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Curso Integral - Erotismo Sexualidade e
Curso Integral - Erotismo Sexualidade e
Departamento de Filosofia
Primeiro Semestre de 2014
1
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como
alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de
psiquiatria (o DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a
atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma
forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma
persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por
atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculação
precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação ocorrer entre 30
segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30 segundos)
severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a
penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a
sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu:
É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre
sexo, não pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique
a natureza quase literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa
outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do
sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco
sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos
relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos.
Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-
determinação. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito
dotado de uma história (a história do meu desejo), de um corpo (o regime de
prazeres próprio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto
talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto
defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o
sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro
dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”3. Se Freud pode se
vangloriar de não ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota
de não mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual
falar de sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos
e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade através da
constituição de uma relação autônoma consigo mesmo.
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma
2
BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180
3
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15
ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um
sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de
raciocínio e argumentação”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se
encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer
sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de
produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um
discurso social fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer
que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas
não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma
identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se
alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá:
Sexo e filosofia
Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o
problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico
específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento,
como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles
que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam
na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da
4
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
5
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo
momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que
temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer
reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importância.
Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre
sexo seria um problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem
seriam objetos de investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um
problema ligado à psicologia e a reflexão sobre seus modos de intervenção
clínica, não um problema sociológico ligado a práticas sociais de codificação de
comportamentos de interação, não um problema biológico ligado a modos de
reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se perguntar se
não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao
invés de discuti-lo em um curso de filosofia.
“A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve,
ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”6. Esta
frase é de um filósofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de
Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um
curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto
próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica que dirá ser a filosofia
a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica, definição
ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da
gênese da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então
completamente fora do dito debate intratextual da tradição filosófica), então
ficamos com uma questão central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de
fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”,
assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à
teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um
filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema
econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao
fazer isto, ele deixaria de ser filósofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for
estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não
tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a
filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que
talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do
conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos,
uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem
ciência política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia
toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo
desenvolvimento não lhe compete diretamente.
Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar
inexistir questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões
que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer
objeto. Tal modelo filosófico de construção de questões nos permite identificar e
pensar certos problemas que não poderiam ser pensados de maneira adequada
fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de
uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou
6
CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12
um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões
de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos
produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é
necessariamente vinculada a um evento histórico, ela é a ressonância filosófica
de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da
física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução
do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como
fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa.
Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele
aparecer como um evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo”
e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um
acontecimento capaz de produzir reconfigurações profundas em nossa forma de
vida?
A continuidade do erotismo
7
BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43
partir da lógica utilitarista que guia os indivíduos e suas relações. Vale para o
sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo:
Gênero
A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha
força nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo
uso do conceito de “gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se
responsabilizou pela transformação de um conceito psiquiátrico em forte
conceito de orientação para práticas de transformação social. Seu verdadeiro
inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968
intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de
construção de identidades de gênero através da articulação entre processos
sociais, nomeação familiar e questões biológicas.
Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a
distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero
(construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer
uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque
8
Idem, p. 55
gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza
sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de
uma noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposição de
um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre
gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por
ele”10.
Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de
tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de
uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que
sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas, não apenas como eles são sujeitados às normas e
completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de
gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não
se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmação como:
Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado
pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso
do universo do humano. Do que era visto como patológico, doentio e, por isto,
sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A
modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de
gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria
diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento
de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano.
Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo,
sexualidade e gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith
Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias
diferentes, embora não completamente divergentes, da filosofia se voltar para
uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo
fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será
organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês:
“O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da
sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O
9
BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11
10
idem, p. 10
11
Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
12
Idem, p. 25
curso será, em larga medida, uma apresentação comentada desses três livros, ou
de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a
experiência do comentário possa funcionar.
Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações
profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua
obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma
interessante circulação de pensamento que não se dá sobre a forma tradicional
da influência ou da continuidade. Há uma circulação de pensamento por
exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma experiência de
pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns
fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses
que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os
leitores mais fieis, mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem
o texto filosófico como um processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade
é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade
nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e simples incapacidade de entrar
nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar.
Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma
de fazer comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade
interna de certos textos da tradição, mas que seja a capacidade de identificar e
constituir problemas filosóficos. De fato, vocês aprenderão técnicas
fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da
tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem
das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender
como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do
pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental
para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita
a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se
apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato
de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele
não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim,
procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto
possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja
interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do
que normalmente nos mostraríamos.
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de
boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 2
13
BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre
todo verdadeiro projeto filosófico e a elaboração, até as últimas consequências,
de um acontecimento. Aqui, nós encontramos um bom exemplo do que significar
ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a forma
de um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela
consciência de se viver em uma época de esgotamento estético à procura de
superação. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura em
sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que,
longe de ser naturalizada, é uma construção social responsável pelo
empobrecimento da vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará não apenas
a uma nova ordem, mas, principalmente, à destruição da figura atual do homem.
Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitação, a perda do centro que
define uma hierarquia.
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva
da antropologia de Marcel Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena
lembrar que Bataille fundará, juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e
Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de
sociologia”. Nela, era questão de desenvolver um saber capaz de fazer não
apenas uma antropologia da sociedades primitivas, mas principalmente uma
antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que, em nossas
sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto,
Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva,
dom, mana, fato social total, entre tantos outros. Ele também não deixa de se
apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará fortuna na psicanálise,
através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo.
14
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à
eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de
refreá-los15.
Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos
sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a
conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas
acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”17.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:
15
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
16
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
17
Idem; O erotismo, p. 184
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições
primitivas, têm em si mesmas seu fim18.
O excesso e os números
18
Idem; A parte maldita, p. 21
19
Idem; O erotismo, p. 188
isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles
não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o
erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza,
mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois
isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos
mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da lógica utilitária. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em
tudo o que parece inumano no sexo:
20
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183
tábua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos”21. Ou seja, não há
um observador indiferente aos fenômenos ligados à sexo, pois eles provocam
necessariamente nossa participação. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em
um regime de participação e de implicação, como participaríamos e nos
implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém próximo. Por isto,
o discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação.
Nossa descrição do que é da ordem do sexual sempre será uma descrição
sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime
de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para
Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são
simplesmente irrelevantes:
Consciência de si e soberania
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
23
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
24
Idem, p. 289
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de glória25.
25
Idem, p. 249
26
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
27
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 3
28
BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326
29
MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192
paradigmático de tal atividade:
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável
30
MAUSS, idem, p. 193
31
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
32
Idem, p. 289
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de glória33.
33
Idem, p. 249
34
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
35
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
36
BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35
indivíduos serão, em larga medida, relações inspiradas nas relações contratuais.
Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a
expressão máxima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de
interesses que devem ser restringidos mutuamente pelos interesses de outros
indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção jurídica de
um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem
socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta
condição. Ficção que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto
central do vínculo político (medo da despossessão de meus bens, medo da morte
violenta, medo da invasão de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille,
indivíduos não conhecem o erotismo, já que:
37
Idem, p. 42
38
Idem, p. 41
forma de volta de nossas sociedades a esses estágios pré-modernos e,
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais
experiências ainda estão presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma
distorcida e profundamente destrutiva. Para a geração de Bataille, fenômenos
como a ascensão do nazismo e do fascismo foram ocasiões para compreender
como o processo de formação das individualidades modernas era agenciado de
forma tal a produzir sujeitos indefesos à sedução dos regimes totalitários. Não
por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma análise psicológica
do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do
fascismo”.
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da
produção é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma
estrutura social na qual relações e valores são baseadas na utilidade e na
quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
situações definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,
já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a própria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam a nós através da força
violenta do choque.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância
dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania
presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania
assentada na experiência da dominação.
Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade
homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o
outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominação,
revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do
heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a
39
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
esta soberania monárquica recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao
falar das experiências do sagrado e do erotismo.
Desta forma, duas concepções de soberania podem então se contrapor.
Quando a soberania está presente sob as múltiplas formas do poder monárquico,
seres humanos são, no interior de uma relação de dominação, apenas elementos
negados. Quando ela é reapropriada pelos seres humanos, a própria dominação é
negada.
Sexo e morte
Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressão
da descontinuidade para a qual o erotismo tenderia. Aqui nós devemos fazer
apelo a uma certa filosofia da natureza presente no horizonte do pensamento de
Bataille. Ela parte da ideia de que a atividade vital está, a todo momento, tendo
que lidar com a noção de excesso:
40
BATAILLE, Georges; A parte maldita, p. 45
41
Idem, p. 46
Desorganização permanente seguido de reorganização com aparição de
propriedades novas se a desorganização pode ser suportada e não matou
o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, não
apenas sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte
intrínseca de seu funcionamento e evolução: sem perturbação ou acaso,
sem desorganização, não há reorganização adaptadora ao novo; sem
processo de morte controlada, não há processo de vida42.
42
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 280
43
CANGUILHEM, Georges; Connaissance de la vie, p. 149
44
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 41
45
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 84
sempre”46. Esta é apenas uma maneira um pouco mais dramática de lembrar que
os valores mobilizados pela atividade vital não podem ser a “utilidade”, a
“função” ou o mesmo o “papel” a desempenhar. A vida se passa dessa
contabilidade de balcão de supermercado. Não podemos sequer definir o
desenvolvimento de órgãos a partir da necessidade de certas funções próprias a
uma adaptação à configuração atual do meio. Como a biologia evolucionista nos
mostra, mais correto seria dizer que muitos órgãos são inicialmente
configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de funções deles se
desenvolvam.
Assim, quando Bataille fala da proximidade entre o erotismo e a morte,
não devemos ver nesse tema apenas os resquícios possíveis de um topos
romântico decadentista reciclado. Na verdade, essa é a forma de Bataille insistir
como o erotismo pode aparecer na vida social como potência de desestabilização
de formas ligadas à perpetuação da sociedade homogênea dos indivíduos e de
produção possível de novas formas baseadas na capacidade de estabelecer
relações como o heterogêneo, sendo a morte o grau máximo da heterogeneidade.
