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MANZANO E A QUESTÃO AUTOBIOGRÁFICA: UMA

LEITURA BAKHTINIANA
Daniela Nascimento1

Juan Francisco Manzano no Brasil

Juan Francisco Manzano foi um poeta em Cuba que, em 1840, teve sua autobiografia
publicada em Londres. A Autobiografia do poeta escravo é uma narrativa rara, pois, à época,
o analfabetismo era a norma e entre os escravizados, a situação era ainda mais grave.
Manzano criava versos que decorava e depois declamava, o que chegou a lhe resultar castigos
severos:

Quando tinha doze anos, já tinha composto várias poesias de memória,


porque meus padrinhos não queriam que aprendesse a escrever.
(MANZANO, 2015, Posição 269)

Mais velho, já em outra casa, quando decidiu aprender a escrever mesmo diante da oposição,
após conseguir providenciar o papel, a pena e a tinta, havia ainda a oposição do patrão. À
época, Manzano trabalhava para o senhor Marquês, que gostava dele (Posição 410). Mesmo
sendo descrito como um dos patrões mais benevolentes que Manzano teve, no trecho a seguir
percebe-se bem o posicionamento social de ambos:

Consegui imitar as letras mais formosas e cheguei a fazê-las de jeito que


mais pareciam gravadas que de pena. (...)
O Senhor Marquês me encontrou uma vez e, pelo que disse acerca daquilo,
cheguei a crer que eu já sabia escrever. Então, soube meu senhor dos que me
viam desde as cinco com meu material de escritura, que eu passava o tempo
todo às voltas com meus papéis. Não poucas vezes me surpreendeu na ponta
de uma mesa que havia em um canto, me ordenando que deixasse aquele
entretenimento que nada correspondia à minha classe e que achasse algo
para costurar. Nesse ponto, não me descuidava, e sempre tinha alguma peça
a mão para adiantar a costura.
Me proibiram de escrever, mas em vão. Todos iam se deitar e, então, eu
acendia meu toquinho de vela e me compensava, a meu prazer, copiando as
mais bonitas letrinhas do poeta Arriaza. Sempre imaginava que, ao imitar
sua letra e parecer-me com ele, já era eu poeta ou sabia compor versos.
(MANZANO, 2015, Posição 612)

O letramento e a produção poética de Manzano foram, portanto, exceções e o texto


dele é o único do gênero já divulgado na América Latina. Fruto de uma encomenda de um
grupo de literatos cubanos sob a liderança de Dom Domingo Del Monte, o livro foi primeiro
publicado na Inglaterra como parte dos esforços abolicionistas. Apenas em 1937 que

1
Aluna da pós-graduação em Literatura na Unitau (2015-2016). Texto produzido para a
disciplina de Literatura e análise do discurso, sob orientação da professora Miriam Puzzo.
Manzano foi publicado em espanhol em Cuba. No Brasil, o texto foi publicado em português
pela Editora Hedra apenas em 2015. Passemos a uma leitura da obra em duas etapas:
primeiro, dos pré e pós textos para depois fazermos uma breve análise da autobiografia de
Manzano em si.

A edição brasileira é composta pelo texto de Manzano traduzido e “facilitado”,


seguida de uma tradução-transcriação daquela que seria a forma de Manzano escrever, caso
tivesse escrito sua narrativa originalmente em português. Alex Castro, o tradutor, apresenta o
primeiro texto apenas com o intuito de ampliar a leitura e divulgação de Manzano,
principalmente entre leitores em idade escolar. Para ele, é importante enfrentar o texto do
poeta da forma que Manzano escreveu.

As duas versões do texto de Manzano são precedidas pelo poema do mesmo autor
“Meus trinta anos”, um prefácio de Ricardo Salles, professor de história e autor de diversos
livros na área e ainda uma “Apresentação” do livro por seu tradutor no Brasil. Nesta, Alex
Castro defende a narrativa de Manzano como foi escrita, sem edições, pois esse seria “o
melhor autorretrato que temos dele sua maior contribuição à literatura” (Posição 97). Assim,
afirma o tradutor que

(...)trazer o texto de Manzano à norma culta simplificada do português


significa, ao mesmo tempo, colocá-lo à disposição de “outro” que não
consegue falar por si próprio e, também, colocar a nós mesmas na cômoda
posição de pessoas leitoras normativas e normalizadas para quem a fala do
“outro” deve se adequar para poder ser mais consumida com mais conforto.
(CASTRO, 2015, Posição 120).

