Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tu es le fils de quelque’un 1
INTRODUÇÃO DO TRADUTOR
Quando Lisa Wolford afirma ter Jerzy Grotowski idealizado o ator tal e qual
uma figura santa, hábil e disciplinado o suficiente para desmascarar-se do dia-a-
dia, indo ao encontro, desta maneira, à sua auto-penetração e ao seu
desarmamento (p.197), eu encontro um pedaço de conselho absurdo, algoz,
indefectivelmente insano. Por isto, sigo-o. Por isto, o pedaço de conselho me guia.
Devido a isto, encontro sentido na arte dentro de mim, a qual não é mais do que eu
mesmo em minha plenitude. Devido a isto, encontro a inutilidade atroz do teatro
plasmada com sua necessidade urgente: alento da existência, respiração da vida.
Não se trata aqui de gostar ou não. Trata-se, antes, de uma necessária liturgia.
Empírico, cético e pragmático, tal contato com o divino que você é e eu sou, se exige
queimado vivo, na inquisição ditada pela mediocridade. Aqui, desfeito, eu rodeio
buscando o significado da mediocridade, mas não o encontro. Sou medíocre;
todavia, onde se esconde a minha mediocridade? Em minhas máscaras? Em
minhas fraquezas? Em meu débil conhecimento disfarçado em sabedoria?
O texto seguinte, transcrito de uma palestra de Grotowski, informa o quanto
é difícil descobrir o discernimento entre: 1) ser o prazer de estar à beira do abismo;
2) perceber em si o desespero em ali estar. O primeiro sentimento é o indivíduo; o
segundo está no indivíduo, já então sujeito. O primeiro atua; o segundo representa.
O primeiro é perene; o segundo, intermitente. O primeiro reina em minha
banalidade soberba; o segundo em minha fé de realização. Quiçá, perturbe-se o
leitor com a escritura. Ao fim e ao cabo, que torne sua, a pergunta de Jerzy
Grotowski: “Você é um homem?”.
Todas as vezes que nós nos restringimos dentro de certos limites, começamos
a divagar em volta do mundo de idéias, de abstrações. Nós podemos, então,
encontrar fórmulas que são extremamente reveladoras; contudo, elas pertencem ao
reino do pensamento e não ao da realidade. Eu não creio ter dito no passado que o
teatro é um complemento da realidade. Talvez eu o tenha dito. Mas, para mim,
teatro não é algo que possa estar fechado, incluso dentro de uma caixa. Como eu
poderia separar teatro de literatura? Para mim, tanto quanto para qualquer 'auto-
respeitado' europeu, a relação entre teatro e literatura é extrema – o que não é
totalmente o caso quando você está lidando com certo tipo de teatro clássico
Oriental.
Os escritores, os grandes escritores do passado, têm sido muito importantes
para mim, mesmo quando eu os tenha negado. Depararar-me com Calderon ou
Slowacki foi como o embate entre Jacob e o anjo: “Revela-me a mim o teu segredo!”.
Mas, em realidade, para o inferno com o teu segredo. É o nosso segredo que conta,
nós que estamos vivos agora. Mas se eu conheço o seu segredo, Calderon, então eu
posso entender o meu próprio. Não estou falando a você como sendo o escritor cujo
trabalho eu deva encenar; eu estou falando a você como sendo um distante
Não, isto não é o que eu quero dizer. Arte como rebelião consiste em criar
uma fé de realização que empurra para trás os limites, as bordas impostas pela
sociedade ou, sob uma tirania, imposta pelos poderes políticos. Mas você não pode
empurrar estes limites para trás se você não é crível. Sua fé de realização não vale
nada, se ela não é profundamente competente, se ela não for elaborada em
detalhes. Está certo! Pode ser uma blasfêmia, mas está muito certo! Sim! Você sabe
o que você está fazendo, você tem as suas armas prontas, você tem credibilidade,
você criou sua fé de realização, a qual é tão apropriadamente dominada, que nem
seus adversários podem negá-la. Se sua rebelião não é caracterizada por
competência, então você perderá tudo na sua batalha. Até mesmo se você for
sincero.