O interdito e a transgressão
Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo
como fenômeno indissociável do interdito e da transgressão. Bataille lembra que
a realidade humana difere daquela própria ao animal porque ela é submetida a
leis. A princípio, tal proposição pode parecer estranha pois conhecemos bem
como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto
no mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao
menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os interditos são indissociáveis de
sua transgressão. Não há interdito sem transgressão regulada ou, muitas vezes,
prescrita. Não há proibição do assassinato sem a regulação de suas transgressões
possíveis (como a guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e
transgressão, há uma profunda cumplicidade entre a lei e a violação da lei que
aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer
que: “a transgressão difere do ‘retorno à natureza’: ela suspende o interdito sem
suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se encontra ao
mesmo tempo a mola propulsora das religiões”47.
É a essa “suspensão sem supressão” que devemos voltar nossos olhos. A
princípio, ela tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o sujeito
parece necessitar dos muros da prisão para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressão do interdito como condição para o gozo. E
Bataille não deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Ele seria um erotismo acalmado no interior de uma
região na qual a vida não força seus limites e não testa novas formas. Tentemos,
por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:
46
AMEISEN, Jean-Claude; La sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la mort créatrice, p. 12
47
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza
encarada como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de
aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte são apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra
tem o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser (...) Nunca, com
efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, não de uma
imobilidade derradeira48.
48
Idem, p. 86
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 4
49
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 134
50
Idem, p. 60
Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:
51
Idem, p. 86
52
Idem, p. 67
53
Idem, p. 72
54
Idem, p. 79
até a angústia, até a angústia, até o limite em que a angústia não é mais tolerável.
O resto é conversa de moralista”55.
Esta função da angústia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na
medida em que podem (é uma questão – quantitativa- de força) os homens
buscam as maiores perdas e os maiores perigos”56. Neste sentido, eles não se
afastam simplesmente do que lhes provoca angústia, mas são chamados por ela,
como quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem
claramente como sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um
momento, essa festa orgiástica e violenta que a natureza celebra com a multidão
inesgotável dos seres. Poderíamos nos perguntar pela razão de tal desejo de
durar. Talvez porque a vida precise da suspensão temporária da angústia
provocada por esses turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário levar em
conta princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou
seja, uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e
transgressão. Ou seja, através do erotismo a experiência humana dá forma àquilo
que coloca em cheque as estruturas da forma. E ao permitir tal aproximação, o
erotismo aparece como fonte de liberação da vida dos limites que ela, por um
momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia aparecer, ao contrário,
como espaço no qual não forçamos mais os limites postos pelos interditos
quando ele perde sua dimensão renovadora.
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o próprio movimento vital
seria um movimento de ereção de interditos e transgressões periódicas. Como
se, paradoxalmente, devessemos admitir que os interditos estão aí para serem
violados. Pois: “A frequência – e a regularidade – das transgressões não abala a
firmeza intangível do interdito, de que é sempre o completamente esperado
como um movimento de diástole completa um de sístole, ou como uma explosão
é provocada por uma compressão que a precede”57. À condição de que aceitemos
se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades são móveis na
constituição de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se
sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua
acaba por transformá-los em interditos paródicos ou em interditos fracos . Por
exemplo:
55
Idem, p. 85
56
Idem, p. 110
57
Idem, p. 89
58
BATAILLE, Georges; Histoire de la sexualité, p. 45
é para Bataille tão importante. Se quisermos, podemos colocar tal questão da
seguinte maneira: por que, para Bataille, todo verdadeiro ato é uma
transgressão?
Santa Teresa soçobrou, mas não morreu realmente do desejo que teve de
soçobrar realmente. Ela perdeu pé, não fez mais que viver mais
violentamente, tão violentamente que pôde se dizer no limite de morrer,
mas de uma morte que, exasperando-a, não fazia cessar a vida61.
59
Idem, p. 78
60
FOUCAULT, Michel; Preface à la transgression, in: Dits et écrits, vol. I, p. 264
61
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 266
No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que
pensar tal encarnação violenta do divino como transgressão? Há duas maneiras
de responder tais perguntas: uma dada por Michel Foucault e outra voltando a
uma das referências principais de Bataille, a saber, Hegel. A interpretação de
Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista algo parecido a uma dialética na
relação entre interdito e transgressão, uma dialética que seria a expressão de
uma relação entre o finito e infinito, entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relação dialética porque se os interditos são postos
para serem transgredidos, é porque os homens precisam organizar a vida social
a partir de uma contradição. Esta é inclusive uma boa definição de dialética,
fornecida por Hegel em uma conversa com Goethe: “espírito de contradição
organizado”, e que não deixa de, de certa forma, ressoar a definição que Bataille
fornece da transgressão como uma: “desordem organizada 62 . Maneira de
compreender a contradição como forma de produzir experiências através da
tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir
da diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradição dialética não é
simplesmente a marca de uma impossibilidade de pensar e de constituir objetos,
como seria o caso se estivéssemos diante de duas proposições contrárias sobre o
mesmo objeto e sobre o mesmo aspecto (Sócrates é e não é homem sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo). A contradição dialética é um modo do ser entrar em
movimento e de admitirmos que o ser não é aquilo que permanece sempre igual
a si mesmo, como uma substância que subsiste graças ao caráter inalterado de
sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu próprio princípio de
alteração, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superação.
Movimento através da qual o ser nega a si mesmo, nega sua própria identidade
sem necessariamente se auto-destruir, nega seus limites graças a uma negação
que conserva algo do anteriormente negado. Neste sentido, a contradição é
interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relação entre interdito e
transgressão seria a maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito
uma norma, então tudo se passa como se as normas fossem, ao mesmo tempo, a
definição do que devo fazer e de como é possível transgredir tal dever. Neste
sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira realização da norma sempre
aponta para uma superação da norma.
Isto é possível porque a negação da norma não é, para Bataille, alguma
forma de retorno à animalidade. Negar os interditos não significa voltar à
condição animal inicial. Os interditos visam, de certa forma, negar nossa
condição animal, mas a transgressão visa negar tal negação, superando-a sem, no
entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este movimento, que se
inspira claramente na dinâmica hegeliana de uma negação da negação implica
possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitações do interdito sem, no
entanto, anular a experiência histórica que o produziu.
Foucault não admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é
negativo na transgressão”63. A transgressão não nega nada. Ela seria, na verdade,
uma bisonha “afirmação não positiva”, uma afirmação que não afirma nada. Sua
62
BATAILLE; O erotismo, p. 144
63
Idem, p. 266
maneira de colocar em questão o ser através de uma linguagem da transgressão,
ou seja, de uma linguagem do limite não implicaria em contradição alguma. Pois
a contradição pareceria implicar que precisaríamos sempre conservar o que é
negado no interior mesmo da determinação do ser. Parece que sempre
precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente,
ela pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética
hegeliana) unificar os opostos em uma síntese final. Pois sendo os diferentes
aquilo que se articula em um movimento contínuo, então eles acabam por se
submeterem a uma síntese. O que não parece ser o sentido da transgressão em
Bataille. Ela não caminha em direção a uma síntese, mas a uma relação, sempre
fulgurante e violenta, ao infinito e ao absoluto.
O sacrifício
64
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
65
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
66
Idem, O erotismo, p. 116
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anônima que me aproxima do que exige uma explosão violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
não parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressão
invertida dos processos de reprodução material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histórico marxista. Ela é a composição material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direção a uma matéria que é produção contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor
não é feita em nome da visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a
restrição dos interesses próprios em nome da construção de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participação através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que não pode ser visto como expressão de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mútuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenômeno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada”67. Entre o amor
dos filósofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinção entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que não aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
não como identidade, mas como espaço de confrontação com a heterogeneidade
que não se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão que
67
Idem, p. 129
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma
experiência social de emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinação pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusão próprio às massas fascistas, com sua fusão
organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Nós vimos na aula passada como Bataille insiste que
nossa sociedades sofrem por não saberem como dar conta de uma experiência
da heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de fusão e de perda
de limites da individualidade. Vimos também como o fascismo seria maneira de
absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de
fusão produz uma homogeneidade organizada sob a identificação,
profundamente disciplinar, a um líder transcendente, cujo discurso é marcado
pela unidade, pela depuração e purificação do corpo social. Maneira da
identidade ter a última palavra, mesmo se através do uso do desejo de
heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o
fascismo acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”68.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”69. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante
como:
68
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
69
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
70
Idem, p. 163
É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência
política revolucionária (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas
desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille
sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de
Kojève foi insistir na importância de compreendermos as dinâmicas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
são, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posição de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noção de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?
Veremos melhor este ponto na próxima aula.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 5
71
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo
ponto ela pode levar à sua destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As
formas vitais não apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio
vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruição: “se não temos
força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser utilizada; e, como
um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos nós
mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável”72. Neste sentido, as
individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da
energia que as atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja,
como algo que, do ponto de vista da pura conservação das formas atuais, não tem
sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo biológico que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e
reprodução. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento
para a auto-preservação de sua forma momentânea. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”73. Pois:
72
Idem, p. 46
73
Idem, p. 72
74
Idem, p. 79
75
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
76
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
algo do erotismo se deixa tocar exatamente por tal tipo de experiência material:
pelo corpo que não se submete integralmente à sua própria imagem, pela
fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que sempre
se perde e se decompõe, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem
algo de suas formas.
Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinação ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
ápice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressão
que não para antes de ter atingido o ápice da transgressão. Sade não
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si. A negação dos
outros se torna, no extremo, negação de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?77.
