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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia
Primeiro Semestre de 2014

Erotismo, sexualidade e gênero:


Curso ministrado por
Vladimir Safatle

Composto por 12 aulas


Textos base das aulas
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 1

Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os


órgãos e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o
leitor poderá se convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão
de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo então também me
justificar desta acusação? Eu reivindico simplesmente os direitos do
ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria índice de estranha
e perversa lubricidade supor que conversas parecidas seriam um bom meio de
excitação sexual1.

Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês


poderão encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria
escrito em 1905 e conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes
por expor uma transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo
o século XX. Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir
francamente as relações sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu
nome correto. Esse falar franco não é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os
libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que é da ordem do
sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o desejo seja incitado
por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe que o ato de falar e
descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o desejo. Os
libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento
produzido pela razão, não gozam em silêncio.
Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele não é animado pela
descoberta de formas de incitação aos prazeres. Não, Freud prefere ficar ao lado
dos ginecologistas a ser confundindo com alguém que suporta essa estranha e
perversa lubricidade dos que usam da descrição direta da atividade sexual para
seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e direta”, capaz de dar aos órgãos
sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando estes são
desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversões “sem
indignação”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber
baseada na submissão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma
scientia sexualis. Esta talvez fosse uma das mais impressionantes invenções da
modernidade: uma ciência da sexualidade, um discurso científico sobre o que
devo fazer para não ter uma sexualidade patológica.
Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à
experiência dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência?
Não de uma literatura (que é um regime de explicitação discursiva próprio), não
de uma arte erótica, mas de uma ciência. Pois ser objeto de uma ciência significa
assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da físicas, a sexualidade
deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei então dizer, por

1
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como
alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de
psiquiatria (o DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a
atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma
forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma
persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por
atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculação
precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação ocorrer entre 30
segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30 segundos)
severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a
penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a
sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a


dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos
olhos? O que o homem significa a nossas olhos se coloca sem dúvida para
além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a
um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais2.

É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre
sexo, não pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique
a natureza quase literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa
outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do
sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco
sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos
relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos.
Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-
determinação. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito
dotado de uma história (a história do meu desejo), de um corpo (o regime de
prazeres próprio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto
talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto
defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o
sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro
dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”3. Se Freud pode se
vangloriar de não ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota
de não mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual
falar de sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos
e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade através da
constituição de uma relação autônoma consigo mesmo.
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma

2
BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180
3
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15
ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um
sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de
raciocínio e argumentação”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se
encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer
sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de
produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um
discurso social fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer
que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas
não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma
identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se
alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá:

O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro


que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais
importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de
prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente5.

Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como


identidade é uma invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção
produzida por uma forma de circulação do discurso psiquiátrico e médico que
tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal.

Sexo e filosofia

Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o
problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico
específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento,
como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles
que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam
na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da

4
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
5
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo
momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que
temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer
reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importância.
Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre
sexo seria um problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem
seriam objetos de investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um
problema ligado à psicologia e a reflexão sobre seus modos de intervenção
clínica, não um problema sociológico ligado a práticas sociais de codificação de
comportamentos de interação, não um problema biológico ligado a modos de
reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se perguntar se
não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao
invés de discuti-lo em um curso de filosofia.
“A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve,
ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”6. Esta
frase é de um filósofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de
Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um
curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto
próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica que dirá ser a filosofia
a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica, definição
ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da
gênese da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então
completamente fora do dito debate intratextual da tradição filosófica), então
ficamos com uma questão central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de
fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”,
assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à
teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um
filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema
econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao
fazer isto, ele deixaria de ser filósofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for
estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não
tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a
filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que
talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do
conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos,
uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem
ciência política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia
toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo
desenvolvimento não lhe compete diretamente.
Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar
inexistir questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões
que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer
objeto. Tal modelo filosófico de construção de questões nos permite identificar e
pensar certos problemas que não poderiam ser pensados de maneira adequada
fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de
uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou

6
CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12
um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões
de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos
produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é
necessariamente vinculada a um evento histórico, ela é a ressonância filosófica
de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da
física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução
do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como
fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa.
Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele
aparecer como um evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo”
e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um
acontecimento capaz de produzir reconfigurações profundas em nossa forma de
vida?

A continuidade do erotismo

Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira


diferentes de ver no sexo uma forma de evento. A primeira está nesta forma de
centrar as discussões sobre sexo em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao
falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre como tal fala produz individualidades
a partir de discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de
intervenção. Procuraremos entender como tais discursos foram formados, como
eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o
poder não apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora,
mas principalmente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a
nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de
transgressões. Nesta chave, mostraremos como o aparecimento da sexualidade
com sua ciência nos expõe as verdadeiras artimanhas do que significa falar de
sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posição de
detentor de um saber.
Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente
sobre sexo com uma garota, Freud não apenas escuta. Ele a ensina como falar, em
que condições seu desejo pode ser colocado em discurso, qual história ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Falar não é apenas liberar. Falar é também
internalizar uma gramática do desejo. Por isto, o simples atos de falar de sexo
dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de uma ciência já é uma
forma do poder operar, não este poder que se expressaria através de uma
pretensa submissão da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o
que opera em nós dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de
escutar, como o que define as condições do que significa falar e escutar.
Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender
sexo como evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao
falar sobre sexo não nos focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por
exemplo, na força explosiva do que devemos entender por “erotismo”. Esta é a
estratégia que vocês encontrarão em outro filósofo francês, de uma geração
anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definições como:

O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas


constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Trata-
se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a
descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A
própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade
de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é
tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento7.

Não é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de


sexualidade. Não procuraremos mais saber como, através da assunção de uma
sexualidade, constituímos formas, definindo nossa individualidade e nossa
identidade. Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo
composto por esses átomos sociais que são os indivíduos modernos com seus
sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de
interesses através de contratos, de limites, de cálculos. Interesses, por sua vez,
submetidos à lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do
desprazer.
Bataille acredita que é tarefa filosófica fundamental fornecer as
coordenadas para uma crítica da modernidade capaz de demonstrar como o
advento do sujeito moderno se realiza, necessariamente, através da organização
de uma sociedade composta por indivíduos. Os indivíduos são a unidade mínima
da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a partir de sua utilidade
suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas úteis ou
inúteis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas,
principalmente, mundo no qual as relações entre pessoas segue a mesma lógica
que as relações às coisas. Mundo de pessoas úteis ou inúteis, mundo de pessoas
que produzem prazer ou desprazer. Mundo no qual posso avaliar relações entre
pessoas da mesma forma que avalio processos financeiros baseados em
investimentos (“É, eu investi muito”) e rentabilidade (“Não tive nenhum
retorno”). Ou seja, mundo no qual a lógica calculadora do trabalho no interior da
indústria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência
social.
Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais,
que tecem entre si relações profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e
o sagrado seriam fenômenos sociais capazes de introduzir, no interior de um
mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que esse
mundo é capaz. Isso significa que estaríamos diante de fenômenos irracionais a

7
BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43
partir da lógica utilitarista que guia os indivíduos e suas relações. Vale para o
sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca


em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde
objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco8.

Veremos nas nossas próximas aulas o que pode significar uma


experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a
pena insistir em um ponto. Através da construção de uma noção de “erotismo”
desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento
impensável no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas
sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele
quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente
injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da
exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força.
Notemos como há, aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à
experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o
fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é
animado por um evento histórico preciso. Como veremos, a experiência pré-
moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos
de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao
modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille
representava a versão não-oficial, em conflito contínuo com aquela representada
por André Breton.
Neste sentido, através da reflexão filosófica sobre o sexo, Bataille procura
pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicação
sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemônica do
capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores
da primeira metade do século XX.

Gênero

A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha
força nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo
uso do conceito de “gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se
responsabilizou pela transformação de um conceito psiquiátrico em forte
conceito de orientação para práticas de transformação social. Seu verdadeiro
inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968
intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de
construção de identidades de gênero através da articulação entre processos
sociais, nomeação familiar e questões biológicas.
Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a
distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero
(construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer
uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque

8
Idem, p. 55
gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza
sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de
uma noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposição de
um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre
gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por
ele”10.
Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de
tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de
uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que
sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas, não apenas como eles são sujeitados às normas e
completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de
gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não
se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmação como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos12.

Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado
pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso
do universo do humano. Do que era visto como patológico, doentio e, por isto,
sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A
modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de
gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria
diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento
de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano.
Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo,
sexualidade e gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith
Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias
diferentes, embora não completamente divergentes, da filosofia se voltar para
uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo
fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será
organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês:
“O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da
sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O

9
BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11
10
idem, p. 10
11
Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
12
Idem, p. 25
curso será, em larga medida, uma apresentação comentada desses três livros, ou
de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a
experiência do comentário possa funcionar.
Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações
profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua
obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma
interessante circulação de pensamento que não se dá sobre a forma tradicional
da influência ou da continuidade. Há uma circulação de pensamento por
exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma experiência de
pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns
fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses
que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os
leitores mais fieis, mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem
o texto filosófico como um processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade
é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade
nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e simples incapacidade de entrar
nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar.
Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma
de fazer comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade
interna de certos textos da tradição, mas que seja a capacidade de identificar e
constituir problemas filosóficos. De fato, vocês aprenderão técnicas
fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da
tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem
das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender
como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do
pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental
para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita
a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se
apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato
de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele
não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim,
procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto
possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja
interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do
que normalmente nos mostraríamos.
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de
boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 2

Na aula de hoje, vamos começar nosso módulo dedicado ao conceito de


“erotismo” a partir de Georges Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar
Bataille e, em um segundo momento, tecer algumas considerações gerais sobre
sua experiência intelectual.
“Eu sou um filósofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897-
1962) seja uma boa maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra
multifacetada. Composta de vários livros de literatura (como, por exemplo, A
história do olho e Madame Edwarda, livros que passaram à história da literatura
devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que parecem se colocar na linha
direta de produções como as de Sade, dos libertinos franceses, entre outros), sua
obra não é, no entanto, a obra de um escritor. Seus romances são a elaboração
literária de uma problematização filosófica, um pouco como os romances de
Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra
literária, já que a literatura aparece quase como um regime discursivo de
explicitação de proposições filosóficas.
No entanto, sua produção filosófica também não parece se enquadrar
claramente no modelo de produção que poderíamos esperar de textos filosóficos.
Por exemplo, a parte alguns escritos sobre Nietzsche e dois artigos sobre Hegel,
não encontraremos textos diretamente dedicados ao comentário da obra de
outros filósofos. Sua formação não foi típica de um filósofo. Ela se deu na Ecole
des Chartes, de Paris, de onde saiu como arquivista e bibliotecário com uma tese
sobre o manuscrito A ordem da cavalaria, o que explica, entre outros, porque
encontraremos em sua produção textos técnicos sobre numismática. Durante
praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando
completamente à margem da vida universitária.
Esta formação híbrida, assim como uma grande abertura de interesses,
pode explicar porque os temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um
campo de interface entre a antropologia, a teologia, a estética e a filosofia. O que
lhe fornece uma capacidade não negligenciável de elaborar temas filosóficos até
então inexistentes, como este que versa sobre o erotismo e suas relações com o
sagrado.
Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de
Bataille veremos, ao menos, duas influências maiores vindas do campo da
filosofia. A primeira é Nietzsche. De fato, a peculiaridade da recepção de
Nietzsche na França seria incompreensível sem o impacto dos textos de Bataille
e sua maneira de, nos anos trinta, demonstrar a incompatibilidade entre o
filósofo alemão e o nazismo que procurava à sua maneira recuperá-lo. Já a
segunda influência filosófica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois
descoberto através dos cursos de Alexandre Kojève.
Kojève foi um emigrante russo responsável, nos anos trinta, por um
seminário de leituras da Fenomenologia do Espírito na Escola Prática de Altos
Estudos. Entre os alunos de seu curso encontravam-se: Bataille, Jacques Lacan,
Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil e de forma mais
esporádica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês podem ver, uma boa
parte da núcleo do pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente ao
mesmo seminário, aprendendo um modo de leitura dos textos hegelianos que
privilegiava questões ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à morte e ao
fim da história. Bataille seguiu de maneira assídua os seminários, de 1933 a
1940, sendo a única formação filosófica de longa duração que teve.
Mas além da influências filosóficas, devemos salientar ainda outras duas
matrizes para a constituição de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo
e das aspirações abertas pelo modernismo estético. Desde de meados dos anos
vinte, Bataille participa assiduamente das discussões a respeito do surrealismo,
animadas principalmente por André Breton. No entanto, suas relações com
Breton são tensas e logo serão levadas à ruptura. Bataille se vê em uma posição
mais radical do que a de Breton, que ele compreende como uma porta-
estandarte de uma versão “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito, Breton
dirá: “O Sr. Bataille faz profissão de querer considerar apenas o que há de mais
vil, mais desencorajador e corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que
ele se torne útil ao que quer que seja de determinado a correr absurdamente com
ele em direção a algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas
mais viciosas, mais rançoso que salões de cabelereiro”13.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica
da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o
que teria sido recalcado pelos processos de racionalização na modernidade,
como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência
modernista é um paradoxal apelo à recuperação do que foi expulso do nosso
tempo histórico. Recuperação da capacidade de escrever como um criança, sem
objetivo e em completa errância; escrever com as condensações, os
deslocamentos e as associações próprias às formações do inconsciente; escrever
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o
selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posição de Bataille consiste em
explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexão sobre a potência de
uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma
vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents,
Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais
revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela,
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci.
Mas, pelas mãos de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de
seu sexo, suas vísceras estão expostas e nas mãos ele carrega um coração em
chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razão que se expressa no equilíbrio sereno da
boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a
paixão que queima e a morte ligada ao sexo. O que não nos surpreende se
lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando:
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito
tarde para tentar ser razoável e instruido – o que levou a uma vida sem atrativos.
Secretamente ou não, faz-se necessário se transformar em algo totalmente outro
ou cessar de ser”.

13
BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre
todo verdadeiro projeto filosófico e a elaboração, até as últimas consequências,
de um acontecimento. Aqui, nós encontramos um bom exemplo do que significar
ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a forma
de um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela
consciência de se viver em uma época de esgotamento estético à procura de
superação. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura em
sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que,
longe de ser naturalizada, é uma construção social responsável pelo
empobrecimento da vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará não apenas
a uma nova ordem, mas, principalmente, à destruição da figura atual do homem.
Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitação, a perda do centro que
define uma hierarquia.
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva
da antropologia de Marcel Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena
lembrar que Bataille fundará, juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e
Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de
sociologia”. Nela, era questão de desenvolver um saber capaz de fazer não
apenas uma antropologia da sociedades primitivas, mas principalmente uma
antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que, em nossas
sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto,
Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva,
dom, mana, fato social total, entre tantos outros. Ele também não deixa de se
apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará fortuna na psicanálise,
através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência


intelectual de Georges Bataille é prestando atenção no modo de funcionamento
de sua crítica social. Como vocês podem imaginar, ela não é apenas uma crítica
social, mas ao mesmo tempo, crítica da razão e crítica do sujeito. Ou seja, ela
compreende que a única maneira de fazer uma verdadeira crítica social não é
contentando-se com a denúncia das condições de exploração e injustiça
econômica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo tempo, estar atenta para a
maneira com que nossa realidade social só será modificada à condição de nos
livrarmos de um conceito de razão onde esta aparece principalmente como um
modo instrumental de dominação e de um conceito de sujeito profundamente
alienante.
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas
ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho.
O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituição das
identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Neste sentido,
lembremos de duas características maiores do trabalho. Primeiro, o trabalho
fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades
sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato dele ser (juntamente
com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que podemos
entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de
autenticidade. Procuro realizar, através do trabalho, a expressão de algo que
definiria minha autenticidade, a singularidade do meu estilo.
No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como
modalidade privilegiada de formação em direção à autonomia. Não é por acaso
que compreendemos a maturação psicológica como este momento em que, entre
outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a maturação
implica mutação no padrão de atividades subjetiva. Ou seja, a expectativa de
realização conjunta de exigências de expressão e formação é elemento definidor
dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Pois trata-se de dar
conta de uma dupla demanda presente na definição moderna de liberdade. Dupla
demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da
autenticidade. Por sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito
do espectro de sofrimentos que ainda encontramos na vida social.
Se o trabalho tem esta dimensão formadora é porque ele é uma das
versões mais bem acabadas de certo processo de auto-governo. Só aqueles
capazes de se auto-governar são capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx,
através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser
reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade. Esta vontade
que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever
que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências
imediatas de auto-satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção
moderna de autonomia. Por isto, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos;
não apenas no sentido material de serem capazes de prover seus próprios
sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para si mesmo uma
lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembramos da
ideia de Rousseau14, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar
para si mesmo sua própria lei, ser legislador de si mesmo, então seremos
obrigados a dizer que o trabalho é exercício mais importante para a liberdade.
Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente
validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja,
como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre
será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão
social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse
dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas,
não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando
organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me
ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que
produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se
encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação
produzida pela sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

14
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à
eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de
refreá-los15.

Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um


modelo de cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da
noção de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades são
calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto
do início dos anos 30, intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob


uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à
conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da
produção e da conservação16.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos
sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a
conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas
acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”17.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:

A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de


reprodução e de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da

15
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
16
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
17
Idem; O erotismo, p. 184
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições
primitivas, têm em si mesmas seu fim18.

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do
ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são
simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar
a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de atividade
improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em
uma afirmação como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual,


uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele
mesmo o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideração desviou
o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de
si19.

O excesso e os números

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro,


trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a
vida sexual. Isto exige não apenas aceitar desvincular a vida sexual dos
imperativos de reprodução (pois se sexo servisse principalmente para a
reprodução, então ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências
de conservação das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular,
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar,
como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um
complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não
por outra razão, mais ou menos à mesma época, filósofos ligados à Escola de
Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as
sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como sociedades
repressivas em relação às exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de
contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao
mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento
das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento
constantemente presente para o fortalecimento da coesão social.
Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência
sexual como aquilo que não se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos
que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por

18
Idem; A parte maldita, p. 21
19
Idem; O erotismo, p. 188
isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles
não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o
erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza,
mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois
isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos
mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da lógica utilitária. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em
tudo o que parece inumano no sexo:

A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se


opõe à redução do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga
a sua virilidade. Ela não responde de modo algum em nós àquilo que é o
animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurável. É
mesmo nela que não podemos ser reduzidos como bois à força de
trabalho, ao instrumento, à coisa20.

Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na


qual reconheça as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade.
Tal animalidade não é o selvagem, mas o incomensurável, o que não se descreve
como descrevemos um instrumento.
Isso explica, em nosso texto, a indignação de Bataille com estudos “sobre
a vida sexual” como os Relatórios Kinsey. Alfred Kinsey foi um biólogo e
“sexólogo” norte-americano responsável por estudos sobre o comportamento
sexual masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos
procuraram criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e
heterossexuais a partir de uma escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a
partir de variáveis de ocupação, idade, religião, entre tantas outras. Bataille se
insurge contra a ideia de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos
diante de um objeto do mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para
Bataille, impossível. Pois a ciência é um regime de descrição que não se
diferencia do padrão de racionalidade que encontramos no mundo do trabalho.
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é
impossível porque, primeiro: “não podemos em geral participar da pedra, da

20
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183
tábua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos”21. Ou seja, não há
um observador indiferente aos fenômenos ligados à sexo, pois eles provocam
necessariamente nossa participação. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em
um regime de participação e de implicação, como participaríamos e nos
implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém próximo. Por isto,
o discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação.
Nossa descrição do que é da ordem do sexual sempre será uma descrição
sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime
de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para
Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são
simplesmente irrelevantes:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a


dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos
olhos? O que o homem significa a nossos olhos se coloca sem dúvida para
além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a
um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais22.

Consciência de si e soberania

Em uma citação anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideração pela


natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos
objetos, ao menos da consciência de si. Seria interessante perguntar-se aqui
porque vincular a revelação do sexo à consciência de si. Normalmente,
poderíamos pensar no contrário, a saber, que a natureza excessiva da vida sexual
é o avesso de toda consciência de si, pois ela nos colocaria em um regime de
descontrole e inconsciência, de distância em relação a algo como um “si mesmo”,
como quem se entrega à servidão de algo que lhe ultrapassa e lhe subjuga.
No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva
da vida sexual é condição para quebrarmos o círculo de alienação no qual se
encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho,
enquanto objetos de um discurso científico objetificador e acedermos à condição
de consciência de si emancipada.
Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro
conceito importante de Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente,
o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever
aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do
poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico.
O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão da sua
vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e
21
Idem, p. 179
22Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est,
en un certain sens, une des fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui
sont exclus par cette dernière se trouvent également exclus du champ de l'attention scientifique : par
principe même, la science ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant que tels” (BATAILLE,
Georges; )
suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode
estar dentro ou fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o
poder.
Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem
trabalhar, enquanto aquele submetido à servidão produz riquezas sem consumi-
las. Ou seja, a soberania pressupõe o descolamento entre gozo e trabalho, pois se
baseia no direito ao gozo desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto de
vista da lógica econômica, o soberano é improdutivo.
Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra
no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de
descrever a posição subjetiva de quem não se encontra mais em posição de
alienação e servidão. Mas o paradoxal no uso batailleano do conceito de
soberania é que ele não descreve alguma experiência de dominação baseada na
sobreposição da vontade do Outro à minha vontade. Ao contrário, soberano é
aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo projeto, porque ele tem a
segurança de que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe
submeter.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as
coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente
sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro.
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio
improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a
utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”23, ou
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não
ser esse tempo presente”. Desta forma, a improdutividade do soberano se
transforma na descrição de uma posição subjetiva na qual a liberação do tempo e
das coisas é indissociável de uma experiência de emancipação.
Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim
mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”24. Pois só assim,
não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do presente em nome do
trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que
um outro, este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há
trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um
soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre um
soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de
habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille,
próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a

23
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
24
Idem, p. 289
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de glória25.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por


Bataille, característica que veremos com mais calma na próxima aula, é sua
posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é
aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei,
mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem
soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele
pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos
homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão
da lei”26. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de
transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as
posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e
profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”27. Veremos
melhor este ponto na aula que vem
Mas Bataille também acrescenta algo à noção de soberania, a saber, a
ideia de que a consciência de si soberana não é a realização final de uma
identidade reconquistada. O verdadeiro soberano não é aquele que se deleita na
segurança de sua própria identidade. Ele é aquele que depôs todo desejo de auto-
identidade. O verdadeiro soberano é aquele que não teme se perder, que não
teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma
experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produção, da conservação de
si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é
fundada na capacidade de transformar a relação a si em uma relação que não
será relação homogênea, mas uma relação heterogênea. Veremos na aula que
vem como a experiência do erotismo nos coloca no caminho em direção a tal
consciência.

