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Tilly Cap2 PDF
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990-1992
CHARLES TILLY
T radução
A E U R O P A IN E X IS T E N T E
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Figura 2.1 A E uropa em 406 d.C. (adaptado de C olin M cEvedy, The Penguin A tla s o f M edieval H istory,
Penguin Boolcs, 1961. C orpyright © 1961 Colin M cEvedy).
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N o entanto, nenhum desses nom es de lugar m eio fam iliares poderia disfarçar
a enorm e fragm entação de soberania que então predom inava em todo o território
que m ais tarde se tornaria a E uropa. Os im peradores, reis, príncipes, duques, califas,
sultãos e outros potentados de 990 d.C. reinaram com o conquistadores, extorqui-
dores d e tributos e arrendatários de im postos, e não com o chefes de estado que con
trolavam duradoura e densam ente a vida dentro de seus dom ínios. A lém do m ais,
dentro de suas ju risd içõ es, antagonistas e pretensos subordinados usaram com u-
m ente a força arm ada em seus próprios interesses e dispensaram pouca atenção aos
interesses de seus soberanos nom inais. E os exércitos particulares proliferaram em
g ra n d e p a rte do c o n tin e n te . E m nen h u m lu g a r d a E u ro p a e x is tia alg o q u e se
assem elhasse a um a nação centralizada.
Figura 2.2 A E uropa em 998 (adaptado de Colin M cEvedy, The Penguin A tla s o f M edieval H istory,
Penguin B ooks, 1961. C opyright © 1961 Colin M cEvedy).
D entro do anel form ado por esses estados alastrados e efêm eros, a soberania
fragm entou-se m ais ainda, ao m esm o tem po que centenas de principados, bispados,
cid a d es-esta d o e o u tras au toridades exerciam um controle su p erp o sto so b re as
pequenas áreas interioranas em volta de suas capitais. N a passagem do m ilênio, o
papa, o im perador bizantino e o sacro im perador rom ano reclam avam a m aior parte
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da pen ín su la italiana, m as, na verdade, quase toda cidade im portante e seu interior
adjacente operava co m o se fosse um agente político livre. (E m 1200 d.C., som ente
a p e n ín su la ita lia n a co m p re en d ia du zen tas ou trezentas cid a d es-esta d o d istintas
[W aley 1969: 11].) S alvo pela relativa u rbanização das terras m uçulm anas, a co rre
lação en tre o tam anho dos estados e a densidade das cidades era negativa: onde as
cid ad es pulularam , a soberania se esm igalhou.
A d ia n te c o m e ç a rá a se r e sta b e le c id a um a c ro n o lo g ia g ro ss e ira so b re as
m udanças nas cidades e estados no decurso dos últim os m il anos. E ntrem entes, no
entanto, façam os um com paração arbitrária a intervalos d e 500 anos, apenas para
term os um a idéia do quanto a coisa m udou. P or volta d e 1490, o m apa e a realidade
h a v ia m -se a lte ra d o en o rm e m e n te. O s c ristã o s arm ados e sta v a m ex p u lsan d o os
so b e ran o s m uçulm anos de G ranada, seu últim o territó rio im p o rta n te na m etade
o c id e n ta l do c o n tin e n te . U m Im p ério O to m an o islâ m ic o h a v ia d e sa lo ja d o os
biza n tin o s cristão s da região situada en tre o A driático e a P érsia. O s otom anos
estavam triturando o po d er veneziano no M editerrâneo oriental e avançando para
os B á lc ã s. (A lia n d o -s e com a a m e aç a d a G ranada, ta m b é m e fetu av a m as su as
p rim e ira s incursões ao M e d ite rrân e o o c id e n tal.) A lém d isso , d ep o is de m u ito s
F igura 2.3 A Europa cm 1478 d.C . (adaptado de C olin McEvedy, The Penguin A tlas o f M edieval His-
tory, Penguin B ooks, 1961. Copyright © 1961 Colin M cEvedy).
