Você está na página 1de 28

I

#; ffi
Kw-
'l
{
&
f'
2

Narrar ou Descrever?
contnlrurçÃo PÀRAuue plscussÃo
sôsns o NATURÀLrsMoE o FoRMÀLISMo

"Ser radical siqnifica tomar as coisas pela raiz.


Mas para o homern a raiz é o homem-mesmo,"
Kmr. Menx

tr
Ë NTREMoS, DEsDE logo, in mdias res. Em dois Íamo-
sos romances modernos, Naná de Zola e Ana Karenína de
Tolstoi, encontra-se a descrição de uma corrida de cavalos.
Como se desincumbem do empreendimento os dois escritores?
A descrição da corrida é um esplêndido exemplo do vir-
tuosismo literário de Zola. Tudo que pode acontecer numa
corrida, em geral, vem descrito com exatidão, com plasticida-
de e sensibilidade. A descrição deZola é uma peguena mono-
grafia sôbre a moderna corrida de trote, que vem acompa-
nhada em tôdas as suas fases, desde a preparação dos cava-
los até a passagem pela linha de chegada, com a mesma in-
sistência. A tribuna dos espectadores aparece com tôda a
pompa e todo o colorido de uma exibição de moda parisiense
sob o Segundo Impêrio. Também o que acontece na pista
vem representado com exatidão em todos os aspectosi a cor-

47
rfcla termina por uma grande surprêsa e Zola não se limita gar, em virtude da sua ligação com Ana. A vitória na corri-
n descrever esta surprêsa, mas desmascara também a compli- da, diante de tôda a Côrte e da sociedade aristocrática, está
cada trama gue a causou. entre as poucas possibilidades de satisf.azer a sua ambição
No entanto, esta descrição, com todo o seu virtuosismo, que lhe restam abertas. Todos preparativos e tôdas as fa-
não passa de uma digressão dentro do conjunto do roman- ses da corrida, portanto, são momentos de uma ação impor-
ce. Os acontecimentos da corrida são apenas dèbilmente li- tante e vêm contados em dramática sucessão. A queda de
gados ao entrecho e poderiam fàcilmente ser suprimidos, de Wronski é o vértice de tôda esta fase dramática da sua vlda
vez gue o ponto de conexão consiste apenas no fato de que e com ela se interrompe a narração da corrida, sendo ape-
um dos muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em nas acenado, de passagem, em uma única frase, o Íato de que
conseqüência do desfecho da trama. r-{ o seu rival o ultrapassa.
IJma outra conexão entre a corrida e o tema central é
Com isso, entretanto, está longe de ser exaurida a anâ-
ainda mais débil, tanto assim gue não se pode sequer dizer
lise da concentração êpica desta cena. Tolstoi não descreve
que seja um elemento do entrecho, embora por isso mes-
- uma "coisa": narra acontecimentos humanos. E esta ë a ra-
mo - seja ainda mais sintomática para o estudo do método
záo de que o andamento dos Íatos venha narrado duas vêzes,
de composição utilizado por Zola: o cavalo vencedor, que de maneira genuìnamente épica, ao invés de ser descrito por
ocasiona a surprêsa, chama-se tambêm Naná. E Zola náo imagens. Na primeira narração em que Wronski, que parti-
deixa de sublinhar claramente esta coincidência tênue e ca- cipava da corrida, era a {igura central, era preciso expor,
sual; a vitória do homônimo da mundana Nanâ é um sím-
com precisão e competência, tudo aquilo que era essencial
bolo do triunÍo desta no mundo e no demi-monde parisiense. na preparação da corrida e no seu próprio transcurso. Na
A corrida de cavalos de Ana Karenina é o ponto crucial segunda, porém, as figuras principais passam a ser Ana e
de um grande drama. A queda de Wronski representa uma Karenin.
reviravolta na vida de Ana. Pouco antes da corrida, Ana
fica sabendo gue está grávida e, depois de uma dolorosa hesi- A excepcional arte épica de Tolstoi se manifesta no
tação, decide comunicar a sua gravidez a Wronski. A emo- fato de gue êle não faça com gue ao primeiro que siga ime-
diatamente o segundo relato da corrida, mas comece a narrar
ção suscitada pela queda de Wronski provoca a conversa
decisiva de Ana com Karenin, seu marido. TOdas as rela- todo o dia precedente de Karenin e a evolução de suas rela-
ções entre os principais personagens do romance entram numa ções com Ana, para f.azer do relato da corrida, afinal, o ápi-
fase decididamente nova, após a corrida. Esta, por conse- ce do nôvo dia. A corrida torna-se, assim, um drama psico-
guinte, não é um "guadro" e sim uma série de cenas alta. Iógico: Ana só acompanha Wronski com os olhos e nada vê
mente dramáticas, que assinala uma profunda mudança no da corrida pròpriamente dita e nem dos outros. Karenin obser-
conjunto do entrecho. va exclusivamente Ana e suas reações ante o que se passa
As finalidades completamente diversas a que atendem com Wronski. A tensão desta cena, guase sem palavras, pre-
as cenas dos dois romances se refletem em tôda a exposi- para a explosão de Ana, quando, ao voltar pârâ câsâ, corÌ-
fessa a Karenin suas relações com 'Wronski.
ção. Em Zola, a corrida é descrita do ponto de vista dó es-
pectador; em Tolstoi, é narrada do ponto de vista do parti- O leitor ou o escritor formado na escola dos "moder-
I
cipante. nos" poderia objetar, neste ponto: admitindo que estejamos
O relato da corrida de 'Wronski constitui o verdadeiro diante de dois métodos diferentes de representação artística,
objetivo visado por Tolstoi, que sublinha a importância de I não será o próprio fato de vincular a corrida a importantes
nenhum modo episódica ou casual do evento na vida do seu vivências inter-humanas dos personagens principais que tor-
ambicioso oficial. Êste se prejudicou na sua carreira militar nará a corrida um elemento acidental, uma mera ocasião para
em virtude de uma série de circunstâncias e, em primeiro lu- gue ecloda a catástrofe do drama? E, ao contrário, não será

48 49
o caráter completo, acabado e monográfico, da descrição de pressionante habilidade literária. Depois, a obsessão zoliana
Zola aquilo que dá o exato quadro de um Íenômeno social? pelo caráter completo e monográfico passa adiante € urÌl ou'
Eis-nos agora em face de um problema: o que é que se tro capítulo do seu romance está dedicado à descrição do
pode chamar de acidental na representação ar_tí,sfiq4!$sm teatro visto do palco; com não menor vigor, são descritos as
elementos acidentais, tudo é abstrato e morto. Nenhum es- mudanças de cenârio, os vestuários, etc. e o que se passa du-
critor pode representar algo vivo se evita completamente os rante as representações e os intervalos. Por Íim, para com-
elementos acidentais; mas, por outro lado, precisa superar pletar o quadro, um terceiro capítulo contém a proficiente e
na representação a casualidade nua e crua, elevando-a ao zelosa descrição de um ensaio geral.
plano da necessidade. 'Êste caráter completo de inventário não existe em Bal-
E será que é o caráter completo de uma descrição obje- zac. O teatro e a repÍesentação, para êle, constituem sòmen-
tiva gue torna alguma coisa artìsticamente "necessária"? Ou te o ambiente em que se desenvolvem íntimos dramas huma-
não será, antes, a relação necessária dos personagens com as nosi a ascensão de Lucien, o prosseguimento da carreira ar-
coisas e com os acontecimentos - nos quais se realiza o des- tística de Coralie, o aparecimento da paixão entre Lucien e
tino dêles, e através dos quais êles atuam e se debatem? Coralie. bem como os futuros conflitos de Lucien com seus
]â a ligação entre a ambição de Wronski e a sua parti- velhos amigos do círculo de D'Arthèz e com seu atual pro-
cipação na corrida manifesta uma necessidade artística bem tetor, Lousteau. Também do início da sua vingança contra
diversa da que poderia ser oferecida pela descrição "comple- Madame de Bargeton, etc.
ta" de Zola. O assistir ou participar de uma corrida de cava- Mas o que é que vem representado em tôdas estas lu-
los pode'ser, ob;'etivamente, apenas um episódio. Tolstoi.re' tas, em todos êstes conflitos direta ou indiretamente conexos
lacionou o mais ìntimamente possível tal episódio com um dra- ao teatro? A sorte do teatro no capitalismo: a universal e
ma de importância vital . De certo modo, a corrida é sòmente complexa dependência do teatro em relação ao capital e em
uma ocasião para f.azer eclodir o conflito; porém esta ocasião, relação ao jornalismo dependente do capital; as relaçõ€s €n'
estando ligada à ambição social de Wronski - que é um tre o teatro e a literatura, entre o jornalismo e a literatura;
importante componente da tragédia em desenvolvimento ' o caráter capitalista da relação entre a vida das atrizes e a
nada tem de casual. prostituição aberta ou disfarçada.
A literatura acumula exemplos nos quais aparece de for- Tais problemas sociais também são aflorados por Zola.
ma ainda mais clara o contraste entre os dois métodos, no Mas são descritos apenas como fatos sociais, como resulta-
que concerne à necessidade ou casualidade da representação dos, como cagtt nortuwm da situação. O diretor do teatro,
de seus obletos. em Zola, repete incessantemente: "Não diga teatro, diga bor-
Vejamos a descrição do teatro que se encontra neste del" . Balzac, entretanto, representa o modo pelo qual o tea-
mesmo romance de Zola e comparemo-la às das llusões Per. tro se prostitui no capitalismo. O drama das figuras princi-
didas de Balzac. Exteriormente, há semelhanças. A estréia pais é, ao mesmo tempo, o drama das instituições no quadro
com que se inicia o romance de Zala decide a carreira de das quais elas se movem, o drama das coisas com as quais
Naná. Em Balzac, a estréia determina uma profunda mu- elas convivem, o drama do ambiente em que elas travam as
dança na carreira de Lucien de Rubempré, sua passagem de suas lutas e dos objetos que servem de mediação às suas re-
poeta desconhecido a jornalista inescrupuloso e coroado de lações recíprocas.
êxito. Êste é um caso extremo, é claro. Os obletos do mundo
Também o recinto do teatro é descrito por Zola de ma- que circunda os homens não são sempre e necessàriamente
neira cuidadosa e completa. Primeiro, visto da platêia: tudo tão ligados às experiências humanas como neste caso. Po-
que acontece nas cadeiras, nos corredores, no palco, o as- dem ser instrumentos da atividade e do destino dos homens
pecto assumido pela cena, tôdas as coisas descritas com im- e podem s€Í como aqui se passa com Balzac pontos
- -
50 5I
cruclols das experiências vividas pelos homens em suas tÊ-
laçóes sociais decisivas. Mas podem ser, também, m€ros ce- da pequeno-burguesa. E tal contraste irônico é desenvolvi-
nários da atividade e do destino dêles. do com extrema coerência e grande arte.
Persistirâ o contraste por nós indicado mesmo onde se
Fica, todavia, não resolvido o contraste pelo qual êste
trata sòmente, na realidade, da representação de um cenário?
cenário casual, êste pretexto casual pata a descrição de uma
No capítulo introdutório do seu romance OId Mottalitg,
cena de amor, se torna, ao mesmo tempo, no mundo de Ma.
Walter Scott descreve uma exibição militar, associada a fes- dame Bovatg, um acontecimento importante, cuja minuciosa
tejos populares, organizada na Escócia depois da restaura-
descrição é exigida pelos fins almejados por Flaubert, isto
ção dos Stuart e da tentativa de renovar as instituições feu- é, pela completa representação do ambiente. A ironia do
dais. A promoção tem por objetivo passar em revista os fiéis
contraste não esgota o significado da descrição. O "cenário"
e provocar os descontentes, a fim de que se desmascarem. possui uma significação autônoma, enguanto elemento desti-
Na obra de Scott, ela se realiza na véspera da insurreição nado a completar o ambiente. Aqui, porém, os personagens
dos puritanos oprimidos, A grande arte épica de Scott fixa
são ünicamente espectadores e por isso se tornam, para
neste cenário todos os contrastes que estão prestes a explo- -
o leitor, elementos constitutivos, homogêneos e equivalentes,
dir numa luta sangrenta. A comemoração militar revela, em
dos acontecimentos descritos por Flaubert, relevantes apenas
cenas grotescas, o envelhecimento sem esperança das rela-
do ponto de vista da reconstituição do ambiente. Tornam-se
ções feudais e a surda resistência da população contra a ten- manchas coloridas dentro de um quadro, e só ultrapassam os
tativa de renová-las. A competição de tiro ao alvo que se
limites estáticos da moldura na medida em que se elevam a
segue à revista das tropas mostra a contradição instalada no
irônico sÍmbolo da essência do filisteísmo. Tal quadro as-
seio de ambos os partidos adversários: só os elementos mo-
sume uma importância que não dimana o íntimo valor huma-
derados de um e do outro tomam parte no divertimento po-
no dos acontecimentos narrados e não tem relação pràtica-
pular. Na hospedaria, assistimos à brutalidade da soldades-
mente alguma com os acontecimentos, sendo a relação obti-
ca do rei e, ao mesmo tempo, ali se revela em tôda a sua
da, ao invés disso, por meio da estilização Íormal .
tétrica grandeza a Íigura de Burley, que depois virá a ser
um dos cabeças da revolta puritana. Em suma: Walter Scott, O conteúdo simbólico é realizado em Flaubert através
contando o que se passou nesta celebração militar e descre- da ironia e possui um notável nível artístico, alcançado com
cendo o cenário em que ela se realizou, desenvolve tôdas meios pelo menos em parte genuìnamente artísticos.
- -
as tendências e todos os personageng principais de um gran- Mas, quando, como ocorre em Zola, o símbolo deve adqui-
de drama histórico, colocando-se, de golpe, bem no meio da rir por si mesmo uma monumentalidade social, quando tem
a ção. a função de imprimir a um episódio que em si é insignifican-
A descrição agrícola e premiação dos agricultores em te o sêlo de um grande significado social, então se abandona
Madarne Botnrg é uma das mais celebradas obras-primas da o campo da verdadeita arte. A metáfora aparece inchada
arte descritiva do moderno realismo. Flaubert descreve, aqui, de realidade. Um traço acidental, uma semelhança de su.
efetivamente, só o "cenário", vma vez que tôda a exposição perÍície, um estado de ânimo, um encontro casual passam a
não passa de uma ocasião para enquadrar a cena decisiva do constituir a expressão imediata de vastas relações sociais.
amor entre Rodolfo e Ema Bovary. O cenário é casual, um Em qualquer romance de Zola se pode encontrar grande
verdadeiro cenário, no sentido literal da palavra. E esta ca- quantidade de exemplos disso. Lembremo-nos apenas do pa-
sualidade vem claramente sublinhada pelo próprio Flaubert. ralelo entre Naná e a môsca dourada, paralelo com gue se
Unindo e contrapondo os discursos oficiais a fragmen- pretendia simbolizar o fatal influxo daquela sôbre a Paris
tos do colóquio amoroso, Flaubert institui um paralelo irôni- de antes de 1870. Zola mesmo é quem declara €xpr€ssôm€n-
co entre a banalidade pública e a banalidade privada da vi- te a sua intenção: "Na minha obra, impera a hipertrofia do
particular realista. Do trampolim da observação precisa, par-
52
53
te'se para se alcançar as estrêlas. A um único mover de saber como e por que a descrição
-
que originalmente era
asas,a verdade se eleva a símbolo". um entre os muitos meios empregados na criação artística
Em '\Malter Scott, Balzac ou Tolstoi, vínhamos de co- (e, por certo, um meio subalterno )
-
chegou a se tornar o
nhecer acontecimentosque eram importantespor si mesmos, princípio fundamental da composição. Pois, dêste modo, o
mas eram tambémimportantespara as relaçõesinter-humanas caráter e a função da descrição na composição épica chega-
dos personagensque os ptotagonizavam e importantes para f,am a sofrer uma mudança radical .
a significação social do variado desenvolvimento assumido lâ Balzac sublinhava, na sua crítica à Cartuxa de Parma
pela vida humana de tais personagens. Constituíamos o pú- de Stendhal, a importância da descrição como meio de com-
blico de certos acontecimentosnos quais os personagensdo posição essencialmente moderno. O romance do Século XVIII
romance tomavam parte ativa. Vivíamos êsses aconteci- (Le Sage, Voltaire, etc.) mal conhecia a descrição, que nêle
mentos. exercia uma função mínima, mais do que secundária. A si-
tuação muda sòmente com o romantismo. Balzac salienta gue
Em Flaubert e em Zola, os mesmospersonagenssão es- a tendência literâria representada por êle (e da gual êle con-
pectadores mais ou menos interessados nos acontecimentos sidera Walter Scott o fundador) assinala maior importância
- e com isso os acontecimentosse transformam, aos olhos à descrição. Mas, guando Balzac, acentuando o contraste
dos leitores,em um quadro, ou melhor, em uma série de qua- com a aridez dos Séculos XVII e XVIII, se declara seguidor
dros. sses quadros, nós os observamos, de um método moderno, êle alinha tôda uma série de mo-
mentos estilísticos gue considera característicos de tal orien-
tação. A descrição ê, entâo, no pensamento de Balzac, um
II momento entre outros; ao lado dela, vem particularmente su-
blinhada a nova importância assumida pelo elemento dra-
mático.
O contraste entre o participar e o observar não é casual, O nôvo estilo brota da necessidade de configurar de
pois deriva da posiçãode princípio assumidapelo escritor em modo adequado as novas formas que se apresentam na vida
face da vida, ém face dos grandes problemasda sociedade, social . A relação entre o indivíduo e a classe tornara-se mais
e não do mero emprêgo de um diverso método de represen- complexa do que nos Séculos XVII e XVIII. O ambiente,
tar determinado conteúdo ou parte de conteúdo. o aspecto exterior, os hábitos do indivíduo, podiam (por exem-
Esta constatação é necessáriaa fim de colocarmos con- plo, em Le Sage) ser muito sumàriamente indicados e, no
cretamenteo nosso problema. Tal como ocorre nos demais entanto, a despeito dessa simplicidade, podiam constituir uma
campos da vida, na literatura não nos deparamoscom-"fe- clara e completa caracterização social . A individualizaçâo
nômenos puros". Engels recorda gue o "pur9 _feudalismo era alcançada quase que exclusivamente pela própria ação,
só existiu na constituição do eÍêmero reino de |erusalêm' pelo modo segundo o qual os personagens reagiam ativamen-
No entanto, é evidente que o feudalismo constitui uúâ rea- te aos acontecimentos.
lidade histórica e pode, lògicamente, ser obleto de uma inda- Balzac vê claramente que êste método não lhe pode mais
gação. Ora, é certo que não existe qualquer escritor Çue r-e- bastar. Rastignac, por exemplo, é um aventureiro de tipo
nuncie completamente-adescrever. E também seria,pouco lí- completamente diverso do de Gil Blas. A descrição exata
cito afirmai gue os grandes representantesdo realismo pos- da pensão Vauquer, com sua sujeira, seus odôres, seus ali-
terior a 1848,-FlauberteZola, tenhamrenunciadode todo a mentos, sua criadagem, é absolutamente necessária para tor.
narrar. O gue nos importa são os princípios da estrutura da nar realmente de todo compreensível o tipo particular de aven-
composiçãoã não o fantasmade um "narrar" ou "descrever" tureiro que é Rastignac. Da mesma forma, a casa de Gran-
que constituam um "fenômeno puro". O que nos importa é det, o apartamento de Gobsek, etc., precisam ser descritos

