1. Explicite como Émile Durkheim conceitualiza o “social” e como ele justifica que tal objeto legitima uma ciência consagrada a este último. Émile Durkheim (1858- 1917), sociólogo francês, estabelece a sociologia como uma disciplina acadêmica e, juntamente a Karl Marx (1818- 1883) e Max Weber (1864- 1920), é considerado um dos três teóricos clássicos da sociologia. Destes, no entanto, Durkheim é o mais importante para a antropologia por ter se interessado por temas antropológicos, além de ajudar no desenvolvimento da antropologia francesa e inspirado a britânica. Influenciado por teóricos como Auguste Comte (1798- 1857) e Herbert Spencer (1820- 1903), herda algumas características deles. Do primeiro, “a ênfase positivista sobre o empirismo e sobre a significação do grupo na determinação da conduta humana” (TIMASHEFF, 1971, p. 140), além da visão de que o conhecimento social pode contribuir para uma sociedade melhor. De Spencer, por sua vez, precursor do funcionalismo – corrente sociológica em que há a consideração de que o todo possui relevância na definição das partes –, a visão de que a proposta central da sociologia era a explicação para a integração social, mesmo ao tornar-se mais complexa (TURNER, 2000, p. 7). Assim, Durkheim defende que todo e qualquer fenômeno social possui uma significação. Ou seja, os fenômenos sociais não são vistos como isolados, irracionais ou sem significado – ao contrário, estão integrados. A sociedade é como um sistema lógico, com as partes dependentes entre si, cada uma com uma função específica, integrando-se para manter o todo. Portanto, Durkheim via a sociedade como um todo e suas instituições, não os indivíduos. Acima de tudo, tinha interesse no que que mantinha a sociedade coesa e garantia a ordem social. Defendia que a sociologia deveria ir além de uma grande teoria e se tornar mais um método que pudesse ser aplicado de diversas formas para entender o desenvolvimento da sociedade. Assim, de acordo com Eriksen e Nielsen (2018, p. 52) buscava mais explicações que recorriam ao sincronismo do que ao diacronismo. Explora, então, uma antropologia que se baseie em dados observáveis, geralmente quantificáveis. Em sua obra “As regras do método sociológico” (1895), a partir da visão de que a sociedade define o indivíduo, Durkheim determina o objeto de estudo da sociologia e o método de compreensão dos fenômenos sociais, que devem ser observados como coisas, garantindo a imparcialidade, neutralidade e objetividade do estudo. A sociedade deve ser vista como objeto distante do sociólogo para, enfim, ter objetividade no estudo de tais fatos, vendo-os de forma neutra e não se fundamentando em seus princípios individuais – não permitindo, então, que paixões e vícios interfiram nas análises. Caso os elementos que compõem a totalidade da sociedade sejam interpretados como coisas, o sociólogo alcança tais objetivos. Ainda, defende que, antes, a sociologia lidava mais com questões conceituais, concepções, ao invés de fatos constatáveis através da análise empírica. Assim, Durkheim fundamenta o conceito de fato social. Para o teórico, os fatos sociais são os elementos que constituem a realidade, sendo toda forma de agir, pensar e ser – ou seja, os conceitos, preceitos e valores que determinam o comportamento do indivíduo em sociedade. Tais fatos são identificados por três características: exterioridade, pois são anteriores ao indivíduo, já que é a sociedade que os produz; generalidade, por haver coordenação e comando da inter- relação entre as pessoas, devido ao reconhecimento de sua legitimidade; coercitividade, já que, uma vez que o indivíduo age de maneira não esperada pela sociedade, devido à fuga do padrão estabelecido, há a probabilidade de que ele sofra algum tipo de ação punitiva ou afins. Essa última característica pode ocorrer de forma espontânea, com foco em ser aceito socialmente, ou legal, em que o padrão comportamental é instaurado por lei. Portanto, Durkheim vê a sociologia como o estudo dos fatos sociais. Indo além, é um estudo determinado também por seu objeto. Ao estipular a sociologia como a ciência dos fatos sociais, compreende-se que ela é “a ciência das instituições, de sua gênese e de seu funcionamento” (TIMASCHEFF, 1971, p.142). O fenômeno religioso, por exemplo, segundo ele, é um fato social. É fruto da coletividade, utilizado como método explicativo do cotidiano. É resultado da própria estrutura social, em que a sociedade gera a noção de um elemento superior ao homem. Os fatos sociais são coisas que são explicadas em suas relações com os outros fatos sociais. Para ele, a sociedade é como um organismo vivo. Durkheim, devido ao seu funcionalismo, utiliza-se de analogias biológicas para explicar a sociedade. O sistema social vive, em equilíbrio, como um organismo. Dá a entender que a sociedade