Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EVANS-PRITCHARD:
-
AÇAO E ESTRUTURA
M,c;-;."rx:, Igor José de R. Evons·Pritchard: ação e estrutura. pp. 125 a 135 125
um elemento de uma totalidade maior, mas essa ciada do trabalho.
totalidade não se reduz a soma desses indivídu- É no texto Preponderância progressiva da soli-
os. A sociologia estuda as propriedades que de- dariedade orgânica (do livro A divisão do trabalho
rivam da associação de indivíduos em sociedade socia~ que Durkheim se utiliza mais freqüente-
e os fatos sociais têm que ser explicados em rela- mente da expressão "estrutura social", que depois
ção a outros fatos sociais ("o social só se explica foi largamente difundida por Radcliffe-Brown.
pelo social"). Como também pretendo fazer uma breve histó-
Durkheim espera explicar o social pelo social ria da difusão dessas idéias durkheimianas pela
- há algo de particular na sociedade, exigindo Inglaterra, escolhi um trecho desse texto que bem
uma nova esfera de conhecimento, a sociologia. demonstra como o conceito é manipulado por
Isso implica num "rompimento com as antigas Durkheim: "Existe pois uma estrutura social de
formas de conhecimento, o que significa um determinada natureza, à qual corresponde a soli-
distanciamento da filosofia". (Ortiz, 1989: 10). dariedade mecânica. O que a caracteriza é que ela
A inversão dos métodos, do dedutivo para o é um sistema de segmentos homogêneos e seme-
indutivo, marca a posição de Durkheim, rom- lhantes entre si. (...) Inteiramente diferente é a es-
pendo com o pensamento filosófico, fundando trutura das sociedades onde a solidariedade orgâ-
uma ciência positiva, partindo da realidade. Se nica é preponderante. Elas são constituídas (...)
Comte e Spencer são propulsores da sociologia, por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos
por outro lado, continuam como filósofos: para quais tem um papel especial e se forma de partes
o primeiro o social é a realização da idéia de hu- diferenciadas." (Rodrigues, 1993:90) O que carac-
manidade; e para o segundo a sociedade é a rea- teriza a estrutura são sistemas em relação na pró-
lização da idéia de corpo ração. Durkheim tor- pria sociedade, não importa se esses são "segmen-
na-se o divisor de águas ("o herói fundador"). O tos homogêneos" ou "órgãos diferentes". 1 Vere-
papel do indivíduo e sua relação com a socieda- mos mais a frente como Radcliffe-Brown define
de é melhor compreendida dentro desse esforço estrutura e função, para entender a influência de
para delimitar um campo da sociologia, pois a Durkheim nessa "escola".
ação do indivíduo é mediatizada pelas forças As regras do método sociológico (publicada a se-
SOCIaIS. guir) são um esforço por uma teoria da investiga-
Durkheim contestava essa filosofia moral tra- ção sociológica, em busca das regularidades do
dicional, nas duas versões vigentes: a represen- reino específico do social, sem recorrer as expli-
tada por Spencer, que se preocupava com o in- cações de outros reinos. (Giddens, Op. cit.,:26).
divíduo na busca dos próprios interesses na tro- O método é sintetizado em três pontos: 1) é
ca econômica, produzindo solidariedade na di- independe de toda filosofia; 2) é objetivo; 3) é ex-
visão do trabalho. Mas a troca contratual, para clusivamente sociológico - e os fatos sociais são
nosso autor, pressupõe uma estrutura moral den- antes de tudo coisas sociais (Idem:27). Durkheim,
tro da qual é ordenada e, portanto, não pode na medida em que desenvolve sua teoria median-
explicá-Ia. A outra corrente a ser contestada era te a adoção de conceitos básicos de coerção, soli-
a expressa, entre outros, por Comte: a solidarie- dariedade, autoridade, representações coletivas,
dade exige a existência de um consensus univer- etc., está na realidade preocupado com a manu-
sal, donde se conclui que o enfraquecimento do tenção da ordem social (Idem:28). Ele elevou o
consenso (dado pela individualização) acarreta "fator social ao status de elemento básico e decisi-
um declínio da coesão social. Em A divisão do vo para explicar os fenômenos que tinham lugar
trabalho as conclusões contrastam com esse pano no 'reino social', e que o social só se explica pelo
de fundo. O consenso moral é apenas um tipo social e que a sociedade é um fenômeno sui generis,
de coesão social, característico das sociedades independente das manifestações individuais de
mais simples, e é chamada solidariedade mecâ- seus membros componentes." (Parsons Apud
nica, que foi gradualmente substituída pela so- Rodrigues, 1993:29). O suicídio, por sua vez, re-
lidariedade orgânica, uma coesão baseada nas re- presenta a aplicação do método proposto por
lações de troca, dentro de uma divisão diferen- Durkheim na obras anteriores.