54 55

I
a uma atitude de oposição, isto é, exprime o ódio, o horror
em seus pormenores para que êstes completem a representa- e o desprêzo que êles têm pelo regime político e social do
ção dos tipos diversos de usurário, social e individualmente, seu tempo. Os homens que aceitaram a evolução social des-
que eram êles. ta época tornaram-se estéreis e mentirosos apologistas do
Ainda que prescindamos do fato de que a reconstituição capitalismo. Flaubert e Zola são demasiado grandes e sin-
do ambiente não se detenha, em Balzac, na pura descrição, ceros para seguir êste caminho. Por isso, como solução para
e venha quase sempre traduzida em ações (basta evocarmos a trâgica contradição do estado em que se achavam, só pu-
o velho Grandet, consertando a escada apodrecida), verifi- deram escolher a solidão, tornando-se observadores e críti-
camos que a descrição, nêle, não é jamais senão uma ampla cos da sociedadeburguesa.
base para o nôvo, decisivo elemento: o elemento dramático. Com isso, entretanto, tornaram-se ao mesmo tempo es-
Os personagens de Balzac, tão extraordinàriamente multi- critores profissionais, escritores no sentido da divisão capi-
formes e complexos, não se poderiam mover com efeitos dra- talista do trabalho. Êste ê o momento em que o livro se
máticos tão convincentes se os Íundamentos vitais dos seus transformou comoletamente em mercadoria e o escritor em
caracteres não fôssem tão largamente expostos. Em Flaubert vendedor da referida mercadoria, a não ser quando, por aca-
e em Zola a descrição tem uma função absolutamente diversa. so, o escritor dispunha de uma renda. Em Balzac, encontrá-
Balzac, Stendhal, Dickens, Tolstoi representam a socie- vamos ainda a tétrica grandeza da acumulação primitiva no
dade burguesa que se está consolidando através de graves campo da cultura. Goethe ou Tolstoi podem ainda, no que
crises; representam as complexas leis que presidem à Íorma- se refere ao fenômeno de que estamos falando, assumir a
ção dela, os múltiplos e tortuosos caminhos que conduzem atitude senhorial dos que não vivem sòrqente da literatura.
da velha sociedade em decomposição à nova que está sur- Flaubert é um asceta voluntário e Zola, constrangido pela
gindo. Eles mesmos viveram êsse processo de formação em necessidade material, ê jâ um escritor profissional no senti-
suas crises, participaram ativamente dêle, se bem que em for- do da divisão capitalista do trabalho.
mas diversas. Goethe, Stendhal e Tolstoi tomaram parte em
Os novos estilos, os novos modos de representar a tea-
guerras que serviram de parteiras a tais transformações. Bal-
lidade não surgem jamais de uma dialética imanente das for-
zac participou das especulações Íebris do nascente capitalis- mas artísticas, ainda que se liguem sempre às formas € s€n-
mo francês e Íoi vítima delas. Tolstoi acompanhou as etapas tidos do passado. Todo nôvo estilo surge como umâ neces-
mais importantes dêsse revolucionamento na qualidade de sidade histórico-social da vida e é um produto necessário da
proprietário de terras ou colaborando em várias organizações evolução social . Mas o reconhecimento do caráter Íì€c€s-
sociais (recenseamento, comissão contra a carestia, etc.). A sário da formação dos estilos artísticos não implica, de mo-
êste respeito, êles são, também na sua conduta de vida, os do algum, que êsses estilos tenham todos o mesmo valor e
continuadores dos escritores, artistas e sábios do Renasci- estejam todos num mesmo plano. A necessidade pode ser,
mento e do lluminismo: são homens que participam ativa- tambêm, a necessidade do artìsticamente falso, disforme e
mente e de vários modos das grandes lutas sociais da época ruim.
e que se tornam escritores através das experiências de uma 1r1 li li
A alternativa participar ou obseruar corresponde, então,
vida rica e multiforme. Não são ainda "especialistas", no
a duas posições socialmente necessárias, assumidas pelos es-
sentido da divisão capitalista do trabalho.
critores em dois sucessivos períodos do capitalismo. A al-
Flaubert e Zola iniciaram suas atividades depois da bata-
ternativa nafiar ou descr,euer corresponde aos dois métodos
lha de junho, numa sociedade burguesa já cristalizada e cons-
fundamentais de representação próprios dêstes dois períodos.
tituída. Não participaram mais ativamente da vida desta so.
ciedade; não queriam participar mesmo. Nessa recusa se Para distinguir nìtidamente entre os dois métodos, po-
manifesta a tragédia de uma importante geração de artistas demos contrapor um testemunho de Goethe a um de Zola,
da época de transição, jâ que a recusa é devida, sobretudo,
57
56
ambos referentes às relações entre observação e criação ar- do "equivalente social" dos escritores individualmente consi-
tistica. Diz Goethe: "famais contemplei a natvÍeza com oble- derados e estilos singulares, crê que os problemas Íiquem re-
tivos poéticos. Os desenhos de paisagens, primeiro - e a solvidos e eliminados com a indicação da gênese dêles. Êste
minha atividade como naturalista, depois - ÍÍr€ têm levado método (cuja explicação não cabe aqui) significa na práti-
a observar contínua e minuciosamente os objetos naturais e, ca uma tentativa de reduzir todo o desenvolvimento artístico
pouco a pouco, aprendi a conhecer bem a natureza, mesmo da humanidade ao nível da burguesia decadente: Homero,
em seus mínimos detalhes, de modo que, se - como poeta Shakespeare aparecem como "produtos" equivalentes a Ioy-
tenho necessidade de alguma coisa, disponho dela ao al- ce e fohn dos Passos. A tarefa da crítica literária fica adstri-
-
cance da mão, e não me é fácil pecar contra a verdade". ta à descoberta do "equivalente social" de Homero ou |oy-
Também Zola se exprime muito claramente sôbre o mo- ce. Marx colocou o problema de modo bem diverso. De-
do como se aproxima de um obleto para atender à suas fina- pois de ter analisado a gênese da epopéia homérica, êle acres-
lidades como escritor: "LIm romancista naturalista quer es- centou: "A dificuldade, entretanto, não consiste em cornpr€-
crever um romance sôbre o mundo do teatro. Êle parte des- ender que a arte e a épica grega estejam ligadas a certas
sa idéia geral sem dispor de um único fato, seclttet de uma formas de desenvolvimento social . A dificuldade consiste em
figura. Sua primeira preocupação será a de tomar apontamen- que elas continuam a suscitar em nós vm prazeÍ estético e
tos sôbre tudo que possa vir a saber acêrca dêste mundo que valem, sob certos aspectos, como normas e modelos inigua-
pretende descrever. Conheceu determinado ator, assistiu a láveis".
determinada representação, etc. Depois, falará com os que Tal indicação de Marx, naturalmente, se refere também
dispuserem de maiores informações a respeito do assunto, a casos em gue a estética precisa pronunciar uma apreciação
colecionará frases, anedotas, flagrantes. Mas isso não bas- negativa. Nos dois casos, a valoração estética não pode ser
ta. Lerâ, também, os documentos escritos. Por fim, visitará mecânicamente separada da dedução histórica. Que os poe-
os lugares indicados, e passará um día qualquer em um tea- mas homéricos sejam mais verdadeiramente poemas épicos
tro para conhecê-lo em seus pormenores. Permanecerá algu- e não o sejam tanto os de Camões, Milton e Voltaire, é
mas noites no camarim de uma atriz e procurará identiÍicar- uma questão ao mesmo tempo histórico-social e estética. Não
se o mais possível com o ambiente. E, quando a documen- existe uma "maestria" separada e independente de condições
tação estiver completa, o seu romance se Íará por si mesmo. históricas, sociais e pessoais que sejam adversas a uma rica,
O romancista deve se limitar a ordenar os fatos de modo vívida e ampla reprodução da realidade obletiva. A incle-
lógico . . . O inter.êsse não se concentra mais na origínalidade mência social dos pressupostos e condições exteriores da cria-
da trama; assim, quanto nlais esta é banal e genérica, tanto ção artística exerce necessàriamente uma ação deformadora
mais típica se totna" (os grifos são meus, GL) . sôbre as próprias formas essenciais da representação. Isso
Estamos diante de dois estilos radicalmente diversos, de vale também para o caso de que estamos tratando.
duas maneiras diversas de encarar a realidade. Flaubert escreveu uma autocrítica extremamente instru-
tiva, referente ao seu romance A Edu'cação Sentímental, na
qual se lê: "Êle (o romance) é excessivamente verdadeiro e,
III do ponto de vista estético, padece de um êrro de perspecti-
va. O plano era bem pensado, mas terminou por desaparecer.
Compreender a necessidade social de um dado estilo é Tôda obra de arte deve ter um vértice, um cume; deve for-
algo bem diferente de fornecer uma avaliação estética dos mar uma pirâmide, ou um Íacho de luz que caia sôbre um
efeitos artísticos dêsse estilo. Em estética não prevalece o ponto da esfera. Na vida não há nada disso. A arte, con-
princípio de que "tudo compreender ê tudo perdoar" . SO o tudo, não ê a natureza. Não importa: acredito que ninguém
sociologismo vulgar, gue se circunscreve à procura do chama- foi mais longe em matéria de sinceridade".