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Figura 2.4 O M undo em 1490 d.C. (adaptado de C olin M cEvedy, The Penguin A tlas o f M o d em ,H isto-
ry to 1815, Penguin Books, 1972. C opyright © 1972 C olin M cEvedy).
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e n ta n to , fora de suas próprias regiões, adm inistravam com dificuldade os seus pre
tensos dom ínios e tinham a sua autoridade c ontinuam ente contestada por potentados
rivais, inclusive p o r seus próprios agentes e vassalos putativos.
C onsiderem os a H ungria, um estado que se desenvolveu a partir da área c o n
q u ista d a pelos m agiares, um dos m uitos povos nôm ades arm ados que, vindos da
e step e eurasiática, invadiram a E uropa. N o decurso do sé c u lo X, a m aioria dos m a
giares m igraram do V olga e dom inaram os eslavos, que eram em m enor núm ero,
lav rad o res e habitantes das florestas da B acia dos C árpatos, região que hoje d e n o
m in am o s H ungria (P am lenyi 1975: 2 1-5). Q uando se m udaram para o oeste dos
C árp ato s, a escassez d a pastagem natural fez com que alguns nôm ades predadores
se retirassem , ou tivessem reduzida a su a população, ou se extinguissem (L indner
1981). D epois de um século de pilhagem , os húngaros, ag o ra cristianizados, v o lta
ram -se cad a vez m ais p ara a agricultura num território q u ase d esprovido de cidades.
S ua base agrícola não im pediu q u e a nobreza h úngara fizesse guerra com seus
v izinhos, lutasse p ela sucessão real ou participasse do jo g o europeu de casam entos
e alian ças. A lém do m ais, o seu controle d a força arm ada p roporcionou-lhes o p o d e r
d e j o g a r e sc ra v o s e h o m en s livres in d istin tam e n te n u m a se rv id ão co m u m . A s
c id a d es cresceram no m om ento em q u e a agricultura feudal prosperou, a s m inas
p a ssa ram a ex p o rta r m etais para o restante da E uropa e as rotas de com ércio da
região se ligaram às da E uropa C entral e O cidental. O capital alem ão acabou por
d o m in a r o co m é rcio e a indústria húngaros. N o en tan to , as cidades da H u n g ria
co n tin u aram estritam ente subordinadas a seus senhores nobres até que, no século
XV, a c oroa com eçou a controlá-los.
N o final do século XV, o rei Janos H unyadi e seu filho, o rei M ateus C orvino,
c o n s tr u íra m u m a m á q u in a de g u e rra re la tiv a m e n te c e n tr a liz a d a e e f ic ie n te ,
co m b aten d o tanto os turcos belicosos a sudeste quanto os fam intos H absburgos a
oeste. T odavia, com a m orte de M ateus, a nobreza con tra-ataco u e privou o seu
su cesso r L adislau dos m eios de sustentar o seu próprio exército. Em 1514, o esforço
p a ra o rg an izar um a nova cruzada c o n tra os turcos provocou um a im ensa revolta
c am p o n esa, cu ja rep ressão reduziu defin itiv am en te o cam p esin a to à se rv id ã o e
aboliu os seus direitos de m udar de senhor. N a luta entre os m agnatas que se seguiu
a o s a co rd o s de p a z q u e p u seram fim à g u e rra c a m p o n e sa , o a d v o g a d o Istv a n
V erbõczi acolheu a opinião dos nobres em relação aos co stum es húngaros, inclusive
as leis de co m pensação contra os cam poneses e os provim entos pelos quais
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te, era garan tido o d ireito de reb elião co n tra qu alquer rei q u e infringisse de algum m odo os
d ire ito s d a nobreza.
(M cN eill 1975 [1964]: 17.)
OS ESTAD O S E A C O ERÇÃO
Por volta de 1490, os m uçulm anos estavam -se retirando de G ranada, o seu
ú ltim o posto avançado na Ibéria, m as ao m esm o tem po construíam um e xtenso
im p é rio em to rn o do M e d ite rrâ n e o oriental e fa ziam in cu rsõ es até os B álcãs.