77
Idem, p. 202
78
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
79
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
80
SADE, ibidem, p. 83
negação dos outros se torna negação de si mesmo é porque sacrifico tudo o que
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e
gratuito de repetição do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um
pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio às orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito
com apatia e contenção. O gozo dos personagens de Sade, como vários
observaram, é um gozo apático.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do ápice em direção ao
qual algo em nós caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o
próprio egoísmo acendeu. Daí uma afirmação como:
81
Idem, p. 207
82
Idem, p. 219
83
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
84
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24
aspira a esse ápice, que se ele a define, que só ele é sua justificação e
sentido85.
Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter
colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal
sofrimento. No entanto, a posição de Sade guarda algo de profundamente reativo,
e essa natureza reativa é sua limitação. Bataille explora com exaustão o fato
paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato,
um carrasco sádico, há de se lembrar que carrascos não escrevem, pois: “a
violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a expressão do homem
civilizado”86. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille
pode dizer:
85
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300
86
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
87
Idem, p. 216
88
Idem, p. 219
89
Idem, p. 279
alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo: “É contra sua
própria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através
dele, ele odeia a linguagem por completo. Este ódio, o sr. Bataille partilha com
um bom número de escritores contemporâneos. Mas os motivos que ele fornece
lhe são próprios: é o ódio do místico que ele reivindica, não o ódio do
terrorista”90.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que
normalmente chamamos de ‘experiência mística’”91. Há algo na experiência de
fusão e afastamento das estruturas de conhecimento que se expressam na
linguagem prosaica própria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como
vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo após
a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do esgotamento
da força representativa da linguagem. Consciência tão alargada que estaria
mesmo disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:
O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que não pode se realizar
completamente sem a disciplina, e que, por outro lado, fracassa por não
poder abarcar os extremos de seu objeto, o que designei outrora sob o
nome de “extremo do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos
da vida. (...) salvo, a rigor, se, no auge, a filosofia for negação da filosofia,
se a filosofia rir da filosofia. Suponhamos, com efeito, que a filosofia
verdadeiramente ria da filosofia, isso supõe a disciplina e o abandono da
disciplina93.
90
SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136
91
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
92
Idem, p. 17
93
Idem; O erotismo, p. 285
Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura
comunicar (já que o termo é constantemente utilizado por Bataille) o que
decompõe a linguagem, vivenciar o que paradoxalmente coloca a vida em risco.
Ela não produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre
no interior do campo onde nossos modos de intuição e categorização desabam.
Neste sentido, a função do discurso filosófico não consiste em fornecer um saber
prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direção àquilo que
Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de
funcionamento do discurso no qual disposições contrárias acabam por conviver.
Este riso talvez não seja exatamente o riso da ironia, com sua afirmação de
existir sempre algo para além da enunciação e no interior do qual o sujeito do
enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que
não é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angústia alegre ”. Um tipo de afeto
para o qual talvez não estejamos acostumados, pois é angústia que sabe que o
que lhe angustia guarda algo de profundamente necessário:
94
BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 6
95
FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 642
qualidade que cada individuo. Posso dizer: “tenho a minha sexualidade”, como
quem tem um modo de ser que pretensamente expressa sua individualidade,
mas dificilmente direi (a não ser que por licença poética): “tenho o meu
erotismo”. Ao centrar suas reflexões sobre o aparecimento da “sexualidade”,
Foucault queria mostrar como um certo regime de organização, de classificação e
de descrição da vida sexual foi fundamental para a constituição dos indivíduos
modernos. Não por outra razão, “sexualidade” é aquilo produzido por um
discurso de aspirações científicas, seja vindo normalmente da psiquiatria, da
psicologia ou da medicina. Se Bataille centrava suas análise na descrição de uma
experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
A este respeito, a questão de Foucault consiste em se perguntar: como
algo desta natureza ocorreu e, principalmente, o que isto realmente significa?
Ter uma sexualidade seria expressão de uma liberação do meu corpo em relação
às pretensas amarras repressivas do poder? A sociedade ocidental teria
assumido a importância da sexualidade na definição das individualidades a
partir do momento em que o poder teria perdido suas amarras repressivas? Ou,
na verdade, a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeição que
demonstraria como a natureza do poder não é exatamente repressiva, como se
estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos nos quais o poder
opera?
De fato, a segunda opção será aquela defendida por Foucault. Não por
outra razão, ele dirá: “Já faz bastante tempo que desconfio dessa noção de
‘repressão’”96. Uma desconfiança que, a seu ver, resulta de uma nova maneira de
compreender o poder e que estaria expressa claramente em afirmações como:
O poder disciplinar
96
FOUCAULT, Michel; Em defesa da sociedade, p. 25
97
Idem, p. 35
que, por sua vez, estaria interligado, por uma série de relações, à biopolítica e aos
dispositivos próprios a uma política fundamentalmente ligada à noção de
“segurança”.
O poder soberano, segundo Foucault, teria seu paradigma na figura da
encarnação monárquica da legitimidade, com sua fundamentação do exercício da
lei na vontade do soberano. Derivado da figura romana da patria potestas, ele
sempre foi o poder de decidir sobre a vida e a morte daqueles que a ele se
submetem, mesmo que este direito esteja, em várias situações, condicionado
pelos casos onde está em questão a defesa do soberano. Lembremos, por
exemplo, da maneira que Foucault analisa o sentido do crime no interior do
modelo de funcionamento do poder soberano:
O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ele lhe ataca
pessoalmente porque a lei vale como a vontade do soberano; ele lhe ataca
fisicamente porque a força da lei é a força do príncipe (...) O direito de
punir será pois como um aspecto do direito que o soberano detém de
fazer a guerra contra seus inimigos (...) o suplício [sempre ligado à pena]
tem pois uma função jurídico-política. Trata-se de um cerimonial para
reconstituir a soberania ferida momentaneamente (...) Seu objetivo é
menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor, até seu ponto
extremo, a dessimetria entre o sujeito que ousou violar a lei e o soberano
onipotente que faz valer sua força98.
98
Idem, pp. 58-59
99
Idem, Histoire de la séxualité, p. 181
100
Idem, O poder psiquiátrico, p. 51
paixões e dos regimes do desejo. Se o corpo é elevado aqui a interface
fundamental de contato com o poder, é porque a gestão da vida passa
necessariamente pelo fortalecimento e condicionamento do corpo, sendo que
muito haverá a se dizer sobre o que pode significar “fortalecimento” neste
contexto (fortalecimento em relação ao que? À morte e à doença, física e mental?
Mas toda a reflexão clínica no século XX – na qual a obra do próprio Foucault
deve ser incluída - foi marcada pela idéia de as formas de fortalecimento são
indissociáveis do desenvolvimento de novas formas do adoecer).
Por outro lado, a segunda característica maior do poder disciplinar é sua
capacidade individualizadora. Foucault não cansa de repetir que: “o indivíduo,
parece-me, não é mais que o efeito do poder, na medida em que o poder é um
procedimento de individualização”101. Lembremos desta afirmação central:
101
idem, p. 21
102
Idem, Sécurité, territoire, population, p. 14
103
idem, p. 68
espécie”104. A noção mesma de população como objeto do poder implica que a
política trata da gestão de algo que se apresenta como dotado de uma certa
naturalidade. A este respeito, lembremos da definição foucauldiana de população
como: “uma multiplicidade de indivíduos que são e que existem apenas
profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no
interior da qual eles existem”. Esta materialidade fornece um meio capaz de
produzir acontecimentos que aparecerão como “naturais”, regulados apenas
indiretamente, como se fosse questão apenas de assegurar as condições de
possibilidade para que uma certa naturalidade da sociedade encontre seu solo
profícuo. Como se existisse uma: ‘naturalidade específica das relações dos
homens entre si, do que se passa espontaneamente quando eles cohabitam,
quando eles estão juntos, quando eles trocam, trabalham, produzem”105.
Desta forma, constitui-se uma organização do poder sobre a vida
composta por dois pólos de desenvolvimento profundamente interligados. O
primeiro, disciplinar, nos forneceria uma anatomo-política do corpo humano. Já o
segundo, composto por “controles reguladores”, forneceria uma bio-política da
população; ou seja, disciplinas do corpo e regulações da população. Esta junção
de anatomo-política e de bio-política é o que devemos entender por bio-poder.
A produção da sexualidade
104
Idem, p. 12
105
Idem, p. 357
106
BADIOU, Alain; O século, p. 112
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posição da psicanálise no interior da episteme moderna mudará.
Neste livro, Foucault ainda afirmava:
De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
107
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
108
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
109
Idem, p. 15
110
Idem, p. 16
O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções
discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrário, a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento111.
A hipótese repressiva
111
Idem, p. 20
112
Idem, p. 21
113
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressão. Na verdade, o que vemos é uma “incitação institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”114.
Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelação e do exame minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunção tão particular ao ocidente moderno”, a
saber:
O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o
sexo advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
então a esta palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
não o rigor de uma proibição, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos públicos e úteis116.
114
Idem, p. 27
115
Idem, p. 29
116
Idem, p. 35
um país populoso, então algumas questões centrais de administração pública
serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito
do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituição pedagógica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrário, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma
codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva de seus
interlocutores:
É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condição para o
funcionamento de outros discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relações de poder117.
117
Idem, p. 42
118
Idem, p. 46
A perversão do discurso
119
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 7
De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos
120
BADIOU, Alain; O século, p. 112
121
FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 16
de falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
122
Idem, p. 20
123
Idem, p. 21
“efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada teria a ver com a
liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a
produção de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos,
jurídicos e econômicos? Maneira de dizer que não há nada de natural no campo
da sexualidade, não há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que não se diz
enquanto tal.
124
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
125
Idem, p. 82
me como você fala e te direi como você se submete”. Por isto, Foucault se
pergunta: “Pode-se articular a produção da verdade segundo o velho modelo
jurídico-religioso da confissão e a extorsão da confidência segundo a regra do
discurso científico?”126. Na verdade, nossas sociedades não teriam feito outra
coisa. Foucault chega a descrever algumas características maiores da nossa
ciência da sexualidade que permitiram tal sobreposição.
Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento
de um conjunto de signos e sintomas decifráveis (questionário, interrogatório,
amanese, hipnose etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa,
como se o sexo fosse dotado de um poder causal inesgotável e polimórfico. “Não
há praticamente doença ou problema físico ao qual o século XIX não imaginou ao
menos uma parte de etiologia sexual”127. Terceiro, o princípio de latência
intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse naturalmente dotada de
uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissão uma tarefa
sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissão trouxesse
uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissão. Por
fim, a medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:
126
Idem, p. 86
127
Idem, p. 88
128
Idem, p. 90
moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na temática
das condições normativas de possibilidade etc. Já o cuidado de si não teria parte
com tal modelo por ser composto por prescrições que não podem ser
compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.
No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma
forma de ajuste entre práticas sociais e “disposições naturais” singulares e que
constituem, para um sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto,
os termos deste ajuste nunca são completamente definidos por Foucault. Ele fala,
em vários momentos, de uma: “intensificação da relação à si através da qual
alguém se constitui como sujeito de seus atos”129, de uma forma “ ao mesmo
tempo particular e intensa de atenção ao corpo”130 ou ainda de “ soberania” do
indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificação” porque o problema está ligado à
força, à moderação e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade são,
para um homem, as duas formas maiores da imoralidade na prática dos
aphrodisia”131.
Nota-se que esta constituição soberana de si passa por um deslocamento
do si mesmo, da dimensão da autonomia individual à reconciliação com o corpo.
De toda forma, tal soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida
como uma transformação que não pode ser vista como resultado de
procedimentos disciplinares. Daí a definição de tal soberania como uma arte da
existência composta por:
Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de
si mesmo, implica capacidade de constituição de si como sujeito moral, mas esta
moralidade não pode ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral
cujo assento deve ser pensado no ajustamento ao código. Na verdade, tal
soberania leva a uma moral orientada, não para o código, mas para o ético.
Assim, ao invés das interdições e fronteiras, a teríamos definições das
modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as
circunstâncias, posição pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa
“individualidade” é aqui necessária.
O dispositivo da sexualidade
129
Histoire de la séxualité III, p. 57
130
Idem, p. 78
131
Histoire de la séxualité II, p. 65
132
Idem, p. 18
aménagements, d’architectures, des décisions réglementaires, des lois,
des mésures administratives, des énoncés scientifiques, des propos
philosophiques, morales, philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du
non dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le
réseau qu’on peut établir entre ces éléments133.
133
FOUCAULT, Michel; Le jeu de Michel Foucault
134
Histoire de la séxualité I, p. 118
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia
social135.
Esta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma
unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela não resulta de decisões e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fácil perceber
também que a noção mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâmicas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficácia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo múltiplo e móvel de relações de força no qual se produzem efeitos globais
de dominação, mas jamais totalmente estáveis”136.
Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem
particularmente denso para as relações de poder entre homens e mulheres,
entre jovens e velhos, pais e filhos, educadores e alunos, administradores e
população. Ela se desenvolve no momento em que o dispositivo de aliança, com
seus sistema de casamento e de transmissão, perde importância por servir mais
de suporte suficiente para os processos econômicos e as estruturas políticas. O
dispositivo de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de
sexualidade conheceria técnicas móveis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança
nunca será ultrapassado completamente, mas e le funcionará a partir de novas
dinâmicas. Daí a transformação da família em espaço de constituição da
sexualidade e de seus jogos. Transformação tão presente na psicanálise e suas
noções ligadas ao complexo de Édipo.
Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do
século XVIII se constituirão como eixos desta relação de poder no interior da
sexualidade: a) a histerização do corpo feminino, b) a pedagogização do sexo
infantil, c) a socialização das condutas de procriação e d) a psiquiatrização dos
prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de formas de produção da
sexualidade seja através da definição do feminino, da criança, da norma e do
desvio.
Weber e Foucault
135
Idem, p. 122
136
Idem, p. 135
bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua
riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’
devidamente a sua tarefa” (Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma
“sanção psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satisfeita através da
realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao
gozo. O que o leva a insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de
mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo
espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer
caráter eudemonista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade deste
processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica
eudemonista ou hedonista, pode nos indicar como toda socialização é normativa,
ela é normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação
pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da
ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade do capitalismo era
solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.
No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade desta “hipótese
repressiva”, sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História
da sexualidade, Foucault não deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e
consolidação da sociedade capitalista de produção. Ele insiste que as tecnologias
de si próprias ao mundo burguês moderno não podem ser compreendidas como
simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal
metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para
as operações do poder. Ao contrário, deveríamos: “abandonar o energitismo
difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razões
econômicas” (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender que a
modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da
sexualidade, implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto
mecanismos de incitação a modos de investimento libidinal reconhecidos
socialmente quanto figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se
funda apenas em operações de gestão coercitiva de padrões normativos de
conformação, mas, principalmente, na produção dos próprios modos de
resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas
vinculadas à opressão, isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter
criador de um poder que engendra, um bio-poder que incita modos de
investimento libidinal, assim como modos de conflito.
Tendo isto em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos
de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max
Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de
problematização da saúde e das suas condições de funcionamento” (2001, p.
162). Maneira de assegurar a longevidade e a não-corrupção da descendência.
Contra estas práticas disciplinares que constituem a sexualidade não se trataria
de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de
racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria
em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade,
cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade,
suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.
No entanto, há duas considerações a fazer a respeito desta perspectiva de
Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores
dificuldades em aceitar a temática de um bio-poder que engendra dispositivos de
sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito
dos modos de internalização da Lei através do supereu consiste exatamente em
mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em modo neurótico de
satisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste sentido, a
hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de
práticas disciplinares.
Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva á pressuposição de um
corpo libidinal “naturalizado”, isto no sentido de não ser totalmente redutível à
condição de efeito da ordem do discurso. Não há porque negar este ponto, assim
como não há porque negar sua importância em temáticas, como a adorniana, de
interversão da razão em procedimento de dominação da “natureza interna”.
Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes obrigado a
retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso, isto a
fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder137. Ou seja, melhor seria
mostrar como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”.
137
Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno
texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo
feliz da não-identidade” (Ver Butler, 1999).
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 8
138
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
139
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 398
forma de pensar. Entendamos isto da seguinte forma: podemos começar
afirmando que o homem seria aquele que reduz sua realidade subjetiva à figura
ideal do Eu do sujeito maduro, que saiu das amarras da inconsistência da
infância, que não se deixou encantar pela alteridade da loucura com sua
alienação da vontade. Esta verdadeira redução egológica presente na
constituição da categoria de “homem” traz, no seu bojo, a entificação dos
atributos próprios ao Eu. Isto fica claro se aceitarmos que o Eu enquanto
princípio formal de unidade sintética pressupõe a elevação do princípio de
identidade e de não-contradição à condição de postulados que terão peso
ontológico. Enquanto sede da autonomia da vontade, o Eu pressupõe a crença em
estratégias de constituição transcendental de objetos da experiência. Enquanto
cerne de uma experiência ligada à analítica da finitude indicaria um modo
específico de limitação do campo da experiência e de distância em relação ao que
é apeiron, sem medida, radicalmente Outro ou, como dirá Foucault, “impensado”.
Estes procedimentos articulados conjuntamente produzem aquilo que um dia
Deleuze chamou de imagem do pensamento, maneira que o pensamento tem de
constituir objetos e processos que apenas reiterarão as regras gramaticais que
ele naturalmente aceita como pressuposto não questionável, que apenas
naturalizarão um senso comum140.
Coloquemos então uma hipótese. Se, por um lado, encontramos no projeto
foucauldiano de uma arqueologia do saber o reconhecimento da profunda
articulação entre a noção de inconsciente e a categoria do transcendental, peça
maior para a reflexão sobre o esgotamento da filosofia da consciência, veremos
também uma crença, várias vezes presentes, de que, até então, a reflexão sobre o
transcendental e suas formas teria sido contaminada pela sua dependência da
antropologia, por “uma confusão entre o empírico e o transcendental” através da
qual “a análise pré-crítica do que é o homem na sua essência advém a analítica
de tudo o que pode se dar em geral à experiência humana”141. Livrando o espaço
do que determina a validade de nossas formas de agir e de pensar (o
transcendental) de sua colonização por uma antropologia cuja gênese ainda não
estava totalmente clara para Foucault, não poderíamos, com isto, encontrar o
caminho para a reconstrução de um conceito positivo de razão?
Digamos que esta é a questão central de Foucault a partir dos anos
setenta. Sua reflexão sobre o poder está diretamente associada à maneira de
acordar deste sono antropológico. Pois, para Foucault, pensar sobre o poder é
necessariamente pensar sobre processos de constituição e de produção do que
nós nos tornamos, do modelo de homem que somos. Produção de tal ordem que
Foucault não temerá vê-la em operação no sujeito do conhecimento e no objeto a
conhecer, isto a ponto de afirmar que: “não há relação de poder sem constituição
correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua,
ao mesmo tempo, relações de poder”142. Este caráter produtivo do poder será o
grande tema do primeiro volume da História da sexualidade.
A produção da sexualidade
140
Sobre a noção de “imagem do pensamento” em Deleuze ver, sobretudo, DELEUZE, Gilles; Proust
et les signes, Paris: PUF, 2006, pp. 115-127
141
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 352
142
Idem, Surveiller et punir, p. 36
Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que
regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relação a nós mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidade.
Neste sentido, é inegável que a força do pensamento de Freud e da
psicanálise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsável
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?”143. As perguntas não poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posição da psicanálise no interior da episteme moderna mudará.
Neste livro, Foucault ainda afirmava:
143
BADIOU, Alain; O século, p. 112
144
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta
solenidade com a qual hoje se fala do sexo145.