58

I
I
59

L
Esta confissão, como tôdas as declarações de Flaubert,
lidade obletiva, desaparece o falso, subletivo e abstrato con-
dá testemunho de um absoluto respeito pela verdade. Flau-
traste entre o "normal" e o "anormal". Marx €nxerga mes-
bert caracteriza com exatidão a composição do seu romance
mo na crise econômica o fenômeno "mais normal" da eco-
e está certo em sublinhar a necessidade artística dos pontos
nomia capitalista: "A autonomia que assumem È um €m rc-
culminantes. Mas terâ razão ao dizer que no seu romance
lação ao outro * momentos estritamente conexos e comple-
há "excessiva verdade"? Será exato que os "pontos culminan-
mentares, a crise a destrói violentamente. Por isso, a crise
tes" existem apenas na arte?
revela a unidade dos momentos que estavam recìprocamen-
Não é exato, naturalmente. Essa confissão flaubertiana, te i sol ados" .
tão integralmente sincera, não nos interessa sòmente como
]á a ciência burguesa da metade do Século XIX, inves-
autocrítica relativa ao seu romance, mas sobretudo porque tida de uma função apologética, enxerga a realidade de ma-
ela nos revela a sua errônea concepção da realidade, da essên- neira bastante diversa. A crise the aparece em forma de
cia objetiva da sociedade, da relação entre arte e natvÍeza. "catástrofe", interrompendo "sübitamente" o andamento "nor-
Sua concepção,segundo a qual os "pontos culminantes" exís- mal" da economia. Do mesmo modo, tôda revolução lhe apa-
tem apenas na arte e vêm, portanto, criados pelo artista (que rece como algo catastrófico e anormal .
pode decidir criá-los ou não, a seu bel prazer), é um puro Nas suas opiniões subjetivas e nos seus propósitos como
e simples preconceito subletivo. Trata-se de uma concepção escritores, Flaubert e Zola não são de modo algum defen-
que é um preconceito resultante de uma observação exterior sores do capitalismo. Mas são filhos da época em que vive-
e superficial das manifestações da vida burguesa, das formas ram e, por isso, a concepção que êles tinham do mundo so-
de vida características da sociedade burguesa, uma observa- fre constantemente o influxo das idéias do tempo. Isso é
ção que faz abstração das fôrças motrizes do desenvolvi- válido principalmente para Zola, cuja obra se ressentiu de-
mento social e da ação que estas contìnuamente exercem, in- cisivamente dos preconceitos da sociologia burguesa. Essa
clusive sôbre a superfÍcie da vida. Considerada dêsse modo ê. a razáo pela qual em Zola a vida se desenvolve quase sem
abstrato, a vida aparece como um rio que corre sempre de saltos e articulações, podendo-se mesmo considerá-la, da sua
maneira igual, como uma lisa e monótona superfície sem perspectiva, socialmente normal: todos os atos dos homens
articulações. Embora, de tanto em tanto, essa monotonia se- aparecem como produtos normais do meio social . Há, porém,
ja interrompida por brutais catástrofes "improvisadas". outras fôrças em ação, bastante diversas e heterogêneas, como
Na realidadê - e, naturalmente, também na realidade a hereditariedade, que atua sôbre os pensamentos e os senti-
capitalista - as catástrofes "improvisadas" são preparadas mentos dos homens, como necessidade fatalista, provocando
por um longo processo. Elas não se acham em rígido con- catástrofes que interrompem o fluxo normal da vida. Basta
traste com o pacÍfico andamento da superÍície, e são â cotÌ- pensar na embriaguez hereditâria de Etienne Lantier, em Ger-
seqüência de uma evolução complexa e desigual . lÉ esta evo, mínat, que provoca várias explosões e catástrofes bruscas
lução que articula objetivamente a superÍície aparentemente que não têm relação orgânica alguma com o caú-Íer de Etien-
lisa daquela esfera a que se refere Flaubert. De fato, o ar- ne; Zola não quer mesmo estabelecer tal relação. O mesmo
tista deve iluminar os pontos essenciais de tais articulações, acontece em L'Argent, com a catástroÍe provocada pelo filho
mas Flaubert incorre num preconceito quando crê que elas de Saccard. Em ioda parte, a ação normal e homogênea do
ambiente fica contraposta, sem nexo algum, às bruscas ca-
- as articulações - não existem independentemente do ar-
ti st a. tástrofes determinadas pelo fator hereditário.
As articulações nascem por obra das leis que determinam É evidente que não nos defrontamos, agui, colÌl um Í€-
o desenvolvimento histórico da sociedade. em decorrência da flexo exato e profundo da realidade objetiva, e sim com uma
ação das fôrças motrizes do desenvolvimento social . Na rea- banal deformação das suas leis, devida ao influxo de precon-
ceitos apologéticos exercido sôbre a concepção do mundo ado-
60
61
tada pelos escritores dêsse período. O verdadeiro conheci- expõe contìnuamente o mesmo trabalho típico de um caráter
mento das fôrças motrizes do processo social e o reflexo exa- humano. Tanto em Ulisses como em Gil Blas, essa é a ra-
to, profundo e sem preconceitos da ação dêste processo sô- zão humana e poética do imperecível viço alcançado -por uma
bre a vida humana, assumem a forma de um movimentol um sucessão de aventuras. E o fator decisivo é naturalmente o
movimento que representa e esclarece a unídade orgânica homem, o revelar-se dos traços essenciais da vida humana:
que liga a normalidade à exceção. o gue nos interessa é ver como Ulisses ou Gil Blas, Moll
Flinders ou D. Quixote reagem diante dos grandes aconte-
A verdade do processo social é também a verdade dos
cimentos de suas vidas, como enfrentam os perigos, como
destinos individuais. Em que coisa, entretanto, e de que mo-
superam os obstâculos, e como os traços qrre tornam interes-
do, torna-se visível tal verdade? 'É claro, não sòmente para
santes e significativas as suas personalidades se desenvolvem
a ciência e para a política fundada sôbre bases científicas,
na ação'
mas também para o conhecimento prático do homem na sua 'Se mais ampla e profundamente
sempre
não revelam traços humanos essenciais, se não ex-
vida cotidiana, que essa verdade da vida só se pode manifes-
primem as relações orgânicas entre os homens e os aconteci-
tar na praxis, no conjunto dos atos e ações do homem. As
palavras dos homens, seus pensamentos e sentimentos pura- mentos, as relações entre os homens e o mundo exterior, as
mente subjetivos, revelam,se verdadeiros ou não verdadeiros, coisas, as fôrças naturais e as instituições sociais, até mesmo
as aventuras mais extraordinárias tornam-se vazias e desti-
sinceros ou insinceros, grandes ou limitados, quando se tra-
tuídas de conteúdo. É necessário não esquecer que, na reali-
duzem na prática, isto é, quando os atos e as fôrças dos ho-
mens confirmam-nos ou desmentêm-nos na prova da reali- dade, tôda ação - ainda que não revele traços humanos típi-
dade. Só a praxis humana pode exprimir concretamente a cos e essenciais - contém sempre nela o esquema abstrato
(conquanto deformado e apagado) da praxis humana como
essência do homem. O que é fôrça? O que é bom? Pergun-
tas como estas obtêm respostas ünicamente na praxis. um tódo. Eis por que expôsições esquemáticas de ações de
aventuras nas quais aparecem apenas sombras humanas po-
É através da praxis, apenas, que os homens adquirem dem, não obstante, suscitar - de modo transitório - certo
interêsse uns para os outros e se tornam dignos de ser toma- interêsse: é o caso dos romances de cavalaria ou, €m ttos-
dos-como obleto da representação literária. A prova que sos dias, dos romances policiais. A eficácia dêstes romances
confirma traços importantes do caráter do homem ou eviden- põe a nu uma das raízeó mais profundas do interêsse do ho-
cia o seu fracasso não pode encontrar outra expressão senão mem pela literatura, que é o interêsse pela riqueza e varie-
a dos atos, a das ações, a da praxis. A poesia primitiva dade de côres, variabilidade e multiplicidade de aspectos da
-
quer se trate de fábulas, baladas ou lendas, quer se trate de experiência humana. Se a literatura artística de uma êpoca
formas espontâneas, saídas mais tarde dos relatos anedóti- nãõ consegue encontrar a conexão existente entre a praxis
cos
- parte sempre do fato fundamental da importância da e a rigueia de desenvolvimento da vida íntima das figuras
praxis; ela sempre representou o sucesso ou o fracasso das típicas do tempo, o interêsse do público se refugia €m süce-
intenções humanas na prova da experiência e disso decorreu dâneos abstratos e esquemáticos da literatura.
a sua profunda significação. Ainda hoje, a despeito dos seus Êste é precisamente o caso da literatura da segunda me-
pressupostos freqüentemente fantásticos, ingênuos e inacei- tade do Século XIX. A literatura baseada na observação e
táveis para o homem moderno, essa poesia continua viva, por descrição elimina sempre, em medida crescente, o intercâm-
colocar no centro da representação exatamente êste fato fun- bio enire a praxís e a vida interior. Talvez nunca tenha havi-
damental da vida humana. do uma épôca na qual, como ocorre na nossa' ao lado da
O interêsse que tem a reunião de várias ações numa grande litãratura oficial, pululasse tanta literatura de aven-
concatenação orgânica também é devido fundamentalmente Iuras vazia e simplista. E não nos iludamos pensando que
ao fato de gue, nas mais diversas e variegadas aventuras, se tal literatura seja'lida sòmente por "gente inculta" e que as

62 63
elites se atenham à grande literatura moderna: comumente, subletivamente o reÍlexo literário da realidade, impedindo-o
dá-se o contrário. No mais das vêzes, os modernos clássicos de ser tão amplo e tão justo como poderia. Flaubert luta
são lidos em parte pôr senso do dever e, em parte, pelo in- durante tôda a sua vida para romper o cêrco mágico dos pre-
terêsse no que concerne ao conteúdo que reflete (se bem que conceitos assumidos da necessidade social. Mas êle não luta
de modo enfraquecido e atenuado) os problemas do tempo. contra os preconceitos mesmos e, como os considera como
Para distração, entretanto, para diversão, devoram-se os ro- Íatos objetivos aos quais nada se pode opor, a sua luta é
mances policiais. trágica e vã. Êle a empreende incessantemente e do modo
Quando trabalhava em Madame Booarg, Flaubert la- mais apaixonado contra o tédio, a baixeza e a repugnância
mentou em várias ocasiões que do seu livro estivesse âusen- dos temas burgueses com que se ocupa a sua atenção de es-
te o elemento divertimento. Lamentos semelhantes acham-se critor. A cada vez gue trabalha em um romance burguês,
em muitos dos escritores modernos notáveisl êles constatam jura que não voltará mais a se ocupar de matéria tão vil .
gue os grandes romances do passado uniam a representação Todavia, só encontra saída na fuga em um exotismo de fan-
de sêres humanos ricos de significado às tensões e diverti- tasia; o caminho gue leva à descoberta da verdadeira ínti-
mentos, ao passo que na arte moderna entram em cena â ttro- ma poesia da vida lhe é barrado pelos seus preconceitos.
notonia e o aborrecimento. Esta situação paradoxal não é de
A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lu-
modo algum o efeito de uma falta de dotes literários nos es-
tam, a poesia das relações inter-humanas, das experiências
critores da nossa época, que produziu um número considerá-
e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode
vel de escritores dotados de incomum talento. A monotonia
haver epopéia autêntica, não pode ser elaborada nenhuma
e o tédio decorrem dos padrões da criação artística e da con-
composição épica apta a despertar interêsses humanos, a f.ov
cepção do mundo adotada pelos escritores.
talecê-los e avivá-los. A epopéia e, naturalmente, também
Zola condena como "antinatural" o emprêgo de elemen- -
a arte do romance consiste no descobrimento dos traços
tos excepcionais por Stendhal e Balzac. Èle diz, por €xem- -
atuais e significativos da praxís social . O homem quer ver
plo, sôbre o modo como é tratado o amor em O V,ermelho e o
na epopéia a clara imagem da sua praxis social . A arte do
Negro, o seguinte: "Assim se abandona a verdade cotidiana,
a verdade contra a qual nos chocamos, e o psicólogo Sten- poeta épico reside precisamente na justa distribuição dos pe-
dhal passa ao temeno do extraordinário, tal como o narrador sos, na acentuação apropriada do essencial. A sua ação é
Alexandre Dumas. Do ponto de vista da exatidão. da vera- tanto mais geral e empolgante quanto mais êste elemento es-
cidade, |ulien me causa tanta surprêsa quanto d'Artagnan". sencial o homem e a sua praxís social aparece, não
- -
No seu ensaio sôbre a atividade literária dos Goncourt. na forma de um rebuscado produto artificial virtuosístico,
mas como algo que nasceu e cresceu naturalmente, guer di-
Paul Bourget formula muito claramente o nôvo princípio de
composição: "O drama ê. açâo, como indica a etimologia, e a zer, como algo gue não é inventado e sim, apenas, desco-
ação não é mais uma boa expressão dos costumes. O que é berto.
significativo em um homem não é aquilo que êle faz em um Por isso o romancista e dramaturgo alemão Otto Ludwig
momento de crise aguda e apaixonada, e sim os seus habitos (cuja obra, de resto, é bastante problemática), em s€us €s-
cotidianos, os quais não denotam uma crise, mas um estado". tudos sôbre Walter Scott e Dickens, chega a esta justíssima
Aqui, e sòmente aqui, é que se torna inteiramente com- conclusãol "... os personagens parecem ser a coisa princi-
preensível a acima citada autocrítica flaubertiana quanto ao pal e o movimento dos acontecimentos serye apenas para in-
seu método de composição. Flaubert confunde a vida em ge- troduzir os personagens como tais em um jôgo naturalmente
ral com a vida cotidiana do burguês médio. 'Êste preconcei- atraente; não ocorre, pois, que êles estejam em cena apenas
to possui, sem dúvida, suas próprias raízes sociais, porém não para ajudar a manter o movimento. O fato é que o autor tor-
deixa por isso de ser um preconceito, não deixa de deformar na interessante aguilo que precisa ser tornado, enquanto o

64 65
que é interessante por si mesmo fica entregue às suas pró- A riqueza de um dramaturgo como Shakespeare deriva de
prias fôrças. . . Os personagens constituem sempre o princi- uma rica e diversificada concepção do próprio conflito. Mas,
pal . E, na realidade, um acontecimenfq - por maravilhoso na tendência para a exclusão de todos os particulares que
que seja prazo tanto como
- não nos interessará a longo não se reÍiram ao conflito, a verdade é que não há diferença
os homens aos quais nos afeiçoamos com a convivência". substancial alguma entre Shakespeare e os gregos.
A extensão da descrição, sua passagem a método domi- A localização da ação épica no passado, pedida por Goe-
nante da composição êpica, ê fenômeno que ocorre num pe- the, comporta a seleção do que é essencial neste copioso oc€â-
ríodo em que se perde, por motivos sociais, a sensibilidade no que é a vida e a representação do essencial de maneira
para os momentos essenciais da estrutura épica. .A descri- a suscitar a ilusão de que a vida tôda esteja representada
ção é um sucedâneo literário destinado a encobrir a carência na sua extensão integral. O critério que decide se um por-
de significação épica. menor é ou não é pertinente, é ou não é essencial, precisa
Ainda aqui, entretanto, como se dá sempre na gênese ser, por conseguinte, mais "largo" na épica do que no drama;
de novas formas ideológicas, prevalece o princípio da ação e tal critério precisa reconhecer como essenciais tambéÍr co,
reação. O predomínio da descrição não é apenas efeito, mas nexões tortuosas indiretas. Dentro desta concepção mais am-
também se torna causa: causa de um aÍastamento ainda maior pla e extensa do essencial, todavia, a seleção deve ser tão
da literatura em relação ao significado épico. A tirania da rigorosa quanto a do drama: aquilo que não concerne à subs-
prosa do capitalismo sôbre a íntima poesia da experiência tância é um estôrvo, um obstáculo não menos grave aqui do
humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do ní- que o é no drama.
vel de humanidade são fatos obletivos que acompanham o Sòmente no final é. que a tortuosidade dos caminhos da
desenvolvimento do capitalismo e dêsse desenvolvimento de- vida se simplifica. Só a prarís humana pode indicar quais
corre necessàriamente o método- descritivo. tlma vez cons- tenham sido, no conjunto das disposições de um caráter
tituído êste método, e aplicadq pòr escritores notáveis (a seu humano, as qualidades importantes e decisivas. Só o contato
modo, coerentes), êle repercute, de ricochête, sôbre o reflexo com a praxis, só a complexa concatenação das paixões e das
titerário da realidade. O nível poético da vida social decai variadas ações dos homens pode mostrar quais tenham sido
e. d literatura sublinha e aumenta esta decadência. as coisas, as instituições, etc., que influíram de modo deter-
-
minante sôbre os destinos humanos, mostrando quando e como
se exerceu tal influência. De tudo isso só se pode ter uma
IV visão de conjunto quando se chega ao final . 'É a própria
vida que tem realizado a seleção dos momentos essenciais
do homem no mundo, quer sub;etiva, quer obletivamente. O
A narração distingue e ordena. A descrição nivela tô- escritor épico que narra uma experiência humana em um
das as coisas. acontecimento, ou desenvolve a narração de uma série de
Goethe exige da poesia épica que ela trate todos os acontecimentos dotados de significação humana, e o f.az re.
acontecimentos como definitivamente já transcorridos, em trospectivamente, adotando a perspectiva alcançada no final
oposição à contemporaneidade da ação dramática. Com isso, dêles, torna clara e compreensível para o leitor a seleção do
Goethe define de maneira iusta a diferença entre o estilo essencial que jâ foi operada pela vida mesma. O observador
épico e o estilo dramático. O drama se situa a priod em um que, por fôrça das coisas, é, ao contrário, contemporâneo
nível de abstração bastante mais elevado do que a epopéia. da ação, precisa perder-se no intrincado dos particulares,
O drama tem sempre o seu centro em um conflito, e tudo que e tais particulares aparecem como equivalentes, pois a vida
não se refira direta ou indiretamente a êste conflito apa- não os hierarquizou através da praxis. O caráter "passado"
rece como absolutamente deslocado, supérfluo e fastidioso. da epopéia, portanto, é um meio de composição fundamental,