C om eçaram a surgir nos flancos d a E uropa estados dotados de grandes exércitos e
de algum controle judicial e fiscal sobre territórios de bom tam anho, e as cidades-
estado principiaram a arm ar-se para a guerra terrestre com o nunca havia acontecido
an tes. O m apa e u ropeu de 1490 atribui grandes áreas à Inglaterra, à S u écia, à
Polônia, à R ússia e ao Im pério O tom ano, mas tam bém assinala dezenas de ducados,
principados, arcebispados, cidades-estado e outros estados-m iniatura.
A q u a n tid a d e de e sta d o s d istin g u ív e is d e p e n d e de d e c isõ e s d isc u tív e is
relacionadas com a própria natureza dos estados da época. São elas: se os 13 cantões
suíços (com o em 1513) e as 84 cidades livres do Im pério O tom ano (com o em 1521)
devem ser c o n tad o s com o e n tid a d es separadas; se as possessões tec n ica m e n te
autônom as d e A ragão e C astela, c o m o a C atalunha e G ranada, m erecem reconhe
cim ento; se a colcha de retalhos dos Países-B aixos constituíam um único estado
(ou apenas p arte de um estado) so b a hegem onia dos H absburgos; se o s estados
tributários sob o controle otom ano pertenciam individualm ente ao sistem a europeu
de estado d a época. N enhum conjunto plausível de definições fornece m enos d e 80
unidades distintas, ou mais de 500. Podem os tomar, arbitrariam ente, 200 com o um
núm ero m édio. A s cerca de 200 entidades políticas européias da época que detinham
um a autonom ia form al controlavam um a m édia de 24,5 m il quilôm etros quadrados,
m ais ou m enos o tam anho dos atuais El Salvador, L essoto e Catar.
A população européia de aproxim adam ente 62 m ilhões de habitantes em 1490
distribuía-se num a m édia de 310 m il pessoas por estado. E videntem ente, as m édias
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fim à P rim eira e à S egunda G uerra M undial, o núm ero e o tam an h o dos estados
europeus não mudou m uito no curso do século XX. Se, de acordo com Sm all & Sin-
ger, contarm os apenas aqueles estados grandes bastante para estab elecer um a dife
rença m ilitar independente, detectam os realm ente um a leve inversão d a tendência a
longo prazo: 21 contendores n o final das G uerras N apoleônicas, 26 em 1848, 29 (in
cluindo agora M alta, C hipre e a Islândia) em 1980 (Sm all & S inger 1982: 47-50).
Em contraste com os 24 500 quilôm etros quadrados de 1490, os 30 estados
de 1890 co n tro lav a m u m a m é d ia de 160 m il q u ilô m e tro s q u a d ra d o s, o q u e os
igualava às atuais N icarágua, Síria e T unísia. E m vez dos 310 m il h abitantes de
1490, o estado m édio de 1890 contava c e rc a de 7,7 m ilhões. Se o s im aginarm os
n u m a c irc u n fe rê n c ia , o s e s ta d o s o rig in a m -se n um ra io m é d io d e 9 0 a té 230
q u ilô m e tro s. N um raio d e 9 0 q u ilô m e tro s, o c o n tro le d ireto d o in te rio r p elo s
g o v e rn an tes d e um a ú n ic a c id a d e m u itas v e ze s e ra viável; a 2 3 0 q u ilô m e tro s,
n inguém g o vernava sem um aparelho e sp e cializa d o de v ig ilân cia e supervisão.
Além disso, em bora os m icro-estados com o A ndorra (453 km 2), L iechtenstein (157),
San M arino (62) e m esm o M ônaco (1,8) tenham sobrevivido à g rande consolidação,
as desigualdades de tam anho dim inuíram rad icalm ente com o tem po.
