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HISTÓRIA MEDIEVAL II:

a Baixa Idade Média


Editora da Universidade Estadual de Maringá

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Equipe Técnica

Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka


Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob
Mônica Tanamati Hundzinski
Vania Cristina Scomparin
Edilson Damasio
Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva
Marcos Roberto Andreussi
Marketing Marcos Cipriano da Silva
Comercialização Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
História e conhecimento

José Carlos Gimenez


(Organizador)

História Medieval II:


a baixa idade média

8
Maringá
2010
HISTÓRIA E CONHECIMENTO

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Tania Braga Guimarães
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

História Medieval II: a baixa idade média / José Carlos Gimenez, organizador.—
H673 Maringá : Eduem, 2010.
138p.: il.; color.; 21cm. (História e conhecimento, n. 8)

ISBN 978-85-7628-295-2

1. História medieval – Estudo e ensino. 2. Idade média – Estudo e ensino. 3.


Universidade medieval – Século XIII. 4. Igreja medieval – Reformas. I. Gimenez, José
Carlos, org.

CDD 21. ed. 909.07

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá - Paraná
Fone: (0xx44) 3261-4103 / Fax: (0xx44) 3261-1392
http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br
S umário

Sobre os autores > 5

Apresentação da coleção > 7


Apresentação do livro > 9

CAPÍTULO 1
As corporações de ofício na Idade Média > 13
Jaime Estevão dos Reis / César Alexandre dos Santos

CAPÍTULO 2
A trajetória das cidades medievais
José Carlos Gimenez / Vanessa Campos Mariano Ruckstadter > 33

CAPÍTULO 3
A universidade medieval no século xiii: história e doutrina
Terezinha Oliveira
> 51

CAPÍTULO 4
Heresias e reformas na Igreja medieval > 75
Paulo Henrique Vieira

3
HISTÓRIA MEDIEVAL II: CAPÍTULO 5
a Baixa Idade Média
Nos braços da morte:
a Peste Negra no limiar da Idade Média
> 99
Renata Cristina de Sousa Nascimento

CAPÍTULO 6
Cultura na Baixa Idade Média > 113
Marcella Lopes Guimarães

4
S obre os autores
César Alexandre dos Santos
Formado em História pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e

Letras de Paranavaí (FAFIPA). Especialista em História Econômica pela

Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Jaime Estevão dos Reis


Professor de História Medieval da Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Mestre e Doutor em História e Sociedade pela Universidade

Estadual Paulista (UNESP/Assis). Coordenador do Laboratório de Estudos

Antigos e Medievais – LEAM, do Departamento de História da UEM.

José Carlos Gimenez


Professor de História Medieval da Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Graduado e Mestre em História e Sociedade pela Universidade

Estadual Paulista (UNESP/Assis), Doutor em História, Cultura e Sociedade

pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integra o Laboratório de

Estudos Antigos e Medievais – LEAM/UEM.

Marcella Lopes Guimarães


Professora de História Medieval da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ). Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná

(UFPR). Integra o NEMED/UFPR (Núcleo de Estudos Mediterrânicos da

UFPR).

Paulo Henrique Vieira


Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá, Mestre e

Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Renata Cristina de Sousa Nascimento


Doutora em História pela UFPR. Professora adjunta da Universidade

Federal de Goiás (Campus de Jataí) e da Universidade Estadual de Goiás.

5
HISTÓRIA MEDIEVAL II: Terezinha Oliveira
a Baixa Idade Média
Professora de História da Educação, com ênfase em Educação Medieval,

junto ao Departamento de Fundamentos da Educação na Universidade

Estadual de Maringá. Mestre em Ciências Políticas pela Universidade

Federal de São Carlos (UFSCar), Doutora em História e Sociedade pela

Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), Pós-Doutorado em Filosofia

da Educação Medieval pela Universidade de São Paulo (FEUSP). Líder do

Grupo Transformações Sociais e Educação nas épocas Antiga e Medieval.

Integra o Laboratório de Estudos da Imagem (LEDI/UEL).

Vanessa Campos Mariano Ruckstadter


Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá, Mestre e

Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

6
A presentação da Coleção
A coleção História e Conhecimento é composta de 42 títulos, que serão utilizados
como material didático pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatura em
História, Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá, no âmbito
do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que está sob a responsabilidade
da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES).
A utilização desta coleção pode se estender às demais instituições de Ensino
Superior que integram a UAB, fato que tornará ainda mais relevante o seu papel na
formação de docentes e pesquisadores, não só em História mas também em outras
áreas na Educação a Distância, em todo o território nacional. A produção dos 42 livros,
a qual ficou sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Maringá, teve 38
títulos a cargo do Departamento de História (DHI); 2 do Departamento de Teoria e
Prática da Educação (DTP); 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE);
e 1 do Departamento de Letras (DLE).
O início do ano de 2009 marcou o começo do processo de organização, produção
e publicação desta coleção, cuja conclusão está prevista para 2012, seguindo o
cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE). Num primeiro momento, serão impressos 294 exemplares de
cada livro para atender à demanda de material didático dos que ingressaram no Curso
de Graduação em História a Distância, da UEM, no âmbito da UAB.
O traço teórico geral que perpassa cada um dos livros desta coleção é o
compromisso com uma reconstrução aberta, despreconceituosa e responsável do
passado. A diversidade e a riqueza dos acontecimentos da História fazem com que
essa reconstrução não seja capaz de legar previsões e regras fixas e absolutas para o
futuro. No entanto, durante a recriação do passado, ao historiador é dado muitas vezes
descobrir avisos, intuições e conselhos valorosos para que não se repitam os erros de
outrora.
No transcorrer da leitura desta coleção percebemos que os livros refletem várias
matrizes interpretativas da História, oportunizando ao aluno o contato com um
inestimável universo teórico, extremamente valioso para a formação da sua identidade
intelectual. A qualidade e a seriedade da construção do universo de conhecimento
desta coleção pode ser tributada ao empenho mais direto por parte de cerca de 30
organizadores e autores, que se dedicaram em pesquisas institucionais ou até mesmo

7
HISTÓRIA MEDIEVAL II: em dissertações de mestrado ou em teses de doutorado nas áreas específicas dos livros
a Baixa Idade Média
que se propuseram a produzir.
Esta coleção traz um conhecimento que certamente marcará positivamente a
formação de novos professores de História, historiadores e cientistas em geral, por
meio da Educação a Distância, o qual foi fruto do empenho de pesquisadores que
viveram circunstâncias, recursos, oportunidades e concepções diferentes, temporal e
espacialmente.
Como corolário disso, seria justo iniciar os agradecimentos citando todos aqueles
que não poderiam ser nominados nos limites de uma apresentação como esta.
Rogamos que se sintam agradecidos todos aqueles que direta, indireta ou mesmo
longinquamente, quiçá os mais distantes ainda, contribuíram para a elaboração deste
rico rol de livros.
Além do agradecimento, registramos também o reconhecimento pelo papel da
Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, que têm contribuído não apenas para o êxito
desta coleção mas também para o de toda a estrutura da Educação a Distância da qual
ela faz parte.
Agradecemos especialmente aos professores do Departamento de História do
Centro de Ciências Humanas da UEM pelo zelo, pela presteza e pela atenção com que
têm se dedicado, inclusive modificando suas rotinas de trabalho para tornar possível a
maioria dos livros desta coleção.
Agradecemos à Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), e ao Ministério da Educação
(MEC) como um todo, especialmente pela gestão dos recursos e pelo empenho nas
tramitações para a realização deste trabalho.
Outrossim, agradecemos particularmente à Equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de
Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica.
Despedimo-nos atenciosamente, desejando a todos uma boa e prazerosa leitura.