Foi como aconteceu com a contracultura dos anos 60, nos EUA. Ela não
existe mais: está encerrada, não porque inexistiam elementos de sinceridade ou de
grande valor nela, mas porque não havia competência suficiente, consciência
suficiente. É exatamente como o velho filme de Bergman, cujo título em polonês era
Ela Dançou por Apenas um Verão. Foi o que ocorreu nos anos 60: eles dançaram
por apenas um verão e então desistiram de tudo, sem se perguntarem se aquilo
tinha algum valor ou não. Muitos fogos de artifício, danças, êxtases e,
posteriormente, nada havia sido deixado. Verdadeira rebelião em arte é alguma
coisa que persiste e é competente, e nunca diletante. A Arte tem-se esforçado para
suprir o que falta, e, como resultado, ela constitui um complemento à realidade
social. É realmente necessário não concentrar-se em algo tão limitado quanto o
teatro.
O teatro é apenas parte de um fenômeno à nossa volta, de toda a cultura.
Nós temos a escolha de usar a palavra teatro ou aboli-la. Contudo, além da rotina
diária, além da procura pela estabilidade na vida, há a tentativa de não ser tão
diferente dos outros, ainda que diferente o suficiente, para ser “interessante”,
repetindo, como gravação, as sentenças que são comumente usadas neste período,
criticando nossos pais e fazendo os mesmos erros que eles fizeram e, em realidade,
esquecendo-os e tudo o que eles têm dado a nós – toda esta vida é insuficiente; há
alguma coisa a mais. Quando alguém entende isto, ele dedica-se à cultura ou
religião.
Durante esta batalha, nós passamos por diferentes fases. Nós seguimos
alguma coisa e nós agora entendemos como isto funciona. Como resultado, nós nos
encontramos na mesma situação de um andarilho do século XIX, que cruzou o
“ponto branco” que encontrara em um mapa das montanhas australianas: “Por que
você não continua atravessando aquelas montanhas australianas, pelo resto de sua
vida?” Isto é o que nos pedem para fazer. Isto significa que nos estão pedindo para
transformar nossa aventura e nossa descoberta em simples turismo. Não, é o ponto
branco que precisa ser explorado!
Você muda de direção, você procura por outro ponto branco, e por outro;
mas você está sempre ligado à situação social. Há uma vida inteira em volta de
você: novas idiotices aparecendo, enquanto velhas idiotices morrem, o que significa
que devemos confrontar as novas com as velhas – há novos adversários que
aparecem na cena. Eles são sempre mais ou menos os mesmos adversários, embora
eles utilizem novos disfarces. Estão sempre presentes, atrás de uma nova máscara.
Então, nós também devemos apresentar-nos atrás de uma nova máscara. E, então,
o duelo continua. Portanto, há o problema deste relacionamento complementar,
mas também aquele de nossa própria aventura técnica e artística.
Quando nós criamos a palavra parateatral, na verdade, nós estávamos
lidando com a questão do teatro participatório e nós nos deparamos com duas
lo. Obviamente, quando o domínio existe, então a questão do coração surge. Sem
domínio, o coração não vale nada. Quando o domínio existe, nós começamos a nos
deparar com o espírito, com o coração.
Quando eu comecei trabalhando com o Teatro de Fontes (era ainda o período
do Teatro Participatório), estava muito claro que em certas atividades humanas
tradicionais – as quais podem ser chamadas religiosas – de diferentes culturas,
onde a tradição ainda existia, era possível ver, em alguns casos, um teatro
participatório sem banalidade. Trabalhando com velhas técnicas de rituais –
ocidentais e orientais –, também se tornou claro que ninguém poderia transformar-
se um especialista em todas as técnicas rituais. Pan-yoga não pode existir. Para ser
um shaman de uma pequena tribo, você deve ser nascido, criado e educado lá, e
você deve dedicar 14, 21, ou 28 anos de sua vida ao seu treino (e isso varia muito,
conforme os diferentes sistemas de yoga).
