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M A N U A L DE
HIPNOSE MÉDICA
E
ODONTOLÓGICA
Histórico — Neurofisiologia — Técnica —
Aplicações.
1 9 5 8
O S M A R D A N D R A D E F A R I A
M A N U A L DE
HIPNOSE MÉDICA
E
ODONTOLÓGICA
Histórico — Neurofisiologia — - Técnica —
Aplicações.
1 9 5 8
A meu pai
OSMARD FARIA
A meus filhos
CLAUDE e
BERNARD PASTEUR DE ANDRADE FARIA
4-
APRESENTAÇÃO
T r a t a - s e d e u m t r a b a l h o q u e d e v e ser l i d o p e l o s m é d i c o s e m g e r a l ,
t e n d o e m v i s t a as s u a s a m p l a s p o s s i b i l i d a d e s d e a p l i c a ç ã o . Se levarmos
e m consideração o papel de destaque alcançado pela m e d i c i n a psicoso-
mática no trato dos enfermos, e que a angústia, o temor, a instabilidade
n e u r o - h o r m o n a l t ê m sido o ponto de partida de inúmeros distúrbios f u n -
c i o n a i s p a r a o s q u a i s as d r o g a s e o s m é t o d o s c i r ú r g i c o s n ã o alcançam,
n a m a i o r i a das vezes, os seus o b j e t i v o s , p o d e r e m o s concluir a i m p o r t â n -
cia da hipnose como auxiliar do médico na tranquilização psíquica, no
p r e p a r o para a nárcose, na eliminação de diversos distúrbios n e u r o v e g e -
tativos, na sedação de f e n ô m e n o s dolorosos e no combate à insónia.
F a z e r c o m q u e u m p a c i e n t e d u r m a de m o d o p r o f u n d o , eliminando-
Ihe d a m e n t e o f a t o r t e n s ã o , b e m a s s i m c o m o e x a g e r o de s u a s funções
receptoras, não representa, por acaso, um grande objetivo?
E ' d e s n e c e s s á r i o e n c a r e c e r q u e n ã o se t r a t a cie u m a a r m a terapêu-
tica específica, m a s u m a p r á t i c a m é d i c a inócua p a r a o o r g a n i s m o e que
pode colaborar e m inúmeros setores da medicina interna e especializada,
m á x i m e na medicina psicosomática.
EMMANUEL ALVES
A PROPÓSITO
I m p o s s í v e l d i s f a r ç a r a e m o ç ã o de q u e m v ê p e l a v e z p r i m e i r a o seu
n o m e na capa de u m livro e essa é a h o r a i n e x p r i m í v e l que estamos v i -
vendo. Principalmente para quem, como nós, atravessou toda a adoles-
cência e b o a parte de sua vida profissional armazenando reservas para,
u m dia, p o d e r c o m p l e t a r a trilogia da v i d a ú t i l : "plantar uma árvore,
ser pai, escrever u m l i v r o " .
A o m o ç ã o s u r g e , p o r é m , c e r c a d a d e u m h a l o de a n g ú s t i a e d e r e -
s e r v a : d e q u e v a l e f a z e r se n ã o se f a z b e m f e i t o ? E s t a , a interrogação
que, ansiosos, b u s c a r e m o s interpretar n o s olhos, na f a c e , na opinião de
cada colega que n o s h o n r a r c o m sua a t e n ç ã o .
D e p o i s d e u m p e r í o d o á u r e o q u e se e x t e n d e u d e 1 8 8 0 a 1 8 9 0 , a h i p -
nose entrou e m recesso c o m o advento da anestesia química. A g o r a , n o -
vamente reaparece, alijada daquele empirismo mesmeriano, recoberta
c o m roupagens novas — e estas, sim, científicas — cios conhecimentos
d e r i v a d o s das investigações sobre os r e f l e x o s c o n d i c i o n a d o s . E ressurge
resplendente de incontáveis aplicações — t a n t o p o r si m e s m a c o m o p e l o
s o n o q u e dela se d e r i v a •— n a p r á t i c a m é d i c a e o d o n t o l ó g i c a .