Moacir José da Silva


Organizador da coleção

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A presentação do livro
O presente livro pertence à coleção dos livros de História para a coleção História
e Conhecimento, a qual será utilizada inicialmente pelos alunos matriculados em
cursos superiores a distancia ofertados no âmbito do Sistema Universidade Aberta
do Brasil (UAB) e pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Ma-
ringá (UEM).
No primeiro capítulo, As corporações de oficio na Idade Média, Jaime Es-
tevão dos Reis e César Alexandre dos Santos discutem o processo de transforma-
ção econômica ocorrido no ocidente medieval a partir do século XI. Impulsionadas
principalmente pelas atividades comerciais e pela produção de mercadorias, essas
transformações se acentuaram nos séculos XII e XIII e encontraram nas cidades um
espaço fecundo para seu desenvolvimento. O capítulo também mostra como o es-
paço urbano, em seu processo de recomposição, converteu-se em um local onde os
homens lutavam pela liberdade de produzir e comercializar, e se tornou dinamiza-
dor de novas categorias sociais, pertencentes simultaneamente ao velho (sociedade
feudal) e ao novo mundo (sociedade urbana).
No segundo capítulo, A trajetória das cidades medievais, José Carlos Gime-
nez e Vanessa Campos Mariano Ruckstadter discutem as transformações importantes
ocorridas ao longo do desenvolvimento da cidade no ocidental medieval. Num pri-
meiro momento foram expostas as transformações que elas sofreram com as inva-
sões bárbaras na passagem da Antiguidade para a Idade Média. Tais acontecimentos
ultrapassam a simples ideia de destruição das edificações romanas, pois, para se
conhecer melhor os seus efeitos é de fundamental importância compreender qual
era o significado de cidade para a sociedade da Antiguidade e qual o seu papel nos
primeiros séculos da Idade Média. Num segundo momento, o capítulo apresenta
uma discussão a respeito do ressurgimento das cidades a partir do século XI. E, par-
tindo do pressuposto de que elas são a gênese da cidade e da formação do homem
moderno, discute-se também o seu papel na transição da sociedade medieval para
a sociedade moderna.
No terceiro capítulo, A universidade Medieval no século XIII: História e dou-
trina, Terezinha Oliveira apresenta uma discussão sobre o surgimento das universi-

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HISTÓRIA MEDIEVAL II: dades na Idade Média, em fins do século XII e inicio do século XIII. O nascimento
a Baixa Idade Média
dessa importante instituição marca uma das etapas mais significativas do período
medieval, ao romper com o saber produzido nos monastérios, nas escolas palacia-
nas e nos castelos senhoriais, e ao assinalar um novo momento na vida dos homens
medievais. Nesse aspecto, as mudanças vão muito além dos espaços físicos, pois
se rompe com especulações voltadas apenas para as questões religiosas e passa-se,
a partir de então, a pensar sobre a realidade do mundo terreno, cujos resultados
produziram profundas alterações nas relações sociais, culturais, políticas, religiosas
e mentais no contexto medieval.
No quarto capítulo, Heresias e reforma na Igreja medieval, Paulo Henrique
Vieira mostra, em aspectos mais gerais, a trajetória dos movimentos heréticos e re-
formatórios no contexto medieval e a forma como esses movimentos foram tratados
pela Igreja Católica. O capitulo evidencia ainda que a Reforma, iniciada por Lutero
em 1517, foi uma das últimas etapas de antigas lutas ocorridas no interior da Igreja
no sentido de um “retorno aos padrões originais”, as quais tiveram em John Wi-
cliff (1324-1384) e John Huss (1369-1415) seus mais ilustres representantes. Uma
atenção especial é dada à doutrina da supremacia papal e aos seus opositores, que
disputaram, desde a Antiguidade, o controle das questões religiosas e políticas no
seio da fé cristã.
No quinto capítulo, Nos braços da morte: a peste negra no limiar da Idade Mé-
dia, Renata Cristina de Sousa Nascimento discute como a propagação da epidemia
da peste, nos séculos XIV e XV, gerou uma crise generalizada em toda a sociedade
e em todos os espaços europeus. Somada a outras causas – Guerra dos Cem Anos,
profundas divergências Internas na Igreja Católica, fomes e intempéries climáticas –,
a peste negra provocou, também, profundas alterações na sensibilidade do homem
medieval, a qual foi materializada nas expressões iconográficas, na maneira como
médicos e teólogos explicavam e justificavam tais ocorrências e, principalmente, nas
manifestações religiosas e literárias da época.
No sexto capítulo, Cultura na Idade Média, Marcella Lopes Guimarães realiza
uma discussão em torno do conceito de cultura e patenteia como o seu significado,
por diferentes razões de sentido, gera debates “calorosos” entre os historiadores
que se debruçam sobre esse conceito. Partido de tais considerações e assumindo
a pluralidade das manifestações da cultura medieval, o capitulo discute e propõe
importantes reflexões sobre como o homem medieval se relacionava com manifesta-
ções culturais do seu tempo, as quais oscilavam entre o apego a temas que versavam
sobre o universo religioso, voltados para a salvação da alma, e o realismo grotesco,
que valorizava o rebaixamento das coisas elevadas e propunha uma paixão pelo

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conjunto de temas e imagens da cultura popular. Apresentação do livro

Assim como no Livro I, no final de cada capitulo os autores apresentam extratos


de documentos que permitem ao aluno desempenhar uma discussão mais reflexiva
a respeito do contexto histórico da Baixa Idade Média, bem como obter um maior
entendimento da sociedade da época, seus valores econômicos, culturais, políticos,
religiosos e mentais. Para isso, é preciso questionar sobre a natureza dos documen-
tos, as circunstâncias em que foram produzidos, seu autor e a finalidade de sua
existência.

