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A R T I G O

EVANS-PRITCHARD:
-
AÇAO E ESTRUTURA

N esse ensaio pretendo


analisar algumas im-
plicações da aborda-
gem que Evans-Pritchard
utilizou em seus trabalhos.
IGOR JOSÉ DE RENNÓ MACHADO*
vestigação
problema
surgimento
empmca. Outro
era encarar o
do individualis-
mo na sociedade moderna.
No entanto, as idéias do
Tentarei entender o papel RESUMO individualismo liberal na
do indivíduo, a autonomia O artigo pretende analisar o relação entre França estavam um tanto
ou não de universos simbó- ação e estrutura no obro de Evans·Pritchard. distantes da realidade, e sis-
Paro tonto, foi necessório fazer uma peque-
licos e as noções de estrutu- tematicamente atacadas por
no história do noção de estrutura no "escola
ra em alguns de seus traba- britânico", partindo do precursor, Durkheim. grupos direitistas, que as
lhos. Para tanto, pretendo Proponho uma novo leitura dos idéias do viam como sinais de deca-
contrapor primeiramente a autor, alegando que, o suo maneiro, Evons- dência "da estrutura cultu-
Pritchard dó uma resposta aos dilemas de ral". Um terceiro problema
obra de Durkheim à de
opções teóricos entre "ecôo e estrutura".
Evans-Pritchard, traçando é sua preocupação com as
semelhanças e distâncias WMestre em Antropologia Social, Unicamp. Atucl-
fontes e a natureza da auto-
significativas e, logo após, mente vinculado ao CEM! (Centro de Estudossobre ridade moral. E também a
passarei rapidamente pelas Migração Internacionalj. preocupação pelas implica-
idéias de Radcliffe-Brown, ções práticas do conheci-
de quem Evans-Pritchard procurou afastar-se em mento científico social. Essa última preocupa-
algumas questões. ção marcava a concepção de Durkheim, para
Faremos, assim, uma longa consideração sobre quem o sociólogo é como um médico, distin-
a obra de Durkheim, para apreender suas preocu- guindo entre saúde e doença, diagnosticando cau-
pações teóricas (principalmente as noções de es- sas e tratamentos.
trutura social e sua relação com representações O autor preocupou-se com a definição de um
sociais, ou "superestrutura", nas palavras de Steven campo específico às ciências sociais; "a vida so-
Lukes), para depois contrapó-lo gradativamente cial não é outra coisa que o meio moral, ou me-
com Evans-Pritchard, passando por Radcliffe- lhor, o conjunto de diversos meios morais que
Brown. Por fim chegaremos a uma conclusão um cercam o indivíduo". (Durkheim Apud Rodri-
pouco ousada, a partir da reflexão sobre esses te- gues, 1993:18). A sociologia constitui uma ciên-
mas. Esse ensaio é também a uma breve história cia entre outras "positivas", que através do estu-
do desenvolvimento do conceito de estrutura so- do metódico procura estabelecer leis, através da
cial na obra desses três autores. experimentação. Essas leis são "produzidas me-
canicamente por causas necessárias". (Giddens,
DURKHEIM: OBRA E PREOCUPAÇÕESTEÓRICAS 1978:23). Os fatos sociais têm que ser tratados
A obra de Durkheim se caracteriza pelo ata- como coisas, ou seja, os fenômenos sociais per-
que persistente a um número limitado de pro- tencem ao âmbito da natureza, o que indica que
blemas, dos quais o de destaque foi o estabeleci- a sociedade tem existência objetiva, indepen-
mento da sociologia numa base empírica, ten- dendo da existência de determinados indivídu-
tando dar mais precisão à concepção do método os. Fatos sociais são externos ao indivíduo e exer-
sociológico e demonstrar sua aplicação na in- cem coerção sobre eles. O indivíduo é apenas

M,c;-;."rx:, Igor José de R. Evons·Pritchard: ação e estrutura. pp. 125 a 135 125
um elemento de uma totalidade maior, mas essa ciada do trabalho.
totalidade não se reduz a soma desses indivídu- É no texto Preponderância progressiva da soli-
os. A sociologia estuda as propriedades que de- dariedade orgânica (do livro A divisão do trabalho
rivam da associação de indivíduos em sociedade socia~ que Durkheim se utiliza mais freqüente-
e os fatos sociais têm que ser explicados em rela- mente da expressão "estrutura social", que depois
ção a outros fatos sociais ("o social só se explica foi largamente difundida por Radcliffe-Brown.
pelo social"). Como também pretendo fazer uma breve histó-
Durkheim espera explicar o social pelo social ria da difusão dessas idéias durkheimianas pela
- há algo de particular na sociedade, exigindo Inglaterra, escolhi um trecho desse texto que bem
uma nova esfera de conhecimento, a sociologia. demonstra como o conceito é manipulado por
Isso implica num "rompimento com as antigas Durkheim: "Existe pois uma estrutura social de
formas de conhecimento, o que significa um determinada natureza, à qual corresponde a soli-
distanciamento da filosofia". (Ortiz, 1989: 10). dariedade mecânica. O que a caracteriza é que ela
A inversão dos métodos, do dedutivo para o é um sistema de segmentos homogêneos e seme-
indutivo, marca a posição de Durkheim, rom- lhantes entre si. (...) Inteiramente diferente é a es-
pendo com o pensamento filosófico, fundando trutura das sociedades onde a solidariedade orgâ-
uma ciência positiva, partindo da realidade. Se nica é preponderante. Elas são constituídas (...)
Comte e Spencer são propulsores da sociologia, por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos
por outro lado, continuam como filósofos: para quais tem um papel especial e se forma de partes
o primeiro o social é a realização da idéia de hu- diferenciadas." (Rodrigues, 1993:90) O que carac-
manidade; e para o segundo a sociedade é a rea- teriza a estrutura são sistemas em relação na pró-
lização da idéia de corpo ração. Durkheim tor- pria sociedade, não importa se esses são "segmen-
na-se o divisor de águas ("o herói fundador"). O tos homogêneos" ou "órgãos diferentes". 1 Vere-
papel do indivíduo e sua relação com a socieda- mos mais a frente como Radcliffe-Brown define
de é melhor compreendida dentro desse esforço estrutura e função, para entender a influência de
para delimitar um campo da sociologia, pois a Durkheim nessa "escola".
ação do indivíduo é mediatizada pelas forças As regras do método sociológico (publicada a se-
SOCIaIS. guir) são um esforço por uma teoria da investiga-
Durkheim contestava essa filosofia moral tra- ção sociológica, em busca das regularidades do
dicional, nas duas versões vigentes: a represen- reino específico do social, sem recorrer as expli-
tada por Spencer, que se preocupava com o in- cações de outros reinos. (Giddens, Op. cit.,:26).
divíduo na busca dos próprios interesses na tro- O método é sintetizado em três pontos: 1) é
ca econômica, produzindo solidariedade na di- independe de toda filosofia; 2) é objetivo; 3) é ex-
visão do trabalho. Mas a troca contratual, para clusivamente sociológico - e os fatos sociais são
nosso autor, pressupõe uma estrutura moral den- antes de tudo coisas sociais (Idem:27). Durkheim,
tro da qual é ordenada e, portanto, não pode na medida em que desenvolve sua teoria median-
explicá-Ia. A outra corrente a ser contestada era te a adoção de conceitos básicos de coerção, soli-
a expressa, entre outros, por Comte: a solidarie- dariedade, autoridade, representações coletivas,
dade exige a existência de um consensus univer- etc., está na realidade preocupado com a manu-
sal, donde se conclui que o enfraquecimento do tenção da ordem social (Idem:28). Ele elevou o
consenso (dado pela individualização) acarreta "fator social ao status de elemento básico e decisi-
um declínio da coesão social. Em A divisão do vo para explicar os fenômenos que tinham lugar
trabalho as conclusões contrastam com esse pano no 'reino social', e que o social só se explica pelo
de fundo. O consenso moral é apenas um tipo social e que a sociedade é um fenômeno sui generis,
de coesão social, característico das sociedades independente das manifestações individuais de
mais simples, e é chamada solidariedade mecâ- seus membros componentes." (Parsons Apud
nica, que foi gradualmente substituída pela so- Rodrigues, 1993:29). O suicídio, por sua vez, re-
lidariedade orgânica, uma coesão baseada nas re- presenta a aplicação do método proposto por
lações de troca, dentro de uma divisão diferen- Durkheim na obras anteriores.

