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Rafael Silva

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Waldênia Alvarenga Santos Ataíde

Revisão
Walter Ornar Kohan e José Gondra

2006
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Kohan, Walter Ornar
Aos colegas do Comitê Científico e da
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e José Gondra . - Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Comissão Organizadora, pelo trabalho cuidadoso;
304 p. Aos tradutores-revisores: Alfredo Veiga-Neto, Angélica Borges, Berta
ISBN 85-7526-225-4 Mourad, F abiana de Moraes, Filipe Ceppas, Gilda Gomes Carneiro,
I.Filosofia. 2.Foucault, Paul-MicheI.I.Gondra, José. I ngrirlMuller Xavier, Maria José Guzmán, Sérgio Carreira, Sílvio
II.Título. Gallo, Vera Portocarrero e Wanderson Flor do Nascimento,
CDUI por trabalharem com seu compromisso e contra o tempo;
Ficha 9ta1ográfica elaborada por Rinaldo de Moura Faria - CRB6-1 006
À Editora Autêntica pela seriedade, eficiência e cuidado estético.
o agenciamento Foucault/Deleuze
Antonio Cavalcanti Maia

Entre os pensadores da constelação do pós-estruturalismo aqueles eu-


jos projetos filosóficos apresentam maiores convergências são Foucault e
Deleuze. Da matriz nietzschiana à insatisfação com a arquitetônica teoréti-
ca da filosofia da consciência (em especial na sua versão fenomenológica), da
identificação com a nova agenda de lutas políticas pós maio de 68 à crítica da
sociedade de controle, as obras desses dois contemporâneos marcaram defi-
nitivamente uma certa forma de pensar o presente.
O objetivo deste artigo será explorar alguns elementos da leitura do
trabalho de Foucault realizada por Deleuze. Ora, todos aqueles que enfren-
tam a tarefa de procurar uma interpretação integradora do trabalho de Fou-
cault encontram-se em dificuldades. Uma obra marcada pelo signo do des-
locamento, deliberadamente elusiva - de um pensador que não se citava-,
situando-se, por vezes, às margens do discurso filosófico, em um original
imbricamento de filosofia e história. De uma investigação inicialmente cen-
trada no domínio epistemológico, à época da arqueologia do saber, paulati-
namente, de forma não ortodoxa, o projeto genealógico atravessa o campo
da teoria social e termina no continente da ética. As inúmeras reflexões
metodológicas presentes ao longo de seus livros testemunham as dificulda-
des de situá-lo dentro dos quadrantes tradicionais do discurso filosófico. Da
auto-classificação como historiador do sistema de pensamento (quando do
ingresso no College de France, em 1970) à reivindicação de um estatuto teóri-
co para a ontologia do presente (nos seus textos finais na década de oitenta),
Foucault deixoüêm apuros aqueles preocupados com uma certa sistemati-
I
zação de sua obra; afinal, "os filósofos não conseguiam estar de acordo a
respeito daquilo que Foucault queria fazer". (KELLY, 1994, p. 8)
Neste artigo, utilizarei a leitura de Foucault realizada por Deleuze no
intuito de oferecer uma chave de compreensão capaz de iluminar os objetivos

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de sua empresa teórica. É claro que alguns temas deleuzianos auxiliam a um esforço de construir "[...] algo capaz de fazer algo, de produzir um efei-
compreensão e complementam as pesquisas genealógicas, como, por exem- to" (BAUGH,2000, p. 52). Produzir algo conectando o trabalho desses dois
plo, a articulação entre a temática da estética da existência e os devires mi- filósofos com a démarche de Adorno; produzir um efeito, se possível, auxilian-
noritários, o continuum biopoder, biopolítica, sociedade de controle.' do em nossa compreensão dos dilemas postos no horizonte da cultura con-
temporânea, em especial na forma como são vividos em uma sociedade pe-
Já em seu livro sobre Foucault, Deleuze lança uma interpretação capaz de
riférica emergente.
explicar as vicissitudes metodológicas observadas na trajetória do autor de As
palavras e as coisas. Tanto a idéia de reconhecer nas análises arqueológicas de
Foucault uma nova forma de arquivar os dados históricos (no texto "Um Novo I
Arquivista'") como a identificação do projeto genealógico sob o signo de uma Ao descrever o panorama atual da filosofia francesa, Christian Dela-
nova cartografia das relações de poder em sociedade (no texto "Um Novo Car- campagne afirma: "Foucault, Deleuze, Lyotard: três pensadores 'nômades',
tógrafo'") apreendem as especificidades de uma original investigação filosófi- deliberadamente marginais, e que compartilham, entretanto, a mesma con-
ca. Entretanto, estribarei minha análise em referências encontradas nas entre- cepção 'afirmativa', 'energética' e pluralista da prática filosófica." (DELA-
vistas reunidas no livro Conversações, nas quais é tematizada a obra de Foucault. CAMPAGNE, 1997, p. 256) Esta concepção do trabalho filosófico unindo F ou-
Tal opção se justifica não só pelo fato de que este caminho possibilitará uma cault e Deleuze dificilmente pode ser reduzida a um denominador comum,
explicitação do trabalho deste último - no sentido de uma contribuição no a um núcleo essencial ou a um princípio genético compartilhado, mas, o
âmbito da filosofia da cultura -, mas também porque pode-se sustentar que próprio Deleuze, respondendo a uma atilada questão, circunscreve um cam-
"[...] seu Foucau/t é uma análise impressionante mas que lança mais luz sobre o po comum de referências (transcreverei também a pergunta pela sua perti-
próprio Deleuze do que sobre Foucault."(GUTTING,2001, p.339) nência a esse contexto):
O foco principal desta investigação situa-se nas cogitações realizadas
por Deleuze acerca de certas tarefas da filosofia no quadro do pensamento - Na Chronique des idées perdues François Châtelet, ao evocar a
amizade muito antiga com você, com Guattari, com Schérer e
contemporâneo tomando como referência suas reflexões sobre Foucault
Lyotard, escreve que vocês eram do "mesmo time" e tinham-
(bem como a própria obra deste pensador). Tais reflexões permitem definir
marca talvez da verdadeira conivência - os 'mesmos inimi-
como campo legítimo de tematização do discurso filosófico o âmbito da cultu-
gos'. Você diria o mesmo de Michel Foucault? Vocês eram do
ra, extraindo, a partir destas análises, sugestivas orientações relativas a possíveis
mesmo time?
práticas político-culturais inscritas em um movimento de resistência a um ce-
- Penso que sim. Châtelet tinha um sentimento vivo disso
nário contemporâneo, em muitos aspectos, inóspito e homogeneizador.
tudo. Ser do mesmo time é também rir das mesmas coisas, ou
Pretendo realizar aqui um agenciamento entre Foucault e Deleuze, isto é,
então calar-se, não precisar "explicar-se". É tão agradável não
ter que se explicar! Tínhamos também, possivelmente, uma
1 Já desenvolvi algumas considerações sobre o aspecto complementar do conceito deleuziano de concepção comum da filosofia. Não possuíamos o gosto pelas
sociedade de controle vis-à-vis a temática do biopoder no texto "Biopoder, biopolítica e tempo abstrações, o Uno, o Todo, a Razão, o Sujeito. (DELEuzE, 1992-c,
presente". In. NOVAES, 2003, p. 77-108. Esclarecedor sobre este aspecto também os seguintes p.108-109)
livros de Peter Pál Pelbart: A vertigem por um fio, 2000 e Vida capital, 2003.
2 Como salienta Deieuze, "o livro de Foucault [Arqueologia do Saber] representa o passo mais
Entre os elementos que aproximam Foucault e Deleuze certamente se
decisivo para uma teoria-prática das multiplicidades" (p. 34); e, logo a seguir: "a arqueologia
opõe-se às duas principais técnicas até agora empregadas pelos arquivistas: a formalização e a encontra um descontentamento com a forma pela qual era pensado o papel
interpretação." (p. 34) Deleuze, 1987. do sujeito dentro da concepção filosófica dominante nos seus anos de forma-
3 Por exemplo, a própria maneira como Foucault compreende seu trabalho em passagem retirada ção, vare dizer, uma fenomenologia em estreito diálogo com o marxismo ca-
de lição no Collegede France em 1979: "Eu vou descrever certos aspectos do mundo contempo- racterística do horizonte cultural dos anos 50. Como afirma Foucault em uma
râneo e de sua governamentalidade; este curso não dirá a vocês o que devem fazer ou contra
de suas últimas entrevistas: "[...] eu diria que tudo que se passou em torno dos
quem devem combater, mas ele fornecerá uma carta/mapa; ele dirá portanto o seguinte: se vocês
atacarem por esta direção, bem, há aqui um nó de resistência, mas por lá há uma passagem anos 60 vem bem desta insatisfação diante da teoria fenomenológica do
possível." Esta referência se encontra no texto de Paul Veyne 1986, p. 938. sujeito." (FOUCAULT, 1994, p. 437) Com efeito, um questionamento enfático

