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O S M A R D A N D R A D E F A R I A

Capitão-tenente (MD) do Corpo de Saúde da A r m a d a .


— Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia da
Assistência Médico-Social da Armada (AMSA)

M A N U A L DE

HIPNOSE MÉDICA
E

ODONTOLÓGICA
Histórico — Neurofisiologia — Técnica —
Aplicações.

R. Sete de Setembro, 141 - 1 . ° Rio de Janeiro (Brasil)

1 9 5 8
O S M A R D A N D R A D E F A R I A

Capitão-tenente (MD) do Corpo de Saúde da A r m a d a .


— Chefe do Serviço dê Otorrinolaringologia da
Assistência Médico-Social da A r m a d a (AMSA)

M A N U A L DE

HIPNOSE MÉDICA
E

ODONTOLÓGICA
Histórico — Neurofisiologia — - Técnica —
Aplicações.

R . S e t e d e S e t e m b r o . . 141 - 1.° Rio de Janeiro (Brasil)

1 9 5 8
A meu pai

OSMARD FARIA

que da vida não teve


nem sequer as glórias mais fugazes, a
saudade e a emoção desta homenagem!

A meus filhos

CLAUDE e
BERNARD PASTEUR DE ANDRADE FARIA

herdeiros por sua mãe, de wm


nome ilustre que saberão honrar, para que
um dia, por seus próprios feitos e obras
possam tornar também ilustre o apagado
nome de seu pai.

4-
APRESENTAÇÃO

A hipnologia alcançou, h o j e , a sua consagração científica, libertándo-


se do descrédito que lhe v i n h a i m p e d i n d o um lugar condigno entre as
demais ciências médicas. O D r . O^^rd Andrade, entusiasta, sincero e
estudioso da h i p n o l o g i a , n o s m o s t r a , e m seu livro, c o m clareza e simpli-
cidade, os fundamentos da mesma situando-a num plano verdadeira-
mente científico, esmiuçando a sua técnica de execução, interpretándo-
me os fenômenos principais e orientando-nos quanto à sua aplicação.
Com argumentos insofismáveis, fundamenta a hipnologia nos reflexos
condicionados, não lhe tendo faltado, inclusive, a c o m p r o v a ç ã o eletroen-
cef alográf ic a . E' b e m verdade que muitos pontos restam por esclarecer
e outros necessitam comprovação mais convincente. Isso, todavia, não
diminui, e m absoluto, o valor do trabalho pois, a hipnose, c o m o b e m p o n -
d e r a o seu a u t o r , " é u m a c i ê n c i a q u e c o m e ç a a e n g a t i n h a r " . O livro do
D r . Andrade, r i g o r o s a m e n t e dentro de u m caráter científico e didático,
a p r e s e n t a u m a a p r e c i á v e l b i b l i o g r a f i a cie i n v e s t i g a d o r e s j á consagrados
pela ciência.

T r a t a - s e d e u m t r a b a l h o q u e d e v e ser l i d o p e l o s m é d i c o s e m g e r a l ,
t e n d o e m v i s t a as s u a s a m p l a s p o s s i b i l i d a d e s d e a p l i c a ç ã o . Se levarmos
e m consideração o papel de destaque alcançado pela m e d i c i n a psicoso-
mática no trato dos enfermos, e que a angústia, o temor, a instabilidade
n e u r o - h o r m o n a l t ê m sido o ponto de partida de inúmeros distúrbios f u n -
c i o n a i s p a r a o s q u a i s as d r o g a s e o s m é t o d o s c i r ú r g i c o s n ã o alcançam,
n a m a i o r i a das vezes, os seus o b j e t i v o s , p o d e r e m o s concluir a i m p o r t â n -
cia da hipnose como auxiliar do médico na tranquilização psíquica, no
p r e p a r o para a nárcose, na eliminação de diversos distúrbios n e u r o v e g e -
tativos, na sedação de f e n ô m e n o s dolorosos e no combate à insónia.

F a z e r c o m q u e u m p a c i e n t e d u r m a de m o d o p r o f u n d o , eliminando-
Ihe d a m e n t e o f a t o r t e n s ã o , b e m a s s i m c o m o e x a g e r o de s u a s funções
receptoras, não representa, por acaso, um grande objetivo?
E ' d e s n e c e s s á r i o e n c a r e c e r q u e n ã o se t r a t a cie u m a a r m a terapêu-
tica específica, m a s u m a p r á t i c a m é d i c a inócua p a r a o o r g a n i s m o e que
pode colaborar e m inúmeros setores da medicina interna e especializada,
m á x i m e na medicina psicosomática.

V a m o s , portanto, conhecê-la, interpretá-la, deduzir suas aplicações


e vantagens, criticá-la honestamente e c o m conhecimento de c a u s a . Di-
v u l g á - l a c o m o c i ê n c i a , s e m o s e x a g e r o s a q u e e s t ã o s u j e i t a s as n o v i d a d e s
c i e n t í f i c a s , c o n s t i t u i o o b j e t i v o d o t r a b a l n o d o D r . Osmard Andrade, a
quem felicitamos por tão oportuna publicação.

EMMANUEL ALVES
A PROPÓSITO

I m p o s s í v e l d i s f a r ç a r a e m o ç ã o de q u e m v ê p e l a v e z p r i m e i r a o seu
n o m e na capa de u m livro e essa é a h o r a i n e x p r i m í v e l que estamos v i -
vendo. Principalmente para quem, como nós, atravessou toda a adoles-
cência e b o a parte de sua vida profissional armazenando reservas para,
u m dia, p o d e r c o m p l e t a r a trilogia da v i d a ú t i l : "plantar uma árvore,
ser pai, escrever u m l i v r o " .

A o m o ç ã o s u r g e , p o r é m , c e r c a d a d e u m h a l o de a n g ú s t i a e d e r e -
s e r v a : d e q u e v a l e f a z e r se n ã o se f a z b e m f e i t o ? E s t a , a interrogação
que, ansiosos, b u s c a r e m o s interpretar n o s olhos, na f a c e , na opinião de
cada colega que n o s h o n r a r c o m sua a t e n ç ã o .

S u r g e este " M a n u a l d e H i p n o s e M é d i c a e Odontológica" da impo-


sição do m o m e n t o e da b o n d a d e de u m punhado de a m i g o s .

O interesse pela hipnose e m nós é talvez u m " m a l de f a m í l i a " aliado


ti u m d e s e n c a n t o da mocidade. Lembramo-nos, por ouvir contar, das
e s p a n t o s a s a v e n t u r a s d e u m n o s s o a v ô p a t e r n o , o d i s c u t i d o "Zé Honório"
q u e , cego de um olho só, d e s n o r t e a v a o s p a c a t o s m o r a d o r e s d a c i d a d e z i -
nha de São Fidélis produzindo-lhes os mais inacreditáveis f e n ô m e n o s de
catalepsia e de s o n a m b u l i s m o .
U m d i a , aí p e l a c a s a d o s d o z e a n o s d e i d a d e , d e s c o b r i m o s na es-
t a n t e d e n o s s o p a i u m " H i p n o t i s m o e m 12 l i ç õ e s , de Max Dória" e lan-
çamo-nos à subversiva empreitada de hipnotizar os professores para
fazer bons exames na escola. A m a r g a desilusão! E m primeiro lugar im-
p u n h a m - s e l o n g o s e p e n o s o s e x e r c í c i o s o c u l a r e s , p o i s t a n t o Max Dória
c o m o o v e l h o Zé Honório c o m o Esdaile d e p u n h a m na " f o r ç a do olhar"
t o d o o segredo da indução h i p n ó t i c a . E os nossos pobres olhos, claudi-
cantes hipermétropes, recusaram-se a colaborar conosco naquela meri-
tória t a r e f a ! E d e p o i s . . . b e m , acontece que o hipnotismo não era n a d a
d a q u i l o , q u e n o s p e r d o e o v e l h o Zé Honório a i r r e v e r ê n c i a do seu n e t o .
Nestes fugazes doze anos de exercício profissional vimos acompa-
nhando de perto, j á e m plano diverso de conceituação, tudo que encon-
t r a m o s l i g a d o a o a s s u n t o . E este M a n u a l é u m r e s u m o d a q u i l o q u e c o n -
seguimos reunir sobre a matéria.

D e p o i s d e u m p e r í o d o á u r e o q u e se e x t e n d e u d e 1 8 8 0 a 1 8 9 0 , a h i p -
nose entrou e m recesso c o m o advento da anestesia química. A g o r a , n o -
vamente reaparece, alijada daquele empirismo mesmeriano, recoberta
c o m roupagens novas — e estas, sim, científicas — cios conhecimentos
d e r i v a d o s das investigações sobre os r e f l e x o s c o n d i c i o n a d o s . E ressurge
resplendente de incontáveis aplicações — t a n t o p o r si m e s m a c o m o p e l o
s o n o q u e dela se d e r i v a •— n a p r á t i c a m é d i c a e o d o n t o l ó g i c a .

Tem havido algum escrúpulo na aceitação rotineira dos conheci-


m e n t o s p o s t o s e m e v i d ê n c i a p o r Pavlov e seus seguidores, e publicações
que se d e d i c a m ao assunto c i r c u l a m e m ambientes mais ou m e n o s res-
t r i t o s c o m o se o m e s m o f o s s e p r o i b i d o a o g r a n d e p ú b l i c o o u pecaminoso
p o r sua o r i g e m . P o n h a m o s de uma vez as cartas na m e s a !

Ainda recentemente, grande médico patrício, diretor de uma das


maiores maternidades do país, declarou ter abandonado a prática do
chamado método psicoprofilático de abolição da dor no parto porque
"isso é coisa de -propaganda comunista". Soubemos dessa atitude por
interposta pessoa que nos m e r e c e c r é d i t o . A p e z a r disso, ou é falsa a d e -
claração que lhe a t r i b u e m ou tal a f i r m a t i v a decorre de iniludível seni-
lidade. P o r q u e não v e m o s c o m o imbricar ciência c o m política, principal-
mente quando a ciência é b o a .

Que têm, no entanto, a ver c o m o credo soviético, os ensinamentos


advindos dos reflexos condicionados? E que tivesse, deixaríamos amanhã
m o r r e r os nossos doentes de câncer se p o r acaso coubesse a u m popoff
qualquer a descoberta da cura do grande m a l ? A resposta parece óbvia.

Acontece, porém — e esta é a g r a n d e v e r d a d e q u e a i g n o r â n c i a de


uns e o sectarismo de outros insistem e m esconder — q u e Pavlov nunca
f o i o " d o n o d o a s s u n t o " e m se t r a t a n d o d e r e f l e x o s condicionados.

O p r i m e i r o i n d i v í d u o q u e se s a b e t e r t i d o a c o n c e p ç ã o d a a ç ã o r e f l e x a
c h a m o u - s e Abu-Ali Al-Hussain Ben Abdallah Ibn-Sina (Avicenna), nas-
ceu n o ano 980 n u m v i l a r e j o perto da cidade de B o u k h a r a , reinado persa,
e faleceu em 1030. P e r s a de n a s c i m e n t o , á r a b e d e o r i g e m , h e l é n i c o de
e d u c a ç ã o . E m 1 8 8 2 , o u s e j a , o i t o s é c u l o s d e p o i s de s u a m o r t e , a R ú s s i a
c o n q u i s t a e a n e x a a o seu t e r r i t ó r i o a q u e l a f a i x a de terra onde nasceu
Avicenna, transformada h o j e na República Socialista Soviética do T a d j i -
k i s t a n . S ó p o r i s s o é a g o r a Avicenna considerado como glória da ciência
nacional soviética ! . . .

P r e c u r s o r d e Pavlov f o i t a m b é m Brown-Séquard, que e m 1860 f o r -


m u l a v a : a excitação e a inibição são p r o c e s s o s paralelos e contrapostos,
e o sistema n e r v o s o o seu substrato a n a t ô m i c o . Esta frase define e en-
q u a d r a tôcla a c i ê n c i a p a v l o v i a n a . P o i s e m 1860 o m e n i n o Ivan Petrovich
t i n h a e x a t a m e n t e 11 a n o s d e i d a d e e i n i c i a v a o s seus p r i m e i r o s estudos
escolares conforme nos ensina o seu biógrafo Asratian, reconhecendo
a s s i m que, q u a n d o Broivn-Séquard já definia a atividade reflexa, Pavlov
mal sabia 1er!

O u t r o a n t e c e s s o r d e Pavlov f u i Setchenov, este também russo. Mas


t u d o q u e Setchenov p r o d u z i u , só o f e z s o b o s a u s p í c i o s d e Claude Bernard,
e m c u j o s l a b o r a t ó r i o s n a F r a n ç a e c o m o seu a s s i s t e n t e , t r a b a l h a v a .

Onde, assim, o pioneirismo soviético no c a m p o da reflexologia ? A


Pavlov c o u b e •— a g o r a , s i m — compreender o largo alcance dos conhe-
cimentos derivados da reflexologia na prática fisiológica, levando-os adi-
ante, a p r i m o r a n d o - o s e l e g a n d o - n o s essa messe de deduções e conclusões
que hoje aplicamos tão largamente e m medicina. Façamos, pois. justiça
a Pavlov': glória da ciência russa? P e r f e i t a m e n t e ! D a soviética? Porque,
se t o d a a s u a o b r a é b a s e a d a e m t r a b a l h o s a n t e r i o r e s a 1 9 1 9 ?

L a v e m o s , agora, as m ã o s .

F o i - n o s este M a n u a l s o l i c i t a d o p e l a L i v r a r i a A t h e n e u , a t e n d e n d o à
grande procura que v ê m merecendo as obras sobre hipnose entre as
classes médica e odontológica n o m o m e n t o , e e m virtude da inexistência
de qualquer livro onde o assunto seja posto em bases verdadeiramente f i -
siológicas c o m detalhes quanto à sua técnica de e x e c u ç ã o . Escrito em
apenas dois meses, conterá, s e m dúvida, u m a série não pequena de in-
correções e deficiências que os nossos leitores se e n c a r r e g a r ã o , gentil-
m e n t e , d e a p o n t a r - n o s p a r a f u t u r a e d i ç ã o se a t a n t o f ô r o s e u mereci-
mento. Como também cortamos desta primeira impressão três capí-
tulos p r o g r a m a d o s (hipnose e psicanálise, distorsão do tempo e m hipnose,
regressão de idade e m hipnose) que cogitamos preparar para o futuro.

U m a p a l a v r a f i n a l a t o d o s a q u e l e s a o s q u a i s o a u t o r se f a z publi-
c a m e n t e d e v e d o r , a u n s p o r t e r e m t o r n a d o p o s s í v e l este l i v r o , a outros
p o r lhe t e r e m prestado c o l a b o r a ç ã o indispensável.
A o D r . Emmanuel Alves, autor conceituado de livros m é d i c o s consa-
grados, autoridade inconteste e m literatura científica, a cuja colabora-
ç ã o d i r e t a d e v e m o s h o j e este l a n ç a m e n t o , e q u e — c o m o se j á n ã o fora
o suficiente — ainda o valoriza aceitando a indicação do seu n o m e p a r a
apresentar-nos ao público m é d i c o - o d o n t o l ó g i c o , a certeza da sentida g r a -
tidão do estreante.