parece com o funcionamento do corpo, mas não o é. A sociedade é um fenômeno organizacional, vai além da mera soma das suas partes. Ela é o resultado de todas essas partes funcionando em conjunto, num certo equilíbrio. Assim, por uma metáfora, a sociedade pode ser entendida como um organismo vivo, mas o objeto da sociedade não diz respeito a coisas materiais, como acontece com os organismos vivos – corpo, órgãos e outros. A sociedade é composta por ideias, interpretações. Sendo assim, ela não é parecida com a biologia, mas sim com a psicologia. No entanto, ela também difere da psicologia, já que as interpretações da sociologia têm a ver com a interpretações coletivas, não com as individuais. O que faz, então, com que a sociedade se aproxime novamente da biologia. Em suma, por não serem fruto das vontades humanas individuais, os fatos sociais não podem ser examinados como psicológicos. Eles são externos ao indivíduo. Como a sociedade age de forma coletiva, o teórico trabalha a ideia de solidariedade para compreender o que, afinal, mantém a sociedade coesa, além de como e por qual motivo o ser humano vive em grupo. Para que a solidariedade exista, ela precisa de algo que a gere. Sendo assim, Durkheim estipula dois tipos de solidariedade: a mecânica, típica de sociedades tradicionais, em que os indivíduos fazem algo para a construção daquela sociedade. É baseada na consciência coletiva, em que os indivíduos se sentem parte de um todo. É formada por uma forma comum de pensar, de se organizar; a orgânica, presente nas sociedades modernas, é baseada na complexidade de tal vida. Através da divisão social do trabalho, em que existe uma perspectiva mais individual do ser, com a presença das vontades individuais formando o todo de uma sociedade. Há a individualidade, mas também a construção de uma vida coletiva. Não há mais uma forma comum de compreender o mundo e o que gera união entre os indivíduos é a diferenciação fundamentada na divisão social do trabalho. Durkheim defendia que o avanço tecnológico gerava maiores relações de trabalho, havendo uma maior divisão nos formatos produtivos. A questão é que um indivíduo começa a precisar do outro. Sua ideia é que se não consegue mais uma solidariedade por uma questão de todos pensarem de forma semelhante, como era na mecânica, a solidariedade pode ser gerada pelo trabalho – a necessidade de que o indivíduo possui em relação aos outros. O nome é orgânica porque tem a ver com o indivíduo, em que um se conecta ao outro por laços de necessidade. Se na mecânica os laços de união são por repetição, já que todos repetem uma mesma forma de comportamento e pensamento, os laços da orgânica são interligados e parecidos, compreendidos pelo trabalho, já que um necessita da produção do outro. Portanto, através de suas analogias de que a sociedade é como um organismo vivo, da apresentação de uma metodologia, do uso do fato social como o objeto próprio da sociologia, entre outras características cunhadas pelo teórico, Durkheim permite que o social seja compreendido através de análise empírica. Devido ao seu corpo teórico e sua contribuição metodológica, Durkheim dá ares científicos à sociologia. A sociologia obtém sua autonomia ao se diferenciar das explicações das ciências biológicas, psicológicas, históricas, dos outros discursos relacionados ao ser humano.
2. Compare essa conceitualização do “social” por Durkheim à noção de “fato
social total” de Marcel Mauss. A partir daí, reflita sobre o lugar deixado à noção de cultura nos pressupostos desses dois pioneiros da escola francesa de socio- antropologia. Marcel Mauss (1872- 1950), antropólogo e sociólogo francês, é considerado o pai da antropologia francesa. Sobrinho de Émile Durkheim, recebe influências do tio em diversos aspectos com relação à interpretação da vida social. Conforme Laplantine (2007, p. 87), Franz Boas (1858- 1942) e Bronislaw Malinowski (1884- 1942) foram os responsáveis pela fundação da etnografia. Boas não era teórico, além de recolher os dados como um estudioso das ciências naturais, enquanto que Malinowski possui bases contestáveis em sua teoria. Portanto, para que a antropologia conseguisse, enfim, produzir uma cientificidade, era necessária a arquitetura de uma metodologia. Os pesquisadores franceses de tal época, afirmando que o social precisava de especificidades para ser estudado, diferenciavam-se das explicações das visões anteriores – histórica, dos evolucionistas; geográfica, dos difusionistas; biológica, com o funcionalismo malinowskiano; psicológica, da psicologia clássica e com a psicanálise. Em “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1925), Mauss, inspirado por Durkheim, utiliza o termo fato social total. A obra, abordando os métodos de trocas existentes nas sociedades tidas como primitivas, tenta desvendar o regime