O p r i m e i r o i n d i v í d u o q u e se s a b e t e r t i d o a c o n c e p ç ã o d a a ç ã o r e f l e x a
c h a m o u - s e Abu-Ali Al-Hussain Ben Abdallah Ibn-Sina (Avicenna), nas-
ceu n o ano 980 n u m v i l a r e j o perto da cidade de B o u k h a r a , reinado persa,
e faleceu em 1030. P e r s a de n a s c i m e n t o , á r a b e d e o r i g e m , h e l é n i c o de
e d u c a ç ã o . E m 1 8 8 2 , o u s e j a , o i t o s é c u l o s d e p o i s de s u a m o r t e , a R ú s s i a
c o n q u i s t a e a n e x a a o seu t e r r i t ó r i o a q u e l a f a i x a de terra onde nasceu
Avicenna, transformada h o j e na República Socialista Soviética do T a d j i -
k i s t a n . S ó p o r i s s o é a g o r a Avicenna considerado como glória da ciência
nacional soviética ! . . .
L a v e m o s , agora, as m ã o s .
F o i - n o s este M a n u a l s o l i c i t a d o p e l a L i v r a r i a A t h e n e u , a t e n d e n d o à
grande procura que v ê m merecendo as obras sobre hipnose entre as
classes médica e odontológica n o m o m e n t o , e e m virtude da inexistência
de qualquer livro onde o assunto seja posto em bases verdadeiramente f i -
siológicas c o m detalhes quanto à sua técnica de e x e c u ç ã o . Escrito em
apenas dois meses, conterá, s e m dúvida, u m a série não pequena de in-
correções e deficiências que os nossos leitores se e n c a r r e g a r ã o , gentil-
m e n t e , d e a p o n t a r - n o s p a r a f u t u r a e d i ç ã o se a t a n t o f ô r o s e u mereci-
mento. Como também cortamos desta primeira impressão três capí-
tulos p r o g r a m a d o s (hipnose e psicanálise, distorsão do tempo e m hipnose,
regressão de idade e m hipnose) que cogitamos preparar para o futuro.
U m a p a l a v r a f i n a l a t o d o s a q u e l e s a o s q u a i s o a u t o r se f a z publi-
c a m e n t e d e v e d o r , a u n s p o r t e r e m t o r n a d o p o s s í v e l este l i v r o , a outros
p o r lhe t e r e m prestado c o l a b o r a ç ã o indispensável.
A o D r . Emmanuel Alves, autor conceituado de livros m é d i c o s consa-
grados, autoridade inconteste e m literatura científica, a cuja colabora-
ç ã o d i r e t a d e v e m o s h o j e este l a n ç a m e n t o , e q u e — c o m o se j á n ã o fora
o suficiente — ainda o valoriza aceitando a indicação do seu n o m e p a r a
apresentar-nos ao público m é d i c o - o d o n t o l ó g i c o , a certeza da sentida g r a -
tidão do estreante.
R i o de J a n e i r o , 1958.
R. D n a . Delfina, 18/202.
R i o de Janeiro.
ÍNDICE D A MATÉRIA
Cap. I — REPASSO HISTÓRICO 1
1. Tabu e ciência 3
2. A origem 5
3. Mesmer 7
4. Puységur • 12
5. Gassner 13
6. Faria 14
7. Elliotson .' 16
8. Esdaile 17
9. Braid 22
10. Liébeault e Bernheim 27
11. Charcot 29
12. A grande trégua 32
Referências 34
Cap. II — A E V O L U Ç Ã O DO P E N S A M E N T O 35
13. "Cogito ergo sum" 37
14. O componente mental 39
15. Os "absurdos" . • 43
16. O fator emocional 47
17' Psique e soma . 51
18. Freud 5 3
Referências • • • • 70
Cap. III — R E F L E X O S C O N D I C I O N A D O S 73
23. Reflexo 7 5
29. S i s t e m a s de s i n a l i z a ç ã o . A p a l a v r a 93
30. Excitação e inibição 1°*
31. Inibição externa 1° 6
APÊNDICE 451
76. A m i g d a l e c t o m i a por hipnanestesia 453
77. Contribuição à casuística em hipnologia médica 467
NÃO CREIAIS em coisa alguma pelo
fato de vos mostrarem o testemu-
nho escrito de algum sábio antigo;
1 — Tabu e ciência;
2 — A origem;
3 — MESMER;
4 — PUYSÉGUR;
5 — GASSNER;
6 — PARIA;
7 — ELLIOTSON;
8 — ESDAILE;
9 •— BRAID;
10 •— L I É B E A U L T e B E R N H E I M ;
11 — CHARCOT;
12 — A g r a n d e t r é g u a .