F alando de m odo geral, a ú ltim a p arcela d a E uropa a consolidar-se em estados
nacionais extensos foi a faixa de cidades-estado que ia d a Itália do N o rte, em torno
dos A lp es, e abaixo d o R e n o a té o s P a íse s-B a ix o s . A s c ria ç õ e s su c e ssiv a s da
A le m a n h a e d a Itá lia c o lo c a ra m sob c o n tr o le n a c io n a l e ssa s p e q u e n a s m u
nicipalidades prósperas m as briguentas, e suas regiões interioranas. E com o se os
europeus descobrissem que, sob as condições predom inantes a p a rtir de 1790 ou
m ais, um estado viável necessitava de um raio de pelo m enos 160 q uilôm etros, e
não poderia dom inar com facilidade além d e um ra io d e 400 q uilôm etros.
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D e qualq u er m odo, a p ro p o rçã o que vivia nas cid a d es não aum entou significati
vam ente antes do século XIX. Segundo as m elhores estim ativas de que dispom os, a
porção de lugares com 10 m il habitantes ou m ais girava em torno d e 5% em 990,
6% em 1490, 10% em 1790 e 30% em 1890, em com paração com os q u a se 60% de
hoje (B airoch 1985: 182, 282; de Vries 1984: 29-48).
A e scala da urbanização refletiu a histó ria do capital europeu. D urante sécu
los, a m aior parte do capital líquido da E u ro p a e stev e nas m ãos de pequenos c o
m erciantes que trabalhavam dispersos por to d o o continente, ou com erciando bens
produzidos em outro local ou orientando a m an u fatu ra de produtores form alm ente
independentes em aldeias, distritos e p eq u en as cid ad es. O s grandes capitalistas,
com o o s de G ênova, A ugsburgo e A ntuérpia, desem penharam um papel im portante
na ligação d e toda a E uropa entre si e com o resto do m undo, m as detinham um a
pequena parcela de todo o capital em m ovim ento.
A ntes d e 1490, a d ispersão dos testem unhos torna difícil o ferecer alguns in
form es quantitativos m ais detalhados. No entanto, as estim ativas de Paul B airoch e
a recente co m p ilação de e v id ê n cia s relativas à u rb a n iz aç ã o e u ro p éia a partir de
1500, feita p o r Jan de V ries, possibilitaram a lguns c álculos sim ples m as surpreen
dentes. A T abela 2.1 m ostra a tax a com um p ro lo n g ad a de crescim ento urbano antes
de 1490, a aceleração no século X V I e a excepcional urbanização d epois de 1790.
Por v olta de 1980, a barreira d o s 10 mil hab itan tes havia perdido o seu sentido (daí
os núm eros especulativos d a tabela), e um total de 390 c id a d es tin h am 100 m il
habitantes ou mais. Com efeito, as estatísticas de 1980 colocam 34,6% d a população
em cidades de no m ínim o 100 m il habitantes. A grande aceleração d o crescim ento
urbano ocorreu depois de 1790, com a c o n cen tração de capital no século X IX , o
aum ento escalar dos em pregos e a criação do tran sp o rte de m assa. N o entanto, na
m aior parte d o período p o sterio r a 1490, as zonas interioranas exclusivas de que
dispunham a m aioria das cidades estavam d im in u in d o de tam anho.
cidades de 10 mil habitantes ou mais I II 154 220 224 364 1709 5000?
população nas cidades de 10 mil ou mais 2,6 3,4 5,9 7,5 12,2 66,9 25 0 ?
(m ilhões)
taxa anual (% ) de crescim ento — 0,1 0,6 0,2 0,5 1,7 1,5?
a partir da data anterior
% de população em cidades 4,9 5,6 7,6 9,2 10,0 29,0 55?
de m ais de 10 mil habitantes
km2 por cidade (m il) 44,3 3 1,9 2 2 ,0 2 2,0 13,5 2,8 1,0?
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de suas tropas entre os seus próprios cidadãos. A partir da m etade do século XIX,
nu m a fase de e s p e c ia liz a ç ã o , os e sta d o s e u ro p e u s c o n so lid a ra m o siste m a d e
soldados cidadãos financiados por vastas burocracias civis, e separaram as forças
de p olícia especializadas no uso da c o erção fo ra da guerra.