Alex Castro defende que Manzano seja lido na sua “voz”, pois fatos e dados são encontráveis
em qualquer livro didático, mas “experimentar a voz” de um escravizado seria uma
experiência acessível por meio da transcriação. Ainda pontua que corrigir e “sanitizar” a voz
de Manzano foi uma experiência penosa, apenas justificável pela ampliação do público leitor.

Há também, após o texto autobiográfico, uma “Iconografia” com algumas fotos de


alguns locais mencionados no texto, um pequeno texto sobre “A criação da voz de Manzano
em Português”, no qual explica as escolhas para a grafia de diversas palavras, “Sugestões de
leituras para pessoas brasileiras”, uma bibliografia e ainda um texto de Urbano Martínez
Carmenate, “Réquien para Manzano”, seguido de agradecimentos do tradutor. Ou seja, o texto
do poeta escravizado é precedido e sucedido por diversos outros textos que mediam a relação
do leitor com a autobiografia.
No texto de apresentação, ao justificar as notas explicativas ao final da transcriação
(são 342), Alex Castro afirma: “O texto de Manzano fala por si só” (CASTRO, 2015, posição
154). Esse enunciado não está isolado e, apesar de dizer que o texto de Manzano fala por si
só, ou seja, não precisa de outros textos, optou-se por mediar o seu texto com diversos outros
textos de apresentação, contextualização e de aprofundamento na história da vida do cubano.

Apesar de se dizer que Manzano “fala por si só”, observa-se que o papel da situação
extraverbal é mais que a causa externa do enunciado, é parte constitutiva essencial da
estrutura de sua significação. Um enunciado concreto, segundo Bakhtin, compõe-se de duas
partes: a parte percebida ou realizada em palavras e a parte presumida. O que contexto
extraverbal mostra é que, por mais que seja dito que o texto não precisa de complemento,
trata-se de uma escrita de meados do século XIX em outra língua, em outro país, num
contexto histórico-social diverso. Textos de autores brasileiros do mesmo período ou mesmo
de alguns anos depois, como José de Alencar e Machado de Assis são frequentemente
mediados por professores, instituições e mesmo nas próprias edições com capas mais
atraentes ao público jovem e textos de apoio. Ou seja, nenhum texto fala por si só. Mesmo
que não houvesse nenhuma intervenção, todos os textos são atravessados por outros discursos
e estão inseridos em um contexto histórico ainda mais amplo.

A autobiografia

A leitura do gênero autobiografia é geralmente feita sob o ponto de vista no qual o


autor-pessoa não é problematizado como construção estética. Lê-se um sentido pessoal, no
qual as noções de autor-pessoa e autor-criador são indistintas. Para Bakhtin, até mesmo
quando uma obra é autobiográfica, o autor deve “colocar-se à margem de si, vivenciar a si
mesmo, olhar a si mesmo com os olhos do outro”, pois, com um só e único participante não
pode haver acontecimento estético. A consciência absoluta, que não tem nada que lhe seja
transgrediente, nada distanciado de si mesma e que a limite de fora, não pode ser
transformada em consciência estética (BAKHTIN, 2003[1924-1927] p. 19-20).

A escrita de Manzano ilustra bem essa questão. Ao narrar os seus sofrimentos,


Manzano utiliza a sintaxe de modo a evitar dizer quem ordenava os castigos. Evita nomear
quem dava as ordens para tais punições aleatórias e tão cruéis:

Por qualquer travessura própria de rapaz, sofria eu trancado em uma


carvoeira de chão de terra, por mais de vinte e quatro horas, sem ter com o
que me cobrir. Eu era extremamente medroso e gostava de comer. Em meu
calabouço, mesmo na maior claridade do dia, era preciso uma boa vela para
enxergar qualquer objeto. Aqui, depois de levar açoites, eu era trancado com
ordem e pena de grandes castigos para quem me desse até uma gota de água.
O que ali eu sofria, afligido pela fome e pela sede, atormentado pelo medo,
em um lugar tão soturno quanto distante da casa, em um quintal junto a uma
cavalariça e a uma lixeira fedorenta e evaporante, e a uma latrina infecta,
úmida e sempre pestífera, do qual só estava separado por umas paredes
cheias de furos, ninho de ratazanas disformes que, sem cessar, me passavam
por cima.
Tanto se temia nesta casa a tal ordem que ninguém ninguém se atrevia a me
dar nenhuma migalha, embora houvesse oportunidade. Minha cabeça ficava
cheia das histórias de coisas ruins de outros tempos, de almas penadas e
encantamentos dos mortos, que quando saía um tropel de ratos fazendo
barulho me parecia ver aquele sótão cheio de fantasmas, e soltava gritos
pedindo em altos brados misericórdia. Então, me tiravam de lá e me
torturavam com tanto açoite até não mais poder, e me trancavam outra
vez, e escondiam a chave no quarto da Senhora. (MANZANO, 2015,
Posição 275, grifo meu)

No entanto, algo lhe escapa e sabemos então que a chave do calabouço ficava no quarto da
Senhora. Ora, a principal responsável, nesse caso, era a Senhora, mas ele não se detém na
acusação da patroa. Em vez disso, logo em seguida ainda inclui uma menção honrosa aos
filhos da patroa:

Em duas ocasiões, se destacaram a piedade do Senhor Dom Nicolás e seus


irmãos, introduzindo de noite um pouco de pão torrado por uma grade ou
abertura na porta e, com uma cafeteira de bico longo, me danco um pouco de
água.
Esta penitência era tão frequente que não passava semana em que não
sofresse este tipo de castigo duas ou três vezes. No campo, tinha sempre
martírio igual. (Idem, posição 283)

A Marquesa de Prado Ameno e seu filho Nicolás, ambos retratados na obra, ainda
eram vivos quando a autobiografia foi escrita, sendo que Nicolás era membro da sociedade
literária que encomendou o livro (Posição 75). A escrita da autobiografia se faz nesse
contexto. Fosse Manzano livre, pudesse viver em outro país, enfim, fosse outra a sua sorte no
momento da escrita, leríamos uma outra autobiografia, pois o texto, esse enunciado concreto,
ocorre no processo de interação social entre os participantes da enunciação, sua forma e
significado são determinados pela forma e caráter dessa interação (BRAIT, 2008, p.68).

Em outro trecho, observamos o que Manzano diz a respeito de sua sinhá:

Soube minha sinhá que eu palavreava muito, porque os criados velhos de


minha casa me rodeavam quando eu estava de bom humor e gostavam de
ouvir minhas poesias, que não eram nem religiosas nem românticas, mas
próprios produtos de minha inocência. Deu-se ordem expressa em casa para
que ninguém falasse comigo, pois ninguém sabia explicar o gênero de meus
versos, nem eu nunca me atrevi a recitar um, embora duas vezes isso tenha
me custado uma boa surra.
Para praticar minhas coisas, que eu compunha de memória por carecer de
escritura, eu falava sozinho, fazendo gestos e expressões segundo a natureza
da composição. Era tal a torrente de falar que eu falava com a mesa, com o
quadro, com a parede etc, e a ninguém dizia o que tinha comigo, e, por isso,
somente quando podia me juntar com os sinhozinhos, eu lhes recitava muitos
versos e lhes cantava contos de encantamento, que eu compunha de memória
no resto do dia, cujo cantarzinho era todo alusivo à aflitiva imagem de meu
coração.
Minha ama, que não me perdia de vista nem sequer dormindo, porque
até sonhava comigo, havia de perceber algo.
Em uma noite de inverno, rodeado de sinhozinhos e criadas, me fizeram
repetir um conto e ela se manteve oculta em outro quarto, atrás de umas
persianas ou romanas. No dia seguinte, por uma ninharia, como se costuma
dizer, em seguida de uma boa surra, me puseram uma grande mordaça e de
pé em um banquinho no meio da sala, com uns dizeres atrás e diante de mim,
dos quais não me recordo, e severa proibição de que ninguém puxasse
conversa comigo. E, quando eu quisesse ter uma conversa com alguém mais
velho, deviam dar-me uma bofetada. De noite, devia ir dormir às doze ou a
uma da madrugada a mais de doze quarteirões de distância, onde morava
minha mãe. Eu era em extremo medroso e tinha que passar por esse
infortúnio até nas noites mais chuvosas. (MANZANO, 2015, posição 326,
grifos meus)