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As FORMAS ELEMEMNTARESDA VIDA RELIGIOSA: ráter da totalidade social (qualquer religião têm
essa característica); d) é a fonte original de todas
POLÊMICAS E ALGUMAS ANÁLISES as formas de pensamento, que subseqüentemente
A última obra de Durkheim causou uma polê- se secularizam (mesmo os novos ideais do indivi-
mica entre os seus estudiosos, no que diz respeito dualismo preservam um caráter intrinsecamente
a sua relação com o resto de sua obra. Alguns religioso) (Idem:60). Esses temas, em As formas
autores, como Giddens e Nisbet, afirmam que essa elementares, podem ser vistos como continuação
obra representa uma continuação das idéias de direta de pensamento que estão presentes desde a
Durkheim, através da retomada de interesses ma- fase inicial de Durkheim. Segundo Giddens, a di-
nifestados na primeira obra, Divisão social do tra- ferença entre essa obra e os escritos anteriores so-
balho social. Outros autores, entretanto, acentu- bre religião está na presença de estudos etnográ-
am a descontinuidade (a partir do curso de reli- ficos mais cuidadosos, de origem inglesa; no pa-
gião, ministrado em 1894/95) desse trabalho, pois pel dado ao ritual e do cerimonial na sustentação
como afirma Lukes (1973), a atenção passa dos da fé religiosa; ao interesse pelo conteúdo cog-
fenômenos estruturais para os da superestrutura. nitivo das crenças religiosas, tentando demonstrar
Ortiz, por sua vez, assume uma posição mais que as categorias básicas de pensamento, tais como
"branda", falando de uma reorientação dos traba- foram identificadas por Kant, têm origem na so-
lhos de Durkheim. Para ele, "o problema é en- ciedade.
tender em que medida se dá a reorganização das Ortiz, entretanto, identifica o rompimento com
idéias e dos conceitos, situando-os, porém, no uma visão determinista, onde "a base material da
interior de uma perspectiva global, pois as conti- sociedade, isto é, sua morfologia é determinante
nuidades existem e permeiam inclusive os estu- sobre os fenômenos da consciência coletiva".
dos sobre os "longínquos povos primitivos". (Ortiz, 1989b:8). A partir de 1889, com o texto
(Ortiz, 1989b:7). Assim, Asformaselementares da "As representaçõesindividuais e as representaçõesco-
vida religiosa reflete sua insistência em trabalhar letivas", Durkheim rompe com essa visão deter-
o tema da solidariedade; Durkheim interessa-se rninista e a vida psíquica passa a ser vista como um
pelas sociedades primitivas na medida em que elas conjunto de representações inconscientes que exis-
podem esclarecer melhor a crise moral por que tem fora dos centros nervosos. "As representações
passam as sociedades modernas. Nesse sentido a formam, portanto, uma realidade sui generis"
religião é vista como elemento de coesão social, (Idem:9). Os fenômenos morfológicos não se vin-
não como alienação ou falsa consciência." (Idem culam mecanicamente a causas sociais-mor-
p.18) Segundo Giddens, As formas elementares são fológicas, pois os "universos ideológicos (apresen-
uma teoria retrabalhada da solidariedade mecâni- tam uma) autonomia em relação a vida social"
ca, revelando uma insatisfação com a própria (Idem: 10) e, simultaneamente, são constitutivas do
argumentação em A divisão do trabalho. Ao ela- tecido social. Esse é o argumento de Pontes (1993)
borar seu método sociológico, Durkheim voltou- no ensaio "Durkheim: uma análise dos fun-
se para questões de cunho moral; nas Formas ele- damentos simbólicos da vida social e dos funda-
mentares, tentou "um tratamento sistemático de mentos sociais do simbolismo". Como essas obras,
problemas de moral num nível assim filosófico Durkheim contribuiu, segundo a autora, para a
como sociológico". (Giddens, 1978:47). Durk- construção de uma teoria social do simbolismo,
heim chegou à conclusão que os códigos morais pois "a vida social é feita essencialmente de repre-
seriam melhor estudados na religião, ou melhor, sentações coletivas, ou ainda, de que o social só é
na idéia de sagrado. real quando entrelaçado e permeado pelo sim-
A religião, na análise de Durkheim, a) se origi- bolismo, Este, como vimos, é concebido pelo au-
na das exigências práticas da vida em sociedade, é tor como um produto social dotado de uma lógica
essencial às crenças e modos de conduta que man- própria e, ao mesmo tempo, uma condição básica
tém unidas a sociedades menos desenvolvidas; b) para a produção da vida social." (pontes, 1993:97)
não pode ser definida como necessariamente re- Segundo Lukes (Op. cit.), emAs formas elemen-
lacionada com seres sobrenaturais; c) expressa ca- tares, Durkheim analisa certas situações sociais,