P or volta do sé c u lo XIX, a m aioria dos e stados europeus haviam internalizado
tanto a força arm ada qu an to os m ecanism os fiscais; reduziram , assim , as funções
governam entais dos arrem atantes de im postos, dos contratantes m ilitares e de o utros
agentes independentes. Seus governantes, então, continuaram a n egociar com os
capitalistas e outras c lasses o crédito, as rendas, a m ão-de-obra e os m eios de guerra.
A negociação, por seu turno, criou novas exigências ao estado: pensões, pagam entos
aos pobres, educação p ública, planejam ento urbano e m uito m ais. N o processo, os
estados, em vez de am p liar as m áquinas d e guerra, passaram a c ria r organizações
de m últiplas finalidades. Seus esforços p a ra controlar a c oerção e o capital p ro s
seguiram , m as ju n ta m en te com um a am pla variedade de atividades de regulam en
tação, com pensação, distribuição e p roteção.
A ntes do sé c u lo XIX, os e sta d o s d ife ria m a c e n tu a d a m e n te no to c a n te à
sincronização e in te n sid a d e relativas dos dois principais p ro cesso s de m udança.
D urante um século ou m ais, o estado neerlandês alugou grandes exércitos e frotas
de navios, adotou p recocem ente a adm inistração estatal das finanças, m as continuou
d evendo aos capitalistas d e A m sterdam e d e o u tras cidades m ercantis. N a verdade,
em alguns m om entos o e stad o neerlandês se decom pôs em suas principais m u n ic i
palidades. Por outro lado, em Castela, as forças terrestres - m uitas vezes alugadas
fora da E spanha - predom inaram ; lá a m onarquia conquistou o créd ito dos m erc a
dores ao convertê-los em arrendatários de im postos e passou a d ep en d e r das rendas
coloniais para reem bolsá-los. Portugal, P o lô n ia, as cidades-estado italianas e os e s
tados do Sacro Im pério R om ano adotaram outras com binações das duas c u rv as e,
desse m odo, criaram estru tu ras de e stad o claram ente diferentes
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P or que os estados europeus seguiram cam inhos tão d iferen tes, em bora q u ase
todos eles tenham cam in h ad o rum o a u m a m aior concentração d e capital e coerção?
D uas razões ocultas explicam a m aior pa rte dessa com plexidade. A prim eira é a
com petição perm anente e agressiva por co m ércio e território e n tre os vários estad o s
d e tam an h o igual, os q u a is fizeram d a g u e rra um a fo rça p ro p u lso ra da h istó ria
européia. A segunda re sid e naquilo que G abriel A rdant denom inou a “ fisiologia”
dos estados: os processos pelos quais adquirem e distribuem os m eios de realizar as
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(C ontam ine 1984: 39). O s exércitos reais em m archa viviam , em am pla m edida, da
requisição (que teoricam ente era indenizada pelo tesouro real) e d a pilhagem (que
não o era); na verdade, a distinção entre esses dois eventos perm aneceu am bígua
durante séculos.
As cidades, habitualm ente, organizavam m ilícias de cidadãos que guardavam
os m uros, patrulhavam as estrad as, intervinham em con flito s p úblicos e e v e n
tualm ente travavam algum as batalhas contra os inim igos da cidade ou do reino. As
m ilícias m u n ic ip ais e sp a n h o la s foram um a e x ce çã o ; tiveram um a im portância
decisiva n a c o n q u ista d a Ibéria m uçulm ana p elo s reis cristãos, fa to que se re fle te
nos grandes poderes que as m unicipalidades dom inadas pelos nobres adquiriram
depois da R econquista e n a cristalização da d iferença entre caballero (cavaleiro) e
p eón (so ld ad o a pé) num a div isão social d u ra d o u ra e geral (P ow ers 1988). Em
outras regiões, os reis geralm ente tentaram lim itar a força arm ada independente de
q u e d isp u n h a m os c id a d ã o s , p e la m esm a b o a ra z ã o de q u e os c id a d ã o s p ro
vavelm ente usariam e ssa fo rça em seu próprio interesse, inclusive para opor-se às
exigências do rei.