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acerca da soberania de um sujeito fundador, doador de sentido, transparente a Campo convergente dos interesses destes dois filósofos: repensar as
si mesmo, situado no centro da perspectiva desenvolvida pela fenomenologia, relações entre teoria e prática - problema venerável da tradição filosófica,
levava tanto Foucault quanto Deleuze a procurar uma escapatória ao mainstre- requestionado no tempestuoso e animado clima dos anos 60 e 70. Emble-
am filosófico francês do pós-guerra. E o caminho adotado por eles tem em mática desse esforço, a reflexão teórica exposta no diálogo "Os Intelectuais
Nietzsche a sua referência principal (outros caminhos foram abertos pela lin- e o Poder": recusar as grandes totalizações, reconhecer a positividade dos
güística e pela psicanálise lacaniana). Quando Foucault desenvolve, em suas dados e não submetê-los, sabe-se pagando que preço, aos imperativos da
pesquisas, um amálgama dos métodos e preocupações da tradição epistemoló- teoria, estar atento à complexidade e à singularidade dos fenômenos deli-
gica francesa, de Bachelard e Canguilhem, com o questionamento radical sobre neiam a agenda de uma nova proposta teórica. As investigações inspiradas
a objetividade da razão posta em funcionamento nos discursos científicos inau- nesse ideário assumem seu caráter parcial e fragmentário, esforçando-se
gurada por Nietzsche, o alvo a atingir é a posição imperial ocupada pelo sujeito para estar atento àquilo que é local, relativo a um pequeno domínio. Subli-
no paradigma da fenomenologia. Assim, como ele indaga, "será que um sujeito nha-se, também, o caráter pragmático: ela tem que servir para algo, tem que
de tipo fenomenológico, trans-histórico é capaz de dar conta da historicidade da mudar nossa forma de entender alguma coisa. Como afirma Deleuze:
razão?" (FOUCAULT, 1994, p. 436) A inquestionável historicidade que submete o
sujeito, bem como o seu enredamento nas relações sociais e determinações É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mes-
psicológicas - constatação imposta pelos mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e ma. Se não há pessoas para utilizá-Ia, a começar pelo próprio
teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou
Freud - marcaram definitivamente a geração de Foucault e Deleuze, contribu-
que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria,
indo para a perda de todas as prerrogativas de domínio de si próprio e do mundo
fazem-se outras; há outras a serem feitas. É curioso que seja um
que a metafísica, de Descartes a Husserl, atribuía ao sujeito.
autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o te-
Constitui um outro elemento comum a desconfiança em face de temas nha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigi-
como a "totalidade" e o "uno", temas de nítidas colorações hegelianas. Este dos para fora e se eles não Ihes servem, consigam outros,
constitui outro traço caracterizador do chamado pós-estruturalismo (mais evi- encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente
dente nas reflexões de Deleuze, que desde sua dissertação de mestrado, aos um instrumento de combate. (DELEuzE, 1979, p. 71)
27 anos, procurava, com Hume, escapar dessa asfixiante atmosfera hegeliana
dos anos 50). A desconfiança em face de um pensamento que funcione privi- Um outro aspecto onde convergem estas duas referências do pensa-
legiando um mecanismo que subsuma o diferente sob o signo do igual e do mento francês contemporâneo encontra-se na curiosa definição de filosofia
universal inspira tanto a empresa filosófica de Deleuze quanto a de Foucault. adotada por Deleuze. Ele identifica como desiderato da filosofia incomodar
O pluralismo nietzschiano oferece uma escapatória à dialética, que, sempre, a besteira (nuire à Ia bêtise5). Tal definição é estabelecida a partir da referên-
ao fim e ao cabo, apazigua o confronto e as lutas sob o signo da reconciliação. cia aos trabalhos de Foucault e Nieztsche. Assim, Deleuze afirma que Fou-
Assim, "segundo Deleuze, Hegel e outros dialéticos sustentam que a realida- cault "suscitava medo, isto é, só com sua existência impedia a impudência
de se gera pela construção antagônica de fenômenos polares opostos, pelo dos imbecis. Foucault preenchia a função da filosofia, definida por Nietzs-
'trabalho do negativo'. Esta é uma interpretação dinâmica do mundo onde as che, 'incomodar a besteira'." (DELEuzE, 1992-d. p. 188) Tal afirmação, ao
diferenças são sempre subsumidas sob uma unidade subjacente, onde as con- oferecer uma inusitada definição das tarefas da filosofia, está em perfeita
tradições buscam sempre uma síntese mais alta e o movimento se resolve consonância com a forma como Deleuze se situa em relação a uma das grandes
em último termo em 'estaticidade' e morte." (QUEVEDO,2001, p. 114)4 questões presentes no nosso horizonte de cogitações desde o fim da metafísi-
ca, principalmente a partir da deflacionista empresa teórica de Wittgenstein:
4 Também nesse sentido: "E mais: apreendemos aquilo que é o ponto de partida de todo o
Deleuze, e que neste volume se vinca com uma nitidez clamorosa: que precisamos (contra 5 A palavra bêtise não é de fácil tradução para o português. Ela significa asneira, tolice, disparate,
Hegel, ou melhor, depois de Hegel) de pensar uma ontologia da diferença pura, que é algo que arvoice, necedade, estultícia. Lidando com a dificuldade de traduzir essa palavra, um cornen-
vai além da contradição dialéctica, porque é a diferença daquilo que difere em si mesmo: nem tador americano de Foucault explica: "Eu estou traduzindo a palavra francesa bêtise, nesse
alteridade, nem contradição, mas alteração (ou, como Deleuze dirá nas esplêndidas análises do contexto, como 'animalidade muda' (mure) - em outros contextos poderia ser mais apropriada-
seu mestre Bergson, uma 'duração')." (COELHO, 2004, p. 213-214) mente traduzida por estupidez (stupidit) e insensatez (/olly)." (MILLER, 1994, p. 438)

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para que serve ainda a filosofia? Ao posicionar-se em face desta tormentosa também destacado por Adorno e explicado no item seguinte deste traba-
pergunta, Deleuze se situa ao lado do pequeno grupo de "filósofos que lho), liquidificar as fronteiras entre as diversas disciplinas, exercitar o poli-
nunca sentiram qualquer atração por rituais apocalípticos- Putnam, Deleu- glotismo próprio do discurso filosófico - mestre de muitas linguagens, capaz
ze, Goodman, por exemplo." (CARRILHO, 1994, p. 96) E este posicionamen- de escapar ao quadro de especialização e segmentarização próprio de nosso
to se estriba na idéia de que a filosofia permanece insubstituível no seu mundo de especialistas.
papel de incomodar, de pôr obstáculos a, de impedir a besteira, a tolice, a
estupidez, os clichês. Afinal, de acordo com Deleuze, "aos que mal intenci- 11
onados perguntam: para que serve a filosofia? Há que responder segundo
um conselho de Nietzsche: ela serve, pelo menos, para envergonhar a estu- Este tema da filosofia como esforço de incomodar a besteira encontra solo
pidez, para fazer da estupidez qualquer coisa de vergonhoso". (DELEUZE, fértil no âmbito da crítica da cultura de massas. Terreno reivindicado para o
1992-e, p. 143) Desta forma, deixam-se de lado os inúmeros rituais de des- discurso filosófico, sobretudo a partir desta obra capital do século XX, Dia/ética
pedida, incessantemente evocando o fim da filosofia, incapaz de subsistir do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Assim, ao subsumir Foucault à sua
em um quadro de abandono das pretensões fundamentacionalistas e total i- inusitada definição do desiderato da filosofia, Deleuze complementa e clarifica
zantes caras à tradição metafísica e insustentáveis no cenário contemporâ- um dos principais esforços realizados por aquele nos últimos anos de sua vida: a
neo do pensamento pós-metafísico. definição de um campo legítimo de reflexões filosóficas sob o título de ontolo-
gia do presente. Rastreando as inúmeras referências de Foucault, a partir de
Pode-se entender também com mais acuidade essa máxima de "inco-
1978, ao opúsculo de Kant intitulado "O que é o Iluminismo?", vê-se emergir
modar a besteira" no sentido dado por um dos principais comentadores de
uma original interpretação desse breve texto de Kant que culminou com a
Foucault e Deleuze, [ohn Rajchman: "A filosofia adquire um novo adversá-
publicação de Foucault de suas duas lições (uma nos Estados Unidos e outra na
rio: o seu fito é combater a estupidez, a qual consiste naquele triste estado
França) também intituladas "O que é o Iluminismoj"." Um mote importante
de nós e do mundo em que já não podemos ou já não queremos mais fazer
desses textos, sobretudo na versão francesa, consiste na identificação de duas
ligações (conexões)." (RAJCHMAN, 2002, p. 16)6É importante sublinhar que
vertentes do discurso filosófico contemporâneo inauguradas por Kant: a analíti-
essa interpretação de Rajchman lança luz no sentido de apontar uma tarefa
ca da verdade e a ontologia do presente. Como sintetiza Miguel Morey:
positiva para "incomodar a besteira" . Ora, prima facie, a definição da filosofia
como a tarefa de incomodar a besteira parece se situar em um sentido mais Na sua lição "O que é o Iluminismo?", Foucault vai repetir
negativo, reativo, crítico, de defesa em face de uma realidade, por um lado, essa distinção entre uma filosofia 'universal' e a análise críti-
no âmbito político, marca da pelo exaurimento de qualquer proposta signi- ca do mundo em que vivemos, mediante a qual situa sua
ficativa de transformação social, e, por outro, no âmbito cultural, marcada tarefa no seio da filosofia contemporânea, contrapondo, por
por um horizonte saturado de marketing e consumismo. Desta forma, temos um lado, a filosofia entendida como uma analítica da verdade
como tarefas positivas da filosofia o esforço de estabelecer conexões e rela- (na qual se incluiria a maior parte da filosofia anglo-saxônica
ções entre diferentes perspectivas filosóficas (e tradições nacionais) e entre e demais tendências fortemente epistemologizantes) e a onto-
logia do presente (que se referenciaria, no domínio da filosofia
a filosofia e o seu exterior: as ciências, as artes, a literatura, a cultura. O
da cultura, a uma tradição que remonta a Hegel e Nietzsche e
exercício dessa tarefa exige a consciência de que tal esforço implica um
passa através de Weber e da Escola de Frankfurt). Vale dizer,
constante processo de aprendizagem, submetido ao rigor e à exigência pró- que retomando uma noção implícita no pensamento nietzs-
prios do trabalho filosófico, e se baliza pelo constante cuidado de se evitar as ;- chiano [...], teríamos de um lado a pergunta entre que é isto?
articulações superficiais e as sínteses amorfas. Nesse esforço positivo, a filo- aplicada a estabelecer (os protocolos necessário para determi-
sofia empenha-se em manter viva a capacidade de fazer conexões (como nar) a verdade do que são as coisas, e de outro a pergunta que
(nos) acontece?, dedicada a dirimir o sentido e o valor das coisas

6 Também sobre essa problemática, como observa em outro texto, destacando a tarefa filosófica"
[...] de exercer a função do pensamento que ele admirava em Foucault: a de prejudicar a tolice." 7 Desenvolvi uma série de considerações sobre essa discussão no texto "A questão da Aufklârung:
RAJCHMAN, 2000, p. 401 mise au point de uma trajetória", 2000, p. 264-295.