MACHAOO, Igor José de R. Evons·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 o 135 127
de efervescência coletiva que geram e recriam cren- mente citado, é uma prova dessa afirmação, pois a
ças religiosas e sentimentos religiosos. Essa con- teoria da religião não é citada nos termos de uma
cepção da religião como socialmente determinada discussão sobre simbolismo". Por outro lado, os
o levou a estabelecer conexões causais entre carac- antropólogos se apropriaram principalmente des-
terísticas morfológicas da estrutura social e o con- sa obra, atentos para as questões da autonomia re-
teúdo de crenças religiosas e práticas rituais. Mas lativa do universo simbólico. (Ortiz, 1989b:7). Vale
a religião também é vista como um tipo especial lembrar que, quando fala de uma teoria social do
de representação de realidades sociais: pode ser simbolismo, Ortiz pensa principalmente na esco-
vista como representando uma sociedade e rela- la francesa, que pareceu desenvolver essas ques-
ções sociais numa perspectiva cognitiva (na men- tões. A antropologia inglesa, ao meu ver, apro-
te ou intelecto), oferecendo meios de compreen- priou-se da obra durkheimiana justamente como
são de realidades sociais; ou pode ser vista como os sociólogos (segundo a tese de Ortiz), a partir da
representando as realidades sociais como expres- ênfase na estrutura social e no conceito de função.
são, simbolização ou dramatização de relações Procurarei demonstrar, a seguir, como Radcliffe-
sociais. A vida social é possível, então, apenas atra- Brown apropriou-se da teoria durkheimiana, para
vés de um vasto simbolismo (Idem:470-474), ca- depois contrastá-lo com a originalidade de Evans-
racterizando uma ruptura com obras anteriores, Pritchard.
que salientavam apenas relações causais imediatas
entre morfologia social e "superestrutura". A reli- DE RADCLlFFE-BROWN A EVANS-PRITCHARO:
gião tem ainda a função de fortalecer os laços en-
tre o indivíduo e a sociedade da qual ele é mem- UM RECURSO TORTUOSO
bro (Idem), ressaltando o papel de "cimento soci- Começaremos por delimitar as noções de es-
al" desenvolvido por ela. trutura e função para Radcliffe-Brown, seguindo
Segundo Rodrigues, Durkheim inaugura, me- com nossa pequena história da noção de estrutu-
todologicamente, a análise de representações cole- ra, para depois seguir os argumentos de alguns "co-
tivas (as formas elementares), encaradas como re- mentaristas", antes de debater alguns aspectos
presentações mentais, representações simbólicas da obra de Evans-Pritchard, Nada melhor, para
que são, por sua vez, imagens da realidade empírica. começar, do que as próprias palavras de Radcliffe-
A originalidade consiste em perceber como os Brown: "O conceito de função (...) implica, pois,
homens encaram o mundo e se organizam hierar- a noção de uma estrutura constituída de uma sé-
quicamente, através da análise da religião primiti- rie de relações entre entidades unidades, sendo
va. O homem não representa a realidade apenas mantida a continuidade da estrutura por um pro-
verbalmente, mas o faz até mesmo territorial- cesso vital constituido das atividades integrantes( ...)
mente. "E suas formas organizacionais da vida Pela definição aqui dada, Função é a contribuição
social, além de mediações empíricas, são portado- que determinada atividade proporciona à ativida-
ras de uma ideologia implícita, que forma um de total da qual é parte."(1973:223-224)
arcabouço interno - quase disfarçado se não fora Para Sahlins (1986), Durkheim não via a socie-
à agudeza do espírito científico do investigador - dade como constituida pelo processo simbólico,
sustentado r virtual do sistema social. É necessário mas exatamente o contrário; e a derivação dessa
um método apurado, tal como desenvolveu problemática na obra de Radcliffe-Brown é que o
Durkheim, para que se possa ver ... classificar a simbólico foi, na maior parte dos casos, tomado
realidade social". (Rodrigues, 1993:22). no sentido secundário e derivativo de uma moda-
A oposição entre a tese continuísta e a da rup- lidade do fato social, uma expressão articulada da
tura, de certa forma, como afirma Ortiz, marca a sociedade, tendo a função de apoio para relacio-
apropriação da sociologia e da antropologia da obra namentos formados por processos políticos e eco-
de Durkheim. Os sociólogos, mais apegados a pri- nômicos reais (p. 133)_Para Sahlins a escola ingle-
meira, não veriam grandes avanços nas Formas ele- sa, e ele está pensando em Radcliffe-Brown, não
mentares, pois essa obra não acrescentaria nada ao percebe que "as relações sociais também são com-
método. O trabalho de Giddens, aqui constante- postas e organizadas pelo significado"(Idem:135).