I — REPASSO HISTÓRICO
1. — T A B U E CIÊNCIA — M u i t o se t e m dito., e s c r i t o e f a l a d o n o s ú l -
timos anos sobre o hipnotismo. A partir,
principalmente, do momento em que al-
g u n s l i t e r a t o s m e n o s e s c r u p u l o s o s se t ê m v a l i d o d o s f e n ô m e n o s hipnóti-
c o s p a r a d a r m a i o r c o l o r i d o às s u a s h i s t ó r i a s e m e l h o r e x p r e s s ã o emo-
c i o n a l a o s seus p e r s o n a g e n s , a c u r i o s i d a d e l a i c a c e r c a n d o o hipnotismo
tem crescido sobremaneira. N ã o raras vezes alguns " p r o f e s s o r e s " , mer-
cê de suas habilidades e de c o n h e c i m e n t o s práticos adquiridos empiri-
camente, u s a m do h i p n o t i s m o recreativo para atrair popularidade e c o m
i s s o a u f e r i r p r o v e n t o s q u e , s e b e m lhes s e j a m ú t e i s momentaneamente,
t r a z e m ao h i p n o t i s m o científico um incalculável desprestígio.
Muito pouco daquilo que se t e m dito c o r r e s p o n d e à realidade. Bas-
tante longe da v e r d a d e t ê m estado quase todos aqueles que escreveram,
aqui e alhures, tratados, compêndios e manuais sobre a " a r t e " de h i p -
notizar .
Porque, distante de ser uma arte prestidigitatória, um entreteni-
m e n t o ou u m a d e m o n s t r a ç ã o de " f o r ç a p e s s o a l " , a hipnose é u m r e c u r s o
científico, baseado nos mais rigorosos alicerces fisiológicas, sem
qualquer aproximação c o m magias, seduções ou encantamentos.
Talvez p o r isso, pela confusão de q u e t e m s i d o v í t i m a e m f a c e ao
inescrúpulo de alguns e à incultura da m a i o r i a é que a m e d i c i n a e a o d o n -
t o l o g i a se t ê m a p a r t a d o , q u a s e q u e p u n d o n o r o s a m e n t e d e m a n t e r maio-
res c o n t a c t o s c o m e s s e i n e s t i m á v e l r e c u r s o t e r a p ê u t i c o q u e é o h i p n o t i s -
mo científico.
O conceito de que a hipnose g o z a entre o g r a n d e público é o mais
desfavorável. Seja por estar possuído de f a l s a s informações, tendenr-
ciosas e nada esclarecedoras, ou p o r ser admitido a assistir espetáculos
a l t a m e n t e d e s p r i m o r o s o s e c o n d e n á v e i s o n d e os " m a g o s d o s o n o " sujei-
t a m os e s p e c t a d o r e s a d e m o n s t r a ç õ e s r i d í c u l a s e d e s r e s p e i t o s a s , s e j a ain-
4 O S M A R D A N D R A D E
d a p e l a s h i s t ó r i a s q u e lhe c o n t a m de q u e p a c i e n t e s h i p n o t i z a d o s foram
s u b m e t i d o s à v o n t a d e e a o d o m í n i o d o seu o p e r a d o r , p o r i s s o e p o r a q u i -
lo c r i o u - s e e m t o r n o d o h i p n o t i s m o u m c l i m a d e s u s p e i ç õ e s . E a medi-
c i n a t e m c u s t a d o a v e n c e r essa b a r r e i r a de t a b u s e p r e c o n c e i t o s .