Nós estamos encarando um fenômeno complexo, onde a primeira regra a
observar é não cair no diletantismo através da prática. Primeiramente, deixemo-nos
observar o sistema, por meio de nossa específica competência. Eu digo a mim
mesmo: eu sou o artista, não alguém que usa isto como um jogo, mas, ao contrário,
alguém que deve encontrar sua própria credibilidade nisto. Logo, o que você pode
aprender, através do trabalho, com pessoas oriundas de tantas e tão diferentes
tradições e conhecimento?
Sem demora, torna-se aparente que nem todas as diferenças podem ser
reduzidas, que nós não podemos alterar nosso próprio condicionamento, que eu
nunca serei um hindu, mesmo que eu seja consagrado pelos hindus. Na realidade,
nós não podemos mudar nossa religião – no sentido de conhecimento e tradição –
porque a linguagem inconsciente de nossa consciência já foi formada. Há duas
palavras em inglês: consciência e inconsciência. Eu estou falando de consciência,
aquela alguma coisa que diz que você não faz alguma coisa em particular. A
consciência faz-lhe sentir remorso se você fizer alguma coisa errada. É a
consciência que não pode ser mudada, a qual já está estruturada dentro da
linguagem de uma religião, donde se é nascido e educado, dentro de um completo
contexto social. Portanto, há diferenças que não podem ser reduzidas. Contudo, nós
podemos mover a direção do que precede estas diferenças.
Quando eu olhava para todos os esforços feitos pela nova arte ritual e toda a
estupidez que advinha disto, notei que esta arte era um tipo de síntese, apanhando
elementos de diferentes culturas e colocando-os juntos, em uma tentativa de criar
uma nova síntese. Isso é um erro. Pode-se, contudo, mover-se em direção ao que
precede as diferenças. É muito simples. Deixe-me dar-lhe um exemplo quase
infantil: em certas técnicas orientais, uma determinada maneira de respirar é usada
com a finalidade de controlar o sistema nervoso involuntário; particularmente, nas
técnicas hindus, eles se concentram no intervalo entre inspiração e expiração.
Contudo, os japoneses, em sua técnica Zen, não fazem isto. Não é o intervalo o que
é importante, mas uma atitude particular em relação à inspiração e a expiração.
O que, então, fazemos disto tudo? Elas são soluções completamente
diferentes, mas há alguma coisa em comum, que é tão simples, que precede as
diferenças: você obteve acesso ao seu sistema nervoso involuntário, através de uma
maneira de observar sua respiração. Você pode não aplicar nenhuma técnica de
respiração especial e, ainda assim, descobrir o que o seu sistema nervoso
involuntário está procurando. Isto é o que é conhecido como "dreambody", de
acordo com a psicologia pós-Yung. Por exemplo, você pode ser tentado, sua
imaginação joga com um filme fascinante, cheio de pecados. Se você for italiano,
você vai adiante, divertindo-se com os seus pecados; se você é anglo-saxão, você
não os tem como divertido; contudo, você ainda vai em frente.
O filme continua. Será isto uma ilusão de sua imaginação? Será o seu –
digamos – espírito discursivo que o está tentando, ou você realmente precisa
imaginar? Você pode descobri-lo rapidamente. Sente-se em uma posição mais ou
menos estável e observe como você respira, como o seu corpo respira. Olhe para a
coisa, por três minutos. Então, pergunte-se novamente: você saberá imediatamente
se você quer imaginar ou não. Isto era uma ilusão de sua imaginação, de seu
espírito discursivo? Se não, então, o diabo está profundamente enraizado em sua
natureza. Eu dei-lhe um exemplo muito simples, mas que funciona.