Apesar de todos os sofrimentos a ele infligidos pela sua sinhá ou sob suas ordens, em
outro momento, Manzano ainda consegue elogiá-la:

Quando minha ama adoçou seu gênio comigo, eu fui esquecendo


insensivelmente certa dureza de coração que havia adquirido desde a última
vez que me condenou aos grilhões e ao trabalho braçal. Como ela perseverou
em não me colocar nem que mandassem me pôr a mão, eu havia esquecido
todo o passado.
Eu a amava como a uma mãe. (Idem, posição 776, grifos meus).

Diferentemente do que afirma Manzano, é evidente que tal esquecimento é impossível. A


escrita de Manzano é um registro dessa memória, inclusive. Analisemos ainda o enunciado
seguinte, isolado, um parágrafo composto por apenas um período: “Eu a amava como a uma
mãe”. Ele não diz que a amava como amava a sua própria mãe, que tem destaque na narrativa
de Manzano e era quem, tantas vezes, pode lhe trazer algum alento. A compreensão desse
enunciado extrapola os elementos linguísticos. O processo enunciativo é interativo e inclui
elementos verbais e não verbais, integrantes de um contexto histórico ainda mais amplo. O
papel da situação extraverbal é mais que a causa externa desse enunciado, mas é parte
constitutiva essencial da estrutura de sua significação.
Considerações finais

A autobiografia do poeta escravo não é um “auto-informe confissão”, como pode


parecer à primeira vista. Nesse caso, não haveria personagem nem autor por não haver uma
posição para realizar a inter-relação dos dois, uma posição de distância axiológica,
personagem e autor estariam fundidos em um todo único (BAKHTIN, 2003[1924-1927] p.
135). Manzano escreve a sua autobiografia a partir de um posicionamento que, por um lado
precisa denunciar a escravidão, por outro, precisa garantir sua segurança em relação ao círculo
literário, todos açucarocratas proprietários de escravos. A realidade da sua trajetória
escravizada é atravessada pelas diversas valorações sociais nas quais estava inserido.

O plano da vida é então organizado de um novo modo no plano estético e o que torna
isso possível, por meio de seu posicionamento axiológico, é o autor-criador, que dá forma ao
conteúdo da vida. Não se trata de um registro de tudo, ou de um registro passivo, há um
recorte e uma organização estética a partir de uma valoração de determinados aspectos desse
plano da vida.

Apesar de, ora evitar os detalhes, de fazer digressões ou mesmo dizer que não se
lembra bem, de deixar sem explicações episódios-chave, podemos ler a escrita do cubano sob
a concepção bakhtiniana de autor-criador. Não se trata simplesmente de uma escrita linear dos
acontecimentos da sua vida, Manzano selecionou episódios e realizou um trabalho estético
que, nesse caso, tratava-se de uma questão literal de sobrevivência. À época da escrita, ele era
ainda escravo, sua liberdade foi obtida apenas depois da publicação do texto.

Referências

BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______. Estética da criação


verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1920 -1924], p. 3-186.

_____. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária.


In:______. Questões de estética e de literatura: a teoria do romance. Tradução de Aurora
Fornoni Bernardine et al. São Paulo: UNESP, 1993 [1923-1924], p. 13-70.

BRAIT, B et MELO, R. de. Enunciado, enunciado concreto, enunciação. In: BRAIT,


B.(ORG). Bakhtin conceitos chaves . São Paulo: Contexto, 2008. Pp. 61-77

FARACO, A. F. Autor e autoria. In: BRAIT, B.(ORG). Bakhtin conceitos chaves . São Paulo:
Contexto, 2008. Pp. 37-60

MANZANO, Juan Francisco. A autobiografia do poeta escravo. São Paulo: Editora Hedra,
2015. Ebook.

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