145
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
146
Idem, p. 15
poder”147. A psicanálise será, a partir de então, inquirida tendo em vista a
produtividade de seu poder em conformidade com outros dispositivos
disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. Não só o complexo de Édipo
será objeto deste inquérito (como vemos no texto A verdade e as formas
jurídicas). Também a transferência, dispositivo central da clínica analítica, será
questionada a partir de sua proximidade com a confissão (ver O poder
psiquiátrico).
E é exatamente deste movimento que se tratará na História da
sexualidade, a saber, de mostrar como um modo de falar sobre o sexo, que
procura se passar por um saber, esconde as engrenagens de um certo poder
produtivo. Exposição que, como Foucault reconhece em O anti-Édipo, deverá dar
lugar a uma ética, a um modo de ser do desejo.
No entanto, há aqui uma grande diferença de Foucault em relação à
perspectiva de Deleuze e de Guattari. Um leitura de O anti-Édipo demonstra,
rapidamente, como a temática da repressão da sexualidade está a todo momento
presente. Há uma força de ruptura vinda do desejo que não encontra lugar nos
modos de reprodução social das sociedades capitalistas. Esta será a hipótese a
ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:
De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no
fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
147
FOUCAULT, Dits et écrist I, p. 1422
148
Idem, p. 16
149
Idem, p. 20
Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de
submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um
processo de incitação crescente. As técnicas de poder se exercem sobre o
sexo não obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário,
a disseminação e a implantação de sexualidades polimórficas. A vontade
de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou
a constituir uma ciência da sexualidade150.
A hipótese repressiva
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressão. Na verdade, o que vemos é uma “incitação institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”152.
Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelação e do exame minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunção tão particular ao ocidente moderno”, a
saber:
150
Idem, p. 21
151
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
152
Idem, p. 27
A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um
outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que, através a alma e o
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocação
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradição ascética e monástica. O século XVII fez dele uma regra para
todos153.
O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o
sexo advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
então a esta palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
não o rigor de uma proibição, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos públicos e úteis154.
153
Idem, p. 29
154
Idem, p. 35
codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva de seus
interlocutores:
É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condição para o
funcionamento de outros discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relações de poder155.
A perversão do discurso
155
Idem, p. 42
156
Idem, p. 46
legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo em vista, basicamente, as infrações às
regras de aliança matrimonial. Por isto, não haveria partilha clara entre as
infrações a tais regras e os desvios em relação à genitalidade. Adultério e
sodomia, enganar sua mulher ou violar cadáveres, por exemplo, são fenômenos
colocados no mesmo plano.
Foi necessário um lento movimento para que tais desvios em relação à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsável por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio
psíquico”ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religião
dará lugar à gestão médica da saúde sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definição da norma e de definição das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produção
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente não quando
ele nos obriga à conformação à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversões, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiões corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsão” no interior do qual poder e prazer se articulam no interior da
mesma enunciação. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele,
pretensamente, afasta.
Assim, as perversões não seriam a manifestação de uma polimorfia
originária que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reprodução. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Assim, quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna
é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicação de sexualidades singulares, pela produção e fixação da
“disparidade sexual”. Por isto:
157
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 9
158
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1405
patológico, a exaurir tal fala no interior de um sistema classificatório capaz de
escutar cada fantasia, capaz de incitar confissões e, com isto, a nos levar a nos
inscrever no interior de uma gramática, escolher histórias possíveis, controlando
assim toda produção possível de identidades.
Mas era importante a Foucault salientar como essa fala produzida pelo
discurso científico tinha uma genealogia. A genealogia da ciência da sexualidade
nos levaria diretamente à confissão cristã, pois: “é nas culturas cristãs que a
sexualidade teria, pela primeira vez, sido ligada à uma codificação abstrusa das
pulsões internas cujo deciframento exigiria toda uma “hermenêutica de si”. A
contribuição essencial do cristianismo não residiria em uma codificação dos atos
interditos e autorizados, mas no tipo de experiência de si que cada um é suposto
conhecer enquanto ser erótico”159. Nesta experiência de si que cada um é
suposto conhecer como ser erótico, habitaria o verdadeiro cerne da
normatividade moral nascida na confissão. Pois confessar não é apenas
submeter-se àquele que me escuta, vincular-me e instituir um poder àquele que
acolhe minha fala. Confessar é constituir uma forma de verdade nascida da
submissão de si à codificação exaustiva de seus atos, pensamentos, fantasias,
afetos. Pois só há confissão se eu confessar tudo, transformar cada dobra da alma
em discurso, exaurir o si mesmo no interior da fala. Admitir a centralidade da
confissão é admitir que tudo é feito para ser falado e descrito discursivamente
em uma fala que não procura a criação poética de si, mas a exaustão de si em
uma linguagem que acumula os acontecimentos, que os submete ao mesmo
regime discursivo desafetado. Pois uma confissão que seria fala do gozo não
seria uma confissão. Ela seria simplesmente gozo. Uma confissão precisa
submeter a linguagem à escrita da culpa. Ela precisa ter a natureza jurídica do
tribunal que ouve o culpado a fim de encontrar a verdade. Assim, é através da
imposição de um regime de fala, mais do que através do obrigação diante de um
conjunto de regras de conduta, que constituímos sujeitos morais. E se assim for,
então não seria possível dissociar ciência e moral, ciência como uma forma de
intervir socialmente a fim de, através da imposição de um modo de falar a
verdade, constituir sujeitos morais.
Por isto, se Foucault se voltava contra a “hipótese repressiva”, que vincula
a força política da sexualidade à revolta contra a repressão à pretensa
naturalidade de nossa “energia libidinal”, era por perceber como nenhuma
sociedade falou tanto de sexo quanto a nossa. Mais do que sociedades
repressivas, as nossas foram sociedades marcadas por uma peculiar incitação à
constituição do sexo como discurso. Pois nesta vontade de falar, ou antes, nesta
vontade de saber tudo sobre sexo, encontrávamos a incitação a acreditar que
falar sobre sexo seria a condição para nossa liberação e emancipação. Nada mais
falso, dirá Foucault.
Mas ficamos aqui com uma questão maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar
que sentimos no interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos
tornamos? De onde vem o mal-estar com este regime de fala que constitui nossa
sexualidade, assim como a esperança de outra forma de relação entre discurso,
verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao desvelamento desses:
“momentos nos quais nossas identificações parecem de uma contingência e de
159
RAJCHMAN, John; Érotique de la vérité, p. 116
uma violência das quais não tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais não se
trata mais de nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direção a
uma identidade nova e improvável”160. Ou seja, se há crítica social, para
Foucault, é porque nossas identidades aparecem, em certos momentos, como
dotadas de uma violência da qual não tínhamos consciência. Mas por que elas
aparecem assim?
Como não podemos fazer apelo a algum substrato natural que resistiria à
sua codificação integral pela administração dos corpos e regulação das
populações (saída feita, por exemplo, por Deleuze ao falar de um corpo sem
órgãos, por Freud ao falar de um corpo pulsional, por Bataille ao trazer a biologia
para fundamentar sua teoria do dispêndio e da parte maldita, entre tantos
outros), como Foucault também não quer apelar a uma fundamentação
ontológica para o mal-estar que sentimos na vida social presente (fazendo, por
exemplo, uma ontologia do ser em chave heideggeriana), então só podemos
encontrar o fundamento da crítica social na história. Nem ontologia, nem
reflexão sobre a natureza, mas o recurso a uma dimensão materialista
propriamente histórica.
Aqui, a estratégia se complexifica. Pois, para tanto, faz-se necessário ser
possível mostrar como podemos ter acesso a experiências históricas outras do
que as nossas. Ter acesso não apenas no sentido de saber de sua existência,
desvelar a prova documental da ocorrência, mas de compreender seu sentido e
permitir que a partilha deste sentido tenha a força transformadora capaz de
reconfigurar nossas experiências presentes. Foucault não aceita uma orientação
teleológica e finalista para sua reflexão histórica, como se estivéssemos no
interior de uma marcha do progresso em direção a um telos. Por isto, ele precisa
explicar como poderíamos recorrer à história para reorientar o presente. Neste
sentido, não basta saber que outras épocas produziram outros modos de relação
a si através do desejo, não basta construir aquilo que Foucault chamou um dia de
“história do homem do desejo”. Maneira de falar de uma história das técnicas de
si, técnicas através das quais, através de formas de auto-governo e de cuidado de
si, nos transformamos em sujeitos reconhecidos.
Se esta história quer servir de fundamento para a crítica do presente,
Foucault precisa mostrar como seu sentido nos é acessível, como o uso dos
prazeres que determina a especificidade de momentos perdidos dessa história
encontra lugar como potencialidade latente do presente. Seguindo uma
estratégia que não deixa de nos remeter a Bataille, Foucault distinguirá a
sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas. No
entanto, tal erotismo encontrará seu paradigma nas modalidades de usos dos
prazeres nas sociedades grega e romana. Mas para transformar tal erotismo em
fundamento para a crítica da estrutura disciplinar da sexualidade dos modernos
é necessário que algo de sua lógica esteja, de uma maneira ou de outra, presente
entre nós.
Baudelaire e os gregos
160
RACHJMAN, John; op. cit., p. 22
Em outras ocasiões, eu dissera a vocês que o conceito foucaultiano de “era
histórica” baseava-se no primado de epistemes que definiam o padrão geral de
racionalidade dos discursos científicos de uma época. Assim, por exemplo, a
modernidade baseava-se no primado de uma episteme específica caracterizada,
entre outras coisas, pelo pensar representativo e pela duplicação empírico-
transcendental do sujeito, pela constituição de um conjunto de saberes que
tomam o que condiciona o homem (na dimensão do trabalho, do desejo e da
linguagem) como objeto da ciência. Não há época que não seja polarizada pela
tensão entre discursos que se submetem à episteme hegemônica e aqueles que a
ela não se submetem. Esta é apenas a aplicação de uma ideia importante de
Foucault a respeito do fenômeno do poder, a saber:
161
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits, p. 1560
pensada, expressão de uma violência controlada que permite ao poema
conservar a dimensão da aparência, sem com isto abandonar sua singularidade.