r i g o r , a q u e e s p é c i e d e s o n o t e r i a s i d o s u b m e t i d o ò b i s o n h o Adão para
q u e , a u m g e s t o d o " o p e r a d o r " lhe f o s s e f e i t a a r e t i r a d a de u m a costela
sem dor e sem anestesia? O lendário p r i m e i r o h o m e m d o r m i u o seu sono
primeiro sob comando hipnótico! E se, de u m lado, a história da civili-
zação costuma ser dividida e m dois períodos distintos, antes e a partir da
era cristã, t a m b é m a história da h i p n o s e p o d e ser r e s u m i d a em dois t e m p o s
c l á s s i c o s : a n t e s e d e p o i s de Mesmer. E a q u i , c o m o lá, a d i v i s ã o é m e r a -
mente convencional: o hipnotismo científico não recebeu qualquer contri-
buição do mestre vienense.
A p r i n c í p i o a h i p n o s e e r a e x e r c i d a c o m o se f o s s e u m m i t o r e l i g i o s o .
S ã o c o n h e c i d o s h o j e os c l á s s i c o s " t e m p l o s cio S o n o " d o a n t i g o E g i t o o n d e
sacerdotes u s a v a m o p o d e r hipnótico p a r a tratar os crentes fazendo-os
adormecer suavemente e ministrando-lhes passes mágicos. Um baixo
r e l e v o e n c o n t r a d o n u m s a r c ó f a g o de T e b a s m o s t r a u m s a c e r d o t e e m p l e n o
ato de indução hipnótica de u m paciente. T a m b é m dos T e m p l o s de / s i s .
Deusa do Nilo, egiptólogos copiaram eritalhes onde sacerdotes e fiéis
aparecem em atitudes caracteristicamente hípnicas. Os altos sacerdotes
de K h e m u s a v a m m a n o b r a s semelhantes p a r a acalmar os clamores p o p u -
lares utilizando virgens em transe como portadoras de m e n s a g e n s aos
deuses. A i n d a os s a c e r d o t e s c a l d e u s e r a m t i d o s c o m o c a p a z e s d e t r a n s -
m i t i r " f l u i d o s " a t r a v é s p a s s e s q u e c o l o c a v a m e m t r a n s e os sofredores.
N a í n d i a e n o O r i e n t e r e m o t o os f a q u i r e s e " s a n t o s " p r o d u z i a m em
si m e s m o s e n o s o u t r o s , e s t a d o s de t r a n s e " m e d i ú n i c o " auto-hipnóticos,
c o m o a i n d a h o j e o f a z e m n a s s u a s p r o v a s de r e s i s t ê n c i a , r e n ú n c i a e s o -
frimentos.
U m a g r a v u r a d o a n o 9 2 8 A . C . m o s t r a o r e n o m a d o Chiron induzindo
u m e s t a d o h i p n ó t i c o e m s e u d i s c í p u l o Esculápio que p o r sua vez, m a i s
t a r d e , e n t r e os r o m a n o s , u s a r i a a h i p n o s e a s s i m a p r e n d i d a n a c u r a dos
seus doentes. C o s t u m a v a Esculápio, t o c a n d o c o m as m ã o s p a r t e s dolo-
ridas de seus pacientes, aliviar-lhes o p a d e c i m e n t o . Hipócrates, o consi-
d e r a d o p a i d a m e d i c i n a , u s a v a d i z e r q u e " a s d o r e s de q u e p a d e c e o c o r p o
e a a l m a p o d e m ser v i s t a s c o m os o l h o s f e c h a d o s " .
N a s ilhas britânicas o s o n o h i p n ó t i c o foi reconhecido no " s o n o d r u í -
dico". Os c h e f e s da seita dos Druidas, que a c u m u l a v a m suas funções
religiosas c o m a medicina, costumavam colocar seus fiéis recostados e,
administrando-lhes u m sono artificial curavam suas dores.