25
Idem, p. 249
26
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
27
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 3

Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso módulo dedicado ao conceito de


erotismo, em Georges Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no
pensamento de Bataille, a saber, a) a função e o sentido da relação entre
erotismo e morte, b) o fundamento da ideia de uma sobreposição entre erotismo
e sagrado, c) o conceito de transgressão.
Na aula passada, terminamos através de uma discussão sobre o conceito
de soberania. Bataille afirmara, em dado momento, que a desconsideração pela
natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos
objetos, ao menos da consciência de si. Eu sugeri que, compreender a relação
entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma forma de tomar
consciência de si mesmo, passava por organizar discussões a respeito da
maneira com que Bataille compreende ser possível superar o círculo de
alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades
capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico objetificador.
Se confrontar-se com a natureza excessiva da vida sexual é condição para tomar
consciência de si mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na
experiência sexual que nos coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito
de soberania aparece como um operador importante para compreendermos o
que está em jogo na ideia de erotismo.
Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é
utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra
em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais
paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. Do lugar do rei,
Bataille sublinha duas características principais: sua posição, ao mesmo tempo,
dentro e fora da lei, assim como a preferência pelo uso improdutivo da riqueza
(já que o uso produtivo seria ligado à acumulação, processo próprio à ascensão
da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude
soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos”28.
O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza próprio à
soberania nos é dado pelo fenômeno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir”
em chinook), que pode ser encontrado em tribos norte-americanas, na Melanésia
e na Nova Guiné. É o antropólogo Marcel Mauss que descreve o fenômeno como
uma “prestação total do tipo agonístico”. Mauss quer dar conta desses
fenômenos sociais baseados na obrigação de retribuir o presente recebido,
obrigação de retribuir um dom como forma de afirmar o prestígio e o poder de
um clã, chefe ou tribo. Tal obrigação pode chegar: “à destruição puramente
suntuária das riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival” 29. Ou seja, a fim
de engajar rivais em uma relação soberana, um chefe pode, por exemplo
presentear ou simplesmente destruir parte significativa de sua riqueza, degolar
escravos, jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o mesmo em
maior escala. Bataille segue uma colocação de Mauss a respeito do caráter

28
BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326
29
MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192
paradigmático de tal atividade:

Pesquisas mais aprofundadas mostram um número bastante considerável


de formas intermediárias entre essas trocas com rivalidade exasperada,
com destruição de riquezas, como as do noroeste americano e da
Melanésia, e outras com emulação mais moderada em que os contratantes
rivalizam em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim de
ano, em nossos festins, bodas, em nossos simples convites para jantar, e
sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como dizem os
alemães30.

Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania


das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-
lo em um conceito capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que
não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com
vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele
não descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do
poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à condição
de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo
do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que
não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de
dominar para se defender.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as
coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente
sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro.
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio
improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a
utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”31, ou
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não
ser esse tempo presente”. Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se
nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”32.
Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do
presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que
sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana, possa consumir
o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos
trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu
trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de
habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille,
próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável

30
MAUSS, idem, p. 193
31
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
32
Idem, p. 289
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de glória33.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por


Bataille é sua posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o
soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o
fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de
Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de
transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado
do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e
a transgressão da lei”34. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este
jogo de transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais,
as posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e
profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”35.

O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade

A discussão sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve


para adentrarmos no sentido da relação, tão salientada por Bataille, entre
erotismo e morte.
“Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte”36.
Com esta frase, Bataille começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de
que, para pensar a essência do erotismo, devemos compreender como a vida
serve-se da morte com uma de suas figuras, como ela transforma a morte em
aprovação da atividade vital. Neste ponto, juntam-se dos níveis de
argumentação: um ligado a teoria social, outro ligado à algo que poderíamos
chamar de “filosofia da natureza”.
O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa última aula. As
sociedades capitalistas modernas são sociedades baseadas na redução do
espectro das atividades humanas à figura do trabalho, assim como na redução da
experiência subjetiva à figura do indivíduo. Por um lado, o trabalho é a tarefa de
uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade deve se opor a esses
movimentos que nos fazem nos abandonarmos ao universo violento do excesso,
a saber, a relação sexual e a morte. A morte é a mais forte desordem contra o
mundo do trabalho.
Por outro lado, indivíduos são seres descontínuos, ou seja, que definem
sua identidade da mesma forma que países definem suas fronteiras:
estabelecendo limites, usando a identidade como sistema defensivo contra a
submissão ao outro. Do ponto de vista do desejo, indivíduos são fundamentados
em sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer a partir de
acordos entre outros sistemas particulares. Daí porque as relações entre

33
Idem, p. 249
34
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
35
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
36
BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35
indivíduos serão, em larga medida, relações inspiradas nas relações contratuais.
Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a
expressão máxima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de
interesses que devem ser restringidos mutuamente pelos interesses de outros
indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção jurídica de
um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem
socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta
condição. Ficção que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto
central do vínculo político (medo da despossessão de meus bens, medo da morte
violenta, medo da invasão de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille,
indivíduos não conhecem o erotismo, já que:

“o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas


constituídas. Repito-o dessas formas de vida social, regular, que fundam a
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) trata-se
de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade,
toda a continuidade de que este mundo é capaz”37.

Ou seja, a experiência do erotismo pressupõe a capacidade de sair da ordem


descontínua das individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservação das
individualidades, o erotismo sempre será violento e invasivo: “o que significa o
erotismo dos corpos, senão uma violação do ser dos parceiros?” pois “A
passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução
relativa do ser constituído na ordem descontínua”38.
Esta violência própria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de
um estado de descontinuidade à continuidade, procura de supressão dos limites
e dos indivíduos. Por ter esta característica de supressão violenta dos indivíduos
e de seus sistemas de organização de experiência e afetos o erotismo, ao menos
segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A morte, enquanto supressão de
um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se aproxima, podemos
mesmo, em certos casos, alcançá-lo. Ela é a força que faz do erotismo uma
experiência na qual os seres se livram de formas antigas e configuram novas
formas.
Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de
contrapor o advento da individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se
passaria como se Bataille procurasse fenômenos sociais nos quais a figura do
indivíduo consciente de seus interesses e insubmisso a práticas ritualizadas não
poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente pregar uma crítica da
modernidade através de alguma forma de retorno a estágios pré-modernos de
individuação. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir tanto no vínculo
entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa
aparece como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na
qual a religião ocupa um lugar central na vida social, dando o sentido para
práticas na esfera da economia, da política, da produção cultural e na vida
afetiva., seriam as únicas capazes de garantir algo da ordem da experiência dessa
continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a pregar alguma

37
Idem, p. 42
38
Idem, p. 41
forma de volta de nossas sociedades a esses estágios pré-modernos e,
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais
experiências ainda estão presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma
distorcida e profundamente destrutiva. Para a geração de Bataille, fenômenos
como a ascensão do nazismo e do fascismo foram ocasiões para compreender
como o processo de formação das individualidades modernas era agenciado de
forma tal a produzir sujeitos indefesos à sedução dos regimes totalitários. Não
por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma análise psicológica
do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do
fascismo”.
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da
produção é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma
estrutura social na qual relações e valores são baseadas na utilidade e na
quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
situações definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,
já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a própria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam a nós através da força
violenta do choque.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância
dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania
presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania
assentada na experiência da dominação.
Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade
homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o
outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominação,
revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do
heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a

39
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
esta soberania monárquica recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao
falar das experiências do sagrado e do erotismo.
Desta forma, duas concepções de soberania podem então se contrapor.
Quando a soberania está presente sob as múltiplas formas do poder monárquico,
seres humanos são, no interior de uma relação de dominação, apenas elementos
negados. Quando ela é reapropriada pelos seres humanos, a própria dominação é
negada.

Sexo e morte

Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressão
da descontinuidade para a qual o erotismo tenderia. Aqui nós devemos fazer
apelo a uma certa filosofia da natureza presente no horizonte do pensamento de
Bataille. Ela parte da ideia de que a atividade vital está, a todo momento, tendo
que lidar com a noção de excesso:

O organismo vivo, na situação determinada pelos jogos de energia na


superfície do globo, recebe em princípio mais energia do que é necessário
para a manutenção da vida: a energia (a riqueza) excedente pode ser
utilizada para o crescimento de um sistema (de um organismo, por
exemplo); se o sistema não pode mais crescer, ou se o excedente não pode
mais ser inteiramente absorvido em seu crescimento, é preciso
necessariamente perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade ou não,
gloriosamente ou de modo catastrófico40.

Como vocês podem ver, trata-se de uma proposição biológica sobre a


natureza. Ela consiste em dizer que há um mobilidade interna ao fato vital que
leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo que lhe aparece como
excessivo, pois não submetido ao padrão atual de suas atividades e de normas.
Esta energia excessiva pode servir ao crescimento e desenvolvimento do próprio
organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua destruição, ou seja,
às destruição de sua forma. As formas vitais não apenas se desenvolvem; elas
procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as
leve à destruição: “se não temos força para destruir a energia em acréscimo, ela
não pode ser utilizada; e, como um animal intato que não se pode domar, é ela
que nos destrói, somos nós mesmos que arcamos com os custos da explosão
inevitável”41. Neste sentido, as individualidades orgânicas são estruturalmente
instáveis, pois para dar conta da energia que as atravessa, elas devem gastá-la
como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista da pura
conservação das formas atuais, não tem sentido algum.
Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo biológico que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e
reprodução. Não deixa de ser interessante encontrar tal conceito de organismo
em alguns dos setores mais avançados da biologia contemporânea. Lembremos,
por exemplo, desta afirmação do biólogo Henri Atlan, para quem o organismo
biológico é uma organização dinâmica capaz de ser um processo de:

40
BATAILLE, Georges; A parte maldita, p. 45
41
Idem, p. 46
Desorganização permanente seguido de reorganização com aparição de
propriedades novas se a desorganização pode ser suportada e não matou
o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, não
apenas sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte
intrínseca de seu funcionamento e evolução: sem perturbação ou acaso,
sem desorganização, não há reorganização adaptadora ao novo; sem
processo de morte controlada, não há processo de vida42.

Aqui se delineia a diferença ontológica fundamental entre um organismo


e uma máquina artificial. Ao menos segundo o filósofo Georges Canguilhem: “na
máquina, há verificação estrita das regras de uma contabilidade racional. O todo
é rigorosamente a soma das partes. O efeito é dependente da ordem das
causas”43. Já o organismo não conhece contabilidade: “Uma fiabilidade como esta
do cérebro, capaz de funcionar com continuidade mesmo que células morram
todos os dias sem serem substituídas, com mudanças inesperadas de irrigação
sanguínea, flutuações de volume e pressão, sem falar da amputação de partes
importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as performances
do conjunto não tem semelhança com qualquer autômato artificial”44. Ou seja, há
um princípio de auto-organização no organismo capaz de lidar com
desestruturações profundas, desordens e dispêndios.
No entanto, a possibilidade da destruição do organismo como sistema, de
sua morte é um dado real e é necessário que tal dado seja real para que a ideia da
ação do organismo como marcada não pela finalidade, mas pela errância possa
realmente funcionar. Errância implica poder se perder por completo, dispender
todo o processo acumulado em uma profunda irracionalidade econômica, o que
explica porque a destruição do sistema é uma parte intrínseca de seu
funcionamento. Pois apenas por poder perder-se por completo, ou seja, por
poder deparar-se com a potência do que aparece como a-normativo, que
organismos são capaz de produzir formas qualitativamente novas, migrar para
meios radicalmente distintos e, principalmente, viver em meios nos quais
acontecimentos são possíveis, nos quais acontecimentos não são simplesmente o
impossível que destrói todo princípio possível de auto-organização. Tal figura do
acontecimento demonstra como as experiências do aleatório, do acaso e da
contingência são aquilo que tensionam o organismo com o risco da
decomposição. Isto talvez explique porque Bataille afirma: “Com uma venda nos
olhos, recusamos a ver que só a morte assegura incessantemente um
ressurgimento sem o qual a vida declinaria. Recusamos ver que a vida é a
armadilha oferecida ao equilíbrio, que ela é inteiramente a instabilidade, o
desequilíbrio em que precipita”45.
Não deixa de ser surpreendente que a vida sirva-se desta dinâmica para
poder construir suas formas, o que talvez mostre como não se trata de um mero
dado anedótico lembrar que: “Mais de noventa e nove por cento das espécies
aparecidas desde quatro bilhões de anos foram provavelmente extintas para

42
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 280
43
CANGUILHEM, Georges; Connaissance de la vie, p. 149
44
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 41
45
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 84
sempre”46. Esta é apenas uma maneira um pouco mais dramática de lembrar que
os valores mobilizados pela atividade vital não podem ser a “utilidade”, a
“função” ou o mesmo o “papel” a desempenhar. A vida se passa dessa
contabilidade de balcão de supermercado. Não podemos sequer definir o
desenvolvimento de órgãos a partir da necessidade de certas funções próprias a
uma adaptação à configuração atual do meio. Como a biologia evolucionista nos
mostra, mais correto seria dizer que muitos órgãos são inicialmente
configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de funções deles se
desenvolvam.
Assim, quando Bataille fala da proximidade entre o erotismo e a morte,
não devemos ver nesse tema apenas os resquícios possíveis de um topos
romântico decadentista reciclado. Na verdade, essa é a forma de Bataille insistir
como o erotismo pode aparecer na vida social como potência de desestabilização
de formas ligadas à perpetuação da sociedade homogênea dos indivíduos e de
produção possível de novas formas baseadas na capacidade de estabelecer
relações como o heterogêneo, sendo a morte o grau máximo da heterogeneidade.

O interdito e a transgressão

Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo
como fenômeno indissociável do interdito e da transgressão. Bataille lembra que
a realidade humana difere daquela própria ao animal porque ela é submetida a
leis. A princípio, tal proposição pode parecer estranha pois conhecemos bem
como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto
no mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao
menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os interditos são indissociáveis de
sua transgressão. Não há interdito sem transgressão regulada ou, muitas vezes,
prescrita. Não há proibição do assassinato sem a regulação de suas transgressões
possíveis (como a guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e
transgressão, há uma profunda cumplicidade entre a lei e a violação da lei que
aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer
que: “a transgressão difere do ‘retorno à natureza’: ela suspende o interdito sem
suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se encontra ao
mesmo tempo a mola propulsora das religiões”47.
É a essa “suspensão sem supressão” que devemos voltar nossos olhos. A
princípio, ela tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o sujeito
parece necessitar dos muros da prisão para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressão do interdito como condição para o gozo. E
Bataille não deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Ele seria um erotismo acalmado no interior de uma
região na qual a vida não força seus limites e não testa novas formas. Tentemos,
por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

46
AMEISEN, Jean-Claude; La sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la mort créatrice, p. 12
47
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza
encarada como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de
aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte são apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra
tem o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser (...) Nunca, com
efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, não de uma
imobilidade derradeira48.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma


ordem à dissipação de energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade
vital. Os interditos são sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro
desejo de durar, que é próprio a cada ser. Sistemas de regras que visam parar,
nem que seja por um momento, essa festa orgiástica que a natureza celebra com
a multidão inesgotável dos seres. Talvez porque a vida precise da suspensão
temporária desses turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário levar em
conta princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou
seja, uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e
transgressão.
Sendo assim, o próprio movimento vital seria um movimento de ereção
de interditos e transgressões periódicas. A condição de que aceitemos se tratar
nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades são móveis na constituição de
seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se sustentar apenas por
um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua acaba por transformá-
los em interditos paródicos. Mas o que Bataille não concebe é uma abolição
produtiva do jogo entre interdição e transgressão. Voltaremos a este ponto na
próxima aula.

48
Idem, p. 86
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 4

Terminamos a aula passada através de uma discussão a respeito das relações


necessárias entre interdito, transgressão e erotismo. Eu dissera à ocasião que
Bataille precisa pensar o erotismo como fenômeno indissociável do interdito e
da transgressão. Para tanto, ele insiste que a realidade humana difere daquela
própria ao animal porque ela é submetida a leis. A princípio, tal proposição pode
parecer estranha pois conhecemos bem como a natureza é espaço de
normatividades. Tanto no mundo humano quanto no mundo natural, o peso das
normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao menos segundo Bataille, uma
peculiaridade: os interditos são indissociáveis de sua transgressão. Não há
interdito sem transgressão regulada ou, muitas vezes, prescrita. Por exemplo,
não há proibição do assassinato sem a regulação de suas transgressões possíveis
(como a guerra). Ou ainda: “todo o movimento da religião implica o paradoxo de
uma regra que admite a ruptura regular da regra em certos casos”49. Há um jogo
de equilíbrio entre interdito e transgressão, há uma profunda cumplicidade entre
a lei e a violação da lei que aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí
porque, Bataille poderá dizer que: “a transgressão difere do ‘retorno à natureza’:
ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do
erotismo, ai se encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiões”50.
É a essa “suspensão sem supressão” que voltamos inicialmente os nossos
olhos. A princípio, ela tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o
sujeito parece necessitar dos muros da prisão para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressão do interdito como condição para o gozo. E
Bataille não deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Pois Bataille não estaria preso a alguma forma
singularmente repressiva de sexualidade, isto ao insistir que sempre deve haver
interdito para existir desejo, que o interdito é no fundo uma condição para o
desejo? Por que não admitir que é possível ultrapassar de vez esta peculiar
dialética entre interdito e transgressão a respeito da qual Bataille quer nos
convencer de sua força?
A resposta possível é: porque um erotismo sem interditos seria um
erotismo acalmado no interior de uma região na qual a vida não força seus
limites e não testa novas formas. Se nada aparece ao erotismo como uma
interdição, se ele não dilacera mais nada, então não há nada que já não esteja
presente atualmente como realidade para o erotismo. Então a realidade atual já é
toda a realidade possível. Não há uma possibilidade não explorada, interditada,
ainda não realizada. A dimensão da realidade é toda a extensão dos possíveis, o
que faz com que os possíveis sejam configurados a partir da extensão da situação
atual.

49
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 134
50
Idem, p. 60
Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza


encarada como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de
aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte são apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra
tem o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser (...) Nunca, com
efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, não de uma
imobilidade derradeira51.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma


ordem à dissipação de energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade
vital. Os interditos são sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro
desejo de durar, que é próprio a cada ser. Não por outra razão, os interditos
concernam principalmente a morte, o sexo, assim como a relação aos dejetos e
excrementos. Em todos estes casos, em maior ou menor grau, os interditos
impedem o contato com situações e fenômenos nos quais a duração das formas
se encontra em risco, seja através da dissolução mortal ou através da
proximidade com o informe. Tendo isto em vista Bataille dirá, por exemplo:
“Certamente, a morte difere como uma desordem da ordenação do trabalho: o
primitivo podia sentir que a ordenação do trabalho lhe pertencia, ao passo que a
desordem da morte o ultrapassava, fazendo de seus esforços um contrassenso”52.
Isto explica porque Bataille afirmará que o objeto fundamental dos
interditos é a violência. Pois “violência” não significa aqui apenas a
vulnerabilidade em relação à força de um outro, ação externa que não leva em
conta os meus interesses. “Violência” é aqui, principalmente, o que me
desordena, o que me faz sair da ordem que me preserva. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”53. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção
que segue a morte e recoloca em circulação as substâncias necessárias à
incessante vinda ao mundo de novos seres54.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do


qual organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio é que
Bataille dá à angústia uma função fundamental e paradoxal na direção de nossas
ações: “Se considerarmos globalmente a vida humana, ela aspira à prodigalidade

51
Idem, p. 86
52
Idem, p. 67
53
Idem, p. 72
54
Idem, p. 79
até a angústia, até a angústia, até o limite em que a angústia não é mais tolerável.
O resto é conversa de moralista”55.
Esta função da angústia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na
medida em que podem (é uma questão – quantitativa- de força) os homens
buscam as maiores perdas e os maiores perigos”56. Neste sentido, eles não se
afastam simplesmente do que lhes provoca angústia, mas são chamados por ela,
como quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem
claramente como sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um
momento, essa festa orgiástica e violenta que a natureza celebra com a multidão
inesgotável dos seres. Poderíamos nos perguntar pela razão de tal desejo de
durar. Talvez porque a vida precise da suspensão temporária da angústia
provocada por esses turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário levar em
conta princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou
seja, uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e
transgressão. Ou seja, através do erotismo a experiência humana dá forma àquilo
que coloca em cheque as estruturas da forma. E ao permitir tal aproximação, o
erotismo aparece como fonte de liberação da vida dos limites que ela, por um
momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia aparecer, ao contrário,
como espaço no qual não forçamos mais os limites postos pelos interditos
quando ele perde sua dimensão renovadora.
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o próprio movimento vital
seria um movimento de ereção de interditos e transgressões periódicas. Como
se, paradoxalmente, devessemos admitir que os interditos estão aí para serem
violados. Pois: “A frequência – e a regularidade – das transgressões não abala a
firmeza intangível do interdito, de que é sempre o completamente esperado
como um movimento de diástole completa um de sístole, ou como uma explosão
é provocada por uma compressão que a precede”57. À condição de que aceitemos
se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades são móveis na
constituição de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se
sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua
acaba por transformá-los em interditos paródicos ou em interditos fracos . Por
exemplo:

É da nudez que fala o livro de Gênesis, enunciando, através do sentimento


de obscenidade, a passagem do animal ao homem. Mas o que ofendia o
pudor no começo do século não o ofende mais, ou ofende menos. A nudez
relativa dos banhistas ainda é obscena em uma praia espanhola, não em
uma praia francesa: mas em uma vila, mesmo na França, a roupa dos
banhistas constrange um grande número de pessoas58.

Mas o que Bataille não concebe é a possibilidade de uma abolição


produtiva do jogo entre interdição e transgressão. Pois o interdito não suprime
as atividades necessárias à vida, mas lhes dá o sentido da transgressão religiosa.
O que pode nos colocar a questão de saber por que a experiência da transgressão

55
Idem, p. 85
56
Idem, p. 110
57
Idem, p. 89
58
BATAILLE, Georges; Histoire de la sexualité, p. 45
é para Bataille tão importante. Se quisermos, podemos colocar tal questão da
seguinte maneira: por que, para Bataille, todo verdadeiro ato é uma
transgressão?

Uma teoria da transgressão

Dos exemplos dados por Bataille a respeito da transgressão, certamente o mais


paradigmático é a festa. Seguindo uma ideia que encontramos inicialmente em
Roger Caillois, Bataille verá na festa a essência da transgressão porque ela seria:
“sem dúvida, o cessar do trabalho, o consumo incontinente dos seus produtos e a
violação expressa de suas leis mais santas, mas o excesso consagra e completa
uma ordem de coisas fundadas sobre as regras, ela só lhes opõe
temporariamente”59.
A sociedade humana não é apenas o mundo do trabalho. Ela é uma
composição entre o mundo profano do trabalho e dos interditos e o mundo
sagrado dos espaços nos quais podemos produzir transgressões limitadas. Por
isto, o tempo sagrado será, para Bataille, necessariamente o tempo da festa. Uma
festa capaz de produzir laços sociais que não são apenas a expressão de um
sistema de mútua dependência entre trabalhadores que produzem produtos que
circularão a fim de satisfazer necessidades individuais. A festa como laço social
fundado na transgressão do tempo profano, na dilapidação excessiva própria a
uma sociedade que procura, através da festa, adiantar imagens de uma sociedade
mais próxima da prodigalidade da vida.
Mas este sagrado que encontra na festa sua melhor expressão é, ao menos
se seguirmos a leitura de Michel Foucault, um peculiar sagrado sem Deus, ou
seja, sem a separação ontológica em relação à experiência do ilimitado e do
infinito. Daí uma afirmação como: “a morte de Deus não nos restitui a um mundo
limitado e positivo, mas a um mundo que se desdobra na experiência do limite,
faz-se e se desfaz no excesso que a transgride”60. Esse sagrado que não admite
mais a separação ontológica entre o divino e o humano, mas que constitui o
humano como a passagem incessante ao limite, como a passagem incessante ao
divino é uma espécie muito peculiar de “filosofia da encarnação”, ou seja,
filosofia que procura pensar em quais condições pode ocorrer uma encarnação
do divino no humano, mesmo que tal filosofia admita ao mesmo tempo o vazio
ontológico que a morte de Deus representaria. Há de fato um misticismo em
Bataille, já que ele reconhece a força da experiência do sagrado, mas se trata de
um peculiar misticismo “ateológico”, como o próprio o nomeava. O sagrado
aparece aqui, em conformidade com uma certa tradição da teologia negativa,
como o abissal, como o obscuro. O que explica porque Bataille dá a experiências
místicas como as de Santa Teresa D’ávila uma função central em seu conceito de
sagrado. Pois, a seu ver:

Santa Teresa soçobrou, mas não morreu realmente do desejo que teve de
soçobrar realmente. Ela perdeu pé, não fez mais que viver mais
violentamente, tão violentamente que pôde se dizer no limite de morrer,
mas de uma morte que, exasperando-a, não fazia cessar a vida61.