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Na noção de estrutura social de Radcliffe-Brown sua ordem estrutural subjacente, os padrões que,
"o cultural não possui qualquer lógica necessá- uma vez estabelecidos, lhe permitem vê-Ia como
ria em si mesma, assim como sua ordem verda- um todo, um conjunto de abstrações interrela-
deira é um reflexo dos grupos e relações desen- cionadas." (Evans-Pritchard Apud Zaluar, 1975:
volvidas na prática social"(ldem). O simbólico 238) [grifo meu]. Assim, já é possível entender a
(que nada mais é do que a superestrutura de estrutura de Evans-Pritchard como uma abstra-
Lukes) é secundário, uma modalidade ideal do ção que se constrói a partir da observação das re-
fato social. Pode-se perceber que Radcliffe-Brown lações sociais em andamento em uma sociedade.
leu Durkheim da mesma forma que os sociólo- Nos Nuer ele oferece definições seguidas de es-
gos, segundo Ortiz, o leram: privilegiando a no- trutura (relações entre grupos de pessoas dentro
ção de estrutura e a de função. É uma leitura de um sistema de grupos), relações estruturais (re-
que desconsidera os avanços na consideração da lações entre grupos que formam um sistema) e
relação estrutura social/universo simbólico, que estrutura social (sistema de estruturas separadas
estão presentes nas Formas elementares, e que já mas interrelacionadas). A essas afirmações segue-
foram discutidas aqui. A estrutura social deter- se uma crítica à antropologia inglesa (que pode
mina os universos simbólicos, como na maior ser vista como endereçada a Radcliffe-Brown), re-
parte da obra de Durkheim e tem a função de ferindo-se à grosseria de seus conceitos, que não
manter coesa a sociedade. Fica claro "também que se utilizam de situações sociais e relações entre
a preocupação com a coesão social atravessou essas relações.
definitivamente o canal da mancha, para se esta- Como se vê, essa não é a estrutura de Radcliffe-
belecer nas preocupações desses autores. Brown (nem a de Durkheim), pois é uma abstra-
Segundo Dumont (1968), Durkheim havia as- ção construida a partir da observação, que não se
sinalado que os aspectos da vida social não são encontra na morfologia da sociedade, e não é
imediatamente redutÍveis aos grupos e as relações constituida de órgãos que funcionam para a sua
entre grupos, assumindo a tese "descontinuista". manutenção, mas é um princípio que rege sua or-
Se Durkheim havia alargado a concepção de so- ganização. Esse princípio nos Nuer, por exemplo,
ciedade, para Radcliffe-Brown, ao contrário, es- como ficou eternamente conhecido, é a segmen-
tes fenômenos eram explicados na medida em tação estrutural; um processo permanente e con-
que eles podiam ser compreendidos como os fa- traditório de fissão e fusão. Segundo Pocock, "Pas-
tores de integração de grupos. Podemos ver que sando de Radcliffe-Brown a Evans-Pritchard, en-
Dumont, como teórico francês que é, acentua o contramos então um movimento da função à sig-
lado "simbólico" da explicação durkheimiana, nificação" (Apud Dumont, 1986:6). Para esse au-
acusando Radcliffe-Brown de não tê-lo percebi- tor, a estrutura de Evans-Pritchard é uma estrutu-
do. Dumont considera que "o assunto da antro- ra mental, pensada em termos de oposições con-
pologia social sendo o estudo da estrutura social, ceituais num sentido depois "tornado" estrutura-
e a estrutura social consistindo exclusivamente na lista por Levi-Strauss. Embora essa seja uma afir-
descrição de grupos e das relações entre grupos, a mação ousada, não deixa de ter seu charme: mes-
sociologia de Radcliffe-Brown, diferentemente da mo que estejamos longe de um estruturalismo,
de Durkheim, não fornecia conceitos para consi- nos termos em que ficou conhecido posteriormen-
deração sociológica desses fenômenos"(Idem:V). te, estamos também muito longe da estrutura
Após essa rápida passagem por algumas das Radcliffe-browniana, que dominou amplamente
questões de Radcliffe-Brown, suficiente para as a antropologia inglesa, mesmo depois de Os Nuer.
intenções desse trabalho, começarei a analisar as Ela é realmente um passo no sentido da significa-
idéias de Evans-Pritchard pelo que elas mais se ção, pensada como foi pelos teóricos franceses.
distanciam da antropologia inglesa e também de Segundo Dumont, Evans-Pritchard foi muito
Durkheim: a nossa querida noção de estrutura. tímido na defesa da sua noção de estrutura, não
Para esse autor "O antropólogo social não se con- questionando de frente o organicismo de Rad-
tenta somente em observar e descrever a vida so- cliffe-Brown. Foi apenas em 1950, com suas Lei-
cial de um povo primitivo mas procura revelar turas Marrett, que ele rompeu definitivamente

MACHADO, Igor José de R. Evans·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 129
com essa abordagem, escandalizando os que an- tecipação da sociologia do conhecimento cotidia-
tes aplaudiram Os Nuer. Se por um lado a teoria no. Os escritos fenomenológicos de Husserl e
dos grupos unilineares foi adotada pelos ingleses Shultz provocaram um movimento para desen-
(que a levaram a exaustão), esse aspecto estrutural volver uma sociologia sistemática do senso co-
(a grande originalidade a qual tinha me referido mum, das pessoas ordinárias em contextos cotidi-
no final da parte anterior) não teve seguidores na anos. A temática de Evans-Pritchard levou-o ao
Inglaterra. "O fato é ainda mais extraordinário, desenvolvimento dessas questões ainda mais cedo,
quando se vê que a posteridade dos Nuer mostra porque não era possível lidar com questões como
que Evans-Pritchard não exprimia a corrente mai- magia e totemismo, sem esse tipo de tratamento.
or da antropologia social inglesa, mas, ao contrá- Ele antecipou as intenções desses filósofos atra-
rio, seria em grande medida incompreendido em vés do reconhecimento da necessidade de inter-
sua tendência profunda, as 'estruturas' se opondo pretar o discurso no seu contexto de funciona-
às leis da vida social, que continuou orientando mento nas relações sociais e no "social account-
os seus pares"(Idem:XI). ing". Dumont também enfatizou o esforço de
Evans-Pritchard em inserir elementos da experiên-
RELIGIÃO, TOTEMISMO E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO: cia cotidiana no seu contexto específico.
Essa característica traz uma interessante coinci-
EM BUSCA DO PAPEL DO INDIVíDUO
dência entre Evans-Pritchard e Durkheim: o fato
NA AUTONOMIA DO SISTEMA SIMBÓLICO de iniciar uma sociologia do conhecimento a par-
Para Mary Douglas (1980), há avanços meto- tir de pesquisas sobre religião, magia e totemismo.
dológicos exclusivos no trabalho de Evans-Prit- Para Durkheim, o totemismo oferece uma visão
chard, entre eles está a sua preocupação em rela- de mundo que está ligada ao que ele acredita como
cionar filosofia moral e religião com comporta- sendo o primeiro sistema de representação que o
mento social. Se hoje vive-se as críticas dos feno- homem produziu do mundo e de si mesmo. Como
menologistas à sociologia moderna, num questio- a filosofia e ciências nasceram da religião, esta con-
namento entre subjetividade e objetividade, tribuiu para formar o espírito humano. Assim, o
Evans-Pritchard preconizou esse debate muito totemismo é religião e sistema de representação
antes (naquela época não sucumbiu às teorias so- primeiro, e nele se percebe como se organizaram
ciais mecanicistas). Ele não ignorava o papel do primeiramente as categorias do intelecto: tempo,
indivíduo e criticava qualquer teoria que "reduced espaço, gênero, número, causa, etc. A sociologia
the mind to a mere arena in which social factors da religião torna-se, então, sociologia do conheci-
contend." (Douglas, 1980:12). Essa posição é uma mento. Para Durkheim é "a sociedade que forne-
crítica a de Durkheim, para quem o indivíduo ceu o modelo sobre o qual trabalhou o pensamen-
não tem autonomia na teoria da sociedade.' Dou- to lógico". (Durkheim, 1989:193). O pensamen-
glas pretende demonstrar que o método de Evans- to religioso trata de uma articulação com o social
Pritchard, traçando noções de "accountability" e é fonte do pensamento lógico. Assim, a fonte
através de formas institucionais, demonstrou um do pensamento lógico é a sociedade, e o conhe-
modo de lidar com essas dificuldades na sociolo- cimento tem origem social. Portanto, estudar o
gia. A força desse método está no fato de basear- totemismo é também fazer uma sociologia do co-
se no pressuposto de que a sociedade humana é nhecimento, além de uma sociologia da religião.
composta não de "ciphers", mas de agentes ativos Por outro lado, a questão central da antropolo-
envolvidos de inteligência e vontade: "Intentions gia e de várias ciências em 1920 (segundo Dou-
create and sustain institutions as much as ins- glas), época do treinamento de Evans-Pritchard,
titutions constrain intentions."(Idem: 13). Du- era relacionada com as condições do conhecimen-
mont nos lembra ainda que Evans-Pritchard con- to humano, de como se davam as percepções. Os
seguiu "disfarçadamente" introduzir na pesquisa antropólogos participavam dessa discussão ofere-
antropológica a importância do sentido que os cendo exemplos bizarros de tribos primitivas (o
autores dão ao que eles fazem. totemismo, a magia e tabus foram destinados a
Outra característica de sua modernidade é a an- antropologia para que essa desse sua contribui-