Esta experiência estética de Baudelaire não é, no entanto, restrita apenas
à dimensão do poema. O que de fato interessa a Foucault é a maneira com que
Baudelaire vincula tal experiência a uma certa estilização de si, a definição dos
regimes de uma forma possível de vida. Por isto, o que realmente lhe interessa
são as defesas baudelerianas do dandismo, que o filósofo francês compreende
como uma forma possível de desdobramento das expectativas modernas de
autonomia, mas que não passa pela compreensão da autonomia a partir da
internalização da forma jurídica da lei pela consciência moral. O dandismo
permite compreender a vida como um trabalho singular sobre si a partir das leis
de uma estética. Um ascetismo (no sentido de ascese que nos submete a uma
prova) que faz do corpo, do comportamento, dos sentimentos e paixões uma
obra de arte. Daí porque:
162
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1390
163
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
ao projeto moderno era indissociável de uma reconstrução de si, crítica
permanente de nosso ser histórico que nos permitiria afirmar: “Ser moderno não
é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo de momentos que passam, é tomar si
mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura”164, vemos o último laço
de uma alta-costura entre estética da existência dos gregos e vanguarda
modernista.
Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade
história da experiência grega referente a relação dos sujeitos aos prazeres. Trata-
se de:
uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado à sua
conformidade a um código de comportamento, nem à um trabalho de
purificação, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos165.
164
FOUCAULT. Michel ; Dits et écrits II, Paris : Gallimad, 2001, p. 1389
165 FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
166
Idem, p. 69
prazeres: “um domínio suficientemente completo para não se deixar nunca
levar-se pela violência”167 do desejo. Por isto, o sexo é o lugar privilegiado para a
formação ética do sujeito.
A insistência neste tópico é compreensível se lembrarmos como, para os
gregos, a liberdade estará profundamente associada ao domínio que os
indivíduos serão capazes de exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a
temperança aparece como modo de elaboração a si em direção à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construção
misógina clássica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, não é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relação aos prazeres” 168. Neste
sentido, a verdade na relação ao sexo não é uma questão de conhecimento, de
classificação exaustiva e de descrição minuciosa, mas de instauração do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada não
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”169.
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania. Ele é
designado por Foucault “soberania de si”. Tal soberania de si forneceria um
horizonte de regulação moral do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo
sem desejo e sem transtorno (trouble)”170. Soberania que nos livra do fantasma
do excesso, que permite o aparecimento da liberdade como regulação singular
dos corpos sem transtornos, que é intensificação do cuidado a si. A força política
deste processo se encontra em uma aposta nas possibilidade de singularização.
Ele nos permitira, por exemplo, abandonar o discurso da sexualidade, deixar de
ter uma sexualidade fortemente identitária regulada entre o normal e o
patológico, para praticar um erotismo sem identidades previamente definidas,
preocupado apenas em agenciar o jogo de forças que nos configura, retirando
sua violência. O que não poderia ser diferente para alguém, como Foucault, para
quem as relações de poder nunca foram exatamente o problemas, mas sim a
degradação do poder em formas de coerção.
Mas o que devemos entender por “soberania” neste contexto? Notemos
inicialmente como, expulsa da condição de qualidade de quem detém o poder do
Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade que pode ser exercida por
todo sujeito em emancipação. Tal soberania é pensada, inicialmente, como
capacidade de limitação dos mecanismos do biopoder e de abertura a um espaço
renovado de trabalho sobre si a partir da criação autônoma de novas normas
possíveis.
Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensão desse projeto. Pois tal espaço pede a
reconstrução de um conceito de indivíduo que, em vários pontos, recupera temas
da individualidade liberal. O quanto estaríamos diante de um conceito de
autonomia vinculado à individualidade liberal, eis uma questão que gostaria de
deixar em aberto.
Neste sentido, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histórico no qual sua ideia de soberania aparece. As
167
Idem, p. 93
168
Idem, p. 116
169
Idem, p. 29
170
Idem, p. 94
transformações políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensão individual:
171
FOUCAULT, Histoire de la séxualité III, p. 123
172
Idem, Dits et écrits II, p. 1049
173
Idem, p. 1051
174
Idem, p. 1129
175
Idem, Dits et écrits II, p. 984
entrou em colapso. Quem garantirá o reconhecimento de minha soberania de si
se não há mais remissão necessária a um espaço político geral?
Por outro lado, há ainda um problema com a ideia do sujeito dos
“prazeres”. Um sujeito capaz de trabalhar a si mesmo tendo em vista a produção
de prazeres sempre novos não seria a versão contemporânea do indivíduo que
sabe calcular conscientemente prazeres e se afastar dos desprazeres, extrair o
máximo de prazeres de si, como se ele fosse “proprietário de si mesmo”, potestas
sui, o que não está realmente longe da definição lockeana do indivíduo como
“proprietário de sua própria pessoa”? Esta relação de proprietário de si pode, de
fato, aparecer como uma forma de emancipação social ou ela seria uma forma
insidiosa de perpetuar as ilusões de um tipo inusitado de sujeito da consciência?
Pois seria interessante pensar esta recuperação foucaultiana dos prazeres à luz
da distinção lacaniana entre prazer e gozo. Não seria o soberano de si
foucaultiano alguém capaz de reduzir a dimensão radicalmente heterônima do
gozo a fim de instrumentalizá-la na forma de prazeres nos quais
conscientemente trabalho e disponho como um proprietário de mim mesmo no
melhor estilo liberal? Estas são algumas questões que gostaria de deixar para
vocês.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 10
176
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao
ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos177.
Notem como tal colocação não está muito distante de afirmações que
vimos anteriormente presente nos textos de Georges Bataille. Lembremo-nos,
por exemplo, de afirmações como:
177
Idem, p. 25
178
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 55
Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de
doutorado, Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua
recepção no pensamento francês contemporâneo (em especial, em Sartre, Lacan,
Foucault e Deleuze). No entanto, é com seu segundo livro, Problemas de gênero,
de 1990, que ela aparecerá como um teórica inovadora à procura de uma
compreensão da subjetividade e da experiência sexual não mais marcada pelo
problema da produção de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o
“gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o
espaço privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na
normatividade pretensamente fornecida pela natureza.
Depois de Problemas de gênero, Butler publica vários livros nos quais
procura aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua
maneira de pensar problemas de gênero, como o papel da materialidade dos
corpos, o impacto psíquico das normas sociais, a natureza da experiência moral,
entre outros. São exemplos deste movimento de seu pensamento livros como:
Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993), Excitable speechs: a politics
of the performative (1995), The psychic life of power: theories of subjection
(1995) e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between
life and death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemática a
respeito de questões política não diretamente relacionadas a lutas ligadas às
minorias sexuais, mas a problemas ligados à modalidades de exclusão e de
precarização da existência. São livros não ligados diretamente à questões de
gênero, mas a teoria política, como: Precarious life: the powers of mourning and
violence (2004), Giving an account of oneself (2005) e o último, sobre a questão
judaico-palestina: Parting ways: jewishness and the critique of zionism (2012).
O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta
trajetória, permitindo com isto uma compreensão mais articulada de sua
maneira peculiar de extrair consequências políticas das discussões sobre
identidade de gênero. Para tanto, precisamos voltar à sua tese de doutorado
sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas leva a sério
colocações da própria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos
permanecem no interior da órbita de um certo conjunto de questões hegelianas:
o que é a relação entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito
implica uma relação radical e constitutiva à alteridade?”179.
Butler começa por lembrar que há uma “visão filosófica” do desejo que
procura nos fazer acreditar que a reflexão sobre a vida desejante deveria nos
levar, necessariamente, a um paradigma de reconciliação no interior do qual
encontraríamos a integração psíquica entre razão e afetos. Esta reconciliação, no
entanto, não estaria presente em Hegel, pois em seu caso o desejo apareceria
exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado” 180 por
ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de
identidade e lugar”181. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma
fratura que faz do meu ser o espaço de um questionamento contínuo a respeito
do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um questionamento que faz
de meu ser um modo contínuo de interpelação ao outro, já que não há desejo
179
BUTLER, Judith; Subjects of desire, p. XX
180
Idem, p. 7
181
Idem, p. 9
sem que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem de si a
partir da internalização do olhar de um Outro elevado à condição de ideal. Todo
desejo pressupõe um campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve.
Pois todo desejo pressupõe destinatários, é desejo feito para um Outro e inscrito
em um campo que não é só meu, mas é também campo de um Outro. Assim,
perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir do desejo é partir necessariamente
do sujeito como um entidade relacional para a qual, como disse Butler, há “uma
relação radical e constitutiva à alteridade”.
Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretação que visa radicalizar a
experiência de negatividade própria a seu conceito de desejo. Para compreender
o que significa tal negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma
longa tradição que remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação
da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar
sobre o desejo, Hegel afirma:
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto)
é uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um
ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que assimila o objeto
a si. Esta experiência da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a
especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta,
em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à necessidade do movimento;
assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar
(ertragen) a contradição de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por
um desejo que coloca a essência do sujeito no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:
182
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427
183
Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124
se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de
auto-posição da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no
objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação.
Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque,
devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da consciência,
modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de
“negatividade” e que insiste que as determinações estão sempre em falta em
relação ao ser.
Desta forma, não haverá objeto natural algum capaz de realizar a
satisfação da negatividade própria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante
procura no Outro não algo como a reiteração de seu sistema de interesses e
necessidades. Ela procura no Outro o reconhecimento da natureza negativa e
indeterminada de seu próprio desejo. É tendo tal esquema em mente que Butler
poderá quebrar a natureza essencialista da noção de gênero (em suas versões
ontológicas, políticas ou metodológicas) defendida então por certas correntes
feministas.
Três anos depois da publicação de sua tese, Butler apresente este que será
seu trabalho mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da
identidade. O livro apresentava uma discussão inovadora sobre a noção de
gênero servindo-se, em larga medida, de apropriações da teoria do poder de
Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da tentativa em dissociar sexo
e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-Strauss e Lacan)
como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal de
funcionamento da vida social, para ao final abrir certas considerações sobre as
potencialidades política de uma noção de gênero que subverta a identidade.