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que (nos) acontecem em nosso presente. A direção que abre Apontando as ressonâncias entre essas duas démarches, sublinha que ambos
esta segunda pergunta é a que, caracterizada como ontologia tratam da unidimensionalização da língua e da crescente ameaça às mais ele-
histórica de nós mesmos, marca finalmente todo o trabalho de vadas obras do pensamento (a arte, a literatura e a filosofia) levada a cabo pelos
Foucault. (MoREY,1995, p. 22) meios de comunicação de massa - submetidos à lógica mercantilista, privile-
giando sempre, na busca de um maior mercado consumidor, a quantidade em
No âmbito desta análise crítica do mundo em que vivemos, objeto da detrimento da qualidade. Afinal, "[ ... ] mídia transmite uma cultura iletrada,
ontologia da atualidade, tal como o Foucault tardio define a empresa genealó- agramatical e desortográfica, contorcendo reflexão em entretenimento, pes-
gica, salta aos olhos a necessidade de a filosofia, em sua dimensão de diag- quisa em produção, qualidade em quantidade - dado o imperativo primeiro e
nóstico do tempo presente (bem como de incomodar a besteira), tematizar
último do mercado consumidor."!" (MATOS, 2001, p. 120) A lógica sistêmica
a onipresença dos meios de comunicação de massa na conformação do ima-
dos meios de comunicação de massa lida com dificuldade com tudo aquilo
ginário contemporâneo. Tal problema, tema de cogitações filosóficas desde
que escapa aos padrões garantidores de rápida aceitabilidade por parte do
a formulação por Adorno do célebre conceito de "indústria cultural", coa-
mercado consumidor, reforçando os clichês e os lugares comuns. Em outra
duna-se claramente com as preocupações de Foucault e Deleuze. Não foi à
contundente passagem, Olgária Matos, ao expor o ponto de vista de Adorno
toa que, a par das reflexões sobre o Iluminismo, Foucault constantemente
(que poderia muito bem ser atribuído a Deleuze), afirma acerca da mídia:
se referiu à Escola de Frankfurt". Ademais, o próprio Deleuze aproxima seu
projeto do filósofo frankfurtiano quando afirma: "Creio que à filosofia não o espírito e a prática da mídia têm sua lei: O da novidade, mas
falta nem público nem propagação, mas ela é como um estado clandestino de modo a não perturbar hábitos e expectativas, de ser imedia-
do pensamento, um estado nômade. A única comunicação que poderíamos tamente legível e compreensível pelo maior número de expec-
desejar, como perfeitamente adaptada do mundo moderno, é o modelo de tadores ou leitores. Evita a complexidade, oferecendo produtos
Adorno, a garrafa atirada ao mar, ou o modelo nietzschiano, a flecha lançada por à interpretação literal, ou melhor, minima!. Espécie de caça à
um pensador e colhida por outro." (grifo meu) (DELEuzE, 1992-d, p. 192) E polissemia, ela se impõe na demagogia da facilidade - funda-
quanto à convergência entre os modelos de Adorno e Nietzsche, Deleuze mento do sistema midiático de comunicação. Portadores de
não destaca nada pouco ortodoxo. Embora a matriz hegeliana/marxista in- dogmatismo e preconceito, a indústria cultural veicula uma
forme o trabalho originário da Escola de Frankfurt (em especial quando servidão que se ignora a si mesma, pois submete o espectador
esta tradição estava, nos anos trinta, capitaneada por Max Horkheimer), a ou leitor a hábitos pré-estabelecidos. Semiformação é próprio
Dia/ética do Esclarecimento impõe uma virada no percurso da "teoria crítica" da mídia. O semiculto é hostil à cultura: anti-socrático e anti-
habermasiano, a certeza de seu saber é desproporcional ao co-
com a ousada tentativa de integrar divergentes tradições filosóficas: Scho-
nhecimento e a seu próprio saber. (MATOS,1996, p. 23)
penhauer com Nietzsche e Klages, por um lado, e a venerável linhagem
inspiradora da teoria crítica, de outro, Hegel, Marx, Weber e o jovem Lukács.
Estas últimas referências a Adorno não acarretam o abandono do foco
As relações entre Adorno e Deleuze já foram objeto de considerações deste trabalho, i.e., explicitar as tarefas da filosofia dentro do projeto teórico
em trabalho recente de Olgária Matos, "As Humanidades e sua Crítica à foucaultiano à luz da interpretação de Deleuze; mas sim, procuram compor
Razão Abstrata", situando-se em diapasão semelhante à tese? aqui sustentada. _ através da conexão com Adorno - um quadro explicativo mais amplo, rele-
vando. na crítica da cultura, o papel do exame das patologias propulsionadas
8 Quanto às relações entre Foucault e Adorno, elaborei uma aproximação desses autores no texto
"Foucault e Adorno: Mapeando um Campo de Convergências", 2002, p. 63-84. Posso sintetizar
crítica adorniana com elementos pós-estruturalistas. Habermas, 1987, p. 95. Saliento que essa
o argumento deste artigo através da seguinte passagem de Habermas: "De qualquer modo, está
continuação da crítica procura também abandonar o tom apocalíptico, e, por vezes, beirando o
na natureza das coisas que os efeitos históricos das idéias não podem ser previstas. Hoje, a
catastrófico, do filósofo alemão e se encontra mais à vontade com o espírito deleuziano sinteti-
Di~lética do Esclarecimento é lida diferentemente. Alguns a lêem com os olhos do pós-estrutu-
zado no seguinte apotegma: "Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas." Deleuze,
ralismo francês. Como Axel Honneth mostrou, há de fato similaridades, por exemplo, entre
Adorno e Foucault." HABERMAS, 1986, p. 213. 1992-a, p. 220.
10 Para uma excelente exposição a respeito da indústria cultural nos nossos dias, confira-se:
9 Seguindo a idéia de Habermas de que "a crítica da cultura de massas de Adorno deveria ser
DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural, 2003.
continuada e re-escrita", a tese desta investigação poderia ser assim resumida: continuar a

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pelos meios de comunicação de massa. Estes, ao contribuírem para a banaliza- deleuziano (e, destaque-se também, do último Foucault, que, com a estética
ção e a simplificação daquilo que circula pelos seus mecanismos de difusão, da existência, deixa para trás o diagnóstico mais sombrio do arquipélago carce-
atrofiam a capacidade de estabelecer conexões, já que" [...] 'uma cultura ral) abre alternativas sob o signo da conexão resistência/criação.
viva', observa Adorno, consiste justamente em reconhecer relações, tais como
aquela dada entre a filosofia do élan vital e a pintura impressionista." (MATOS, lU
2001, p. 124) Este tema da identificação de uma cultura viva pela capacidade
Os aspectos anteriormente destacados acerca da crítica da cultura de
de estabelecer conexões e ligações irmana Deleuze e Adorno (bem como o
massas deixam em aberto uma angustiante questão: com base em que crité-
reconhecimento do parentesco profundo entre a filosofia e as artes). Quando,
rios podemos avaliar o estado de coisas existente? Quais são os parâmetros
por exemplo, Deleuze utiliza a idéia de cretinização em relação a uma das
capazes de justificar uma reprovação àquilo que nos cerca? Quando Fou-
novas formas de arte midiática, os videoclipes, fica clara a carência, neste
cault reivindica um estatuto filosófico para a ontologia do presente, reto-
meio de expressão, da capacidade de curto-circuitar, de fazer conexões:
mando o impulso nietzschiano que procura dirimir o sentido e o valor das
A esse respeito, a questão que se coloca concerne à riqueza, à coisas que nos acontecem em nosso tempo presente, ficam sem resposta as
complexidade, ao teor desses agenciamentos, dessas cone- seguintes indagações: qual a referência para o correto sentido buscado e
xões, disjunções, circuitos e curto-circuitos. Pois a maioria da onde ancorar os valores que estabelecem a hierarquia daquilo que deve ser
produção cinematográfica, com sua violência arbitrária e seu louvado e do que deve ser vituperado? Não há resposta trivial para essas
erotismo imbecil, testemunha uma deficiência do cerebelo, indagações; em especial, pois, ao assumir uma posição crítico-reprobatória, o
não uma invenção de novos circuitos cerebrais. O exemplo discurso filosófico pode arvorar-se na pouco confortável - na atual conjun-
dos clips é patético: poderia até ser um novo campo cinema- tura anti-essencialista e anti-fundacionalista - posição de árbitro da cultura.
tográfico muito interessante, mas foi imediatamente apropri-
Não poderia responder categoricamente a esta objeção, posto que a
ado por uma deficiência organizada. A estética não é
modéstia imposta à filosofia no quadro de pensamento pós-metafísico a
indiferente a essas questões de cretinização, ou, ao contrário,
impede de reivindicar uma posição privilegiada no campo dos saberes. No
de cerebralização. Criar novos circuitos diz respeito ao cére-
bro e também à arte. (DELEuzE, 1992-b, p. 79) entanto, no caso da filosofia de Deleuze (e, em muitos aspectos, em colabo-
ração com Guattari), há a defesa de um certo cânone. Veja-se, por exemplo,
A violência arbitrária e o erotismo imbecil povoam, onipresentemen- a seguinte passagem:
te, o cinema e a tevê" contemporâneos. Traçar estratégias capazes de resistir
Que força nestas obras com pés desequilibrados, Hôlderlin,
a esse processo de colonização e padronização do imaginário torna o plano da
Kleist, Rimbaud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa, Artaud,
cultura um campo de lutas estratégicas relevante (talvez, também, pela es-
muitos romancistas ingleses e americanos, de Melville a Lau-
treitíssima margem de manobra e horizontes de transformações possíveis no
rence ou Miller [...]. Certamente eles não fazem uma síntese de
campo político, acachapado pela lógica macro-econômica), A partir de uma arte e filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios
leitura ortodoxamente adorniana, as brechas são muito poucas; já um olhar híbridos, que não apagam a diferença de natureza, nem ultrapas-
sam, mas ao contrário, enfrentam todos os recursos de seu atletis-
II Em resumo recente das conferências de Deleuze intituladas "Abecedário", Alcino Leite Neto mo para instalar-se na própria diferença, acrobatas esquartejados
destaca: "Para Deleuze: a 1V é a 'domesticação em estado puro ... em que todos concorrem para num malabarismo perpétuo. (DELEuzE, 1992-f, p. 89)
produzir a mesma nulidade'. Em 'C, como Cultura', define nossa época como um 'deserto
cultural', cujas causas assim diagnostica: 'Primeiro, os jornalistas conquistaram a forma-livro e Deleuze identifica um cânone não só nesta passagem; tanto em Crítica
acham muito normal escrever em livro o que simplesmente bastaria no artigo de jornal. Segun-
do, ~spalhou-se a idéia geral de que todo mundo pode escrever, desde o momento em que a e Clínica quanto em Diálogos, há a identificação de uma linhagem de autores
escnta se tornou o pequeno problema de cada um, de arquivos familiares, de arquivos que cada _ muitos deles expressões daquilo de mais sofisticado que o Modernismo
um tem em sua cabeça. Terceiro, os verdadeiros clientes mudaram: na 1V não são mais os europeu produziu (nesse aspecto próximo também aos autores estimados
espectadores, mas os anunciantes; na edição, não são mais os leitores potenciais mas os distri-
buidores'." LEITE NETO, 2004, p. 5. ' por Adorno) - exemplificativa de um padrão a ser respeitado e a partir do qual