N o s é c u l o X d e n o s s a e r a , Avicenna, o v e r d a d e i r o p r e c u r s o r da r e í l e -
x o l o g i a p a v l o v i a n a e r a de o p i n i ã o q u e a i m a g i n a ç ã o h u m a n a t i n h a p o d e r e s
H I P N O S E M É D I C A 7
e f o r ç a e q u e se c o n s e g u i a , t ã o s o m e n t e a t r a v é s a i m a g i n a ç ã o , a t u a r d i r e -
tamente sobre o f u n c i o n a m e n t o corporal, não apenas de perto m a s à dis-
tância. Pela palavra, pela vontade e pela persuasão — afirmava Avi-
senna — muitos p a d e c i m e n t o s p o d e m ser curados.
C o m p a r e - s e a i d e n t i d a d e d e t a i s f e n ô m e n o s c o m as a t u a i s incorpo-
rações " m e d i ú n i c a s " da p r á t i c a espírita, o que v e m c o m p r o v a r ter Mesmer,
m e r c ê de s u a i n f l u ê n c i a e p r e s t í g i o p e s s o a i s , c o n s e g u i d o e m s e u s p a c i e n -
tes u m compreensível estado auto-hipnótico.
P o r i g n o r â n c i a da n a t u r e z a d o v e r d a d e i r o e s t a d o h i p n ó t i c o , Mesmer
atribuía aos astros e aos metais aquilo que dependia exclusivamente de
s u a p a l a v r a e d a c a p a c i d a d e de i m a g i n a ç ã o d e c a d a p a c i e n t e . Manejava
u m instrumento importante: i g n o r a v a qual fosse êle, a g i n d o empirica-
mente, sem qualquer conhecimento de causa fisiológica. Não vemos, em
c o n s e q ü ê n c i a , p o r q u e a t r i b u i r a Mesmer o privilégio de ter sido o p r e c u r -
sor da fase científica do hipnotismo.
10 O S M A R D A N D R A D E
A p r o p ó s i t o d e t a i s e s p e t á c u l o s , eis o t e s t e m u n h o p e s s o a l de Deleuze:
t
1
12 O S M A R D A N D R A D E
6 — FARIA — S u r g i u e m P a r i s p o r v o l t a de 1815 d e p o i s d e p e r e g r i -
nações religiosas pela índia e oriente médio o padre
p o r t u g u ê s José Custódio de Faria, nascido em Condo-
Iim d e B a r d e z , í n d i a P o r t u g u e s a (1756-1819) e cuja notoriedade como
h i p n o t i z a d o r a l c a n ç o u as p á g i n a s de Chateaubriand, citado que foi nas
"Memórias de A l é m - T ú m u l o " e as de Alexandre Dumas, feito um dos
p e r s o n a g e n s d e " O C o n d e de M o n t e C r i s t o " . Tomou parte na revolução
francesa e deixou-se ficar em França errante e s e m destino.
A princípio adotou as t e o r i a s m a g n é t i c a s d e Mesmer e Puységur
t o r n a n d o - s e discípulo deste último e m b o r a j á houvesse visto e p r a t i c a d o
os f e n ô m e n o s hipnóticos na í n d i a . Costumava olhar fixamente nos olhos
o paciente e de repente exclamava-lhe em tom firme e decidido: —
"Durma!"
A p r i m o r a n d o s e u s c o n h e c i m e n t o s d e s l i g o u - s e m a i s t a r d e da doutri-
n a m e s m é r i c a de Puységur p o i s c h e g o u a c o n c l u i r q u e não podia haver
H I P N O S E M É D I C A 15
q u a l q u e r i n f l u ê n c i a f l u í d i c a n a o b t e n ç ã o de s e m e l h a n t e s r e a ç õ e s . N a o p i -
n i ã o d e Custódio de Faria era a v o n t a d e do paciente e o p o d e r de suges-
tão que conduziam ao que c h a m a v a de " s o n o l ú c i d o " . T a l p o n t o de v i s t a
f o i e x p r e s s o n o seu l i v r o "De la cause ãu sommeil lucide ou Vetude sur"
S e u s e s t u d o s e o b s e r v a ç õ e s l e v a r i a m m a i s t a r d e Liébeault a protes-
t a r c o n t r a o n o m e d e braidismo conferido ao hipnotismo e m h o m e n a g e m
a James Braid. Deveria ser, antes, fariismo.