59
Idem, p. 78
60
FOUCAULT, Michel; Preface à la transgression, in: Dits et écrits, vol. I, p. 264
61
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 266
No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que
pensar tal encarnação violenta do divino como transgressão? Há duas maneiras
de responder tais perguntas: uma dada por Michel Foucault e outra voltando a
uma das referências principais de Bataille, a saber, Hegel. A interpretação de
Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista algo parecido a uma dialética na
relação entre interdito e transgressão, uma dialética que seria a expressão de
uma relação entre o finito e infinito, entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relação dialética porque se os interditos são postos
para serem transgredidos, é porque os homens precisam organizar a vida social
a partir de uma contradição. Esta é inclusive uma boa definição de dialética,
fornecida por Hegel em uma conversa com Goethe: “espírito de contradição
organizado”, e que não deixa de, de certa forma, ressoar a definição que Bataille
fornece da transgressão como uma: “desordem organizada 62 . Maneira de
compreender a contradição como forma de produzir experiências através da
tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir
da diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradição dialética não é
simplesmente a marca de uma impossibilidade de pensar e de constituir objetos,
como seria o caso se estivéssemos diante de duas proposições contrárias sobre o
mesmo objeto e sobre o mesmo aspecto (Sócrates é e não é homem sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo). A contradição dialética é um modo do ser entrar em
movimento e de admitirmos que o ser não é aquilo que permanece sempre igual
a si mesmo, como uma substância que subsiste graças ao caráter inalterado de
sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu próprio princípio de
alteração, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superação.
Movimento através da qual o ser nega a si mesmo, nega sua própria identidade
sem necessariamente se auto-destruir, nega seus limites graças a uma negação
que conserva algo do anteriormente negado. Neste sentido, a contradição é
interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relação entre interdito e
transgressão seria a maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito
uma norma, então tudo se passa como se as normas fossem, ao mesmo tempo, a
definição do que devo fazer e de como é possível transgredir tal dever. Neste
sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira realização da norma sempre
aponta para uma superação da norma.
Isto é possível porque a negação da norma não é, para Bataille, alguma
forma de retorno à animalidade. Negar os interditos não significa voltar à
condição animal inicial. Os interditos visam, de certa forma, negar nossa
condição animal, mas a transgressão visa negar tal negação, superando-a sem, no
entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este movimento, que se
inspira claramente na dinâmica hegeliana de uma negação da negação implica
possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitações do interdito sem, no
entanto, anular a experiência histórica que o produziu.
Foucault não admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é
negativo na transgressão”63. A transgressão não nega nada. Ela seria, na verdade,
uma bisonha “afirmação não positiva”, uma afirmação que não afirma nada. Sua

62
BATAILLE; O erotismo, p. 144
63
Idem, p. 266
maneira de colocar em questão o ser através de uma linguagem da transgressão,
ou seja, de uma linguagem do limite não implicaria em contradição alguma. Pois
a contradição pareceria implicar que precisaríamos sempre conservar o que é
negado no interior mesmo da determinação do ser. Parece que sempre
precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente,
ela pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética
hegeliana) unificar os opostos em uma síntese final. Pois sendo os diferentes
aquilo que se articula em um movimento contínuo, então eles acabam por se
submeterem a uma síntese. O que não parece ser o sentido da transgressão em
Bataille. Ela não caminha em direção a uma síntese, mas a uma relação, sempre
fulgurante e violenta, ao infinito e ao absoluto.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensão do interdito do assassinato – é o


ato religioso por excelência”64. Sendo o sagrado este espaço no interior do qual a
transgressão é possível, então o sacrifício aparece sua mais profunda expressão.
Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por excelência? Certamente,
Bataille não está a falar do sacrifício como limitação da minha vontade em nome
de um ideal moral. Algo presente quando falo, por exemplo: “eu me sacrifiquei
para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma destruição improdutiva,
melhor meio de negar uma relação utilitária entre o homem, as coisas e os
animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual não tenho mais uma
relação de uso e de submissão à lógica da produção. Ele é objeto de uma
“consumação sem lucro”. Mas, principalmente, um animal sacrificado é um
animal do qual eu participo, ele me representa e tomo parte no ritual do
sacrifício através dele e, principalmente, nele. No sacrifício do animal, eu posso
ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o sacrifício é o calor em que se
reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das obras comuns”65.
Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de simbiose e de
fusão que Bataille aproxima da relação amorosa. Daí uma afirmação central
como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui


a vida ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se
dá com a convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos cujos jogos cegos
prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade
refletida sucedem os movimentos animais desses órgãos inchados de
sangue. Uma violência, que a razão não controla mais, anima esses órgãos,
tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos corações de ceder
ao excesso dessa tempestade66.

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a


revelação de um corpo em nós que é feito de carne, ou seja, de algo próprio a
uma corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A
carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato

64
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
65
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
66
Idem, O erotismo, p. 116
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anônima que me aproxima do que exige uma explosão violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
não parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressão
invertida dos processos de reprodução material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histórico marxista. Ela é a composição material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direção a uma matéria que é produção contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor
não é feita em nome da visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a
restrição dos interesses próprios em nome da construção de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participação através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que não pode ser visto como expressão de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mútuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenômeno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada”67. Entre o amor
dos filósofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinção entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que não aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
não como identidade, mas como espaço de confrontação com a heterogeneidade
que não se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão que

67
Idem, p. 129
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma
experiência social de emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinação pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusão próprio às massas fascistas, com sua fusão
organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Nós vimos na aula passada como Bataille insiste que
nossa sociedades sofrem por não saberem como dar conta de uma experiência
da heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de fusão e de perda
de limites da individualidade. Vimos também como o fascismo seria maneira de
absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de
fusão produz uma homogeneidade organizada sob a identificação,
profundamente disciplinar, a um líder transcendente, cujo discurso é marcado
pela unidade, pela depuração e purificação do corpo social. Maneira da
identidade ter a última palavra, mesmo se através do uso do desejo de
heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o
fascismo acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”68.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”69. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante
como:

Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são,


como toda situação humana, trasitórias, mas continua possível encontrar,
como uma representação ainda imprecisa, forças de atração diferentes
das já utilizadas, tão distintas do comunismo atual ou passado quanto o
fascismo é das reivindicações dinásticas. É tendo em vista tais
possibilidade que se deve desenvolver um sistema conhecimentos
permitindo prever as reações afetivas sociais que percorrem a super-
estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor70.

68
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
69
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
70
Idem, p. 163
É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência
política revolucionária (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas
desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille
sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de
Kojève foi insistir na importância de compreendermos as dinâmicas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
são, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posição de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noção de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?
Veremos melhor este ponto na próxima aula.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 5

Na aula de hoje, terminaremos o primeiro módulo de nosso curso, dedicado à


leitura de O erotismo, de Georges Bataille. Durante este primeiro mês de curso,
procurei apresentar a estrutura da experiência social descrita por Bataille a
partir do conceito de “erotismo”. O termo “experiência social” é adequado para
falarmos do erotismo porque se trata, ao menos para Bataille, de um fato, tal
como o sagrado, o sacrifício e a dádiva cuja realidade tem a força de fundar
vínculos e modificar relações sociais. Vimos como o erotismo do qual fala Bataille
não é simplesmente um conjunto de práticas ligadas a processos de
intensificação dos prazeres sexuais e de incitação dos desejos. Bataille não quer
fundar uma arte erótica mais completa e atual. Na verdade, o erotismo aparece
como experiência social com forte capacidade crítica em relação a nossas formas
hegemônicas de vida. Através do erotismo, Bataille procura aliar crítica social,
crítica do sujeito e crítica da razão apelando a uma peculiar materialismo que dá,
a alguns temas clássicos do pensamento marxista (como a reificação, o trabalho
abstrato), uma versão completamente inusitada.
A importância dada por Bataille a um fenômeno como o erotismo, e sua
maneira de insistir que o erotismo traz em seu bojo uma concepção
revolucionária de sociedade, vincula-se, por um lado, à compreensão do que
poderíamos chamar de “problematização política do desejo”. Bataille age como
quem acredita que o desejo, a maneira como ele circula e constitui laços, é um
fator político decisivo. Já em suas análise sobre o fascismo, ficava clara a
perspectiva de avaliar situações sócio-políticas a partir da compreensão da
maneira com que a experiência da heterogeneidade era capaz de habitar o
desejo. Há um claro pensamento da diferença que serve de fundamento para a
crítica gerada pela filosofia de Bataille. Diferença que se configura
principalmente através dos conceitos de heterogeneidade e excesso. Todo o
papel fundamental que a noção de diferença desempenhará no pensamento
francês a partir dos anos sessenta, principalmente através de filósofos como
Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault é incompreensível se não
entendermos Georges Bataille um importante antecessor.
Por outro lado, lembremos como, em nossa primeira aula, eu afirmara que
a caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre
como um fenômeno ou um objeto é um evento. Como dissera em nossa primeira
aula, dentro da perspectiva filosófica, não se trata de simplesmente descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões
de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos
produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Neste sentido, podemos dizer que o erotismo é o nome dado por
Bataille à compreensão de que há algo na experiência sexual que tem a força de
um acontecimento.
Para tanto, foi necessário que a dimensão do sexual aparecesse como
espaço no qual o homem se encontra distante tanto da natureza quanto de sua
afirmação como indivíduo autônomo. Feita a crítica da subordinação do sexo aos
imperativos de reprodução, a distância em relação à natureza pode ser afirmada.
Feita a crítica da subordinação do desejo aos prazeres que guiam os sistemas
individuais de interesse, o segundo passo pode ser dado. Neste sentido, é
inegável que a experiência do erotismo recupera, à sua maneira, as expectativas
disruptivas do surrealismo enquanto fundamento para uma crítica social
renovada. Por outro lado, há em todo acontecimento, a figura de um contra-
acontecimento que é objeto de nossos esforço de suspensão. Como vimos nas
aulas passadas, o contra-acontecimento do qual o erotismo é a melhor resposta é
o facismo.
Vimos como a crítica social de Bataille era uma crítica radical da
sociedade do trabalho. Nossas sociedades modernas ocidentais são
caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho, no sentido do
trabalho aparecer como atividade fundamental para a constituição das
identidades sociais e para o reconhecimento dos sujeito. Vimos como a
expectativa de realização conjunta de exigências de expressão da individualidade
e formação em direção ao auto-controle era elemento definidor dos valores que
mobilizamos na avaliação social do trabalho.
Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar
radicalmente a divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir
que todos tenham a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille,
isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da
produção e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de
tempo e metas, não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela
utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que
ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular
valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim
mesmo quando organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma
lei que me ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos
que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se
encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação
produzida pela sociedade do trabalho.
No entanto, o erotismo é uma atividade estranha à tal racionalidade
instrumental própria à sociedade do trabalho. Tal estranhamento se expressa na
natureza excessiva do erotismo. Ao falar de “excesso” neste contexto, Bataille
não afirma que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da
ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é
muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre
os dois fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade,
“excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir,
simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque
sua lógica não é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando
for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a
um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que não
aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que podemos
calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que
lhe caracteriza é exatamente aquilo que não entra na imagem atual do homem,
deste homem da sociedade do trabalho e da lógica utilitária. Assim, quando
Bataille propor uma espécie de fórmula ontológica ao afirmar que: “o ser é
também o excesso do ser, elevação ao impossível”71, devemos entender com isto
que é próprio da definição do ser o reconhecimento de uma relação constitutiva
com o que lhe determina. Neste contexto, “impossível” não significa inexistente;
“impossível” significa o que não se expressa na configuração atual dos possíveis e
que, por isto, força tal configuração a modificar-se.
Foi tendo tal contraposição em mente que introduzi o conceito de
“soberania”. Para Bataille, a resposta à alienação produzida pela sociedade do
trabalho passa pela reconstrução do conceito de soberania, agora aplicado à
posição subjetiva. Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que
se encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito
capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que não se encontre
mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com vocês que o
conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não
descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do
poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à condição
de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo
do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que
não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de
dominar para se defender.
Isto pode nos explicar porque, ao analisar a sociedade soviética, Bataille
dirá que ela poderia fornecer um caminho para uma soberania comum, a partir
do momento em que todos abrem mão soberanamente de todo traço de
soberania monárquica. Para além do caráter dificilmente defensável de uma
proposição desta natureza (difícil aceitá-la se lembrarmos do lugar soberano do
líder no stalinismo), fica a compreensão do esforço em pensar algo que poderia
significar a soberania comum no campo social. Soberania da partilha comum da
parte maldita.
Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava
não querer mais controlar as coisas através da sua submissão à utilidade delas
para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo
através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define
como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em
uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade
definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo do gozo.
A fim de compreender porque Bataille associa a afirmação de tal
soberania ao movimento de transgressão, eu sugeri operarmos uma passagem
em direção àquilo que poderíamos chamar de uma “filosofia da natureza”. Ela se
expressa em uma forma peculiar de pensar a relação entre a vida e morte, entre a
organização e a desorganização. Para Bataille, há um mobilidade interna ao fato
vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo
desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois não submetido ao padrão
atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao

71
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo
ponto ela pode levar à sua destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As
formas vitais não apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio
vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruição: “se não temos
força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser utilizada; e, como
um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos nós
mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável”72. Neste sentido, as
individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da
energia que as atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja,
como algo que, do ponto de vista da pura conservação das formas atuais, não tem
sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo biológico que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e
reprodução. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento
para a auto-preservação de sua forma momentânea. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”73. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção
que segue a morte e recoloca em circulação as substâncias necessárias à
incessante vinda ao mundo de novos seres74.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no


interior do qual organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio
que Bataille precisa insistir que a soberania própria ao erotismo é sempre
transgressiva. A transgressão é o nome a para um movimento que se desdobra
através da perpétua reversibilidade das normas.
Mas, para Bataille, não basta que tais reversibilidades ocorram. Há um
modelo de transgressão privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma
experiência substantiva de heterogeneidade. A este respeito, Bataille censura o
pensamento materialista de, até então, ceder à “obsessão de uma forma ideal da
matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do que qualquer outra, daquilo
que a matéria deveria ser”75. A seu ver, trata-se de um falso materialismo, incapaz
de compreender o caráter polimórfico e promiscuo da matéria. Este falso
materialismo ainda é dependente de uma hierarquia própria ao caráter elevado
da ideia. Mas a verdadeira transgressão nos faz nos reconhecermos naquilo que
Bataille chama de matéria baixa: “A matéria baixa é exterior e estrangeira às
aspirações ideais humanas e se recusa de se deixar reduzir às grandes máquinas
ontológicas”76. Uma matéria baixa que é a afirmação do caráter informe da
matéria, do caráter “baixo” que uma certa tradição filosófica sempre associou à
matéria, a saber, caráter do que se decompõe, do que se quebra, o que apodrece,
o que não subsiste no interior do tempo e por isto está em plasticidade contínua.
A verdadeira transgressão, dirá Bataille, é reconhecimento de si na
heterogeneidade radical do que se decompõe, do que se quebra e apodrece. E

72
Idem, p. 46
73
Idem, p. 72
74
Idem, p. 79
75
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
76
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
algo do erotismo se deixa tocar exatamente por tal tipo de experiência material:
pelo corpo que não se submete integralmente à sua própria imagem, pela
fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que sempre
se perde e se decompõe, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem
algo de suas formas.

Sade e a linguagem da violência

Dois artigos de O erotismo são dedicados ao Marques de Sade. De fato, foram os


surrealistas que recuperaram a importância literária de Sade, um autor
recorrente no pensamento francês a partir de então, seja através do próprio
Bataille, seja através de Pierre Klossowski, de Blanchot, de Jacques Lacan, de
Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Há algo da concepção batailleana de soberania que encontra expressão na
obra de Sade. Tal concepção está expressa em afirmações como:

Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinação ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
ápice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressão
que não para antes de ter atingido o ápice da transgressão. Sade não
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si. A negação dos
outros se torna, no extremo, negação de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?77.

A que Bataille alude aqui? Não compreenderemos nada da literatura de


Sade se imaginarmos que seus personagens são impulsionados pela simples
procura de maximizar seus prazeres individuais. Na verdade, Sade está à procura
de uma purificação da vontade que a libere de todo conteúdo empírico e
patológico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a soberania do homem sobre um
poder transcendente de negação »78. De onde se segue, por exemplo, o conselho
do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os homens,
todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos
efeitos de uma reflexão sã”79. Uma indiferença em relação ao objeto que
pressupõe a despersonalização e o abandono do princípio de prazer. Este é o
sentido de um outro conselho de Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se
isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas afeições" 80. Esta experiência
de quem sacrifica seus gostos e afeições em nome de uma espécie peculiar de
imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que recusa sua
subordinação a um gozo menor.
Este gozo mais forte não é, pois, a afirmação dos interesses egoístas da
pessoa. Há algo no movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille,
“excede o princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si”. Se a

77
Idem, p. 202
78
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
79
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
80
SADE, ibidem, p. 83
negação dos outros se torna negação de si mesmo é porque sacrifico tudo o que
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e
gratuito de repetição do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um
pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio às orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito
com apatia e contenção. O gozo dos personagens de Sade, como vários
observaram, é um gozo apático.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do ápice em direção ao
qual algo em nós caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o
próprio egoísmo acendeu. Daí uma afirmação como:

Sade consagrou intermináveis obras à afirmação de valores inaceitáveis: a


vida era, se acreditarmos nele, a procura do prazer; e o prazer era
proporcional à destruição da vida. Dito de outro modo, a vida atingia o
mais alto grau de intensidade numa monstruosa negação de seu
princípio81.

Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo ápice daquilo que


somos”82, este “mais alto grau de intensidade” da vida como aquilo que define
algo que o excesso próprio à vida subjetiva, a saber, a “experiência interior”: “A
experiência interior responde à necessidade na qual me encontro - a experiência
humana comigo – de colocar tudo em causa (em questão) sem repouso
admissível”83. Esta é a descrição de uma experiência sócio-histórica bastante
precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo uma modalidade
específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitações
e defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse
resultante do caráter repressivo da identidade. Esta é a temática maior de um
certo pensamento francês contemporâneo (Lacan, Deleuze, Derrida, Foucault).
Podemos mesmo dizer que para todos eles, a modernidade não é apenas
momento histórico onde: “não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida
essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteúdo”84. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento
de indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do
Eu a condição de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade
objetiva. O que neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido à auto-
identidade subjetiva enquanto princípio de fundamentação das condutas e de
orientação para o pensar. Levando tal contexto em conta, poderemos
compreender melhor uma colocação como:

Se alguém me perguntasse o que nós somos, e, de qualquer modo, lhe


responderia: essa abertura a todo o possível, essa expectativa que
nenhuma satisfação material poderá apaziguar e que o jogo da linguagem
não poderia enganar! Estamos à procura de um ápice. Cada um, se lhe
agrada, pode negligenciar a procura. Mas a humanidade em seu conjunto

81
Idem, p. 207
82
Idem, p. 219
83
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
84
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24
aspira a esse ápice, que se ele a define, que só ele é sua justificação e
sentido85.

Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter
colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal
sofrimento. No entanto, a posição de Sade guarda algo de profundamente reativo,
e essa natureza reativa é sua limitação. Bataille explora com exaustão o fato
paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato,
um carrasco sádico, há de se lembrar que carrascos não escrevem, pois: “a
violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a expressão do homem
civilizado”86. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille
pode dizer:

Na verdade, essas dissertações da violência, que incessantemente


interrompem os relatos de cruéis infâmias de que os livros de Sade são
formados, não são as dissertações dos personagens violentos a que são
atribuídas. Se tais personagens tivessem vivido, sem dúvida teriam vivido
silenciosamente87.

Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem


de quem estava preso na Bastilha pelo homem que não aceita mais a própria
desmesura de sua experiência interior. Vítima revoltada de uma injustiça que lhe
leva a transformar a violência naquilo que ela não é, no seu oposto, a saber: “uma
vontade refletida, racionalizada, de violência”88. Esta linguagem inventada por
Sade é, assim, uma linguagem reativa de quem procura criar uma violência que
teria a calma da razão, linguagem de quem faz entrar na consciência exatamente
aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência tudo fez para
esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da
revolta que procura a profanação desenfreada. A revolta das vítimas da
incapacidade de uma sociedade fundada em fenômenos sociais que estejam à
altura do excesso próprio ao ser.

A filosofia, a experiência interior e o riso

Mas o que seria uma linguagem capaz de expressar tal experiência


interior sem precisar, ao mesmo tempo, colocar-se como reação e revolta à
disciplina imposta pelo homem que não aceita a própria desmesura? O que seria
um vinculo social livre da obrigação de reagir através da transformação do
silêncio próprio à violência em palavra de revolta? Na verdade, poderíamos
mesmo se perguntar sobre como seria uma experiência que recuperasse a
violência bruta própria ao silêncio. Neste ponto, encontramos uma dicotomia
importante entre saber e erotismo. Tal dicotomia está expressa em afirmações
como: “O filósofo pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a
experiência erótica nos obriga ao silêncio”89. Uma obrigação ao silêncio que

85
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300
86
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
87
Idem, p. 216
88
Idem, p. 219
89
Idem, p. 279
alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo: “É contra sua
própria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através
dele, ele odeia a linguagem por completo. Este ódio, o sr. Bataille partilha com
um bom número de escritores contemporâneos. Mas os motivos que ele fornece
lhe são próprios: é o ódio do místico que ele reivindica, não o ódio do
terrorista”90.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que
normalmente chamamos de ‘experiência mística’”91. Há algo na experiência de
fusão e afastamento das estruturas de conhecimento que se expressam na
linguagem prosaica própria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como
vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo após
a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do esgotamento
da força representativa da linguagem. Consciência tão alargada que estaria
mesmo disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:

Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o


familiar se dissolvendo no estranho e nós mesmos com ele. Ele nunca nos
despossui por completo, pois as palavras, as imagens dissolvidas, são
carregadas de emoções já provadas, fixadas a objetos que as ligam ao
conhecido92.

Tal consciência do esgotamento da linguagem não se configura, assim,


como uma passagem da filosofia à literatura, com sua linguagem pretensamente
menos descritiva e próxima do que não se deixa representar. Ela é um paradoxal
retorno à filosofia, já que só a linguagem filosófica seria capaz de guardar o
silêncio do heterogêneo, sem nos colocar nas vias da crença em alguma forma de
imanência reconquistada pela linguagem. A filosofia não é composta de palavras
que carregam emoções já provadas, pois ela é uma linguagem desdramatizada.
Ou seja, de uma certa forma o reconhecimento da fraqueza da linguagem
filosófica acaba funcionando como sua força. Pois há uma mutação necessária da
linguagem, uma mutação através da qual ela não aparecerá mais como um meio
de conhecimento, onde ela não servirá para conhecer e descrever, mas para nos
levar a algo que não se acomoda completamente à linguagem, que se expressa
nas formas do silêncio (e o que é o erotismo a não ser uma forma bastante
peculiar de silêncio):

O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que não pode se realizar
completamente sem a disciplina, e que, por outro lado, fracassa por não
poder abarcar os extremos de seu objeto, o que designei outrora sob o
nome de “extremo do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos
da vida. (...) salvo, a rigor, se, no auge, a filosofia for negação da filosofia,
se a filosofia rir da filosofia. Suponhamos, com efeito, que a filosofia
verdadeiramente ria da filosofia, isso supõe a disciplina e o abandono da
disciplina93.