66 67
êste homem chegou a se f.azer o executor passivo (e atê ze'
prescrito pela própria realidade ao trabalho de articulação
loso) de ações bestiais. Torna-se claro que todos- os mati-
e ordenamento da matéria.
zes e tôdas as nuances do baile só podiam ser selecionados
É verdade gue o leitor, ao ler, desconhece o final. Aos e descritos a partir do ponto de vista alcançado com a cena
seus olhos, na leitura, oferece-se uma quantidade de pormeno-
da punição. O observador "contemporâneo", que não nar-
res e particularidades cuja significação e importância nem
ru.rã o baile retrospectivamente, a partir daquele ponto de
sempre êle pode avaliar, desde logo. São elementos que lhe
vista alcançado por um evento ulterior, teria visto e descrito
suscitam pressentimentos que o curso ulterior da narração
necessàriamente particularidades bem diversas, mais super-
poderá confirmar ou dissipar. Mas o leitor é guiado pelo
Íiciais e menos essenciais.
autor através da variedade e multiplicidade de aspectos do
entrecho, e o autor, na sua onisciência, conhece o significado O costume de se afastar dos acontecimentos, que per-
especial de cada particularidade, por menor que seia, sua li- mite exprimir uma seleção dos elementos essenciais já opera-
gação à solução definitiva, sua conexão com o desenvolvi- da pela pr'axis humana, pode ser encontrado nos autênticos
mento conclusivo dos caracteres, e só lhe interessam as par- nariadorós até mesmo nos casos em que êles adotam a Í.ov
ticularidades que podem servir para a rca7izaçáo da trama e ma da narração na primeira pessoa, isto é, quando fazem su-
para o desdobramento da ação no sentido de suas conclusões por que o narrador seja um personagem da própria obra.
finais. A onisciência do autor dá segurança ao leitor e per- bste ê exatamente o cuÁo da novela tolstoiana ora recordada.
mite que êste se instale familiarmente no mundo da poesia. Se tomarmos, inclusive, o caso de um Íomance narrado em
Mesmo não sabendo antecipadamente o que acontecerá, o forma de diário - como o Werthet de Goethe - podere-
leitor pode pressentir com suficiente acuidade o caminho para mos, ainda, observar que os episódios singulares são colhi-
o qual tendem os acontecimentos em decorrência da lógica dos no passado e enÍocados de uma certa (conquanto pe-
interna e da necessidade interior existente no desenvolvimen- quena) ãistância, a qual propicia a necessária seleção dos
to dos personagens. De fato, o leitor não sabe tudo a respei- elementos essenciais na inÍluência dos acontecimentos e dos
to da ação, seu andamento, a respeito da evolução a ser sêres humanos sôbre o próprio Werther.
sofrida pelos personagens; em geral, contudo, sabe mais do Só assim as figuras do romance adquirem contornos
que os próprios personagens. claros e definidos, sem todavia perderem a capacidade de se
No curso da narração, e na medida em que os seus mo- transformar. Só assim a transformação dos personagens se
mentos essenciais vão sendo revelados, é verdade que as par- realiza sempre de maneira a fazê-los alcançar um enriqueci-
ticularidades assumem uma nova luz. Quando Tolstoi, por mento humano, de modo a f.azer com que seus contornos en'
exemplo, na novela Depois do Baile, fala do pai da mulher cerrem uma vida mais intensa. A preocupação central da lei-
amada pelo protagonista principal da história e atribui ao tura de um romance é aquela que nos leva a uma espera im-
velho um comovente espírito de abnegação pela filha, o lei- paciente da evolução dos personagens com que nos familia-
tor sente o fascínio da narração sem captar-lhe tôda a signi- iizamos, a uma espera do êxito ou do fracasso dêles.
ficação. Só depois da narração do castigo militar, em que o É por isso que na grande arte épica o fim até pode
mesmo pai amoroso aparece investido das funções de car- ser antecipado deóde o princípio. Basta pensar-nos exórdios
rasco impiedoso, é que a tensão se desvenda completamente. dos poemás homéricos qúe resumem com brevidade o conteúdo
A grandeza da arte épica de Tolstoi consiste precisamente e a conclusão da narração.
no fato de que êle sabe manter a unidade na tensão e não Como se explica, então, que a tensão continue a reinar?
f.az com que o velho oficial apareça desde logo como um A tensão não consiste, sem drivida, na curiosidade estética
mero "produto" bestial do tzarismo, mostrando, ao contrário, de ver como o poeta se desincumbirâ da tareÍa preÍixada'
de que modo o tzarismo "bestializou" um homem bom, abne- Consiste, isso siú, naquela curiosidade bem humana de saber
gado, capaz de altruísmo em sua vida privada, de que modo
69
68
que iniciativas deverá tomar Ulisses e que obstáculos deve- pectos mais espontâneamente adaptados à descrição, porém
rá ainda superar para chegar a uma meta gue já conhece- mais superÍiciais da coisa.
'referida,
mos. Também na novela de Tolstoi há pouco o De'qualquer modo, o Íato de se- perder a ligação (pró-
leitor sabe com antecedência que o amor do narrador não o pria da nátração) entre as coisas e a função que elas assumem
levará ao casamento. A tensão não reside, pois, no desejo em concretos acontecimentos humanos implica na perda de
de saber o que acontecerá afinal com êste amor, e sim no siqnificacão artística das coisas. As coisas só podem adqui-
desejo de saber como chegou a se formar aquêle espírito de rii um significado quando, nessas condições, vêm ligadas a
irônica e madura superioridade, gue jâ se f.èz notãr como uma idéiJabstrata que o autor considera essencial-à sua pró-
característico do personagem que narra os acontecimentos. pria visão do munáo. Com isso, não se pode dizer gue a
A tensão própria da obra de arte verdadeiramente épica con- coisa assuma uma verdadeira significação poética, ainda que
cerne sempls
-
por conseguinte
- a destinos humanos. se imagine estar a conferir-lhe ta1 significação, poirs o que
A descrição torna presente tôdas as coisas. Contam-se, ocorre ã qtl" a coisa se terá transformado em símbolo '
rrârfâlll-s€ acontecimentos transcorridos; mas só se descreve Daí ãecorre claramente gue os problemas estéticos do
aquilo que se vê, e a "presença" espacial confere aos homens naturalismo devam, pot tte.esiidade, gerar os métodos [or-
e às coisas também uma "presença" temporal . Tal presença, malistas.
contudo, é uma presença eguivocada, não é a presença ime- Mas a perda da signiÍicação íntima das coisas, e- por
diat_ada ação, que é própria do drama. A grande nãrrativa conseguinte áo ordenameitto e'da seleção épica, se-limj-
-não
moderna chegou ao ponto de tecer o elemento dramático na ta ao nivelamento indiferenciado e nem à transformação do
fo"ma do romance precisamente através da transformação de reflexo da vida em natureza morta. A representação e cãtac'
todos os acontecimentos em acontecimentos do passado. A terização dos homens e ob;etos de acôrdo com a experiência
presença ocasionada pela descrição do observador, âo con- sensível imediata é uma operação que possui a sua própria
trário, é o próprio antípoda do elemento dramático. Descre- lógica e um modo seu, específico, de distribuir os acentos e
v€m-sc situações estáticas, imóveis, descrevem-se estados de t"ãl.et. Ela consegue mesmo alguma coisa de pior que o
alma dos homens ou estados de fato das coisas. Descre- mero nivelamento, iito e, consegue uma ordenação hierárquLi-
v€m-se estados de espírito ou naturezas-mortas. ca às avessas. Tal conseqüência está implícita no mêtodo
Desta forma a representação degenera em esboços e se descritivo, pois para provocá-la basta o fato de descrever
perde o princípio natural da seleção èpica. Um dadó estado com a mesma insistênóia os elementos importantes e os ele-
de ânimo é, em si mesmo
-
se não está ligado às ações mentos inessenciais,que permite uma inversão de sentido e
essenciais de um homem
-, táo importante ou irrelevante a passagem do segundo ão primeiro- plano. Em muitos es-
como qualquer outro. E essa equivalência ainda é mais ní- crilores,- essa característica vem unida a uma forma apaga-
tida quando se trata de obletos. Em uma narração é lógi- da, que dilui tôda significação humana.
co que se fale apenas daqueles aspectos de uma coisa que E- um ensaio c-heio de feroz ironia, Friedrich Hebbel
-são
importantes para as funções que a coisa assume no ato analisa um representante típico dessa descrição -por. esboços:
humano concreto em que figura. Tôdas as coisas apresen- Àdalbert Stifíer, gue se tornou, graças à prlbJiçidade feita
tam em si mesmas uma infinidade de qualidades. Se o escri- por Nietzsche, um clássico da reação alemã. Hebbel mostra
tor que se limita a descrever aquilo que vai observando tem .o-o Stifter se diluem e desaparecem os grancles pro-
a ambição de reproduzir de modo completo a presença obye- blemas da humanidade, com as particularidades "amorosa-
"*
tiva da coisa, dois caminhos lhe estão ao alcance: I ) ãu mente" delineadas sepultando o essencial: "Assim como a
renuncia de todo a qualquer princípio seletivo e se dedica folhagem parece muitô mais imponente se o pintor.descuida
ao trabalho de Sisifo de exprimir em palavras um número da ár-vore,-assim como a árvore aparece mais quando s€ sü'
infinito de qualidades: 2) ou, então, dá preferência aos as- prime o bosgue, aqui explode um regozijo gerall artistas cujas

70 7I
Íôrças mal chegam para captar a vida miúda da natureza, e Mas a descrição das coisas nada mais tem à vèr ioiri ôs ácÓfi-
que evitam por instinto metas mais ambiciosas, passam a ser tecimentos da evolução dos personagens' E não só as coisas
louvados e exaltados, são postos até acima de outros que são descritas independentemente das experiências humanas,
não descrevem a dança dos mosquitos ünicamente pelo fáto assumindo um significado autônomo que não lhes caberia no
de que ela não seja visível ao lado da dança dos planetas. conjunto do románce, como tambêm o modo pelo qual são
Agora, começa a florescer por tôda parte ò incidéntal e o destritas conduz a uma espera completamente diversa da-
acessório: a lama das botas que Napoleão usava flo Ítom€n- quela das ações dos personagens. Quanto mais os escrito'
to da sua derrota é descrita com o mesmo tremebundo íes aderem ao naturalismo, tanto mais se esforçam por repre-
escrúpulo com que se descreve o conflito abatido sôbre o sentar apenas homens medÍocres, atribuindoJhes sòmente
vulto do herói. . . Em suma, é a vÍrgula que vestiu casaca e, idéias, séntimentos e palavras da realidade cotidiana super-
do alto do seu complacente orgulhó, concede um sorriso à ficial, de modo gue o contraste se torna cada vez mais estri-
proposição sem a qual, entretanto, ela (virgula) não dente. No dialogo, o que se encontÍa é a prosa chã e árida
existiria" . do dia a dia da vida burquesa; na descrição, ê o virtuosismo
Hebbel discerne aqui, agudamente, o outro perigo fun- de uma arte refinada, de-laboratóriol dêste modo os homens
damental gu9 é imanente à descrição: o perigo de -que as representados não podem mesmo ter relação alguma com os
particularidades se tornem autônomas. Com a perda dã ver- objetos descritos.
'
dadeira arte de contar, as particularidades deixám de ser por- E, quando se institui uma relação à base da descrição, o
tadoras de momentos concietos da ação, oS pormenores adqui- negócio-ainda se torna mais grave. O- autor, entáo, estará
rem u,m significado gue não depende mais da ação ou do des- deJcrevendo do ponto de vista da psicologia dos seus P€rso-
tino dos homens gue agem. Com isso, perde-se tôda e qual- nagens. Mesmo-prescindindo completamente do fato de gue
quer ligação artística com o conjunto da composição. A- fal- é ímpossível desénvolver tal representação de modo coilse-
sa contemporaneidade, que é própria da descrição se mani- qüente (a não ser na forma de um romance escrito la pri-
festa, assim, na desintegração da composição em momentos meira pessoa e marcado por um subjetivismo extremo), êsse
desligados e autônomos. Nietzsche, quã observava com ôlho tipo de relação destrói qualquer possibÌlidade de se obter uma
arguto os sintomas da decadência na arte e na vida, põe a cómposição artística. O ponto de observação do autor .se
nu êste processo, mostrando-lhe as conseqüências estilísticas e esta varia-
deslãca contìnuamente de um lugar -gerapara outro
atê em uma única {rase. Diz êle: "A palavra torna-se sobe- ção permanente de perspectiva um festival de Íogos
rana e salta fora da frase; a frase sai dos seus limites e fatuoi. O autor perde a clarividência e a onisciência que
obscurece o sentido da página, a página adquire vida às ex- distinguem o antigo narrador. O autor- se põe intencional-
pensas do conjunto mente" no nível dú seus personagens. Passa a saber da si-
- e o conjunto não e mãis um coniunto.
Esta imagem, entretanto, vale apenas para os estilos decaden. tuação dêstes apenas uqúilo gue êles mesmos vão sabendo
tes. A vivacidade, a vibração e a éxuberância da vida se u .àdu passo. Á fultu cóntemporaneidadedo método descri'
refugiam em, estruturas menores, ao passo que o resto fica tivo traãsforma o romance em um rutilante caos caleidos-
pobre de vida. O conjunto jâ náo é mais vivo, é um con- cópico.
'
iunto composto, artificial, um artefato". É assim que desaparecem, no estilo descritivo, tôdas as
A autonomia dos pormenores tem efeitos bastante di- conexões épicás. Sôbre coisas inanimadas, fetichizadas, per-
versos, se bem que igualmente deletérios, sôbre a representa- passa o hálito sem vida de um Í.tgaz estado de ânimo ' A
ção da vivência dos acontecimentos pelos homens. Os es- ionexão épica não consiste na mera sucessão dos diversos
critores se esforçam por descrever do modo mais completo, momentosi não basta para gue se crie tal conexão I,ue-gs
mais plástico e mais pitoresco possível, as particularidadès da quadros descritos se disponhám em uma série temporal.' Na
vida, logrando excepcional perfeição artística no seu trabalho. íerdadeira arte narrativa, a série temporal dos acontecimen-