16 O S M A R D A N D R A D E
(*) Embora o fenômeno fosse hipnótico tal expressão sô viria a ser em-
pregada a partir de Braiã.
,18 O S M A R D A N D R A D E
E m c o n s e q ü ê n c i a f o i p o s t o à d i s p o s i ç ã o d e Esdaile pelo p r a z o de u m
a n o , u m p e q u e n o h o s p i t a l e m C a l c u t á , e m n o v e m b r o de 1846 o n d e o m e s -
m e r i s t a a p l i c a r i a o m a g n e t i s m o s o b o c o n t r o l e o f i c i a l de u m g r u p o de m é -
d i c o s a p o n t a d o s p e l o g o v e r n o : R. Thompson, D. Stewart, J. Jackson, F.
Mouatt e R. 0'Shaughnessy.
T r a b a l h o u Esdaile a r d o r o s a m e n t e e n ã o t a r d o u q u e seus c o l e g a s f i s -
cais estivessem plenamente c o n v e n c i d o s das imensas possibilidades do n o -
vo processo que, inclusive, e como testemunharam diretamente, permitia
as m a i s v a r i a d a s i n t e r v e n ç õ e s c i r ú r g i c a s s e m o m e n o r s o f r i m e n t o p a r a o
paciente, redução considerável do choque cirúrgico e do t r a u m a doloroso
pós-operatório.
U m a n o d e p o i s d e i n s t a l a d a , a c o m i s s ã o de m é d i c o s v i s i t a d o r e s r e l a -
t a v a a o g o v e r n o os e x c e l e n t e s r e s u l t a d o s j á o b t i d o s , m u i t o e m b o r a , j á e m
j u n h o de 1 8 4 7 , seis m e s e s a n t e s , t i v e s s e o p r ó p r i o Esdaile apresentado um
c o m p l e t o r e l a t ó r i o de s u a s a t i v i d a d e s , d o qual d e s t a c a m o s o s e g u i n t e t r e -
c h o : -—
f) Os f e n ô m e n o s o b t i d o s de a n e s t e s i a , a m n é s i a , e t c , s ã o devidos
a u m a s i t u a ç ã o e s p e c i a l d e i n i b i ç ã o de u m a p a r t e d o c é r e b r o d o
paciente. E m tais condições, usando-se impressões mentais de
intensidade igual àquelas percebidas normalmente pelos ó r g ã o s
dos sentidos, tais impressões poderão permanecer por tempo
indeterminado.
Q u a n d o e s t u d a r m o s a n e u r o f i s i o l o g i a da h i p n o s e v e r e m o s q u a n t o d e
v e r d a d e i r o se c o n t é m n a s c o n c l u s õ e s e n a s o b s e r v a ç õ e s de James Braid
q u e . m e s m o i g n o r a n d o o m e c a n i s m o d a s r e a ç õ e s q u e p r o v o c a v a , t e v e , de
maneira altamente objetiva, a concepção mais científica até então do
problema. D e u m a o u de o u t r a f o r m a a m a i o r i a d e s s a s o p i n i õ e s de Braiã
são verdadeiras. N ã o p o d e r i a êle a v a n ç a r a l é m d o s e u t e m p o . Fez, pois,
d e n t r o dele, o m á x i m o que estava ao seu alcance.
Indispensável dizer que, como sempre acontece, os trabalhos de
Braid passaram despercebidos na Inglaterra. Em compensação, alguns
a n o s m a i s t a r d e os i n g l e s e s a c l a m a r a m e p r e s t a r a m u m s e m n ú m e r o cie
h o m e n a g e n s a u m a u t o r f r a n c ê s , Azara de B o r d e a u x . E que mérito foi
o de Azam? D i s c í p u l o de Braid, l i m i t o u - s e a d i v u l g a r os seus e n s i n a m e n -
tos!