Maneira de mostrar como um política feminista não precisa adentrar na
reificação ilusória do gênero e da identidade.
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na
tentativa de fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades
sexuais não devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura
binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de tentar escapar da própria noção de
representação através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta
a possibilidade de realização de atos subjetivos capazes de fragilizar o caráter
reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as
interdições postas pelo sistema binário de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últimas
conseqüências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente)
e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de
fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até
porque gênero, segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”184. Esta suspeita profunda em relação à dimensão do pré-
184
BUTLER, Gender trouble, p. 11
discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma
naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de
produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
caráter ideológico da noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma
relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”185. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”186.
Voltemos por um momento à noção de sexualidade em Foucault, pois é ela
que opera na crítica de Butler à pressuposição mimética entre gênero e sexo.
Vimos como Foucault insistia que as relações de poder nunca poderiam ser
compreendidas como meramente opressivas. Elas são inicialmente produtivas,
ou seja, elas produzem os sujeitos nos quais o poder age. Mas para aceitar que há
uma natureza produtiva do poder, faz-se necessário também aceitar que nem
todas as formas de dominação são formas de opressão. Esta é um perspectiva
que Butler partilha com Foucault.
Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da
noção foucaultiana de poder:
185
idem, p. 10
186
Idem, p. 22
187
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité I, p. 122
188
Idem, p. 135
Notem que esta resistência não precisa vir de fora das relações de poder
como, por exemplo, de um corpo insubmisso, de uma libido selvagem, de uma
sexualidade não-controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do
próprio poder, isto no sentido de vir da heterogeneidade dos jogos de força, com
suas direções múltiplas. Ou seja, quebrada a ideia de um poder que age de
maneira unitária e ordenada, mas que produz efeitos inesperados, situações não
completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o
poder age. De certa forma, ele age sobre suas próprias camadas.
Isto talvez explique porque gênero não deve ser compreendido como uma
identidade estável. Assegurar algo em sua significação não é resultado de um
gesto fundador, de uma espécie de batismo originário para todo o sempre. Antes,
trata-se de um processo continuo de repetições que, ao mesmo tempo, anula a si
mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas
regras. Sendo assim, assumir um gênero não é algo que, uma vez feito, estabiliza-
se. Ao contrário, estamos diante de uma inscrição que deve ser continuamente
repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de
produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que:
“A injunção de ser um gênero dado produz necessariamente fracassos, uma
variedade de configurações incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e
desafia a injunção que as gerou”189.
189
BUTLER, Judith; Gender trouble, p. 185
190
idem, p. 175
um deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura a
processos de ressignificação capazes de se disseminarem na malha social.
Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença
ontológica entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada
aqui à condição de simulacro que desorienta a própria noção de identidade e
representação fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e não se adequar à
diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam postos pela Lei.
Assim, tudo se passa aqui como se:
191
COLEBROOK, Irony, p. 125
192
BUTLER, Bodies that matter, New York; Routledge, 1993, p. 231
193
idem, p. 235
modos de indexação entre normas, modos de escolhas de objeto e determinações
identitárias. Veremos melhor est e ponto na próxima aula.
Aula 11
Erotismo, sexualidade e gênero
Sexo como o que nos empurra em direção a estas conformações ainda não
reconhecidas do desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de
recuperação do que era visto como pato lógico, doentio e, por isto, sem direito à
existência, ou ainda, como inumano, pois sem identidade fixa e definida.
Lembremos como o próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático
deste embate. O termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é
“estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a
ser usada como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos
com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final
dos anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no
interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo de
uma palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria
endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de
gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro
momento das lutar por reconhecimento não mais centradas na defesa de alguma
identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produção do
sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana
Teresa de Laurentis.
A fim de insistir na ausência de vínculos entre gênero e identidade, Butler
procura levar às últimas conseqüências a distinção entre sexo (configuração
determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada).
No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre
natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler. “é o aparato
discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são
194
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
195
Idem, p. 25
produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma
superfície politicamente neutra na qual a cultura age”196. Esta suspeita profunda
em relação à dimensão do pré-discursivo, do anterior ao advento da lei, leva
Butler a recusar toda ideia de uma naturalidade reprimida pelo advento das
normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de
produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
caráter ideológico da noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma
relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”197. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”198.
O mito da identidade
No entanto, Butler precisa explicar como e porque é criada a ilusão de que a vida
social deve se orientar por identidades estáveis ou ainda, no caso da relação
entre sexo e gênero, como e porque ocorre a reificação de tomar por
normatividade natural aquilo que é produto de uma relação social de poder.
Neste sentido, ela dirá:
196
BUTLER, Gender trouble, p. 11
197
idem, p. 10
198
Idem, p. 22
199
Idem, p. 46
parentesco, que afeta tal transformação de várias formas regulatórias”200. A
crítica a Lévi-Strauss teria ainda o mérito de abrir espaço a crítica daqueles que
levaram a cabo as consequências de sua teoria da vida social, como Jacques
Lacan. O que é uma maneira de Butler acertar contas com algumas das
referências mais importantes para os estudos feministas até então.
Lévi-Strauss parte da constatação da universalidade da lei do incesto para
discutir os fundamentos da relação entre natureza e cultura. Ou seja, o que lhe
preocupa é uma questão classicamente filosófica: o que é necessário para
sairmos do estado de natureza? Neste sentido, ele lembra como os
comportamentos naturais tem a característica de serem universais e necessários
(como os impulsos e tendências), enquanto os comportamentos sociais são
passíveis de diferenças e de contingência (por isto coercitivos), pois respondem
às especificidades de contextos sócio-históricos. No entanto, conhecemos ao
menos uma norma social que tem o caráter de universalidade e necessidade das
normas naturais. Trata-se do tabu do incesto:
A proibição do incesto nos lembra que não haveria grupo social na qual
inexistiria proibição alguma relativa ao casamento. Tais proibições podem
variar, mas não haveria casos de sociedades nos quais elas seriam inexistentes. O
que nos colocaria a questão: por que a questão do incesto parece ser o
fundamento da passagem da natureza à cultura?
A peculiaridade de Lévi-Strauss está na sua interpretação do significado
da proibição do incesto. No fundo, tal proibição marca a passagem do fato
natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se ao tabu do
incesto, o homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas, ou
ainda, em um sistema de comunicação onde as mulheres são tratadas da mesma
forma que sinais lingüísticos. Através da proibição do incesto, um grupo se vê
obrigado a tomar um mulher de outro grupo como esposa, instaurando assim
relações de exogamia, obrigações de receber e de dar. As sociedades aparecem
assim como um sistema de trocas na qual o elemento fundamental de troca são
mulheres:
200
Idem, p. 47
201
LÉVI-STRAUSS, Claude; Les structures élémentaires de la parenté, p. 10
202
Idem, p. 549
Ou seja, se não houvesse a exogamia, se as mulheres não fossem as
“moedas de troca” da vida social, então o grupo social explodiria em uma
multidão de famílias que formariam: “sistemas fechados, mônadas sem porta
nem janela“203 inviabilizando a essência mesma da sociedade com sua produção
estrutural de diferenças controladas em um sistema. Para Butler, tal perspectiva
estruturalista significa que:
Quer dizer, seria possível pensar a lei social de outra forma, não como a
normatividade que determina lugares e funções definidas para gêneros, criando
assim a estabilidade de identidades necessárias, mas como uma generatividade
variável que produz até mesmo subversões de configurações locais de
funcionamento da norma? Ou seja, tudo se passa como se Butler afirmasse que a
análise estrutural de Lévi-Strauss é, no máximo, uma análise local.
203
Idem, p. 549
204
BUTLER, Gender trouble, p. 53
205
Idem, p. 53
bem acabado de uma perspectiva dita falocêntrica e patriarcal do funcionamento
social.
Grosso modo, podemos dizer que isto ocorreu por Lacan seguir, à sua
maneira Lévi-Strauss e afirmar a natureza constitutiva do desejo masculino na
constituição dos laços sociais. Isto o leva a afirmar que o Falo aparece como o
significante a partir do qual o desejo humano se orienta. Ele será: “ o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher”206.
Este lugar central do falo é submissão da diversidade possível dos modos
de sexuação ao primado da função fálica. Assim, a sexuação feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid (injeva do pênis), com sua maneira de
superar tal relação de dependência através do ato de transformar os atributos
femininos em signos de reivindicações fálicas e que Lacan, seguindo Joan Rivière,
chama de mascarada. Da mesma forma como, para Lévi-Strauss, sociedades são
sistemas de trocas entre mulheres por sujeitos masculinos, para Lacan, as formas
de sexualidade se regulam a partir de um significante que tem sua indelével
vinculação ao gênero masculino. Pois o falo permite a construção de um Universal
capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo
universal de reconhecimento mútuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da história subjetiva. Isto explica porque Butler
dirá que tal processo: “exige que as mulheres reflitam o poder masculino e em
todo lugar reassegurem tal poder contra a realidade de sua autonomia
ilusória”207.
No entanto, a teoria de Lacan é mais complexa do que isto que descrevi.
Primeiro, é importante lembrar como, para Lacan, a sexualidade é uma
construção social. Daí porque ele insistirá que “homem” e “mulher” são, antes de
mais nada, significantes cuja realidade é eminentemente sócio-linguística. Neste
sentido, é absolutamente possível uma mulher (anatomicamente falando) ocupar
uma posição masculina na sua relação ao desejo.
Proposições desta natureza se prestam a vários mal-entendidos. Afinal,
como é possível dizer que a sexualidade é uma construção social se há
diferenças anatômicas evidentes que parecem naturalmente constituir dois
sexos? E se ela é, de fato, uma construção social, por que falamos apenas em dois
sexos? Por que não cinco? Por que não abandonar a distinção binária e pensar
uma produção plástica de novas formas de sexualidade?