72 73
tos ê recriada artìsticamente e tornada sensível por meios dos, do ponto de vista artístico, tal como os quadros de um
bastante complexos. É o próprio escritor que, na suâ Írêrrô- museu. ôuando os homens não se acham em relações mú-
ção precisa moVêÍ-sê com a maior desenvoltura entre passado tuas, contraditórias, uns com os outros, quando os homens
e presente, para que o leitor possa ter uma percepção clara não são submetidos à prova da efetiva ação, tudo na -c-ompo-
do autêntico encadeamento dos acontecimentos épicos, do mo- sição épica fica abandônado ao arbítrio e ao acaso. Nenhu-
do pelo qual êstes acontecimentos derivam uns dos outros. mã psilologia, por mais refinada que seja, e nenhuma so-
Sòmente pela intuição dêste encadeamento e desta deriva- ciologia, poi mais pretensões de pseudociência que apresente,
ção, o leitor pode reviver a verdadeira sucessão temporal, a podú instituir dentro dêsse caos uma autêntica conexão
dinâmica história dêles. Pense-s€ Írô dupla narração da cor- épica.
'
rida de cavalos por Tolstoi em Ana Kar,enina e na arte com O nivelamento determinado pelo método descritivo faz
que o mesmo Tolstoi conta em pessurreiçãa os anteceden- com que nos romances tudo assuma um caráter episódico '
tes da ligação entre Nechliudov e Maslova, em fragmentos Muitos escritores modernos olham com superior desprêzo
destacados e sucessivos, a cada vez que o esclarecimento de para os métodos antiquados e complicados com os quais os
alguma coisa do passado implique de maneira imediata em ïelhos romancistas desenvolviam os seus enredos e instituíam
um avanço real na ação. entre os seus personagens ligações intrincadas e contraditó-
A descrição rebaixa os homens ao nível das coisas ina- rias, das quais resultuíu u cõmposìção épica. Sinclair Lewis
nimadas. Perde-se nela o fundamento da composição épicar compara, á propósito, o métodõ de composição de Díckens
o escritor gue segue o método descritivo compõe à base do e o'de Dos-Passos: "O método clássico, oh sim, €râ ârüa-
movimento das coisas. fá vimos como Zola representa o mo- do de maneira um bocado cansativa! Por uma malfadada
do pelo qual um escritor deve tratar um tema. O verdadeiro coincidência, o senhor ]ones tinha de viajar exatamente.na
centro dos seus romances é um complexo de coisas: o dinhei- mesma diligência que o senhor Smith, e isso para .que che-
ro, a mina, etc. Tal método de composição tem como efeito gasse a o"ãrr., ulgu*u coisa de doloroso ou de divertido '
o tornar os diversos e determinados aspectos objetivos do Ém Manhattan Trcnsfer, os personagens nunca se €ncoÍr-
complexo de coisas em partes individualizadas dentro do ro- tram ou, quando o f.azem, o encontro acontece do modo mais
mance. Vimos como em Naná o teatro vem descrito: em um natural do mundo".
capítulo, visto da platéia; em outro, visto dos bastidores. A O "modo mais natural do mundo" é, aqui, precisamen-
vida dos homens, o destino dos protagonistas constituem te aquêle pelo qual os homens não estabelecem relações
apenas um tênue Íio, necessário para ligar êstes guadros, entre êles, ôu só estabelecem relações do tipo fugaz super-
obletivamente acabados em si mesmos. ficial, que aparecem de improviso e de improviso desapare-
A essa falsa objetividade corresponde uma subjetivida- cem. O deitino pessoal dos homens perde o interêsse, por
de igualmente falsa. Do ponto de vista da conexão épica, não chegarmos a conhecê-los realmente; os homens não par-
não há por gue erigir em princípio básico da composição a ticipam ãtivamente da ação, apenas passeiam, agitados por
simples sucessão dos acontecimentos de uma vida, não há pensamentos diversos, sô6re o fundo objetivo das descrições
por que construir o romance com base em uma subletividade que constituem o romance.
'
isolada, lìricamente concebida, a de um personagem entre- Isso tudo é, sem dúvida, muito "natural". Porém a Ques-
gue apenas a si mesmo. A sucessão de impressões subjeti- tão é a de se saber o que ê que resulta disso para a arte
vas ê tão pouco suficiente para fornecer a conexão épica como áa nu"tação, consideradá em suas finalidades. Dos Passos
a sucessão de complexos de coisas fetichizadas ( ainda que possui um talento incomum e Sinclair Lewis é um escritor
se tente transformar tais coisas em símbolos) . notável. Por isso mesmo' assume grande interêsse a afkma-
Em ambos os casos, teremos sempre quadros gue se iã. A" f.is a propósito dos persónagens de Dickens e dos
colocam uns ao lado dos outros, mas que se mantêm isola- li"rrottug"ttt de Do3 Passos: "É certo gue Dos Passos ja'

74 75
mais criou e jamais conseguirâ criar personagens duradouros do obieto descrito ' Qualquer coisa gue tenha uma função
como Pickwick, Oliver, Micawber, Nanry, David e sua tia, a" um homem (e desde que tal ação nos des-
Nicholas, Smike e pelo menos uns outros quarenta". perte um interêsse poético ) só se torna poèticamente signi-
"útúã "ã "çáo
de modo
Esta é uma confissão preciosa, gue revela extraordinária Íicativa por fôrca-È*tu do seu nexo com a ação narrada
lembrar o efeito altamente- poético dos
sinceridade. E, se Sinclair Lervis tem razã,o (e, com tôda a ;;;;;tl"ã;.
salvados do naufrágio em Robinsan Crusoé'
certeza, êle a tem ), qual é afinal o valor artístico do "modo ui*iitiot
mais natural do mundo" de ligar os personagens? O contrário se infere de qualquer das descrições de -Zo-
o
la. Tomemos, por exemplo, uã-qúad-ro de Nanâ' fixando
q"" ;;;;;ta'nàs bastidóres: "Um telão estava sendo baixa-
do
áo. P.ãpurava-s€ o cenário do terceiro ato, a caverna
V homens colocavam mastros nos encaixes' oü-
Etna. Alguns
úos iam Ëutaut grossas cordas para amarrá-las nos mastros'
for-
E a vida profunda das coisas? A poesia das coisas? A Ã" rï"ã", pãra iroduzir a chama que deveria brotar da
verdade poética dessas descrições? Objeções semelhantes a de Vulcãno, uro técnico colocavã um lampadário provido
ia
uma
estas podem impressionar os admiradores do método natura. ã" -qlobot vermelhos e acendia-os. Era uma confusão'
Iista. apar"ência de atropêlo, na qual, entretanto, os menores movi-
Para responder a elas, ainda uma vez nos reportaremos ni"ntot estavam cãlculados. E, tto meio da barafunda' o PoT,-
aos problemas fundamentais da arte épica. O que é que tor- to. para desentorpecer as pernas, passeava a passos curtos '
na poéticas as coisas na poesia ëpica? Será exato que é a 'A que pode servir semelhante descrição? Quem
'perfeita, :ï
"ã9idêla
descrição tècnicamdnrf desenvolvida com o máximo nhece o teafro não poderá, com base nela formar uma
virtuosismo, de todos os pormenores do teatro, do mercado, a. cena. E àquele que conhe<e a técnica de encenação
da bOlsa e de outros ambientes; que fornéce a poesia peculiar teattal ela não diz íada dó nôvo - Do ponto de vista poético'
"*"t.
às coisas? Permitam-nos que duvidemos. O palco e a oreues- a descrição é absolutamente supérflua'
tra, os camarins e os bastidores são, em si mesmos, obletos À áspiração à máxima "vãrdade" obletiva implica em
I\ao e
inanimados, sem interêsse e sem poesia. Continuam a sê-lo uma tendência bastante perigosa para o romance'
ainda quando se enchem de sêres humanos e só com os âcon. tt""i." ã"t"tder de cavalôs pãra réviver o drama da corrida
tecimentos nos quais se realizam as experiências da evolução 'Wronski. As descrições dos naturalistas, entretanto' a-sni-
ãe
dêstes homens é que êles adguirem a capacidade de provo. ;;*, ; terminologit áel"t, a uma sempre maiat p.recisão
car em nós emoções poéticas. O teatro e a bôlsa de valôres técnica, com a utilização da linguagem técnica aproprlada ao
'de
são pontos nodais no cruzamento das mais diversas aspira- ã;p; que se kãta. Assim, J oficina ou o aíelíer sáo
ções humanas: são cenários, campos de batalha nos quais se descritos, o mais possível, com o vocabulário do operário
para o
manifestam as contraditórias relações mútuas que vinculam metalúrgico e do pintor. Daí resulta uma literatura
os destinos humanos uns aos outros. Só na medida em que ou u*u literatura para aquêles que se agradam
fornecem a indispensável mediação concreta para a manifes- clessa c"rrsativa aquisição literária de conhecimentos técnicos'
"tp".iáfÏ"t.
tação de relações inter-humanas concretas é que o teatro e ããttã na Íitetatura de expressões provenientes de um
a bôlsa adquirem valor poético, tornam-se poéticos. De fa- "".etto
larsão especializado.
to, não existe na literatura uma "poesia das coisas" inde- '- "-'O, Goncourt exprimiram tal tendência da maneira mais
pendente dos acontecimentos e experiências da vida hum4na. preciú e paradoxal quando escreveram: "Aí daqueles P.to-
Isso, contudo, não basta. É mais do que duvidoso que dutos artíiticos cuia b"leza só existe pata as att'istas" ' Es-
a tão propalada "plenitude" da descrição, a verdade dos por- tá é uma das maióres besteiras que ià chegaram a-ser.ditas'
protunda ver-
menores, seja capaz de dar ao menos uma idéia gercl ef.icaz Quem a disse foi d'Alembert". Combatendo a

76 77
dade enunciada pelo grande iluminista, eis gue os corifeus
do naturarismo aderem irrestritamente à teoria da arte pela aparências quanto dar uma imagem sensível da diversidade
a r t e. de podêres que tais cetros simbolizavam. Um era trabalho
de Vulcano, o outro fôra talhado por mão desconhecida nas
As coisas só têm vida poética enquanto relacionadas
com acontecimentos de destinos humanos. por isso, o V€r_ montanhas; um era antiga propriedade de uma casa nobre,
dadeiro narrador épico não as descreve e sim conta a função o outro estava destinado à primeira mão que o empunhasse;
que elas assumem nas vidas humanas. Trata-se de um ca- um brandido por mão sobreposta a muitas ilhas e dominan-
none fundamental da poesi_a,já claramente reconhecld do tôda Argos, o outro levado por um grego entre muitos,
õ, um grego obrigado à observância das leis como todos os ou-
Lessing: "Considero que Homero nada pinta gue nao sefam
tros. Essa era, na realidade, a distância entre Agamênon e
ações em desenvolvimento, e todos os corpos, tôdas as áoi-
Aquiles, uma distância que o próprio Aquiles, com tôda a
sas singulares que êle pinta só são fixadas pela particiou"á"
sua cega ira, não podia deixar de reconhecer".
que têm nessas ações". Lessing prova tal aósertiía ae modo
Temos aí uma exposição precisa daquilo que na poesia
convincente, aduzindo um exemplo homérico tão significativo
épica torna as coisas verdadeiramente vivas e poéticas. E,
que julgamos conveniente tranócrever todo o trecËo d;
;"; se pensamos nos exemplos anteriormente tirados às obras de
Laocoon,
Walter Scott, Balzac, Tolstoi, devemos constatar que êstes
Trata-se da representação do cetro de Agamênon e do
autores escreveram, mwtatis mutandis, com base no mesmo
cetro de-Aquiles: "... se-devemos ter uma imaqem mais princípio de Homero que Lessing analisou. (E dizemos rnu-
precisa dêste cetro, então, o que é que faz Homeio? pinta,
tatis mutandis porque já indicamos que a maior complexidade
acaso, além das incrustrações de ourã, a madeira, u, pà"t"J
das relações sociais implica na aplicação de novos meios para
esculpidas? Fâ-lo-ia, se a descrição devesse se"vi" parâ firrs
a nova poesia).
heráldicos, que um dia no Íuturo um outro cetro ou-
-para Bem diversas tornam-se as coisas onde predomina o mé-
desse ser feito à base do mesmo modêlo (aí está a críiica
todo descritivo e onde a poesia se compromete em uma vã
antecipada da 'precisão" preconizada pelos' Gorrcourt e po,
competição com as artes figurativas. Aplicado à represen-
Lotd (J.L.r. No entanto, estou seguro de que muitos poe-
-- tação do homem, o método descritivo só pode transformar o
tas modernos teriam feito tal descrição heráldìca, i"oã""u homem em natuteza morta.
convicção de terem pintado o cetro de modo a permitii "u que Só a pintura pròpriamente dita, a autêntica pintura, pos-
um pudesse imitar tal pintura. eue impãrtu, pord-.
-pintor o sui os meios para Í.azer com que as modalidades corporais
a tlomero
_não equivaler a um pintor, o Íicaf abaixó dêste do homem se tornem expressões imediatas das qualidades
na pintura? Ao invés de qma repiodução da imagem do ce-
mais profundas do seu caráter. E não é certamente por aca-
tro, Homero nos conta a historiã dcle. pripeirol ú d"È;-
so que, na mesma época em que as tendências. pictórico-
lhado_por Vulcano; depois, brilhou nas mãos de laoiter
descritivas do naturalismo rebâixam os homens na literatura
a a dignidade funcional de Mercúrio: ;;i, ; "eio ;;; ao nível de elementos de natureza' morta, â pintura venha
o -simbolizar
bastão de comando do guerreiro Pelope, veio a ser o bor-
perdendo a capacidade de alcançar esta mesma intensa ex-
d ã o pas t or al do p a c ífi c o " Atre u . (...) TambC m-ouu" Jo pressão sensível que the é própria. Os'retratos de Cêzanne,
Aquiles jura pelo seu cetro que se vingará do desprêio com
comparados à plenitude psicológica dos retratos de Tiziano
que tôra tratado por Agamênon, Homero nos contã a histó-
ou de Rembrandt, são puras naturezas mortas, exatamente
ria dêste outro cetro. NOs o vemos verdeiar no monte, ser
como ocorre com os personagens dos Goncourt- ou de Zola
separado_do tronco, desfolhado, polido, adáptado ; pãri;;
quando confrontados com os de Balzac e Tolstoi.
serviço dos. juízes do_ povo comó sinal da ãignidadL diuirr" -
A essência corpórea do hornem também só adquire vi-
d: ca.rgo. . .-) A Homero não importava tãnto dar uma
-(. dois talidade poética na relação com outros homens, na inÍluência
descrição dos cetros de diferen[es matérias e diversas que exerce sôbre êles. Lessing compreendeu de maneira igual-
78
79
mente correta êste fato e analisou-o com exatidão quando a sua origem não só no desemprêgo e sim no fato de que tais
falou do modo pelo qual Homero Íepresenta a beleza de trabalhadãres tenham trabalho em períodos irregulares e de-
Helena. É mais um ponto onde podemos ver como os clás- vam aguardar durante os intervalos em botequins' Lafargue
sicos do realismo satisfazem plenamente às exigências da ge- mostriigualmente que Zola fixa sup-erÍicialmenteem L' At g ent
nuína epopéia. Tolstoi caracteriza a beleza de Ana Karenina o contra"ste entre Gundermann e Saccard, entre o judaísmo
exclusivamente pelo influxo que ela exerce na ação e atra. e o cristianismo; a luta que Zola procura reproduzir (sem o
vés das tragédias que ela precipita na vida dos outros perso- conseguir completamente) é, na realidade, a {o capitalismo
nagens e na vida da própria Ana. do velho com o capitalismo do nôvo estilo, o dos bancos de
A descrição não proporciona, pois, a verdadeira poesia depósito.
das coisas, limitando-se a transformar os homens em sêres
O método descritivo é inumano. Que êle se manifeste
estáticos,elementosde naturezas mortas. A qualidades huma-
na transformação do homem em natureza morta, como se
nas passam a existir umas ao lado das outras e vêm descri-
tas nesta compartimentalidade, ao invés de se realizarem nos viu, é só um sintoma artístico de tal inumanidade. A inuma-
acontecimentos e de manifestarem assim a unidade viva da nidade se revela plenamente nos intentos ideológico-estéticos
dos principais representantes dessa orientação. A filha de
personalidade nas diversas posições por ela assumidas, bem
como nas suas ações contraditórias. À falsa vastidão dos Zola, assim, reproduz, na biografia de seu pai, a seguinte
horizontes do mundo externo corresponde, no método des- declaração dêste a respeito de Germínalr "Aceito a defini-
critivo, um estreitamento esquemático nas caracterizações ção de Lamaitre - uma epopeia pessimísta do animal qtte
humanas. O homem aparece como um "produto" acabado há no homem È com a condição de ser definido com exati-
de componentes sociais e naturais de várias espécies. A pro- dão o conceito de animal", "Na vossa opinião (escrevia Zola
Íunda verdade social do entrecruzamento no homem de de- ao seu crítico) é o cérebro que f.az o homem, ao passo que
terminantes sociais com qualidades psicofísicas acaba sem- eu acredito gue os outros órgãos também desempenham nisso
pre por se perder. Taine e Zola admiram a representação uma função essencial".
das paixões eróticas no Hulot balzaqueano, mas só €nx€r- Sabemos que a insistência zoliana no que se re-fere ao
gam nela a descrição médico-patológica de uma m'onamania. elemento animalesco constitui um protesto contra a bestiali-
Não levam absolutamente em conta a relação
- fixada com dade do capitalismo, cujas leis êle não chega a compreender.
profundidade entÍe o erotismo de Hulot e o seu curriculum Na sua obra, contudo, êste protesto irracional leva a uma
-
de general napoleônico, embora Balzac tenha pôsto êm Í€- fixação do elemento inumano, à atribuição de um caráter per-
lêvo tal relação quando contrapôs o erotismo de Hulot ao manente ao animalesco.
de Crével, típico representante da monarquia de iulho.
A descrição baseada na observaçáo ad hoc ê forçosa- O método da observação e descrição surge com o inten'
mente superficial . Entre os escritores naturalistas, Zola ê, to de tornar científica a literatura, transformando-a numa
por certo, aquêle que trabalhou com maior escrúpulo e pro- ciência natural aplicada, em uma sociologia. Porém os rno-
curou éstudar os seus temas com a maior seriedade. No mentos sociais registrados pela observação e representados
entanto, muitas das experiências vividas pelos s€us persona- pela descrição são tão pobres, débeis e esquemáticos, Çue po-
gens são falsas ou superficiais precisamente nos seus pontos dem sempre, com rapidez e com facilídade, fazer com que -se
essenciais. Limitemo-oos â um exemplo, indicado por La- descambé para o exiremo oposto ao do obletivismo: um -sub-
fargue: Zola explica a embriagvez do mineiro Coupeau pela jetivismo integral . Êste su6letivismo é o da hereditariedade,
falta de trabalho, ao passo que Lafargue mostra que êste que as diversas tendências naturalistas e Íormalistas do pe'
habito de embriagar-se de algumas categorias de trabalha- iiodo i-p"rialista do capitalismo vêm utilizando em apanágio
dores franceses, entre as quais se acha a dos mineiros, tem clos fundadores do naturalismo.