contratual e as prestações que ocorrem nas sociedades tidas como arcaicas. Através do método comparativo, buscando similaridades estruturais em sociedades não europeias, conforme Eriksen e Nielsen (2018, p. 75), Mauss não fazia generalizações. Assim, busca compreender um aspecto que percebe ser característico em diversas sociedades: a dádiva. Logo, busca estudar tal realidade com dois objetivos. O primeiro é o de compreender a estrutura das transações a fim de obter conclusões de cunhos econômico e moral. O segundo, por sua vez, através da análise do primeiro aspecto, é o de interpretar a própria sociedade em que se encontra, vendo os aspectos econômico e moral nas sociedades modernas. Para Mauss, a dádiva é o contrário de troca. Existem três obrigações interligadas que são dar, receber e retribuir. O que aparenta ser realizado de forma voluntária, na verdade é constituído por rígidas leis. As sociedades, então, são baseadas em alianças, em que as trocas são formas de estabelecer relações e, então, segundo o teórico, não existe civilização mais ou menos civilizada, mas sim civilizações distintas que atribuem significados diferentes ao mana (força, poder). De tal forma, “coisas que são dadas e recebidas se tornam símbolos de outras coisas e de outras condições além delas mesmas” (ERIKSEN; NIELSEN, 2018, p. 76). Assim, o fato social total constitui-se pela síntese das representações sociais, como os aspectos legislativos, econômicos, religiosos, sistemas de parentesco, sistemas de trocas, entre outros. Eles, enfim, não são isolados entre si, pois há uma interdependência, uma vez que estão conectados e influenciam o outro. No entanto, os indivíduos podem desprender-se do sistema de obrigações, mas um dos resultados possíveis é o conflito. Ainda, para Mauss, com uma visão menos positivista e mais holística, o homem é compreendido como detentor do biopsicossocial. Ou seja, o homem é constituído pelo biológico, psicológico e social. Mauss tem uma visão voltada para o homem e sua complexidade. Por consequência, enquanto Durkheim, através do fato social, busca a apreensão das regras para, enfim, compreender o social, Mauss, ainda, atrela o simbolismo à noção de fato social de seu tio. Assim, para ele, a dádiva é um fato social total, pois possui as características do fato social, mas também, por sua visão holística, tenta interpretar o que as pessoas fazem com as regras dos fatos sociais e o efeito delas. Ao falar de Mauss, Laplantine (2007, p. 91) afirma que:
Finalmente, para compreender um fenômeno social total, é preciso apreendê-
lo totalmente, isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como uma realidade vivida. É preciso compreendê-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etnólogo), mas também tal como os atores sociais o vivem. O fundamento desse movimento de desdobramento ininterrupto diz respeito à especificidade do objeto antropológico. É um objeto de mesma natureza que o sujeito, que é ao mesmo tempo – emprestando o vocabulário de Mauss e Durkheim – “coisa” e “representação.
Durkheim e Mauss, em suas teorias, não abordam o conceito de cultura. O social
e as instituições são, para eles, o que formam a civilização. Durkheim identifica a antropologia como um membro da sociologia, ajudando na construção do social. Mauss, por sua vez, procura a independência da antropologia, devido à sua visão que abarca também a simbologia. Eles, então, não conceituam a cultura, mas, por influenciarem a antropologia francesa, inglesa e outras, contribuem na construção de tal conceito com as teorias posteriores. Os seus trabalhos teóricos, voltados, inclusive, para a metodologia e, então, para a composição científica dos estudos, auxiliam para a construção dos conceitos de cultura. Contribuíram, ainda, para a propagação do conhecimento antropológico e sociológico, como em suas publicações na revista Année Sociologique, fundada por Durkheim.
REFERÊNCIAS
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto, “Introdução uma leitura de Mauss” in Cardoso
De Oliveira, R. Marcel Mauss, São Paulo: Ática, 1979.
DURKHEIM, Émile, “O que é o fato social?”; in RODRIGUES, José Albertina. Émile
Durkheim. São Paulo: ed. Ática, 1998.
ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. 7.ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 297 p.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007. 205p.
MAUSS, Marcel, “Ensaio sobre a dadiva”, in Sociologia e Antropologia, São Paulo:
Cosac Naify.
TIMASHEFF, Nicholas S. Teoria sociológica. 3. ed. -. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1971.
419p.
TURNER, Jonathan H. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books,
2000. XV, 253 p.
RODRIGUES, José Albertina, “A sociologia de Durkheim”, in RODRIGUES, José
Albertina. Émile Durkheim. São Paulo: ed. Ática, 1998, pp. 7-38.