MACHAOO, Igor José de R. Evons·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 o 135 127
de efervescência coletiva que geram e recriam cren- mente citado, é uma prova dessa afirmação, pois a
ças religiosas e sentimentos religiosos. Essa con- teoria da religião não é citada nos termos de uma
cepção da religião como socialmente determinada discussão sobre simbolismo". Por outro lado, os
o levou a estabelecer conexões causais entre carac- antropólogos se apropriaram principalmente des-
terísticas morfológicas da estrutura social e o con- sa obra, atentos para as questões da autonomia re-
teúdo de crenças religiosas e práticas rituais. Mas lativa do universo simbólico. (Ortiz, 1989b:7). Vale
a religião também é vista como um tipo especial lembrar que, quando fala de uma teoria social do
de representação de realidades sociais: pode ser simbolismo, Ortiz pensa principalmente na esco-
vista como representando uma sociedade e rela- la francesa, que pareceu desenvolver essas ques-
ções sociais numa perspectiva cognitiva (na men- tões. A antropologia inglesa, ao meu ver, apro-
te ou intelecto), oferecendo meios de compreen- priou-se da obra durkheimiana justamente como
são de realidades sociais; ou pode ser vista como os sociólogos (segundo a tese de Ortiz), a partir da
representando as realidades sociais como expres- ênfase na estrutura social e no conceito de função.
são, simbolização ou dramatização de relações Procurarei demonstrar, a seguir, como Radcliffe-
sociais. A vida social é possível, então, apenas atra- Brown apropriou-se da teoria durkheimiana, para
vés de um vasto simbolismo (Idem:470-474), ca- depois contrastá-lo com a originalidade de Evans-
racterizando uma ruptura com obras anteriores, Pritchard.
que salientavam apenas relações causais imediatas
entre morfologia social e "superestrutura". A reli- DE RADCLlFFE-BROWN A EVANS-PRITCHARO:
gião tem ainda a função de fortalecer os laços en-
tre o indivíduo e a sociedade da qual ele é mem- UM RECURSO TORTUOSO
bro (Idem), ressaltando o papel de "cimento soci- Começaremos por delimitar as noções de es-
al" desenvolvido por ela. trutura e função para Radcliffe-Brown, seguindo
Segundo Rodrigues, Durkheim inaugura, me- com nossa pequena história da noção de estrutu-
todologicamente, a análise de representações cole- ra, para depois seguir os argumentos de alguns "co-
tivas (as formas elementares), encaradas como re- mentaristas", antes de debater alguns aspectos
presentações mentais, representações simbólicas da obra de Evans-Pritchard, Nada melhor, para
que são, por sua vez, imagens da realidade empírica. começar, do que as próprias palavras de Radcliffe-
A originalidade consiste em perceber como os Brown: "O conceito de função (...) implica, pois,
homens encaram o mundo e se organizam hierar- a noção de uma estrutura constituída de uma sé-
quicamente, através da análise da religião primiti- rie de relações entre entidades unidades, sendo
va. O homem não representa a realidade apenas mantida a continuidade da estrutura por um pro-
verbalmente, mas o faz até mesmo territorial- cesso vital constituido das atividades integrantes( ...)