80 81

I
&.
'Walter
VI prime, ao mesmo tempo as concepções do próprio
Scott. O valor poético e humano de Scott se revela, contudo,
no fato de que èle, a despeito de sua predileção político-
Tôda estrutura poética é profundamente determinada, ideológica pelo herói, vê claramente e representa com vigor
exatamente nos critérios de composição gue a inspiram, por a superior estatura humana dos mais resolutos expoentes dos
um dado modo de conceber o mundo. Tomemos uú €xêm- partidos adversários quando comparados com o seu indeciso
plo simplíssimo. No centro da maior parte dos s€üs romafl-
filho dileto.
ces (como ocorre em Waveileg, OId Mottalitg, etc.), Wal- Escolhemos êste exemplo pela sua simplicidade, pelo Ía.
ter Scott coloca um personagem medíocre, que não tem uma to de que em Walter Scott a conexão entre a concepção do
posição definida em Íace das grandes lutas políticas descri- mundo e o método de composição é bastante linear e direta,
tas pelo autor. Que consegue êle com isso? O herói indeciso enquanto que nos outros grandes realistas é mais coflum€fl-
se acha entre os dois campos constituídos: em Waaarleg, te indireta e complexa. O caráter "intermediário" do herói,
entre o govêrno inglês e a revolta escocesa a favor dos Stuart; tão conveniente para o romance, é um princípio formal de
em OId Mortality, entre a revolução puritana e os partidá- composição que se pode exteriofizar na prática literária das
rios da restauração dos Stuart. De tal maneira que os chefes mais variadas maneiras. Não se pode dizer que êsse caráter
das facções adversárias podem entrar alternativamente em "intermediário" deva se manifestar sempre na forma de certa
contato com o protagonista e com as vicissitudes da vida dês- mediocridade humana: êle pode muito bem.brotar da situa-
te, sendo então representados não só em seu aspecto históri-
ção social e resultar de determinadas condições humanas par-
co e social mas também em seu aspecto humano. Se \Malter ticulares. Trata'se apenas de encontrar aquela Íigura cen-
Scott tivesse colocado no centro da narração um de seus per- tral em cujo destino se cruzem os extremos essenciais do
sonagens socialmente mais importantes, ter-lhe-ia sido im- mundo representado no romance, aguela figura em tôrno da
possível instituir entre êle e o seu antagonista relações huma- qual se pode construir assim todo um mundo, na totalidade
nas apropriadas para a criação de um entrecho. O romance das suas vivas contradições. Por exemplo, a situação social
teria Íicado mera descrição de um acontecimento histórico de Rastignac, nobre arruinado, f.az dêle um mediador entre
importante e não teria abordado um profundo drama huma- o mundo da pensão Vauquer e o da aristocracia; e a indeci-
no capaz de nos proporcionar um conhecimento mais íntimo são íntima de Lucien de Rubempú f.az dêste a mediação en-
dos participantes típicos de um grande conflito histórico, re- tre o mundo dos jornalistas e arrivistas aristocráticos e o
presentados no pleno desenvolvimento das suas qualidades
':"i mundo do cenáculo de D'ArthèZ, coÍr. sua aspiração à ver-
humanas. l dadeira arte.
Neste método de composição se revela a habilidade de O escritor precisa ter uma concepção do mundo inteiriça
'Walter
narrador de Scott. E esta habilidade não nasce de e amadurecida, precisa ver o mundo na sua contraditoriedade
considerações puramente artísticas, de vez que o próprio 'Wal- móvel, para selecionar como protagonista um ser humano em
ter Scott assumiu no que concerne à história inglêsa uma cujo destino se cruzem os contrários. As concepções do mun-
posição "intermediária", de compromisso entre os dois parti- do próprias dos grandes escritores são variadíssimas e ainda
dos extremos. Era hostil ao radicalismo puritano, quer nos mais variados são os modos pelos quais êles se manifestam
seus reflexos plebeus, quer na reação catolicizante dos Stuart. no plano da composição épica. Na verdade, quanto mais uma
A essência artística da sua composição reflete, pois, a sua concepção do mundo é profunda, diferenciada, nutrida de
posição histórico-politica, a expressão de sua concepção do experiências concretas, tanto mais plurifacetada pode se tor-
mundo. O herói gue oscila entre os dois partidos.não re- nar a sua expressão compositiva.
presenta apenas o recurso de composição que possibilita uma Mas não há composição sem concepção do mundo.
representação viva e humana de ambos os partidos: êle ex- Flaubert sentiu profundamente esta necessidade. Não foi

82 83

t
ra--..
por acaso que êle citou em muitas ocasiões o dito de Buffon: A concepção do mundo própria- do escrito não é, no
"Escrever bem significa ao mesmo tempo sentir bem, pensar fundo, outra ãoisa que não a síntese elevada a certo g:au de
bem e exprimir bem". Em Flaubert, contudo, essa relação abstração da soma das suas experiências concretas' Para o
já aparece invertida. ,Êle escreve a George Sand: "Esforço- escritor é importante possuir uma concepção -d9 mundo por-
possibilidade de en-
me para pensar bem a fim de escrever bem; porém o ffi€u €s- !u", .o*o ttàtu Flu,tb eú, ela lhe da a
copo ; confesso-o ê o de escrever bem". Flaubert não ouadrar os contrastes da vida em uma rica e ordenada sêrie
- e do pensar bem'
conquistou na vida, por conseguinte, uma concepção do mun- áà conexoes; fundamento do sentir bem
do para vir a exprimi.la posteriormente na sua obra: ao con- tal concepção aparece igualmente c-omo fundamento do es-
trário, lutou para conquistar uma concepção do mundo ao crever be-. Quãndo o ãscritor se aÍasta das lutas da vida e
perceber, como homem honesto e grande artista, gue sem ela das diversas experiências ligadas a estas lutas, êle torna
não poderia desenvolver o seu trabalho e f.azer surgir uma abstratas tôdas ãs questões ideológicas. Quer a percepção
grande literatura. abstrata se maniÍestã nu*a pseudocientificidade ou em um
misticismo, quer se manifeste êc u*a apatia em face de gran-
Tal caminho inverso é ingrato, pode não conduzir a re-
sultado algum. Flaubert reconhece com uma sinceridade co- des problemas vitais, ela priva as questões ideológicas da
movente o seu fracasso, na mesma carta a George Sandl Íecundidade artística que tiveram na literatura do pass-ado'
"Falta-me uma concepção inteiriça e universal da vida. Vo- Sem uma .ott.epçáo do mundo não se pode narrar bem'
cê tem mil vêzes razâo, mas onde encontrarei os meios para isto é, não se pode alcançar uma composição épica ordenada'
que as coisas mudem? É o que the pergunto. Com a meta- variada e completa. A observaçáo 9,-a descrição constituem
física, você não conseguirá desfazer a obscuridade, nem a um sucedâneo ãestinado a suprir a Í.alta no cérebro do escri-
minha nem a de ninguém. Palavras como religião e catolicis- tor da compreensão organizada dos mó-veisessenciais da vida'
mo, de um lado, e progresso, fraternidade e democracia, de Como'pode* tutiit, à base da observação e da descri-
ção, çSlspgqggË.jp4êsl CgTo podem se apresent-ar tais
outro, não correspondem mais às exigências espirituais do
presente. O nôvo dogma da igualdade pregado pelo radi- ;ompo-siffiaffiEiãivismo falso e o subjetivismofalso dos
calismo já Íoi experimentalmente refutado pela fisiologia e escritores modernos levam a composição épica ao es$u€mâ-
pela história. Não vejo, hoje, possibilidade de continuar a tismo e à monotonia. No obletivismo deZola o princípio de
respeitar os princípios antigos. Procuro, pois, uma idéia, da comoosicão é dado pela unidade obletiva de um determinado
que C èscolhido como tema; a base da compo3ição é
qual depende todo o Íesto, mas não a posso encontrar". "u.po
proóorciônada pelo fato de que todos os principais- lnoúeo-
A confissão de Flaubert é um testemunho de rara sin- ios'obletirros dã realidade descrita sejam .apresentados-a ca-
ceridade acêrca da crise ideológica geral dos intelectuais bur- da vei de um ângulo diverso.,O resultado é uma série de
gueses após 1848. Obletivamente, tal crise existe em todos i-ug"r,, estáticas ãe naturezas mortas, qu.e só.materialmen-
os seus contemporâneos. Em Zola, ela se exprime na forma te sã ligam entre elas: disqõem-se, segundo a lógica interna
de um positivismo agnóstico: èle diz que só pode conhecer de cadã uma, umas ão laão das outras, e não umas d-epois
e descrever o "como" dos acontecimentos mas não o "por- das outras, e muìto menos umas derivadas das outras ' Aqyi-
quê" dêles. Nos Goncourt ela se manifesta numa posição fo u qu" se dá o nome de ação não passa de um tênue Íio
de ceticismo e indiferença superficial face às questões ideo- que uÍittha as imagens estáticas e institui uma sucessão tem-
lógicas. :É uma crise que se torna mais aguda com o passar óoral ficticia entrè elas, uma sucessão ineÍ.icaz e acidental.
do tempo. A progressiva transformação do agnosticismo em Ãs possibilidades de variação oferecidas por êsse método
misticismo, durante o período imperialista, náo ê uma solução de áomposição são muito deficientes. Daí que .os
-escritores
para a crise ideológica, como imaginam muitos escritores do oreciseÀ dãsenvolver um esfôrço no sentido de fazer com
nosso tempo, ela denota o agravamento da referida crise. à novida-
{ue sela esquecida a inata monotonia, recorrendo
84 85

a-
que se ex'ercea seu farnt
de do ambiente representado e à originalidade das descri- por saber que a mesma é uma lôrça
a,apatência'diuma existência humana' ao
ã nã propórciona
çõ es . aq contrário' se sente anulada
Não são muito maiores as possibilidades de variação passo que u ,"gu''oá';i;;;;'
em tal alienação p1ópti1-tÏ
oferecidas pelos romances gue se inspiram na posição suble- oela alienação e discerne .u.:uu.
ÃÀo t realidade de uma existência inumana '
tivista. O esguema de tais composições é o reflexo imediato õËt;;;ïã
E Marx mostra, . fi;i;' o signÌÍicado da reuolta do pro-
da experiência fundamental dos escritores modernos: a de-
silusão. Descrevem-se psicològicamente esperanças subleti- letariado contra a inumanidade da allenaçao'
-----Quando ,.
essa revolta'
se quer dar exp-ressãoliterária a
vas e acaba-se por mostrar como essas esperanças, através do maneirismo des-
de várias etapas, vão se esboroar de encontro à rudeza e à ê natural que se qo"itu-a"*tiúu'uçut-t" do entte'
mortes: a necessidade
brutalidade da vida capitalista. tlma sucessão temporal é critivo e das suaç natuÍezas
dada aqui, sem dúvida, pelo próprio tema. Mas esta suces- choedomêtodonarrativoseim põem - espont âneam ent e. E
ã*"-ilo não áó a obra-priolu.9"
são é eternamente a mesma. E a oposição existente entre aqui podemo" l"-brar-.otl de Pelle'
c**ki:;"í\i;;:"a"ã-o tamberrromancesdo tipo
sujeito e mundo externo é de tal modo rígida e dura que que revelamêsse
não enseja qualquer dinâmica de relações mútuas. O grau ;"";;q:,titi^i;;, ã" vrãttt"-AndersenNexõ'
descritivo' (Tais ca-
máximo alcançado pelo subletivismo no romance moderno rompimentocom o *ãd""'o maneirismo que os escritores
;ï"t;^;;;1i""ã, ãl"i"mente, pelo.fato .de sim em contato
(]oyce, Dos Passos) coroa uma evolução que leva, de fato, e
;iàã;ã-te;ú"* vivido em isolamento
a transformar tôda a vida íntima do homem numa fixidez A revo.ltadescrita por Marx
estática e material . E, dêste modo, o subjetivismo extremado com a luta da classetï"ìãti"t' existe' então'
se aproxima, paradoxalmente, da materialidade inerte do contla a alienação dã'hoo'"á no capitalismo
Certamente que não ' A submíssão
sòmente nos operários?
objetivismo.
trãl"ffrr"aores (inclusive os trabalhadoresinte.
O método descritivo acarreta a monotonia compositiva, Ë1;j;r-",
se desenvolve
enquanto a arte da. narração não só permite como estimula lectuais) às formas'""o"í-ièut do capitalismo generalidade. dê'
fotÀu ãL l"tu e susg{a na
uma infinita variedade de formas de composição. E êste pro- iï't*iiâ"a" nada ins'lgni-
ï;;; "-
mais diverso, tipot de revolta' llma parte
cesso não será talvez inevitável? É um processo gue destrói a ier "educada" na
a velha composição épica, substituindo-lhe os princípios por Íicante da burguesia'J -O*-"tt mesmo processo
ch-ega
desumanizaçaoUurg'rr"á 9".."- stld:1'
métodos de uma outra Íorma de composição que é estètica-
ãncarniçaáas A literatura burguesa mo-
mente inferior à antiga; mas essa nova forma de composição ;;;;ü;;ï-lutas '
ã;;;tï;unha, neste pãnto' contra ela mesma' A 'sinto'
não é, precisamente, a imagem adeguada do capitalismo "fei- por certos temas (a de-
to e acabado"? É verdade que a nova forma geral de com- mâtica predileçãoqu"-"íu'a"-onstra u.1a relol-t1'
posição é inumana e transforma o homem em acessório das silusão, o d"r"rr"urrtãf i"di"u a presença $e e inspi-
descritivo
coisas, em ser imóvel, elemento estático de uma natuteza ïJo lo"tu"ce do tipo baseadono mêtodo revolta' A
dessa
morta; mas não é exatamente esta a transformação operada rado na desilusão;t; hãtótã-do.f'acut"o e plas-
de modo superficial
no homem real pelo capitalismo real? revolta aparece,ur.i-', ""ït"Ëiaã
O raciocínio é sugestivo, mas nem por isso deixa de in- mada sem verdadeira energia'
"'--b-.*ater "acabado;' ão capitalismo-não signiÍicalÍu-
correr num equívoco básico. Antes de mais nada, convém e acabada e
lembrar gue na sociedade burguesa vive também o proletaria- r"t*Ãt"- que tudo esteja em forma definitiva que-nos
tenha.mcessado' ainda
do. E Marx acentua enèrgicamente a diferença entre a rea- ou"-u futu'" dererrvo-1.'láento significa
?t.;;;.-"1ãã-aï'". .ã-i"aiuíduo. Tal caráter
ção da burguesia e a reação do proletariado em face da sçmpre como
inumanidade {o capitalismo: "A classe dos proprietários e ãpa"ut que o sistema capitalista se reoroduz
de inumanidade
o proletariado representam a mesma auto-alienação humana. tal e a cadavez em um nível mais elevado
;ü.ufuau'. O sistema se reproduz ininterruptamente' mas
Mas a primeira classe se sente à vontade nesta alienação,
87
86