Nós sempre podemos observar diferentes técnicas tradicionais, do ponto de
vista do que precede as diferenças, observando os fatos da simples e primitiva vida
para qual nós, normalmente, não prestamos nenhuma atenção, porque eles
parecem muito simples. Por que o caçador africano de Kalahari, o caçador francês
das imediações de Saintes, o caçador de Bengali e o caçador mexicano de Huicol
adotam, todos, a mesma posição corporal, quando eles vão caçar – coluna vertebral
inclinada levemente para frente e joelhos sutilmente dobrados, em uma posição
sustentada pela base do complexo sacro-pelvis? E por que apenas um tipo de
movimento rítmico pode derivar desta posição? E que uso pode ser feito desta
maneira de andar?
Há um simplíssimo, muito fácil nível de análise: se o peso do corpo está em
um dos pés e você move o outro pé, você não faz nenhum barulho, além de poder
mover-se vagarosamente, sem paradas. Deste modo, certos animais permanecem
inconscientes de sua presença. Mas, isto não é a coisa importante. O que é
importante é que existe certa posição primária do corpo humano. Ela é uma posição
que vem de muito longe no tempo e fora, provavelmente, não apenas da posição do
Homo Sapiens, mas também do Homo Erectus, de algum modo, conectada com a
aparência do homem. Uma posição, extremamente ancestral, conectada com o que
alguns tibetanos chamam aspecto "réptil".
Na cultura afro-caribenha, esta posição está ligada mais, precisamente, com
a cobra do gramado e, na cultura hindu, ligada com o Tantra, onde você tem esta
cobra acordada na base da sua espinha. Você pode chamar esses os preconceitos
de pessoas de outra era. Mas não, necessariamente, pessoas de outras tradições,
porque nós temos tido esta tradição na Europa também, como, por exemplo, no
caso da imagem da cobra que vai da base da coluna até o coração, para não
mencionar as duas cobras que representam a Medicina. Um especialista em
cérebros poderia, possivelmente, ser capaz de descobrir o "cérebro réptil", um
cérebro antigo que continua caminho abaixo, através da parte de trás da cabeça,
indo ao longo da coluna vertebral, e ele poderia até mesmo encontrar a conexão, ou
extensão, deste cérebro espinhal no plexo solar, o qual é conhecido como "pequena
mente" em algumas tradições.
Eu me refiro a todas estas imagens em um sentido figurativo, sem nenhum
reclame por verdade científica. Nós temos, dentro de nosso corpo, um corpo
extremamente ancestral que pode ser chamado de "réptil". Se você observar o
desenvolvimento de um embrião humano, você pode quase imaginar a sua
semelhança com um réptil, em uma de suas fases preliminares de desenvolvimento,
digamos que este "réptil", surgido em uma fase muito inicial do embrião, serve como
a base para a formação do "cérebro réptil". Nós estamos, agora, tocando em algo
que diz respeito ao meu trabalho atual. E comecei perguntando-me, ao final do
período do Teatro das Fontes, como as pessoas usavam a sua energia primária;
parecer mecânica deve também ser resolvido; ou seja, ela deve parecer uma
cachoeira congelada, o que significa que o movimento, em toda a sua inteireza, está
lá, embora o corpo esteja imóvel. O mesmo acontece com a parada no início de um
novo fragmento de ação: a ação invisível deve já estar presente no corpo – de outro
modo, ela simplesmente não funciona. Então, surge o problema do ajustamento da
audição com o visual. Se a qualquer momento do corte há um som, este som deve
ser cortado ou não?
Você deve decidir. O que é o rio e o que é o navio? Se o rio é o som e as ações
físicas são o navio, então, é evidente que o rio deve fluir ininterruptamente, e o som
não deve parar, mas modelar as ações físicas. Mas, freqüentemente, o que acontece
é exatamente o oposto: as ações físicas como um rio modelando o modo de cantar.
Você deve saber qual é a sua escolha. E este exemplo de edição diz respeito apenas
à eliminação de um fragmento; há também mais um problema, o das inserções
(quando você tira um fragmento de uma parte de sua ação e o coloca entre duas
"paradas").