mente. "E suas formas organizacionais da vida Pela definição aqui dada, Função é a contribuição
social, além de mediações empíricas, são portado- que determinada atividade proporciona à ativida-
ras de uma ideologia implícita, que forma um de total da qual é parte."(1973:223-224)
arcabouço interno - quase disfarçado se não fora Para Sahlins (1986), Durkheim não via a socie-
à agudeza do espírito científico do investigador - dade como constituida pelo processo simbólico,
sustentado r virtual do sistema social. É necessário mas exatamente o contrário; e a derivação dessa
um método apurado, tal como desenvolveu problemática na obra de Radcliffe-Brown é que o
Durkheim, para que se possa ver ... classificar a simbólico foi, na maior parte dos casos, tomado
realidade social". (Rodrigues, 1993:22). no sentido secundário e derivativo de uma moda-
A oposição entre a tese continuísta e a da rup- lidade do fato social, uma expressão articulada da
tura, de certa forma, como afirma Ortiz, marca a sociedade, tendo a função de apoio para relacio-
apropriação da sociologia e da antropologia da obra namentos formados por processos políticos e eco-
de Durkheim. Os sociólogos, mais apegados a pri- nômicos reais (p. 133)_Para Sahlins a escola ingle-
meira, não veriam grandes avanços nas Formas ele- sa, e ele está pensando em Radcliffe-Brown, não
mentares, pois essa obra não acrescentaria nada ao percebe que "as relações sociais também são com-
método. O trabalho de Giddens, aqui constante- postas e organizadas pelo significado"(Idem:135).
MACHADO, Igor José de R. Evans·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 129
com essa abordagem, escandalizando os que an- tecipação da sociologia do conhecimento cotidia-
tes aplaudiram Os Nuer. Se por um lado a teoria no. Os escritos fenomenológicos de Husserl e
dos grupos unilineares foi adotada pelos ingleses Shultz provocaram um movimento para desen-
(que a levaram a exaustão), esse aspecto estrutural volver uma sociologia sistemática do senso co-
(a grande originalidade a qual tinha me referido mum, das pessoas ordinárias em contextos cotidi-
no final da parte anterior) não teve seguidores na anos. A temática de Evans-Pritchard levou-o ao
Inglaterra. "O fato é ainda mais extraordinário, desenvolvimento dessas questões ainda mais cedo,
quando se vê que a posteridade dos Nuer mostra porque não era possível lidar com questões como
que Evans-Pritchard não exprimia a corrente mai- magia e totemismo, sem esse tipo de tratamento.
or da antropologia social inglesa, mas, ao contrá- Ele antecipou as intenções desses filósofos atra-
rio, seria em grande medida incompreendido em vés do reconhecimento da necessidade de inter-
sua tendência profunda, as 'estruturas' se opondo pretar o discurso no seu contexto de funciona-
às leis da vida social, que continuou orientando mento nas relações sociais e no "social account-
os seus pares"(Idem:XI). ing". Dumont também enfatizou o esforço de
Evans-Pritchard em inserir elementos da experiên-
RELIGIÃO, TOTEMISMO E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO: cia cotidiana no seu contexto específico.
Essa característica traz uma interessante coinci-
EM BUSCA DO PAPEL DO INDIVíDUO
dência entre Evans-Pritchard e Durkheim: o fato
NA AUTONOMIA DO SISTEMA SIMBÓLICO de iniciar uma sociologia do conhecimento a par-
Para Mary Douglas (1980), há avanços meto- tir de pesquisas sobre religião, magia e totemismo.