274 275
podemos reprovar o nivelamento impulsionado pelos meios de comunicação movimentos macroscópicos." (GIL, 2000, p. 14)14 Não se trata de encarar o
de massa. É claro que "[...] há uma ênfase na alta cultura em todos os traba- filósofo como um oráculo ou profeta, portador dos caminhos da utopia, mas,
lhos de Deleuze." (COLEBROOK, 2002, p. 47) A apologia do díspar, daquilo de aprender com a filosofia a desenvolver as faculdades que permitem "[...]
que sabota o senso comum, norte ia os critérios elencados por Deleuze. Po- estar atento ao desconhecido que bate à porta" (DELEuzE, 1996, p. 94); e,
talvez, exercendo uma certa pulsão visionária presente em alguns discursos
rém resta a indagação: não há neste posicionamento um quê de aristocratis-
filosóficos e literários, em especial se entendermos "o filósofo como um ho-
mo? Uma resposta negativa a esta questão parece difícil. Mas, pode-se sus-
mem sem defesa face às visões dos grandes contextos". (SLOTERDIJK, 2003,
tentar, plausivelmente, que, apesar de as escolhas de Deleuze serem
p. 31) A capacidade de prognose respaldada nos conhecimentos provenien-
marcadas por um certo ar aristocrático" - sem esquecer que a aristocracia
tes das ciências humanas e sociais, bem como da filosofia, é diminuta. No
pode ser também por mérito, e não exclusivamente devida à origem de
entanto, uma teoria da sociedade embasada filosoficamente pode nos auxiliar
classe -, elas se situam numa tênue fronteira: aristocráticas, provavelmente,
no sentido de aguçar a nossa percepção para os potenciais ambivalentes nos
mas sem serem esnobes ou preconceituosas.
desenvolvimentos contemporâneos.
O problema dos critérios de julgamento também nos leva a uma ou-
Enfim, quanto à questão dos critérios a partir dos quais emitimos um
tra questão: será que certos indivíduos, bafejados pela graça aristocrática
juízo sobre o mundo que nos cerca, dificilmente pode-se encontrar uma
da criação, podem, a partir dos seus talentos excepcionais, se arvorar como
resposta conclusiva acerca de que hierarquia utilizar. No entanto, não pare-
médicos da cultura? Compartilham os grandes filósofos de dons especiais ce difícil sustentar a tese de que a filosofia nos ajuda a desenvolver nossas
como aqueles que reconhecemos nos grandes gênios musicais ou artísti- competências cognitivas, a apurar nossa capacidade de avaliação ética ou
cos? E a partir desses dons é possível estabelecer os padrões a partir dos estética e a alargar nossas perspectivas de compreensão. Sendo assim, o en-
quais apontamos as inadequações presentes no atual estado de coisas? Po- volvimento com essa disciplina permite justificar melhor as nossas escolhas.
dem-se encontrar argumentos igualmente persuasivos tanto na defesa Como afirma Camille Dumoulié, "[...] mais do que pensar que 'filosofar é
dessa tese quanto no seu rechaço!'. No entanto, dificilmente discordaría- aprender a morrer', como por vezes tendem a nos fazer crer, estamos mais
mos de José Gil quando assevera: "e, como acontece sempre, os mais altos próximos de admitir que filosofar é aprender a preferir e justificar as suas
expoentes de uma época, os que mais fundo penetram nos seus sedimen- preferências." (Duvotn.rs, 2002, p. 5)
tos, adquiriram o poder profético de ver além dela, quer dizer, de prever o
que as deslocações ínfimas, sedimentares produzirão posteriormente como
IV
O cenário contemporâneo apresenta poucos sinais significativos de
IZ A referência a essa idéia de aristocracia mereceria uma melhor explicitação, tendo em vista as
suas inevitáveis conorações anti-democráticas e anti-igualitárias, Entretanto, neste momento transformação social em um sentido progressista, isto é, redistributivo. Um
só poderia dizer que o sentido aqui empregado dessa palavra vincula-se ao papel desempenhado capitalismo turbinado financeiramente estende sua influência por todo o
por certos estratos sociais que por razões de mérito, talento, esforço e, sem dúvida, em muitos globo, produzindo inrerdependências inteiramente novas, reduzindo em
casos graças às origens sociais provenientes dos grupos mais favorecidos sócio-economicamente
muito a área de atuação dos Estados nacionais - arena tradicional dos confli-
são.capazes de desempenhar um papel importante na formação e reprodução do imaginário
socla~,como, por exemplo, intelectuais, artistas, homens de imprensa, políticos, educadores, tos políticos e Jocus no qual os agentes sociais conseguiam articular suas
ciennstas, filósofos, juristas, publicistas, politicólogos, líderes religiosos, militantes políticos e influências no sentido de domesticar os impulsos selvagens do mercado. Os
ecológicos, editores, críticos literários, dramaturgos, roteiristas etc.
13Ê'
Interess~nte como no quadro do pensamento contemporâneo a própria filosofia se despede
de~sa tradição de referência a figuras geniais (por exemplo, Heidegger e Wirtgenstein). Como 14 Em sentido convergente com essa idéia, afirma Jacques Derrida: "Nesse momento eu me digo,
~ahenta Habermas, no texto "Para que continuar com a filosofia?", de 1971, retomando uma portanto, sem ver realmente, sem o saber, que eu estava de algum modo em comunicação com
Indagação formulada em década anterior por Adorno: "o propósito dessas considerações que acontecimentos em curso em domínios onde sou incompetente e isso não me surpreende. Não
seguem não ~ dizer adeus à filosofia, senão explorar as tarefas que legitimamente podem porque eu me atribuiria uma espécie de visão cega, mas porque creio que um trabalho como o
con~ar-sc hoje ao pensamento filosófico, depois que a chegada ao seu fim, não só a grande meu e como outros registra necessariamente tremores, como de um certo modo os animais
podem sentir um tremor de terra que se anuncia. Portanto, algumas vezes registro essa resso-
tradl~ão, senão também, como suspeito, um estilo de pensamento filosófico ligado à sabedoria
individual e à representação pessoal." Habermas, 1975, p. 16. nância." DERRIDA, 1993, p. 30.

276 277
meios de comunicação de massa aumentam sua influência a olhos vistos, a alimentar redes contra-culturais alternativas, capazes de oferecer meca-
consagrando o marketing como a referência básica de uma cultura cada vez nismos de esquiva ao controle. Inspirados em Deleuze, podemos ter como
mais submetida aos impulsos do mundo do consumo. No entanto, há de se mote a idéia de se pensar "contra a cultura, contra o já pensado, o já sabido,
reconhecer que o campo da cultura hoje tornou-se um lugar de luta política as noções estabelecidas, as posições correntes dos problemas, os valores pre-
e que se avolumam as forças convergindo no sentido de resistir "ao entorpe- dominantes: crítica e criação, atos de contracultura, são as faces de Janus do
cimento dos sentidos, à homogeneização da percepção, à fetichização da pensamento." (DIAS, 1998, p. 23) 17 Neste mesmo diapasão, as brechas que
mídia como mediador universal e distribuidor hegemônico de valores." 15 permitem escapar desse horizonte aplainado de uma cultura que se depau-
Afinal, paralelamente a todo esse cenário preocupante acima descrito, cons- pera a reboque da standardização estimulada pela indústria cultural, respal-
tata-se a proliferação de canais de produção e circulação de cultura, propici- dam-se também na idéia de "[ ... ] criação - que vai contagiar outros, ser
ados, sobretudo, pelas novas tecnologias. Some-se a isto o alargamento da dádiva para outros, produzir alhures devires." (CAlAFA,2000, p. 36)
formação escolar e universitária, qualificando um público crescente, insatis- Enfim, nada melhor para concluir do que evocar as reflexões de Foucault:
feito com os processos homegeneizadores impostos por uma indústria cul-
tural que desinforma e dessensibiliza. Com efeito, como afirma Foucault: Sonho com uma nova época, a da curiosidade. Já temos os
meios técnicos; o desejo também está aí; as coisas por conhe-
Não, não acredito nessa ladainha da decadência, da ausência cer são infinitas; as pessoas que poderiam dedicar-se a esse
de escritores, da esterilidade do pensamento, do horizonte trabalho existem. Estamos sofrendo de quê, então? De escas-
obstruído e insípido. sez: de canais estreitos, mesquinhos, quase monopolistas, insu-
Acredito, ao contrário, que há uma pletora. E que não sofre- ficientes. Não adianta adotar uma atitude protecionista para
mos de um vazio, mas de falta de meios para pensar tudo o impedir que a 'má' informação venha invadir e sufocar a 'boa'.
que acontece. É que existe uma grande abundância de coisas É preciso, isso sim, multiplicar os caminhos e as possibilidades
para se conhecer: essenciais ou terríveis, maravilhosas ou en- de idas e vindas. Nada de colbertismo nesse domínio! Isso não
graçadas, ou minúsculas e capitais ao mesmo tempo. E há implica, como muitas vezes se acredita, uniformização e ni-
também uma imensa curiosidade, uma necessidade ou um velamento por baixo, mas, ao contrário, diferenciação e simul-
desejo de saber. Todo dia alguém se lamenta que a mídia taneidade de diferentes redes. (FOUCAULT, 1990, p. 24-25)
entope a cabeça das pessoas. Há uma certa misantropia nessa
idéia. Acredito, ao contrário, que as pessoas reagem; quanto
mais se quer convencê-Ias, mais elas se questionam. O espírito Bibliografia
não é uma cera mole. É uma substância reativa. E o desejo de
saber mais e melhor e conhecer outras coisas cresce à medida BAUGH, Bruce."How Deleuze Can Help us Make Literature Work". In. BUCHA-
que outros querem fazer uma lavagem cerebral." (FOUCAULT, NAN, Ian e MARKS, [ohn (ed.) Deleuze and Literature. Edinburg, 2000, p. 34-56.
1990, p. 23-24)16 BRANCO, Guilherme Castelo. "A Prisão Interior". In: PASSETI, Edson (org.). Kafka,
Foucault: sem medos. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
A filosofia, seguindo a sua vocação de promover novas inteligibilida-
CAIA!:A, Janice. Nosso século XXI - Notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro:
des, pode municiar aqueles que se sentem atingidos pelo atual estado de Relume Dumará, 2000.
coisas com elementos e exemplos capazes de fortalecer uma espécie de
CARRILHO, Manuel Maria. O que é Filosofia. Lisboa: Difusão Cultural, 1994.
resistência vital à cultura da resignação. Neste sentido, ela pode nos auxiliar
COELHO, Eduardo Prado. Situações de Infinito. Porto: Campo das Letras, 2004.

15 "Convocaçãopara a OficinaAberta Resistência e Criação",no Fórum SocialMundial, Porto COLEBROOK, Claire. Gilies Deleuze. New York: Routiedge, 2002.
Alegre,2003.
DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no Século XX. Rio de Janeiro: Jorge
16Quanto a esse otimismode Foucault,esclarecedoro comentáriode GuilhermeCasteloBranco: Zahar, 1997.
"O otimismo de Foucault está na sua convicção de que os movimentos e as mentalidades
libertáriastêm grande poder de contágio,transformando,de maneiradiscretae inconsciente,as
atitudes e os modosde pensar das pessoas." BRANCO,2004, p. 43. 17 Confira-setambém, do mesmoautor:Lógicado Acontecimento.Deleuze e a Filosofia,1995.