90
SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136
91
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
92
Idem, p. 17
93
Idem; O erotismo, p. 285
Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura
comunicar (já que o termo é constantemente utilizado por Bataille) o que
decompõe a linguagem, vivenciar o que paradoxalmente coloca a vida em risco.
Ela não produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre
no interior do campo onde nossos modos de intuição e categorização desabam.
Neste sentido, a função do discurso filosófico não consiste em fornecer um saber
prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direção àquilo que
Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de
funcionamento do discurso no qual disposições contrárias acabam por conviver.
Este riso talvez não seja exatamente o riso da ironia, com sua afirmação de
existir sempre algo para além da enunciação e no interior do qual o sujeito do
enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que
não é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angústia alegre ”. Um tipo de afeto
para o qual talvez não estejamos acostumados, pois é angústia que sabe que o
que lhe angustia guarda algo de profundamente necessário:

A angústia alegre, a alegria angustiada me dá, em um quente-frio o


“dilaceramento absoluto” no qual é minha alegria que termina de me
dilacerar, mas no qual o abatimento seguiria à alegria se eu não fosse
dilacerado até o fim, sem medida94.

94
BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 6

Na aula de hoje, começaremos o nosso módulo sobre o primeiro volume de


História da sexualidade, de Michel Foucault. Foucault era um leitor contumaz de
Georges Bataille, a quem dedicou um texto escrito para figurar como introdução
às Obras Completas do filósofo. Ao falar sobre suas influências, ele chegará
mesmo a dizer:

Durante um longo período, tive em mim uma espécie de conflito mal


resolvido entre a paixão por Blanchot, Bataille e, por outro lado, o
interesse que eu alimentava por certos estudos positivos como os de
Dumézil e de Lévi-Strauss, por exemplo. Mas, no fundo, estas duas
orientações, cujo único denominador comum era talvez constituído pelo
problema religioso, contribuíram de maneira igual a me conduzir ao
problema do desaparecimento do sujeito95.

De fato, vimos como Bataille servia-se do “problema religioso” para pensar a


natureza de experiências capazes de nos colocar para além dos limites da
individualidade moderna. Problema que animava sua maneira de pensar a
natureza essencialmente transgressiva do erotismo com sua suspensão da lógica
utilitarista própria às sociedades do trabalho. Lógica baseada na quantificação
das atividades, na mensuração dos esforços, no cálculo dos prazeres e na
elevação do princípio de auto-preservação do indivíduo à fundamento de toda e
qualquer ação que se queira racional. Vimos ainda como, através do erotismo,
Bataille vinculava sexo e acontecimento. No nosso contexto, isto significava
pensar sexo como uma experiência capaz de nos levar a um gozo que parecia
realizar as expectativas disruptivas do modernismo estético, modificar a
percepção do tempo, da identidade e da diferença. Principalmente, o erotismo
era a atividade de um sujeito que só poderia aparecer à condição do
desaparecimento do indivíduo moderno, um sujeito soberano.
Foucault, à sua maneira, também acredita que só podemos pensar de
forma adequada em sexo se o compreendermos como espaço de produção de
acontecimentos. No entanto, o acontecimento pensado por Foucault é de outra
ordem. Ele não está ligado exatamente a emancipação, tal como Bataille pensava,
mas a uma forma de sujeição. Sexo é um acontecimento a ser pensado pela
filosofia na medida em que explicita uma nova forma de poder que
paulatinamente ganhou hegemonia no interior das formas de vida no Ocidente.
Esta forma de pensar sexo a partir da maneira com que o poder funciona e nos
assujeita, ou seja, nos submete e nos transforma em sujeitos, evidenciou-se a
partir do momento em que sexo foi pensado sob a forma da “sexualidade”.
Notemos a diferença entre dois termos até agora utilizados para falar de
sexo. “Erotismo” significava uma prática que parecia implicar o cultivo de um
desejo que circula entre os corpos, estabelecendo formas intersubjetivas de
relação, de se dar a ver e de procurar ver. Já “sexualidade” é, principalmente, a

95
FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 642
qualidade que cada individuo. Posso dizer: “tenho a minha sexualidade”, como
quem tem um modo de ser que pretensamente expressa sua individualidade,
mas dificilmente direi (a não ser que por licença poética): “tenho o meu
erotismo”. Ao centrar suas reflexões sobre o aparecimento da “sexualidade”,
Foucault queria mostrar como um certo regime de organização, de classificação e
de descrição da vida sexual foi fundamental para a constituição dos indivíduos
modernos. Não por outra razão, “sexualidade” é aquilo produzido por um
discurso de aspirações científicas, seja vindo normalmente da psiquiatria, da
psicologia ou da medicina. Se Bataille centrava suas análise na descrição de uma
experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
A este respeito, a questão de Foucault consiste em se perguntar: como
algo desta natureza ocorreu e, principalmente, o que isto realmente significa?
Ter uma sexualidade seria expressão de uma liberação do meu corpo em relação
às pretensas amarras repressivas do poder? A sociedade ocidental teria
assumido a importância da sexualidade na definição das individualidades a
partir do momento em que o poder teria perdido suas amarras repressivas? Ou,
na verdade, a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeição que
demonstraria como a natureza do poder não é exatamente repressiva, como se
estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos nos quais o poder
opera?
De fato, a segunda opção será aquela defendida por Foucault. Não por
outra razão, ele dirá: “Já faz bastante tempo que desconfio dessa noção de
‘repressão’”96. Uma desconfiança que, a seu ver, resulta de uma nova maneira de
compreender o poder e que estaria expressa claramente em afirmações como:

O poder se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos circulam,


mas estão sempre em posição de serem submetidos a esse poder e
também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do
poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder
transita pelos indivíduos, não se aplica a eles (...) O indivíduo é um efeito
do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu,
seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui97.

Mas como Foucault chegou a tal concepção de poder na qual os indivíduos


aparecem como seus intermediários e, principalmente, por que a sexualidade
apareceria como a expressão mais bem acabada de sua essência?

O poder disciplinar

Foucault parte de uma distinção maior en tre dois modelos de


funcionamento do poder : o poder soberano e o poder disciplinar, poder este

96
FOUCAULT, Michel; Em defesa da sociedade, p. 25
97
Idem, p. 35
que, por sua vez, estaria interligado, por uma série de relações, à biopolítica e aos
dispositivos próprios a uma política fundamentalmente ligada à noção de
“segurança”.
O poder soberano, segundo Foucault, teria seu paradigma na figura da
encarnação monárquica da legitimidade, com sua fundamentação do exercício da
lei na vontade do soberano. Derivado da figura romana da patria potestas, ele
sempre foi o poder de decidir sobre a vida e a morte daqueles que a ele se
submetem, mesmo que este direito esteja, em várias situações, condicionado
pelos casos onde está em questão a defesa do soberano. Lembremos, por
exemplo, da maneira que Foucault analisa o sentido do crime no interior do
modelo de funcionamento do poder soberano:

O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ele lhe ataca
pessoalmente porque a lei vale como a vontade do soberano; ele lhe ataca
fisicamente porque a força da lei é a força do príncipe (...) O direito de
punir será pois como um aspecto do direito que o soberano detém de
fazer a guerra contra seus inimigos (...) o suplício [sempre ligado à pena]
tem pois uma função jurídico-política. Trata-se de um cerimonial para
reconstituir a soberania ferida momentaneamente (...) Seu objetivo é
menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor, até seu ponto
extremo, a dessimetria entre o sujeito que ousou violar a lei e o soberano
onipotente que faz valer sua força98.

No entanto, contra este poder centralizado, vertical por ser


completamente assimétrico, subjetivado em seu pólo central na figura do
soberano e impessoal em sua base, a modernidade teria desenvolvido a
hegemonia de um outro poder. Um poder desprovido de centro e disseminado
por parecer vir de todos os lugares, operar em várias instâncias e níveis; um
poder horizontal. Por não ter centro, ele aparece como impessoal, como não
exercido em nome de alguém, um poder de estruturas que submetem todos sem
distinção, como os hospitais, as escolas, as prisões, as empresas. A fim de expor o
advento deste poder, Foucault chega mesmo a comentar a questão legal que
estava em jogo na cena a respeito do internamento de Jorge III, rei da Inglaterra
acometido de loucura a partir de 1810. Através desta situação, Foucault quer
ilustrar o processo de declínio do poder soberano, de sua submissão à estrutura
generalizadora de um poder responsável por gerir a vida através da
implimentação de disciplinas. Daí a afirmação de que: “Pode-se dizer que o velho
direito de fazer morrer ou de deixar viver foi substituído por um poder de fazer
viver ou de rejeitar à morte”99.
Este poder disciplinar tem duas características maiores. Primeiro: “o
poder disciplinar é certa modalidade, bem específica da nossa sociedade, do que
poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder”100. Foucault chega mesmo
a afirmar que todo poder é físico e que há uma ligação direta entre o corpo e o
poder político. O que não significa dizer que todo poder é fundado em práticas de
coerção física. Significa dizer, na verdade, que toda prática de poder visa a
internalização de modos determinados de controle corporal, de regulagem das

98
Idem, pp. 58-59
99
Idem, Histoire de la séxualité, p. 181
100
Idem, O poder psiquiátrico, p. 51
paixões e dos regimes do desejo. Se o corpo é elevado aqui a interface
fundamental de contato com o poder, é porque a gestão da vida passa
necessariamente pelo fortalecimento e condicionamento do corpo, sendo que
muito haverá a se dizer sobre o que pode significar “fortalecimento” neste
contexto (fortalecimento em relação ao que? À morte e à doença, física e mental?
Mas toda a reflexão clínica no século XX – na qual a obra do próprio Foucault
deve ser incluída - foi marcada pela idéia de as formas de fortalecimento são
indissociáveis do desenvolvimento de novas formas do adoecer).
Por outro lado, a segunda característica maior do poder disciplinar é sua
capacidade individualizadora. Foucault não cansa de repetir que: “o indivíduo,
parece-me, não é mais que o efeito do poder, na medida em que o poder é um
procedimento de individualização”101. Lembremos desta afirmação central:

O indivíduo é muito mais uma certa maneira de separar a multiplicidade,


para uma disciplina, do que o material primeiro a partir do qual nós a
construímos. A disciplina é um modo de individualização das
multiplicidades e não algo que, a partir de indivíduos trabalhados
inicialmente a título individual, construiria posteriormente alguma forma
de edifício com elementos múltiplos102.

Por um lado, é clara aqui a ressonância de temáticas nietzscheanas


ligadas ao caráter constitutivo da genealogia da moral e da proveniência de um
sujeito capaz de emitir julgamentos morais. Nos dois casos, temos a tematização
da força constitutiva do poder na produção de uma antropologia, de um sujeito
dotado de capacidade de hierarquização das vontades, de autonomia, de
capacidade de auto-controle, de unidade e identidade.
Por outro, Foucault tende a pensar que a submissão à vontade do
soberano não é constitutiva no sentido que a submissão aos dispositivos
disciplinares o é. Pois a submissão à vontade do soberano, é uma submissão que
incide de tempos em tempos, enquanto que o poder disciplinar é constante e
atuante em todos os níveis da formação (escola, hospital, prisão, empresa). Daí
porque Foucault pode afirmar: “O efeito maior do poder disciplinar é o que
poderíamos chamar de remanejamento em profundidade das relações entre a
singularidade somática, o sujeito e o indivíduo”103.
Este poder disciplinar será, a partir do século XVIII, complementado por
um conjunto de mecanismos que não se exercem diretamente sobre o corpo dos
indivíduos, mas sobre o controle e planejamento das populações. O advento dos
processos de controle e gestão de populações com seus mecanismos que vão do
reordenamento do espaço urbano, controle de epidemias, carência alimentar à
regulação do meio (millieu) no interior do qual a espécie humana vive (com suas
características físicas, climáticas e geográficas) permitirá o advento de uma nova
arte de governar, de um novo paradigma de “governamentalidade”, a saber,
aquele que Foucault chamará de “segurança” (contra o perigo da carência, da
sublevação, dos distúrbios sociais de várias formas). Estes mecanismos de
segurança terão assim, por função: “modificar algo no destino biológico da

101
idem, p. 21
102
Idem, Sécurité, territoire, population, p. 14
103
idem, p. 68
espécie”104. A noção mesma de população como objeto do poder implica que a
política trata da gestão de algo que se apresenta como dotado de uma certa
naturalidade. A este respeito, lembremos da definição foucauldiana de população
como: “uma multiplicidade de indivíduos que são e que existem apenas
profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no
interior da qual eles existem”. Esta materialidade fornece um meio capaz de
produzir acontecimentos que aparecerão como “naturais”, regulados apenas
indiretamente, como se fosse questão apenas de assegurar as condições de
possibilidade para que uma certa naturalidade da sociedade encontre seu solo
profícuo. Como se existisse uma: ‘naturalidade específica das relações dos
homens entre si, do que se passa espontaneamente quando eles cohabitam,
quando eles estão juntos, quando eles trocam, trabalham, produzem”105.
Desta forma, constitui-se uma organização do poder sobre a vida
composta por dois pólos de desenvolvimento profundamente interligados. O
primeiro, disciplinar, nos forneceria uma anatomo-política do corpo humano. Já o
segundo, composto por “controles reguladores”, forneceria uma bio-política da
população; ou seja, disciplinas do corpo e regulações da população. Esta junção
de anatomo-política e de bio-política é o que devemos entender por bio-poder.

A produção da sexualidade

Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que


regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relação a nós mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidad e.
Neste sentido, é inegável que a força do pensamento de Freud e da
psicanálise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsável
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?”106. As perguntas não poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua

104
Idem, p. 12
105
Idem, p. 357
106
BADIOU, Alain; O século, p. 112
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posição da psicanálise no interior da episteme moderna mudará.
Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são “contra-


ciências”; o que não quer dizer que elas são menos “racionais” ou
“objetivas” que as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente,
retirando-as de seu pedestal epistemológico, e que elas não cessam de
“desfazer” este homem que, nas ciências humanas, faz e desfaz sua
positividade107.

Agora, em História da sexualidade, a psicanálise aparecerá, mesmo sem


ser diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma
hipótese equivocada e de uma ilusão de liberdade descrita por Foucault da
seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibição, à inexistência e ao


mutismo [como a psicanálise nos faria acreditar que ele era antes de seu
aparecimento], o simples fato de falar dele e de falar de sua repressão tem
um ar de transgressão deliberada. Quem sustenta esta linguagem se
coloca, até um certo ponto, fora do poder; ele faz a lei tremer; ele antecipa,
mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta solenidade com
a qual hoje se fala do sexo108.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época:


“de um discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do
mundo, o anúncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão
ligados”109. Discurso este que aparece na linha direta da reflexão psicanalítica
sobre os modos de repressão da sexualidade. Esta será a hipótese a ser criticada
por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido sociedade que
mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu próprio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete liberar-se de leis que a
fazem funcionar110.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

107
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
108
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
109
Idem, p. 15
110
Idem, p. 16
O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções
discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrário, a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento111.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimórficas de poder”. Não se trata assim de negar a
repressão, mas de negar que sua temática possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um
processo de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem
sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao
contrário, a disseminação e a implantação de sexualidades polimórficas. A
vontade de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela
se animou a constituir uma ciência da sexualidade112.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na
História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro,
algo acontecerá e projeto será, em larga medida, abandonado. Na verdade, a
dimensão crítica do projeto dará lugar a uma reflexão de outra natureza.
Foucault tinha a idéia de escrever, logo em seguida ao primeiro volume, um livro
sobre A carne e o corpo, onde seria questão do modos de funcionamento da
pastoral cristã e de sua culpabilização da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos
(1976 a 1984). Durante estes oito anos, Foucault não escreve livro algum, logo
ele que, desde o lançamento de História da loucura, em 1961 publica um livro a
cada dois ou três anos. Este longo período sem publicar indica uma profunda
reformulação no projeto de Foucault. Hoje, temos mais clareza desta
reformulação graças à edição de seus curso no Collège de France. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado
“Subjetividade e verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em:
“estudar os jogos de verdade na relação de si a si e na constituição de si mesmo
como sujeito, tomando por domínio de referência e campo de investigação o que
poderíamos chamar de ‘história do homem de desejo’”113. Uma história que nos
abrirá para modos distintos de experiência de desejo e verdade.

A hipótese repressiva

111
Idem, p. 20
112
Idem, p. 21
113
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressão. Na verdade, o que vemos é uma “incitação institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”114.
Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelação e do exame minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunção tão particular ao ocidente moderno”, a
saber:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um


outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que, através da alma e do
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocação
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradição ascética e monástica. O século XVII fez dele uma regra para
todos115.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia


de que o que é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente
é, para Foucault, a verdadeira mola do poder. A pastoral católica fez com que
todo o desejo devesse passar pelo crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade,
seriam tributários deste projeto de fazer coincidir, em uma coincidência sem
falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da
espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres individuais se ela não tivesse
sido integrada, a partir do século XVIII, a um verdadeiro mecanismo de:
“incitação política, econômica, técnica” sobre o sexo. Não um mecanismo ligado
diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um discurso
que não é simplesmente aquele da tolerância ou da condenação, mas da gestão,
do fortalecimento da saúde pública:

O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o
sexo advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
então a esta palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
não o rigor de uma proibição, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos públicos e úteis116.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um


discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administração pública. Na verdade,
apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma
ciência que visa, por exemplo, gerir as populações já que, no coração do
problema político das populações encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era

114
Idem, p. 27
115
Idem, p. 29
116
Idem, p. 35
um país populoso, então algumas questões centrais de administração pública
serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito
do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituição pedagógica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrário, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma
codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva de seus
interlocutores:

É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condição para o
funcionamento de outros discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relações de poder117.

Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que


acompanha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e
de uma reflexão jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese repressiva”, a
verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica porque Foucault se vê obrigado
a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciável, a mais impaciente das sociedades é
provavelmente a nossa”118. Uma impaciência que produziu a multiplicação de
discursos que não se submetem mais a um princípio comum, como ainda era o
caso da pastoral católica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão
freqüente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, não seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um
“efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada teria a ver com a
liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a
produção de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos,
jurídicos e econômicos? Maneira de dizer que não há nada de natural no campo
da sexualidade, não há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que não se diz
enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, como Foucault se
transformou na referência fundamental para a tradição das chamadas “teorias de
gênero”: teorias que procuram expor como sexo é uma produção social e
discursiva que se naturaliza através de identidades de gênero.

117
Idem, p. 42
118
Idem, p. 46
A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de


um conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitação ao discurso,
visavam constituir uma normatividade social na relação do sujeito a seus corpos,
seus prazeres e ao outro, então como explicar este fenômeno, tão próprio ao
século XIX, de atenção exaustiva às perversões?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serão marcados por um
esforço de classificação e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos
por perversões (ou parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII
legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo em vista, basicamente, as infrações às
regras de aliança matrimonial. Por isto, não haveria partilha clara entre as
infrações a tais regras e os desvios em relação à genitalidade. Adultério e
sodomia, enganar sua mulher ou violar cadáveres, por exemplo, são fenômenos
colocados no mesmo plano.
Foi necessário um lento movimento para que tais desvios em relação à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsável por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio psíquico”
ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religião dará lugar
à gestão médica da saúde sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definição da norma e de definição das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produção
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente não quando
ele nos obriga à conformação à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversões, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiões corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsão” no interior do qual poder e prazer se articulam na mesma
enunciação. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele, pretensamente,
afasta.
Assim, as perversões não seriam a manifestação de uma polimorfia
originária que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reprodução. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna é
perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicação de sexualidades singulares, pela produção e fixação da
“disparidade sexual”. Por isto:

O crescimento das perversões não é um tema moralizador que teria


obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da
interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É
possível que o Ocidente não tenha sido capaz de inventar prazeres novos
e, sem dúvida, ele não descobriu vícios inéditos. Mas ele definiu novas
regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto petrificado das
perversões nele se desenhou119.

119
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 7

Na aula passada, iniciamos a leitura do primeiro volume de História da


sexualidade. Lembrei para vocês este projeto central na filosofia de Foucault
deveria ser compreendido à luz da questão referente à produtividade do poder,
ou seja, ao problema da maneira com que regimes de saber constituem práticas
disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a nós mesmos e aos
outros. Que este problema seja tematizado de maneira privilegiada quando
voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se
há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar franco sobre o que é
da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como
nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos
relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência
de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental
de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu reconhecimento como
sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma
sexualidade.
Lembrei ainda que a História da sexualidade podia ser vista, de uma certa
forma, como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. Como dirá Alain Badiou:
“De que Freud se sente responsável quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente
de ruptura no real do sexo, para além mesmo da transgressão de alguns tabus
morais ou religiosos? Tem a tremenda convicção de ter tocado no sexo, no
mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no verso?” 120. As perguntas
não poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo
regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar
que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos
relacionarmos ao desejo.
No entanto, vimos como Foucault participa, neste momento, de uma forte
desconfiança do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e
de sua maneira de fazer o sexual falar. Esta fala sobre o sexual estaria fundada na
temática da repressão. Temática que nos permitira dizer haver uma força de
ruptura vinda do desejo que não encontraria lugar nos modos de reprodução
social das sociedades capitalistas. Esta será a hipótese a ser criticada por
Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido sociedade que mais
falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu próprio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete de se liberar de leis que a
fazem funcionar121.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos

120
BADIOU, Alain; O século, p. 112
121
FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 16
de falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrário, a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento122.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimórficas de poder”. Não se trata assim de negar a
repressão, mas de negar que sua temática possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restrição foi submetida, ao contrário, a um
processo de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem
sobre o sexo não obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao
contrário, a disseminação e a implantação de sexualidades polimórficas. A
vontade de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela
se animou a constituir uma ciência da sexualidade123.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na
História da sexualidade. Na verdade, apenas o ocidente conhecerá esta idéia do
sexo como objeto de uma ciência. Uma ciência que visa, por exemplo, gerir as
populações já que, no coração do problema político das populações encontra-se
o sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, então algumas questões
centrais de administração pública serão: a análise da taxa de natalidade, a idade
do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relações sexuais, o efeito do celibato e das interdições, a
incidência de práticas contraceptivas, entre outros. Pela primeira vez, uma
sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com que
cada um faz sexo. Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia,
mutação que acompanha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma
economia e de uma reflexão jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese
repressiva”, a verdadeira mola produtiva do poder.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão
freqüente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, não seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um

122
Idem, p. 20
123
Idem, p. 21
“efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada teria a ver com a
liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a
produção de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos,
jurídicos e econômicos? Maneira de dizer que não há nada de natural no campo
da sexualidade, não há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que não se diz
enquanto tal.

Uma ciência da sexualidade

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo.


De um lado, as sociedades (e elas são numerosas: a China, o Japão, a índia,
Roma, as sociedades árabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars
erótica. Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, tomado
como prático e recolhido como experiência. Não é em relação a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, não é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa civilização, ao menos
sob um primeiro ponto de vista, não tem uma ars erótica. No entanto, ele é
a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter desenvolvido no
decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e
ao segredo magistral: trata-se da confissão124.