dológicos exclusivos no trabalho de Evans-Prit- Para Durkheim, o totemismo oferece uma visão
chard, entre eles está a sua preocupação em rela- de mundo que está ligada ao que ele acredita como
cionar filosofia moral e religião com comporta- sendo o primeiro sistema de representação que o
mento social. Se hoje vive-se as críticas dos feno- homem produziu do mundo e de si mesmo. Como
menologistas à sociologia moderna, num questio- a filosofia e ciências nasceram da religião, esta con-
namento entre subjetividade e objetividade, tribuiu para formar o espírito humano. Assim, o
Evans-Pritchard preconizou esse debate muito totemismo é religião e sistema de representação
antes (naquela época não sucumbiu às teorias so- primeiro, e nele se percebe como se organizaram
ciais mecanicistas). Ele não ignorava o papel do primeiramente as categorias do intelecto: tempo,
indivíduo e criticava qualquer teoria que "reduced espaço, gênero, número, causa, etc. A sociologia
the mind to a mere arena in which social factors da religião torna-se, então, sociologia do conheci-
contend." (Douglas, 1980:12). Essa posição é uma mento. Para Durkheim é "a sociedade que forne-
crítica a de Durkheim, para quem o indivíduo ceu o modelo sobre o qual trabalhou o pensamen-
não tem autonomia na teoria da sociedade.' Dou- to lógico". (Durkheim, 1989:193). O pensamen-
glas pretende demonstrar que o método de Evans- to religioso trata de uma articulação com o social
Pritchard, traçando noções de "accountability" e é fonte do pensamento lógico. Assim, a fonte
através de formas institucionais, demonstrou um do pensamento lógico é a sociedade, e o conhe-
modo de lidar com essas dificuldades na sociolo- cimento tem origem social. Portanto, estudar o
gia. A força desse método está no fato de basear- totemismo é também fazer uma sociologia do co-
se no pressuposto de que a sociedade humana é nhecimento, além de uma sociologia da religião.
composta não de "ciphers", mas de agentes ativos Por outro lado, a questão central da antropolo-
envolvidos de inteligência e vontade: "Intentions gia e de várias ciências em 1920 (segundo Dou-
create and sustain institutions as much as ins- glas), época do treinamento de Evans-Pritchard,
titutions constrain intentions."(Idem: 13). Du- era relacionada com as condições do conhecimen-
mont nos lembra ainda que Evans-Pritchard con- to humano, de como se davam as percepções. Os
seguiu "disfarçadamente" introduzir na pesquisa antropólogos participavam dessa discussão ofere-
antropológica a importância do sentido que os cendo exemplos bizarros de tribos primitivas (o
autores dão ao que eles fazem. totemismo, a magia e tabus foram destinados a
Outra característica de sua modernidade é a an- antropologia para que essa desse sua contribui-
/lAACHADO, Igor José de R. Evans-Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 131
a manutenção do todo, e como o trabalho que o morfologia social (sociedade ou sistema social) e
pensamento faz é social e que "thought makes representação coletiva (cultura, ideologia), como
cuts and connections between actions" (Idem:54). em Durkheim". (Sahlins, 1986: 120)
As questões sobre racionalidade deveriam ser, Evans-Pritchard contrariava também teorias
nessa perspectiva, a respeito da coerência das ações reducionistas da religião, pois "Sociological ana-
particulares com instituições articuladas. Isso lisys was necessary, but wrong if it taught that
posto, temos duas questões básicas a serem discu- the religious conceptions of the primitive peoples
tidas; uma sobre a importância da coesão social e were nothing more than symbolic representation
outra sobre o papel do indivíduo. Com relação a of social order." (Evans-Pritchard, 1956:313). Essa
primeira, a autora parece salientar a influência das é uma outra crítica à teoria de Durkheim, quan-
preocupações com a coesão social, presentes em do trata a religião como epifenômeno da estrutu-
Durkheim e Radcliffe-Brown. Essa idéia é con- ra social. Evans-Pritchard se preocupa, desse mo-
trária a de Dumont, pois para ele "Os Nuer (não do, com a busca de um entendimento da autono-
tratam) sobre a integração social". (Dumont, mia do sistema simbólico. Se Durkheim dava si-
1968:v). Parece-me que Douglas tem razão, nessa nais nessa direção, como enfatizam Pontes e Ortiz,
polêmica criada artificialmente, pois não é o ob- esse não foi o nexo de sua explicação, enquanto
jetivo de Evans-Pritchard compreender o que Evans-Pritchard tratou dessa autonomia, através
mantém coesa uma sociedade sem estadoi" da consideração do papel do indivíduo.