José Carlos Gimenez


Organizador

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1 As corporações de ofício
na Idade Média

Jaime Estevão dos Reis / César Alexandre dos Santos

AS CIDADES MEDIEVAIS COMO AMBIENTE DAS CORPORAÇÕES DE


OFÍCIO
A Alta Idade Média, período que se estende desde a queda do Império Romano, no
século V, até aproximadamente o século X1, foi marcada por um processo contínuo de
declínio urbano e de ruralização do Ocidente europeu. Durante esse período o campo
gradativamente se fortaleceu, organizando-se na forma de feudos, que se espalharam
por grande parte da Europa.
No regime feudal, o senhor era o detentor de uma grande extensão territorial,
onde ele exercia o poder sobre seus servos e escravos. Um senhor feudal podia ser
vassalo de outro; porém, nos limites de suas terras ele tinha poder absoluto: era o
senhor, protetor, juiz, chefe de polícia e administrador2.
Essa primeira fase da Idade Média, marcada pelo processo de ruralização, sofreu
alterações significativas a partir do século XI, com o ressurgimento e fortalecimento
das cidades. Os novos espaços urbanos que se constituíram desde o início desse sé-
culo se apresentaram extremamente diferenciados das antigas aglomerações urbanas,
sobretudo no seu aspecto econômico3.
Houve um processo de acentuada migração dos homens do campo para as cidades.
A superfície urbana aumentou significativamente, as construções cresceram de forma
irregular e a aglomeração passou a exigir, cada vez mais, uma melhor organização e
uma forte fiscalização das atividades exercidas em seus domínios.
Ao longo dos séculos XI e XII houve um aumento significativo do número de cida-
des e, consequentemente, da população urbana no Ocidente medieval.

1 Veja-se a discussão relativa à periodização da Idade Média, no capítulo I do livro de História Medieval
I, desta coleção.
2 Conferir o capítulo sobre o Feudalismo no livro de História Medieval I, desta coleção.
3 Não trataremos, neste capítulo, das polêmicas historiográficas acerca do “renascimento” das cidades
medievais. Essa discussão pode ser observada na bibliografia referente a este capítulo.

13
HISTÓRIA MEDIEVAL II: No espaço urbano os citadinos conquistavam a liberdade, que, se não era plena,
a Baixa Idade Média
ao menos permitia aos homens de negócio o direito de produzir, comercializar, reunir
artesãos para a produção conjunta, regulamentar as próprias atividades, constituir tri-
bunais específicos para julgar suas causas, etc. Todavia, a obtenção da “cidadania” e do
direito de pertencer à cidade dependia do aporte financeiro de cada indivíduo ou de
um padrinho, de certo tempo de residência no espaço urbano – geralmente superior
a um ano –, da entrada em um determinado ofício ou da compra de um imóvel (ROS-
SIAUD, 1989, p. 101).
Mas o fato de morar na cidade, mesmo que não fosse na plena condição de cida-
dão, dava à maior parte dos seus moradores a garantia de proteção, certa esperança
de ascensão social, de alimentação (mesmo que fosse pela caridade alheia), a possibi-
lidade de adquirir um trabalho, a obtenção de uma moradia e a liberdade em relação
ao jugo do senhor feudal.
A diversidade social era uma das características mais marcantes das cidades me-
dievais, sobretudo das maiores. Nelas, conviviam lado a lado mercadores, artesãos,
jornaleiros, monges, padres, mendigos, prostitutas, desempregados e até mesmo os
nobres que possuíam residência no espaço urbano, ou seja, figuras pertencentes si-
multaneamente ao velho e ao novo mundo.
Entretanto, o que predominava nas cidades era a mentalidade mercantil. Essa práti-
ca é destacada por Jacques Rossiaud, em seu estudo sobre a vida nas cidades medievais:
[...] o artesão assalariado vende as suas aptidões, o proprietário vende um quar-
to ou um terreno, o jurista vende os seus conhecimentos de direito, o professor
vende a sua cultura, o operário vende a sua força física e a prostituta vende o seu
corpo. A sua ministeria, os seus ofícios, são ordenados em função de um sistema
de trocas recíprocas a que uns (os teólogos) chamam o bem comum e outros (os
burgueses) chamam o mercado, segundo um preço justo estipulado diariamente
em dinheiro, no mercado ou no local de recrutamento (1989, p. 105).

A mobilidade das riquezas nas cidades estava presente sobretudo pela intensifica-
ção do processo de monetarização. Os burgueses acumulavam suas riquezas em peças
de adornos, lingotes de ouro e em terras adquiridas nas proximidades e dentro do
perímetro urbano.
A mentalidade mercantil decorrente do desenvolvimento das trocas e do comér-
cio, em curso desde o século XI, nos séculos XII e XIII levou a uma nova forma de se
pensar sobre as atividades econômicas nas cidades medievais. A produção passou a ser
organizada de maneira mais racional, visando ao aumento do excedente, para atender
não só ao comércio local mas também ao de longa distância (DOBB, 1983, p. 29).
Feiras locais, regionais ou inter-regionais acompanharam a ampliação das ativida-
des do comércio e contribuíram para uma maior circulação de mercadorias e para o

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surgimento de novas cidades, em todo o Ocidente. São famosas, pela importância eco- As corporações de ofício
na Idade Média
nômica que tiveram, sobretudo nos séculos XII e XIII, as feiras da Inglaterra ( Winches-
ter, Boston, Northampton e Stanford), as de Flandres ( Ypres, Lille, Bruges, Messines
e Thourout) e as de Champagne (Lagny, Provins, Bar-sur-Aube e Troyes) (FOURQUIN,
1991, p. 268).
Como decorrência do desenvolvimento do comércio e do papel econômico das cida-
des, a utilização de moedas – em declínio no Ocidente desde a crise do Império Romano
– tornou-se necessária para a facilitação dos intercâmbios. Não apenas senhores laicos e
eclesiásticos passaram a cunhar moedas, mas também as cidades medievais tinham suas
moedas de ouro e prata, como Veneza, Florença, Flandres e Gênova, entre outras.
Dada à diversidade das moedas, com seus respectivos pesos e valores, houve a ne-
cessidade de se estabelecer um sistema de trocas, atividade ocupada pelos cambistas
nos mercados e nas feiras. Com o incremento do uso de moedas nas relações comer-
ciais, esses cambistas ascenderam à condição de banqueiros, que passaram a aceitar
depósitos em dinheiro e a gerenciar os recursos de seus clientes. Os empréstimos a
juros aumentaram, sobretudo com os judeus, que, aos poucos, viam-se cada vez mais
livres da condenação da Igreja. Todavia, não apenas os judeus tornaram-se usurários,
mas também mercadores e burgueses cristãos passaram a desenvolver tal atividade4.
No século XII, o Ocidente europeu acelerou o processo de transformação eco-
nômica, desvinculando-se da ligação quase que única com a exploração da terra, e
direcionando suas atividades para o comércio e a produção de mercadorias. As cidades
foram os locais que possibilitaram tal transformação.
Segundo Henri Pirenne,

os quadros do sistema feudal, que tinham, até então, encerrado a actividade


econômica, quebram-se e toda a sociedade se impregnava de um carácter mais
maleável, mais activo e mais variado. De novo, como na Antiguidade, o campo
se orienta para as cidades. Sob a influência do comércio, as antigas cidades
romanas reanimam-se, repovoam-se, aglomerações de mercadores agrupam-se
junto dos burgos, estabelecem-se ao longo das costas marítimas, nas margens
dos rios, na confluência das ribeiras, nos pontos de encontro das vias naturais
de comunicação. Cada uma delas constitui um mercado [...]. Entre estas e o
campo estabeleceu-se uma recíproca troca de serviços (2009, p. 82).