A o P r o f . Fernando Rodrigues Campello, hipnodontista e amigo in-


c o n d i c i o n a l , q u e , a p a r d e e s t u d i o s o a p l i c a n t e d a c i ê n c i a se r e v e l a tam-
b é m u m devotado artista amador, e a quem devemos a grande maioria
das ilustrações que inserimos neste Manual, as h o m e n a g e n s do autor, os
agradecimentos do a m i g o .
A o s D r s . Aluízio Gonçalves, Floriano Eduardo de Lemos, Reginaldo
Guimarães, Ary Salgado Ferreira da Silva e Edson Durvault Martins
que, c o n d u z i n d o m a g n i f i c a m e n t e clientes seus p e r m i t i r a m - n o s as ilustra-
ções de técnica hipnótica, o débito de b o a parcela de qualquer mérito que
este l i v r o v e n h a a p o s s u i r .
À S r a . Maria Coeli Martins, à s S r t a s . Lúcia de Souza Carvalho, Onei-
da Pedrosa e Therezinha de Jesus Barbosa, a o s r . Jair Pinto, clientes
hipnóticos que nos p e r m i t i r a m a divulgação de suas f o t o g r a f i a s , colabo-
r a n d o a s s i m , c o m alto e s p í r i t o c i e n t í f i c o p a r a a concretização deste t r a -
balho, o nosso público reconhecimento.

R i o de J a n e i r o , 1958.

OSMARD ANDRADE FARIA

R. D n a . Delfina, 18/202.
R i o de Janeiro.
ÍNDICE D A MATÉRIA
Cap. I — REPASSO HISTÓRICO 1
1. Tabu e ciência 3
2. A origem 5
3. Mesmer 7

4. Puységur • 12
5. Gassner 13
6. Faria 14
7. Elliotson .' 16
8. Esdaile 17
9. Braid 22
10. Liébeault e Bernheim 27
11. Charcot 29
12. A grande trégua 32
Referências 34
Cap. II — A E V O L U Ç Ã O DO P E N S A M E N T O 35
13. "Cogito ergo sum" 37
14. O componente mental 39
15. Os "absurdos" . • 43
16. O fator emocional 47
17' Psique e soma . 51
18. Freud 5 3

19. Voltando a Avicenna 57


20. Descartes e o

21. Claude Bernard e Setchenov 63


22. Goltz 6 7

Referências • • • • 70
Cap. III — R E F L E X O S C O N D I C I O N A D O S 73
23. Reflexo 7 5

24. Reflexos incondicionados 7 7

25. Reflexos condicionados 80


26. Sinal 8 2

27. Conexões temporárias 84


28. Estímulos • • • • 9 0

29. S i s t e m a s de s i n a l i z a ç ã o . A p a l a v r a 93
30. Excitação e inibição 1°*
31. Inibição externa 1° 6

32. Inibição interna Hl


33. D i f u s ã o da i n i b i ç ã o H9
34. N o ç ã o de a n a l i s a d o r e s . A n á l i s e e síntese 135
35. M o s a i c o cortical e estereotipia dinâmica 338
Referências 142
Cap. IV — O SONO 1 4 3

36. Equilíbrio córtico-visceral 145


37. Tipos nervosos •• 153
38. Sono e Inibição interna 155
39. E s t a d o s de f a s e 164
Referências 168
Cap. V — O ESTADO HIPNÓTICO 169
40. Estímulos em hipnose 171
41. O signo-sinal • • 179
42. A indução hipnótica 183
43. Propriedades do estado hipnótico , 189
44. Semiologia do processo hipnótico 207
45. Suscetibilidade 218
46. Hipnose processual 227
Referências 238

Cap. VI — TÉCNICA HIPNÓTICA 241


47. Provas de suscetibilidade'' ;• • 243
48. Processo essencial. Pestanejamento sincrónico 254
49. P r o c e s s o didático. F i x a ç ã o do olhar 299
50. P r o c e d i m e n t o s de B r a i d 311
51. P r o c e d i m e n t o da l e v i t a ç ã o ( l e v a n t a m e n t o d o b r a ç o ) 312
52. P r o c e s s o rápido. Reversão do olhar 320
58. Processo elaborado 325
54. Hipnose em crianças. Representação cênica 327
55. P r o c e d i m e n t o de B e r n h e i m (mirada mútua) 332
56. E n t r e c r u z a m e n t o das m ã o s 334
57. P r o c e d i m e n t o de K r a i n e s 336
58. Hipnose por estimulação imediata 339
59. Registro do processo hipnótico . 343
Referências 346
Cap. VII — APLICAÇÕES DA HIPNOSE 347
60. A h i p n o s e e m clínica 349
61. Sugerencias e sugestões 357
62. Hipnose e m cirurgia . 359
63. Rotina hipnocirúrgica 365
64. Hipnose e m obstetrícia 378
65. A dor no parto 382
66. O parto psicoprofilático 387
67. Conduta hipnótica e m obstetrícia 393
68. Hipnodontia 399
69. Sono prolongado 409
70. I n d i c a ç õ e s g e r a i s da h i p n o s e 421
Referências 422
C a p . VIII — OS PERIGOS DA HIPNOSE 425
71. Danos e malefícios '. 427
72. Crime e personalidade 431
73. Auto-hipnose e misticismo 436
74. Ciência e recreação : 444
75. Ética profissional e m hipnose 447
Referências 450

APÊNDICE 451
76. A m i g d a l e c t o m i a por hipnanestesia 453
77. Contribuição à casuística em hipnologia médica 467
NÃO CREIAIS em coisa alguma pelo
fato de vos mostrarem o testemu-
nho escrito de algum sábio antigo;

NÃO CREIAIS em coisa alguma com


base na autoridade de mestres e
sacerdotes;

AQUILO, PORÉM, que se enquadrar na


vossa razão, e depois de minucioso
estudo fôr confirmado pela vossa
experiência, conduzindo ao vosso
próprio bem e ao de todas as ou-
tras coisas vivas:

A ISSO aceitai como verdade;

POR ISSO, pautai vossa conduta!

Çakia Muni (Bhuda)


I — REPASSO HISTÓRICO

1 — Tabu e ciência;

2 — A origem;

3 — MESMER;

4 — PUYSÉGUR;

5 — GASSNER;

6 — PARIA;

7 — ELLIOTSON;

8 — ESDAILE;

9 •— BRAID;

10 •— L I É B E A U L T e B E R N H E I M ;

11 — CHARCOT;

12 — A g r a n d e t r é g u a .
I — REPASSO HISTÓRICO

1. — T A B U E CIÊNCIA — M u i t o se t e m dito., e s c r i t o e f a l a d o n o s ú l -
timos anos sobre o hipnotismo. A partir,
principalmente, do momento em que al-
g u n s l i t e r a t o s m e n o s e s c r u p u l o s o s se t ê m v a l i d o d o s f e n ô m e n o s hipnóti-
c o s p a r a d a r m a i o r c o l o r i d o às s u a s h i s t ó r i a s e m e l h o r e x p r e s s ã o emo-
c i o n a l a o s seus p e r s o n a g e n s , a c u r i o s i d a d e l a i c a c e r c a n d o o hipnotismo
tem crescido sobremaneira. N ã o raras vezes alguns " p r o f e s s o r e s " , mer-
cê de suas habilidades e de c o n h e c i m e n t o s práticos adquiridos empiri-
camente, u s a m do h i p n o t i s m o recreativo para atrair popularidade e c o m
i s s o a u f e r i r p r o v e n t o s q u e , s e b e m lhes s e j a m ú t e i s momentaneamente,
t r a z e m ao h i p n o t i s m o científico um incalculável desprestígio.
Muito pouco daquilo que se t e m dito c o r r e s p o n d e à realidade. Bas-
tante longe da v e r d a d e t ê m estado quase todos aqueles que escreveram,
aqui e alhures, tratados, compêndios e manuais sobre a " a r t e " de h i p -
notizar .
Porque, distante de ser uma arte prestidigitatória, um entreteni-
m e n t o ou u m a d e m o n s t r a ç ã o de " f o r ç a p e s s o a l " , a hipnose é u m r e c u r s o
científico, baseado nos mais rigorosos alicerces fisiológicas, sem
qualquer aproximação c o m magias, seduções ou encantamentos.
Talvez p o r isso, pela confusão de q u e t e m s i d o v í t i m a e m f a c e ao
inescrúpulo de alguns e à incultura da m a i o r i a é que a m e d i c i n a e a o d o n -
t o l o g i a se t ê m a p a r t a d o , q u a s e q u e p u n d o n o r o s a m e n t e d e m a n t e r maio-
res c o n t a c t o s c o m e s s e i n e s t i m á v e l r e c u r s o t e r a p ê u t i c o q u e é o h i p n o t i s -
mo científico.
O conceito de que a hipnose g o z a entre o g r a n d e público é o mais
desfavorável. Seja por estar possuído de f a l s a s informações, tendenr-
ciosas e nada esclarecedoras, ou p o r ser admitido a assistir espetáculos
a l t a m e n t e d e s p r i m o r o s o s e c o n d e n á v e i s o n d e os " m a g o s d o s o n o " sujei-
t a m os e s p e c t a d o r e s a d e m o n s t r a ç õ e s r i d í c u l a s e d e s r e s p e i t o s a s , s e j a ain-
4 O S M A R D A N D R A D E

d a p e l a s h i s t ó r i a s q u e lhe c o n t a m de q u e p a c i e n t e s h i p n o t i z a d o s foram
s u b m e t i d o s à v o n t a d e e a o d o m í n i o d o seu o p e r a d o r , p o r i s s o e p o r a q u i -
lo c r i o u - s e e m t o r n o d o h i p n o t i s m o u m c l i m a d e s u s p e i ç õ e s . E a medi-
c i n a t e m c u s t a d o a v e n c e r essa b a r r e i r a de t a b u s e p r e c o n c e i t o s .

V e z por outra uma nova história agita a opinião pública. E geral-


m e n t e tais narrativas são tão falsas e infundadas quanto as soberbas
aventuras d o l e n d á r i o b a r ã o d e Munkhausen. Ainda recentemente tor-
nou-se "best-seller" internacional um livro de Morey Bernstein, "The
Search for Bridey Murphy". O fato focalizado nessa obra leiga — a
v o l t a de u m a p a c i e n t e h i p n o t i z a d a a " r e e n c a r n a ç õ e s " a n t e r i o r e s p o r f o r -
ç a d e r e g r e s s ã o de i d a d e •— f o i o b j e t o de t r a n s c r i ç ã o e m j o r n a i s d o m u n -
do inteiro, p r o g r a m a s de rádio e televisão, conferências, discussões, co-
m e n t á r i o s , e t c . E n a v e r d a d e a o b r a de Bernstein não passa de u m r e -
positório de i n v e n c i o n i c e s as m a i s a b s u r d a s , d e s t i t u í d a s d e quaisquer
possibilidades de c r é d i t o e m u i t o d i s t a n t e s d o m a i s l o n g í n q u o a p o i o ci-
entífico .

Crimes supostamente cometidos p o r indivíduos sob influência estra-


n h a , s u b o r d i n a d o s à v o n t a d e d e l i t u o s a de u m h i p n o t i z a d o r , n ã o r a r o s ã o t r a -
zidos ao conhecimento do público através a i m p r e n s a . E o público que,
lamentavelmente, quase s e m p r e carece de melhores e mais honestos es-
c l a r e c i m e n t o s c i e n t í f i c o s , d e i x a - s e i m p r e g n a r cie — r e c o n h e ç a m o s — jus-
tos temores em relação à indução hipnótica.

Muitos especialistas vêm discutindo há anos as p o s s í v e i s influên-


cias que a s a m i g d a l e c t o m i a s p o s s a m exercer no f a v o r e c i m e n t o da p a r a -
lisia i n f a n t i l . A discussão p o r enquanto não ultrapassou os bastidores
das associações de c l a s s e , e m m e s a s redondas de f r e q ü ê n c i a rigorosa-
mente profissional, sem alarmes, c o m p u r o o b j e t i v o de pesquisas. Que
aconteceria porém, se de r e p e n t e , um filme cinematográfico nos mos-
t r a s s e e m c o r e s as m a i s d r a m á t i c a s a h i s t ó r i a d e u m a c r i a n ç a q u e , por
ter extraído as amígdalas, c o n t r a i u a d o e n ç a d e Heine-Medin? E se o s
jornais, em seqüência, levassem ao conhecimento dos pais estatísticas
tendenciosas e x i b i n d o r e l a ç ã o de t a n t o s m i i h a r e s de m e n i n o s q u e fica-
r a m paralíticos d e p o i s de a m i g d a l e c t o m i z a d o s , esquecendo-se de contar
t a m b é m o s m i l h a r e s d e o u t r o s q u e f o r a m o p e r a d o s e n u n c a se t o r n a r a m
paralíticos? E de t o d a s a q u e l a s o u t r a s c r i a n ç a s q u e c o n t r a í r a m a p o l i o -
mielite e m plena posse de suas amígdalas palatinas? É f á c i l de p r e v e r - s e
o n ú m e r o i n c a l c u l á v e l de p e s s o a s q u e d e i x a r i a m o s f i l h o s s u j e i t o s às m a i s
H I P N O S E M É D I C A 5

graves e variadas conseqüências focais a fim de livrá-los da paralisia


infantil.
O mesmo vem ocorrendo ao hipnotismo. D i z m u i t o b e m Gindes que
n a e v o l u ç ã o d e t o d a s as p e s q u i s a s c i e n t í f i c a s , u m f a t o r p e r m a n e c e c o n s -
t a n t e : a superstição precede o conhecimento. E mais: que toda idéia
passa por três f a s e s . Inicialmente, "isto é i m p o s s í v e l " ; mais tarde, isto
" é sacrilégio" ou " é a b s u r d o " ; finalmente, " e u sempre soube disso". Em
hipnose, felizmente j á vencemos a primeira etapa e talvez estejamos na
segunda.
O hipnotismo ainda é hoje, m e s m o para alguns médicos, um verda-
deiro tabu. S ó r e c e n t e m e n t e , p e l o m e n o s e n t r e n ó s , se está conseguindo
vencer a barreira cia s u p e r s t i ç ã o para invadir a seara da explanação
clara e do c o n h e c i m e n t o . E m e s m o assim, não poucas vezes, aqueles que
se t ê m i n t e r e s s a d o p e l o a s s u n t o e t ê m p o s t o a h i p n o s e e m p r á t i c a nas
s u a s c l í n i c a s , s o f r e m o v e x a m e de se v e r e m a c u s a d o s p o r c l i e n t e s — e
até m e s m o p o r colegas — de charlatanismo.
U n s e outros, leigos e profissionais, sofrem evidentemente do m e s m o
m a l : n ã o c o n h e c e m os f u n d a m e n t o s n e u r o f i s i o l ó g i c o s da hipnose, nunca
ouviram falar da fisiopatologia córtico-visceral, confundem hipnotismo
com magnetismo ou auto-sugestãõ, evitam professar a "ciência" de
Charcot, r e p u g n a m - s e de, sendo clientes, p a r e c e r e m m í s t i c o s ; sendo cien-
tistas, sugerirem mistificação.
O h i p n o t i s m o , i m p õ e - s e q u e se d i g a e se p r o v e , c o m o a r m a t e r a p ê u -
tica é tão científico e tão fisiológico quanto a clínica e a cirurgia. São
a m p l o s o s s e u s h o r i z o n t e s , e n o r m e s as s u a s p o s s i b i l i d a d e s , a i n d a inex-
p l o r a d o s os s e u s v a s t o s recursos.
Muitos livros têm sido escritos tentando explicar a base do fenô-
m e n o h i p n ó t i c o , t o d o s eles a p o i a d o s e m c o n j e c t u r a s as m a i s v a r i a d a s e
hipóteses não menos absurdas. N ã o há como f u g i r p o r é m à verdade e
toda verdade é simples. Simples p o r ser científica; científica por ser
natural.