I n i c i a - s e Azam e m 1 8 5 9 e u m r e s u m o de s e u s t r a b a l h o s c o m vastas
referências e citações do cirurgião inglês f o i publicado nos " A r c h i v e s de
Medicine", em 1860. Pouco tempo depois o conceituado neurologista
Broca, q u e h a v i a o b t i d o m a r a v i l h o s o s r e s u l t a d o s e m p r e g a n d o os e n s i n a -
m e n t o s de Braid, comunica uma pesquisa sobre hipnotismo à Academia
d a s C i ê n c i a s , e n q u a n t o Velpeau leva ao m e s m o colégio uma observação
p e s s o a l i n t i t u l a d a "Neurypnology"'. Tais teses f o r a m devidamente consi-
deradas por um conselho composto de m e m b r o s das quatro secções do
"Institute".
Em 1874 o D i c i o n á r i o de M e d i c i n a aceita, praticamente, todos os
f a t o s c i t a d o s p o r Braid i n s e r i n d o u m t r a b a l h o e s c r i t o p o r Matias Duval
e n q u a n t o n o a n o i m e d i a t o Charles Richet, que viria mais tarde a intro-
H I P N O S E M É D I C A 27
10 — LIÉBEAULT E BERNHEIM — O p r o b l e m a da i n t e r p r e t a ç ã o d o
m e c a n i s m o de p r o d u ç ã o dos f e -
nômenos hipnóticos continuava
em discussão. A v a n ç a r a m u i t o , s e m d ú v i d a , Braid, estabelecendo novos
princípios e apagando idéias ridículas e s u p e r a d a s . Conforme, porém,
a o p i n i ã o de Williamson, n ã o se h a v i a a i n d a e n c o n t r a d o u m a explicação
convincente e satisfatória para a gênese dos f e n ô m e n o s hipnóticos.
D u r a n t e d o i s a n o s d e d i c o u t o d a s as s u a s h o r a s de f o l g a a e s c r e v e r
u m l i v r o s o b r e a h i p n o s e . "Du sommeil et des états avalogues, conside-
res cm point de vue de l'action de ¡a moróle sur le phijsique". Desse
livro conseguiu vender exatamente U M exemplar!
28 O S M A E D A N D R A D E
11 — CHARCOT — U m v í c i o de o r i g e m d e s t r u i u t o d o o trabalho de
Charcot. Senão, vejamos: vivia êle dedicado
exclusivamente ao trato das histéricas na sua e n -
f e r m a r i a d a S a l p e t r i é r e , s ó a elas v e n d o , c o m p l e t a m e n t e i m p r e g n a d o de
suas reações. Jamais hipnotizou, êle m e s m o , a quem quer que seja.
T o d a s as p a c i e n t e s e r a m i n d u z i d a s p e l o s a s s i s t e n t e s e b a s t a v a - l h e dar-
lhes, s e m p r e , o sinal c o n d i c i o n a d o r do sono p a r a que o estado hipnótico
se precipitasse. T o d a s as s u a s c o n c l u s õ e s f o r a m t i r a d a s , p o r evidência,
a p a r t i r das manifestações de histéricas hipnotizadas p o r outrem.
D e trabalho tão unilateral, que se p o d e r i a esperar cientificamente?
P a r a Charcot a hipnose era uma manifestação histérica. Claríssi-
m o ! N e m p o d i a s e r de o u t r a m a n e i r a . J a m a i s êle v i r a u m t r a n s e h i p n ó -
tico em pessoas não histéricas!