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ção para o entendimento de como a mente funcio- debate sobre as condições que fazem o conheci-
na). Nosso autor participou dessa discussão a par- mento possível; implicando em algo positivo para
tir de dois compromissos: um para o caráter uni- dizer a respeito das possibilidades de comparação
tário da cognição humana e outro para a análise entre culturas. (Idem p.38).
sociológica que a revelaria. Esses compromissos Ao finalizar The Nuer religion (1970) Evans-
"meant that he was determined to give a strong Pritchard terminou seu programa: estabelecer uma
methodological edge to the speculations of the teoria antropológica e distintiva do conhecimen-
French sociologists in whose writings he saw the to. Ele demonstrou a racionalidade dos medos ir-
unrealized possibilities of a proper sociology of racionais, do "pensamento místico", etc. O que
knowledge". (Douglas, 1980:18) Evans-Pritchard fez foi mudar a direção das per-
Evans-Pritchard usaria as idéias dos sociólogos guntas para longe da veracidade objetiva ou não,
franceses para sociologizar teorias da mente que e longe da psicologia, para um enfoque sociológi-
não tinham base numa teoria social (iniciando co de funcionabilidade de um sistema de idéias.
uma teoria do conhecimento). Enquanto isso os Ele pôde concretizar o que vinha tentando desde
antropólogos britânicos (Marett, Frazer, Malino- Witchcraft, oracles and magic among the Azande
wsky, Elliot Smith) explicavam a religião através (1937) que, na suas palavras, foi "uma tentativa de
de um apelo a psicologia. Bartlett foi o primeiro tornar compreensíveis uma série de crenças, to-
inglês a explicar esses fatos através de uma ótica das elas estranhas à mentalidade de um inglês con-
social; os tabus, por exemplo, não teriam origem temporâneo, mostrando como constituem um sis-
no medo, mas em causas sociais. Bartlett tratou tema de pensamento inteligível relacionado com
do problema a partir dos fatos sociais, e de como as atividades sociais, a estrutura social e a vida do
esses influenciam a cognição. Evans-Pritchard (se- indivíduo". (Evans-Pritchard, 1950:97) Douglas
guindo aqui a argumentação de Douglas) adotou conclui, então, que "His aproach was the con-
os interesses de pesquisa de Bartlett; foi influenci- sequence of a theoretical position stemming from
ado por essas idéias, convicto de que os princípi- the assumptions of the french sociologists who
os seletivos estavam para serem achados nas insti- had first posed the problems in this formo They
tuições sociais e que o trabalho de campo era o lacked empirical procedures. He proposed to test
meio de encontrá-Ias. "Seen in this light, his live and develop their ideas by methodically tracking
can be presented as a tribute to French sociolo- each verbal statement to its context of action and,
gists, Durkheim, Mauss, Lévy-Bruhl and Halb- ultimately, to its place in a coherent system of
wacs" (Idem:28) accountability." (Douglas, 1980: 105)
Em artigos escritos no Cairo, quando lá lecio- Se Durkheim principiou uma sociologia do co-
nou, de 1930 a 1935, Evans-Pritchard indicou a nhecimento ao iniciar um estudo que buscava as
sua futura trajetória. Nesses textos, anunciou seu origens da religião, Evans-Pritchard estabeleceu
trabalho como uma contribuição para uma teo- uma outra, baseando-se nessa influência, mas indo
ria sociológica do conhecimento, deixando claro em direções diversas. Ele começou procurando
que a investigação deve comparar o nosso pensa- os princípios seletivos que governavam a atenção,
mento cotidiano com o pensamento cotidiano como o interesse dos Azande pela feitiçaria; e es-
deles (dos "primitivos"). Essa é uma crítica aos perou encontrá-los na interação social (graças aos
conceitos de razão e racionalidade como os filó- colegas franceses') (Idem:38-40). Terminou com
sofos usavam os termos. O método de Evans- conclusões sobre a importância do contexto so-
Pritchard exigia que se comparasse senso comum cial na formação das preocupações "mentais" de
com senso comum, e "In its full development the um povo, bem antes dos escritos fenomenológicos
method requires the context of belief and beha- de Husserl e Shultz", que desenvolveram uma so-
viour to be specified"(Idem p.34).4 O significado ciologia do conhecimento baseadas no senso co-
de palavras e pensamentos têm que ser encontra- mum, e da necessidade de se interpretar o discur-
dos na atividade social. A antropologia pôde, dessa so a partir do seu contexto.
maneira, acrescentar algo a idéia dos limites do Para Douglas, na análise sobre os Azande, nos-
conhecimento, e Evans-Pritchard contribuiu no so autor mostrou como cada parte contribui para