}t
êste processo de reprodução é, na realidade, uma série de Recordemos os Íomances de Máximo Gorki que des-
lutas encarniçadas que se realizam também no âmbito da vi- crevem a vida da burguesia e comparemo-los com as obras dos
da de um indivíduo dado, o qual sofre um processo de trans- modernos "realistas" I o contraste logo se tornará claro. Ve-
formação em acessório desumanizado do sistema capitalista, remos que o "realismo" moderno, baseado na observação e
mas não é acessório de nascença. na desórição, tendo perdido a capacidade de representar a
Êste é exatamente o ponto fraco (cujos efeitos são capi- efetiva dinamica do processo vital, reflete inapropriadamente
tais para a ideologia e para a literatura) dos escritores que a realidade capitalista, atenuando-a e redttíindoJhe as pro-
seguem o método descritivo: êles registram sem combater os porções. A húmiftação e a mutilação do homem realizadas
resultados "acabados", as formas constituídas da realidade pelo capitalismo são mais trágicas,- e a bestialidad-e capitalis-
capitalista, fixandoJhe sòmente os efeitos mas não o caráter ia e máis cruel e mais estúpida do que podem fazer supor
histórico-conflitivo, a luta de fôrças opostas. Mesmo quan- as imagens proporcionadas pelos melhores romancistas dêsse
do aparentemente descrevem um processo, como rtos roÍrêrÌ- gênero.
ces da desilusão, a vitória final da inumanidade caoitalista Estaríamos, decerto, realizando uma simplificação ilíci-
está estabelecida por antecipação. Em outras palavrãs: não ta se afirmássemos que tôda a literatura moderna capitulou
se narra como um homem chega a se adaptar gradualmen- sem luta à fetichizaçâo e à desumanização da vida operadas
te, no curso do romance, ao capitalismo "acabado", de vez pelo capitalismo "acábado". |á nos referimos ao fato de que
que o personagem revela desde o início traços que só deve- iodo o naturalismo francês posterior a 1848 representa, em
riam aparecer nêle como resultado de todo o processo. por suas intenções subjetivas, um modo de protestar contra êste
isso, o sentimento vem diluÍdo, enfraquecido e abstratamente processo; e mesmo nas posteriores correntes literárias do capi-
subletivizado no curso do romance. Não nos vemos em face ialismo em franco decÍinio é possível observar como as di-
de um homem vivo que compreendamos e amemos como tal versas tendências literárias são, através dos seus melhores
e gle no curso do romance vá sendo espiritualmente defor- expoentes, ìntimamente ligadas a tais vozes de protesto. Os
mado pelo capitalismo; vemo-nosr isso sim, em face de um máis notáveís representantes das diversas orientações forma-
morto que passeia no palco das imagens, as guais são des- listas têm estadó guase sempre convencidos de que- comba-
critas com consciência cada vez mais clara do seu ser Ílor- tem, no plano literário, a mesquinhez da vida -capitalista..Se
to. O fatalismo dos escritores e a capitulação dêles atentarmos, por exemplo, no simbolismo do velho lbsen, dis-
da quando a contragosto - ain- cerniremos ilaramenté a revolta contra a monotonia da vida
- em face da inumanidade no capi-
talismo determinam a ausência de efetiva evolução nestes "ío- cotidiana burguesa. Mas essa revolta não produz qualquer
mances evolutivos". grande resultàdo artístico a não ser -quando penetra a fundo
nas raízes humanas da mesquinhez da vida capitalista, a não
Seria portanto um êrro supor que o método descritivo
-_ ser quando capacita o artista para viver, compreender e des'
reflete adequadamente o capitalismo em tôda a sua inumani-
cteuét a real luta do homem pãra conferir um sentido à vida'
dade. Da-se mesmo o contrário: tais escritores atenuam in,
Eis a razão da importância tão grande que assume, na
voluntàriamente a inumanidade do capitalismo.
]á Que o tris- titeratura e na teoria Líterfuia, a revolta humanista dos me'
te destino dêstes homens gue existeá no romance sem uma
lhores intelectuais do mundo capitalista. Dada a extraordiná'
rica vida íntima e sem uma viva humanidade em contínuo
riir variedade de correntes e personalidades representativas
desenvolvimento é Íixado de acôrdo com o método descriti-
rlôste humanismo, uma análise dêle e da revolta por êle inspi-
vo, torna-se bem menos revoltante o fato de que o capitalis- rircla, ainda que limitada às suas expressões princ_ipais' nos
mo os transforme dia a dia e hora a hora, na realidade, em lcvaria putu fotu dos limites do presente ensaio ' Lembrare-
"cadáveres vivos", migalhas de homens vivos, cujas infini-
,,,,r, opãnus gue, jâ na revolta francamente humanista de
tas possibilidades humanas Íicam inaproveitadas. lìomaià Rolland e na dissolução satírica do isolamento egoís-

88 89

.44-
ta característica de certas obras de André Gide, podemos ên- tões de princípio relativas ao naturalismo e ao formalismo '
contrar, vez por outra, sérios esforços no sentido de uma su-
O fato áe que Olesa tenha achado foyce mais interessante
peração das tradições-da literatura burguesa posterior a lg4g. do que Gorki do ponto de vista formal indica claramente que
E o retorçamento do_humanismo ensejado pela vitória do so- o pràbl"*u da forma ainda permanece pouco claro para alguns
gialismo da União Soviética, a suu iotrrolidação na intensi.
esiritores e que êles, presos a tradições burguesas ou bog-
ficação da luta contra a bestialidade fascista, última forma danovistas. cõntinuam confundindo a Íorma com a técnica'
da inumanidade capitalista, acarretou uma elevação tamfã
Da relação entre as questões formais e o aprofundamento
na teoria literária das expressões de tais tendências. Entre icleológico (liquidação dos resíduos burgueses !a- concepção
os ensaios aparecidos nos últimos anos (como, por exemplo, Íalar e, quan-
çJeralão mundo) não se chegou pràticamente a
os de Bloch), alguns dão início a uma substaãcial revisão iio se falou, Íoi em forma vulgar que só contribuía para con-
crítica da arte da segunda metade do século XIX e da arte íundir os problemas: referimo'nos, aqui, ao fato de que um
do século XX. crítico tenÍra enxergado no naturalismo e no formalismo po-
Naturalmente, esta batalha crítica não alcançou ainda sições diretamente hostis ao poder soviético.
uma conclusão, não chegou em todos os campos á alcançar Podemos, pois, formular legìtimamente a qergunta: a
uma clareza básica de princípios. Mas a simples existênlia crítica feita por nós ao método da observação e des-crição1a
dessa luta, dessa tentativa pára uma liquidaçaà da cpo.ã ã" literatura búrguesa posterior a 1848 se aplica também à li-
decadência, constitui um, sinal dos temios, cuja impôrÉncia teratura soviética? Para alguns escritores, deveremos respon-
não pode ser subestimada. der em sentido afirmativo. Basta pensar na composição da
maior parte dos nossos romances soviéticos: êles concernem
o mais das vêzes a um ambiente material calcado no modêlo
VII naturalista do romance-documentátio à Zola (e o embeleza-
mcnto com as "conquistas" mais modernas da "técnica mais
recente" não altera êste fato ) . Êles não colocam em primei-
Na própria União Soüética, tal batalha está bem lonqe ro plano experiências vividas pelos homens, relações inter-
de alcançar a sua conclusão. Por um lado, o notável .r".á- humanas ilustradas na mediação das coisas: proporcionam-
mento da economia socialista, a rápida extensão da demo- nos, isso sim, a monografia de um kolkós, de uma fábrica,
c.racia proletária, a emergência de personalidades marcantes etc. Os homens constítuem comumente apenas um "âc€s-
de-origem popular- e o desenvolviúnto do humanismo pro- sório", um material ilustrativo que integra a situação de Íato'
letário na praxis do povo trabalhador e seus dirigentes, são Não se trata - Íique entendido - de uma ação ex-
todos fatos que exercem poderosa influência revãlucionária
çlusiva das tradições naturalistas. ]á tivemos ocasião de in-
na consciência dos melhores intelectuais do mundo capitalis- cllcar. que o naturalismo leva necessàriamente ao fortaleci-
ta. Por outro lado, vemos que a literatura soviética ainda mento ã" t"ttdêtt.ias formalistas e se transforma em simbo-
não superou de todo os resíduos das tradições da burguesia llnmo. Podemos acrescentar que as tendências formalistas
decadente e tem o seu desenvolvimento estorvado poï tui. q(te se opõem ao naturalismo assumem, do ponto de v.ista
resíduos. tileologicó, a mesma posição naturalista superficial- em. face
Pode-se dizer que a-lguns escritores ainda não se empe- dos pioblemas mais importantes da vida humana. A relação
,
nharam com decisão suficiente em trilhar os caminhos ôue entre o homem e a socíedade, entre o individual e o coletivo,
conduzem à superação da decadência. A discussão sôbre o é tiro cleformada e f.etÌchizada no expressionismo e no fu-
naturalismo e o formalismo organi zada pela União dos Es_ tttr'lsmo como no naturalismo. A corrente pseudo-realista da
critores revela-o com nitidez. Apesar dá clareza dos artigos rrt'uc Sachlichheít constitui talvez, com sua tentativa de re-
publicados pelo Praoda, a discujsão apenas aflorou u" quï.- rtovação da literatura-documentário, um empobrecimento ain-
9'0 9I
da mais daninho do velho naturalismo, de vez que substitui-
o maior do tema com o entrecho, ou, dizendo melhor, essa
domínio das coisas sôbre os homens reveste as novas pela completa descrição obletiva d",
tendên- ião-áo !uii:^lt
$_as
fo.rm.aljstase pseudo-realistas de formas se possível
ain- coisas que entram no tema, é uma parte essencial da neran-
""ttecho
oa mals áridas e desumanas,
ça do naturalismo.
' primeiro
_ Há alguns anos, por exemplo, Íoi publicada uma declara- A importância do entrecho não consiste' em
ção de princípios em côres e sur-
-quã,
pela sua'sincârid"a", p"J" ;;;ï;" luqar, no Íato de que êle seja variado e rico
uma preciosa confirmação disso. Seu teor era o sequinte: qualiáades,- próprias p.ara um bom entrecho' são
o jo.rna] me ensinou a entrevista como méú. frü.-T;; plàsticamen-
d";,Jih;,"ô imoortantes porque só elás possibilitam o tornar
estudo dos "romanqes tïuços humanos - individuais e típicos - d".1*
{e Koveyer Ampa" ,"fo"çã" *""'iì- t;ï;;;;.
terêsse pela biografia das coisas. por'algum td*po," personaqem, ao passo que a monotonia inerente à exposição
Ã-;;;_
Ìeceu gue uma coisa cuja peregrinação através ã"t.titi"u dó te-. não proporciona um modo de
das mãos il;;;tï*
humanas acompanhamo" p.du colntar',muito mais
acérca de il;;;;;;t-i"di"iJuahdades concreias' A multiÍormidade e
uma épo'ca do q"" um roínance psicológíco" (grifuJ;-ó; a
a ìnfinita iqueza da vida se perdem quando renunciamos
mi m, G . L. ) . labirínto de caminhos qge os indi-
representar ã intrincado
Naturalmente, esta teoria da ..biografia das coisas,, víãuos, consciente ou inconscientemente, querendo ou.
não'
não
costuma ser tão abertamente proclamaãa e nem o universal L'' tema'
costuma se vão percorrendo, e no qual tealizam '
exprimir de modo tão grosseiramente fetichizado a dire-
;;;; rÌa sua ctúeza, só pode ìndicur de maneira abstrata
caso em tela. Trata-se, porém, da formulaçd";ir;;à; necessária, mas não pode apresentar o cami-
ã; ção socialmente
t_"i.q*ciague c gerâI,gois a unidadeã" J; iri;;;;. o resultado do entrecruzament'o de um número in-
ifi "o-p*içã;
arguns romances russos é obtida, efetivamente, soviéticos ê Íìêc€S-
póla Ëiogru- finito de Íatos acidentais. Nos romances
fia de um complexo material de'"oiru., ,ro q.ruf
os horierrs si-áãá" dessa temática é clara e linearmente sentida; o
servem apenas de material ilustrativo. que deveria constituir uma razáo a mais para-que os escrito-
"o.ial
o
Dai a monotonia da composição de tais romances.
Mal i"t se detivessem na mera formulação do tema', ot?t.
começamos a lê-los e já sabemos como vão terminar: "áo na invenção de entrechos individuais ' A Ìalta
exis- utilizassem
tem sabotadores em uma fábrica, sucedem-se
confusões ter- à" tui, entrechos não se deve tanto à deficiencia de talento
ríveis, mas no fim a célula do partido ou a ão Íato de que os escritores, enganados.,por Íalsas
GpU d"rú;;; ;;";;
o ninho de sabotadores e- a produção volta a oeles'
fl".*.;;; ;; tãorias e por tradições nocivas,, ignorem a necessldade
então, o kalhós não está funóionanão bem por é
causa da sa- A composição-de alguns dos romances soviéticos não
botagem dos lculaks,,.mas o operário enviadá- dos romances natu-
;"; f"r";;;" menos esquãmáiica do que a composição
inspeção consegue eliminar o estôrvo e se processa
um surto ralistas dã escola zoliaía apenás o é em sentido inverso '
cÍe progresso no lcolkós. am-
Nos romances naturalistas, revelavâ-se â nulidade de um
Todos êstes eram certamente temas característicos exemplo, quanta igno-
de biente capitalista, mostrando's-e, -p9r
uma determinada etapa do desenvolvimento social mínia se encerra no esplendor da bôlsa de valôres ou dos con-
e não ha
nada a obyetar quanto ao fato de que tànham
,ia.-t"àìáaã, sórcios bancários, Em alguns escritores soviéticos os sinais
por numerosos escritores. Mas é indício
de um baixo nível áour"."* invertidos: os tãpresentantes da ideia justa são ini'
de cultura literária o Íato de gue tunto"-es..itores conseguem
confundam cialmente -ovilipendiados ou ignorados' mas no final
uma formulação social mais ou menos ;;;;. .áÁi"tto seguidJ em ambos os casos é igualmente
;urtu do1"Àã ;;;-;
invenção de um entrecho de romance.'ô justa
g"rruí;-ìr"fJnã abstrato e esguemático-l a idéia histórica e socialmente
de criação liteÉúa, o trabalho de irrverrçaá não chega a iet uma expressão literária convincente '
.o*poriç.o,
precisaria ter co-meçado no ponto em que Daãa a falta de um entrecho individual, os homens apa-
tais" escritores se
qetrveram, nas obras que
deram por acabadas. Essa confusão ,"."* como pálidos Íantasmas, pois os homens só adquirem
92 93
por
fisionomia verdadeiramente humana quando nós os âcoÍÍt- cliários, tudo isso não é devido ao acaso". Egsa é, ponto
panhamos nas suas ações, as quais nãô podem ser J"scríção do estilo de Dos Passos feita por Sinclair
substituí- ;;;;;'.
das nem por uma minuciosa déscrição póicolOgica du suu vi- Lewis, e jâa analisamos.
-
da íntima, nem por uma prolixa d"s.iição ..ãociolOgica" Je ó" i.ato, a superfície da vida aparece realmente assim'
situações gerais. E é êste último tipo dã descrição
f,u" pro- ,rurr.u apareceu ãe outro modo, mas os escrítores burgue-
curam f.azer Íais romancistas. Em suas obras os ho*àn, tor- "ses que não vão além da supe':{ície jamais conseguirão que
rem, excitados, de um lado para outro, e discutem animada- seus personagens, reduzidos a figuras episódicas, despertem
è
mente a propósito de coisas cuja importância para êles mes- verdaãeiro inierêsse. Tome-se um simples episódio, tirado
mos e para as suas vivências pessoais o leitor não consegue obra de um grande escritor, como a morte de André bol-
no
enxergar. Ob;etivamente, ê ciaro que são coisas da mãior lã".ki e G,ãerca e Paz de Tolstoir o ferido é operado
imp_ortância;mas a importância obletiva só pode adquirir vi- mesmo quarto em que se está amputando uma perna a. Ana-
da liteúria, só pode convencer e comover o 1eitor dárde que tole Kuraghin; depõis é transportado para Moscou e hospe-
a relação entre as coisas, os problemas e o personagem se- à;dr: ;;; coincid'ência, exatamente em casa de Rostov' A
jam representadas em forma individual (istó é, atrãvés r"uli.iuã" é assim? Sim, ela pode ser feita dessa maneira, des-
da
ação, dos acontecimentos do entrecho) .'euando isso não à" qu" t grande escritor Áe utilize dos casos e acasos da
"exprimir
ocorle, os homens tendem a se tornar figuras episódicas, in- vida para necessidades humanas dos seus perso-
seridas em quadros estáticos: aparecem"e desaparecem sem naqens.
"
despe_rtarum interêsse mais proiundo. Puru consegui-lo, o grande escritor deve observar a vi-
,.Ainda
aqui, o leitor "moderno" poderá perguntar: e na da com u*u .úpreensãõ que não se limite à descrição da
rearrdade não acontece exatamente assim? Há homens que .up"rfi.i" exterior dela e ttáot s" limite à colocaçã.o em relê-
são chamado-spara ocupar,certos postos e depois são afãs- uo f"itu abstratamente, dos fenômenos sociais (ainda que
tados, há delegações que chegam ó partem, realizam-se ses- taí colocação seja justa): cumpre-lhe captar a rela,ção ínti-
sões, etc., as relações humanas descritas nos romances de que ma entre a necessidade social e os acontecimentos da super-
!?luqg! passam por corrêsponder, então, à nossa realidaãe. iìci", .o"sttuindo um entrecho que seja a sjntese poética des-
Ilia Ehremburg defende a' dissolução da forma épica com sa relação, a sua expressão concentráda. A decadência ideo-
argumentos quase iguais aos dos modernos formalistas oci- lóqica da burquesia sufoca as possibilidades de satisfação
dentais, sugerindo que a velha forma clássica não correspon- à"ïrá A nossa situaçáo literária sob o socialismo,
de mais ao "dinamismo" da vida atual . E ê sintomático que "apresenta uma curiosa contradição: a vida coloca
"*igenciã.
.ãtita.,
o mesmo "dinamismo" da vida não diferencie, para o foráa- enèrgicamente êsses problemas para nós e uma - parte -da Il-
lismo da concepção e da argumentação, a dinamica du decu- teratura continua a só prendet, éo- insistêncita digna de me-
dência capitalista e a dinâmica da construção do socialismo lhor causa, aos métodoó superÍiciais da literatura da burguesia
(com o aparecimento do nôvo homem) . áLàá""t". Apenas uma parte, certamente, para felicidade
"Os clássicos
- declarou EhremÉurg no congresso de nossa, e não tãda, de vez que os escritores russos mais notá-
escritores realizado recentemente em Mosãou
- dãscreviam veis já sentiram a necessidãde de conferir maior profundida-
formas de vida e personagens consolidados. Nós d"..r"rr"- de à'representação da nova vida e procuram cada vez mais
mos a vida no seu movimento. Por isso, a aplicação da for- ;tl"; ;;ï;hos individuais (o que sé pode observar com fa-
ma clássica a um romance da nossa época ieflete da parte cilidade na obra de Fadeiev) '
do autor o recurso a conexões Íalsas â, sobretudo, u t'ulru, Não se trata de uma questão literária em sentido estri-
soluções. A difusão das correspondências, dos rascunhos, o to. À àrte episódica não tem mesmo, de modo algum, condi-
grande interêsse dos artistas pólos homens vivos, o uso das Precisamos compre-
çóes para representar o nôvo homem.
anotações estenográficas, das entrevistas, dos registros e dos ãnder'e intuir com exatidão de onde sai e como se desenvolve