A tal a b s u r d o o b j e t a v a Liébeault d i z e n d o q u e h á m a i s de v i n t e a n o s
hipnotizava s e u s p a c i e n t e s , t i p o s os m a i s v a r i a d o s , p r i n c i p a l m e n t e ho-
mens do campo. J a m a i s e n c o n t r a r a e n t r e eles u m s ó h i s t é r i c o . Falso,
p o i s , q u e só e s t e s s e d e i x a s s e m h i p n o t i z a r . Tal argumento não demovia
a i n f l e x i b i l i d a d e d e Jmn Martin. E r a m , n a t u r a l m e n t e , os p a c i e n t e s de
30 O S M A E D A N D R A D E
12 — A GRANDE TRÉGUA — P e l o q u e se p o d e d e p r e e n d e r d e s t e r e -
passo histórico, pouquíssima foi a con-
tribuição alcançada até então no sen-
t i d o d e se e s t a b e l e c e r e m a s s u a s v e r d a d e i r a s bases neurofisiológicas e
o seu m e c a n i s m o de a ç ã o . D e Charcot aos princípios do século X X muito
p o u c o h o u v e digno de m e n ç ã o . A q u i e ali u m t r a b a l h o a v u l s o , u m a n o v a
contribuição, um regresso aos m e s m o s problemas q u e se s i t u a v a m em
t o r n o d e James Braid.
E m 1891 a British Medicai Association designou u m a comissão p a r a
investigar a natureza do f e n ô m e n o h i p n ó t i c o , seu v a l o r c o m o agente t e r a -
pêutico e as indicações do seu uso. N o c o n g r e s s o a n u a l de 1 8 9 2 , a c o -
m i s s ã o a p r e s e n t o u s e u r e l a t ó r i o de o n d e s e p o d e m d e s t a c a r c o m o mais
i m p o r t a n t e s , os seguintes i t e n s : —
C o m o a d v e n t o da a n e s t e s i a q u í m i c a e s u a v u l g a r i z a ç ã o a hipnose
e n t r o u e m f a s e de r e c e s s o , j á q u e , a i n d a n á o b e m e s t a b e l e c i d a s as s u a s
bases fisiológicas e neurológicas, era prematuro tentar usá-la com su-
cesso na rotina clínica.
Seu g r a n d e e m p r e g o , sua m a i o r aplicação v i n h a sendo j u s t a m e n t e a
analgesia obtida nas intervenções cirúrgicas. A introdução da psicaná-
lise d e u m l a d o , o e s t a b e l e c i m e n t o d a e s c o l a p s i c o s s o m á t i c a de o u t r o , c r i a -
v a m u m c e r c o e m t o r n o d o s p r o b l e m a s d i t o s de o r d e m e m o c i o n a l , a m b o s
apoiados em bases falsas — uma delas, — , convencionais — a outra —,
m a s bons recursos em falta de melhores.
A primeira guerra mundial fez voltar, por instantes, a hipnose, ao
arsenal terapêutico quando de c h o q u e s e neuroses de c o m b a t e . A se-
gunda g u e r r a mundial, p o r é m , faria reavivar-se o interesse pelo h i p n o -
tismo. Em primeiro lugar porque a falta de recursos medicamentosos
r
-m m u i t o s c a m p o s de luta e d e c o n c e n t r a ç ã o , o b r i g o u a l g u n s m é d i c o s a
realizar u m n ú m e r o vultoso de intervenções cirúrgicas sob indução h i p -
n ó t i c a ; em segundo porque, estabelecidas j á então, e m princípio, as bases
neurofisiológicas do fenômeno inibitório, mostrou-se o hipnotismo de
Tir.prêgo m a i s s e g u r o , d i r e t o , i m e d i a t o e racional.
H o j e , e m i n ú m e r o s c a m p o s d a m e d i c i n a , da d e r m a t o l o g i a , d a o b s t e -
trícia, d a o d o n t o l o g i a e da p s i q u i a t r i a , a h i p n o s e q u a n d o b e m c o m a n d a d a
I i ::a-se u m a g e n t e d e v a l o r n o " a r m a m e n t a r i u m " de m é d i c o s e d e n t i s t a s .
31 O S M A E D A N D R A D E
REFERÊNCIAS (*)
(•' )
::
Os a u t o r e s e o b r a s c i t a d o s nas r e f e r ê n c i a s de u m dos c a p í t u l o s , n a o serão
repetidos em o u t r a s , m e s m o q u a n d o também consultados — N.A.