/lAACHADO, Igor José de R. Evans-Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 131
a manutenção do todo, e como o trabalho que o morfologia social (sociedade ou sistema social) e
pensamento faz é social e que "thought makes representação coletiva (cultura, ideologia), como
cuts and connections between actions" (Idem:54). em Durkheim". (Sahlins, 1986: 120)
As questões sobre racionalidade deveriam ser, Evans-Pritchard contrariava também teorias
nessa perspectiva, a respeito da coerência das ações reducionistas da religião, pois "Sociological ana-
particulares com instituições articuladas. Isso lisys was necessary, but wrong if it taught that
posto, temos duas questões básicas a serem discu- the religious conceptions of the primitive peoples
tidas; uma sobre a importância da coesão social e were nothing more than symbolic representation
outra sobre o papel do indivíduo. Com relação a of social order." (Evans-Pritchard, 1956:313). Essa
primeira, a autora parece salientar a influência das é uma outra crítica à teoria de Durkheim, quan-
preocupações com a coesão social, presentes em do trata a religião como epifenômeno da estrutu-
Durkheim e Radcliffe-Brown. Essa idéia é con- ra social. Evans-Pritchard se preocupa, desse mo-
trária a de Dumont, pois para ele "Os Nuer (não do, com a busca de um entendimento da autono-
tratam) sobre a integração social". (Dumont, mia do sistema simbólico. Se Durkheim dava si-
1968:v). Parece-me que Douglas tem razão, nessa nais nessa direção, como enfatizam Pontes e Ortiz,
polêmica criada artificialmente, pois não é o ob- esse não foi o nexo de sua explicação, enquanto
jetivo de Evans-Pritchard compreender o que Evans-Pritchard tratou dessa autonomia, através
mantém coesa uma sociedade sem estadoi" da consideração do papel do indivíduo.
Com relação ao papel do indivíduo, para Dou-
glas, a sociologia de Evans-Pritchard era anti-de- CONClUSÃO
terminista, focalizada nos seus propósitos e nas Chega-se assim a seguinte conclusão, talvez um
suas escolhas quando tratando uns com os ou- pouco ousada: Evans-Pritchard constrói uma teo-
tros, ela (a sua sociologia) "...affirms the power of ria que não separa estrutura social (no sentido
personal interventions in historical events." Dou- durkheimiano) do sistema simbólico (sistemas
glas, 1980:48). Aqui a distância com a perspectiva ideológicos, religião, etc .... ), pois a sua estrutura
durkheimiana (e "Radcliffe-browniana") é de novo é um sistema de relações que só se torna manifes-
acentuada. É legítimo perguntar como idéias ta na ação do indivíduo (indivíduo atuando em
azande sobre feitiçaria se interligam com idéias grupos, é bem verdade; mas esses grupos não são
políticas, e como as instituições de feitiçaria es- nem um pouco estáveis e se formam das mais di-
tão relacionadas com as instituições políticas, mas versas formas). Essa estrutura é mental, na medi-
perguntar como essas idéias afetam as instituições da em que está apenas nas mentes dos indivíduos
(como fez o autor) implica em dizer que essas idéi- de uma sociedade; só se realiza na sua ação (ado-
as têm vida própria e podem ser observadas in- tando a perspectiva de Dumont) - para os Nuer,
fluenciando as instituições. (em todo caso, são as por exemplo, é o princípio estrutural de seg-
pessoas que têm idéias e que influenciam as insti- mentação. Além de tudo ela não é universal, como
tuições (Idem:60). Apresentar, portanto, a rela- a estrutura de Levi-Strauss, ela existe num con-
ção entre instituições e idéias sem atentar para os texto social específico, em sociedades específicas.
indivíduos e intenções é uma falácia. Afirmando No entanto, é preciso "ouvir" alguém que já
que as atitudes de indivíduos (portadores de idéi- tenha debatido a relação entre ação e estrutura
as) influenciam as instituições, Evans-Pritchard com muita atenção, como é o caso de Jeffrey Ale-
leva ao extremo a perspectiva aberta por Dur- xander (1987). No seu texto "O novo movimento
kheim nas Formas elementares, bem salientada por Teórico" ele debate o desenvolvimento de abor-
Pontes (1993): O simbólico ao ser ligado episte- dagens teóricas micro e macro, ou individualistas
mologicamente com a ação do indivíduo ganha e coletivistas, ou ainda ação e estrutura. Interessa
uma autonomia total. De fato, a divisão entre su- aqui o momento de desenvolvimento desse deba-
perestrutura e estrutura (implícita nas discussões te. As teorias coletivistas "consideram os padrões
de Lukes), não existe mais, pois encontramos o sociais como preexistindo a qualquer ato indivi-
indivíduo ligando-as. Como confirma Sahlins, na dual específico" (idem: 14), enquanto as teorias
obra de Evans-Pritchard "não há separação entre individualistas "reconhecem que tais estruturas