2 — A ORIGEM — D a m e s m a f o r m a que a m o d e r n a q u í m i c a nasceu


n o leito d a a l q u i m i a e d a p e d r a f i l o s o f a l , q u e a a s t r o -
n o m i a e a astrologia são ainda h o j e confundidas,
que a matemática é i r m ã g ê m e a da numerologia, t a m b é m o hipnotismo
v e m de u m a h i s t ó r i a b r u m o s a d e f e i t i ç o s e e n c a n t a m e n t o s r e l i g i o s o s . A
6 O S M A R D A N D R A D E

r i g o r , a q u e e s p é c i e d e s o n o t e r i a s i d o s u b m e t i d o ò b i s o n h o Adão para
q u e , a u m g e s t o d o " o p e r a d o r " lhe f o s s e f e i t a a r e t i r a d a de u m a costela
sem dor e sem anestesia? O lendário p r i m e i r o h o m e m d o r m i u o seu sono
primeiro sob comando hipnótico! E se, de u m lado, a história da civili-
zação costuma ser dividida e m dois períodos distintos, antes e a partir da
era cristã, t a m b é m a história da h i p n o s e p o d e ser r e s u m i d a em dois t e m p o s
c l á s s i c o s : a n t e s e d e p o i s de Mesmer. E a q u i , c o m o lá, a d i v i s ã o é m e r a -
mente convencional: o hipnotismo científico não recebeu qualquer contri-
buição do mestre vienense.
A p r i n c í p i o a h i p n o s e e r a e x e r c i d a c o m o se f o s s e u m m i t o r e l i g i o s o .
S ã o c o n h e c i d o s h o j e os c l á s s i c o s " t e m p l o s cio S o n o " d o a n t i g o E g i t o o n d e
sacerdotes u s a v a m o p o d e r hipnótico p a r a tratar os crentes fazendo-os
adormecer suavemente e ministrando-lhes passes mágicos. Um baixo
r e l e v o e n c o n t r a d o n u m s a r c ó f a g o de T e b a s m o s t r a u m s a c e r d o t e e m p l e n o
ato de indução hipnótica de u m paciente. T a m b é m dos T e m p l o s de / s i s .
Deusa do Nilo, egiptólogos copiaram eritalhes onde sacerdotes e fiéis
aparecem em atitudes caracteristicamente hípnicas. Os altos sacerdotes
de K h e m u s a v a m m a n o b r a s semelhantes p a r a acalmar os clamores p o p u -
lares utilizando virgens em transe como portadoras de m e n s a g e n s aos
deuses. A i n d a os s a c e r d o t e s c a l d e u s e r a m t i d o s c o m o c a p a z e s d e t r a n s -
m i t i r " f l u i d o s " a t r a v é s p a s s e s q u e c o l o c a v a m e m t r a n s e os sofredores.
N a í n d i a e n o O r i e n t e r e m o t o os f a q u i r e s e " s a n t o s " p r o d u z i a m em
si m e s m o s e n o s o u t r o s , e s t a d o s de t r a n s e " m e d i ú n i c o " auto-hipnóticos,
c o m o a i n d a h o j e o f a z e m n a s s u a s p r o v a s de r e s i s t ê n c i a , r e n ú n c i a e s o -
frimentos.
U m a g r a v u r a d o a n o 9 2 8 A . C . m o s t r a o r e n o m a d o Chiron induzindo
u m e s t a d o h i p n ó t i c o e m s e u d i s c í p u l o Esculápio que p o r sua vez, m a i s
t a r d e , e n t r e os r o m a n o s , u s a r i a a h i p n o s e a s s i m a p r e n d i d a n a c u r a dos
seus doentes. C o s t u m a v a Esculápio, t o c a n d o c o m as m ã o s p a r t e s dolo-
ridas de seus pacientes, aliviar-lhes o p a d e c i m e n t o . Hipócrates, o consi-
d e r a d o p a i d a m e d i c i n a , u s a v a d i z e r q u e " a s d o r e s de q u e p a d e c e o c o r p o
e a a l m a p o d e m ser v i s t a s c o m os o l h o s f e c h a d o s " .
N a s ilhas britânicas o s o n o h i p n ó t i c o foi reconhecido no " s o n o d r u í -
dico". Os c h e f e s da seita dos Druidas, que a c u m u l a v a m suas funções
religiosas c o m a medicina, costumavam colocar seus fiéis recostados e,
administrando-lhes u m sono artificial curavam suas dores.
N o s é c u l o X d e n o s s a e r a , Avicenna, o v e r d a d e i r o p r e c u r s o r da r e í l e -
x o l o g i a p a v l o v i a n a e r a de o p i n i ã o q u e a i m a g i n a ç ã o h u m a n a t i n h a p o d e r e s
H I P N O S E M É D I C A 7

e f o r ç a e q u e se c o n s e g u i a , t ã o s o m e n t e a t r a v é s a i m a g i n a ç ã o , a t u a r d i r e -
tamente sobre o f u n c i o n a m e n t o corporal, não apenas de perto m a s à dis-
tância. Pela palavra, pela vontade e pela persuasão — afirmava Avi-
senna — muitos p a d e c i m e n t o s p o d e m ser curados.

N o s é c u l o X V I , Paracelso, por acreditar na imaginação e na "fé"


c o m o c a p a z e s de m o d i f i c a r e s t a d o s p a t o l ó g i c o s f o i p e r s e g u i d o e o b r i g a d o
a e r r a r de c i d a d e e m c i d a d e c o m o u m p r o s c r i t o . Tal perseguição porém,
n ã o impediu que através os anos homens de ciência, filósofos e teoso-
fistas c o n t i n u a s s e m a c r e d i t a n d o n a e x i s t ê n c i a de u m a q u a l q u e r "força
s o b r e n a t u r a l i n t e r i o r " q u e n o s f a z i a c a p a z e s de o b t e r m o d i f i c a ç õ e s s e n s í -
veis tanto em nós mesmos c o m o e m outrem.

N a I n g l a t e r r a , Eduardo, o C o n f e s s o r , introduziu a p r á t i c a do que se


costumava chamar " o toque real". Os s o f r e d o r e s e r a m trazidos à p r e -
sença d o rei em audiências p r e f i x a d a s quando este, t o c a n d o a f r o n t e dos
seus súditos, acreditava cortar-lhes os m a l e s . Tal prática reconhecida
m a i s t a r d e oficialmente pela I g r e j a da Inglaterra passou a contar com
a p r e s e n ç a de u m sacerdote assistente real. S e m p r e q u e Eduardo tocava
u m doente aquele citava passagens adequadas d a Bíblia.

O ano de 1662 m a r c o u o a p a r e c i m e n t o na Irlanda de u m famoso


c u r a n d e i r o , Greatrakes, que pretendia, como enviado divino, ter poderes
de c u r a , e x o r c i s m o e s a c e r d ó c i o . E o b t e v e u s a n d o e x c l u s i v a m e n t e d o seu
" p o d e r " , milhares de curas maravilhosas. O s p a c i e n t e s de Greatrakes,
após receberem uma s é r i e de " p a s s e s " , c a i a m n u m a e s p é c i e de torpor
semelhante ao sono. A m e s m a p r á t i c a c e l e b r i z o u o p a d r e Gassner que,
na E u r o p a , tratou m a i s de dez mil e n f e r m o s , isso p o r volta de 1760.

3 — MESMER — Franeiscus Antonius Mesmer, comumente tratado


p o r Franz Anton Mesmer, n a s c e u e m 23 de m a i o d e
1734, em Iznang, paróquia de Weiler, p r o x i m i d a d e s do
L a g o Constanza e viria a ser mais tarde, injustificadamente aliás, o p r e -
c u r s o r da m o d e r n a l i n h a d o h i p n o t i s m o c i e n t í f i c o , j á q u e suas c o n c l u s õ e s
a respeito c a r e c i a m de qualquer f u n d a m e n t o .

P i l h o de u m c o u t e i r o , Mesmer foi destinado inicialmente à carreira


m o n á s t i c a e p a r a tal e n v i a d o a u m e d u c a n d á r i o r e l i g i o s o de D i l l i n g e n c o m
transferência posterior para Ingolstadt. Aprendendo a começo teosofia e
leis, interessou-se m a i s t a r d e p o r m ú s i c a e astrologia, esta m a i s que a q u e -
la. D e s l i g o u - s e da i g r e j a e i n g r e s s o u n a e s c o l a de m e d i c i n a d a U n i v e r s i -
8 O S M A R D A N D R A D E

•dade de V i e n a p o r o n d e v i r i a a d i p l o m a r - s e c o m a tese " D e Planatarium


I n f l u x " em 1775.
A p o i a d o n a b i z a r r a i d é i a dé q u e os a s t r o s e e s t r e l a s e x e r c i a m a l g u m a
i n f l u ê n c i a s é r i a n o a p a r e c i m e n t o e n a c u r a d a s d o e n ç a s , Mesmer. atribuía
a o s c o r p o s c e l e s t e s a e m i s s ã o d è u m m i s t e r i o s o " f l u i d o " l i g a n d o os c o r p o s

Fig. 1 — Franz Anton MESMER

e n t r e si e t o d o s a o c o n j u n t o e s t r e l a r . Tal " f l u i d o " que titulou de m a g n e -


t i s m o a n i m a l t e r i a a i n d a a p a r t i c u l a r i d a d e de s e r c a p t a d o e r e s e r v a d o p o r
c o r p o s m e t á l i c o s e s p e c i a i s q u e se p o d e r i a m u s a r t e r a p é u t i c a m e n t e s o b d e t e r -
minado controle.
H I P N O S E M É D I C A 9

A t e s e d e d o u t o r a d o d o j o v e m m é d i c o Mesmer despertou a curiosidade


d e u m j e s u í t a , o p a d r e Hell, p r o f e s s o r d e a s t r o n o m i a da U n i v e r s i d a d e d e
V i e n a e a s t r ó l o g o o f i c i a l da c o r t e de Maria Tereza.

Hell acreditava na influência terapêutica da imantação e p a r a isso


c o n s t r u í r a v á r i o s í m ã n s , c a d a q u a l c o m o f o r m a t o a p r o x i m a d o dp ó r g ã o a
q u e se d e s t i n a v a . P r e s o às i d é i a s d e Hell d e d i c o u - s e Mesmer a esse n o v o
t i p o d e m a g n e t i s m o e n ã o t a r d a r i a m u i t o a e s t a r e m p o l g a n d o as m a s s a s
c o m os " e s p e t a c u l a r e s " r e s u l t a d o s o b t i d o s . T e n d o a s o r t e de c o n t a r e n t r e
s e u s c l i e n t e s c o m a l g u m a s f i g u r a s de p r o j e ç ã o n a s o c i e d a d e v i e n e n s e , a l é m
d e e s t a r c a s a d o c o m Anna von Bosch, viúva do Conselheiro P r i v a d o von
Bosch, elemento de real prestígio nas f o r ç a s a r m a d a s i m p e r i a i s da Áustria,
seu m é t o d o de c u r a — a q u e se c h a m o u de mesmerismo — muito cedo
e r a o a s s u n t o o b r i g a t ó r i o d e t o d a s as r o d a s .

G r a d u a l m e n t e m u d o u Mesmer suas p r ó p r i a s idéias a respeito do p o d e r


magnético que m a n e j a v a . Sentindo o valor da süa presença na obtenção
de bons resultados terapêuticos, atribuiu-se o médico vienense qualidades
magnéticas diretamente recebidas dos astros, influência que c h a m o u " m a g -
netismo h u m a n o " e que podia transmitir a outrem bastando e m tocá-los
diretamente ou e m f a z e r c o m que t o c a s s e m objetos que havia previa-
mente manuseado. E c o m o a clínica aumentasse assustadoramente criou
Mesmer u m n o v o s i s t e m a de a t e n d e r a t o d o s . M a g n e t i s a n d o cadeiras e
utensílios de sua sala de espera e ainda u m aparelho m e t á l i c o que fez
c o n s t r u i r e d o q u a l se d e s p r e n d i a m i n ú m e r a s h a s t e s i n d i v i d u a i s , b a s t a v a
a g o r a aos pacientes sentarem-se ou t o c a r e m tal i n s t r u m e n t o — o " b a q u e t "
— p a r a que i m e d i a t a m e n t e sentissem convulsões ou e n t r a s s e m em êxtase
magnético.

C o m p a r e - s e a i d e n t i d a d e d e t a i s f e n ô m e n o s c o m as a t u a i s incorpo-
rações " m e d i ú n i c a s " da p r á t i c a espírita, o que v e m c o m p r o v a r ter Mesmer,
m e r c ê de s u a i n f l u ê n c i a e p r e s t í g i o p e s s o a i s , c o n s e g u i d o e m s e u s p a c i e n -
tes u m compreensível estado auto-hipnótico.