No entanto, dizer que a determinação da sexualidade se estabelece sem
levar em conta a diferença anatômica dos sexos, como quer Lacan, não implica
afirmar que tal diferença inexista. Não é exatamente a mesma coisa, por
exemplo, um homem e uma mulher (anatomicamente falando) ocuparem a
posição masculina. O que Lacan parece nos querer dizer é que tal diferença
anatômica é desprovida de sentido, ela não é normativa por não ter força para
determinar condutas, ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que,
diante o sexual, sempre me vejo diante de algo irredutivelmente opaco e
resistente a toda operação social de sentido. “A sexualidade”, dirá Lacan, “é
exatamente este território onde não sabemos como nos situar a respeito do que
é verdadeiro”208.
206
LACAN, S V, p. 273
207
BUTLER, idem, p. 57
208
Jacques Lacan, Mon enseignement (Paris: Seuil, 2006) p. 32
Notemos este dado fundamental: as considerações clínicas lacanianas são
solidárias de um tempo no qual as estruturas familiares perderam sua sustância
normativa e no qual a sexualidade não é mais um campo claramente direcionado
à teleologia da reprodução. Neste contexto histórico de indeterminação, a
socialização do desejo não pode simplesmente levar o sujeito a desempenhar
papéis e identidades sexuais sem distância alguma, como se fosse questão de
naturalizar o que é socialmente construído. Ao contrário, a socialização do
desejo deve nos levar a confrontarmos com tal opacidade. Esta é, em última
instância a função do falo.
É levando tais questões em conta que devemos entender porque Lacan
define o falo como: “o significante fundamental através do qual o desejo do
sujeito pode se fazer reconhecer”209. Ou seja, o falo não é exatamente o pênis
orgânico, ou algum signo de potência, mas um significante puro, uma diferença
pura que organiza posições subjetivas (masculino/feminino) a partir da
experiência de inadequação fundamental entre o desejo e as representações
“naturais” da sexualidade. Neste sentido, o falo é apenas: “um símbolo geral
desta margem que sempre me separa de meu desejo”210. Tal noção do falo como
‘um símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos
mostra como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica 211. Ele é a
inscrição significante da relação de inadequação entre o sexual e a
representação. Neste sentido, a Lei lacaniana demonstra-se vazia, desprovida de
todo conteúdo normativo positivo.
Para Butler, a estratégia de Lacan é paralisante, pois ao mesmo tempo
reconhece o caráter impossível de sustentar identidades de gênero como
identidades fortemente normativas, ou seja, abre espaço para a experiência da
negatividade do desejo em uma chave que não deixa de nos remeter a Hegel,
mas perpetua tais identidades sem permitir o aparecimento de novas
configurações possíveis para além do quadro heterossexual, não fornecendo a
tal negatividade sua verdadeira força produtiva, ao menos segundo Butler. Daí
uma afirmação como:
Esta passagem crítica por Lévi-Strauss e Lacan é muito importante para Butler
evidenciar, ao menos a seus olhos, estratégias narrativas que impossibilitam
209
LACAN, Séminaire V (paris : Seuil, 1998) p. 273
210
LACAN, S V, p. 243
211
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua realização
subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
212
BUTLER, idem, p. 72
ultrapassar a matriz identitária heterossexual como modalidade de regulação
geral da vida social. Seja através do caráter normativo do estruturalismo de Lévi-
Strauss, seja através da conservação da impossibilidade em Lacan, é sempre o
quadro de distinções heterossexuais que é conservado em sua função de
referência. Mesmo que no caso de Lacan, ele pareça ser conservado através de
uma certa melancolia vinda desta pretensa: “idealização religiosa da “falta”, da
humilhação e da limitação diante da Lei”, deste vínculo a uma identidade que
parece a todo momento expressar sua própria impossibilidade.
Melancolia e identidade
Levando em conta este ponto, Butler passa a terceira estratégia de seu capítulo,
certamente aquela que mais será por ela posteriormente retomada. Trata-se de insistir
que a força da submissão dos sujeitos a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável é indissociável dos usos da melancolia. O poder age
produzindo em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente
melancólica. Se vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste
forma que ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção.
Neste ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais importantes: “A
vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de apenas lembrar aqui de
algumas características gerais da ideia freudiana para, na próxima aula, retomar este
ponto mostrando como se trata de um ponto fundamental para sua teoria do poder e da
ação política.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral
de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido
é internalizado como uma proibição”213.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais
ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que
damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da
identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações
amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais
relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se
tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de
autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio,
através de autorrecriminações e acusações. A tese fundamental de Freud consiste em
dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de
amor. Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a
situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar
em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra
213
Idem, p. 80
aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Essa é uma maneira de dizer que a
melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de
nossas identidades.
Butler vincula tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma
bissexualidade inata nos seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir
libidinalmente os pais de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da
identidade de gênero que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo
em identificações capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de
objetos homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como
se a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 12
Poder e melancolia
214
Idem, p. 46
compreender como certos afetos são produzidos a fim de conformar sujeito a
determinados tipos de comportamentos, a aceitarem certas impossibilidades de
ação como necessárias, a assumirem certos medos. Uma teoria da sujeição será
necessariamente teoria dos afetos sociais. Neste contexto: “sujeição consiste
precisamente nessa dependência fundamental em relação a um discurso que
nunca escolhemos mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa agência”215.
Ou seja, um discurso que não sinto como completamente meu, mas que define a
maneira com que defino minha ação. Um discurso que , de certa forma, está
dentro de mim sem ser completamente idêntico ao que entendo por minha
identidade.
A este respeito, a hipótese de Judith Butler consistirá em mostrar como a
força da submissão dos sujeitos seja a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável, seja à própria forma geral da identidade é
indissociável dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nós
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente melancólica. Se
vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste forma que
ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção, pois violência de uma regulação social que leva
o eu a acusar si mesmo em sua própria vulnerabilidade. Desta forma, através da
melancolia, posso aceitar ser habitado por um discurso que, ao mesmo tempo,
não é meu mas me constitui.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste
ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais
importantes: “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de
inicialmente lembrar de algumas características gerais da ideia freudiana para,
ao final, mostrar como se trata de um ponto fundamental para a teoria do poder
e da ação política de Judith Butler.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime
geral de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de
gênero. Pois: “a identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o
sexo do objeto proibido é internalizado como uma proibição”216.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em
sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão
mais ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o
nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos
de formação da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da
identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços sociais
capazes de socializar o desejo, de produzir as condições para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a
fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Por outro lado, isto nos explica porque Butler dirá: “nenhum sujeito emerge sem
um vínculo passional com esses com os quais ele ou ela é fundamentalmente
dependente”217.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é,
215
BUTLER, The psychic life of power, p. 2
216
Idem, Gender trouble, p. 80
217
Idem, The psychic life of power, p. 7
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancólica. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tópico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
agressividade em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
própria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificação de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com
a situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmação como: “Freud identifica consciência elevada e auto-reprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negação de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e não resolvido”218. Assim, a sujeição do desejo pode se transformar
em desejo por sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal
quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas
identidades.
Butler insiste como tal vínculo melancólico a um objeto perdido funda a
própria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma que as identidade
em geral são constituídas. Tendo isto em mente, ela pode vincular inicialmente
tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma bissexualidade inata nos
seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir libidinalmente os pais
de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da identidade de gênero
que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo em identificações
capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos
homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se
a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade. Pois identidades serão sempre
marcadas por essa impossibilidade de voltar a investir libidinalmente aquilo que
perdi, aquilo que agora se transformou em um ponto opaco do meu desejo. Essa
perda me faz ter uma identidade melancólica.
Ética e opacidade
218
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
contra nós em uma reflexividade violenta e paralisante. Estes objetos
demonstram como nossa constituição como sujeito de nossos atos é
indissociável da permanência de vínculos libidinais que aparecem a nós de
maneira opaca, desestruturando a todo momento nossas identidades e as
narrativas que construímos sobre o que somos e quem somos. Daí uma ideia
importante como: “Se exijo “ter” uma sexualidade, então isto poderia parecer que
uma sexualidade é o que está aqui para ser chamada de minha, para possuir
como um atributo. Mas e se sexualidade é o meio através do qual sou
despossuído?”219. Ou seja, se há algo na experiência sexual que sempre parece
nos colocar diante de objetos que nos desestruturam, que nos despossui, então
integrar o que tem a força de nos despossuir pode ter uma consequência políica
importante. Pois isto significa reconhecer minha dependência em relação ao que
não controlo. Não se trata assim de um abandono de uma noção autárquica de
autonomia em direção a uma forma mais elaborada de relacionalidade, ou seja,
de reconhecimento da natureza relacional do sujeito em sua agência. A ideia de
uma natureza relacional não capta o que significa as consequências da
compreensão de que : “como corpos, estamos fora de nós mesmos e somos para
outro”220. Pois a principal consequência é a consciência de uma vulnerabilidade
estrutural própria à nossa condição. A aposta de Butler consiste em transformar
a consciência da vulnerabilidade e da dor que sentimos diante de objetos
perdidos em elemento fundamental para a constituição da ação política. Pois
podemos temer tal vulnerabilidade, o que terá consequências evidentes:
Quando luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, baní-lo em nome de uma ação
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado221.
219
Idem, Undoing gender, p. 16
220
Idem, Precarious life, p. 27
221
Idem, p. 30
222
Idem, Undoing gender, p. 2
A opacidade do sujeito pode ser a consequência de seu ser concebido
como um ser relacional, ser cujas relação primárias e iniciais não estão
sempre disponíveis a um conhecimento consciente. Momentos de
desconhecimento a respeito de si mesmo tendem a emergir no contexto
de relações a outros sugerindo que tais relações chamam formas
primárias de relacionalidade que não estão sempre disponíveis à
tematização explícita e reflexiva.