Essas várias forças m ilitares enfrentaram m uitos grupos de hom ens arm ados
que não agiam sob o co ntrole direto do rei; e n tre outras, os vassalos de senhores
particulares que com um ente não eram recrutados para o serviço real, os bandidos
(m uitas v ezes soldados desm obilizados que contin u av am a sua pilhagem sem a
aprovação real) e os piratas (que freqüentem ente agiam sob proteção real ou cívica).
As acum ulações dos m eios de coerção eram m odestas m as m uito dissem inadas; a
concentração era pequena. M esm o assim , os governantes estavam em penhando-se
m ais em concentrar a coerção do que haviam feito quaisquer outros.
Os estados acabaram p o r operar m últiplas forças arm adas, todas elas b uro
cratizadas e m ais ou m enos integradas à adm inistração nacional. M esm o a E spanha,
conhecida pela repetida atribuição de poderes de estado a seus agentes e grandes,
em penbou-se seguidam ente para separar suas forças arm adas de seu am biente civil.
F ilipe II, p o r exem plo, colocou intencionalm ente sob o controle direto do governo
as forças arm adas cujos com andos, durante o rein ad o de C arlos V, seu pai, haviam
sido quase que posses privadas dos grandes. P o r v olta de 1580,
toda a in stitu ição m ilitar foi d e v o lv id a à C oroa e era ad m in istrad a pelos m inistros reais; as
g aleras d a E sp an ha, d e N áp oles e d a Sicília, depois d e u m breve e m a l-sucedido retorno à
co n tratação em 1574-76, reto rnaram à adm inistración, o ap rovisionam ento d as frotas m edi-
terrân icas e das g u arnições d a Á frica do N orte era c o n tro la d o pelo co m issariad o real de Se-
vilha, as in d ú strias d e arm as e o s fabricantes de salitre e stavam sob a e strita supervisão real,
e a m an u fatu ra d e pólvora era um m onopólio do rei.
(T hom pson 1976: 6-7.)
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Figura 2.6 Cam inhos alternativos de mudança em caso de concentrações de cap ital e de poder co erci
vo na Europa, 1000-1800.
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A distinção aplica-se tam bém aos am bientes dos estados. A direção g eral da
m udança européia n a passagem do m ilênio sem dúvida elevou a diagonal, ru m o a
concentrações cad a v e z m aiores tanto d e capital quanto d e coerção. N o en tan to ,
e s ta d o s d ife re n te s se g u iram c a m in h o s d ife re n te s na m e sm a d ire ç ã o g e ra l. O
B ra n d en b u rg o -P rú ssia desenvolveu-se num am biente rico d e co erção , p o b re de
capital, e revelou as m arcas de seu am biente inicial m esm o quando estendeu o seu
dom ínio às cidades capitalistas da R enânia. A D inam arca tev e usualm ente m aio res
concentrações de c ap ital à disposição d o que o resto da E scandinávia e in v estiu
m enos esforços na construção do po d er m ilitar.
Os C avaleiros Teutônicos (a ordem do H ospital de Santa M aria em Jerusalém )
adotou um cam inho irregular: de cruzados pirateadores na T erra S anta (portanto,
e n v o lv id o s in te n sa m en te no m undo p irá tic o do com ércio o c eâ n ic o ) no fin a l do
século X II a g ov ernadores de um a gran d e porção da T ransilvânia durante o século
X III, depois a c o n q u ista d o res e c o lo n iz ad o re s da P rússia pagã, onde de a p ro x i
m adam ente 1300 até o século X V I governaram no estilo dos grandes senhores de
terra. O s C a v a le iro s, em m ais ou m en o s trin ta anos, c ru za ram a lin h a e n tr e a
fo rm ação do e sta d o com grande in v e rsã o de capital e a fo rm aç ão com in te n sa
c o e rç ã o . O s C a v a le ir o s de M a lta (ta m b é m c o n h e c id o s s u c e s s iv a m e n te p o r
C avaleiros H osp italários de São João de Jerusalém e C avaleiros de R odes) tam b ém
ziguezaguearam , m as term inaram n u m a localização m uito diferente:
ui
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q u e m an tin h am os re cu rso s essen ciais - h om ens, arm as, p ro v isõ e s ou din h eiro
p a ra c o m p rá -lo s - e q u e re lu ta v a m em c e d ê -lo s sem fo rte p re ssã o ou c o m
p e n sa çã o . D entro dos lim ites estabelecidos p elas exigências e com pensações dos
o u tro s estad o s, a e x tra ç ã o e a luta pelos m eios d e gu e rra c ria ra m as e stru tu ra s
o rg an izacio n ais c en trais dos estados. A o rganização das p rin c ip a is classes sociais
d e n tro do território de um estado, e as suas relações com e ste, afetaram sig n ifi
c ativ am en te as e stratég ias que os governantes em pregaram p a ra extrair recursos,
a re sistê n c ia que en fre n tara m , a luta d aí resultante, os tipos de organização d u ra
d o u ra q u e a ex tração e a luta introduziram e, portan to, a e fic iê n c ia da ex tração
de recursos.