278 279
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280 281
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Agradecimentos
Capa
Rafael Silva

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Waldênia Alvarenga Santos Ataíde

Revisão
Walter Ornar Kohan e José Gondra

2006

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Kohan, Walter Ornar
K79f F oucault 80 anos / organizado por Walter Ornar Kohan Aos colegas do Comitê Científico e da
e José Gondra. - Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Comissão Organizadora, pelo trabalho cuidadoso;
304 p.
Aos tradutores-revisores: Alfredo Veiga-Neto, Angélica Borges, Berta
ISBN 85-7526-225-4 Mourad, F abiana de Moraes, Filipe Ceppas, Gilda Gomes Carneiro,
l.Filosofia. 2.Foucault, Paul-Michel.I.Gondra, José. lngrid Mul/er Xavier, Maria José Guzmán, Sérgio Carreira, Sílvio
II.Título.
Gallo, Vera Portocarrero e Wanderson Flor do Nascimento,
CDUl por trabalharem com seu compromisso e contra o tempo;
Ficha 9talográfica elaborada por Rinaldo de Moura Faria -CRB6-IOO6
À Editora Autêntica pela seriedade, eficiência e cuidado estético.
Foucault e Deleuze: a existência
como uma obra de arte!
Ricardo Arcos-Palma

A essência deste texto gira em torno das obras de Michel Foucault e


Gilles Deleuze e da estreita relação que estas mantêm com a arte e a litera-
tura. Dado o caráter breve dessa intervenção, não entraremos em uma aná-
lise em profundidade da complexidade de suas obras. Nesse sentido, esta
intervenção será um verdadeiro pré-texto para desvelar a relação entre o pen-
samento e o sensível e, por conseqüência, para poder compreender como é
possível assumir a existência como uma obra de arte. Veremos como a Arte
em geral serve de pré-texto para esses pensadores na elaboração de seu pen-
samento filosófico. O sensível abordado por Deleuze e Foucault parece ter
uma razão de ser, um caminho lógico, apesar da aparente contradição entre
pensar e sentir: "Efetivamente emitir um juízo verdadeiro ou falso é um ato
de pensamento; este ato consiste em sentir que existe um vínculo, uma
relação ... Pensar, como você vê, é sempre sentir, e nada mais que sentir'". Mi-
chel Foucault se dá conta disso quando põe em evidência os limites da
linguagem e da representação, quando por exemplo, analisa as obras de
Magritte (Isto não é um cachimbo) e de Velázquez (Las Meninas). Gilles De-
leuze, por sua vez, evidencia uma lógica da sensação, ao estudar a obra de
Bacon, e uma lógica do sentido, ao pensar a obra de Artaud, Carroll e de Klos-
sowski, que tratam a relação corpo-linguagem, sensação-pensamento.
Então, nos aproximaremos de vários exemplos; a pintura (Bacon, Ma-
gritte, Velázquez), o romance (Kafka, Carroll) o teatro (Artaud), entre ou-
tros, convertem-se em terreno ideal para desdobrar um pensamento que
faz do sensível seu suporte conceitual.

I Tradução de Fabiana de Moraes; revisão de Ingrid Müller Xavier. Uma versão anterior deste
texto foi apresentada no J Congreso de Filosofia. SCE Bogotá, abril de 2006.
2 Desturt de Tracy, Eléménts d'ldéologie citado por Foucault M. em Les mots el les choses,
Gallimard, Paris 1966.

283
Assim, ficará demonstrado que não existe fronteira entre a arte e a filoso- de A República Platão nos conta como Sócrates se refere à poesia como essa musa
fia, nem tampouco entre a vida e a arte, pois, como dizia o próprio Deleuze - doce que, mesmo que fale de coisas certas, "não sabe por que". E este "por que"
a propósito de Foucault - a vida é uma obra de arte, isto é, que considerar a é fundamental para o caminho lógico do pensamento. Íon, recordemos, é des-
existência "não como um sujeito, mas como uma obra de arte":' permite que pojado de sua posição de portador de verdades, somente pelo fato de falar como
opensamento-artista crie novas maneiras estéticas e éticas de viver a vida. Este "possuído por uma espécie de furor divino". Pois esse "furor divino" e a "musa
pensamento-artista cria então uma nova maneira de conhecer a existência, doce", nos falam do inconsciente e, por conseguinte, do sensível.
uma nova maneira ética e estética, pois, viver esteticamente é possível se se Friedrich Nietzsche em A origem da tragédia ou Grécia e opessimismo nos
assume a existência como uma obra de arte onde este novo pensamento- dá conta da morte da tragédia. Segundo o pensador alemão, a tragédia morre
artista, isto é, criativo, cria um estilo de vida, pois, "o estilo, [diz Deleuze] em a partir da reforma imposta por Eurípides, o último trágico grego. Sua refor-
um grande escritor, [e, podemos acrescentar, em todo grande artista] é sem- ma consistia em eliminar o coro (tragikói kÓroi). E, ao eliminar o coro, elimi-
pre um estilo de vida, nem um pouco algo pessoal, mas a invenção de uma nava a voz da cena. Bem sabemos que os atores na Grécia antiga faziam
possibilidade de vida, de um modo de existência", em que o processo de mímica do que o coro cantava e contava. Suprimido o coro, não somente a
subjetividade tende a se impor, mas em outro território, "desterritorializan- tragédia perdia a voz como também o corpo trágico. Significa que, o que
do" o Eu de seus domínios e, em um "ato de fabulação", inventar essa comu- acontece nessa operação, é a imposição da representação como um simula-
nidade estética e ética. cro e uma imitação de uma realidade e, portanto, absolutamente falsa e
N um primeiro momento, veremos como o sentir é fundamental para o enganosa. Cria-se dessa maneira uma distância enorme entre o público e a
pensamento filosófico. Em um segundo momento, nos aproximaremos do cena. Bem sabemos que este fato estava destinado a despojar a tragédia de
pensamento de Foucault em que a pintura se converte no terreno idôneo sua carga emotiva e exaltadora das paixões, perigosas segundo Sócrates para a
para desvendar as complexidades da representação, quando esta lida com a educação da juventude (A República), que devia reger-se pela razão e não
linguagem. Num terceiro e último momento, veremos como Deleuze se pelas falsas aparências.
aproxima da literatura e da pintura para resolver as interrogações acerca do Eurípides, então, "só foi uma máscara. A cada vez, a divindade que
que denominou o corpo-linguagem. Em suma, com este percurso preten- falava por sua boca não era nem Dioniso nem tampouco Apoio, mas um
demos ter mostrado como o sensível se torna o eixo fundamental do pensa- demônio de nascimento muito recente - que tinha por nome Sócrates. Tal
mento contemporâneo, o que é outra maneira de afirmar que existe um é o novo antagonismo: socratismo contra dionisismo. A tragédia perece"."
pensamento estético que alimenta a filosofia.
Efetivamente, o "socratismo estético", como bem mostra Nietzsche,
influenciou em grande medida a separação entre o sensível e o pensamento.
Sentir-pensar: em direção à não separação A tragédia conferia um Iugar importante ao corpo e, por fim, ao sensível.
Desde que Sócrates inaugura seus diálogos filosóficos, cria-se uma dis- Com a morte da tragédia, enterra-se o corpo (sôma) na prisão (sêma) que
tância entre o pensar e o sentir. Fato compreensível, dado que o pensar encerrará a alma (para o cristianismo de Plotino), o espiritual e o ideal na
pertence à esfera do noumenal, ou das idéias; e o sentir, à esfera material e, matéria. Por exemplo, nas esculturas de Michelangelo -leitor entusiasta de
em particular, ao corpo. Tudo o que se relaciona aos sentidos nos leva ao erro, Platão e de Plotino - que fazem parte do monumento funerário do Papa
ao equívoco, segundo Sócrates, pois, aquilo que percebemos não passa de Júlio IIe, particularmente, o conjunto dos escravos, nos mostram a materia-
"sombras" de uma realidade, pura aparência e, como aparência, nos mostra lização perfeita da separação entre o corpo e a alma. Na escultura em már-
um mundo distanciado da verdade, pretensão fundamental da filosofia. more chamada o escravo moribundo (Roma, 1513-1515), que se encontra hoje
Dentro desse mundo aparente, estão naturalmente a arte (techne), a música no Museu do Louvre, vemos o corpo representado em estado de sofrimen-
(musike), o teatro (scene) e a poesia (poíesis). E bem sabemos que estas artes nos to. Aos pés do escravo, está acorrentado um chimpanzé que representava,
falam do sensível. Para melhor compreender, recordemos como no Livro X segundo a iconografia da época, o que há de mais humano no ser humano: os

3 DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Minuit, Paris, 1990/2003. 4 NIETZSCHE Friedrich. La naissance de Ia tragédie. Gallimard. Folio-Essais, Paris, 1977.