O ressurgimento das cidades trouxe ainda uma nova concepção acerca do trabalho,
que antes era quase que exclusivamente servil. Nos séculos XII e XIII, as cidades – im-
pulsionadas pelo comércio e pela produção artesanal – passaram a atrair cada vez mais
camponeses em busca de uma profissão, seja como artesãos, seja como comerciantes.

4 Veja-se, sobre essa temática: LE GOFF, J. Mercadores e banqueiros da Idade Média. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.

15
HISTÓRIA MEDIEVAL II: O crescimento das cidades, bem como da população urbana, provocou uma neces-
a Baixa Idade Média
sidade ainda maior de novos profissionais: ferreiros, moveleiros, tapeceiros, sapatei-
ros, alfaiates, tintureiros, açougueiros, padeiros, cervejeiros, etc. Isso, para atender à
demanda interna e, também, à demanda por mercadorias destinadas ao comércio feito
por mercadores, ou seja, para o comércio a longa distância.
Nesse contexto, o comércio e o artesanato se aproximaram ainda mais para atender
às novas demandas de consumo da sociedade. Novos artesãos se estabeleceram – so-
bretudo nas cidades de caráter mais comercial –, todos à procura de trabalho e de
oportunidades para abrirem a própria oficina.
O espaço urbano se tornava cada vez mais complexo, provocando choque de interes-
ses entre os segmentos sociais distintos. Houve a necessidade de controle de preços e
da oferta dos produtos para evitar abusos ou concorrência desleal entre os ofícios. Esses
fatores, somados a outros, levaram à organização das várias profissões citadinas, criando
ou fortalecendo grupos específicos que congregavam esses trabalhadores por ofícios.
Não se tratava apenas de criar uma nova forma de organização da produção, mas,
sobretudo, de aperfeiçoar e intensificar as já existentes. Vários tipos de associações
surgiram nesse período, e diferenciavam-se entre si de acordo com a cidade em que
estavam estabelecidas, além dos interesses que justificavam a sua criação.
Apesar da diversidade, tais associações tinham em comum o fato de buscarem a
proteção dos interesses de seus membros, além da proteção dos consumidores. Para
isso regulavam e organizavam a produção, criando regras de convivência entre todos
os profissionais das cidades. São as chamadas “Corporações de Ofício”, representantes
dos setores “secundário” (produção) e “terciário” (aquelas voltadas para a comerciali-
zação) da economia medieval.

ORIGENS E FUNCIONAMENTO DAS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO


A complexidade que as cidades medievais adquiriram ao longo dos séculos XII e
XIII e o crescente aumento do número de profissões em seu interior levaram à orga-
nização de associações corporativas, que, como já adiantamos, buscavam aglutinar os
profissionais de acordo com as atividades desenvolvidas.
Essas associações receberam designações como: Ministeria, Guildas, Hansas, Ar-
tes, etc. Historicamente, a denominação de “Corporações de Ofício”, que surgiu no sé-
culo XVIII, servia para designar as organizações de profissionais por ofícios exercidos,
e que tratavam de assuntos diretamente ligados aos ofícios em si.
Associações com essa característica surgiram, de fato, após o século X e se consolida-
ram em meados do século XII, espalhando-se por várias regiões do Ocidente europeu.
Existem divergências historiográficas acerca da origem dessas associações,

16
sobretudo se elas representavam novas formas de associações ou se seriam uma con- As corporações de ofício
na Idade Média
tinuidade daquelas já existentes em períodos anteriores e que apenas teriam sofrido
uma evolução5.
Para Jacques Heers, a organização do trabalho medieval na forma corporativa este-
ve presente tanto no campo quanto nas cidades, e pode ser classificada em três formas
distintas: Comunidades Aldeãs, Confrarias e Corporações de Ofício (1980, p. 109).
Aqui trataremos apenas das Corporações de Ofício, por ser o objeto de análise
deste capítulo, deixando de lado possíveis comparações com as outras formas de orga-
nização do trabalho, como as citadas Comunidades Aldeãs e Confrarias.
Alguns autores defendem a tese de que as Corporações de Ofício foram uma evo-
lução das antigas associações remanescentes do Império Romano, denominadas de
collegia, ou até mesmo das corporações galo-romanas, que agrupavam trabalhadores
por ofício com interesses comuns, organizadas desde o século I d. C., principalmente
nas regiões da Itália e da Alemanha.
Henri Pirenne não vê consistência nessa tese e contesta a sobrevivência desses
agrupamentos entre o fim do Império Romano e o ressurgimento do comércio no
século XI. Somente na Itália permaneceram resquícios de tais organizações, porém,
mesmo tendo sobrevivido nessa região, não tiveram o caráter amplo e complexo que
as corporações da Idade Média Central apresentaram (1982, p. 179-180).
Jacques Heers defende a ideia de que as Corporações de Ofício foram criações ori-
ginais da Idade Média, não tendo ligação com os antigos collegia romanos mesmo nas
cidades italianas, pois praticamente desapareceram após a queda de Roma. Também
a ideia de que as confrarias teriam evoluído para as corporações revela-se de difícil
justificativa, pois eram associações movidas por um caráter religioso, diferentemente
das corporações, de interesse econômico (1980, p. 122-123).
Pierre Bonnassie (1985) reforça essa ideia e afirma que, dadas as diferenciações
econômicas de uma região para a outra, as Corporações de Ofício foram designadas
nos documentos de várias formas: Ofícios, Artes, Guildas, Hansas, Bandeiras, etc.
Esse tipo de organização, que surgiu inicialmente em Paris, pode ser entendido, se-
gundo a definição clássica de E. Coornaert, como sendo a “[...] associação econômica
de direito quase público que submete os seus membros a uma disciplina colectiva no
exercício de sua profissão” (COORNAERT apud BONNASSIE, 1985, p. 59).
Henri Pirenne define Corporação de Ofício “[...] como uma corporação industrial
que gozava do privilégio de exercer exclusivamente determinada profissão, de acordo
com os regulamentos sancionados pela autoridade pública (1982, p. 183).

5 Referimo-nos aos Collegia (Associações de Artífices) criados pelo Estado no Império Romano.

17
HISTÓRIA MEDIEVAL II: A primeira regulamentação obrigatória de um ofício data de 1258, em Paris. Elabo-
a Baixa Idade Média
rada pelo preboste da cidade Etienne Boileau, recebeu o nome de Livre des Métiers.
Estabelecia a constituição de uma guarda do cumprimento de seus estatutos (OLIVEI-
RA, 1987, p. 63).
Tanto a forma constitutiva quanto a organizativa das Corporações de Ofício varia-
vam de acordo com cada cidade. Elas não apareceram ao mesmo tempo e nem em
todo o Ocidente medieval. O que fica evidente é que essas corporações não surgiram
pelo interesse exclusivo de um único segmento, mas por vontade mútua: de um lado,
pela necessidade dos artesãos de garantirem a proteção do exercício de seu ofício, e
de outro pela necessidade de o poder municipal, político, religioso ou econômico
controlar essas atividades.
A diferenciação dessas novas formas associativas em relação às anteriores estava no
caráter jurídico que assumiram perante a sociedade, tornando-se associações oficiais, di-
vididas por ofícios, presentes na maior parte das cidades medievais. Para Henri Pirenne,
pode-se afirmar que, em meados do século XII, a divisão dos artesãos urbanos
em grupos profissionais, reconhecidos ou instituídos pela autoridade local já
era um fato consumado em grande número de cidades. Como esses grupos
existissem, desde esta época, em lugares tão insignificantes como Pontoise
(1162), Hagenau (1164), Hochfelden e Swindratzheim (antes de 1164), é natu-
ral que tenham manifestado anteriormente em aglomerações mais importantes
(1982, p. 181).