Com relação ao papel do indivíduo, para Dou-
glas, a sociologia de Evans-Pritchard era anti-de- CONClUSÃO
terminista, focalizada nos seus propósitos e nas Chega-se assim a seguinte conclusão, talvez um
suas escolhas quando tratando uns com os ou- pouco ousada: Evans-Pritchard constrói uma teo-
tros, ela (a sua sociologia) "...affirms the power of ria que não separa estrutura social (no sentido
personal interventions in historical events." Dou- durkheimiano) do sistema simbólico (sistemas
glas, 1980:48). Aqui a distância com a perspectiva ideológicos, religião, etc .... ), pois a sua estrutura
durkheimiana (e "Radcliffe-browniana") é de novo é um sistema de relações que só se torna manifes-
acentuada. É legítimo perguntar como idéias ta na ação do indivíduo (indivíduo atuando em
azande sobre feitiçaria se interligam com idéias grupos, é bem verdade; mas esses grupos não são
políticas, e como as instituições de feitiçaria es- nem um pouco estáveis e se formam das mais di-
tão relacionadas com as instituições políticas, mas versas formas). Essa estrutura é mental, na medi-
perguntar como essas idéias afetam as instituições da em que está apenas nas mentes dos indivíduos
(como fez o autor) implica em dizer que essas idéi- de uma sociedade; só se realiza na sua ação (ado-
as têm vida própria e podem ser observadas in- tando a perspectiva de Dumont) - para os Nuer,
fluenciando as instituições. (em todo caso, são as por exemplo, é o princípio estrutural de seg-
pessoas que têm idéias e que influenciam as insti- mentação. Além de tudo ela não é universal, como
tuições (Idem:60). Apresentar, portanto, a rela- a estrutura de Levi-Strauss, ela existe num con-
ção entre instituições e idéias sem atentar para os texto social específico, em sociedades específicas.
indivíduos e intenções é uma falácia. Afirmando No entanto, é preciso "ouvir" alguém que já
que as atitudes de indivíduos (portadores de idéi- tenha debatido a relação entre ação e estrutura
as) influenciam as instituições, Evans-Pritchard com muita atenção, como é o caso de Jeffrey Ale-
leva ao extremo a perspectiva aberta por Dur- xander (1987). No seu texto "O novo movimento
kheim nas Formas elementares, bem salientada por Teórico" ele debate o desenvolvimento de abor-
Pontes (1993): O simbólico ao ser ligado episte- dagens teóricas micro e macro, ou individualistas
mologicamente com a ação do indivíduo ganha e coletivistas, ou ainda ação e estrutura. Interessa
uma autonomia total. De fato, a divisão entre su- aqui o momento de desenvolvimento desse deba-
perestrutura e estrutura (implícita nas discussões te. As teorias coletivistas "consideram os padrões
de Lukes), não existe mais, pois encontramos o sociais como preexistindo a qualquer ato indivi-
indivíduo ligando-as. Como confirma Sahlins, na dual específico" (idem: 14), enquanto as teorias
obra de Evans-Pritchard "não há separação entre individualistas "reconhecem que tais estruturas
MACHADO, Igor José de R. Evans-Pritchard: ação e estrutura. pp. 125 a 135 133
de impossibilitasse esse tipo de reflexão. No en- 3." A divisão do trabalho contém uma versão primitiva do
tanto, Evans-Pritchard estudou principalmente os característico tratamento durkheimiano das relações
Nuer (e não outros) e, de fato, realizou essa apro- entre história, autoridade moral e a liberdade huma-
ximação; e seu método e conclusões estão aí para na. A liberdade não consiste em escapar das forças nem
do elos social, mas na autonomia de ação possibilitada
serem analisados!
pelo fato de pertencer a sociedade. Nas sociedades sim-
ples, a dominação da consciência coletiva limita a esfe-
NOTAS ra da ação individual; esta situação é transformada pelo
1. É preciso não confundir estrutura social com morfo- processo de desenvolvimento social, não pela destrui-
logia social, pois essa, para Durkheim é uma das três ção da autoridade moral, senão pela alteração de sua
divisões da sociologia (morfologia social, fisiologia forma. (Giddens :19-20)
social e sociologia geral), é uma ciência que estuda a 4. A necessidade do contexto social para a interpretação
"base geográfica dos povos em suas relações com a or- é herança de Malinowsky, mas Evans-Pritchard foi mais
ganização social; estudo da população, seu volume, den- longe na definição de contextos sociais.