94 95
êle, como chega a se tornar aquilo que é. A descrição do humanas, ora parecendo aproximâr-s€, orâ afastando-se no-
passado, por um lado, e a descrição do nôvo homem como vamente.
algo já feito, por outro lado, formam um contrastel mas p€r- No método descritivo essa tensão não existe ' De um
manecem literàriamente uma trivialidade, e uma trivialidade ponto de vista genèricamente social , (isto é, literàriamente
que não pode ser suprimida com o revestimento de formas âbstrato), a conclusão é preestabelecida:não existem, porém,
fantásticas e com a apresentação que Íaz dela r"*ttãáo linhas ,rirrus de direção que conduzam a trama ao resultado
misterioso premissas mal conhecídas. Assim, a" figura do
"vermelho",de iá conhecido. Nas diversas etapas, os homens se mostram
em A Central Hidr,elétrica de Saginjan "d"rp"._ Lm getal desorientados em face dos acontecimentos, ao pas-
ta, na sua primeira aparição, um vivíssimo intárêsse; poié*, ,o qï" a soluçãg aparece "improvisadamente". As contradi-
com.o Saginjan não conta como o "vermelho" pôde toinar-se de modo
çõei inerentes ao método desiritivo se manifestam
aquilo que,se torno-u, êle não dá margem a que as interes- evidente, sobretudo quando a descrição é feita, como ocorre
santes qualidades do personagem se Lxpliquém através de comumente, do ponto de vista do personagem que está.agin-
um entrecho individual e o interêsse dimiãui. Não basta do; porque, então temos a imagem de uma situação de um
transformar a trivialidade incolor em uma trivialidade cinti- .o.trpl"*ã de coisas e de homens vistos por um observador
lante e sarapintada. .orrfrro que não ê. capaz de distinguir o que é essencial'
Muitos escritores sentem a necessidade de tornar co_ Como ocórre no caso inverso - ê.íÍrque os objetos são des-
nhecida a vida íntima dos seus personagens: e isso, sem dú- critos "objetivamente", isto é, do ponto de vista do tema
vida, já constitui um avanço. No entan"to, é preciso não es- geral as descrições não têm qualquer relação íntima com
-
quecer que esta vida íntima só pode, também, se tornar sig- ãs figuras e reduzem-nas a um nível episódico.
nificativa, quando ligada ao entrecho de um romance, como É- lugat do nôvo homem aparecer já como dominador
premissa, etapê ou conseqüência de uma ação individual . das coisas, como pretendem tais romances, êle aparece como
Em
si mesma, a descrição estática da vida íntima ê tã,o natureza acessório delas, como elemento de uma rLat:utezamorta' à
morta como a descrição das coisas. Gladkov, por exemplo, qual são atribuídas dimensões monumentais. E é aqui que o
transcreve em seu romance Energia o longo diário de 'um método descritivo mostra estar em contradição com o evento
personagem. Mas tal personagem não desempenha,nem an- histórico fundamental da nossa época: em todos êsses livros
tes nem depois, gualquer papel importante na ação. No que se quer afirmar que o hrrmem tenha se tornado o dominador
concerne à ação, portanto, o conhecimento do diario naó e das coisas ." q,t"t descrevê-lo efetivamente nessa condição;
" áe lista estético a ambição não se tealiza,
indispensávelpara o leitor: o diário fica sendo um mero ..do- mas do ponto
cumento", uma simples descrição de estados de ânimo, e não porque s6 nu representação concr'eta podem se exprimir as
contribui em nada para elevar o personagem que o redige ïitoriur do homem sôbre o mundo externo. Se o conflito en-
acima do nível episódico. tre a Recessidadee a liberdade é narrado segundo âs V€r-
dadeiras normas épicas, o esÍôrço humano aparece em tôda a
O método iescritivo sacrìfica tôdas as tensões dêsses sua grandeza e atê mesmo os personagens que sucumDem
romances. A dialCtica do desenvolvimento social implica nê-
adquirem elevada estatura humana. Os heróis de Balzac Íra'
Ies, òbviamente, que a conclusão seja sabida pelo leìtor des.
auaru-. no mais das vêzes, no encontro dêles com a vida:
de o início. Do ponto de vista da autêntica arte narrativa,
os heróis do romance gorkiano A Mãe são espancados e aca-
como já vimos, isso não constituiria obstáculo algum a uma
bam na prisãol nêles, entretanto, se manifesta uma imensa
tensão eficaz e não impossibilitaria a obra de ãssumir um
Íôrça humana. São personagens como a Mãe, gue se Ínos-
carâter, genuìnamente épico; mas só com a condição de que
úam capazes de dominar a vida, os personagens aptos a ex-
a conclusão sabida desde o início fôsse pouco a pouco se pre-
orimir o domínio dos homens sôbre as coisas; ao passo que
cisando no curso de uma série de intãressantes vicissitúdes
àt p"ttottugens fixados através de descrições estáticas esta-
96 97
belecem, no plano artístico, a preponderância das coisas sô- da dos símbolos. Mas para escritores cuja matéria ê a y-
bre os homens. quíssima realidade do socialismo não há escusa admissível '
'
Já dissemos que o naturalismo e o formalismo suaviza- Todos os meios de composição de que vínhamos falan-
ram a realidade capitalista, atenuando-lhe o horror e fazen- do são resíduos do capitalismo; e os resíduos presentes na
do-a aparecer como mais banal do que ela efetivamente é. consciência indicam sempre a existência de resíduos no pró-
Por outro lado, os resíduos do naturálismo e do formalismo. prio ser. ]á no congresio dos konsomol, o modo de viver de
os métodos baseados na observação e na descrição, são ele- numerosos escritores soviéticos foi severamente criticado. Para
mentos que empequenecem e empobrecem a maior revolução nós, no presente momento, basta formular a indagação de se
da história da humanidade. saber se- a persistência da mera observação e do tipo -ÍÍtèÍ.ã-
Da mesma forma que os escritores burgueses que utili- mente "observador" não terá' por acaso, raízes profundas
zam tais métodos, os escritores russos que se servém dêles na própria vida do escritor. Não se trata sòmente da persis-
também sentem instintivamente que suaj descrições carecem tênõia-daquele tipo de individualismo que se e-xprime.em
de íntima significa-çãohumana. E, da mesma forma que aquê- formas anárcOides e conduz ao isolamento pessoal' Também
les, na tentativa de suprir com meios artificiais u pobr.ri in- o documento que se observa ad h'oc, a atitude de repórter
terior dos homens e dos acontecimentos assim dáscritos, re- assumida pelo ãscritor em face das questões épicas, a descri-
correm aos símbolos. E e o gue vêm fazendo certos escrito- prisãa, como
ção dos personagens em estilo de mandado de
res proletários. Ë f"itu pàlos segïidores de Zola, sáo Íenômenos que pod.em
Aqui, podemos acrescentar diversos exemplos de falsa ser cataiogados iob a rubrica de persistência do individualis-
profundidade, de trivialidade retórica, o que ê ainda mais mo. Tais fenômenos mostram que certos escritores russos
triste por se apresentar em escritores que poderiam perfeita- não atingem a fonte da experiência vivida com base na qual
mente, por seus dotes, conferir significação íntima às suas podem ser produzidas as grandes criações artísticas; mos-
narrações. Em face da grandeza da expèriência soviética, o iru- qu" êlls recolhem e órdenam observações com o Íito
símbolo aparece precisamente como um súcedâneo infeliz para de expoJas à maneira jornalística ou de exibi-las adornadas
a íntima poesia, humana e, por isso, cumpre criticá-lo ãqui com ouropel lírico-simbólico.
de maneira ainda mais rigorosa do que ém qualquer oufro Não são poucos, sem dúvida, os escritores-que adotam
lugar. Pensemos- 'bagôs
_por exemplo, nos inocentes de uva métodos de cómposição bem díversos dêsses. E, se exami-
que na Á,rttore Mouente de llienkov são transfoimados em
narmos o fundamento da experiência cujo conteúdo coÍrceÍr-
sjmbolos do sangue; pensemos na personificação do riacho trado encontramos em suas obras, veremos que a própria po-
da montanha por Saginjan; pensemos, sobretudo, nas últi- sição dêstes escritores em Íace da vida é bàsicamente diversa
mas linhas do nôvo lomance de Gladkov: "Os fios cantavam da dot outros. Veja-se, por exemplo, a arte e a vida de
sôbre os postes em voz longínqua como o acorde final de um Cholokov.
oratório incompleto. Nos caminhos, entre as rochas, vozes Chegaremos,assim, à conclusão de que também na União
de homens e mulheres chamavam e respondiam. Talvez fôs- Soviética o dilema participar au obsetuar (narrar ou descre-
sem trabalhadores do desvio: para as trilh,os ver? ) é uma questãô liguàa à p-gsiçãodo escritor em face da
- Leva ô tu"m
Iâ d.e cima... entendi, os lá de cima..." os trilhos oue vida. SO que aquilo que para Flaubert era uma situação trá-
- lá
Ievam para o consêúo... Sim, pensava Miron, de olhos pãs- già e, na'União Sovietlcã, um simples equívoco, um resíduo
tos no cêu azul da aurora. Sim, os novos trilhos. . . A ïida não superado do capitalismo.
entra sempre em novos trilhos". Uã resíduo qué alnda não foi superado, mas que pode
_ - Ê, compreensível e chega mesmo a ser trágico que um sê-lo e, certamente, o será. (1936)
Zola ou um lbsen, desesperãdospela íntima nulidade'do co-
tidiano capitalista que deviam descrever, recorressem à aiu. tradução de Glseu VIeNNe KoNnnn

98 99

Você também pode gostar