284 285
pecados. A leitura que se devia fazer na época de Michelangelo é a seguinte: Roussel, Artaud, Borges, Velázquez, Magritte, entre outros. Por exemplo, sua
o corpo humano, enquanto matéria destinada a desaparecer, está atado ao teoria da semelhança no ensaio sobre a obra de Magritte Isto não é um cachim-
pecado, ao animal, ao irracional. O paralelo entre o corpo, o irracional e o bo lhe serve de pré-texto para compreender o problema da representação e
pecado é evidente. A cisão está feita entre a esfera noumenal e a esfera fenomê- o enunciado dentro do campo da linguagem. Este problema é mais profun-
nica, entre o mundo celestial e o mundo terreno, entre o pensamento e o damente desenvolvido em seu famoso texto As palavras e as coisas, publica-
sensível. O mundo da dança, da música, da embriaguez, do teatro, está conde- do em 1966. Surpreende ver no prefácio desse livro as primeiras frases:
nado ao mundo aparente, enquanto que o mundo da verdade se instaura
deixando de lado o sensível. Apesar da retificação de Aristóteles, em sua Poé- Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que com sua
tica, e dos esforços de Hegel e dos Românticos alemães, o mundo do sensível leitura perturba todas as familiaridades do pensamento - do
permanece relegado ao engano, à falsa aparência, à mímesis. nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia -, aba-
lando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
O artista da Antigüidade nada mais é que um imitador que tenta com- tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar,
petir com a Natureza e, em sua tentativa, os sentidos são enganados, coisa e inquietando por muito tempo, nossa prática milenar do
que não pode acontecer com a razão. O famoso duelo entre Zeuxis e Parrha- Mesmo e do Outro. 5
sius demonstra esse fato. O primeiro, hábil pintor reconhecido por todos em
sua época como o maior dos gênios, desafia Parrhasius para ver quem é o O livro a que Foucault faz referência é um texto em que Borges nos fala
melhor. Zeuxis, em sua tentativa de competir com a Natureza, consegue de uma certa Enciclopédia chinesa, onde existe uma classificação de várias coi-
enganar os sentidos: ao pintar com maestria umas frutas, as aves vinham sas, dentre elas dos animais. Tal classificação faz com que o filósofo se per-
bicar os objetos representados, tão forte era sua semelhança com o modelo gunte "O que é impossível de se pensar, e de que impossibilidade se tra-
natural. Parrhasius decide ir mais além: não somente enganará a mesma ta?"6. Indubitavelmente, sua famosa História da loucura, nos mostra como
Natureza como também os sentidos: ele pinta com igual maestria outro nos séculos XVIII e XIX o confinamento surge frente à impossibilidade de
conjunto de frutas para o qual igualmente atrairá as aves. Os jurados, para pensar a loucura, de aceitá-Ia como o outro da alteridade. O mesmo acontece
comprovarem seu talento, aproximam-se da pintura e tentam levantar uma com a História da semelhança, e na mesma época, em que a representação entra
cortina que a cobria parcialmente. A surpresa é total quando se dão conta de em crise e a linguagem tende a desaparecer para dar lugar às coisas. Um texto
que a cortina também é uma ilusão pictórica, fato que atesta que o ganhador que serve de pré-texto a outro. Um texto literário que serve de ponto de
do concurso foi Parrhasius, por haver logrado um duplo engano. partida para pensar o pensamento. Mas antes de seguir vejamos, primeira-
Tivemos de esperar Nietzsche, com sua crítica ao platonismo, para mente, o que é um texto literário. Sem dúvida alguma, é esse espaço onde a
nos darmos conta de que o sensível é parte importante do sistema filosófi- ficção se instala para se tomar verdade. Acreditamos nas cidades invisíveis que
co, não somente como objeto de estudo, pois a Estética de Baugartem Marco Polo descreve a Kublai Khan porque as palavras nos fornecem o solo
como percepção do sensível havia aberto este caminho, mas também como ideal para reconstruirmos e representarmos essas cidades que o imperador
fundamento do pensamento filosófico propriamente dito. É precisamen- chinês vê através do relato do navegante, segundo a prosa de Italo Calvino.
te dentro desta ótica que se inscrevem os pensamentos de Michel Fou- Nesse sentido, o texto aparece como uma revelação da verdade em que acre-
cault e de Gilles Deleuze. ditamos, mesmo que transitoriamente. Nesses termos, como é possível que a
verdade se encontre numa ficção? Dito de outra maneira, como é possível
que o sensível- com esse caráter hilário que o texto de Borges produz em
Foucau1t: por uma história da semelhança frente à
Foucault - seja levado a sério?
crise da representação e do possível desaparecimento da
No mesmo texto foucaultiano, surge uma imagem:
linguagem nos interstícios do sem-sentido.
Para Foucault - nietzscheano por excelência - a arte e a literatura são 5 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Nrf; Gallimard, Paris, 1966, p. 7, as traduções,
fundamentos do pensamento filosófico. Para fundamentar tal construção quando não se indica o contrário, são do autor.
conceitual, o filósofo desenvolve uma série de relações textuais com Blanchot, 6 Ibidem, Ibidem.

286 287
o pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança ligeira- o
filósofo faz de nós participantes da cena pictórica em que o artista
mente um olhar para o modelo; trata-se, quem sabe, de acres- está executando a obra. Ao fazer essa leitura, Foucault nos introduz no ins-
centar a última pincelada, mas talvez se trate do primeiro tante mesmo em que Velázquez pinta o quadro. Graças a isso, deixamos de
traço que ainda não havia sido posto. O braço que segura o
simples espectadores de um quadro pendurado na parede do Museu do
pincel está caído para a esquerda, na direção da paleta; ele
Prado, em Madri, para nos colocarmos diretamente no espaço pictórico.
está, por um instante, imóvel entre a tela e as cores. Esta mão
Melhor dizendo, é o espaço pictórico que transborda a armação do quadro
hábil está pendente do olhar; e o olhar por sua vez repousa no
para nos incorporar à cena. Isso é possível graças ao aparecimento dessa "in-
gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar,
o espetáculo vai liberar o volume', visibilidade" de que fala Foucault. Invisibilidade que se faz presente quan-
do observamos o quadro, posto que nós mesmos somos essa invisibilidade.
Nesse instante congelado de criação pictórica ao qual o filósofo parece Invisibilidade porque não estamos dentro do espaço pictórico representado
assistir, a imagem se refaz, volta a ser pintada aos olhos do leitor. Aqui, sur- por Velázquez, mesmo que dentro do espaço virtual do olhar. O quadro Las
gem várias figuras a serem consideradas: pensador-pintor, escritor-pensa- Meninas serve de pré-texto para que o filósofo desenvolva sua teoria da
dor e pensador-espectador. Em todos os casos, trata-se de um ponto de vista semelhança, e a representação, precisamente, serve de apoio para elucidar o
que marca caminho para que o sensível entre nos domínios da razão. E o papel do pensar e do sentir, justamente onde a linguagem adquire um novo
pensador-sensível continua com seu relato-descrição da pintura: aspecto gramatical. No capítulo intitulado "Os limites da representação",
de As palavras e as coisas, Foucault nos mostra como o sentir é próprio do
Não sem um sistema sutil de evasivas. Tomando um pouco pensar e vice-versa. Para ele, o pensamento do século XVIII de ideólogos
de distância, o pintor se situou ao lado da obra sobre a qual como Destutt de Tracy e o pensamento da crítica kantiana atuam sobre os
está trabalhando. Isso quer dizer que, para o espectador que
limites da representação; o primeiro no interior dela e o segundo no exterior,
no momento olha, ele está à direita de seu quadro, que ocupa
o qual torna possível as filosofias da Vida, da Vontade e da Palavra que o
toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador, o
século XIX vai desenvolver a partir dos pressupostos de Kant,
quadro volta as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a
imensa armação que o sustenta. O pintor, em troca, está perfei-
Ela [a Ideologia] é em certo sentido o saber de todos os sabe-
tamente visível em toda sua estatura; em todo caso, ele não está
res. Mas esse-desdobramento fundador não a faz sair do cam-
escondido pela grande tela, que quem sabe, vai absorvê-Io logo po da representação; ela tem como fim reduzir todo saber sobre
em seguida, quando, ao dar um passo em sua direção, se entre- uma representação à imediatez daquela que não escapa ja-
gará novamente a seu trabalho: sem dúvida, nesse mesmo ins- mais: 'Você nunca se deu conta do que é pensar, do que você
tante, acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa experimenta quando pensa qualquer coisa? ... Você diz: eu
espécie de grande gaiola virtual que projeta para trás a superfí- penso aquilo, quando você tem uma opinião, quando forma
cie que ele está pintando [...] O pintor olha, o rosto virado ligei- um juízo. Efetivamente, realizar um juízo verdadeiro ou falso
ramente e a cabeça inclinada em direção ao ombro. Ele fixa um é um ato do pensamento; este ato consiste em pensar que
ponto invisível, mas que nós espectadores podemos livremente existe um vínculo, uma relação ... Pensar, como você pode ver,
determinar que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, é sempre sentir e nada mais que sentir. [Destutt de Tracy,
nosso rosto, nossos olhos. O espetáculo que ele observa é então Eléments d'Idéologie, I, p. 33-35]
duas vezes invisível: posto que não está representado no espa-
ço do quadro, e porque se situa precisamente nesse ponto cego, Tem-se que notar, no entanto, que ao definir o pensamento de uma
esse esconderijo essencial onde se oculta para nós nosso olhar relação pela sensação dessa relação ou, mais brevemente, o pensamento em
no momento em que olhamos."
geral pela sensação, Destutt cobre bem, sem sair, o campo inteiro da repre-
sentação; mas ele alcança a fronteira onde a representação, como forma pri-
7 lbidem, p. 19.
meira, absolutamente simples da representação, como conteúdo mínimo
81bidem, p. 19-20.
do que pode dar-se ao pensamento, oscila na ordem do que as condições

288 289
fisiológicas podem dar conta [...] Encabeçando a Ideologia, a crítica kantiana Artaud, Carroll e KIossowski ou o corpo-linguagem
marca, em contrapartida, o suporte de nossa modernidade; ela interroga a em Deleuze", uma maneira de aproximação entre
representação não segundo o movimento definido, que vai do simples ele- o sensível e o pensamento.
mento a todas as combinações possíveis, mas a partir de seus limites de
Tomaremos a relação dual corpo-linguagem, configurada por Deleuze
direito. Assim, ela sanciona pela primeira vez este acontecimento da cultura
em boa parte de sua obra e, particularmente, em seus estudos sobre Antonin
européia que é contemporâneo ao final do século XVIII: a retirada do saber
Artaud, Lewis Carroll e Pierre Klossowski. No caso de Artaud, o problema do
e do pensamento do espaço da representação. Aquele é questionado em seu
fundamento, em sua origem e suas marcas: pelo simples fato de o campo corpo e da linguagem é abordado por Deleuze como uma tensão dual em que
ilimitado da representação, que o pensamento clássico havia instaurado, ao o "corpo glorioso" é o corpo sem órgãos (CsO), que seria conformado somente
qual a Ideologia havia querido recorrer, segundo uma metodologia discursi- de "sangue e ossos", segundo os próprios termos de Artaud, onde a linguagem
va e científica, parecer-se com uma metafísica. Mas como uma metafísica se manifesta de uma maneira corporal, através da palavra soprada, tirada do ar
que não será nunca rodeada, que será posta num dogmatismo advertido, e ou através da escrita que se torna excremencial e, portanto, vestígio do corpo.
que nunca teria feito vir à luz a questão de seu direito. Nesse sentido, a A relação dual corpo-linguagem nos mostra como Artaud foi o único que pôde
Crítica faz ressurgir a dimensão metafísica que a filosofia do século XVIII ter sido "profundidade absoluta em literatura" e, ao mesmo tempo, ter desco-
quis reduzir pela análise da representação. Mas ela ao mesmo tempo abre a berto um "corpo vital e uma linguagem prodigiosa" desse corpo.
possibilidade de outra metafísica que teria como propósito interrogar fora No caso de Carroll, em clara oposição a Artaud, a dualidade corpo-
da representação tudo o que é a fonte e a origem; ela permite essas filosofias linguagem se manifesta com o alimento e a palavra: Em Alice, a dualidade
da Vida, da Vontade, da Palavra que o século XIX vai desdobrar a partir do
oral comer e falar, ingerir e proferir, gera uma certa "superficialidade" em
assento da crítica."?
que, segundo Deleuze, encontra-se toda a lógica do sentido. Se Artaud é
Assim, boa parte da obra de Foucault é alimentada pela esfera do sensí- profundidade absoluta, Carroll, ao contrário, é pura superficialidade. Nos
vel. Os escritos sobre Magritte, sobre Raymod Roussel, o inédito sobre Manet, dois casos, uma linguagem esquizo toma forma no sem sentido, encarnan-
e as leituras e diálogos filosóficos com os textos de Blanchot, de Artaud, de do-se entre a dualidade, no interstício da tensão. Assim, a linguagem carro-
Borges, entre outros, mostram esse apego à arte, como fonte de conhecimento
lliana cai numa espécie de canibalismo gramatical, em que se "reúnem o
e ao mesmo tempo como estilo de vida. Nesse interesse, transparece essa "es-
alimento e o excremento. Até as palavras transbordam", numa orgia textual.
tilização da existência" que ele defendia ou buscava. "O que me surpreende
Outra é a dualidade corpo-linguagem na obra de Klossowski. Uma
- havia declarado a Dreyfus e a Rabinov - é que, em nossa sociedade, a arte só
tenha relação com os objetos e não com os indivíduos e com a vida ... A vida de obra em que esta relação se manifesta na "flexão", que se torna o ponto de
todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte?" 10 Com efeito, considerar a encontro, de união, o lugar-comum onde a linguagem é puro gesto e o corpo
vida e a existência como uma obra de arte é conferir a ela esse caráter ético que é linguagem. Tal ponto de interseção é, segundo Deleuze, uma "transgres-
faz falta à arte e, ao mesmo tempo, esse caráter estético que faz falta à própria são" que faz possível o surgimento do pornógrafo, onde a prostituta (pome) e
vida. Os "processos de subjetivação", que inventa F oucault - nos diz Deleuze a escrita (graphe) se reúnem da melhor maneira sadiana, e onde a linguagem
-, tendem à constituição não de um novo indivíduo, mas de novas possibilida- textual e gráfica, ao mesmo tempo, geram o que denominei uma corporeida-
des de vida, ou seja, "a existência não como um sujeito, mas como uma obra de da linguageml3• Roberte é o personagem que encarna esta tensão.
de arte" Ii onde se configura um "pensamento-artista", isto é, um pensa-
mento criativo e, por conseqüência, sensitivo. 12 Este tema que faz parte do corpus de minha tese de doutorado, intitulada De Ia corporéité du
langage. Le corps comme pre-texte et comme texie en soi-même, foi desenvolvido amplamente na
palestra apresentada no evento internacional Deleuze: una imagen de pensamiento. Pontificia
9 FOUCAULT, Michel. op. citop. 253-256. Universidad Javeriana. Bogotá, agosto de 2005.
10 ERlBON, Didier. Michel Foucault. Flammarion. Paris, 1991, p. 355. I3 Arcos-Palma, Ricardo. De Ia corporeaé du langage. Depósito de teses. Biblioteca da Sorbonne.
11 DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Minuit, Paris, p.131. Paris. 2005. texto que se encontrará em breve na Biblioteca Luis-Angel Arango.