P o r i g n o r â n c i a da n a t u r e z a d o v e r d a d e i r o e s t a d o h i p n ó t i c o , Mesmer
atribuía aos astros e aos metais aquilo que dependia exclusivamente de
s u a p a l a v r a e d a c a p a c i d a d e de i m a g i n a ç ã o d e c a d a p a c i e n t e . Manejava
u m instrumento importante: i g n o r a v a qual fosse êle, a g i n d o empirica-
mente, sem qualquer conhecimento de causa fisiológica. Não vemos, em
c o n s e q ü ê n c i a , p o r q u e a t r i b u i r a Mesmer o privilégio de ter sido o p r e c u r -
sor da fase científica do hipnotismo.
10 O S M A R D A N D R A D E

Se a sorte o f a v o r e c e r a com demasiada freqüência — e foi feito,


inclusive, m e m b r o da A c a d e m i a B á v a r a de Ciências p o r suas curas —
q u i z e r a m a i g n o r â n c i a , a c u p i d e z e a i n v e j a de a l g u n s c o l e g a s q u e Mesmer
fosse obrigado a transferir-se a Paris. Procurado, em 1777, p o r uma
j o v e m p i a n i s t a c e g a , Maria Tereza Paradis — e q u e p o r ser c e g a e p i a -
n i s t a m e r e c i a a p r o t e ç ã o da I m p e r a t r i z — para curá-la, viu-se c o m sur-
p r e s a q u e l o g o a p ó s as p r i m e i r a s s e s s õ e s m e s m é r i c a s , a p a c i e n t e r e c u p e -
rava progressivamente a visão. Tratava-se, c o m o é evidente, de u m caso
de a m a u r o s e histérica. Tal f a t o despertou o m e r c e n a r i s m o de s u a p r o -
g e n i t o r a , i n s u f l a d a q u e f o r a p o r a l g u n s c o l e g a s d e Mesmer. Se a m e n o r
recuperasse a visão — insinuavam — p e r d e r i a ela a p e n s ã o o f i c i a l e a s
simpatias da soberana. C o m o a doente se recusasse a a b a n d o n a r o t r a t a -
mento foi agredida e esbofeteada pela mãe. Reativou o traumatismo moral
as c a u s a s d a c e g u e i r a . O insucesso, o desgosto e a repercussão do f a t o
e m V i e n a a p o n t a r a m a Franz Antonius o caminho da F r a n ç a .

Ali repetiu-se o êxito dentro das mesmas proporções. Para atender


a todos que o p r o c u r a v a m alugou u m enorme palácio e construiu um
" b a q u e t " e m t o r n o do qual p o d i a m sentar-se simultaneamente 130 p e s -
soas. A s sessões repetiam-se continuadamente p o r g r u p o s de 130 cada
vez. Imagine-se o total de pacientes que e r a m apresentados diariamente
ao m e s m e r i s m o ! Limitava-se o m e s t r e a passear pela sala, olhando um
ou o u t r o c a s o e a o s m a i s g r a v e s , t o c a n d o - o s .

A p r o p ó s i t o d e t a i s e s p e t á c u l o s , eis o t e s t e m u n h o p e s s o a l de Deleuze:

"Em uma sala, sob a influência de varas que se escapavam


de tubos cheios de grandes garrafas — as ditas varas aplicadas
sobre as várias partes dos corpos dos pacientes — as mais
extraordinárias cenas tinham lugar diariamente. Risos sar-
dónicos, gritos lastimosos e torrentes de lágrimas jorravam de
todos os lados. Os indivíduos eram lançados para trás em sa-
cudidas espasmódicas, a respiração soando em estertores mor-
tais, e sintomas terríveis eram exibidos. Repentinamente os
atores de tão estranhas perfomances, frenéticos e arrebata-
doramente atiravam-se uns contra os outros, repelindo-se, abra-
cándose ou lançando os companheiros contra os vizinhos de
maneira terrível.
H I P N O S E M É D I C A 11

Em outro quarto atapetado era apresentado um espetá-


culo diferente. Ali, mulheres batiam suas cabeças contra co-
chins nus paredes ou rolavam peio chão acolchoado quase su-
focadas. No meio da cena, lesto e ágil, M e s m e r , vestindo um
casaco lilás, movia-se para cima e para baixo, detendo-se dian-
te dos mais fortemente excitados e, fitando-os fascinantemente
nos olhos, tocava-lhes com seus dedos estabelecendo a corrente.
Em outros momentos, abrindo os braços e extendendo os
dedos, o operador, por gestos largos de cruzar e descruzar os
braços, estabelecia a grande corrente e dava os passes finais."

A a t u a ç ã o de Mesmer e m P a r i s a t r a i u a a t e n ç ã o d o r e i Luiz XVI


que n o m e o u duas comissões, uma da Sociedade Eeal de Medicina, outra
d a A c a d e m i a de C i ê n c i a s , p a r a e s t u d a r e m o c a s o . Entre outros faziam
p a r t e de t a i s c o m i s s õ e s Benjamin Francklin, Lavoisier, Guillotin e Jussieu.
E a p e n a s se c o n c l u i u q u e t a i s c u r a s d e v i a m - s e à i m a g i n a ç ã o d o s p a c i e n -
tes, no que, convenhamos, não a n d a r a m muito errados. Jussieu discor-
dou e negou-se a assinar o relatório.
A m e s m a c o m i s s ã o o f e r e c e u a i n d a u m p r ê m i o a Mesmer, no valor
d e 2 0 . 0 0 0 f r a n c o s p a r a q u e êle r e v e l a s s e o s e g r e d o e o mecanismo de
suas curas. O mestre recusou. N a v e r d a d e , n e m êle m e s m o sabia!. . .
D e c l i n o u a p a r t i r d a í , 1 7 8 4 , o seu p r e s t í g i o . Retirou-se mais tarde
para Fraunfeld na Suíça onde viveu praticamente olvidado. Mesmo as-
s i m , e m 1 8 1 2 r e c e b e c o n v i t e da A c a d e m i a Prussiana para demonstrar
o seu m é t o d o e m B e r l i m . Recusa. E m contrapartida o rei da Prússia
destaca o médico alemão Wolfart para que fosse ao seu e n c o n t r o em
b u s c a de e n s i n a m e n t o s . D e v o l t a à A l e m a n h a t o r n a - s e Wolfart profes-
s o r de m e s m e r i s m o da A c a d e m i a de B e r l i m o n d e e s t e v e e n c a r r e g a d o de
uma enfermaria de 300 leitos e x c l u s i v a m e n t e dedicados ao tratamento
mesmérico.
O introdutor do m a g n e t i s m o na história do hipnotismo faleceu a
5 de m a r ç o d e 1 8 1 5 n a c i d a d e d e Meesburg.
N ã o se p o d e n e g a r a Mesmer o mérito de ter praticado o hipnotismo,
d i v u l g a n d o - o , a t r a i n d o p a r a o m e s m o a curiosidade e a atenção dos m e i o s
científicos muito e m b o r a não soubesse e m absoluto o que estava mane-
jando. Por outro lado é impossível deixar de condená-lo pelo caráter
e s p e t a c u l o s o e c h a r l a t a n e s c o q u e i m p r i m i u a o s seus t r a b a l h o s . Parece-nos
a i n d a e v i d e n t e q u e Mesmer, a o c o n t r á r i o d o q u e m u i t o se t e m afirmado,

t
1

12 O S M A R D A N D R A D E

não teve qualquer participação no estabelecimento dos caminhos fisioló-


gicos e científicos do hipnotismo. Praticou-o sim, s e m saber; extraiu
dele s e u s m a r a v i l h o s o s r e s u l t a d o s a p e s a r de o f a z e r e m p i r i c a m e n t e e s e m
c o n h e c i m e n t o da causa. D e r i v o u p a r a concepções absurdas tais c o m o a
influência astrológica ou fluidos magnéticos ou pessoais na explicação
do fenômeno. C o m mais facilidade, pelos movimentos histeróides que
sugeria aos seus pacientes levando-os a u m estado indutivo de a u t o - h i p -
n o s e , p o d e r á t e r s i d o Mesmer, .sem d e s d o u r o , o v e r d a d e i r o i n s p i r a d o r de
Allan Kardeck.

4 — PUYSÉGUR — De maneira muito mais positiva para o esclareci-


mento dos fenômenos hipnóticos, embora de um
ponto de partida casual, contribuiu um discípulo
d e Mesmer, Armand Chastenet, o m a r q u ê s de Puységur. Fazendo magne-
tismo com fins rigorosamente filantrópicos e sem o aparato e a propa-
g a n d a d e Mesmer, r e c e b e u u m dia Puységur a u m c a m p o n ê s de nome
Victor Race p a r a curar de dores tóraco-lombares e disfunção respiratoria.
Magnetisou-o e foi surpresa vê-lo cair em sono p r o f u n d o , m o v i m e n t o s r e s -
piratórios largos e tranqüilos. T e v e o b o m s e n s o Puységur de s u g e r i r - l h e
q u e se m a n t i v e s s e c a l m o e s e r e n o , m u i t o ao c o n t r á r i o d a s i t u a ç ã o a q u e
e r a m levados os agitados e frenéticos clientes de Mesmer.
A p ó s as primeiras sugerencias tranquilizadoras de Puységur, con-
d u z i u o o p e r a d o r o s e u p a c i e n t e n o s e n t i d o de a c a l m i a d o s s i n t o m a s m o -
lestos (*) . Para surpresa do magnetisador, entrou o mesmo, embora
e m estado de sono p r o f u n d o , a falar claramente, s e m dificuldade, emitin-
d o p a l a v r a s e f r a s e s q u e n ã o lhe e r a m c o m u n s d a d o o seu p r e c á r i o n í v e l
intelectual. E i n f o r m a v a o paciente, entre outras coisas, que " n ã o tinha
m a i s d o r . . . q u e se s e n t i a a b s o l u t a m e n t e c a l m o e t r a n q ü i l o . . . c o m o se
estivesse flutuando nos b r a ç o s da V i r g e m . . . da G r a n d e M ã e . . . b a n h a -
d o p o r o n d a s de f r e s c u r a e d e c a r í c i a . . . sentia-se abraçado pelos b r a n -
cos b r a ç o s das n i n f a s . . . em s o n h o . . . em sonho maravilhoso. . . possuí-
do pelo T o d o - P o d e r o s o . . . "
D e s p e r t o , a p r e s e n t o u - s e Victor c o m p l e t a m e n t e r e c u p e r a d o , calmo, li-
b e r t o de s u a s d o r e s .

(*) Sugerencia: termo de u s o corrente em hipnologia e que traduz os re-


flexos condicionados de ordem profilática, feitas ao paciente quando em estado
de inibição hipnótica. — N.A.
H I P N O S E M É D I C A 13

D e s c o b r i r a Puységur, a g i n d o de m a n e i r a diametralmente oposta à


d e Mesmer, o estado sonambúlico do hipnotismo.
E n t u s i a s m a d o c o m o f a t o , e s c r e v e Puységur à A c a d e m i a de M e d i c i -
na: — " M i n h a cabeça está c o m p l e t a m e n t e p e r t u r b a d a de prazer quando
p e r c e b o o b e m que posso f a z e r aos o u t r o s ! "
C e d o , p o r é m ; m u i t o m a i s c e d o d o q u e p o d e r i a p r e v e r , s u r g e m os s i -
m u l a d o r e s n o c a m i n h o h o n e s t o e b e m i n t e n c i o n a d o de Puységur e ao dis-
c í p u l o de Mesmer faltaram firmeza e convicção necessárias para superá-
los. Alguns pacientes, quando em sonambulismo, lançavam-se a ver à
distância, a narrar cenas hipotéticas presenciadas em outros sítios, a
vislumbrar através corpos opacos. Puységur deixou-se embair. Tais fe-
n ô m e n o s , d e s c r i t o s h o j e c o m o de n a t u r e z a m e t a p s í q u i c a (telepatia, vidên-
cia, etc.) e que n e n h u m a ligação têm com o hipnotismo, trouxeram a
p r i m e i r a onda de descrédito ao trabalho do marquês.
A A c a d e m i a de M e d i c i n a e n v o l v e u - s e n o a s s u n t o . Relatórios contro-
vertidos f o r a m apresentados. Husson, e m 1831, dá p o r autênticos e v e r i -
f i c a d o s os f e n ô m e n o s s o n a m b ú l i c o s e a A c a d e m i a r e c u s a - s e a classificar
e a imprimir semelhante " a b s u r d o " . E n c o m e n d a n o v o r e l a t ó r i o ao a c a -
d ê m i c o Dubois que, evidentemente, nega tudo quanto a f i r m a r a o colega.
D i r i m i n d o a c o n t r o v é r s i a Durbin estabelece u m p r ê m i o de 3 . 0 0 0 francos
a quem apresentasse u m sonâmbulo que conseguisse ver através u m c o r p o
opaco. E m f a c e à i m p o s s i b i l i d a d e de c o n c l u s ã o s o b r e o s o n a m b u l i s m o de
Puységur, a A c a d e m i a cleu o a s s u n t o p o r encerrado.
Tal, porém, não acontece. D e i x a Puységur vários discípulos, alguns
deles de p o u c a n o t o r i e d a d e c o m o o b a r ã o Du Potet e o s u í ç o Charles La-
fontaine, a m b o s d e d i c a d o s às d e m o n s t r a ç õ e s culturais e recreativas do
m a g n e t i s m o , outro que a j u d o u a escrever de m a n e i r a segura a história
d o h i p n o t i s m o , o p a d r e p o r t u g u ê s José Custódio de Faria.

5 — GASSNER — Não s a b e m o s até que p o n t o são verídicas algumas


d a s h i s t ó r i a s q u e a r e s p e i t o d o p a d r e Gassner che-
g a r a m até n ó s . E m p r i n c í p i o , Gassner, mesmo pa-
d r e , f o i a l g o e s p e t á c u l o s o e c h a r l a t ã o à m a n e i r a de Mesmer. E parece
t e r s i d o c o n t e m p o r â n e o d o m e s m o o u de Puységur tendo realizado ao que
se d i z c u r a s e s p e t a c u l a r e s n o sul d a A l e m a n h a . I m p r i m i n d o a o seu t r a b a -
lho cores teatrais, usava um quarto preparado com luzes, guirlandas,
c o r t i n a s e s í m b o l o s m í s t i c o s p a r a m e l h o r i m p r e s s i o n a r os p a c i e n t e s . Por-
t a v a e n o r m e c r u c i f i x o à b a s e de o f u s c a n t e s p e d r a s e ao a c e r c a r - s e d o p a -
14 O S M A R D A N D R A D E

ciente, fitava-o por alguns instantes em silêncio, fascinantemente, nos


olhos. E depois, soturnal, p r o f e r i a a sua célebre f r a s e l a t i n a : — "Detur
mihi evidens signum praestigae praeter naturalis, praecipio hoc in no-
mine Jesu!" E n f i m , p r o v o c a d o o sono hipnótico ( m u i t o mais auto que
h é t e r o - i n d u z i d o ) , b a n i a d o c o r p o d o d o e n t e os " m a u s espíritos!"
J á p r a t i c a v a Gassner, pelo que s a b e m o s , alguns passos hipnóticos,
e n t r e os q u a i s as c a t a l e p s i a s . Determinava aos pacientes: — "Agitatur
braeium sinistrum" e seu b r a ç o esquerdo erguia-se e mantinha-se n a p o -
sição elevada. E à v o z d e "Cesset" havia o relaxamento. Também cos-
t u m a v a s o l i c i t a r de s e u s p a c i e n t e s q u e f a l a s s e m e m l a t i m . Há informa-
ç õ e s q u e os m e s m o s r e s p o n d i a m n ã o p o d e r f a z ê - l o p o r d e s c o n h e c e r e m o
idioma. M a s d a v a m tal i n f o r m a ç ã o . . . em latim!
C o n t a - s e a i n d a de Gassner uma estranha prova feita na presença
de u m médico. Levada a paciente ao sonambulismo determinou-lhe Gas-
s n e r q u e se r e d u z i r i a m o s s e u s b a t i m e n t o s c a r d í a c o s , p r o g r e s s i v a m e n t e ,
até extinguirem-se. O controle f o i feito pelo m é d i c o que, a certa hora,
lívido, suor p o r e j a n d o na fronte, levantou-se e exclamou aterrorizado:
" E s t á m o r t a ! " . P a r a r a o s e u c o r a ç ã o ! S o r r i u Gassner. U m gesto, uma
p a l a v r a , u m t o q u e e eis q u e a p a c i e n t e r e a n i m a - s e a n t e os o l h a r e s Tiatéticos
do doutor!
M u i t o a n t e s de f a z e r m a g n e t i s m o o u h i p n o t i s m o , d e v e t e r s i d o Gas-
sner um excelente prestidigitador!