Nos grandes centros econômicos da Europa medieval as Corporações de Ofício


fizeram-se presentes, e as razões que levaram à sua criação são as mais variadas. Surgi-
ram para garantir o monopólio dos artesãos, para exercer um poder de vigilância sobre
os ofícios, para organizar a produção artesanal e, em alguns casos, pela razão militar,
quando financiavam soldados para a proteção das cidades.
Apesar da diversidade administrativa e da constituição jurídica das corporações,
seus objetivos eram os mesmos em todos os lugares. Em primeiro lugar estava a pro-
teção do artesão, tanto da concorrência estrangeira quanto dos parceiros. Para isso,
impediam a entrada de artesãos de fora da cidade, fiscalizavam o enriquecimento e
as mercadorias dos membros da corporação, usavam regulamentos minuciosos e rígi-
dos, mantinham os salários controlados, determinavam a quantidade e a qualidade da
produção, proibiam anúncios de produtos e fiscalizavam as oficinas com inspeções-
surpresas, tudo com a intenção de garantir a igualdade comercial entre seus associa-
dos. Qualquer inovação nas técnicas de produção era considerada uma traição, se não
previamente acordada.
Inicialmente as oficinas atendiam apenas aos moradores da cidade e das imedia-
ções, funcionando ao mesmo tempo como oficina de produção e loja para a venda

18
dos produtos fabricados. Também os clientes eram protegidos, na medida em que a As corporações de ofício
na Idade Média
fiscalização punia com severidade qualquer tipo de falsificação ou defeito no produto.
Tanto o poder municipal quanto a sociedade tinham que ter acesso ao processo de
fabricação, por isso as oficinas se encontravam sempre abertas às visitas.

Um carpinteiro trabalha em sua oficina com a janela aberta para a rua, expondo o seu produto (ratoei-
ras), conforme prevê o regulamento da corporação desse ofício. Fonte: SUÁREZ FERNÁNDEZ, 1984.

A igualdade era uma exigência básica entre os artesãos. Mesmo que um deles viesse
a receber uma herança, por exemplo, não poderia, de forma alguma, aplicá-la em sua
oficina, pois era proibido contratar novos funcionários, criar estoques ou promover
qualquer melhoramento que resultasse em alteração na forma e na quantidade produ-
zida. O artesão devia limitar-se a ter uma estrutura que compreendia suas ferramen-
tas, um ou dois aprendizes e alguns companheiros, dependendo do regulamento da
corporação.

A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO NA


ADMINISTRAÇÃO DAS CIDADES
O envolvimento político das Corporações de Ofício nas administrações munici-
pais ocorreu praticamente em todas as cidades nas quais se encontravam instaladas. A
conquista do direito de participação nem sempre foi amigável, e em alguns casos foi
preciso lutar para isso, como por exemplo na Batalha de Courtrai (1302), em que as

19
HISTÓRIA MEDIEVAL II: corporações flamengas venceram as forças da cavalaria francesa.
a Baixa Idade Média
As disputas que se estabeleciam no interior de algumas cidades geralmente ocor-
riam entre as chamadas artes menores, formadas por artesãos, e as artes maiores,
constituídas pelos burgueses mais ricos.
Todavia, mesmo nas cidades comerciais, que permitiam a participação dos mestres
das corporações na administração municipal, não se pode ter a falsa impressão de que
esse direito fosse amplo e democrático. Apenas os ofícios mais importantes, como os
dos mercadores de tecidos finos, pertencentes às artes maiores, e cambistas ocupavam
cargos no governo local. Às artes menores, aquelas dos ofícios economicamente me-
nos importantes, esse direito era negado em praticamente todo o Ocidente.
Apesar dessas limitações, a produção artesanal teve um papel político mais eviden-
te nas cidades que produziam para exportação, como as da região dos Países Baixos
e as da Itália. Em Florença, por exemplo, quem detinha o controle e a administração
municipal eram os representantes das Sete Artes Maiores de comerciantes.
Todavia, em algumas cidades comerciais a participação dos ofícios na administra-
ção municipal não era consentida. No século XIII, os grandes mercadores de Veneza
impediam a participação política dos representantes dos ofícios. Assim, sua participa-
ção nos destinos políticos de algumas cidades medievais dependia de sua capacidade
organizativa, e, evidentemente, de seu poder econômico.
Desde o século XII, as corporações buscavam conquistar o direito de se autoad-
ministrar e de participar dos quadros da administração pública. Mas as disputas pelo
poder, nas cidades, davam-se de forma muito acirrada, principalmente quando envol-
viam os mercadores ricos, que temiam dar mais poder do que o que as corporações
já possuíam. O temor era de que as corporações pudessem majorar os preços de seus
produtos.
O direito de participação só foi plenamente reconhecido no século XIV, e apenas
em algumas regiões do Ocidente. Desde então, as corporações passaram efetivamen-
te a “[...] nomear os seus decanos e os seus jurados, de ser reconhecidas como corpos
políticos e poder exercer o governo com a alta burguesia” (PIRENNE, 1982, p. 184).
Tanto as Corporações de Ofício, que assumiram o monopólio da produção, quanto
os grandes mercadores, que controlavam os mercados, ajudaram as cidades medievais
mercantis a evoluírem e se organizarem, de tal forma que a autonomia econômica
passou a determinar a autonomia política de algumas delas, em relação aos senhores
feudais.
Para garantir o abastecimento dos produtos, artesãos e mercadores passaram a
exercer uma rígida fiscalização sobre a produção de matérias-primas vindas do campo.
Dessa forma, os camponeses eram obrigados a trazer seus produtos até os mercados

20
e vendê-los aos membros dos ofícios ou aos mercadores. A mercadoria era levada di- As corporações de ofício
na Idade Média
retamente ao mercado e deveria ficar exposta por um determinado período de tempo.
Essa rigidez no controle das transações comerciais e a dependência cada vez mais fre-
quente dos produtores do campo, e, por conseqüência, dos próprios senhores desses
camponeses, que dependiam desse comércio para obter suas rendas, levaram a um
processo de diferenciação, não apenas entre a camada camponesa mas também entre
os próprios senhores6.
O resultado foi um declínio do poder político que certos senhores exerciam sobre
algumas cidades medievais, sobretudo aquelas fundadas por sua iniciativa ou que fica-
vam territorialmente localizadas em regiões sob seu domínio.