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A relação dual corpo-linguagem, em termos deleuzianos, evidencia o um povo [...] O que a literatura produz na língua já aparece
que pareceria realmente ilógico: uma razão dos sentidos. Com efeito, a lógica melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espé-
do sentido, assim como a lógica da sensação (Bacon) não é outra coisa que cie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um dia-
colocar em evidência o conhecimento sensitivo e, portanto, absolutamente leto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma
corporal. Isso gera uma nova maneira de conhecer a existência, uma nova minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma
maneira ética e estética, pois viver esteticamente é possível se se assume a linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. Kafka - con-
existência como uma obra de arte, em que o pensamento-artista, ou seja, o tinua DeIeuze - faz o campeão de natação dizer: falo a mesma
pensamento criativo, gera um estilo de vida ético e estético, pois "o estilo _ língua que você e, no entanto, não compreendo sequer uma
diz Deleuze - em um grande escritor, é sempre um estilo de vida, de modo palavra do que você diz. Criação sintática, estilo, tal é o devir
algum algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um da língua: não há criação de palavras, não há neologismos
modo de existência. É curioso como em certas ocasiões dizemos que os filó- válidos fora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem",
sofos não têm estilo, ou que eles escrevem mal. Isso deve ser porque não os
Tal criação sintática é possível dentro de um combate em que a língua
lemos. Na França, Descartes, Malebranche, Maine de Biran, Bergson, Au-
materna se destrói, se desfaz e se refaz, onde a invenção de um povo através
guste Cornte, mesmo com seu lado Balzac, são estilistas"!",
da escrita é uma "possibilidade de vida", segundo a expressão deleuziana.
Foucault - nos diz Deleuze - "é um grande estilista". Esses estilos de
Para isso, o filósofo-escritor vai encontrar suporte ideal no estilo de Lewis
vida, então, geram um "pensamento-artista", segundo a expressão do pró-
Carroll, Antonin Artaud e Pierre Klossowski.
prio Deleuze, isto é, um pensamento que se assume como criativo e criador
E que melhor exemplo de criação, na esfera da linguagem, que a própria No Anti-Édipo (livro escrito com F élix Guattari), Deleuze se aproxima
literatura? Kafka, Blanchot, Proust, entre outros, sugerem a Deleuze o ca- da escrita artaudiana, onde aparece o sem sentido da profundidade da lin-
minho a seguir. O pensamento deleuziano se encontra, então, no limite ou guagem: "As máquinas desejantes fazem de nós um organismo, mas no seio
na fronteira entre a escrita de novela e a escrita filosófica. Ou seja, o pensa- dessa produção, em sua própria produção, o corpo sofre por estar assim orga-
mento filosófico deleuziano pretende criar uma concepção, uma união en- nizado, por não ter outra organização, ou nenhuma organização. 'Uma pausa
tre esses estilos de escrita e não uma separação, como pode acontecer. Daí, incompreensível e bem certa' no meio do processo, como terceiro tempo:
origina-se sua noção de estilo de vida que tem ressonância em Foucault, em 'nada de boca, nem de língua ... nada de dentes, nem de faringe. Nem esôfago. Nem
que o processo de subjetividade tende a se impor, mas em outro território, estômago. Nem ventre. Nem ânus: Os autômatos se imobilizam e deixam subir
"deterritorializando" o Eu de seus domínios e num ato de fabulação inven- a massa inorganizada que eles articulam. O corpo pleno sem órgãos é o im-
tar essa comunidade estética e ética. Esta já era a idéia de "modo", em produtivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível. Antonin Artaud o des-
Spinoza, nos diz Deleuze, graças ao qual este último elabora sua filosofia cobriu lá onde ele estava, sem forma e sem figura"!',
prática e sua teoria da expressão. A fórmula artaudiana do CsO atravessará boa parte da obra de Deleu-
Em 1969, em seu prefacio à Lógica do sentido, Deleuze afirma que "este ze. No caso do primeiro volume de Esquizofrenia e capitalismo, a linguagem
livro é um ensaio de romance lógico e psicanalítico"!s. Ou seja, que o que de Artaud dentro de seu delírio gramatical serve de pré-texto ao filósofo
constitui o livro é uma tentativa de unir o ato lógico e científico a um ato para encontrar um vínculo fundamental entre o corpo, a máquina e a produ-
fabulador de escrita, onde a linguagem filosófica pretende ser criativa num ção próprios do mundo capitalista. O Corpo sem Órgãos é aquele que evi-
ato literário e, por conseguinte, estético, para criar uma saúde da literatura: dencia esse corpo autônomo, não dependente e até certo ponto livre; "cor-
po glorioso" que torna-se uma verdadeira máquina de guerra dentro do
A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar sistema deleuziano,
um povo que faz falta. Compete à função fabuladora inventar

16 DELEUZE Gilles. Critiqueetclinique. Minuit. Paris, 1993, p. 15. DELEUZE, Gilles. Trad.
14 DELEUZE Gilles. Pourparlers. Minuit, Paris, 1990/2003, p. 138. Porto Peter Pál Pelbart: Critica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 14-5.
IS DELEUZE Gilles.Logiquedusens. Minuit, Paris, 1969, p. 7. 17 DELEUZE Gilles. L 'Antioedipe. Minuit, Paris, 1972/1973, p. 14.

292 293
superfície do espelho fissurado, enquanto a superficialidade de Carroll se
Anos mais tarde, em 1981, Deleuze retoma a fórmula artaudiana para
pensar a Lógica da sensação, a partir da obra de Francis Bacon. o sétimo instala na profundidade do outro lado do espelho:
capítulo, dedicado à histeria, o filósofo nos diz o seguinte:
Em primeiro lugar, ali temos ainda a impressão de uma certa
semelhança com as séries carroIlianas. A grande dualidade
Mais além do organismo, mas também como limite do corpo
oral comer-falar, também em Lewis CarroIl, ora se desloca e
vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem ór-
passa entre duas espécies de proposições ou duas dimensões
gãos. "O corpo é o corpo. Ele está só e não necessita de órgãos.
das proposições, ora se endurece e devém pagar-falar, excre-
O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimi-
gos do corpo" [Artaud, in 84, N 5-6 (1948)]. O corpo sem ór- mento-linguagem (Alice deve comprar o ovo na loja da ovelha
gãos opõe-se menos aos órgãos que a esta organização dos órgãos e Humpty Dumpry paga as palavras; quanto à fecalidade,
a que chamamos organismo. É um corpo intenso, intensivo como diz Artaud, ela é em toda parte subjacente na obra de
[...] Podemos crer que Bacon encontra Artaud em vários pon- CarroIl). Da mesma forma, quando Antonin Artaud desenvol-
tos: a Figura é precisamente o corpo sem órgãos (desfazer o ve suas próprias series antinômicas, 'ser e obedecer, viver e
organismo em benefício do corpo, o rosto em benefício da existir, agir e pensar, matéria e alma, corpo e espírito', ele pró-
cabeça); o corpo sem órgãos é carne e nervo; uma onda o per- prio tem a impressão de uma extraordinária semelhança com
corre traçando nele os níveis; a sensação é como o reencontro Carrol!. O que ele traduz dizendo que para além dos tempos,
da onda com as Forças que agem sobre o corpo, 'atletismo Carroll o pilhou e plagiou, a ele Antonin Artaud, tanto no que se
afetivo', grito-sopro; quando ela está assim relacionada ao cor- refere ao poema de Humpty Dumpty sobre os peixes, quanto ao
po, a sensação deixa de ser representativa, ela torna-se real. E Jabberwocky.E, no entanto, por que Artaud acrescenta que nada
a crueldade será cada vez menos vinculada à representação de tem a ver com Carroll? Por que a extraordinária familiaridade é
algo horrível, ela será somente a ação das forças sobre o corpo também uma radical e definitiva estranheza? [...] Por todo Car-
ou a sensação (o contrário do sensacional)." roIl nós não daríamos uma página de Antonin Artaud; Artaud é
o único a ter sido profundidade absoluta na literatura e desco-
Nessa linguagem artaudiana do sem sentido próprio ao delírio, encon- berro um corpo vital e a linguagem prodigiosa deste corpo, à
tra-se a possibilidade de unir o sensível ao pensável. A carne, nos quadros do força de sofrimento, como ele diz. Ele explorava o infra-sentido,
pintor, encontra seu corpo na não-organicidade da linguagem artaudiana. O ainda hoje desconhecido. Mas CarroIl continua sendo o mestre
CsO torna-se assim a fórmula que cria uma textura e um contexto do corpo ou o agrimensor das superfícies, que acreditávamos tão bem
na lógica da sensação. Mas aqui acontece um deslizamento de Artaud em conhecidas a ponto de que já não as explorávamos, onde contu-
direção de Carroll, da profundidade à superficialidade da linguagem, do do tem-se toda a lógica do sentido."
sem sentido absoluto à lógica do sentido. Deleuze, no capítulo intitulado
Mas essa lógica do sentido se instaura dentro do não-sentido, de um
Do esquizofrênico e da Menina, da Lógica do sentido, mostra corno Artaud,
em sua identificação-diferenciação com Carroll, cria uma distância em que verdadeiro combate gramatical, numa orgia das palavras em que estas se
aparece uma série de dualidades que tornam possível a tensão entre a pro- devoram entre si, e onde a superfície torna-se cenário perfeito para que as
fundidade e a superfície. O poeta se sente roubado e usurpado em várias coisas falem, em direta relação com as palavras, para que os animais ganhem
ocasiões pelo escritor que lhe antecede, que lhe roubou suas palavras num vida e se expressem, para que Alice aumente e diminua de tamanho segun-
poema que ele mesmo teria escrito melhor. Identificação esquizóide diante do seu desejo, ali onde nada parece ter sentido, pois o pensamento está mais
da impossibilidade de reconhecer-se no espelho, pois no caso de Artaud não que nunca instalado na profundidade do sensível, na carne das palavras:
há outro lado do espelho, onde Alice habita com suas palavras-alimentos,
Tudo em Lewis CarroIl começa por um combate horrível. É o
mas apenas um único espelho, quebrado em mil pedaços. O paradoxo é que
combate das profundidades: coisas arrebentam ou nos fazem
a profundidade da qual nos fala Deleuze no caso de Artaud se instala na