Esta distinção entre arte erótica e ciência da sexualidade é central para


Foucault. Ela nos remete claramente a Georges Bataille, haja vista a maneira
foucaultiana de lembrar que, na arte erótica, desconhecemos relação: “a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, não é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta”. Sabemos como esta crítica à lógica
utilitarista no campo do erotismo vem de Bataille, assim como a compreensão de
uma dinâmica de interdição e transgressão que não se baseia no respeito
absoluto a uma lei. Como dissera na aula passada, tudo se passa como se
Foucault procurasse desenvolver, através do conceito de “sexualidade” o tipo de
experiência sexual própria às sociedades dos indivíduos e seu regime de fala.
Se, como vimos na aula passada, a ciência da sexualidade baseava-se em
um modo de falar sobre o sexo que encontra suas raízes no sacramento da
confissão, nada disto será encontrado fora do ocidente. Foucault chega a dizer
que estamos diante de duas formas de relação entre sexo e verdade: uma que
privilegia a confissão (que Foucault define como modelo jurídico-religioso, ou
ainda, jurídico-discursivo de enunciação da verdade) e outra que seria uma
pedagogia da iniciação. Ou seja, o ocidente seria, entre outras coisas, uma
maneira peculiar de definir o sexual através da “expressão obrigatória e
exaustiva de um segredo individual”125. O que não poderia ser diferente já que,
para Foucault, a razão moderna ocidental é, antes de mais nada, uma forma
disciplinar de poder baseada em uma estilística disciplinar do fazer falar. “Diga-

124
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
125
Idem, p. 82
me como você fala e te direi como você se submete”. Por isto, Foucault se
pergunta: “Pode-se articular a produção da verdade segundo o velho modelo
jurídico-religioso da confissão e a extorsão da confidência segundo a regra do
discurso científico?”126. Na verdade, nossas sociedades não teriam feito outra
coisa. Foucault chega a descrever algumas características maiores da nossa
ciência da sexualidade que permitiram tal sobreposição.
Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento
de um conjunto de signos e sintomas decifráveis (questionário, interrogatório,
amanese, hipnose etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa,
como se o sexo fosse dotado de um poder causal inesgotável e polimórfico. “Não
há praticamente doença ou problema físico ao qual o século XIX não imaginou ao
menos uma parte de etiologia sexual”127. Terceiro, o princípio de latência
intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse naturalmente dotada de
uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissão uma tarefa
sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissão trouxesse
uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissão. Por
fim, a medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:

O domínio do sexo não será mais colocado sob os registros da falta e do


pecado, do excesso ou da transgressão, mas sob o regime do normal e do
patológico. Define-se pela primeira vez uma morbidade própria ao sexual,
o sexual aparece como um campo de alta fragilidade patológica128.

O que temos, ao final deste processo, não é apenas um modelo de


produção da relação entre sexualidade e verdade. Para Foucault, este é um setor
fundamental de uma “ciência do sujeito”, já que a causalidade do sujeito, o
inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito se encontrará desdobrada no
interior do discurso do sexo. De fato, depois da psicanálise, não há teoria do
sujeito sem que levemos em conta a clivagem que a experiência da sexualidade
nos impõe.
Mas voltemos à distinção entre ciência da sexualidade e arte erótica. Será
pelas vias da tematização desta arte erótica, em uma chave neste caso bastante
diferente da sugerida por Bataille, que os dois outros volumes da História da
sexualidade caminhará. Para Foucault, a função deste dois livros é clara: mostrar
como há uma produção de si que obedece a uma lógica distinta daquela em
operação nas práticas disciplinares e na submissão a um modelo jurídico de
relação a si que aparece claramente, por exemplo, nas discussões morais sobre
autonomia. Discussões que determinam meu modo de ser a partir do respeito a
normas universais, categóricas e incondicionais transcendentalmente
asseguradas. Como se esta estratégia transcendental fosse um modo de produção
de sujeitos.
A partir disto, Foucault organizará uma dicotomia entre o transcendental
como modelo jurídico de relação à si e o cuidado de si enquanto modo de relação
do sujeito à verdade, cuidado este que estará tematizado no terceiro volume da
História da sexualidade sob a forma da arte erótica greco-romana. O modelo
jurídico do transcendental está presente, por exemplo, nas temáticas da lei

126
Idem, p. 86
127
Idem, p. 88
128
Idem, p. 90
moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na temática
das condições normativas de possibilidade etc. Já o cuidado de si não teria parte
com tal modelo por ser composto por prescrições que não podem ser
compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.
No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma
forma de ajuste entre práticas sociais e “disposições naturais” singulares e que
constituem, para um sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto,
os termos deste ajuste nunca são completamente definidos por Foucault. Ele fala,
em vários momentos, de uma: “intensificação da relação à si através da qual
alguém se constitui como sujeito de seus atos”129, de uma forma “ ao mesmo
tempo particular e intensa de atenção ao corpo”130 ou ainda de “ soberania” do
indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificação” porque o problema está ligado à
força, à moderação e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade são,
para um homem, as duas formas maiores da imoralidade na prática dos
aphrodisia”131.
Nota-se que esta constituição soberana de si passa por um deslocamento
do si mesmo, da dimensão da autonomia individual à reconciliação com o corpo.
De toda forma, tal soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida
como uma transformação que não pode ser vista como resultado de
procedimentos disciplinares. Daí a definição de tal soberania como uma arte da
existência composta por:

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas


fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo132.

Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de
si mesmo, implica capacidade de constituição de si como sujeito moral, mas esta
moralidade não pode ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral
cujo assento deve ser pensado no ajustamento ao código. Na verdade, tal
soberania leva a uma moral orientada, não para o código, mas para o ético.
Assim, ao invés das interdições e fronteiras, a teríamos definições das
modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as
circunstâncias, posição pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa
“individualidade” é aqui necessária.

O dispositivo da sexualidade

No capítulo central de seu livro, Foucault se propõe a falar do “dispositivo


da sexualidade”. Esta noção é central e explica claramente o que Foucault
entende por sexualidade. A propósito da noção de “dispositivo”, ele dirá:

Ce qui j’essaie de réperer sous ce nom (...) c’est premièrment un ensemble


résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des

129
Histoire de la séxualité III, p. 57
130
Idem, p. 78
131
Histoire de la séxualité II, p. 65
132
Idem, p. 18
aménagements, d’architectures, des décisions réglementaires, des lois,
des mésures administratives, des énoncés scientifiques, des propos
philosophiques, morales, philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du
non dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le
réseau qu’on peut établir entre ces éléments133.

Nós vemos como Foucault se serve da noção de dispositivo para definir o


espaço da normatividade social, para além das imposições dos enunciados. Um
dispositivo é uma rede heterogênea de normas sociais. Nada estranho para
alguém, como Foucault, para quem a sexualidade é simplesmente uma
normatividade social, para quem não há normatividade vital alguma que deva
ser levada em conta na nossa compreensão da sexualidade. Neste sentido, o
conceito de dispositivo tem uma função maior: ela nos permite de pensar e
tematizar aquilo que muda, de uma época histórica a outra, no interior de nossa
experiência da sexualidade. Ele nos libera, por exemplo, de procurar alguma
forma de “instinto sexual” imutável, impulso natural que apareceria como uma
espécie de substância primeira a fundar uma normatividade vital no interior do
corpo.
No entanto, talvez a noção de dispositivo não nos permita pensar de
maneira adequada exatamente aquilo que teria a estranha força de permanecer
invariável no sexual, aquilo que, como dizia Lacan, tende a voltar sempre ao
mesmo lugar. Para Foucault, assumir algo desta natureza nos obrigaria a assumir
alguma forma de normatividade vital em operação na sexualidade, algo que,
como vimos, o filósofo francês deve recusar expressamente. Ele deve recusar a
idéia de que, talvez, aquilo que nomeamos “sexualidade” é uma estranha
articulação entre normatividade vital e normatividade social.
Mas se voltarmos à reflexão sobre o dispositivo da sexualidade, veremos
como Foucault insiste que sua análise continua fundada, de maneira equivocada,
nas temáticas próprias ao poder soberano. Por isto, ele precisa afirmar que nossa
representação do poder continua assombrada pela monarquia jurídica. Daí a
importância dada aos problemas do poder e da violência, da lei e da ilegalidade,
da vontade e da liberdade. No entanto, há séculos entramos: “em um tipo de
sociedade na qual o jurídico pode, cada vez menos, codificar o poder ou lhe
servir de sistema de representação”134. Daí a necessidade de uma analítica do
poder que não tome mais o direito por modelo, mas o dispositivo. Só assim
Foucault encontrará o campo para afirmar:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a


multiplicidade de relações de força que são imanentes ao domínio no qual
elas se exercem, e que são constitutivas de sua organização; o jogo que
pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem;
os apoios que tais relações de força encontram umas nas outras de
maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as defasagens, as
contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais
elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional

133
FOUCAULT, Michel; Le jeu de Michel Foucault
134
Histoire de la séxualité I, p. 118
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia
social135.

Esta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma
unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela não resulta de decisões e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fácil perceber
também que a noção mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâmicas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficácia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo múltiplo e móvel de relações de força no qual se produzem efeitos globais
de dominação, mas jamais totalmente estáveis”136.
Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem
particularmente denso para as relações de poder entre homens e mulheres,
entre jovens e velhos, pais e filhos, educadores e alunos, administradores e
população. Ela se desenvolve no momento em que o dispositivo de aliança, com
seus sistema de casamento e de transmissão, perde importância por servir mais
de suporte suficiente para os processos econômicos e as estruturas políticas. O
dispositivo de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de
sexualidade conheceria técnicas móveis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança
nunca será ultrapassado completamente, mas e le funcionará a partir de novas
dinâmicas. Daí a transformação da família em espaço de constituição da
sexualidade e de seus jogos. Transformação tão presente na psicanálise e suas
noções ligadas ao complexo de Édipo.
Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do
século XVIII se constituirão como eixos desta relação de poder no interior da
sexualidade: a) a histerização do corpo feminino, b) a pedagogização do sexo
infantil, c) a socialização das condutas de procriação e d) a psiquiatrização dos
prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de formas de produção da
sexualidade seja através da definição do feminino, da criança, da norma e do
desvio.

Weber e Foucault

Aqui, podemos sentir a peculiaridade da posição de Foucault. Por


exemplo, Max Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia
fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta,
lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma
ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista e
cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber encontrou
no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo
espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de
produção era um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos

135
Idem, p. 122
136
Idem, p. 135
bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua
riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’
devidamente a sua tarefa” (Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma
“sanção psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satisfeita através da
realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao
gozo. O que o leva a insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de
mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo
espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer
caráter eudemonista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade deste
processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica
eudemonista ou hedonista, pode nos indicar como toda socialização é normativa,
ela é normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação
pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da
ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade do capitalismo era
solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.
No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade desta “hipótese
repressiva”, sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História
da sexualidade, Foucault não deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e
consolidação da sociedade capitalista de produção. Ele insiste que as tecnologias
de si próprias ao mundo burguês moderno não podem ser compreendidas como
simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal
metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para
as operações do poder. Ao contrário, deveríamos: “abandonar o energitismo
difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razões
econômicas” (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender que a
modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da
sexualidade, implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto
mecanismos de incitação a modos de investimento libidinal reconhecidos
socialmente quanto figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se
funda apenas em operações de gestão coercitiva de padrões normativos de
conformação, mas, principalmente, na produção dos próprios modos de
resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas
vinculadas à opressão, isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter
criador de um poder que engendra, um bio-poder que incita modos de
investimento libidinal, assim como modos de conflito.
Tendo isto em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos
de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max
Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de
problematização da saúde e das suas condições de funcionamento” (2001, p.
162). Maneira de assegurar a longevidade e a não-corrupção da descendência.
Contra estas práticas disciplinares que constituem a sexualidade não se trataria
de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de
racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria
em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade,
cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade,
suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.
No entanto, há duas considerações a fazer a respeito desta perspectiva de
Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores
dificuldades em aceitar a temática de um bio-poder que engendra dispositivos de
sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito
dos modos de internalização da Lei através do supereu consiste exatamente em
mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em modo neurótico de
satisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste sentido, a
hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de
práticas disciplinares.
Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva á pressuposição de um
corpo libidinal “naturalizado”, isto no sentido de não ser totalmente redutível à
condição de efeito da ordem do discurso. Não há porque negar este ponto, assim
como não há porque negar sua importância em temáticas, como a adorniana, de
interversão da razão em procedimento de dominação da “natureza interna”.
Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes obrigado a
retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso, isto a
fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder137. Ou seja, melhor seria
mostrar como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”.

137
Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno
texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo
feliz da não-identidade” (Ver Butler, 1999).
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 8

Na aula passada, vimos algumas questões gerais a respeito da noção foucaultiana


de bio-política, bio-poder e de genealogia do poder. Vimos como tais noções
fundamentais podiam ser compreendidas como o resultado de um deslocamento.
Para Foucault, a crítica da razão moderna, objeto maior da arqueologia do saber,
é indissociável de uma crítica profunda àquela categoria que lhe serve de
fundamento, a saber, o conceito de sujeito. Podemos dizer que, no interior desta
crítica, encontramos em Foucault duas temáticas que se articulam
profundamente.
A primeira destas temáticas referia-se ao diagnóstico do esgotamento da
filosofia da consciência, com seu modelo de fundamentação das operações
cognitivas de categorização e constituição de objetos da experiência a partir da
estrutura formal de síntese, unidade e identidade inicialmente acessível através
da auto-afecção da consciência-de-si. Como se a cognição fosse, necessariamente,
indissociável da projeção da estrutura da consciência sobre o mundo dos objetos.
Mas a este esgotamento da filosofia da consciência, o pensamento francês
contemporâneo em geral, e Foucault em particular, procurou contrapor a
necessidade de uma reflexão demorada sobre o inconsciente. Pois este
esgotamento da filosofia da consciência foi feito, normalmente, graças à
insistência no caráter determinante, para a estruturação das formas do pensar,
de uma dimensão propriamente inconsciente. Daí esta maneira própria a
Foucault de procurar expor: “na dimensão própria do inconsciente, as normas,
regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de suas
formas e de suas condutas”138. Como se houvesse uma articulação profunda
entre inconsciente e transcendental.
A segunda temática que não cansará de retornar no interior da crítica do
sujeito no pensamento francês contemporâneo será a necessidade de impedir a
perpetuação de daquilo que um dia Foucault chamou de sono antropológico.
Deste sono antropológico só acordaríamos através daquilo foi sintetizado por
Michel Foucault através da temática da “morte do homem”. Mas um pouco como
o ser em Aristóteles, a morte do homem se diz de muitas maneiras. Gostaria de
me concentrar em apenas uma. Trata-se de discutir a maneira com que tudo se
passava como se uma certa figura antropológica do homem servisse de
fundamento silencioso para a configuração de formas de pensar que aspiram
validade incondicional e universal. Como se não houvesse reflexão sobre a
estruturação da forma do pensamento que não devesse seu direcionamento a
uma certa antropologia. Mas o que isto quer realmente dizer?
Sabemos o quanto Foucault insistiu que: “o homem é uma invenção cuja
arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente”139. Mas
devemos lembrar que, se o homem nasce juntamente com uma era histórica
determinada por um modo de pensar è porque ele é, fundamentalmente, uma

138
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
139
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 398
forma de pensar. Entendamos isto da seguinte forma: podemos começar
afirmando que o homem seria aquele que reduz sua realidade subjetiva à figura
ideal do Eu do sujeito maduro, que saiu das amarras da inconsistência da
infância, que não se deixou encantar pela alteridade da loucura com sua
alienação da vontade. Esta verdadeira redução egológica presente na
constituição da categoria de “homem” traz, no seu bojo, a entificação dos
atributos próprios ao Eu. Isto fica claro se aceitarmos que o Eu enquanto
princípio formal de unidade sintética pressupõe a elevação do princípio de
identidade e de não-contradição à condição de postulados que terão peso
ontológico. Enquanto sede da autonomia da vontade, o Eu pressupõe a crença em
estratégias de constituição transcendental de objetos da experiência. Enquanto
cerne de uma experiência ligada à analítica da finitude indicaria um modo
específico de limitação do campo da experiência e de distância em relação ao que
é apeiron, sem medida, radicalmente Outro ou, como dirá Foucault, “impensado”.
Estes procedimentos articulados conjuntamente produzem aquilo que um dia
Deleuze chamou de imagem do pensamento, maneira que o pensamento tem de
constituir objetos e processos que apenas reiterarão as regras gramaticais que
ele naturalmente aceita como pressuposto não questionável, que apenas
naturalizarão um senso comum140.
Coloquemos então uma hipótese. Se, por um lado, encontramos no projeto
foucauldiano de uma arqueologia do saber o reconhecimento da profunda
articulação entre a noção de inconsciente e a categoria do transcendental, peça
maior para a reflexão sobre o esgotamento da filosofia da consciência, veremos
também uma crença, várias vezes presentes, de que, até então, a reflexão sobre o
transcendental e suas formas teria sido contaminada pela sua dependência da
antropologia, por “uma confusão entre o empírico e o transcendental” através da
qual “a análise pré-crítica do que é o homem na sua essência advém a analítica
de tudo o que pode se dar em geral à experiência humana”141. Livrando o espaço
do que determina a validade de nossas formas de agir e de pensar (o
transcendental) de sua colonização por uma antropologia cuja gênese ainda não
estava totalmente clara para Foucault, não poderíamos, com isto, encontrar o
caminho para a reconstrução de um conceito positivo de razão?
Digamos que esta é a questão central de Foucault a partir dos anos
setenta. Sua reflexão sobre o poder está diretamente associada à maneira de
acordar deste sono antropológico. Pois, para Foucault, pensar sobre o poder é
necessariamente pensar sobre processos de constituição e de produção do que
nós nos tornamos, do modelo de homem que somos. Produção de tal ordem que
Foucault não temerá vê-la em operação no sujeito do conhecimento e no objeto a
conhecer, isto a ponto de afirmar que: “não há relação de poder sem constituição
correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua,
ao mesmo tempo, relações de poder”142. Este caráter produtivo do poder será o
grande tema do primeiro volume da História da sexualidade.

A produção da sexualidade

140
Sobre a noção de “imagem do pensamento” em Deleuze ver, sobretudo, DELEUZE, Gilles; Proust
et les signes, Paris: PUF, 2006, pp. 115-127
141
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 352
142
Idem, Surveiller et punir, p. 36
Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que
regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relação a nós mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidade.
Neste sentido, é inegável que a força do pensamento de Freud e da
psicanálise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsável
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?”143. As perguntas não poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posição da psicanálise no interior da episteme moderna mudará.
Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são “contra-


ciências”; o que não quer dizer que elas são menos “racionais” ou
“objetivas” que as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente,
retirando-as de seu pedestal epistemológico, e que elas não cessam de
“desfazer” este homem que, nas ciências humanas, faz e desfaz sua
positividade144.

Agora, em História da sexualidade, a psicanálise aparecerá, mesmo sem


ser diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma
hipótese equivocada e de uma ilusão de liberdade descrita por Foucault da
seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibição, à inexistência e ao


mutismo [como a psicanálise nos faria acreditar que ele era antes de seu
aparecimento], o simples fato de falar dele e de falar de sua repressão tem
um ar de transgressão deliberada. Quem sustenta esta linguagem se
coloca, até um certo ponto, fora do poder; ele faz a ler tremer; ele

143
BADIOU, Alain; O século, p. 112
144
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta
solenidade com a qual hoje se fala do sexo145.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época:


“de um discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do
mundo, o anúncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão
ligados”146. Discurso este que aparece na linha direta da reflexão psicanalítica
sobre os modos de repressão da sexualidade.
Mas, antes de continuar, sublinhemos a importância desta articulação com
a psicanálise. O recurso filosófico à psicanálise é uma constante no interior do
pensamento francês contemporâneo, isto ao menos desde a fenomenologia de
Sartre e de Merleau-Ponty. Basta lembrar a maneira com que Sartre, após uma
crítica conhecida à pretensa inconsistência da noção freudiana de um
inconsciente pensado principalmente a partir das operações de recalcamento,
termina O ser e o nada exatamente através da proposição de uma psicanálise
existencial. Podemos citar ainda a maneira com que Merleau-Ponty propõe, em
seu O visível e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma
psicanálise ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em
torno do estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma
noção de inconsciente estrutural fundamental para o psicanalista francês. Desta
conjunção entre antropologia e psicanálise, sairá um programa influente de
pesquisa que alcançará Foucault e Althusser. Por fim, um dado comum aos
autores maiores do dito pós-estruturalismo (Foucault, Deleuze, Derrida e
Lyotard) é exatamente o recurso constante a temáticas e problemas advindos da
experiência psicanalítica.
Mas se voltarmos à Foucault, devemos nos perguntar: quais são as causas
desta modificação brutal de perspectiva em relação à psicanálise? Uma resposta
possível concerne o impacto filosófico de maio de 68 e a influência de O anti-
Édipo, de Deleuze e Guattari. O anti-Édipo acabou conhecido com o livro que mais
claramente sustentou as aspirações libertárias globais que animaram a revolta
de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em larga medida pela recuperação de
uma crítica às instituições que se voltou necessiramente contra a maneira com
que a psicanálise seria dependente da inscrição do desejo no interior das regras
do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas normativas burguesas de
socialização que seriam os verdadeiros núcleos de reprodução do capitalismo
como forma de vida. Neste sentido, o título do livro já expõe seu projeto “O anti-
Édipo: capitalismo e esquizofrenia”. Ou seja, a crítica dos modos de socialização
do desejo e de constituição de individualidades baseados no complexo de Édipo
forneceria a chave interpretativa para esta relação decisiva de conjunção entre
“capitalismo” e “esquizofrenia”.
Focault, que chegará a escrever um prefácio para a versão em inglês de O
anti-Édipo, reconhece sua proximidade com tal empreitada, já que se trata (e
aqui ele fala de sua proximidade com o livro de Deleuze e Guattari) de “fazer
aparecer aquilo que, na história de nossa cultura, continuou até agora como o
mais escondido, o mais oculto, o mais profundamente investido: as relações de

145
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
146
Idem, p. 15
poder”147. A psicanálise será, a partir de então, inquirida tendo em vista a
produtividade de seu poder em conformidade com outros dispositivos
disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. Não só o complexo de Édipo
será objeto deste inquérito (como vemos no texto A verdade e as formas
jurídicas). Também a transferência, dispositivo central da clínica analítica, será
questionada a partir de sua proximidade com a confissão (ver O poder
psiquiátrico).
E é exatamente deste movimento que se tratará na História da
sexualidade, a saber, de mostrar como um modo de falar sobre o sexo, que
procura se passar por um saber, esconde as engrenagens de um certo poder
produtivo. Exposição que, como Foucault reconhece em O anti-Édipo, deverá dar
lugar a uma ética, a um modo de ser do desejo.
No entanto, há aqui uma grande diferença de Foucault em relação à
perspectiva de Deleuze e de Guattari. Um leitura de O anti-Édipo demonstra,
rapidamente, como a temática da repressão da sexualidade está a todo momento
presente. Há uma força de ruptura vinda do desejo que não encontra lugar nos
modos de reprodução social das sociedades capitalistas. Esta será a hipótese a
ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu próprio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete de liberar-se de leis que a
fazem funcionar148.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrário, a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento149.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimórficas de poder”Não se trata assim de negar a
repressão, mas de negar que sua temática possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constatação de que:

147
FOUCAULT, Dits et écrist I, p. 1422
148
Idem, p. 16
149
Idem, p. 20
Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de
submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um
processo de incitação crescente. As técnicas de poder se exercem sobre o
sexo não obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário,
a disseminação e a implantação de sexualidades polimórficas. A vontade
de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou
a constituir uma ciência da sexualidade150.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na
História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro,
algo acontecerá e projeto será, em larga medida, abandonado. Na verdade, a
dimensão crítica do projeto dará lugar a uma reflexão de outra natureza.
Foucault tinha a idéia de escrever, logo em seguida ao primeiro volume, um livro
sobre A carne e o corpo, onde seria questão do modos de funcionamento da
pastoral cristã e de sua culpabilização da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos
(1976 a 1984). Durante estes oito anos, Foucault não escreve livro algum, logo
ele que, desde o lançamento de História da loucura, em 1961 publica um livro a
cada dois ou três anos. Este longo período sem publicar indica uma profunda
reformulação no projeto de Foucault. Hoje, temos mais clareza desta
reformulação graças à edição de seus curso no Collège de France.. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado
“Subjetividade e verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em:
“estudar os jogos de verdade na relação de si a si e na constituição de si mesmo
como sujeito, tomando por domínio de referência e campo de investigação o que
poderíamos chamar de ‘história do homem de desejo’”151. Uma história que nos
abrirá para modos distintos de experiência de desejo e verdade.