A PRODUÇÃO ARTESANAL
Na maioria das oficinas voltadas para atender à demanda das cidades e das vizi-
nhanças, normalmente trabalhavam na produção: o mestre, alguns aprendizes e uns
poucos jornaleiros, cada um desenvolvendo de forma simultânea a sua atividade, po-
rém de forma comum e solidária.
Os produtos eram fabricados na sua totalidade, ou seja, do início até o acabamento
final. Um sapato, por exemplo, era confeccionado totalmente pelo sapateiro desde o
corte do couro, passando pela costura, a montagem e o acabamento. Essa prática era
estendida para uma série de ofícios, como o dos padeiros, ourives, alfaiates, ferreiros, etc.
Junto à oficina havia também um local específico, que cumpria a função de servir
como loja, onde ficavam expostos os produtos destinados à venda, permitindo um
contato direto do artesão com os clientes e também com os fiscalizadores.
A produção, geralmente, era de qualidade, uma vez que não havia a preocupação
com a quantidade a ser produzida. Buscava-se sempre o “ideal de fabricação” e a per-
feição do produto.
Os ofícios essenciais às necessidades diárias da população, independentemente do
vigor comercial da cidade, eram, sobretudo, aqueles ligados à alimentação – padeiros,
açougueiros, cervejeiros, etc. –, que por essa razão sofriam fortes regulamentações e
forte controle por parte da municipalidade. Isso era necessário para garantir o abaste-
cimento e impedir os abusos de preço, evitando, desse modo, o descontentamento da
população urbana.
O vinho, que também ocupava lugar de destaque nas cidades medievais, era co-
mercializado em grandes portos, como os de Veneza, para exportação marítima e para

6 Sobre o processo de penetração monetária no campo e seus efeitos, tanto sobre os camponeses quan-
to sobre os senhores feudais, veja-se: DUBY, Georges. Economia rural e vida no campo no Ocidente
medieval. Lisboa: Edições 70, 1988, v. 2.

21
HISTÓRIA MEDIEVAL II: o consumo interno. Os grandes vinhedos rodeavam as cidades produtoras, sobretudo
a Baixa Idade Média
na França dos séculos XII e XIII. Os vinhateiros moravam nas cidades, trabalhavam nas
vinhas e retornavam para casa no final da tarde.
Ofícios fundamentais eram aqueles inicialmente ligados ao couro, e depois aos
tecidos. Segundo Jacques Heers, a indústria do couro utilizava antigas técnicas de cur-
timento, com água fria e banhos de mirto, por isso esses ofícios fixavam-se próximos
às margens dos rios. Todavia, a partir do século XIII o couro passou a ser substituído
gradualmente pelo uso de tecidos (1980, p. 72).
Os ofícios ligados aos tecidos tornaram-se economicamente os mais importan-
tes. Devido a sua complexidade diferenciavam-se dos ofícios tradicionais, pois era
utilizado na fabricação um elevado número de operações, e, consequentemente, de
trabalhadores.
O processo produtivo dos têxteis, em que o artesão era o único responsável pela
peça, apresentava-se de forma diferente dos demais. A produção requeria etapas es-
pecializadas para a sua conclusão. Desde a chegada da matéria-prima (lã bruta) até a
venda dos panos tingidos havia um grande número de operações – manuais, mecâni-
cas e químicas –, além da utilização de inúmeros utensílios, até que o produto final
ficasse pronto. Isso levava dias, às vezes até um mês, dependendo da quantidade e da
qualidade que se queria obter, além das distâncias de onde cada etapa era executada.
A produção dos tecidos pode ser dividida em duas fases. A primeira, que se referia
à preparação da lã, estava subdividida nas seguintes etapas: retirada da lã (tosquia);
triagem, que era a separação conforme a qualidade; pisoagem, onde a lã era batida;
penteadura e cardadura, para a retirada das impurezas; lavagem em água fria e mor-
na; secagem e fiação.
Essa fase inicial era feita pelos “operários da lã”, que normalmente não se agrupa-
vam em ofícios e realizavam o trabalho em casa, recebendo um salário pela produção
contratada. Geralmente essas atividades eram complementares à ocupação principal
desses operários, a agricultura. Como quase sempre não estavam ligados diretamente às
Corporações de Ofício, sofriam grande exploração por parte dos mercadores e mestres-
tecelões, recebendo baixos salários e quase sempre sendo ameaçados de desemprego.
A segunda fase era a da confecção do tecido propriamente dito, ou seja, a tece-
lagem, que era realizada nas oficinas dos mestres-tecelões, com seus aprendizes e
companheiros. O ofício de tecelão era um dos mais considerados nas cidades, dada a
especialidade que exigia e o grande investimento nas ferramentas, principalmente o
tear, que era uma “máquina” relativamente cara. Por essa razão o valor do trabalho era
negociado, junto ao mercador proprietário da matéria-prima, de maneira mais iguali-
tária, possibilitando um preço mais justo para a atividade.

22
A tecelagem compreendia as seguintes etapas: a urdidura, que era o estiramento As corporações de ofício
na Idade Média
dos fios no urdume; a confecção das peças de pano no tear; a tosquiação, para a re-
tirada de pequenos defeitos, utilizando-se tesouras especiais; a pisoagem das peças,
onde eram lavadas e pisoteadas por horas; a secagem; e finalmente a tingidura, com
produtos vindos normalmente do Oriente.
O grande objetivo dessa divisão em várias etapas na produção dos tecidos visava
garantir a qualidade do produto. Isso provocou uma grande especialização dos ofícios,
na media que cada um passava a dominar uma parte da operação e tinha, inclusive,
segredos intransferíveis acerca da forma de desenvolver seu trabalho.
Todos os artesãos compunham uma cadeia de ofícios distintos, porém comuns ao
processo produtivo dos tecidos. Cada etapa era exercida de forma separada e não
ocupava o mesmo espaço físico. Os pisoeiros e os tintureiros, por exemplo, fixavam-se
próximo aos rios ou poços, devido à necessidade da utilização de água para desenvol-
ver o trabalho. Os fiandeiros e tecelões fixavam-se nas cidades, cada um em sua oficina,
trabalhando com os próprios aprendizes e jornaleiros7.
Alguns mestres recebiam a matéria-prima diretamente do mercador, e, às vezes,
também as ferramentas para a execução do trabalho, sendo remunerados na forma de
salário. Os mercadores geralmente dominavam tanto os mestres-artesãos quanto os
aprendizes e jornaleiros:

Esse mercador e fabricante de tecidos dominava tiranicamente um grupo de


‘empregados’ e ‘obrigados’, humildes vizinhos, devedores, fornecedores, do-
mésticos, pequenos patrões e empregados que ‘trabalhavam no ou para seu
lanifício’ (LE GOFF, 1992, p. 153).

Como o mercador era membro do patriciado das cidades, por deter fortuna pos-
suía um grande poder político e econômico sobre todos, pois desenvolvia uma varie-
dade de atividades econômicas que envolviam comércio, aluguéis, empréstimos, etc.
Essa era uma particularidade do ramo dos produtos têxteis.