sidade e distribuição geográfica". (Rodrigues 1993:45) 5. Com relação aos Nuer; as instituições políticas são de
A noção de "organização social", ao contrário pode especial interesse para a sociologia do conhecimento,
ser tomada como equivalente a de estrutura social, pois pois elas aparecem e desaparecem nas suas ações; e,
é usada praticamente no mesmo sentido no mesmo portanto, "whatever political principies exist are main-
texto; a diferença é que a idéia de estrutura social car- teined entirely in their minds". (Douglas, 1980:73).
rega uma noção de funcionalidade mais explícita, já Que o pensamento está embebido em instituições foi
que trata de relações entre os segmentos ou órgãos que estabelecido; o questionamento posterior foi sobre que
funcionam para a manutenção da coesão social. tipos de pensamento e que tipos de instituições. A
2. Mesmo as críticas de Giddens a essa obra não tocam em partir desse exemplo, nós podemos comparar sistemas
questões do simbolismo. Para ele, As formas elementa- de "accountabiliry" para dar novas respostas para ve-
res têm, como é de se esperar, bases empÍricas suspeitas; lhas questões. "Frorn here on I shall assume that
o totemismo é encarado de forma muito diferente pelos whatever can be said about a belief as belonging to a
antropólogos modernos. A polaridade sagrado\profano, system implies the same about the relevant social ins-
fundamental a definição de religião de Durkheirn, não titution, since each only lives in the other."(Idem:73)
é absolutamente universal. Alguns críticos defendem 6. Evans-Pritchard demonstrou como os "primitivos" tam-
que essas definições não atentam para a mudança soci- bém negociam suas reinvindicações e constroem sua
al, devido ao caráter de cimento sociológico fornecido cultura ao fazê-lo. Ele assim fez investigando o modo
pela religião para a manutenção da coesão social, mas como os Nuer usam seus princípios de discriminação.
Giddens defende uma sensibilidade do autor "com os O autor também demonstrou como problemas sobre
contrastes - e continuidades - entre tipos tradicionais accountability desenvolvem músculos nas faculdades
de sociedade e a ordem industrial contemporânea." humanas de racionalização. "the joint effort of creating
(Idem:76) Isso nada tem a ver com a veracidade das pre- Nuer society also produces a powerfull machinery for
missas tomadas para a análise. Ao tratar de sociedades turning social dilemmas into legalistic issues, solved
"simples" e portanto estruturalmente "simples", possi- by fictions."(Idem:86) É uma análise de como a pró-
bilitou que encarasse a sociedade abstrata como algo pria consciência é estruturada. Ele também tratou do
homogêneo; essa posição impossibilita uma análise da que é "esquecido" como construções sociais, numa
religião em termos de ideologia, como a legitimação à apropriação de um insight Freudiano. As brechas so-
dominação de grupos sobre outros (essa perspectiva bre as quais relembrar é impossível são mais do que
Weberiana está ausente da obra de Durkheim). O con- um mero acidente resultante da estruturação da aten-
flito é visto em termos de oposições entre indivíduo e a ção por interesses sociais. Relacionou, portanto,
coletividade, e não entre grupos de interesses num sis- consciêcia histórica com estrutura social muito antes
tema de dominação e subordinação. O conflito é trata- desses tipos de questões serem analisadas pela
do como um fenômeno de transição no desenvolvimen- sociologia. "Well before phenomenology' s claim that
to social, em que a harmonia das funções está tempora- sociological understanding must start from the
riamente rompida. Na obra de Durkheim, as normas negotiating activities of conscious, inteligent agents,
morais são vistas com passíveis de apenas uma interpre- Evans-Pritchard had seized the problem, developed
tação, mas um só conjunto de símbolos e códigos pode a method and show what progress can be made."
ser alvo de várias interpretações por parte de grupos (Ibidem)
divergentes. 7. Segundo Douglas, Evans-Pritchard considera que dois
MACHADO, Igor José de R. Evans·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 135