18 DELEUZE GiJles. Francis Bacon. Logique de Ia sensation. Seuil, Paris, 2002, p. 47-48. 19 DELEUZE, GiJles. Logique du sens. p. 105 e 114.

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arrebentar, caixas são pequenas demais para seu conteúdo, co- No caso de Pierre Klossowski, a transgressão, no melhor sentido sadia-
midas são tóxicos ou venenosos, tripas se alongam, os monstros no, encontra-se na fIexão das palavras, em que o corpo-linguagem torna-se o
nos tragam [...] Os corpos se misturam, tudo se mistura numa que denominei um teaograma'". Deleuze encontra na obra de Klossowski,
espécie de canibalismo que reúne o alimento e o excremento.
que oscila entre a arte, a literatura e a filosofia, um bom pré-texto para
Mesmo as palavras se comem. É o domínio da ação e da paixão
completar a relação corpo-linguagem, implícita na obra de Klossowski. Ro-
dos corpos: coisas e palavras se dispersam em todos os sentidos,
berte - reencarnação pornográfica de J uliette - é que possibilita a transgres-
ou ao contrário, soldam-se em blocos indecomponíveis. Nas
são na linguagem. Nas repetidas violações às quais se vê submetida pelo
profundezas tudo é horrível, tudo é não-senso. Alice no país das
Colosso e pelo Anão não é somente o corpo em si que se transgride, mas a
maravilhas era para intitular-se inicialmente As aventuras subter-
própria linguagem. Existe em Klossowki uma aproximação teológica em
râneas de Alice. [... ] Não que a superfície tenha menos não-senso
que a palavra transgride os limites da linguagem para colocar-se na prostitu-
do que a profundidade. Mas não é o mesmo não-senso. O da
ta (porne) do sentido através do traço e da escrita (graphe) do escritor (gra-
superfície é como a 'Cintilância' dos acontecimentos puros,
pheús). Klossowki torna-se o pornográfico por excelência e, quanto a isso,
entidades que nunca terminam de chegar nem de retirar-se [...]
Deleuze afirma as dualidades do corpo-linguagem:
Coube a CarroIl ter feito com que nada passasse peJo sentido,
apostando tudo no não-senso, já que a diversidade dos não-
A obra de Klossowski é construída sobre um admirável parale-
sensos é suficiente para dar conta do universo inteiro, de seus
lismo do corpo e da linguagem, ou, mais ainda, sobre uma refle-
terrores bem como de suas glórias: a profundidade, a superfície, xão de um no outro. O raciocínio é a operação da linguagem,
o volume ou superfície enrolada.ê" mas a pantomima é a operação do corpo. Por motivos a determi-
nar, Klossowski concebe o raciocínio como sendo de essência
Mas tudo não termina ali para Carroll que, segundo Deleuze, nos submer- teológica e tendo a forma do silogismo disjuntivo. No outro
ge na dualidade da oralidade: comer ou falar, ser comido ou comer, falar com pólo, a pantomima do corpo é essencialmente perversa, e tem a
calar-se, nomear os alimentos ou comer as palavras. Eis aqui o drama em que se forma de uma articulação disjuntiva. [...] não se trata de falar
encontra Alice: as obsessões alimentares tornam-se uma impossibilidade de dos corpos tais como são antes da linguagem ou fora da lingua-
comer. O pato que discute com o rato sobre isto que o arcebispo acha razoável. gem, mas ao contrário, se trata de formar com as palavras um
'corpo glorioso' para os puros espíritos. Não há obsceno em si,
"Achou o quê? Pergunta o pato. Isto responde o rato. Mas isto que encontra o
diz Klossowski; isto é, o obsceno não é a intrusão do corpo na
pato é, em geral, uma rã ou um verme. Ou seja, Deleuze nos diz que aquilo que linguagem, 'mas sua reflexão comum, e o ato de linguagem que
é designável e designado pode ser consumível e comestível. A ambigüidade do fabrica um corpo para o espírito, o ato pelo qual a linguagem
termo isto se encontra no limite da designação e da expressão": assim se ultrapassa a si mesmo, refletindo um corpo. "Não há
nada mais verbal do que os excessos da carne ... A descrição
No jantar de cerimônia de Alice, comer o que se vos apresen- reiterada do ato carnal não somente dá conta da transgressão,
ta ou ser apresentado ao que se come. Comer, ser comido é o ela própria é uma transgressão da linguagem pela linguagem". 24
modelo da operação dos corpos, o tipo de sua mistura em pro-
fundidade, sua ação e paixão, seu modo de coexistência um Com efeito, a transgressão está na linguagem e pela linguagem. Os
no outro. Mas falar é o movimento da superfície, dos atributos místicos, como Santa Teresa de Ávila, se dão conta disso na experiência do
ideais ou dos acontecimentos incorporais. Pergunta-se o que é êxtase: quando ela pede a Deus (O Verbo) que a beije na boca, a transgres-
mais grave, falar de nutrir-se ou comer as palavras." são, antes de ser corporal, é antes de tudo verbal.

20 DELEUZE, Gilles. Critique er Clinique. p. 34-35. DELEUZE, Gilles. Trad. Porto Peter Pál 23 O textograma não é uma ilustração textual, mas faz parte da corporeidade da linguagem. Este
Pelbart: Critica e Clínica. São Paulo: Editora 34,1997, p. 31-2. tema é amplamente desenvolvido no terceiro capítulo de minha tese de doutorado De Ia corpo-
réité du langage. Depósito de teses, Universidade de Sorbonne e apresentada em 2003 como
21 DELEUZE, Gilles. Logiquedusens. p. 39.
palestra no College Intenational de Philosophie.
22Ibidem, p. 36.
24 DELE UZE. G. Logique du senso p. 325-326.

296 297
Conclusão Os autores
Esboçamos brevemente a relação estreita entre o pensar e o sensível nos
sistemas filosóficos de Foucault e Deleuze, os quais, seguindo o caminho
aberto por Friedrich Nietzsche, elaboraram um pensamento-artista, isto é,
criativo. Tal pensamento supera a barreira mental que separa o mundo ideal
(nous) e o mundo material (phjsis). O Uno Todo se funda nesses modos de
existência que fazem da vida uma obra de arte, onde a arte transborda do
mundo dos objetos para inscrever-se dentro da esfera vital da natura naturante
(Spinoza), a essência do viver o mundo. Onde ética e estética se unem para que
se reinvente esse povo por vir, essa "opção de vida", onde o sensível tem
sentido e sua lógica própria, onde o entendimento torna-se pré-sentimento,
"pele eriçada" como diria Artaud, isto é, pura corporeidade. Pois bem sabe-
mos que já não existe separação entre o sensível e o intangível, entre o corpo ALFREOO VEIGA-NETO
e o lôgos, entre a arte e a vida, ou ao menos isso é o que devemos assegurar, para Professor Titular do Departamento de Ensino e Currículo e do Pro-
evitar que a arte siga sendo algo alheio à existência. Somente assim garantir- grama de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da
se-á que a ARTE continue sendo o pré-texto idôneo para o pensamento filo- UFRGS. Professor do PPG-Educação da ULBRA. Além de vários arti-
sófico e que a existência assumir-se-á como uma verdadeira obra de arte. gos em periódicos científicos e capítulos de livros, organizou Critica Pós-
Estruturalista e Educação (Porto Alegre: Sulina, 1995), Imagens de Fou-
cault e De!euze (Rio de Janeiro: DP&A, 2002), Figuras de Foucault (Belo
Horizonte: Autêntica, 2006), e escreveu Estudos Culturais da Ciência e
Educação (Autêntica, 2001) e Foucault & a Educação (Autêntica: 2003).

ANOREA BENVENUTO
Professora de Filosofia (Instituto de Profesores Artigas, Uruguai), atu-
almente vive e trabàlha em Paris, onde prepara uma tese de doutorado
na Universidade de Paris VIII e ministra, desde 2004, o curso "Aproxi-
mações filosóficas e antropológicas ao tema da cultura e id~ntidade
surda" na mesma Universidade. Organizou e apresentou o livro Ber-
nard Mottez, Les Sourds existent-ils? Paris: L'Harmattan, 2006.

ANTONIO CAVALCANTI MAlA

Professor de Filosofia de Direito da Universidade do Estado do Rio de


Janeiro - UERJ e Professor de Filosofia Contemporânea da PUC-Rio.
Co-organizou dentre outros volumes: Perspectivas atua~s da fi.losofia ~o
direito (Rio: Lumen juris, 2005) e Filosofia pós-metafístca (~o: Arq~l-
medes). Em 2006 publicou J iirgen Habermas - filósofo do D~retto (Rio:
Renovar). Publicou também uma série de artigos sobre Michel Fou-
cault, entre eles "Biopoder, biopolítica e tempo pre.sente". In. NOVA-
ES, Adauto (org.). Homem-Máquina. Rio: Companhia das Letras, 2003.

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