AS RELAÇÕES DE TRABALHO NO INTERIOR DAS OFICINAS


ARTESANAIS
Apesar da diversidade das Corporações de Ofício, no interior das oficinas dos
artesãos a organização do trabalho era bastante semelhante. Havia uma hierarquia
de funções entre os três grupos de profissionais: o mestre-artesão, o aprendiz e o
jornaleiro.
O mestre-artesão, mesmo vigiado pela corporação a que pertencia, tinha certa

7 Para uma visão mais geral do processo produtivo do ramo dos têxteis, veja-se: FOURQUIN, G. História
Económica do Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1991.

23
HISTÓRIA MEDIEVAL II: liberdade, pois havia concluído o aprendizado de seu ofício, fora aceito na categoria,
a Baixa Idade Média
além de ser o proprietário da sua oficina e de suas ferramentas. Também era o único
que possuía recursos financeiros para adquirir as matérias-primas necessárias para a
produção do artesanato. Por isso detinha o comando do trabalho, exercendo sobre
os aprendizes e jornaleiros o poder de mando. Arcava com os riscos da produção, e
recebia toda a renda auferida com a venda dos produtos de sua oficina.
Dependendo do ofício, para a constituição da oficina eram necessários recursos
consideráveis, sendo obrigatório possuir o título de mestre e pagar as taxas para a
administração municipal e para a corporação à qual estava filiado. Desse modo, podia
exercer sua profissão com certa liberdade.
Os mestres participavam politicamente das Corporações de Ofício, votavam em
suas assembleias e, inclusive em algumas cidades, elegiam os cônsules responsáveis
pela administração municipal.
Era de sua responsabilidade recolher as cotizações às corporações na forma de tri-
butos, para que as oficinas pudessem funcionar. Esse recurso servia para o socorro aos
mestres pertencentes à associação corporativa, para o auxílio na criação das milícias
urbanas e para a realização de festas, funerais e melhorias nas cidades.
Os outros membros das oficinas, ou seja, os aprendizes e jornaleiros estavam, como
já adiantamos, subordinados aos mestres do ofício.
Os aprendizes deviam total obediência ao mestre durante o período de formação,
não recebendo salário pelo seu trabalho, mas apenas moradia, alimentação, sapatos
e vestimentas. O poder do mestre sobre os aprendizes baseava-se em um contrato de
aprendizagem pré estabelecido entre os pais, parentes ou responsáveis e esse mestre
proprietário da oficina8.
Em 1258, uma das primeiras regulamentações de ofícios de que se tem conhe-
cimento, elaborada por Etienne Boileau, o Livre des Métiers, de Paris, já apresenta-
va algumas condições para o aprendizado, definindo os fiscais encarregados de fazer
cumprir os estatutos e as condições dos aprendizes (idade, tempo de aprendizado,
punições, obrigações, etc.).
O Livre des Métiers também definia as obrigações dos mestres para com os aprendi-
zes, no que se refere ao ensino da profissão e à sobrevivência deles durante o período
de aprendizagem (alimentação, vestuários, proteção, etc.).
O surgimento dos contratos de aprendizagem representou uma evolução e uma
oficialização da relação entre mestre e aprendizes, conferindo-lhe um caráter jurídico.

8 Vide modelo de contratos de aprendizagem nos documentos para aprofundamento temático, no final
deste capítulo.

24
Os aprendizes atingiam a condição de mestre depois de decorrido o tempo de As corporações de ofício
na Idade Média
aprendizagem contratado. Iniciavam, geralmente, aos 12 anos de idade. O tempo do
aprendizado dependia do ofício escolhido: normalmente oscilava entre 2 a 10 anos,
dependendo da sua complexidade.
A maioridade do aprendiz se dava quase sempre por volta dos 25 anos, e enquanto
estivesse sob responsabilidade do mestre-artesão devia total obediência a ele, sob pena
de rompimento contratual. A formação do aprendiz ocorria quando adquiria o total
conhecimento para o exercício da profissão, o que era medido por meio de uma prova,
que consistia na confecção de uma peça de artesanato do ofício estudado, denominada
de “obra-prima”.
Também havia um rigoroso exame de admissão, que tinha um caráter de prova,
para os ofícios que implicavam a prestação de serviços, como os dos barbeiros ou
cirurgiões.
Decorrido o período de aprendizagem e concluída a prova final, o aprendiz po-
deria auferir a posição de mestre, desde que tivesse condição de montar a própria
oficina. Essa era uma realidade para a maioria dos aprendizes, pelo menos até meados
do século XIV. Todavia, já em fins desse século tal direito passou a ser prerrogativa
cada vez mais reservada apenas aos filhos dos mestres, passando a ser uma condição
praticamente hereditária.
Os jornaleiros eram o grupo menos privilegiado nos ofícios, estando subordinados
completamente ao mestre-artesão. O contrato firmado entre eles e os mestres estabe-
lecia o tempo da jornada de trabalho, variando em dias, semanas ou até meses. Re-
cebiam, como pagamento do seu trabalho, um salário determinado pela corporação.
Esses jornaleiros, por vezes, detinham o conhecimento do ofício, após ter passado
pelo período de aprendizagem, sendo, portanto, operários qualificados, porém não
haviam adquirido condições de constituírem suas oficinas, geralmente por falta de
recursos financeiros para adquirir as ferramentas e pagar os tributos às corporações.
Outra dificuldade da ascensão deles à condição de mestres estava ligada à limitação
imposta ao número de mestres para cada ofício nas cidades. Em alguns casos, os jorna-
leiros chegaram a organizar corporações exclusivas de operários das oficinas.
Em outras situações os jornaleiros, dependendo do ofício, constituíam-se como
mão de obra menos qualificada e sem o total conhecimento do ofício. Nesse caso,
tornavam-se um grupo muito mais sujeito ao desemprego ou ao emprego ocasional e
itinerante, muitas vezes chegando à condição de pobreza absoluta.
As relações no interior das oficinas eram vigiadas pelas Corporações de Ofício,
que faziam inspeções rigorosas, verificando as condições de trabalho dos aprendizes
e jornaleiros. Os regulamentos buscavam garantir a harmonia entre os mestres e seus

25
HISTÓRIA MEDIEVAL II: subordinados e também entre os mestres-artesãos das várias oficinas ligadas à mesma
a Baixa Idade Média
corporação.