A hipótese repressiva

No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressão. Na verdade, o que vemos é uma “incitação institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”152.
Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelação e do exame minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunção tão particular ao ocidente moderno”, a
saber:

150
Idem, p. 21
151
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
152
Idem, p. 27
A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um
outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que, através a alma e o
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocação
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradição ascética e monástica. O século XVII fez dele uma regra para
todos153.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia


de que o que é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente
é, para Foucault, a verdadeira mola do poder. A pastoral católica fez com que
todo o desejo devesse passar pelo crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade,
seriam tributários deste projeto de fazer coincidir, em uma coincidência sem
falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da
espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres individuais se ela não tivesse
sido integrada, a partir do século XVIII, a um verdadeiro mecanismo de:
“incitação política, econômica, técnica” sobre o sexo. Não um mecanismo ligado
diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um discurso
que não é simplesmente aquele da tolerância ou da condenação, mas da gestão,
do fortalecimento da saúde pública:

O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o
sexo advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
então a esta palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
não o rigor de uma proibição, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos públicos e úteis154.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um


discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administração pública. Na verdade,
apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma
ciência que visa, por exemplo, gerir as populações já que, no coração do
problema político das populações encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era
um país populoso, então algumas questões centrais de administração pública
serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito
do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituição pedagógica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrário, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma

153
Idem, p. 29
154
Idem, p. 35
codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva de seus
interlocutores:

É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condição para o
funcionamento de outros discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relações de poder155.

Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que


acompanha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e
de uma reflexão jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese repressiva”, a
verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica porque Foucault se vê obrigado
a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciável, a mais impaciente das sociedades é
provavelmente a nossa”156. Uma impaciência que produziu a multiplicação de
discursos que não se submetem mais a um princípio comum, como ainda era o
caso da pastoral católica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão
freqüente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, não seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um
“efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada teria a ver com a
liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a
produção de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos,
jurídicos e econômicos? Maneira de dizer que não há nada de natural no campo
da sexualidade, não há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que não se diz
enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, Foucault se
transformou na referência fundamental para a tradição das chamadas “teorias de
gênero”: teorias que procuram expor como sexo é uma produção social e
discursiva que procura se naturalizar através de identidades de gênero.

A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de


um conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitação ao discurso,
visavam constituir uma normatividade social na relação do sujeito a seus corpos,
seus prazeres e ao outro, então como explicar este fenômeno, tão próprio ao
século XIX, de atenção exaustiva às perversões?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serão marcados por um
esforço de classificação e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos
por perversões (ou parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII

155
Idem, p. 42
156
Idem, p. 46
legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo em vista, basicamente, as infrações às
regras de aliança matrimonial. Por isto, não haveria partilha clara entre as
infrações a tais regras e os desvios em relação à genitalidade. Adultério e
sodomia, enganar sua mulher ou violar cadáveres, por exemplo, são fenômenos
colocados no mesmo plano.
Foi necessário um lento movimento para que tais desvios em relação à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsável por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio
psíquico”ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religião
dará lugar à gestão médica da saúde sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definição da norma e de definição das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produção
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente não quando
ele nos obriga à conformação à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversões, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiões corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsão” no interior do qual poder e prazer se articulam no interior da
mesma enunciação. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele,
pretensamente, afasta.
Assim, as perversões não seriam a manifestação de uma polimorfia
originária que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reprodução. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Assim, quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna
é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicação de sexualidades singulares, pela produção e fixação da
“disparidade sexual”. Por isto:

O crescimento das perversões não é um tema moralizador que teria


obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da
interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É
possível que o Ocidente não tenha sido capaz de inventar prazeres novos
e, sem dúvida, ele não descobriu vícios inéditos. Mas ele definiu novas
regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto petrificado das
perversões nele se desenhou157.

157
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 9

Na aula de hoje, terminaremos o módulo dedicado à discussão do conceito de


sexualidade em Michel Foucault. Neste módulo, vimos como Foucault, à sua
maneira, acreditava só podermos pensar de forma adequada em sexo se o
compreendermos como espaço de produção de acontecimentos. No entanto, o
acontecimento pensado por Foucault não era da mesma ordem do que aquele
que vimos no módulo anterior dedicado a Bataille. Pois ele não está ligado
exatamente a emancipação em direção à constituição da soberania, tal como
Bataille pensava, mas a uma forma de sujeição. Sexo é um acontecimento a ser
pensado pela filosofia na medida em que explicita uma nova modalidade de
poder que paulatinamente ganhou hegemonia no interior das formas de vida no
Ocidente. Esta forma de pensar sexo a partir da maneira com que o poder
funciona e nos assujeita, ou seja, nos submete e nos transforma em sujeitos,
evidenciou-se a partir do momento em que sexo foi pensado sob a forma da
“sexualidade”.
Lembremos mais um vez como “sexualidade” é, principalmente, um termo
utilizado para designar uma qualidade individualizadora. Normalmente dizemos:
“tenho a minha sexualidade”, como quem tem um modo de ser que
pretensamente expressa uma individualidade a ser reconhecida. Ao centrar suas
reflexões sobre o aparecimento da “sexualidade”, Foucault aproveitava esta
qualidade individualizadora para mostrar como um certo regime de organização,
de classificação e de descrição da vida sexual sistematizado no interior do
discurso médico, ou seja, sistematizado a partir da distinção ontológica entre
normal e patológico, foi fundamental na constituição dos indivíduos modernos.
Se “sexualidade” é aquilo produzido por um discurso de aspirações científicas,
seja vindo normalmente da psiquiatria, da psicologia, seja vindo da medicina,
então sua normatividade será, entre outras coisas, fortemente regulada a partir
de padrões de mensuração e quantificação.
Por outro lado, vimos como Bataille centrava suas análise na descrição de
uma experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, a saber, o
erotismo. Veremos hoje como Foucault absorve, à sua maneira, tal temática do
erotismo. Mas é fato que, inicialmente, ele estará mais interessado em querer
mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e
de patologia.
A compreensão dessa experiência é importante para responder uma
questão propriamente política, a saber: ter uma sexualidade seria expressão de
uma liberação do meu corpo em relação às pretensas amarras repressivas do
poder? A sociedade ocidental teria assumido a importância da sexualidade na
definição das individualidades a partir do momento em que o poder teria
perdido suas amarras repressivas? Ou a sexualidade seria uma forma insidiosa
de sujeição que demonstraria como a natureza do poder não é exatamente
repressiva, como se estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia
libidinal primeira e selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos
nos quais o poder opera? Ou seja, ao dar importância decisiva a tais perguntas,
Foucault apenas era fiel a sua afirmação de que: “o que me interessa é muito
mais a moral do que a política ou, em todo caso, a política como uma ética”158.
Não a política como atividade que se submete a princípios morais gerais, mas a
política como ethos, como aquilo cujo campo real são as construções de modos
singulares de ser. Daí a importância de compreender o sentido do que está em
jogo na sexualidade.
Por sua vez, vimos como Foucault defendia que a sexualidade era um
modo de assujeitamento através de sua reflexão sobre as estruturas do poder
disciplinar. Foucault desenvolvia a hipótese do poder disciplinar para mostrar
como devíamos compreender o poder presente de maneira hegemônica nas
sociedades modernas. Diferente do poder soberano, hegemônico em sociedades
pré-modernas, o poder disciplinar tinha um conjunto de características próprias.
Primeiro, ele não era um poder que vinha de um centro no qual encontrávamos a
vontade do soberano. Antes, ele era desprovido de centro e disseminado por
parecer vir de todos os lugares, operar em várias instâncias e níveis; um poder
horizontal. Por não ter centro, ele apareceria como impessoal, como não exercido
em nome de alguém, mas em nome de “saberes” que fundamentam sua
legitimidade na força irresistível do que se coloca como discurso científico. Um
poder de estruturas que submetem todos sem distinção, como o poder que se
exerce nos hospitais, nas escolas, nas prisões, nas empresas, na burocracia
estatal.
Segundo ponto, este poder era individualizador. Através do seu exercício,
individualidades eram constituídas, o que nos levava a uma fórmula importante:
ser indivíduo é assujeitar-se a um conjunto de disciplinas que legislam sobre
meu modo de organizar o tempo, de hierarquizar meus desejos e vontade, de
regular minhas paixões, de proibir e desqualificar certos pensamentos, de
determinar minha identidade e interesses.
Tal poder disciplinar era composto de uma anatomo-política dos corpos e
de uma bio-política das populações, ou seja, ele visava regular os corpos e seus
regimes de desejos e afetos, assim como regular os fenômenos populacionais de
crescimento, de saúde social e de reprodução de costumes. Por isto, a
sexualidade podia aparecer como um dispositivo central do poder disciplinar, já
que dizia respeito tanto à experiência dos corpos quanto a questões de gestão
populacional (como aquelas questões ligadas a análise da taxa de natalidade, a
idade do casamento, aos nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relações sexuais, ao efeito do celibato e das interdições, a
incidência de práticas contraceptivas). Neste sentido, a reflexão filosófica sobre a
sexualidade expunha a maneira com que um determinado regime de poder teria
produzido um acontecimento maior, a saber, a transformação disciplinar da vida.
Foucault procurou mostrar como essa transformação disciplinar da vida
foi o resultado da sobreposição de vários discursos, como o discurso científico, o
jurídico-moral e o religioso. A este respeito, vimos como Foucault era sensível à
maneira com que os saberes científicos que fundamentam práticas disciplinares
nos levavam a “falar de sexo”. A fala ouvida pelas ciências da sexualidade não era
apenas quantificadora, ela também era exaustiva. Este era seu ponto central: a
ciência da sexualidade produzida no ocidente nos levou a falar de sexo de forma
tal a procurar, através desta fala, a linha de partilha entre o normal e o

158
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1405
patológico, a exaurir tal fala no interior de um sistema classificatório capaz de
escutar cada fantasia, capaz de incitar confissões e, com isto, a nos levar a nos
inscrever no interior de uma gramática, escolher histórias possíveis, controlando
assim toda produção possível de identidades.
Mas era importante a Foucault salientar como essa fala produzida pelo
discurso científico tinha uma genealogia. A genealogia da ciência da sexualidade
nos levaria diretamente à confissão cristã, pois: “é nas culturas cristãs que a
sexualidade teria, pela primeira vez, sido ligada à uma codificação abstrusa das
pulsões internas cujo deciframento exigiria toda uma “hermenêutica de si”. A
contribuição essencial do cristianismo não residiria em uma codificação dos atos
interditos e autorizados, mas no tipo de experiência de si que cada um é suposto
conhecer enquanto ser erótico”159. Nesta experiência de si que cada um é
suposto conhecer como ser erótico, habitaria o verdadeiro cerne da
normatividade moral nascida na confissão. Pois confessar não é apenas
submeter-se àquele que me escuta, vincular-me e instituir um poder àquele que
acolhe minha fala. Confessar é constituir uma forma de verdade nascida da
submissão de si à codificação exaustiva de seus atos, pensamentos, fantasias,
afetos. Pois só há confissão se eu confessar tudo, transformar cada dobra da alma
em discurso, exaurir o si mesmo no interior da fala. Admitir a centralidade da
confissão é admitir que tudo é feito para ser falado e descrito discursivamente
em uma fala que não procura a criação poética de si, mas a exaustão de si em
uma linguagem que acumula os acontecimentos, que os submete ao mesmo
regime discursivo desafetado. Pois uma confissão que seria fala do gozo não
seria uma confissão. Ela seria simplesmente gozo. Uma confissão precisa
submeter a linguagem à escrita da culpa. Ela precisa ter a natureza jurídica do
tribunal que ouve o culpado a fim de encontrar a verdade. Assim, é através da
imposição de um regime de fala, mais do que através do obrigação diante de um
conjunto de regras de conduta, que constituímos sujeitos morais. E se assim for,
então não seria possível dissociar ciência e moral, ciência como uma forma de
intervir socialmente a fim de, através da imposição de um modo de falar a
verdade, constituir sujeitos morais.
Por isto, se Foucault se voltava contra a “hipótese repressiva”, que vincula
a força política da sexualidade à revolta contra a repressão à pretensa
naturalidade de nossa “energia libidinal”, era por perceber como nenhuma
sociedade falou tanto de sexo quanto a nossa. Mais do que sociedades
repressivas, as nossas foram sociedades marcadas por uma peculiar incitação à
constituição do sexo como discurso. Pois nesta vontade de falar, ou antes, nesta
vontade de saber tudo sobre sexo, encontrávamos a incitação a acreditar que
falar sobre sexo seria a condição para nossa liberação e emancipação. Nada mais
falso, dirá Foucault.
Mas ficamos aqui com uma questão maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar
que sentimos no interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos
tornamos? De onde vem o mal-estar com este regime de fala que constitui nossa
sexualidade, assim como a esperança de outra forma de relação entre discurso,
verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao desvelamento desses:
“momentos nos quais nossas identificações parecem de uma contingência e de

159
RAJCHMAN, John; Érotique de la vérité, p. 116
uma violência das quais não tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais não se
trata mais de nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direção a
uma identidade nova e improvável”160. Ou seja, se há crítica social, para
Foucault, é porque nossas identidades aparecem, em certos momentos, como
dotadas de uma violência da qual não tínhamos consciência. Mas por que elas
aparecem assim?
Como não podemos fazer apelo a algum substrato natural que resistiria à
sua codificação integral pela administração dos corpos e regulação das
populações (saída feita, por exemplo, por Deleuze ao falar de um corpo sem
órgãos, por Freud ao falar de um corpo pulsional, por Bataille ao trazer a biologia
para fundamentar sua teoria do dispêndio e da parte maldita, entre tantos
outros), como Foucault também não quer apelar a uma fundamentação
ontológica para o mal-estar que sentimos na vida social presente (fazendo, por
exemplo, uma ontologia do ser em chave heideggeriana), então só podemos
encontrar o fundamento da crítica social na história. Nem ontologia, nem
reflexão sobre a natureza, mas o recurso a uma dimensão materialista
propriamente histórica.
Aqui, a estratégia se complexifica. Pois, para tanto, faz-se necessário ser
possível mostrar como podemos ter acesso a experiências históricas outras do
que as nossas. Ter acesso não apenas no sentido de saber de sua existência,
desvelar a prova documental da ocorrência, mas de compreender seu sentido e
permitir que a partilha deste sentido tenha a força transformadora capaz de
reconfigurar nossas experiências presentes. Foucault não aceita uma orientação
teleológica e finalista para sua reflexão histórica, como se estivéssemos no
interior de uma marcha do progresso em direção a um telos. Por isto, ele precisa
explicar como poderíamos recorrer à história para reorientar o presente. Neste
sentido, não basta saber que outras épocas produziram outros modos de relação
a si através do desejo, não basta construir aquilo que Foucault chamou um dia de
“história do homem do desejo”. Maneira de falar de uma história das técnicas de
si, técnicas através das quais, através de formas de auto-governo e de cuidado de
si, nos transformamos em sujeitos reconhecidos.
Se esta história quer servir de fundamento para a crítica do presente,
Foucault precisa mostrar como seu sentido nos é acessível, como o uso dos
prazeres que determina a especificidade de momentos perdidos dessa história
encontra lugar como potencialidade latente do presente. Seguindo uma
estratégia que não deixa de nos remeter a Bataille, Foucault distinguirá a
sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas. No
entanto, tal erotismo encontrará seu paradigma nas modalidades de usos dos
prazeres nas sociedades grega e romana. Mas para transformar tal erotismo em
fundamento para a crítica da estrutura disciplinar da sexualidade dos modernos
é necessário que algo de sua lógica esteja, de uma maneira ou de outra, presente
entre nós.

Baudelaire e os gregos

160
RACHJMAN, John; op. cit., p. 22
Em outras ocasiões, eu dissera a vocês que o conceito foucaultiano de “era
histórica” baseava-se no primado de epistemes que definiam o padrão geral de
racionalidade dos discursos científicos de uma época. Assim, por exemplo, a
modernidade baseava-se no primado de uma episteme específica caracterizada,
entre outras coisas, pelo pensar representativo e pela duplicação empírico-
transcendental do sujeito, pela constituição de um conjunto de saberes que
tomam o que condiciona o homem (na dimensão do trabalho, do desejo e da
linguagem) como objeto da ciência. Não há época que não seja polarizada pela
tensão entre discursos que se submetem à episteme hegemônica e aqueles que a
ela não se submetem. Esta é apenas a aplicação de uma ideia importante de
Foucault a respeito do fenômeno do poder, a saber:

Se não houvesse resistência, não haveria relações de poder. Pois tudo


seria simplesmente uma questão de obediência. Desde o momento em
que o indivíduo está em situação de não fazer o que ele quer, ele deve
utilizar relações de poder. A resistência vem pois em primeiro, e ela
permanece superior a todas as forças do processo, ela obriga, sob seu
efeito, à mudança nas relações de força. Considero pois o termo
“resistência” como a palavra mais importante, a palavra-chave dessa
dinâmica161.

Esta resistência que aparece no nível individual, aparece também no nível


estrutural da circulação e produção de discursos. Por isto, insisti com vocês que a
episteme moderna fora sempre acompanhada de uma espécie de contra-
episteme, um contra discurso no interior do qual se aloja aquilo que terá força
crítica em relação a estrutura de saberes e experiências do presente. No caso da
modernidade, tal contra episteme seria representada pela literatura. Neste
sentido, a literatura aparece como a latência de possibilidades de pensamento e
forma de vida que não encontram lugar no interior dos regimes de saberes e
poderes próprios à nossa época.
Desta forma, para a estratégia historicista de Foucault funcionar, é
necessário que experiências históricas identificadas como portadoras de força
crítica em relação ao presente estejam, à sua maneira, ainda em estado de
reverberação no interior do paradigma literário modernista. Pois se a literatura é
a contra episteme fundamental da era moderna, então toda experiência crítica da
modernidade deverá, à sua maneira, encontrar seu modelo nas produções
literárias. E isto Foucault fará através de uma reflexão sobre o conceito
baudeleriano de “modernidade”.
Baudelaire procurou definir a modernidade como experiência estética
que levava ao extremo a quebra da regularidade das formas e da hierarquia
valorativa das figuras poéticas. Seu recurso temático ao que era baixo, mal,
deteriorado, prosaico, pode ser compreendido como início da estratégia
modernista de ir em direção ao que foi excluído e recalcado devido ao advento
da universalidade das regras canônicas de estilo. Ele vai em direção ao que era
desprovido de estilo, da mesma forma como décadas mais tarde os
expressionistas abandonarão toda expressão subjetiva codificada em regras de
estilo. No entanto, seu uso profundo da ironia faz desse recurso uma estilização

161
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits, p. 1560
pensada, expressão de uma violência controlada que permite ao poema
conservar a dimensão da aparência, sem com isto abandonar sua singularidade.
Esta experiência estética de Baudelaire não é, no entanto, restrita apenas
à dimensão do poema. O que de fato interessa a Foucault é a maneira com que
Baudelaire vincula tal experiência a uma certa estilização de si, a definição dos
regimes de uma forma possível de vida. Por isto, o que realmente lhe interessa
são as defesas baudelerianas do dandismo, que o filósofo francês compreende
como uma forma possível de desdobramento das expectativas modernas de
autonomia, mas que não passa pela compreensão da autonomia a partir da
internalização da forma jurídica da lei pela consciência moral. O dandismo
permite compreender a vida como um trabalho singular sobre si a partir das leis
de uma estética. Um ascetismo (no sentido de ascese que nos submete a uma
prova) que faz do corpo, do comportamento, dos sentimentos e paixões uma
obra de arte. Daí porque:

O homem moderno não é aquele que parte a descoberta de si mesmo, de


seus segredos e de sua verdade escondida; ele é esse que procura
inventar-se a si mesmo. Essa modernidade não libera o homem em seu
ser próprio; ela o restringe à tarefa de elaborar a si162.

Neste ponto, a modernidade não aparece como tempo de um sujeito que


só pode relacionar-se a si através de uma verdade interior a ser extraída por uma
vontade de saber que se aloja no interior de discursos científicos que
posteriormente prescreverão práticas disciplinares. Vontade de descoberta, de
revelação de segredos e de verdades escondidas. Nas mãos da experiência
disruptiva da vanguarda literária, ela aparece como trabalho consciente de
elaboração de si através da sensibilidade estilística própria a uma estética da
existência. Algo muito diferente da compreensão da moral moderna como a
submissão de si à forma geral da lei como condição para a fundamentação da
autonomia.
Tal questão é de suma importância para Foucault, principalmente se
levarmos em conta afirmações como: “Não há outro ponto, primeiro e último, de
resistência ao poder político do que a relação de si a si”163. Ou seja, a invenção de
novas formas de relação de si a si é a condição para toda resistência ao poder
político. Neste sentido, o passo inusitado de Foucault consistirá em dizer que a
experiência da modernidade estética foi capaz de produzir uma forma de relação
de si a si, forma de estilização da existência capaz de reverberar uma experiência
histórica que lhe é aparentemente estranha, a saber, a estética da existência dos
gregos. Do ponto de vista estratégico, há uma peculiar linha de continuidade
entre modernidade literária e moralidade greco-romana.
Ou seja, faltava a Foucault um paradigma capaz de expor como absorver
as experiências disruptivas do modernismo em um quadro mais amplo de
reorientação de processos de racionalização social. Por mais inusitado que isto
possa parecer, tal paradigma será sintetizado através deste retorno aos gregos.
Assim, quando Foucault recorre novamente a Baudelaire em O que é o
esclarecimento? , isto a fim de demonstrar como a saída da minoridade própria

162
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1390
163
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
ao projeto moderno era indissociável de uma reconstrução de si, crítica
permanente de nosso ser histórico que nos permitiria afirmar: “Ser moderno não
é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo de momentos que passam, é tomar si
mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura”164, vemos o último laço
de uma alta-costura entre estética da existência dos gregos e vanguarda
modernista.
Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade
história da experiência grega referente a relação dos sujeitos aos prazeres. Trata-
se de:

uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado à sua
conformidade a um código de comportamento, nem à um trabalho de
purificação, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos165.