Este tipo de trabalho corresponde a momentos de crise. Você vai,
gradualmente, chegando a elementos que são mais e mais compactos. Seu corpo
deve absorver tudo isto, completamente, e recuperar suas reações orgânicas. Então,
você deve retornar ao início de todo seu trabalho, para encontrar o que, do ponto de
vista da motivação primária, exige uma nova reestruturação do todo. Portanto, o
trabalho não se desenvolve lado a lado, horizontalmente, mas, verticalmente,
através das fases de organicidade/crise/organicidade, etc. Digamos que, depois de
toda fase de espontaneidade na vida, há sempre uma fase de absorção técnica; por
conseguinte, você deve deparar-se com todos os problemas das artes performáticas.
Por exemplo, quem é a pessoa que está cantando a canção? É você? Mas se o
som é de sua avó, é ainda você quem canta? Mas se você, com seus impulsos
corporais, está explorando sua avó, então, não é nem você, nem sua avó, quem está
cantando: é você que está cantando, como você explora sua avó, isto é, você
explorando sua avó/cantora. Talvez você vá mais atrás, em uma direção de tempo e
espaço difícil de imaginar, quando alguém cantou esta música pela primeira vez. O
que significa uma canção cantada pela primeira vez? Ele é o som tradicional, real e
anônimo. Nós dizemos que ele é um som folclórico; acontece que, entre os folclores,
alguém começou. Você tem a canção, você deve perguntar-se onde ela começou.
Talvez, no momento quando o fogo estava velando nas montanhas, onde alguém
estava à procura de animais, esta pessoa começou a repetir as palavras abertas
para manter-se aquecido.
Ainda não era a canção; antes, era um encantamento, um "mantra" – um
primitivo encantamento que alguém depois repetiu. Você olha a canção e pergunta
a você mesmo: onde está este primitivo encanto? Em quais palavras? Talvez, estas
palavras já tenham desaparecido e a mesma pessoa cantou depois, com outras
palavras, ou outras frases, ou talvez outro alguém tenha desenvolvido o que a
primeira pessoa cantou. Se você possui a habilidade de prosseguir, em direção ao
começo da canção, quando não é mais sua avó cantando, mas alguém de seu
passado longínquo, do passado de seu país, de sua vila, da vila de seus pais, ou dos
seus avós... o espaço vai sendo codificado, até mesmo na maneira de se cantar.
Pessoas cantam de um jeito nas montanhas e diferentemente nas planícies.
Nas montanhas, elas cantam, de um lugar alto para outro lugar alto, e as
vozes formam um arco: você gradualmente encontra os primeiros encantamentos;
você encontra a paisagem. Primeiro, havia este pedaço de madeira, fogo, animais,
talvez solidão: você começou a cantar porque estava com medo de ficar sozinho.
Você procurou outras pessoas? Isto foi nas montanhas? Quem era a pessoa que
cantou assim? Velho ou novo? Você, finalmente, descobre que você vem de algum
lugar, ou como eles dizem, tradicionalmente, em uma velha expressão francesa, "Tu
es le fils de quelqu'un".
Você não é um vagabundo, você vem de algum lugar, de algum país, de
alguma paisagem. Havia pessoas não-identificadas em volta de você, próximas ou
longe. Isto é você 200, 300, 400 ou 1000 anos atrás, mas é você, o mesmo você.
Porque a pessoa que começou a cantar as primeiras palavras era filho de alguém,
de algum lugar. Se você descobre tudo isto, você também é, então, filho de alguém.
Se você não descobre, você não é filho de ninguém; você está fora, estéril,
improdutivo. Este é um exemplo de como, começando com um elemento pequeno –
uma canção – um grande número de problemas se descortinam. Todos os
problemas humanos de tradição, raízes, fontes, a aparência da canção, o
encantamento, todos os nossos relacionamentos humanos, nossa ancestralidade,
através do tempo... tudo isto aparece.