A organização das principais classes sociais, e suas relações com o estado,
variaram co nsideravelm ente das regiões européias que aplicaram intensa coerção
(á re a s d e poucas c id a d e s e p re d o m in ân c ia a g ríc o la , o n d e a c o erç ão direta e ra
d e cisiv a na produção) p a ra aquelas onde houve grande aplicação de capital (áreas
de m uitas cidades e pred o m in ân cia com ercial, onde p revaleciam os m ercados, a
tro ca e a produção para o com ércio). As reivindicações que essas classes principais
fizeram ao estado, e su a influ ên cia sobre ele, variaram correspondentem ente. O
s u c e s s o re la tiv o das d ife re n te s e stra té g ia s e x tra tiv a s, e as e stra té g ia s q u e os
g overnantes aplicaram de fato, variaram portanto de m odo significativo das regiões
que usaram intensa c o erç ão para aquelas de grande inversão de capital.
C o n seq ü en tem en te, as form as o rganizacionais dos e stad o s seguiram tra je
tórias claram ente d iferentes nessas partes distintas da E uropa. O tipo de estado que
p re v a le c e u num a é p o c a e p a rte d e te rm in a d as da E u ro p a v a rio u g ra n d em en te .
S om ente no curso do m ilênio é que os estados nacionais exerceram um a superio
ridade evidente sobre as cidades-estado, os im périos e outras fo rm as com uns na E u
ropa. N ão obstante, a e sc a la crescente da g u e rra e o en tre la ç am en to do sistem a
europeu de estado através de relações com erciais, m ilitares e d iplom áticas acabaram
p o r c o n ferir, na g u e rra , u m a vantagem à q u eles e stad o s q u e p odiam d isp o r de
grandes exércitos p erm anentes; os estados que tinham acesso a um a com binação
de g ra n d es p opulações rurais, capitalistas e econom ias relativ am en te co m e rcia
lizadas venceram as guerras. E stabeleceram os term os da guerra, e a sua form a de
e sta d o passou a p re d o m in a r em toda a E u ro p a. N o fin al, o s e stad o s e u ro p e u s
convergiram nesta form a: o estado nacional.
D entro de cada trajetó ria indicada no diagram a capital-coerção, os prim eiros
p a sso s determ inaram os ú ltim os. E m bora as classes d irig e n tes urbanas tenham
d e se m p e n h ad o funções im portantes na c o n so lid a çã o inicial d e um estado d ad o
(com o aconteceu na H olanda), m uito depois o estado im prim iu a sua m arca na form a
das instituições burguesas. E m bora um estado se tenha orig in ad o da conquista de
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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
p opulações am plam ente rurais (com o nos sucessivos im périos russos), c o n tin u o u a
o fe re c e r pouca p e rsp ec tiv a àquelas cid ad es que m edraram em seu m eio; n e ssa s
re g iõ e s, g ra n d es n o b re z a s se d e se n v o lv e ra m q u ando os m o n a rc a s g a ra n tira m
p rivilégios fiscais e substanciais poderes locais aos proprietários de terras arm ados,
em troca de seu serv iço m ilitar perm anente.
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