Ou seja, os gregos desconhecem a determinação das condutas através de códigos


gerais que definem a norma dos atos, descrevendo exaustivamente o proibido e o
permitido, como se toda a criação no campo dos prazeres estivesse esgotada e
normatizada. Por isto, ao invés de interdições e tabus, a moral dos gregos se
preocupa com as intensidades e com a maneira de definir os melhores
momentos, circunstâncias, idades para o uso dos prazeres. Mesmo as práticas de
abstinência não são justificadas a partir da desqualificação dos prazeres, mas
como um exercício, uma prática de fortalecimento de si.
O que há de estético nesta maneira de pensar o uso dos prazeres é o tratar
a vida como uma obra que se submete não apenas a valores estéticos, como
“harmonia”, “equilíbrio” e “simetria”, mas também e principalmente a critérios
estéticos de produção, como a idéia de que a ação não é expressão imediata de si,
mas relação agonística e singular com materiais (impulsos, inclinações) que
devem ser dominados, devem ser conformados sem serem totalmente negados.
Esta idéia da singularidade dos modos de relação a impulsos e inclinações é o que
aproxima tais práticas de uma estilística individualizadora ligada ao cálculo do
momento, da situação, do contexto e a afastam da normatividade do direito. É
neste ponto que Foucault pode agir como quem aproxima moralidade greco-
romana e estilística de si presente no dandi moderno.
Tal estética greco-romana de si nos explica porque a virtude principal no
uso dos prazeres é a temperança. A imoralidade nos prazeres do sexo não é
ligada a objetos proibidos ou a práticas sexuais impossíveis. Ela é sempre da
ordem do exagero, do excesso e da passividade. Pois a atividade sexual: “porta
em si uma força, uma energeia que é, por ela mesma, dirigida ao excesso (...) a
questão moral consistirá em saber como afrontar tal força, como dominá-la
assegurando uma economia conveniente”166. O sexo é o mais violento de todos
os prazeres, mais custoso do que a maioria das atividades físicas e sempre
referindo-se ao jogo da vida e da morte. No ato sexual, o sujeito pode ser levado
passivamente pelos mecanismos do corpo e pelos movimentos da alma. De onde
se segue a necessidade dele restabelecer seu domínio, exercendo sobre os

164
FOUCAULT. Michel ; Dits et écrits II, Paris : Gallimad, 2001, p. 1389
165 FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
166
Idem, p. 69
prazeres: “um domínio suficientemente completo para não se deixar nunca
levar-se pela violência”167 do desejo. Por isto, o sexo é o lugar privilegiado para a
formação ética do sujeito.
A insistência neste tópico é compreensível se lembrarmos como, para os
gregos, a liberdade estará profundamente associada ao domínio que os
indivíduos serão capazes de exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a
temperança aparece como modo de elaboração a si em direção à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construção
misógina clássica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, não é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relação aos prazeres” 168. Neste
sentido, a verdade na relação ao sexo não é uma questão de conhecimento, de
classificação exaustiva e de descrição minuciosa, mas de instauração do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada não
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”169.
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania. Ele é
designado por Foucault “soberania de si”. Tal soberania de si forneceria um
horizonte de regulação moral do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo
sem desejo e sem transtorno (trouble)”170. Soberania que nos livra do fantasma
do excesso, que permite o aparecimento da liberdade como regulação singular
dos corpos sem transtornos, que é intensificação do cuidado a si. A força política
deste processo se encontra em uma aposta nas possibilidade de singularização.
Ele nos permitira, por exemplo, abandonar o discurso da sexualidade, deixar de
ter uma sexualidade fortemente identitária regulada entre o normal e o
patológico, para praticar um erotismo sem identidades previamente definidas,
preocupado apenas em agenciar o jogo de forças que nos configura, retirando
sua violência. O que não poderia ser diferente para alguém, como Foucault, para
quem as relações de poder nunca foram exatamente o problemas, mas sim a
degradação do poder em formas de coerção.
Mas o que devemos entender por “soberania” neste contexto? Notemos
inicialmente como, expulsa da condição de qualidade de quem detém o poder do
Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade que pode ser exercida por
todo sujeito em emancipação. Tal soberania é pensada, inicialmente, como
capacidade de limitação dos mecanismos do biopoder e de abertura a um espaço
renovado de trabalho sobre si a partir da criação autônoma de novas normas
possíveis.
Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensão desse projeto. Pois tal espaço pede a
reconstrução de um conceito de indivíduo que, em vários pontos, recupera temas
da individualidade liberal. O quanto estaríamos diante de um conceito de
autonomia vinculado à individualidade liberal, eis uma questão que gostaria de
deixar em aberto.
Neste sentido, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histórico no qual sua ideia de soberania aparece. As

167
Idem, p. 93
168
Idem, p. 116
169
Idem, p. 29
170
Idem, p. 94
transformações políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensão individual:

No espaço político no qual a estrutura política da cidade e as leis às quais


ela se dotou certamente perderam sua importância, ainda que elas não
tenham desaparecido, e no qual os elementos decisivos estão cada vez
mais nas mãos dos homens, em suas decisões, na maneira com que eles
desempenha sua autoridade, na sabedoria que eles manifestam no jogo
de equilíbrios e transações, aparece que a arte de se governar advém um
fator político determinante171.

Ou seja, o colapso da noção de “poder comum” aparece enquanto


condição para a definição da soberania como governo de si. O que poderia
parecer como uma saída de compressão do laço social a partir de uma
perspectiva individualista. Dada a impossibilidade de um espaço comum geral,
resta-nos a estilização de dimensões relacionais restritas. Isto talvez nos
explique porque tal conceito de soberania é construído como resistência a toda e
qualquer forma de poder estatal. Pois o poder estatal é o melhor exemplo de um
“governo por individualização”. Daí uma afirmação como:

Não creio que devamos considerar o “Estado moderno” como uma


entidade que se desenvolveu a despeito dos indivíduos, ignorando quem
eles são e até suas existências, mas ao contrário como uma estrutura
muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados a uma
condição: que forneçamos a essa individualidade em forma nova que a
submetamos a um conjunto de mecanismos específicos172.

Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de


individualização, com formas e mecanismos específicos juridicamente
totalizados, não haveria outra tarefa política do que “nos liberar do Estado e do
tipo de individualização que a ele se vincula”173 a fim de promover novas formas
de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito relacional que permitiria a
todos os tipos possíveis de relação existirem e não serem impedidos, bloqueados
ou anulados por instituições relacionais empobrecedoras”174.
Tal criatividade é compreendida por Foucault a partir da temática do
redimensionamento do espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de
nossa identidade estatal, poderíamos nos abrir à construção contínua de novos
espaços de prazeres. A este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar não
exatamente à liberação de nossos desejos, mas a permitir que nós mesmos
sejamos infinitamente mais suscetíveis aos prazeres”175. No entanto, não fica
claro com lidaremos com os limites no reconhecimento de tais prazeres se o
dimensão da relação a um espaço comum geral institucionalmente garantido

171
FOUCAULT, Histoire de la séxualité III, p. 123
172
Idem, Dits et écrits II, p. 1049
173
Idem, p. 1051
174
Idem, p. 1129
175
Idem, Dits et écrits II, p. 984
entrou em colapso. Quem garantirá o reconhecimento de minha soberania de si
se não há mais remissão necessária a um espaço político geral?
Por outro lado, há ainda um problema com a ideia do sujeito dos
“prazeres”. Um sujeito capaz de trabalhar a si mesmo tendo em vista a produção
de prazeres sempre novos não seria a versão contemporânea do indivíduo que
sabe calcular conscientemente prazeres e se afastar dos desprazeres, extrair o
máximo de prazeres de si, como se ele fosse “proprietário de si mesmo”, potestas
sui, o que não está realmente longe da definição lockeana do indivíduo como
“proprietário de sua própria pessoa”? Esta relação de proprietário de si pode, de
fato, aparecer como uma forma de emancipação social ou ela seria uma forma
insidiosa de perpetuar as ilusões de um tipo inusitado de sujeito da consciência?
Pois seria interessante pensar esta recuperação foucaultiana dos prazeres à luz
da distinção lacaniana entre prazer e gozo. Não seria o soberano de si
foucaultiano alguém capaz de reduzir a dimensão radicalmente heterônima do
gozo a fim de instrumentalizá-la na forma de prazeres nos quais
conscientemente trabalho e disponho como um proprietário de mim mesmo no
melhor estilo liberal? Estas são algumas questões que gostaria de deixar para
vocês.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 10

Depois de um longo período de suspensão, podemos enfim terminar nosso curso


através da apresentação do pensamento da filósofa norte-americana Judith
Butler e de sua maneira de desenvolver as implicações políticas da reconstrução
do conceito de “gênero”. Nestas últimas aulas, gostaria de apresentar a vocês
alguns aspectos importantes de sua experiência intelectual ainda pouco
conhecida entre nós. Gostaria também de mostrar porque tal reconstrução do
conceito de gênero por ela proposta representa uma das operações mais
importantes da filosofia política contemporânea, seja por sua capacidade de
mobilizar debates intelectuais, seja por seu uso em contextos práticos de lutas
sociais.
Judith Butler é uma filósofa norte-americana ainda em atividade. Nascida
em 1956, ela ganhou espaço por permitir uma inflexão profunda dos debates
feministas em direção à crítica do uso político da noção de identidade social.
Assim, sai paulatinamente de cena visões essencialistas sobre a “condição
feminina” ou sobre a naturalidade ou não de comportamentos sexuais, isto em
prol da tentativa de desconstrução da própria noção de gênero. Butler serve-se
de uma articulação inusitada entre o chamado “pós-estruturalismo” francês (em
especial Foucault e Derrida), psicanálise e hegelianismo a fim de mostrar como a
experiência de ter um gênero pode não ser compreendida como de maneira
identitária.
De fato, o conceito de gênero ganhou importância decisiva nas últimas
décadas devido à maneira que ele nos permite compreender as relações entre
sexo, identidade e política. No entanto, nada disto estava presente quando o
conceito apareceu no campo clínico pela primeira vez, através das mãos do
psiquiatra Robert Stoller em um livro de 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele,
Stoller procurava descrever os processos de construção de identidades de
gênero através da articulação entre processos sociais, nomeação familiar e
questões biológicas. Tratava-se de insistir na dinâmica própria da formação das
identidades sexuais, para além de seu vínculo estrito à diferença anatômica de
sexo.
Neste sentido, o uso proposto por Judith Butler é particular.
Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um
conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria
da ação política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam
com normas, subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas
formas. Não se trata de entender apenas como sujeitos são sujeitados às normas
e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de
gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não
se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido”176, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmação como:

176
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao
ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos177.

Notem como tal colocação não está muito distante de afirmações que
vimos anteriormente presente nos textos de Georges Bataille. Lembremo-nos,
por exemplo, de afirmações como:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca


em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde
objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco178.

Tanto em Bataille quanto em Butler sexo aparece como o nome de um


evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que
desarticula as estruturas identitárias da primeira pessoa do singular. Isto porque
ele parece nos colocar em relação com aquilo que não se deixa determinar no
interior das normatividades que definem a figura atual do homem. Sexo como o
que nos empurra em direção a estas conformações ainda não reconhecidas do
desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de recuperação do que era
visto como patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, ou ainda,
como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificação da
sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de gênero foi um
acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria diante da
compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento de
alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano e,
muitas vezes, do abjeto.
O próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático deste embate. O
termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é “estranho”,
“excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada
como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com
comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final dos
anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no
interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo de
uma palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria
endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de
gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro
momento das lutar por reconhecimento não mais centradas na defesa de alguma
identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produção do
sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana
Teresa de Laurentis.

Começar pelo desejo em Hegel

177
Idem, p. 25
178
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 55
Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de
doutorado, Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua
recepção no pensamento francês contemporâneo (em especial, em Sartre, Lacan,
Foucault e Deleuze). No entanto, é com seu segundo livro, Problemas de gênero,
de 1990, que ela aparecerá como um teórica inovadora à procura de uma
compreensão da subjetividade e da experiência sexual não mais marcada pelo
problema da produção de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o
“gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o
espaço privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na
normatividade pretensamente fornecida pela natureza.
Depois de Problemas de gênero, Butler publica vários livros nos quais
procura aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua
maneira de pensar problemas de gênero, como o papel da materialidade dos
corpos, o impacto psíquico das normas sociais, a natureza da experiência moral,
entre outros. São exemplos deste movimento de seu pensamento livros como:
Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993), Excitable speechs: a politics
of the performative (1995), The psychic life of power: theories of subjection
(1995) e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between
life and death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemática a
respeito de questões política não diretamente relacionadas a lutas ligadas às
minorias sexuais, mas a problemas ligados à modalidades de exclusão e de
precarização da existência. São livros não ligados diretamente à questões de
gênero, mas a teoria política, como: Precarious life: the powers of mourning and
violence (2004), Giving an account of oneself (2005) e o último, sobre a questão
judaico-palestina: Parting ways: jewishness and the critique of zionism (2012).
O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta
trajetória, permitindo com isto uma compreensão mais articulada de sua
maneira peculiar de extrair consequências políticas das discussões sobre
identidade de gênero. Para tanto, precisamos voltar à sua tese de doutorado
sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas leva a sério
colocações da própria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos
permanecem no interior da órbita de um certo conjunto de questões hegelianas:
o que é a relação entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito
implica uma relação radical e constitutiva à alteridade?”179.
Butler começa por lembrar que há uma “visão filosófica” do desejo que
procura nos fazer acreditar que a reflexão sobre a vida desejante deveria nos
levar, necessariamente, a um paradigma de reconciliação no interior do qual
encontraríamos a integração psíquica entre razão e afetos. Esta reconciliação, no
entanto, não estaria presente em Hegel, pois em seu caso o desejo apareceria
exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado” 180 por
ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de
identidade e lugar”181. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma
fratura que faz do meu ser o espaço de um questionamento contínuo a respeito
do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um questionamento que faz
de meu ser um modo contínuo de interpelação ao outro, já que não há desejo

179
BUTLER, Judith; Subjects of desire, p. XX
180
Idem, p. 7
181
Idem, p. 9
sem que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem de si a
partir da internalização do olhar de um Outro elevado à condição de ideal. Todo
desejo pressupõe um campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve.
Pois todo desejo pressupõe destinatários, é desejo feito para um Outro e inscrito
em um campo que não é só meu, mas é também campo de um Outro. Assim,
perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir do desejo é partir necessariamente
do sujeito como um entidade relacional para a qual, como disse Butler, há “uma
relação radical e constitutiva à alteridade”.
Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretação que visa radicalizar a
experiência de negatividade própria a seu conceito de desejo. Para compreender
o que significa tal negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma
longa tradição que remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação
da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar
sobre o desejo, Hegel afirma:

O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria


unilateralidade – ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência
e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta
contradição por não ser um ser, mas uma atividade absoluta182.

A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto)
é uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um
ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que assimila o objeto
a si. Esta experiência da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a
especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta,
em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à necessidade do movimento;
assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar
(ertragen) a contradição de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por
um desejo que coloca a essência do sujeito no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:

O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo são


condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprimir
desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-
de-si não pode assim suprimir o objeto através de sua relação negativa
para com ele, pois essa relação antes reproduz o objeto, assim como o
desejo183.

A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é


apenas uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como

182
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427
183
Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124
se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de
auto-posição da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no
objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação.
Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque,
devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da consciência,
modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de
“negatividade” e que insiste que as determinações estão sempre em falta em
relação ao ser.
Desta forma, não haverá objeto natural algum capaz de realizar a
satisfação da negatividade própria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante
procura no Outro não algo como a reiteração de seu sistema de interesses e
necessidades. Ela procura no Outro o reconhecimento da natureza negativa e
indeterminada de seu próprio desejo. É tendo tal esquema em mente que Butler
poderá quebrar a natureza essencialista da noção de gênero (em suas versões
ontológicas, políticas ou metodológicas) defendida então por certas correntes
feministas.

A produtividade das normas

Três anos depois da publicação de sua tese, Butler apresente este que será
seu trabalho mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da
identidade. O livro apresentava uma discussão inovadora sobre a noção de
gênero servindo-se, em larga medida, de apropriações da teoria do poder de
Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da tentativa em dissociar sexo
e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-Strauss e Lacan)
como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal de
funcionamento da vida social, para ao final abrir certas considerações sobre as
potencialidades política de uma noção de gênero que subverta a identidade.
Maneira de mostrar como um política feminista não precisa adentrar na
reificação ilusória do gênero e da identidade.
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na
tentativa de fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades
sexuais não devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura
binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de tentar escapar da própria noção de
representação através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta
a possibilidade de realização de atos subjetivos capazes de fragilizar o caráter
reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as
interdições postas pelo sistema binário de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últimas
conseqüências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente)
e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de
fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até
porque gênero, segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”184. Esta suspeita profunda em relação à dimensão do pré-

184
BUTLER, Gender trouble, p. 11
discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma
naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de
produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
caráter ideológico da noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma
relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”185. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”186.
Voltemos por um momento à noção de sexualidade em Foucault, pois é ela
que opera na crítica de Butler à pressuposição mimética entre gênero e sexo.
Vimos como Foucault insistia que as relações de poder nunca poderiam ser
compreendidas como meramente opressivas. Elas são inicialmente produtivas,
ou seja, elas produzem os sujeitos nos quais o poder age. Mas para aceitar que há
uma natureza produtiva do poder, faz-se necessário também aceitar que nem
todas as formas de dominação são formas de opressão. Esta é um perspectiva
que Butler partilha com Foucault.
Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da
noção foucaultiana de poder:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a


multiplicidade de relações de força que são imanentes ao domínio no qual
elas se exercem, e que são constitutivas de sua organização; o jogo que
pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem;
os apoios que tais relações de força encontram umas nas outras de
maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as defasagens, as
contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais
elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia
social187.

Esta ideia de poder não toma como base as representações jurídicas do


poder soberano. Ela é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade,
mas porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela não resulta de decisões e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fácil perceber
também que a noção mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâmicas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficácia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo múltiplo e móvel de relações de força no qual se produzem efeitos globais
de dominação, mas jamais totalmente estáveis”188.

185
idem, p. 10
186
Idem, p. 22
187
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité I, p. 122
188
Idem, p. 135
Notem que esta resistência não precisa vir de fora das relações de poder
como, por exemplo, de um corpo insubmisso, de uma libido selvagem, de uma
sexualidade não-controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do
próprio poder, isto no sentido de vir da heterogeneidade dos jogos de força, com
suas direções múltiplas. Ou seja, quebrada a ideia de um poder que age de
maneira unitária e ordenada, mas que produz efeitos inesperados, situações não
completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o
poder age. De certa forma, ele age sobre suas próprias camadas.
Isto talvez explique porque gênero não deve ser compreendido como uma
identidade estável. Assegurar algo em sua significação não é resultado de um
gesto fundador, de uma espécie de batismo originário para todo o sempre. Antes,
trata-se de um processo continuo de repetições que, ao mesmo tempo, anula a si
mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas
regras. Sendo assim, assumir um gênero não é algo que, uma vez feito, estabiliza-
se. Ao contrário, estamos diante de uma inscrição que deve ser continuamente
repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de
produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que:
“A injunção de ser um gênero dado produz necessariamente fracassos, uma
variedade de configurações incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e
desafia a injunção que as gerou”189.

Repetir de forma paródica

Mas se significações são produzidas através da repetição, então um


repetição que não fosse simplesmente mimética poderia deslocar os efeitos do
poder. Neste ponto, encontramos a preocupação claramente política da teoria de
Butler. Sem fazer apelo a uma espécie de história subterrânea do cuidado de si,
tal como vimos em Foucault, história que conservou aspectos da relação a si que
nos remeteria aos gregos, Butler procura pensar modalidades de repetição das
normas que produzam tais efeitos de deslocamento. Em Problemas de gênero, é a
paródia que parece ter tal função.
O que nos interessa aqui é a anatomia desta crítica. Pois ela não deve levar
à naturalização de outras categorias identitárias, mas à posição de identidades
sexuais que sejam a própria encarnação da desestruturação da noção de
representação, identidades que seriam a apresentação da desestabilização das
identidades. Daí porque esta crítica das categorias identitárias seria
performativamente implantada através, por exemplo, de práticas paródicas de
gênero, como aquelas levadas a cabo por drag-queens e as práticas de cross-
dressing. Pois ao operar uma "dupla inversão" que consistiria em embaralhar as
distinções essência/aparência para afirmar, ao mesmo tempo: "minha aparência
exterior é feminina, mas minha essência interior (o corpo) é masculina" e "minha
aparência exterior é masculina (meu corpo), mas minha essência interior é
feminina", as drags fariam uma espécie de "crítica da reificação dos gêneros".
Butler poderá afirmar assim que elas revelariam: "estes aspectos da experiência
de gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção
regulatória da coerência heterossexual"190. Crítica paródica que, por inaugurar

189
BUTLER, Judith; Gender trouble, p. 185
190
idem, p. 175
um deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura a
processos de ressignificação capazes de se disseminarem na malha social.
Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença
ontológica entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada
aqui à condição de simulacro que desorienta a própria noção de identidade e
representação fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e não se adequar à
diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam postos pela Lei.
Assim, tudo se passa aqui como se:

Ao agir (performing) e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero


como performance, nós pudéssemos ser liberados de uma política
dogmática ou de uma política que aspira saber o real de maneira segura.
Não podemos escapar do sistema de identidade ou da ilusão de que há um
sujeito que fala. Mas podemos agir, repetir ou parodiar todos estes gestos
que criam um sujeito191.

De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao definir


performatividade como uma estrutura de citação e repetição contínua de
determinações normativas, de um conjunto a priori de práticas, Butler insiste
que a necessidade da repetição indica como o processo de determinação é
sempre frágil. Práticas de subversão seriam capazes de expor o estatuto reificado
do quadro heterossexual que sustenta práticas de gênero. No entanto, ela é a
primeira a reconhecer que: “não há garantia de que a exposição do caráter
naturalizado da heterosexualidade nos levará a subversão. A heterossexualidade
pode aumentar sua hegemonia através da desnaturalização, tal como vemos
paródias desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem colocá-
las realmente em questão”192. Isto nos deixa com a questão de saber como
diferenciar críticas à reificação que tenham força perlocucionária de outras que
não tem.
Em Problemas de gênero, Butler não abandona a crença na força
subversiva de uma citação teatral das normas, citação que mimetiza e toma de
maneira hiperbólica a convenção discursiva que ela subverte. No entanto, ela
desenvolve tal posição de maneira astuta ao afirmar que este ato seria capaz, na
verdade, de alegorizar uma perda própria a todo processo de incorporação da
norma e de regulação das paixões; perda que produz: “o campo dos objetos
heterosexuais ao mesmo tempo que produz um domínio destes a respeito dos
quais seria impossível amar [por não se submeterem ao processo de constituição
de objetos do amor heterosexual]. Assim, drag alegoriza a melancolia
heterossexual, melancolia através da qual um gênero masculino é formado
através da recusa em perder o masculino como possibilidade de amor, um
gênero feminino é formado (assumido) através da fantasia incorporativa através
da qual o feminino é excluído como possível objeto de amor”193. Desta forma, as
práticas críticas poderiam expor a fraqueza da normatividade heterossexual
através da alegorização de sua melancolia. Como se uma certa recuperação da
ironia melancólica tivesse a força de desarticular matrizes de socialização e

191
COLEBROOK, Irony, p. 125
192
BUTLER, Bodies that matter, New York; Routledge, 1993, p. 231
193
idem, p. 235
modos de indexação entre normas, modos de escolhas de objeto e determinações
identitárias. Veremos melhor est e ponto na próxima aula.
Aula 11
Erotismo, sexualidade e gênero

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussão a respeito


do conceito de gênero, assim como a respeito das consequências políticas do
pensamento de Judith Butler. Na aula passada, vimos como a teoria de gênero de
Butler não era exatamente uma teoria da produção de identidades sociais. Ela é
uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo
que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um
gênero é um “modo de ser despossuido”194, de abrir o desejo para aquilo que me
desfaz no outro. Daí uma afirmação como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos195.

