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Manzano e A Questao Autobiografica
Manzano e A Questao Autobiografica
LEITURA BAKHTINIANA
Daniela Nascimento1
Juan Francisco Manzano foi um poeta em Cuba que, em 1840, teve sua autobiografia
publicada em Londres. A Autobiografia do poeta escravo é uma narrativa rara, pois, à época,
o analfabetismo era a norma e entre os escravizados, a situação era ainda mais grave.
Manzano criava versos que decorava e depois declamava, o que chegou a lhe resultar castigos
severos:
Mais velho, já em outra casa, quando decidiu aprender a escrever mesmo diante da oposição,
após conseguir providenciar o papel, a pena e a tinta, havia ainda a oposição do patrão. À
época, Manzano trabalhava para o senhor Marquês, que gostava dele (Posição 410). Mesmo
sendo descrito como um dos patrões mais benevolentes que Manzano teve, no trecho a seguir
percebe-se bem o posicionamento social de ambos:
1
Aluna da pós-graduação em Literatura na Unitau (2015-2016). Texto produzido para a
disciplina de Literatura e análise do discurso, sob orientação da professora Miriam Puzzo.
Manzano foi publicado em espanhol em Cuba. No Brasil, o texto foi publicado em português
pela Editora Hedra apenas em 2015. Passemos a uma leitura da obra em duas etapas:
primeiro, dos pré e pós textos para depois fazermos uma breve análise da autobiografia de
Manzano em si.
As duas versões do texto de Manzano são precedidas pelo poema do mesmo autor
“Meus trinta anos”, um prefácio de Ricardo Salles, professor de história e autor de diversos
livros na área e ainda uma “Apresentação” do livro por seu tradutor no Brasil. Nesta, Alex
Castro defende a narrativa de Manzano como foi escrita, sem edições, pois esse seria “o
melhor autorretrato que temos dele sua maior contribuição à literatura” (Posição 97). Assim,
afirma o tradutor que
Alex Castro defende que Manzano seja lido na sua “voz”, pois fatos e dados são encontráveis
em qualquer livro didático, mas “experimentar a voz” de um escravizado seria uma
experiência acessível por meio da transcriação. Ainda pontua que corrigir e “sanitizar” a voz
de Manzano foi uma experiência penosa, apenas justificável pela ampliação do público leitor.
Apesar de se dizer que Manzano “fala por si só”, observa-se que o papel da situação
extraverbal é mais que a causa externa do enunciado, é parte constitutiva essencial da
estrutura de sua significação. Um enunciado concreto, segundo Bakhtin, compõe-se de duas
partes: a parte percebida ou realizada em palavras e a parte presumida. O que contexto
extraverbal mostra é que, por mais que seja dito que o texto não precisa de complemento,
trata-se de uma escrita de meados do século XIX em outra língua, em outro país, num
contexto histórico-social diverso. Textos de autores brasileiros do mesmo período ou mesmo
de alguns anos depois, como José de Alencar e Machado de Assis são frequentemente
mediados por professores, instituições e mesmo nas próprias edições com capas mais
atraentes ao público jovem e textos de apoio. Ou seja, nenhum texto fala por si só. Mesmo
que não houvesse nenhuma intervenção, todos os textos são atravessados por outros discursos
e estão inseridos em um contexto histórico ainda mais amplo.
A autobiografia
No entanto, algo lhe escapa e sabemos então que a chave do calabouço ficava no quarto da
Senhora. Ora, a principal responsável, nesse caso, era a Senhora, mas ele não se detém na
acusação da patroa. Em vez disso, logo em seguida ainda inclui uma menção honrosa aos
filhos da patroa:
A Marquesa de Prado Ameno e seu filho Nicolás, ambos retratados na obra, ainda
eram vivos quando a autobiografia foi escrita, sendo que Nicolás era membro da sociedade
literária que encomendou o livro (Posição 75). A escrita da autobiografia se faz nesse
contexto. Fosse Manzano livre, pudesse viver em outro país, enfim, fosse outra a sua sorte no
momento da escrita, leríamos uma outra autobiografia, pois o texto, esse enunciado concreto,
ocorre no processo de interação social entre os participantes da enunciação, sua forma e
significado são determinados pela forma e caráter dessa interação (BRAIT, 2008, p.68).
Apesar de todos os sofrimentos a ele infligidos pela sua sinhá ou sob suas ordens, em
outro momento, Manzano ainda consegue elogiá-la:
O plano da vida é então organizado de um novo modo no plano estético e o que torna
isso possível, por meio de seu posicionamento axiológico, é o autor-criador, que dá forma ao
conteúdo da vida. Não se trata de um registro de tudo, ou de um registro passivo, há um
recorte e uma organização estética a partir de uma valoração de determinados aspectos desse
plano da vida.
Apesar de, ora evitar os detalhes, de fazer digressões ou mesmo dizer que não se
lembra bem, de deixar sem explicações episódios-chave, podemos ler a escrita do cubano sob
a concepção bakhtiniana de autor-criador. Não se trata simplesmente de uma escrita linear dos
acontecimentos da sua vida, Manzano selecionou episódios e realizou um trabalho estético
que, nesse caso, tratava-se de uma questão literal de sobrevivência. À época da escrita, ele era
ainda escravo, sua liberdade foi obtida apenas depois da publicação do texto.
Referências
FARACO, A. F. Autor e autoria. In: BRAIT, B.(ORG). Bakhtin conceitos chaves . São Paulo:
Contexto, 2008. Pp. 37-60
MANZANO, Juan Francisco. A autobiografia do poeta escravo. São Paulo: Editora Hedra,
2015. Ebook.