6 — FARIA — S u r g i u e m P a r i s p o r v o l t a de 1815 d e p o i s d e p e r e g r i -
nações religiosas pela índia e oriente médio o padre
p o r t u g u ê s José Custódio de Faria, nascido em Condo-
Iim d e B a r d e z , í n d i a P o r t u g u e s a (1756-1819) e cuja notoriedade como
h i p n o t i z a d o r a l c a n ç o u as p á g i n a s de Chateaubriand, citado que foi nas
"Memórias de A l é m - T ú m u l o " e as de Alexandre Dumas, feito um dos
p e r s o n a g e n s d e " O C o n d e de M o n t e C r i s t o " . Tomou parte na revolução
francesa e deixou-se ficar em França errante e s e m destino.
A princípio adotou as t e o r i a s m a g n é t i c a s d e Mesmer e Puységur
t o r n a n d o - s e discípulo deste último e m b o r a j á houvesse visto e p r a t i c a d o
os f e n ô m e n o s hipnóticos na í n d i a . Costumava olhar fixamente nos olhos
o paciente e de repente exclamava-lhe em tom firme e decidido: —
"Durma!"
A p r i m o r a n d o s e u s c o n h e c i m e n t o s d e s l i g o u - s e m a i s t a r d e da doutri-
n a m e s m é r i c a de Puységur p o i s c h e g o u a c o n c l u i r q u e não podia haver
H I P N O S E M É D I C A 15

q u a l q u e r i n f l u ê n c i a f l u í d i c a n a o b t e n ç ã o de s e m e l h a n t e s r e a ç õ e s . N a o p i -
n i ã o d e Custódio de Faria era a v o n t a d e do paciente e o p o d e r de suges-
tão que conduziam ao que c h a m a v a de " s o n o l ú c i d o " . T a l p o n t o de v i s t a
f o i e x p r e s s o n o seu l i v r o "De la cause ãu sommeil lucide ou Vetude sur"

Fig. 2 — José Custódio de FARIA

la nature de l'homme" onde conceituava: — " N ã o posso conceber como


a e s p é c i e h u m a n a f o i p r o c u r a r a c a u s a d e s t e f e n ô m e n o à t i n a de Mesmer,
a u m a v o n t a d e e x t e r n a ou a mil outras e x t r a v a g â n c i a s deste gênero!"

S e u s e s t u d o s e o b s e r v a ç õ e s l e v a r i a m m a i s t a r d e Liébeault a protes-
t a r c o n t r a o n o m e d e braidismo conferido ao hipnotismo e m h o m e n a g e m
a James Braid. Deveria ser, antes, fariismo.
16 O S M A R D A N D R A D E

O h i p n o t i s m o de José Custódio de Faria, teve, também na França,


o seu o c a s o m e l a n c ó l i c o . Chamado para ver u m artista teatral que acusa-
va doença, submeteu-o ao sonambulismo. Depois, tentando ridicularizar
o abade, divulgou o artista que fingira adormecer p a r a burlá-lo. O m o t e
espalhou-se e destruiu a confiança pública no hipnotismo.

7 — ELLIOTSON — Em giro para difusão do mesmerismo, visitou


Londres em 1837 u m outro discípulo de Puysé-
gur, o barão Du Potet, quando conseguiu inte-
r e s s a r n o a s s u n t o a John Elliotson ( 1 7 9 1 - 1 8 6 8 ) , ocupante da cadeira de
Medicina no University College Hospital e presidente da Royai Medicai
and Surgical Society.

E r a Elliotson a esse t e m p o u m dos m a i s destacados m é d i c o s londri-


n o s , i n t r o d u t o r n a p r á t i c a d o e s t e t o s c ó p i o de Laennec tendo sido o p r i -
m e i r o a a c e n t u a r a i m p o r t â n c i a d o u s o d o i o d e t o de p o t á s s i o e m tera-
pêutica .

E s t u d o u Elliotson o m e s m e r i s m o t r a z i d o p o r Du Potet. E auxiliado


p o r u m a s s i s t e n t e , Wood, cedo começou a praticá-lo na sua enfermaria.
Tal foi o interesse demonstrado pelos estudantes no exercício mesmérico
q u e as d e p e n d ê n c i a s d o U n i v e r s i t y C o l l e g e H o s p i t a l t o r n a r a m - s e peque-
n a s p a r a c o n t ê - l o s . R e c o r r e u o p r o f e s s o r às i n s t a l a ç õ e s d e u m t e a t r o p a r a
o n d e t r a n s f e r i u as d e m o n s t r a ç õ e s e a u l a s . V o l t a r a m - s e l o g o c o n t r a êle a
o p i n i ã o g e r a l d o s c o l e g a s e a i r a d e Thomas Wakley, fundador e primei-
r o e d i t o r de " L a n c e t " q u e , n u m d o s s e u s s u e l t o s a d v e r t i a : — "O pacien-
t e , a l i á s , a v í t i m a , o u m e l h o r o particeps criminis é quase tão culpado
quanto o operador. E a t é q u e m ler o r e l a t o d e t a i s a t u a ç õ e s é u m l e -
p r o s o . . ..."
E m 1838 o Conselho da U n i v e r s i d a d e adotou u m a resolução que inter-
d i t a v a a Elliotson a prática do m e s m e r i s m o . Q u e se r e s g u a r d a s s e m o
i n t e r e s s e e o b o m n o m e d o e s t a b e l e c i m e n t o b e m c o m o os f a v o r e s oficiais
e p ú b l i c o s . E n t r e as p e s q u i s a s e m b u s c a da v e r d a d e e a o p i n i ã o p ú b l i c a ,
n ã o havia p o r q u e ceder em benefício das p r i m e i r a s . Revoltou-se Elliot-
son. " A U n i v e r s i d a d e f o i f u n d a d a p a r a o d e s c o b r i m e n t o da v e r d a d e —
d i s s e — e t o d a s as o u t r a s c o n s i d e r a ç õ e s s ã o s e c u n d á r i a s . Devemos orien-
t a r o p ú b l i c o e n ã o p e r m i t i r q u e êle n o s o r i e n t e . Só o que interessa é
s a b e r se a c o i s a é o u n ã o v e r d a d e " .
H I P N O S E M É D I C A 17

D e m i t e - s e Elliotson da U n i v e r s i d a d e , s e m p r e fiel aos seus pontos de


vista. F u n d a , e m 1843 a revista "Zoist" destinada a dar guarida aos
trabalhos e pesquisas sobre o mesmerismo. Na " Z o i s t " colaboraram du-
r a n t e m u i t o t e m p o , a l é m d o p r ó p r i o Elliotson, Esdaile e Spencer.
A p o i a d o n o p r e s t í g i o e n a e x c e l e n t e d i v u l g a ç ã o de " Z o i s t " q u e re-
latava com freqüência curas realizadas pelo m e s m e r i s m o e m casos de
nevralgias, asma, dores, histeria, e t c , b e m c o m o em u m sem n ú m e r o de
intervenções cirúrgicas sob i n f l u ê n c i a m a g n é t i c a , f u n d a Elliotson em
1846 e m L o n d r e s , F i t z r o y S q u a r e , o M e s m e r i c H o s p i t a l de o n d e l o g o s e
irradiaram instituições congêneres para Edimburgo, Dublin e Exeter.
N e s t a ú l t i m a c i d a d e r e a l i z o u Parker m a i s de 200 intervenções cirúrgicas
s e m d o r , d e n t r e 1 200 mesmerisados.

8. — ESDAILE — James Esdaile (1808-1859) nascido em Perth, E s -


cócia, filho d o r e v e r e n d o Esdaile, graduou-se em
1830 e foi clinicar na índia comissionado pela E a s t
índia Company. Tomando conhecimento dos trabalhos de Elliotson in-
teressou-se n a p r á t i c a do m e s m e r i s m o tendo realizado sua p r i m e i r a ex-
periência c o m u m indu, p o r t a d o r de dupla hidrocele, e m 4 de abril de
1845, n o N a t i v e H o s p i t a l de H o o g h l y . Devido aos p r o f u n d o s padecimen-
t o s d o e n f e r m o , r e s o l v e u Esdaile, pela p r i m e i r a vez, tentar a indução
magnética. Excelentes os resultados para surpresa do próprio opera-
dor que j a m a i s tinha recebido qualquer lição prática do mesmerismo,
dele sabendo a p e n a s o q u e l e r a e m Elliotson. Seu paciente caiu em
sono profundo, sonambúlico, beneficiado com a mais completa analgesia.
O êxito desta p r i m e i r a p r o v a levou-o a dedicar-se, daí p o r diante, ao a s -
s u n t o . M u i t o c e d o o s s e u s a r q u i v o s lhe p e r m i t i r i a m c o m u n i c a r a o M e d i -
cai B o a r d u m t o t a l d e s e t e n t a e c i n c o i n t e r v e n ç õ e s c i r ú r g i c a s f e i t a s sob
hipnose (*). A o f i m de u m ano de trabalho, quando os seus casos c h e -
g a r a m à p r i m e i r a c e n t e n a , d i r i g e - s e Esdaile ao g o v e r n a d o r de Bengala
S i r Herbert Makkock e a q u e m solicita apoio oficial p a r a incremento de
suas investigações mesméricas. Submetida a proposta a u m conselho m é -
d i c o de i n v e s t i g a ç õ e s f o i ela a m p l a m e n t e a p r o v a d a . A r e s p e i t o v a l e t r a n s -
c r e v e r a c o m u n i c a ç ã o q u e F. J. Halliday, s e c r e t á r i o d o g o v e r n o de B e n g a -
la e p r e s i d e n t e d o c o n s e l h o , d i r i g i u a Esdaile: •—

(*) Embora o fenômeno fosse hipnótico tal expressão sô viria a ser em-
pregada a partir de Braiã.
,18 O S M A R D A N D R A D E

"O relatório do "committee" foi aprovado para divulgação


e o Governador concorda inteiramente com a opinião do Presi-
dente do Conselho, pela qual, no momento, será,- suficiente que
os resultados, por si mesmos, promovam um melhor acatamen-
to da prática mesmérica entre os profissionais e o público, e por
isso, será prematura qualquer atitude do Governo no sentido
de encorajar a sua introdução.

Considerando, porém, a possibilidade de se realizarem as


mais sérias intervenções cirúrgicas sem dor e sofrimento para
os pacientes, é opinião de S. Excia., baseado no testemunho vi-
sual da comissão relatora que as investigações merecem ser fa-
cilitadas, permitindo-lhe prosseguir em seus interessantes ex-
perimentos, sob as mais favoráveis e promissoras circuns-
tâncias.

Assim compreendendo determinou S. Excia., com a sanção


do Governo, conceder ao Dr. E s d a i l e , durante um ano, um pe-
queno hospital experimental bem localizado em Calcutá, afim
de que possa o mesmo, como recomendou o "committee", exten-
der suas investigações à aplicabilidade do recurso descrito a to-
dos os casos médicos e cirúrgicos, e em todos os pacientes, bem
europeus como nativos.

O Dr. E s d a i l e será orientado no sentido de permitir a fre-


qüência ao seu hosjntal de todas as pessoas respeitáveis, especi-
almente médicos e cientistas, praticantes ou visitantes, que de-
sejem apreciar a natureza e os resultados de suas pesquisas. S.
Excia., designará ainda, dentre os médicos oficiais da Presidên-
cia, fiscais, cujo dever será visitar o hospital periodicamente, ins-
pecionado os trabalhos do Dr. Esdaile, sem exercê-los ou neles
interferir, e ocasionalmente ou quanto solicitados, apresentarem
dos mesmos um relatório ao Medicai Board para conhecimento
das autoridades.

Desses relatórios dependerão as futieras intervenções do Go-


verno a respeito do assunto.

Fred. Jas. Halliday


S e c r e t á r i o d o G o v e r n o de B e n g a l a " .
H I P N O S E M É D I C A 19

E m c o n s e q ü ê n c i a f o i p o s t o à d i s p o s i ç ã o d e Esdaile pelo p r a z o de u m
a n o , u m p e q u e n o h o s p i t a l e m C a l c u t á , e m n o v e m b r o de 1846 o n d e o m e s -
m e r i s t a a p l i c a r i a o m a g n e t i s m o s o b o c o n t r o l e o f i c i a l de u m g r u p o de m é -
d i c o s a p o n t a d o s p e l o g o v e r n o : R. Thompson, D. Stewart, J. Jackson, F.
Mouatt e R. 0'Shaughnessy.
T r a b a l h o u Esdaile a r d o r o s a m e n t e e n ã o t a r d o u q u e seus c o l e g a s f i s -
cais estivessem plenamente c o n v e n c i d o s das imensas possibilidades do n o -
vo processo que, inclusive, e como testemunharam diretamente, permitia
as m a i s v a r i a d a s i n t e r v e n ç õ e s c i r ú r g i c a s s e m o m e n o r s o f r i m e n t o p a r a o
paciente, redução considerável do choque cirúrgico e do t r a u m a doloroso
pós-operatório.