Sexo como o que nos empurra em direção a estas conformações ainda não
reconhecidas do desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de
recuperação do que era visto como pato lógico, doentio e, por isto, sem direito à
existência, ou ainda, como inumano, pois sem identidade fixa e definida.
Lembremos como o próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático
deste embate. O termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é
“estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a
ser usada como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos
com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final
dos anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no
interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo de
uma palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria
endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de
gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro
momento das lutar por reconhecimento não mais centradas na defesa de alguma
identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produção do
sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana
Teresa de Laurentis.
A fim de insistir na ausência de vínculos entre gênero e identidade, Butler
procura levar às últimas conseqüências a distinção entre sexo (configuração
determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada).
No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre
natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler. “é o aparato
discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são

194
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
195
Idem, p. 25
produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma
superfície politicamente neutra na qual a cultura age”196. Esta suspeita profunda
em relação à dimensão do pré-discursivo, do anterior ao advento da lei, leva
Butler a recusar toda ideia de uma naturalidade reprimida pelo advento das
normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de
produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
caráter ideológico da noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma
relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”197. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”198.

O mito da identidade

No entanto, Butler precisa explicar como e porque é criada a ilusão de que a vida
social deve se orientar por identidades estáveis ou ainda, no caso da relação
entre sexo e gênero, como e porque ocorre a reificação de tomar por
normatividade natural aquilo que é produto de uma relação social de poder.
Neste sentido, ela dirá:

A auto-justificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma história sobre como era antes do advento da lei e
o que aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e
necessária199.

Temos então inicialmente a ideia de que há uma dimensão “repressiva” da


lei. Não sendo a lei uma operação da normatividade social sobre uma matéria
naturalmente dada (corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressão não
contra um princípio exterior ao poder. Ela age contra a própria dinâmica interna
do poder, com seus jogos de força continuamente cambiantes. Como se uma
configuração momentânea do poder se cristalizasse procurando se perpetuar.
Para tanto, faz-se necessário colocar em circulação “uma história sobre como era
antes do advento da lei”. História de informidade e caos. Como se fora da
configuração atual da lei, só pudesse haver anomia e destruição da vida. Ou seja,
só pode haver conformação à configuração atual da lei lá onde há a produção
contínua do medo.
Como um exemplo da maneira com que a configuração atual das
identidades é naturalizada como condição fundamental para o advento de toda e
qualquer ordem social, Butler recupera a teoria das estruturas elementares de
parentesco de Claude Lévi-Strauss. Pois se a antropologia estrutural de Lévi-
Strauss estiver correta, então: “seria possível traçar a transformação de sexo em
gênero localizando esse estável mecanismo das culturas, a regras de trocas de

196
BUTLER, Gender trouble, p. 11
197
idem, p. 10
198
Idem, p. 22
199
Idem, p. 46
parentesco, que afeta tal transformação de várias formas regulatórias”200. A
crítica a Lévi-Strauss teria ainda o mérito de abrir espaço a crítica daqueles que
levaram a cabo as consequências de sua teoria da vida social, como Jacques
Lacan. O que é uma maneira de Butler acertar contas com algumas das
referências mais importantes para os estudos feministas até então.
Lévi-Strauss parte da constatação da universalidade da lei do incesto para
discutir os fundamentos da relação entre natureza e cultura. Ou seja, o que lhe
preocupa é uma questão classicamente filosófica: o que é necessário para
sairmos do estado de natureza? Neste sentido, ele lembra como os
comportamentos naturais tem a característica de serem universais e necessários
(como os impulsos e tendências), enquanto os comportamentos sociais são
passíveis de diferenças e de contingência (por isto coercitivos), pois respondem
às especificidades de contextos sócio-históricos. No entanto, conhecemos ao
menos uma norma social que tem o caráter de universalidade e necessidade das
normas naturais. Trata-se do tabu do incesto:

Pois a proibição do incesto apresenta, sem o menor equívoco, e de


maneira indissociável, as duas características nas quais reconhecemos os
atributos contraditórios e duas ordens exclusivas: ela constitui uma regra
[social], mas uma regra que, a única dentre todas as regras sociais, possui
ao mesmo tempo um caráter de universalidade201.

A proibição do incesto nos lembra que não haveria grupo social na qual
inexistiria proibição alguma relativa ao casamento. Tais proibições podem
variar, mas não haveria casos de sociedades nos quais elas seriam inexistentes. O
que nos colocaria a questão: por que a questão do incesto parece ser o
fundamento da passagem da natureza à cultura?
A peculiaridade de Lévi-Strauss está na sua interpretação do significado
da proibição do incesto. No fundo, tal proibição marca a passagem do fato
natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se ao tabu do
incesto, o homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas, ou
ainda, em um sistema de comunicação onde as mulheres são tratadas da mesma
forma que sinais lingüísticos. Através da proibição do incesto, um grupo se vê
obrigado a tomar um mulher de outro grupo como esposa, instaurando assim
relações de exogamia, obrigações de receber e de dar. As sociedades aparecem
assim como um sistema de trocas na qual o elemento fundamental de troca são
mulheres:

Se a multiplicidade de modalidades de regras do casamento podem ser


subsumidas sob o termo geral de exogamia, é à condição de perceber,
atrás da expressão superficialmente negativa da regra de exogamia, a
finalidade que tende a assegurar, pela interdição do casamento em graus
proibidos, a circulação, total e contínua, desses bens do grupo por
excelência que são as mulheres e filhas202.

200
Idem, p. 47
201
LÉVI-STRAUSS, Claude; Les structures élémentaires de la parenté, p. 10
202
Idem, p. 549
Ou seja, se não houvesse a exogamia, se as mulheres não fossem as
“moedas de troca” da vida social, então o grupo social explodiria em uma
multidão de famílias que formariam: “sistemas fechados, mônadas sem porta
nem janela“203 inviabilizando a essência mesma da sociedade com sua produção
estrutural de diferenças controladas em um sistema. Para Butler, tal perspectiva
estruturalista significa que:

A relação de reciprocidade estabelecida entre homens é a condição de


uma relação de radical não-reciprocidade entre homens e mulheres e uma
relação de não-relação entre mulheres204.

Transformando a diferença produzida pela distinção anatômica entre


sexos em condição para a própria existência da dinâmica de estruturação das
sociedades, Lévi-Strauss teria fornecido um belo exemplo de como o
reconhecimento social dos gêneros era calcado na naturalização do binarismo
entre homens e mulheres. Principalmente, sua perspectiva representaria uma
forma de evidenciar como “a reciprocidade estabelecida entre homens” era a
base intransponível da ordem social, pois se as mulheres eram as “moedas de
troca” os homens acabam por aparecer como os “sujeitos da operação de troca”.
Por sua vez, o esquema de Lévi-Strauss naturalizaria tanto a maneira
como o desejo pode circular socialmente (através da elevação da posição
masculina como posição de agência, são os homens que trocam) quanto a
maneira com que a transgressão será expressa (através da constituição do
incesto heterossexual como a matriz pré-social do desejo). Daí vem a pergunta
fundamental de Butler:

“A lei” produziria tais posições de maneira unilateral e invariável?


Poderia ela produzir configurações da sexualidade que efetivamente
contestariam a própria lei ou são tais contestações inevitavelmente
fantasmáticas? Pode a generatividade da lei ser especificada como
variável ou mesmo subversiva?205

Quer dizer, seria possível pensar a lei social de outra forma, não como a
normatividade que determina lugares e funções definidas para gêneros, criando
assim a estabilidade de identidades necessárias, mas como uma generatividade
variável que produz até mesmo subversões de configurações locais de
funcionamento da norma? Ou seja, tudo se passa como se Butler afirmasse que a
análise estrutural de Lévi-Strauss é, no máximo, uma análise local.

Lacan e a comédia do Falo

Neste contexto, é de especial importância as críticas de Butler ao psicanalista


Jacques Lacan. De fato, Lacan tende a ser visto como o exemplo mais bem
acabado de uma teoria da sexualidade construída a partir de chave
estruturalista. Teórico importante dentro do debate do feminismo norte-
americano, Lacan foi compreendido, por muitas feministas, como o exemplo mais

203
Idem, p. 549
204
BUTLER, Gender trouble, p. 53
205
Idem, p. 53
bem acabado de uma perspectiva dita falocêntrica e patriarcal do funcionamento
social.
Grosso modo, podemos dizer que isto ocorreu por Lacan seguir, à sua
maneira Lévi-Strauss e afirmar a natureza constitutiva do desejo masculino na
constituição dos laços sociais. Isto o leva a afirmar que o Falo aparece como o
significante a partir do qual o desejo humano se orienta. Ele será: “ o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher”206.
Este lugar central do falo é submissão da diversidade possível dos modos
de sexuação ao primado da função fálica. Assim, a sexuação feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid (injeva do pênis), com sua maneira de
superar tal relação de dependência através do ato de transformar os atributos
femininos em signos de reivindicações fálicas e que Lacan, seguindo Joan Rivière,
chama de mascarada. Da mesma forma como, para Lévi-Strauss, sociedades são
sistemas de trocas entre mulheres por sujeitos masculinos, para Lacan, as formas
de sexualidade se regulam a partir de um significante que tem sua indelével
vinculação ao gênero masculino. Pois o falo permite a construção de um Universal
capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo
universal de reconhecimento mútuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da história subjetiva. Isto explica porque Butler
dirá que tal processo: “exige que as mulheres reflitam o poder masculino e em
todo lugar reassegurem tal poder contra a realidade de sua autonomia
ilusória”207.
No entanto, a teoria de Lacan é mais complexa do que isto que descrevi.
Primeiro, é importante lembrar como, para Lacan, a sexualidade é uma
construção social. Daí porque ele insistirá que “homem” e “mulher” são, antes de
mais nada, significantes cuja realidade é eminentemente sócio-linguística. Neste
sentido, é absolutamente possível uma mulher (anatomicamente falando) ocupar
uma posição masculina na sua relação ao desejo.
Proposições desta natureza se prestam a vários mal-entendidos. Afinal,
como é possível dizer que a sexualidade é uma construção social se há
diferenças anatômicas evidentes que parecem naturalmente constituir dois
sexos? E se ela é, de fato, uma construção social, por que falamos apenas em dois
sexos? Por que não cinco? Por que não abandonar a distinção binária e pensar
uma produção plástica de novas formas de sexualidade?
No entanto, dizer que a determinação da sexualidade se estabelece sem
levar em conta a diferença anatômica dos sexos, como quer Lacan, não implica
afirmar que tal diferença inexista. Não é exatamente a mesma coisa, por
exemplo, um homem e uma mulher (anatomicamente falando) ocuparem a
posição masculina. O que Lacan parece nos querer dizer é que tal diferença
anatômica é desprovida de sentido, ela não é normativa por não ter força para
determinar condutas, ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que,
diante o sexual, sempre me vejo diante de algo irredutivelmente opaco e
resistente a toda operação social de sentido. “A sexualidade”, dirá Lacan, “é
exatamente este território onde não sabemos como nos situar a respeito do que
é verdadeiro”208.

206
LACAN, S V, p. 273
207
BUTLER, idem, p. 57
208
Jacques Lacan, Mon enseignement (Paris: Seuil, 2006) p. 32
Notemos este dado fundamental: as considerações clínicas lacanianas são
solidárias de um tempo no qual as estruturas familiares perderam sua sustância
normativa e no qual a sexualidade não é mais um campo claramente direcionado
à teleologia da reprodução. Neste contexto histórico de indeterminação, a
socialização do desejo não pode simplesmente levar o sujeito a desempenhar
papéis e identidades sexuais sem distância alguma, como se fosse questão de
naturalizar o que é socialmente construído. Ao contrário, a socialização do
desejo deve nos levar a confrontarmos com tal opacidade. Esta é, em última
instância a função do falo.
É levando tais questões em conta que devemos entender porque Lacan
define o falo como: “o significante fundamental através do qual o desejo do
sujeito pode se fazer reconhecer”209. Ou seja, o falo não é exatamente o pênis
orgânico, ou algum signo de potência, mas um significante puro, uma diferença
pura que organiza posições subjetivas (masculino/feminino) a partir da
experiência de inadequação fundamental entre o desejo e as representações
“naturais” da sexualidade. Neste sentido, o falo é apenas: “um símbolo geral
desta margem que sempre me separa de meu desejo”210. Tal noção do falo como
‘um símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos
mostra como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica 211. Ele é a
inscrição significante da relação de inadequação entre o sexual e a
representação. Neste sentido, a Lei lacaniana demonstra-se vazia, desprovida de
todo conteúdo normativo positivo.
Para Butler, a estratégia de Lacan é paralisante, pois ao mesmo tempo
reconhece o caráter impossível de sustentar identidades de gênero como
identidades fortemente normativas, ou seja, abre espaço para a experiência da
negatividade do desejo em uma chave que não deixa de nos remeter a Hegel,
mas perpetua tais identidades sem permitir o aparecimento de novas
configurações possíveis para além do quadro heterossexual, não fornecendo a
tal negatividade sua verdadeira força produtiva, ao menos segundo Butler. Daí
uma afirmação como:

Que plausibilidade pode ser dada a um relato do Simbólico que requer a


conformidade a uma Lei que demonstra sua impossibilidade de agir (to
perform) e que não dá espaço para a flexibilidade da própria Lei, para sua
reformulação cultural em formas mais plásticas? (...) A solução não está
em sugerir que a identificação deva se transformar em uma realização
bem acabada. Mas parece haver uma romantização ou, na verdade, uma
idealização religiosa da “falta”, da humilhação e da limitação diante da Lei
que faz da narrativa lacaniana algo ideologicamente suspeito212.

Esta passagem crítica por Lévi-Strauss e Lacan é muito importante para Butler
evidenciar, ao menos a seus olhos, estratégias narrativas que impossibilitam

209
LACAN, Séminaire V (paris : Seuil, 1998) p. 273
210
LACAN, S V, p. 243
211
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua realização
subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
212
BUTLER, idem, p. 72
ultrapassar a matriz identitária heterossexual como modalidade de regulação
geral da vida social. Seja através do caráter normativo do estruturalismo de Lévi-
Strauss, seja através da conservação da impossibilidade em Lacan, é sempre o
quadro de distinções heterossexuais que é conservado em sua função de
referência. Mesmo que no caso de Lacan, ele pareça ser conservado através de
uma certa melancolia vinda desta pretensa: “idealização religiosa da “falta”, da
humilhação e da limitação diante da Lei”, deste vínculo a uma identidade que
parece a todo momento expressar sua própria impossibilidade.

Melancolia e identidade

Levando em conta este ponto, Butler passa a terceira estratégia de seu capítulo,
certamente aquela que mais será por ela posteriormente retomada. Trata-se de insistir
que a força da submissão dos sujeitos a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável é indissociável dos usos da melancolia. O poder age
produzindo em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente
melancólica. Se vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste
forma que ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção.
Neste ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais importantes: “A
vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de apenas lembrar aqui de
algumas características gerais da ideia freudiana para, na próxima aula, retomar este
ponto mostrando como se trata de um ponto fundamental para sua teoria do poder e da
ação política.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral
de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido
é internalizado como uma proibição”213.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais
ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que
damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da
identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações
amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais
relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se
tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de
autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio,
através de autorrecriminações e acusações. A tese fundamental de Freud consiste em
dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de
amor. Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a
situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar
em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra

213
Idem, p. 80
aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Essa é uma maneira de dizer que a
melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de
nossas identidades.
Butler vincula tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma
bissexualidade inata nos seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir
libidinalmente os pais de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da
identidade de gênero que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo
em identificações capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de
objetos homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como
se a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 12

Gostaria de nesta aula terminar o módulo dedicado ao conceito de “gênero” em


Judith Butler. Mesmo que muito ainda haveria a se dizer sobre problemas de
gênero, eu idealizara este módulo apenas como uma introdução. Algo que pode
orientar vocês em reflexões futuras sobre as relações entre sexo, política e
formação da identidade. Na aula de hoje, gostaria de mostrar como tal reflexão
sobre problemas de gênero permitirá a Butler desenvolver posições originais a
respeito de questões estruturais nos campos da ética e da política. Para tanto,
trata-se aqui de inicialmente discutir a maneira com que Butler compreende a
forma do poder sujeitar sujeitos, desenvolvendo com isto uma temática da
produtividade do poder que vimos anteriormente com Michel Foucault.
Butler herda de Foucault a compreensão da identidade como problema
político central. Sua teoria de gênero, como vimos, não era uma teoria da
produção social de identidades, mas uma reflexão sobre a dimensão
necessariamente opaca de nossa relação ao sexual, sobre a maneira como há algo
em nossa experiência do sexual que nos faz pensar o sujeito para além da figura
de uma substância auto-idêntica e estável capaz de se auto-determinar.
Sendo assim, uma questão política decisiva, como vimos na aula passada,
passa por tentar explicar como e porque é criada a ilusão de que a vida social
deve se orientar por identidades estáveis ou ainda, no caso da relação entre sexo
e gênero, como e porque ocorre a reificação de tomar por normatividade natural
aquilo que é produto de uma relação social de poder. Neste sentido, ela dirá:

A auto-justificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma história sobre como era antes do advento da lei e
o que aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e
necessária214.

Temos então inicialmente a ideia de que há uma dimensão “repressiva” da


lei. Não sendo a lei uma operação da normatividade social sobre uma matéria
naturalmente dada (corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressão não
contra um princípio exterior ao poder. Ela age contra a própria dinâmica interna
do poder, com seus jogos de força continuamente cambiantes. Como se uma
configuração momentânea do poder se cristalizasse procurando se perpetuar.
Para tanto, faz-se necessário colocar em circulação “uma história sobre como era
antes do advento da lei”. História de informidade e caos. Como se fora da
configuração atual da lei, só pudesse haver anomia e destruição da vida. Ou seja,
só pode haver conformação à configuração atual da lei, organização das
possibilidades da vida a partir do funcionamento estático de normas lá onde há a
produção contínua do medo.

Poder e melancolia

Neste contexto, a crítica social se transforma em uma tentativa de

214
Idem, p. 46
compreender como certos afetos são produzidos a fim de conformar sujeito a
determinados tipos de comportamentos, a aceitarem certas impossibilidades de
ação como necessárias, a assumirem certos medos. Uma teoria da sujeição será
necessariamente teoria dos afetos sociais. Neste contexto: “sujeição consiste
precisamente nessa dependência fundamental em relação a um discurso que
nunca escolhemos mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa agência”215.
Ou seja, um discurso que não sinto como completamente meu, mas que define a
maneira com que defino minha ação. Um discurso que , de certa forma, está
dentro de mim sem ser completamente idêntico ao que entendo por minha
identidade.
A este respeito, a hipótese de Judith Butler consistirá em mostrar como a
força da submissão dos sujeitos seja a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável, seja à própria forma geral da identidade é
indissociável dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nós
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente melancólica. Se
vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste forma que
ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção, pois violência de uma regulação social que leva
o eu a acusar si mesmo em sua própria vulnerabilidade. Desta forma, através da
melancolia, posso aceitar ser habitado por um discurso que, ao mesmo tempo,
não é meu mas me constitui.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste
ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais
importantes: “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de
inicialmente lembrar de algumas características gerais da ideia freudiana para,
ao final, mostrar como se trata de um ponto fundamental para a teoria do poder
e da ação política de Judith Butler.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime
geral de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de
gênero. Pois: “a identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o
sexo do objeto proibido é internalizado como uma proibição”216.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em
sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão
mais ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o
nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos
de formação da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da
identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços sociais
capazes de socializar o desejo, de produzir as condições para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a
fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Por outro lado, isto nos explica porque Butler dirá: “nenhum sujeito emerge sem
um vínculo passional com esses com os quais ele ou ela é fundamentalmente
dependente”217.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é,

215
BUTLER, The psychic life of power, p. 2
216
Idem, Gender trouble, p. 80
217
Idem, The psychic life of power, p. 7
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancólica. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tópico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
agressividade em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
própria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificação de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com
a situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmação como: “Freud identifica consciência elevada e auto-reprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negação de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e não resolvido”218. Assim, a sujeição do desejo pode se transformar
em desejo por sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal
quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas
identidades.
Butler insiste como tal vínculo melancólico a um objeto perdido funda a
própria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma que as identidade
em geral são constituídas. Tendo isto em mente, ela pode vincular inicialmente
tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma bissexualidade inata nos
seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir libidinalmente os pais
de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da identidade de gênero
que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo em identificações
capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos
homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se
a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade. Pois identidades serão sempre
marcadas por essa impossibilidade de voltar a investir libidinalmente aquilo que
perdi, aquilo que agora se transformou em um ponto opaco do meu desejo. Essa
perda me faz ter uma identidade melancólica.

Ética e opacidade

Através desta teoria da melancolia como dispositivo de constituição da vida


psíquica pelo poder, Butler pode expor o tema de como somos atravessados por
objetos que não conseguimos completamente integrar e que podem se voltar

218
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
contra nós em uma reflexividade violenta e paralisante. Estes objetos
demonstram como nossa constituição como sujeito de nossos atos é
indissociável da permanência de vínculos libidinais que aparecem a nós de
maneira opaca, desestruturando a todo momento nossas identidades e as
narrativas que construímos sobre o que somos e quem somos. Daí uma ideia
importante como: “Se exijo “ter” uma sexualidade, então isto poderia parecer que
uma sexualidade é o que está aqui para ser chamada de minha, para possuir
como um atributo. Mas e se sexualidade é o meio através do qual sou
despossuído?”219. Ou seja, se há algo na experiência sexual que sempre parece
nos colocar diante de objetos que nos desestruturam, que nos despossui, então
integrar o que tem a força de nos despossuir pode ter uma consequência políica
importante. Pois isto significa reconhecer minha dependência em relação ao que
não controlo. Não se trata assim de um abandono de uma noção autárquica de
autonomia em direção a uma forma mais elaborada de relacionalidade, ou seja,
de reconhecimento da natureza relacional do sujeito em sua agência. A ideia de
uma natureza relacional não capta o que significa as consequências da
compreensão de que : “como corpos, estamos fora de nós mesmos e somos para
outro”220. Pois a principal consequência é a consciência de uma vulnerabilidade
estrutural própria à nossa condição. A aposta de Butler consiste em transformar
a consciência da vulnerabilidade e da dor que sentimos diante de objetos
perdidos em elemento fundamental para a constituição da ação política. Pois
podemos temer tal vulnerabilidade, o que terá consequências evidentes:

Quando luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, baní-lo em nome de uma ação
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado221.

Daí uma questão importante que consiste em se perguntar sobre o que


pode ser ganho para o domínio político ao mantermos uma certa vulnerabilidade
comum como condição para uma forma de reconhecimento que me permite não
impedir que o sofrimento do outro seja indiferente para mim.
Servindo-se deste ponto, Butler procura desenvolver um modelo de
reflexão ética que terá fortes consequências políticas. Partindo de seu referencial
hegeliano, Butler pensará os problemas políticos e morais a partir de discussões
relativas às dinâmicas de reconhecimento da alteridade. Agir de maneira moral é
ser capaz de reconhecer o outro como sujeito, mesmo em situações nas quais ele
não parece agir a partir dos critérios e predicados de humanidade que
convencionamos a atribuir a todos os sujeitos. Desta forma, cria-se um vínculo
entre: “a questão do poder e o problema de quem é qualificado como
reconhecidamente humano e quem não é”222. De fato, preciso me sujeitar às
normas sociais com seus quadros identitários estabelecidos para ser
reconhecido como sujeito. Mas posso também sentir que os termos pelos quais
sou reconhecido fazem da vida algo impossível a se viver:

219
Idem, Undoing gender, p. 16
220
Idem, Precarious life, p. 27
221
Idem, p. 30
222
Idem, Undoing gender, p. 2
A opacidade do sujeito pode ser a consequência de seu ser concebido
como um ser relacional, ser cujas relação primárias e iniciais não estão
sempre disponíveis a um conhecimento consciente. Momentos de
desconhecimento a respeito de si mesmo tendem a emergir no contexto
de relações a outros sugerindo que tais relações chamam formas
primárias de relacionalidade que não estão sempre disponíveis à
tematização explícita e reflexiva.

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