132 Revistode Ciências Sociais v.27 n.1/2 1996


extra-individuais parecem existir na sociedade, extrema liberdade de ação. Por outro lado, as teo-
assim como reconhecem que existem padrões in- rias coletivistas têm a suposição de que "as estru-
teligíveis. Insistem, contudo, em que esses padrões turas coletivas devem ser retratadas como exter-
são o resultado da negociação individual (...) O nas aos indivíduos e inteiramente impermeáveis
suposto é que os indivíduos podem alterar os fun- à sua vontade." (Idem: 16) A ordem é explicada às
damentos da ordem a cada momento ..."(Ibidem). custas do sujeito. Como já vimos a noção de es-
Vemos então que Evans-Pritchard dificilmente trutura em Evans-Pritchard, é quase desnecessá-
se encaixaria nessa análise; embora deva lembrar rio dizer como ela não é externa e muito menos
que ele se definia como uma funcionalista, her- impermeável as vontades do sujeito.
deiro de Radcliffe-Brown e Malinowski. Ele não Num longo desfile de opções teóricas que li-
formulou claramente uma teoria da ação ou es- dam com essas contra-posições, J effrey Alexander
trutura, mas desenvolveu um trabalho teórico a discute o marxismo estruturalista (de influência
partir de preocupações específicas (sempre a par- Levi-straussiana), onde as "ações individuais (po-
tir de um trabalho etnográfico sério), como já de- dem) desviar-se dos imperativos estruturais, (mas)
monstramos; assim, as análises possíveis decor- as conseqüências objetivas dessas ações são deter-
rem da utilização de seu método, de declarações minadas por estruturas que estão além do con-
esparsas e das monografias. Dificilmente poderí- trole dos atores."(Idem:18) Segundo minha análi-
amos vê-lo como um "individualista", pois nes- se de Evans-Pritchard, as ações não podem se dis-
sas teorias "os indivíduos (...) não carregam a or- tanciar da estrutura, pois ela é um modo de pen-
dem dentro de si. Eles antes obedecem ou se re- sar, um princípio que coordena as ações e, ao
belam contra a ordem social - mesmo em rela- mesmo tempo, ela está sob controle dos atores,
ção a valores que guardam dentro de si mesmos pois eles influenciam na formação do mundo sim-
- de acordo com seus desejos individuais." bólico e na organização social. Essas teorias cole-
(Ibidem). Isso não é o que ocorre na perspectiva tivistas que tomam por estrutura algo semelhante
de Evans-Pritchard; para ele os indivíduos não à de Radcliffe-Brown e, por outro lado, essa apro-
carregam apenas valores, nesse sentido, carregam priação sociológica da teoria de Levi-Strauss não
consigo também o próprio princípio estrutural. parecem abarcar a posição de Evans-Pritchard.
Sua ação é governada por esse princípio, que pos- Com relação a própria noção de estrutura de Levi-
sibilita a própria intervenção e, antes de qualquer Strauss, a semelhança está em que ambas são
dúvida, não trata de indivíduos isolados, mas or- modos de pensar, que estão na mente dos indiví-
ganizados em grupos. Os "desejos individuais" são duos, mas enquanto Levi-Strauss procura a estru-
transformados imediatamente em questões cole- tura, Evans-Pritchard a situa num contexto espe-
tivas, mas de grupos não definidos. Por exemplo, cífico, sendo ela mais "real", pois é possível per-
quando um Nuer assassina um outro, imediata- cebê-Ia organizando a sociedade naquele dado
mente, em função dessa estrutura relacional, or- contexto (através da ação dos indivíduos), que é
ganizam-se grupos para reivindicar a vingança. um entre muitos.
O indivíduo de fato altera a realidade social, E foi a intenção de Evans-Pritchard em realizar
mas não o próprio princípio estrutural. Temos uma sociologia do conhecimento, que tanto de-
um problema, pois as "teorias individualistas são bati, que levou sua atenção para o papel do indi-
atraentes porque preservam a liberdade individu- víduo e de sua ação influenciadora sobre o siste-
al de modo aberto, explícito e persistente. Seus ma simbólico (que integrado à ação é autônomo),
postulados a priori supõem a integridade do indi- demonstrando uma indivisibilidade entre ação e
víduo racional ou moral, e a capacidade que o estrutura. De certa maneira, ele (ou os Nuer) resol-
ator tem de agir livremente contra sua situação, ve um problema sociológico, criando uma teoria
definida em termos materiais ou culturais." (Idem: sistêmica a partir da ação de indivíduos, visua-
15). Para Evans-Pritchard, o indivíduo altera a re- lizando uma estrutura que possibilita essa inte-
alidade (e também o sistema simbólico), a partir gração. É bom que se lembre que são os Nuer e
das possibilidades de um princípio estrutural (sem suas "instituições" que permitem tal tratamento
alterá-lo}, não podendo assim pensar-se numa dessa questão, e talvez a análise de outra socieda-