U m a n o d e p o i s d e i n s t a l a d a , a c o m i s s ã o de m é d i c o s v i s i t a d o r e s r e l a -
t a v a a o g o v e r n o os e x c e l e n t e s r e s u l t a d o s j á o b t i d o s , m u i t o e m b o r a , j á e m
j u n h o de 1 8 4 7 , seis m e s e s a n t e s , t i v e s s e o p r ó p r i o Esdaile apresentado um
c o m p l e t o r e l a t ó r i o de s u a s a t i v i d a d e s , d o qual d e s t a c a m o s o s e g u i n t e t r e -
c h o : -—

"Por alguns meses estivemos ocupados quase exclusiva-


mente com a cirurgia, o sucesso das operações indolores pra-
ticamente eclipsando os resiátados menos espeiacidosos da orla
clínica. Esses, porém, tornam-se agora progressivamente conhe-
cidos pelo público e sucessos médicos estão já sendo obtidos de
forma encorajadora, bem como casos outros de natureza mais
grave como epilepsia, demência, paralisias e outras afecções
nervosas, dolorosas, prometem compensar nosso labor.
Tais casos, porém, por antigos e inveterados, requerem lon-
go tratamento para marcar alguma resposta e deixar-nos certe-
za dos resultados.
Os casos cirúrgicos por razões bem conhecidas de V. Ex-
cia., são quase todos similares (remoção de enormes tumores
de elefantíase) mas, felizmente, para demonstração do poder
calmante e narcótico do mesmerismo, as intervenções têm sido
aas mais severas e perigosas que se podem realizar no corpo
humano.
U'a maior variedade de casos médicos e cirúrgicos é, no
entanto, desejável e poderá ser facilmente conseguida nos hos-
pitais públicos de Calcutá. Será no campo dos grandes hospi-
20 O S M A E D A N D R A D E

tais com sua maior variedade de pacientes e incidentes que a


utilidade geral do mesmerismo poderá ser melhor e mais rapi-
damente ilustrada...
...Em conclusão desejo pedir a atenção do Governador para
as estatísticas concernentes ao assunto, ponto do máximo in-
teresse para estabelecer a proporção de •mortalidade nas velhas
e novas escolas cirúrgicas.
A esse propósito tenho a honra de juntar uma relação de
todas as intervenções mesméricas realizadas por mim, totali-
zando 133 e espero do Governador os necessários elementos de
comparação com os resultados obtidos nos diferentes hospitais
de Calcutá".

F i n d a r a - s e o p e r í o d o de experiências que havia sido c o n c e d i d o a Es-


daile e de a c o r d o c o m o c o m p r o m i s s o a s s u m i d o f o i f e c h a d o o s e u p e q u e n o
h o s p i t a l de C a l c u t á , a p e s a r d o r e l a t ó r i o f a v o r á v e l apresentado pela co-
missão de visitadores o f i c i a i s . Houve um movimento popular solicitan-
do do g o v e r n a d o r que mantivesse f u n c i o n a n d o o serviço m é d i c o do m e s -
m e r i s t a . I n s i s t i r a m as a u t o r i d a d e s n a r e c u s a . P o r i n i c i a t i v a d o ? n a t i v o s
que, inclusive, responsabilizaram-se pelas despesas de manutenção, foi
fundado u m novo serviço hospitalar para a prática do mesmerismo, cu-
j a d i r e ç ã o f o i e n t r e g u e a Esdaile e m setembro de 1 8 4 8 .
Seis meses depois de estabelecido o n o v o n o s o c ô m i o resolve o g o v e r -
n o i n d i a n o c o n f e r i r a Esdaile melhores oportunidades p r á t i c a s . F e c h a seu
pequeno serviço e o transfere para o Sarkea's Lane Hospital and Dispen-
sary onde o médico britânico poderia associar o mesmerismo à prática
médica c o m u m .
Esdaile, p o r é m , p o r questões de saúde necessita ausentar-se da índia.
D e i x a em seu lugar u m auxiliar dedicado, o p r o f e s s o r de anatomia Webb.
Durante o período em que praticou o m e s m e r i s m o na índia realizou Es-
daile p a r a m a i s de 3 0 0 0 i n t e r v e n ç õ e s s o b h i p n o s e , d a s q u a i s , 3 0 0 d e c i -
rurgia maior (*).
Viaja para Perth, Escócia, em 1851. Tenta prosseguir suas expe-
riências em Sydenham, mais t a r d e . Ali, porém, deram-lhe recepção igual

(*) Maiores detalhes sobre o emprego de hipnose em cirurgia, somando


a experiência de Esdaile, serão fornecidos no capitulo deste livro dedicado à ci-
rurgia .
H I P N O S E M É D I C A 21

à q u e l a q u e h a v i a s i d o c o n f e r i d a a Elliotson, do mais franco combate e des-


dém.. N ã o f a l t o u m e s m o a c o n d e n a ç ã o d o b i l i o s o " L a n c e t " : — "O mes-
merismo é uma farsa demasiado estúpida para merecer qualquer atenção.
C o n s i d e r a m o s a seus sequazes c o m o i m p o s t o r e s e c h a r l a t ã e s . Deveriam
ser expulsos sem piedade das agremiações p r o f i s s i o n a i s . Qualquer mé-
d i c o q u e e n v i a u m p a c i e n t e seu a c o n s u l t a r - s e c o m u m m e s m e r i s t a , de-
veria ser c o n d e n a d o a f i c a r s e m clientes p a r a o resto da v i d a . . . "
Tenta Esdaile inserir comunicações científicas sobre o mesmerismo
n o s ó r g ã o s especializados da I n g l a t e r r a . N ã o o c o n s e g u e . T o d a s as p o r -
t a s se f e c h a m a o p e s q u i z a d o r q u e f o r a c o n s a g r a d o e m t e r r a estranha.
R e ú n e suas o b s e r v a ç õ e s e m u m livro que é dado à publicidade em 1852,
" Introduction of Mesmerism as an Anaesthetic and Curative Agent into
the Hospitais of índia" e encerra o assunto dos editores m é d i c o s ingle-
ses a f i r m a n d o s e v e r a m e n t e : —

"Meu artigo não foi publicado; remeti então um trabalho


mais amplo contendo um panorama de todos os meus casos ci-
rúrgicos. Foi este também rejeitado por sua impraticabilidade.
Ouvi dizer que foi dada como razão para a não publicação
do meu trabalho o fato de que, embora ninguém duvide dos fa-
tos narrados, aplicam-se eles apenas aos nativos da índia.
Mas, pelo que eu saiba, nenhum jornal médico admitiu até
hoje a realidade das operações mesméricas indolores mesmo na
índia, nem inseriu um só dos numerosos casos já verificados
em Londres, Paris, Cherburgo, etc. ..
Tais fatos não são admitidos ou levados ao conhecimento
de outrem por medo das conseqüências. Supondo, porém, que
só aos nativos da índia se aplique o mesmerismo, não seria in-
teressante para os cirurgiões, médicos, fisiologistas e até fi-
lósofos saber porque esses cento e vinte milhões de orientais
(há mesmo quem os suponha macacos!) são tão suscetíveis às
influências mesméricas a ponto de permitirem intervenções ci-
rúrgicas e outros benefícios, naturalmente por disposições he-
reditárias ?
Tem sido dito aos leitores desses jornais que seus colegas
médicos que- se dedicam ao estudo do mesmerismo são tolos ou
charlatães.
22 O S M A R D A N D R A D E

Mas, porque um homem como eu, que jamais pretendeu


ou aceitou clínica particular remunerada possa ser reduzido à
categoria de charlatão, não consigo entender.
Se som.os idiotas, deveríamos ser encorajados a escrever
o suficiente afim de, mais rápida e efetivamente sermos des-
mascarados e expostos.
Estou convencido de que em um ponto concordaremos: to-
dos gostamos de tirar as próprias conclusões e ninguém se de-
ve submeter à venda nos olhos ou a ser conduzido pelo nariz
de pessoas que pagamos para que nos mantenham bem infor-
mados dos novos eventos e do progresso alcançado pela nossa
profissão em todo o mundo.
Pretender que haja uma imprensa médica livre na Grã-
Bretanha é uma pilhéria e uma desilusão.
E a prova disso é que os médicos que depõem sua imaculada
reputação profissional e privada na honestidade de suas reali-
zações, não têm permissão de se fazerem ouvir nos seus órgãos
de classe, como se estivessem contrariando os interesses e as
convicções pessoais dos editores. . ."

9 — BRAID — Nascido em Rylaw House, Fifeshire, James Braid


(1795-1860) foi o p r ó x i m o e g r a n d e passo na história
do hipnotismo. A êle d e v e a h i p n o s e a sua primeira
conceituação realmente científica e fisiológica, despida de e m p i r i s m o s e
idéias absurdas. A Braid d e v e m o s p o r o u t r o l a d o a atual terminologia
e m p r e g a d a p a r a d e s c r e v e r os f e n ô m e n o s de i n i b i ç ã o cortical.
E se f o i u m d i s c í p u l o de Puységur, o b a r ã o Du Potet quem teve a
oportunidade cie l a n ç a r Elliotson no chamado mesmerismo, coube tam-
b é m a u m o u t r o d i s c í p u l o d o m e s m e r i s t a f r a n c ê s , Charles Lafontaine, a
, iniciação de Braid.
O c u p a v a - s e Lafontaine e m d e m o n s t r a ç õ e s de m a g n e t i s m o a n i m a l n a
Inglaterra. A p r i n c í p i o , Braid era radicalmente contrário a tais práti-
cas. Acompanhado de a l g u n s c o l e g a s f o i a u m a das sessões de Lafon-
taine n o f i r m e p r o p ó s i t o de d e s m a s c a r á - l o e p r o v a r a d e s o n e s t i d a d e de
sua atuação. E n t r e o u t r o s , a c o m p a n h a v a m Braid o oftalmologista Wilson
e o D r . Williamson, primeiro professor de H i s t ó r i a Natural do Owens
College, Manchester.
H I P N O S E M É D I C A 23

Lafontaine colocou a uma j o v e m e m estado de sono p r o f u n d o . Esta-


r i a ela r e a l m e n t e a d o r m e c i d a o u a q u i l o n ã o p a s s a v a de u m a f a r s a r e p u g -
nante? A paciente foi cercada pelos curiosos, entre os quais Braid.
Wilson, o f t a l m o l o g i s t a , l e m b r o u - s e de e x a m i n a r as p u p i l a s d a p a c i e n t e .
L e v a n t o u - l h e as p á l p e b r a s . Fortemente contraídas. Discretamente, Braid
t o m o u u m a l f i n e t e e o i n t r o d u z i u n o l e i t o u n g u e a l de u m d e s e u s d e d o s .
Não houve a menor reação dolorosa, nenhum gesto, nem a mais leve
contração muscular.
Braid que f o r a à reunião no único interesse de desmoralizar a La-
fontaine, d e lá v o l t o u p e n s a n d o u m p o u c o n o a s s u n t o .
O mesmerismo era a i n d a a esse t e m p o — vencendo a opinião con-
t r á r i a de Custódio de Faria — aceito c o m o resultante de f o r ç a s estra-
nhas e sobrenaturais, derivadas dos astros através fluidos especiais de
q u e se i m p r e g n a v a m os m e t a i s e o s a n i m a i s .
P a r a Braid, embora inexperiente, tal f u n d a m e n t o n ã o lhe parecia
muito racional.
N u m a p r ó x i m a reunião m e s m é r i c a ainda propiciada pelo m e s m o La-
fontaine v i r i a Braid a assistir acontecimento diferente, marco inicial
de suas investigações que tanta contribuição trouxeram ao estudo do
hipnotismo científico. O paciente magnetizado mostrou-se incapaz, em
c e r t o m o m e n t o , de a b r i r os o l h o s c o m o se s u a s p á l p e b r a s e s t i v e s s e m c o -
ladas ou e x t r a o r d i n a r i a m e n t e fatigadas.
Tal incidente alertou a curiosidade de Braid. Pareceu-lhe inicial-
m e n t e q u e e s t a v a ali a c a u s a d o f e n ô m e n o . O u se n ã o e r a a q u e l e e x a t a -
mente o p o n t o capital, de qualquer m a n e i r a a exaustão palpebral e a
catalepsia observadas deveriam ter qualquer participação no desencadea-
m e n t o do transe m e s m é r i c o .
Voltando à residência encetou experiências c o m sua p r ó p r i a esposa,
um criado e um a m i g o . Fê-los fitarem fixamente u m determinado pon-
t o b r i l h a n t e até q u e s e u s o l h o s se e n t r e g a s s e m e x t e n u a d o s a o repouso.
E a p a r t i r desse i n s t a n t e t e v e e m s u a s m ã o s , h i p n o t i z a d o s , a o s seus p a -
cientes familiares.
Primeira conclusão de Braid: o fenômeno do m e s m e r i s m o era pu-
ramente s u b j e t i v o e não dependia de qualquer p o d e r m á g i c o , de n e n h u m a
i n f l u ê n c i a a s t r a l , de q u a l q u e r f l u i d o m i n e r a l o u a n i m a l , n e m s e q u e r da
influência pessoal do operador. Conclusão imediata: o mesmerismo ou
m a g n e t i s m o o u q u e o u t r o n o m e t i v e s s e o a c o n t e c i m e n t o e r a de n a t u r e z a
f í s i c a , m e c â n i c a , f u n c i o n a l e se d e v i a t ã o s o m e n t e a u m a a l t e r a ç ã o p r o -
24 O S M A E D A N D R A D E

duzida nos órgãos dos sentidos, especialmente nos da visão, levando a


u m e x g o t a m e n t o do centro visual pela estimulação continuada e m o n ó -
tona. E ainda m a i s : o estado de sono mesmérico não era propriamente
um sono fisiológico. N e m m e s m o era u m sono no verdadeiro sentido da
palavra. A l g o parecido, porém individualizado.
I n s i s t i u Braid p r o v o c a n d o estados m e s m é r i c o s em pacientes e f a m i -
liares. E introduziu um procedimento inicial que ainda hoje usamos*
e m b o r a algo m o d i f i c a d o , o da f i x a ç ã o do olhar (*).
R e u n i u t o d a s as s u a s e x p e r i ê n c i a s e o b s e r v a ç õ e s p e s s o a i s e s o l i c i t o u
da B r i t i s h A s s o c i a t i o n , Medical Section, inclusão do seu n o m e e m p a u t a
para apresentação de u m trabalho a respeito. Recusaram-lhe essa opor-
tunidade. Havia coisas mais importantes a tratar. O tempo que lhe
seria destinado f o i oferecido a u m indivíduo que apresentou u m a i m p o r -
tantíssima comunicação sobre como diferençar as aranhas novas das
velhas pelo exame dos respectivos palpos...
Isso não impediu que alguns m e m b r o s da m e s m a Associação, em
r e u n i ã o p a r t i c u l a r , o u v i s s e m d e Braid o seu relato. E m 1843 publica o
c i r u r g i ã o d e M a n c h e s t e r o s e u "Neurypnology or the Rationale of Ner-
vous Sleep" e m q u e l a n ç a u m p r i m e i r o e s b o ç o de n o m e n c l a t u r a p a r a a
nova ciência. Certo de que' o f e n ô m e n o e m causa era d e v i d o a u m tipo
d e sono nervoso, b a t i s a - o d e sono neuripnológico (de neuros e hipnos) e
à ciência de p r o v o c á - l o dá o n o m e de n e u r i p n o l o g i a , simplesmente abre-
v i a d a p a r a hipnologia. A s s i m n a s c e r a m as e x p r e s s õ e s a i n d a h o j e u s a d a s
hipnotismo, hipnótico, etc.
L a n ç a d a a t e r m i n o l o g i a e m t e l a v e i o a c o n c l u i r Braid que o h i p n o -
tismo não era b e m , c o m o pensara, uma espécie de sono e sim, algo p r ó -
prio, característico, independente. Pensou em mudar-lhe o nome não mais
o conseguindo pois a expressão j á se consagrara.
Nova e importante observação foi feita posteriormente ainda por
Braid. A n a l i s a n d o m e l h o r a seus pacientes, v e r i f i c o u que a i n d u ç ã o do
estado hipnótico dependia de u m a i m p o r t a n t í s s i m a contribuição pessoal
do o p e r a n d o : a concentração mental n u m a idéia ou n u m a vontade, ou
seja, o d o m í n i o da sua atenção. E m a i s : q u e e m tal s i t u a ç ã o , o b t i d a a
hipnose, poder-se-ia c o m facilidade plantar idéias e vontades novas no c é -
r e b r o do cliente. T a l p r o p r i e d a d e — Braid talvez não o tenha percebido

(*)" V e j a p r o c e d i m e n t o da f i x a ç ã o d o olhar, a r t i g o s 49 e 50.


