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tanto uma quanto outra dessas que a voz do autor parece delas
tendências” (p.111), que é reto- se ausentar. Por fim, o paratexto
mada em L’Écriture Du désastre que encerra A conversa infinita,
da seguinte forma: “«Ter um sis- na edição brasileira, pode false-
tema, eis o que é mortal para o ar a leitura, parecendo pertencer
espírito; não ter um, eis também ao texto restante uma vez que se
o que é mortal. De onde a neces- encontra imediatamente abaixo
sidade de sustentar, perdendo- do último parágrafo do capítulo
-as, ao mesmo tempo as duas exi- final, A ausência de livro.
gências»” (BLANCHOT, 1980, A própria edição de A con-
p.101). O curioso na citação é a versa infinita testemunha um
mudança que a redação sofre de desencontro/descompasso nas
uma obra a outra: a primeira é perspectivas dos dois tradutores
uma tradução de Armel Guerne1 responsáveis pelos três volumes
ao passo que a segunda transfor- da obra: ao final do capítulo de A
ma-se em um misto de tradução ausência de livro traduzido por
e reescrita pela manutenção do O amanhã brincalhão, a expres-
termo “perder” que, com efeito, são, em itálico, parole plurielle,
consiste em um erro na tradução se traduz por fala plural ao pas-
de Guerne, que é retificado na so que no título do primeiro vo-
obra L’absolu littéraire, na subs- lume a mesma expressão se tra-
tituição por “juntar”: “Il est aus- duz por palavra plural, seguida
si mortel pour l’esprit d’avoir un da expressão parole d’écriture,
système que de n’en avoir aucun. em língua portuguesa, palavra
Il faudra donc qu’il se décide à de escrita. Certamente, fala de
joindre les deux” (LACOUE- escrita levaria o prejuízo semân-
-LABARTHE; NANCY, 1978, tico da escolha por fala a um
p.104). O uso de itálico nas ci- contrassenso maior do que os
tações em Blanchot se relaciona outros usos que surgem na tra-
ao itálico das passagens que se dução do terceiro volume de A
desviam do texto dito ensaístico, conversa infinita, mas vejamos,
nas conversas e nos fragmentos, por exemplo, a tradução de um
em virtude de as citações ofere- dos capítulos Parole de fragment
cerem uma possibilidade de repe- por Fala de fragmento, assim
tição e reescrita ao mesmo tempo como também são traduzidas por
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não transmite, não informa, não neste récit em que tanto a ques-
opera um laço, ela é – talvez, tão “quem disse?” como “quem
mas no limite, como no beijo – silencia?” restam sem a fala de
o batimento de um lugar singular uma realização sincrônica. Quem
contra outros lugares singulares” fala, fala como o último a falar
(NANCY, 2004, p.77, grifo nos- nas conversas que surgem nos re-
so). Não pretendemos defender latos (récits) de Blanchot.
uma tradução explicativa, mas Mas voltemos à inseparabili-
antes uma tradução que amplie dade entre uma dimensão oral e
as possibilidades de compreensão escrita que nos faria optar por pa-
do leitor para que o verbo parler, lavra. As noções de Dizer como
presente em A conversa infinita, interrupção do dizer do já dito,
falar, em língua portuguesa, não de Emmanuel Levinas2, endos-
encontre uma única correspon- sam nossa perspectiva, sobretudo
dência com o substantivo “fala” quando Levinas nos oferece as
que, nesta obra, ainda implicaria leituras talmúdicas, adentrando
o prejuízo de que consideremos no universo do comentário, se-
os momentos de conversa segun- gundo o qual a expressão da sig-
do uma dimensão teatral, como nificação pertence à significância
se houvesse um diálogo (sincrô- de sorte que, quando se trata
nico) no qual a questão de um é das Escrituras, leitura e inspira-
respondida por outro, espaço no ção confundem-se, assim como
qual se cederia à tagarelice (ba- comentário e escrita. Assim, o
vardage): “Lembra-te do que capítulo de A ausência de livro
dizia Kafka: ‘Ah, como gostaria intitulado A ponte de madeira (a
de poder falar a esmo’. Mas ele repetição, o neutro) reporta-se à
não podia, e eu não posso. Isso é exegese (ao comentário) a partir
sentido como um fraquejamento da recitação, da leitura e do ensi-
essencial que nos priva da coti- no judaicos da Escritura:
dianidade das relações humanas”
(BLANCHOT, 2009, p.45). As- O castelo não é constituído por
sim como em L’Attente L’Oubli uma série de acontecimentos ou
(1962), o aparente diálogo cede à de peripécias mais ou menos in-
palavra plural, no sempre incum- terligada, mas por uma sequên-
prido falar para alguém, como cia sempre mais distendida de
Cadernos de Tradução nº 29, p. 195-210, Florianópolis - 2012/1 205