E, ao mesmo tempo, as questões clássicas postas pela nossa profissão vêm à
tona: quem é o personagem? Você? A primeira pessoa que entoou a canção? Mas,
se você é o filho da primeira pessoa que cantou a canção, pela primeira vez, aí sim,
aquela é a imagem real do personagem. Você é oriundo de um tempo específico, de
um lugar específico. Isto não significa fazer o papel de alguém que você não é. Em
todo este trabalho, há um aspecto vertical – mais ainda em direção ao começo,
subindo ao começo: não-diletantismo; antes, a credibilidade do não-diletantismo. E
quando você chega ao não-diletantismo, então, o problema é de você – ser humano
– que o abrirá. E aqui, subitamente, com o seu problema, homem, acontece algo
como uma enorme porta que se abre: atrás de você, há sua credibilidade artística e
técnica e, à sua frente, há alguma coisa que não exige competência técnica, mas,
antes, a sua competência.
É como Hamlet falando com Horácio sobre seu pai, o rei morto: "Ele era um
homem". Ele diz: "Eu não olharei sobre ele novamente". Trata-se de uma questão
real: você é um homem? Há uma imagem disto na estória Gospel ocorrida na
estrada para Emmaus: dois dos companheiros de Jesus, apavorados, com medo,
em desespero, estão caminhando em direção à pequena vila de Emmaus. Um
estrangeiro junta-se a eles. Eles conversam, calorosamente, sobre o acontecimento:
a morte de Jesus. Eles discutem. “Por que”, pergunta-lhes o estrangeiro, “vocês
estão discutindo?” Eles respondem: “Eventos terríveis aconteceram. Você não ouviu
falar?” E eles contam-lhe a estória. E qual é a estória que eles contam ao
estrangeiro? Nós sabemos a história muito bem. Mas, no começo desta estória (não
na versão canônica, mas na versão traduzida do grego), é dito: "Ele era um homem".
Isto é o que eles tinham que dizer ao estranho para descrever o seu herói: Ele era
um homem. Pois esta é a questão que, inevitavelmente, surge depois do problema
do não-diletantismo: você é um homem?".
* Nota do Editor: o presente texto faz parte de uma palestra proferida por Grotowski
em Gabinetto Viesseux, Florença, Itália, no dia 15 de julho de 1985.
* Livre e não-oficial tradução do inglês para o português, feita por Cesário Augusto,
de artigo publicado no periódico The Drama Review, 1987.
* Sobre o tradutor: Prof. Dr. Cesário Augusto Pimentel de Alencar. PhD em Práticas
Performáticas (Universidade de Exeter, GB) – bolsa-de-estudos integral da CAPES.
Mestre em Estudos Teatrais (Universidade de Leeds, GB) – bolsa-de-estudos integral
da CAPES. Graduado Bacharelado em Interpretação Teatral, pela Universidade de
Brasília – UnB. Professor da Escola de Teatro e Dança – ETDUFPA. Coordenador do
Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante – GITA/ETDUFPA.
REFERÊNCIAS
WOLFORD, Lisa. Grotowski’s vision of the actor – the search for contact. In:
HODGE, Alison (ed.). Twenty century actor training. London: Routledge, 2002,
251p., pp.191-208.
HARTNOLL, Phyllis; e FOUND, Peter. Oxford-Concise Companion to the Theatre.
Oxford: Oxford University Press, 1996 [1992], 568 p.
Notas:
1Título original da palestra, proferida em francês.
2Título da tradução publicada em inglês.
3 Livre tradução minha, do inglês. Literalmente, “You are someone´s son” significa, em Língua
Portuguesa, “Você é filho de alguém”. Grotowski se refere, no texto, a tradições que remontam a um
passado atávico e a um âmbito mais amplo do que as relações sincrônicas e sociais de “filho”, de “o
outro” e de “você”. O visionário, infiro, trata da memória diacrônica, ou seja, aquela constituída no
devir do tempo, e não da memória individual e consciente de situações e eventos vividos cuja
ocorrência é testemunhada pelo próprio sujeito e/ou por outrem.