H I P N O S E M É D I C A 25

de imediato — viria a constituir o principal recurso do hipnotismo como


a r m a terapêutica nos chamados processos de derivação emocional.
Narra Williamson uma das experiências realizadas por Braid em
sua c o m p a n h i a e que s e r v i r a m de base p a r a algumas das suas mais a r r o -
j a d a s concepções das conseqüências do estado hipnótico. A um paciente
c o n d u z i d o ao estado de sono f o i entregue u m lápis e u m c a d e r n o . Pediu-
l h e Braid que escrevesse seus p r ó p r i o s n o m e e endereço. Com facilidade
o p a c i e n t e g r a f o u : John Ellis, Lloyd Street, Manchester. Após desperto
f o i incapaz de dizer o que tinha feito. Novamente induzido, outra vez
perguntou-lhe Braid o que esteve f a z e n d o recentemente. E desta vez,
s e m v a c i l a ç ã o , a f i r m o u - l h e John: escrevi o meu nome e o meu endereço.
Dessa — escrita automática — e de outras observações feitas dentro
do mais rigoroso espírito científico, e x t r a i u Braid algumas conclusões
s o b r e o e s t a d o h i p n ó t i c o q u e s ã o v á l i d a s a i n d a h o j e e m b o r a n ã o as s o u -
besse sequer explicar c o m o c o n f i r m o u Williamson: " T a n t o quanto sabe-
mos, tais fatos não t ê m uma explicação satisfatória".

a) N ã o há qualquer fundamento no mecanismo mesmérico. Ne-


n h u m paciente sofre qualquer influência fluídica derivada de
astros, da atmosfera ou de outras pessoas. A causa do sono
h i p n ó t i c o , a v e r d a d e i r a causa está dentro de nós m e s m o s . Tam-
bém não há nenhuma razão para admitir-se a influência do
poder pessoal do operador na obtenção do chamado transe m e s -
mérico.

b) A indução hipnótica é obtida pela f a d i g a excessiva dos ó r g ã o s


dos sentidos, especialmente o da visão. Tal exaustão leva os
centros nervosos sensoriais a u m estado semelhante ao do sono.
N ã o há, no entanto, real necessidade de que o paciente durma
p a r a que lhe p r o v o q u e m o s catalepsias, amnésias, anestesias, etc.

c) A fadiga de tais órgãos sensoriais é conseguida sempre que


obrigamos o paciente a receber estimulação continuada, monó-
tona e persistente durante u m certo tempo.

d) É indispensável, na sua obtenção, que o paciente concentre toda


a sua atenção n o o b j e t i v o e m causa. Conseguida a hipnose po-
demos introduzir idéias n o v a s no c é r e b r o da pessoa. Ela fará
t u d o a q u i l o q u e lhe d e t e r m i n a r m o s .
26 O S M A R D A N D R A D E

e) O que u m paciente faz quando hipnotizado esquece quando acor-


dado e só voltará a r e c o r d a r nas m e s m a s condições de a d o r m e -
cimento provocado.

f) Os f e n ô m e n o s o b t i d o s de a n e s t e s i a , a m n é s i a , e t c , s ã o devidos
a u m a s i t u a ç ã o e s p e c i a l d e i n i b i ç ã o de u m a p a r t e d o c é r e b r o d o
paciente. E m tais condições, usando-se impressões mentais de
intensidade igual àquelas percebidas normalmente pelos ó r g ã o s
dos sentidos, tais impressões poderão permanecer por tempo
indeterminado.

g) Finalmente: a hipnose como recurso terapêutico não é remé-


dio universal!

Q u a n d o e s t u d a r m o s a n e u r o f i s i o l o g i a da h i p n o s e v e r e m o s q u a n t o d e
v e r d a d e i r o se c o n t é m n a s c o n c l u s õ e s e n a s o b s e r v a ç õ e s de James Braid
q u e . m e s m o i g n o r a n d o o m e c a n i s m o d a s r e a ç õ e s q u e p r o v o c a v a , t e v e , de
maneira altamente objetiva, a concepção mais científica até então do
problema. D e u m a o u de o u t r a f o r m a a m a i o r i a d e s s a s o p i n i õ e s de Braiã
são verdadeiras. N ã o p o d e r i a êle a v a n ç a r a l é m d o s e u t e m p o . Fez, pois,
d e n t r o dele, o m á x i m o que estava ao seu alcance.
Indispensável dizer que, como sempre acontece, os trabalhos de
Braid passaram despercebidos na Inglaterra. Em compensação, alguns
a n o s m a i s t a r d e os i n g l e s e s a c l a m a r a m e p r e s t a r a m u m s e m n ú m e r o cie
h o m e n a g e n s a u m a u t o r f r a n c ê s , Azara de B o r d e a u x . E que mérito foi
o de Azam? D i s c í p u l o de Braid, l i m i t o u - s e a d i v u l g a r os seus e n s i n a m e n -
tos!
I n i c i a - s e Azam e m 1 8 5 9 e u m r e s u m o de s e u s t r a b a l h o s c o m vastas
referências e citações do cirurgião inglês f o i publicado nos " A r c h i v e s de
Medicine", em 1860. Pouco tempo depois o conceituado neurologista
Broca, q u e h a v i a o b t i d o m a r a v i l h o s o s r e s u l t a d o s e m p r e g a n d o os e n s i n a -
m e n t o s de Braid, comunica uma pesquisa sobre hipnotismo à Academia
d a s C i ê n c i a s , e n q u a n t o Velpeau leva ao m e s m o colégio uma observação
p e s s o a l i n t i t u l a d a "Neurypnology"'. Tais teses f o r a m devidamente consi-
deradas por um conselho composto de m e m b r o s das quatro secções do
"Institute".
Em 1874 o D i c i o n á r i o de M e d i c i n a aceita, praticamente, todos os
f a t o s c i t a d o s p o r Braid i n s e r i n d o u m t r a b a l h o e s c r i t o p o r Matias Duval
e n q u a n t o n o a n o i m e d i a t o Charles Richet, que viria mais tarde a intro-
H I P N O S E M É D I C A 27

duzir Charcot no terreno da h i p n o s e , e s c r e v e a respeito no "Journal


d ' A n a t o m i e et de P h y s i o l o g i e " .
Segue repercutindo de m a n e i r a alentadora para Braid o conjunto
de s u a o b r a . Seu p r i m e i r o t r a d u t o r f o i Preyer, professor de fisiologia
da U n i v e r s i d a d e d e J e n a q u e , e m 1 8 8 1 p u b l i c a " A descoberta do hipno-
tismo", condensação das contribuições de Braid, e traz como apêndice
i n f o r m a ç õ e s e n v i a d a s p o r este a Azam. E m 1883 aparece e m F r a n ç a , a
tradução de Jules Simon, "Neurypnologie". 1869 m a r c a o surgimento
de a l g u n s t r a b a l h o s de Bramwell r e f e r i n d o as p e s q u i s a s e c o n c l u s õ e s de
Braid nos " P r o c e e d i n g s of the Society f o r P s y c h i c a l R e s e a r c h " e na "Re-
vue de Vhypnotisme".

10 — LIÉBEAULT E BERNHEIM — O p r o b l e m a da i n t e r p r e t a ç ã o d o
m e c a n i s m o de p r o d u ç ã o dos f e -
nômenos hipnóticos continuava
em discussão. A v a n ç a r a m u i t o , s e m d ú v i d a , Braid, estabelecendo novos
princípios e apagando idéias ridículas e s u p e r a d a s . Conforme, porém,
a o p i n i ã o de Williamson, n ã o se h a v i a a i n d a e n c o n t r a d o u m a explicação
convincente e satisfatória para a gênese dos f e n ô m e n o s hipnóticos.

Ambroise Auguste Liébeault e Hyppolyte Marie Bernheim de u m l a d o


Jean Martin Charcot de o u t r o , h a v e r i a m d e t r a v a r a p r ó x i m a batalha
e m b u s c a d a v e r d a d e . E d o e n t r e c h o q u e d a s o p i n i õ e s d a s e s c o l a s de N a n c y
e S a l p e t r i é r e , p r a t i c a m e n t e n a d a r e s t a r i a de p o s i t i v o e s ó l i d o .

Liébeault r e u n i u t o d a s as i n f o r m a ç õ e s e i d é i a s d e s d e Mesmer a Braid.


T e n t a d o a i n v e s t i g a r o a s s u n t o p o r c o n t a p r ó p r i a u s o u de seu indisfar-
çável prestígio entre os clientes p a r a fazê-los aderir à causa do h i p n o t i s -
mo. Se os t r a t a v a p e l o s p r o c e s s o s c o m u n s , d i z i a - l h e s , c o b r a v a o trata-
m e n t o da f o r m a c o m u m . Se e s t i v e s s e m i n t e r e s s a d o s na c u r a hipnótica
o t r a b a l h o n a d a lhes c u s t a r i a . C o m tal a r g u m e n t o j u n t o u Liébeault um
b o m material humano para praticar. E se a s s i m c o m e ç o u , a s s i m se m a n -
t e v e p o r m a i s de 2 0 a n o s , j a m a i s r e c e b e n d o q u a l q u e r p a g a p e l o seu t r a -
balho hipnótico. Em 1864 ingressou em N a n c y onde continuou a levar
a d i a n t e os e n s i n a m e n t o s v i n d o s de M a n c h e s t e r .

D u r a n t e d o i s a n o s d e d i c o u t o d a s as s u a s h o r a s de f o l g a a e s c r e v e r
u m l i v r o s o b r e a h i p n o s e . "Du sommeil et des états avalogues, conside-
res cm point de vue de l'action de ¡a moróle sur le phijsique". Desse
livro conseguiu vender exatamente U M exemplar!
28 O S M A E D A N D R A D E

P a r t i n d o d o s p r i n c í p i o s d e Braid d e s e n v o l v e u Liébeault novas teo-


r i a s a r e s p e i t o d a h i p n o s e , t o d a s elas g i r a n d o e m t o r n o d e u m p o n t o de
vista c e n t r a l : o da sugestão.
Bernheim a l i o u - s e a Liébeault de m a n e i r a p u r a m e n t e acidental. S o -
lidário de início com uma grande maioria de colegas, considera Lié-
beault, n ã o u m c h a r l a t ã o c o m o Mesmer, não um bisonho como Puységur,
m a s u m tolo ingênuo que ainda acredita e m m i r a g e n s . D e conduta e h o -
nestidade inatacáveis para com os doentes dos quais jamais auferira
q u a i s q u e r p r o v e n t o s , Liébeault não merecia os títulos de charlatão ou
farsante. Seria, quando muito — e assim o v i a m os colegas — " u m bom
sujeito".
U m caso rebelde de ciática c o m mais de 6 a n o s de duração veio a p r o -
ximar os dois. H á s e i s m e s e s Bernheim o tratava sem resultados. A
c o n s e l h o s , o d o e n t e p r o c u r a Liébeault. E 24 horas depois volta a Ber-
nheim. .. curado!
Bernheim procura o seu modesto colega para inteirar-se de seus
métodos. F a z - s e s e u d i s c í p u l o e c o m p a n h e i r o d e t o d a s as h o r a s . De 1882
a 1884 coleta observações. L a n ç a e n t ã o a p r i m e i r a p a r t e d o seu livro
"De la Suggestion" c o m p l e t a d o e m 1 8 8 6 p e l a s u a s e g u n d a p a r t e "La The-
rapéutique Suggestive". E , p i t o r e s c o : se d o l i v r o de Bernheim só se v e n -
dera u m exemplar, o original do discípulo exgota-se rapidamente e de
todos os c a n t o s a f l u e m médicos a Nancy a fim d e se e n t r e g a r e m ao
estudo da terapêutica sugestiva.
E m t a i s l i v r o s c o m o n o d e Liébeaidt, o tema central é o efeito da
s u g e s t ã o , m e l h o r , d a h é t e r o - s u g e s t ã o , n a o b t e n ç ã o de r e s u l t a d o s t e r a p ê u -
ticos. A s s i m a g i r i a o h i p n o t i s m o d e Braid. E q u e se t e r i a p o r sugestão
n o entender desses a u t o r e s ? E x p l i c a a escola de N a n c y : sugestão é o
ato pelo qual se faz aceitar pelo cérebro de outrem uma idéia qualquer.
E m determinados estados fisiológicos — acrescentavam — acontece
uma absoluta inércia intelectual, um como que esvaziamento cerebral
de idéias p r ó p r i a s . C o m as v i a s l i v r e s é-nos f á c i l , e n t ã o , d e p o s i t a r em
tais mentes uma idéia planejada que logo adquire f o r o s de cidadania,
g a n h a f o r ç a irresistível e age de m a n e i r a impetuosa.
A s u g e s t ã o a v e n t a d a p o r Liébeaidt e Bernheim começaria no mo-
m e n t o e m q u e se p e d e a o p a c i e n t e f i t a r u m p o n t o l u m i n o s o à maneira
d e Braid. O s i m p l e s f a t o — d i z e m — d e se f a z e r a s o l i c i t a ç ã o a o p a c i e n t e
j á é u m a s u g e s t ã o d e f a d i g a e s o n o . S a b e êle p o r q u e e s t á ali, o q u e dele
s e p r e t e n d e , o q u e êle m e s m o , d e si, e s t á q u e r e n d o . A p r e s e n ç a do h i p n o -
H I P N O S E M É D I C A 29

tizador é quase dispensável. A voz muito mais. Levante-se-lhe o braço


e o o p e r a n d o p e r c e b e r á q u e n ó s d e s e j a m o s m a n t e n h a êle tal a t i t u d e . Êle
a manterá: catalepsia.
E assim p o r diante.
M a i s q u e i s s o , e v i d e n t e m e n t e , j á h a v i a d i t o Braid. Aquilo, porém,
que o mestre de Manchester n ã o completou, t a m b é m n ã o o f i z e r a m seus
discípulos franceses. Que é fácil implantar uma idéia no cérebro do
hipnotizado, que lhe p o d e m o s dar sugestões úteis, que f a r á aquilo que
i n s i n u a r m o s , isto é coisa p a c í f i c a . Mas a dúvida principal mantinha-se
irrespondida. C o m o f u n c i o n a o c é r e b r o ? C o m o se a p a g a m as i d é i a s p r ó -
prias liberando o caminho para a penetração de i n t e r e s s e s ofertados?
P o r que vias cerebrais c a m i n h a m tais sugestões quando a g e m à distân-
c i a l e v a n d o a o s f e n ô m e n o s d e a n e s t e s i a ? O n d e se d e p o s i t a m e l a s , t a n t o
as n o s s a s m e s m a s q u a n t o as q u e n o s s ã o s u g e r i d a s ? P o r q u e o cansaço
visual somado ou não à palavra leva a u m estado semelhante ao sono, o
chamado sono lúcido? Estas e tantas outras perguntas f i c a r a m sem res-
posta. C o m o c o n t i n u a r i a m s e m r e s p o s t a e a t é m e s m o se tumultuariam
u m pouco mais do outro lado, em Paris, onde, na Salpetriére, pontificava
" o m e s t r e d a s t e r ç a s - f e i r a s " , Jean Martin Charcot.

