poderia – sempre com a realização das devidas ponderações e disƟnções entre as
realidades e insƟtutos jurídicos de cada país – extrair algumas lições da vivência negocial norte-americana.
Com isso, busca-se o aprimoramento do ordenamento jurídico, especialmente no que toca aos
acordos negociados, instrumentos estes que – tomada a consciência de que o quadro ideal de um processo
penal completo e pleno mostra-se inaplicável diante da impossibilidade estrutural e orçamentária para se
suprir a demanda de casos penais – parecem essenciais para efeƟvidade do sistema de jusƟça criminal.

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