MACHADO, Igor José de R. Evans-Pritchard: ação e estrutura. pp. 125 a 135 133
de impossibilitasse esse tipo de reflexão. No en- 3." A divisão do trabalho contém uma versão primitiva do
tanto, Evans-Pritchard estudou principalmente os característico tratamento durkheimiano das relações
Nuer (e não outros) e, de fato, realizou essa apro- entre história, autoridade moral e a liberdade huma-
ximação; e seu método e conclusões estão aí para na. A liberdade não consiste em escapar das forças nem
do elos social, mas na autonomia de ação possibilitada
serem analisados!
pelo fato de pertencer a sociedade. Nas sociedades sim-
ples, a dominação da consciência coletiva limita a esfe-
NOTAS ra da ação individual; esta situação é transformada pelo
1. É preciso não confundir estrutura social com morfo- processo de desenvolvimento social, não pela destrui-
logia social, pois essa, para Durkheim é uma das três ção da autoridade moral, senão pela alteração de sua
divisões da sociologia (morfologia social, fisiologia forma. (Giddens :19-20)
social e sociologia geral), é uma ciência que estuda a 4. A necessidade do contexto social para a interpretação
"base geográfica dos povos em suas relações com a or- é herança de Malinowsky, mas Evans-Pritchard foi mais
ganização social; estudo da população, seu volume, den- longe na definição de contextos sociais.
sidade e distribuição geográfica". (Rodrigues 1993:45) 5. Com relação aos Nuer; as instituições políticas são de
A noção de "organização social", ao contrário pode especial interesse para a sociologia do conhecimento,
ser tomada como equivalente a de estrutura social, pois pois elas aparecem e desaparecem nas suas ações; e,
é usada praticamente no mesmo sentido no mesmo portanto, "whatever political principies exist are main-
texto; a diferença é que a idéia de estrutura social car- teined entirely in their minds". (Douglas, 1980:73).
rega uma noção de funcionalidade mais explícita, já Que o pensamento está embebido em instituições foi
que trata de relações entre os segmentos ou órgãos que estabelecido; o questionamento posterior foi sobre que
funcionam para a manutenção da coesão social. tipos de pensamento e que tipos de instituições. A
2. Mesmo as críticas de Giddens a essa obra não tocam em partir desse exemplo, nós podemos comparar sistemas
questões do simbolismo. Para ele, As formas elementa- de "accountabiliry" para dar novas respostas para ve-
res têm, como é de se esperar, bases empÍricas suspeitas; lhas questões. "Frorn here on I shall assume that
o totemismo é encarado de forma muito diferente pelos whatever can be said about a belief as belonging to a
antropólogos modernos. A polaridade sagrado\profano, system implies the same about the relevant social ins-
fundamental a definição de religião de Durkheirn, não titution, since each only lives in the other."(Idem:73)
é absolutamente universal. Alguns críticos defendem 6. Evans-Pritchard demonstrou como os "primitivos" tam-
que essas definições não atentam para a mudança soci- bém negociam suas reinvindicações e constroem sua
al, devido ao caráter de cimento sociológico fornecido cultura ao fazê-lo. Ele assim fez investigando o modo
pela religião para a manutenção da coesão social, mas como os Nuer usam seus princípios de discriminação.
Giddens defende uma sensibilidade do autor "com os O autor também demonstrou como problemas sobre
contrastes - e continuidades - entre tipos tradicionais accountability desenvolvem músculos nas faculdades
de sociedade e a ordem industrial contemporânea." humanas de racionalização. "the joint effort of creating
(Idem:76) Isso nada tem a ver com a veracidade das pre- Nuer society also produces a powerfull machinery for
missas tomadas para a análise. Ao tratar de sociedades turning social dilemmas into legalistic issues, solved
"simples" e portanto estruturalmente "simples", possi- by fictions."(Idem:86) É uma análise de como a pró-
bilitou que encarasse a sociedade abstrata como algo pria consciência é estruturada. Ele também tratou do
homogêneo; essa posição impossibilita uma análise da que é "esquecido" como construções sociais, numa
religião em termos de ideologia, como a legitimação à apropriação de um insight Freudiano. As brechas so-
dominação de grupos sobre outros (essa perspectiva bre as quais relembrar é impossível são mais do que
Weberiana está ausente da obra de Durkheim). O con- um mero acidente resultante da estruturação da aten-
flito é visto em termos de oposições entre indivíduo e a ção por interesses sociais. Relacionou, portanto,
coletividade, e não entre grupos de interesses num sis- consciêcia histórica com estrutura social muito antes
tema de dominação e subordinação. O conflito é trata- desses tipos de questões serem analisadas pela
do como um fenômeno de transição no desenvolvimen- sociologia. "Well before phenomenology' s claim that
to social, em que a harmonia das funções está tempora- sociological understanding must start from the
riamente rompida. Na obra de Durkheim, as normas negotiating activities of conscious, inteligent agents,
morais são vistas com passíveis de apenas uma interpre- Evans-Pritchard had seized the problem, developed
tação, mas um só conjunto de símbolos e códigos pode a method and show what progress can be made."
ser alvo de várias interpretações por parte de grupos (Ibidem)
divergentes. 7. Segundo Douglas, Evans-Pritchard considera que dois

134 Revistode Ciências Sociais v.27 n.l/2 1996


tipos de "sistema" são usados na ciências sociais. O ___ o (1975), "O campo da antropologia'. ln: ZA-
uso comum se refere a um número de relações nas quais LUAR, Alba (Org.). Desvendando máscaras sociais. Rio
as partes contribuem para a manutenção do todo. Se de Janeiro, F. Alves.
uma coisa muda, devido a interação entre eles, todo o ___ o(1970),Nuer Religion. Londres, Oxford, Claren-
sistema muda (o funcionalismo clássico). Outro uso don Press.
do "sistema" focaliza diretamente sobre princípios ___ o(1970), Antropologia Social. Lisboa.
"homeostatics". O trabalho do investigador é identifi- ___ .(1950), Bruxaria: oráculos e magia entre osAzande.
car como os mecanismos de controle e estabilização Rio de Janeiro, Zahar.
operam (para manter a coesão num nível ideal). (Dou- GIDDENS, A. (1978), As idéias de Durkheim. São Paulo,
glas, 1980:63). Evans-Pritchard teve que usar esse tipo Cultrix.
de explicação porque não havia nada na ciência políti- LUKES, S. (1973), Emile Durkheim, New York Peguin
ca e antropologia que explicasse uma sociedade orde- Books.
nada que se mantinha sem o exercício de um poder MELLATTI,]. C. (Org). (1978), "Introdução". Radcliffe·
centralizado, coercitivo. Portanto, a preocupação com Broum. São Paulo, Ática.
a coesão social é mais uma vez destacada. ORTIZ, R. (1989), "Durkheim: arquiteto e fundador.
RBCS, v4, n.1l.
BIBLIOGRAFIA ___ o(1989b), "Apresentação".ln: Durkheim, E.,As
ALEXANDER,]. C. (1987), "O novo movimento teóri- formas elementares da vida religiosa, Op. Cito
co". RBSC, ,v.2, n.4, jun. PONTES, H. (1993), "Durkheirn: uma análise dos fun-
DOUGLAS, Mary. (1980), Evans-Pritchard. Fontana, damentos simbólicos da vida social e dos fundamen-
Londres. tos sociais do simbolismo". Cadernos de Campo, n.3.
DUMONT, L. (1968), Prefácio ao Les Nuer. Gallimard, RADCLIFFE-BROWN. (1978), "O método comparati-
Paris. vo em antropologia social" .ln: MELLATTI (Org.) Op.
DURKHEIM: E., MAUSS, M. (1981), "Algumas formas Cito
primitivas de classificação: contribuição para o estu- ___ . (1973), Estrutura efunção na sociedade primiti-
do das representações coletivas". Ensaios de Sociologia, va. Petrópolis, Vozes.
São Paulo, Perspectiva. REIS, E. P. (1989), "Reflexões sobre o Homo Socio-
DURKHEIM:, M. (1989), As formas elementares da vida logicus". RBCS, v.4, n.l1, out.
religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo, RODRIGUES,]. A. (Org.). (1993), Durkheim. São Pau-
Paulinas. lo, Ática.
EVANS-PRITCHARD, E. (1978), Os Nuer. São Paulo, SAHLINS, Marshal. (1986), Cultura e razão prática. Rio
Perspectiva. de Janeiro, Zahar

MACHADO, Igor José de R. Evans·Pritchord: ação e estrutura. pp. 125 a 135 135

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