11 — CHARCOT — U m v í c i o de o r i g e m d e s t r u i u t o d o o trabalho de
Charcot. Senão, vejamos: vivia êle dedicado
exclusivamente ao trato das histéricas na sua e n -
f e r m a r i a d a S a l p e t r i é r e , s ó a elas v e n d o , c o m p l e t a m e n t e i m p r e g n a d o de
suas reações. Jamais hipnotizou, êle m e s m o , a quem quer que seja.
T o d a s as p a c i e n t e s e r a m i n d u z i d a s p e l o s a s s i s t e n t e s e b a s t a v a - l h e dar-
lhes, s e m p r e , o sinal c o n d i c i o n a d o r do sono p a r a que o estado hipnótico
se precipitasse. T o d a s as s u a s c o n c l u s õ e s f o r a m t i r a d a s , p o r evidência,
a p a r t i r das manifestações de histéricas hipnotizadas p o r outrem.
D e trabalho tão unilateral, que se p o d e r i a esperar cientificamente?
P a r a Charcot a hipnose era uma manifestação histérica. Claríssi-
m o ! N e m p o d i a s e r de o u t r a m a n e i r a . J a m a i s êle v i r a u m t r a n s e h i p n ó -
tico em pessoas não histéricas!
A tal a b s u r d o o b j e t a v a Liébeault d i z e n d o q u e h á m a i s de v i n t e a n o s
hipnotizava s e u s p a c i e n t e s , t i p o s os m a i s v a r i a d o s , p r i n c i p a l m e n t e ho-
mens do campo. J a m a i s e n c o n t r a r a e n t r e eles u m s ó h i s t é r i c o . Falso,
p o i s , q u e só e s t e s s e d e i x a s s e m h i p n o t i z a r . Tal argumento não demovia
a i n f l e x i b i l i d a d e d e Jmn Martin. E r a m , n a t u r a l m e n t e , os p a c i e n t e s de
30 O S M A E D A N D R A D E

Liébeaidt e Bemheim histéricos em potencial e a qualquer momento se


manifestariam os s e u s p r i m e i r o s sintomas. Mas... e aqueles que em
m a i s de v i n t e a n o s j a m a i s t i v e r a m t a i s c r i s e s ? N ã o i m p o r t a ; qualquer
d i a as t e r ã o !

Fig. 3 — Jean Martin CHARCOT


H I P N O S E M É D I C A 31

I m p o s s í v e l c r e d i t a r a Charcot a menor soma.de confiança. — "Fora


d e P a r i s — e s c r e v e u o p r o f e s s o r Delboeuf — a e s c o l a d e S a l p e t r i é r e está
m o r t a e o conflito está j u l g a d o " .
N a s e s s ã o de 2 0 de j a n e i r o de 1 8 9 1 n a S o c i e d a d e de H i p n o l o g i a , Ba-
binski t e n t a d e f e n d e r Charcot insistindo no componente histérico do h i p -
notismo. E vê-se obrigado a sustentar — a n t e os f a t o s — que n u m de-
t e r m i n a d o d i a , n a c l í n i c a de Bemheim havia 72 doentes histéricos. Pois
a t o d o s n ã o t i n h a êle c o n s e g u i d o hipnotizar?
Em 1889, comparecendo ao congresso de Psicologia Fisiológica,
Forel, da Suíça, assesta suas baterias contra S a l p e t r i é r e : " S o u obrigado
a p r o t e s t a r c o n t r a a p r o p o s i ç ã o d o D r . Janet que quer levar o h i p n o t i s m o
para a histeria. É absolutamente, inexato. P a r a não falar dos D r s . Lié-
beault e Bernheim, d e N a n c y , eu q u e r o l e m b r a r q u e Wetterstrand hipno-
tizou 4.000 pessoas e m S t o c k o l m no espaço de três anos e os refratários
constituíram uma rara exceção. Os e n f e r m e i r o s e enfermeiras do meu
asilo de Zurich são quase todos muito sugestionáveis, m e s m o no estado
de vigília, alucináveis. E o S r . Janet há de c o n c o r d a r que eu n ã o vou
acolher histéricos para enfermeiros de u m asilo d e a l i e n a d o s . E mais:
é c o m o c é r e b r o q u e se o p e r a p a r a r e a l i z a r f e n ô m e n o s h i p n p t i c o s e o s
c é r e b r o s s ã o t a n t o m a i s . f á c e i s de i m p r e s s i o n a r q u a n t o s ã o m a i s sadios.
Os c é r e b r o s dos histéricos, agitados e volúveis, cheios de c a p r i c h o s , r e p e -
lem às vezes as sugestões, ao passo que o m e s m o não acontece, e m geral,
c o m os i n d i v í d u o s n ã o n e v r ó t i c o s , q u e p e n s a m c o m l u c i d e z , c o m clare-
z a , s e m c o m p l i c a ç õ e s b i z a r r a s , s e m as v e r d a d e i r a s depravações intelec-
tuais dos neuróticos em g e r a l " .
A s d e d u ç õ e s de Charcot, se n ã o p e r t u r b a r a m a e v o l u ç ã o d o h i p n o t i s -
m o , p e l o m e n o s c o n s t i t u í r a m u m s e n s í v e l a t r a s o n a e v o l u ç ã o d e seu d e s e n -
volvimento científico. Todos aqueles q u e se d e d i c a m à hipnose sabem
comprovadamente q u e o s h i s t é r i c o s s ã o j u s t a m e n t e os p i o r e s pacientes.
C o n f o r m e d i z i a Braid, e x i g e - s é d o o p e r a n d o , q u e h a j a e n t r e êle e o o p e -
rador uma ligação atencional, A tal l i g a ç ã o , h o j e d e n o m i n a d a "rapport"
e apoiada num processo de i n i b i ç ã o cortical facilmente explicável, não
se a t ê m o s h i s t é r i c o s , os n e u r ó t i c o s , os d é b e i s m e n t a i s , os m e n o r e s de 3
a 4 anos de idade. C o m o c o n c e b e r , p o i s , c o m Charcot, que a hipnose seja
u m a m a n i f e s t a ç ã o h i s t e r ó i d e se s ã o j u s t a m e n t e os h i s t é r i c o s os q u e m e -
n o s se d e i x a m inibir?
H á quem. c o n s i d e r e a h i p n o s e u m j o g o d e i m a g i n a ç ã o . E até certo
p o n t o o é. Os h i s t é r i c o s n ã o e s t ã o j a m a i s i n t e r e s s a d o s n a s i d é i a s e n a
32 O S M A R D A N D R A D E

i m a g i n a ç ã o de n i n g u é m . A eles j á lhes b a s t a m as próprias idéias, tumul-


tuadas, desordenadas e confusas. Só quem pratica a hipnose rotineira-
mente, c o m o nós, pode saber o quão difícil é conseguir nos histéricos
u m a fase, leve que seja, da inibição hipnótica.
P e l a sua n o t o r i e d a d e , p e l o c o n c e i t o a l c a n ç a d o n o c a m p o da neuro-
l o g i a , p e l a s p o p u l a r e s s e s s õ e s d a s t e r ç a s - f e i r a s às q u a i s t o d a P a r i s acor-
r i a p a r a d i v e r t i r - s e c o m as d e m o n s t r a ç õ e s t e a t r a l e s c a s p r o p i c i a d a s pelo
m e s t r e e s e u s a s s i s t e n t e s , Charcot grangeou, é certo, u m lugar na histó-
ria do h i p n o t i s m o . F o i o seu D o n Quixote!

12 — A GRANDE TRÉGUA — P e l o q u e se p o d e d e p r e e n d e r d e s t e r e -
passo histórico, pouquíssima foi a con-
tribuição alcançada até então no sen-
t i d o d e se e s t a b e l e c e r e m a s s u a s v e r d a d e i r a s bases neurofisiológicas e
o seu m e c a n i s m o de a ç ã o . D e Charcot aos princípios do século X X muito
p o u c o h o u v e digno de m e n ç ã o . A q u i e ali u m t r a b a l h o a v u l s o , u m a n o v a
contribuição, um regresso aos m e s m o s problemas q u e se s i t u a v a m em
t o r n o d e James Braid.
E m 1891 a British Medicai Association designou u m a comissão p a r a
investigar a natureza do f e n ô m e n o h i p n ó t i c o , seu v a l o r c o m o agente t e r a -
pêutico e as indicações do seu uso. N o c o n g r e s s o a n u a l de 1 8 9 2 , a c o -
m i s s ã o a p r e s e n t o u s e u r e l a t ó r i o de o n d e s e p o d e m d e s t a c a r c o m o mais
i m p o r t a n t e s , os seguintes i t e n s : —

a) estavam convencidos da autenticidade dos fenômenos hipnó-


ticos ;
b) não havia motivos para aceitar a teoria do magnetismo animal;
c) entre os fenômenos conseguidos através a hipnose, situavam -
se, s e m dúvida, a alteração da consciência, limitação temporá-
r i a d a v o n t a d e , m a i o r r e c e p t i v i d a d e às s u g e s t õ e s e s t r a n h a s , i l u -
sões, alucinações, exaltação da atenção e p e r m a n ê n c i a útil de
sugestões pós-hipnóticas;

d) entre os f e n ô m e n o s físicos o b s e r v a d o s , p o d i a m ser notadas m u -


danças vasculares, anestesia, hiperestesia, catalepsia, profundi-
dade respiratória, etc.

e) o termo " h i p n o t i s m o " não traduz b e m a natureza do fenômeno,


j á que este não parece semelhante ao sono;
H I P N O S E M É D I C A 33

f) estava convencida a comissão de q u e a h i p n o s e é um eficaz


agente terapêutico no alívio de dores, no tratamento da e m b r i a -
guez e na possibilidade de r e a l i z a ç ã o de a t o s cirúrgicos sem
sofrimento;

g) a comissão, finalmente, é de opinião que a hipnose deve ser


usada exclusivamente por médicos para fins terapêuticos, so-
m e n t e e m p a c i e n t e s d o s e x o m a s c u l i n o e, q u a n d o e m m u l h e r e s ,
a p e n a s n a p r e s e n ç a d e f a m i l i a r e s ou d e p e s s o a s d o m e s m o s e x o ,
condenando veementemente quaisquer exibições recreativas,
populares, teatrais de hipnotismo.

C o m o a d v e n t o da a n e s t e s i a q u í m i c a e s u a v u l g a r i z a ç ã o a hipnose
e n t r o u e m f a s e de r e c e s s o , j á q u e , a i n d a n á o b e m e s t a b e l e c i d a s as s u a s
bases fisiológicas e neurológicas, era prematuro tentar usá-la com su-
cesso na rotina clínica.
Seu g r a n d e e m p r e g o , sua m a i o r aplicação v i n h a sendo j u s t a m e n t e a
analgesia obtida nas intervenções cirúrgicas. A introdução da psicaná-
lise d e u m l a d o , o e s t a b e l e c i m e n t o d a e s c o l a p s i c o s s o m á t i c a de o u t r o , c r i a -
v a m u m c e r c o e m t o r n o d o s p r o b l e m a s d i t o s de o r d e m e m o c i o n a l , a m b o s
apoiados em bases falsas — uma delas, — , convencionais — a outra —,
m a s bons recursos em falta de melhores.
A primeira guerra mundial fez voltar, por instantes, a hipnose, ao
arsenal terapêutico quando de c h o q u e s e neuroses de c o m b a t e . A se-
gunda g u e r r a mundial, p o r é m , faria reavivar-se o interesse pelo h i p n o -
tismo. Em primeiro lugar porque a falta de recursos medicamentosos
r
-m m u i t o s c a m p o s de luta e d e c o n c e n t r a ç ã o , o b r i g o u a l g u n s m é d i c o s a
realizar u m n ú m e r o vultoso de intervenções cirúrgicas sob indução h i p -
n ó t i c a ; em segundo porque, estabelecidas j á então, e m princípio, as bases
neurofisiológicas do fenômeno inibitório, mostrou-se o hipnotismo de
Tir.prêgo m a i s s e g u r o , d i r e t o , i m e d i a t o e racional.
H o j e , e m i n ú m e r o s c a m p o s d a m e d i c i n a , da d e r m a t o l o g i a , d a o b s t e -
trícia, d a o d o n t o l o g i a e da p s i q u i a t r i a , a h i p n o s e q u a n d o b e m c o m a n d a d a
I i ::a-se u m a g e n t e d e v a l o r n o " a r m a m e n t a r i u m " de m é d i c o s e d e n t i s t a s .
31 O S M A E D A N D R A D E

REFERÊNCIAS (*)

1 —• A L B U Q U E R Q U E , Medeiros: Hipnotismo. — Editora Conquista, 5. a


edição,
R i o de J a n e i r o .
2 — AMBROSE, G. e NEWBOLD, G. — Handbook of Medical Hypnosis. —
Baillière Tindall and Cox, 1956, L o n d r e s .

3 — BRAMWELL, J.M. — Hypnotism. — The Julian Press, Inc., 1903, New-


York. -,.«
4 —• D E L E U Z E , F. — Histoire Critique du Magnétisme Animal. — Hypolyte
Baillière, P a r i s , 1 8 1 9 .
5 — G I N D E S , B . — New Concepts of Hypnosis. — G e o r g e A l l e n and U n w i n Ltd.,
1953, Londres.
6 — VAN PELT, S.J. — Lid y el Hipnotismo. — Ed. A.H.R., B a r c e l o n a , 1956.

(•' )
::
Os a u t o r e s e o b r a s c i t a d o s nas r e f e r ê n c i a s de u m dos c a p í t u l o s , n a o serão
repetidos em o u t r a s , m e s m o q u a n d o também consultados — N.A.

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