O ENFRAQUECIMENTO DO SISTEMA DE CORPORAÇÕES DE OFÍCIO


Nos séculos XII e XIII, as Corporações de Ofício cumpriam um papel fundamental
na produção de mercadorias. Todavia, já no século XIV passaram a representar um
entrave ao desenvolvimento econômico, devido às limitações impostas pelos seus re-
gulamentos ao funcionamento da economia.
No final do século XIV, as disputas entre os mercadores e os chefes das Corpo-
rações de Ofício tornaram-se acirradas. O estabelecimento de uma rede comercial a
longa distância, ligando vários centros de negócios em todo o Ocidente tornou-se
necessário à quebra do monopólio da produção, o que acelerou o enfraquecimento
das associações corporativas.
Apesar da resistência dos artesãos, à medida que o comércio se intensificou ele
rompeu com os monopólios sobre a produção e sobre a própria distribuição dos pro-
dutos a média e a longa distância, reservando, na maioria das vezes, apenas o comércio
local às corporações.
As tarefas dos mestres de comprar matérias-primas, contratar aprendizes e jorna-
leiros, produzir e vender os produtos foram reduzidas à tarefa de receber salários e
gerenciar a produção. As demais funções passaram a ser exclusividade dos mercadores
detentores do grande capital.
Com o enfraquecimento do sistema corporativo, alguns mestres enriquecidos tam-
bém passaram a monopolizar o controle sobre determinados ramos da produção e a
submeter os demais, levando a um processo de diferenciação social entre os próprios
representantes das Corporações de Ofício.
Esses mestres também passaram a dificultar a passagem da condição de aprendiz
para mestre, vetar a entrada de novos aprendizes nas oficinas, ou instituir o paga-
mento de altas taxas para aceitá-los. Com isso, só passavam à condição de mestre os
aprendizes que eram filhos dos próprios mestres, sendo, por vezes, até dispensados
de apresentarem uma “obra-prima” para ascenderem à condição de Mestre de Ofício.
O aumento do controle dos mestres e de mercadores sobre alguns ofícios ampliou
ainda mais a distância existente entre eles, os aprendizes e os jornaleiros. Essa mudan-
ça na relação entre os membros dos ofícios, que antes garantia certa igualdade no aces-
so à condição de mestres, estava também relacionada ao processo de monetarização da
economia medieval, em curso desde o século XIII.
O monopólio das Corporações de Ofício nas mãos de poucos mestres e de ricos
mercadores possibilitou o aumento de seus lucros e a acumulação de capital, necessária

26
à ampliação dos negócios em todo o Ocidente. As corporações de ofício
na Idade Média
O enfraquecimento da produção artesanal independente e a acentuada divisão de
interesses entre os artesãos acompanhavam as transformações econômicas e sociais da
Baixa Idade Média e apontavam para a falência do sistema de Corporações de Ofício.
No final da Idade Média, o caráter protecionista das corporações era incompatível
com a nova ordem econômica que estava em curso, ou seja, economia mercantil e
monetarizada. Muitas delas se tornaram organizações anacrônicas e obsoletas frente
ao mercantilismo emergente, que exigia um volume cada vez maior de produtos para
o comércio.
Aos poucos a produção foi passando da fase estritamente artesanal para um pro-
cesso produtivo de escala mais abrangente, dando surgimento às primeiras manufatu-
ras. Isso acelerou o enfraquecimento do artesanato domiciliar e das Corporações de
Ofício, pois a constituição das oficinas de propriedades dos “novos ricos” determinava
a expropriação das ferramentas e da oficina dos artesãos, transformando-os em traba-
lhadores assalariados.
A acumulação progressiva de capital nas mãos desses “burgueses” permitiu, a par-
tir de fins do século XIV e início do XV, o surgimento das chamadas Companhias de
Exploração, que passaram a produzir e comercializar os produtos em larga escala e a
longa distância.
Nessa nova realidade econômica, baseada no lucro obtido no grande comércio,
não havia mais lugar para o sistema de Corporações de Ofício, e, consequentemente,
para seus membros, os artesãos. Nem mesmo para os aprendizes e jornaleiros, que
viviam sob a proteção dos mestres de ofício. O produto final, antes considerado como
“obra de arte”, transformou-se em simples mercadoria.
Entretanto, isso não significa que em fins da Idade Média as Corporações de Ofício
tenham deixado de existir completamente, mas certamente elas perderam espaço para
as manufaturas, e o seu papel econômico tornou-se cada vez mais restrito. Em algumas
regiões da Europa ainda subsistiram por longo tempo. Na França, por exemplo, per-
maneceram até o século XVIII, quando foram extintas oficialmente por Robespierre.

27
HISTÓRIA MEDIEVAL II: EXTRATOs DE DOCUMENTOs PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO
a Baixa Idade Média

Contrato de aprendizagem do ofício de sapateiro, firmado na


cidade de Saragoça (1334).
Elvira de Tarba entrega seu neto, Domingo Pérez, ao mestre Juan Pérez de
Tudela, como aprendiz de sapateiro, por um período de dez anos:
Eu, dona Elvira de Tarba, da cidade de Saragoça, entrego como aprendiz,
meu neto Domingo Pérez, a dom Johan Pérez de Tudela, vizinho da dita cida-
de, por um período de dez anos. Que o mestre Juan lhe ensine bem e fielmente
o seu ofício de sapateiro. E que o mestre lhe dê o de comer e beber, de vestir
e de calçar, no primeiro ano de aprendizagem. Nos nove anos restantes, eu,
Elvira de Tarba, avó de Domingo Pérez, ficarei responsável pela sua manuten-
ção na casa de Juan Pérez de Tudela. E prometo que meu neto, dentro do dito
tempo de aprendizagem, vos há de servir bem e lealmente, e que não partirá
de sua casa, etc. E se o fizer, será obrigado a retornar, etc...
Contrato estabelecido aos nove dias do mês de janeiro [era milesima CCCª.
LXXª secunda, fol. 89]. Fonte: FALCÓN PÉREZ, M. I. Ordenanzas y otros do-
cumentos complementarios relativos a las Corporaciones de Oficio en el
reino de Aragón en la Edad Media. Zaragoza: Institución Fernándo el Católi-
co, 1998.

Contrato de aprendizagem do ofício de corte e costura, firmado na


cidade de Saragoça (1327).
Eu, mestre Alfonso, e eu, Maria Alfonso, sua mulher, habitantes da cidade
de Saragoça, firmamos por aprendiz, Constança, nossa filha, com vos Maria
Xemenez de Boleya, e seu marido, Unverso, do dia em que esta carta foi feita,
pelos próximos três anos seguintes. E que vós lhe há de ensinar bem e fielmen-
te seu ofício de corte e costura. No primeiro ano, nós lhes daremos XV soldos
para a manutenção de nossa filha e prometemos dar-lhe o de vestir e de calçar.
E nos dois anos seguintes vós lhe dareis o que comer, beber, vestir e calçar. E
prometemos que a dita Constança, nossa filha, não vos abandonará, etc.

28
As corporações de ofício
na Idade Média
E eu, Maria Xemenez, à dita Constança, filha de vós, ditos mestre Alfonso e
Maria Alfonso, por aprendiz a recebo, etc.
Contrato firmado aos sete dias de fevereiro [anno millesimo CCCXXVII].
Fonte: FALCÓN PÉREZ, M. I. Ordenanzas y otros documentos complemen-
tarios relativos a las Corporaciones de Oficio en el reino de Aragón en la
Edad Media. Zaragoza: Institución Fernándo el Católico, 1998.

Fragmento do Estatuto dos Ofícios de Tecedores, Cardadores e


Tintureiros da Cidade de Murcia (1395-1396).
Que o dito Conselho, oficiais e homens bons da dita cidade de Murcia, se
esforcem e procurem agir em prol de todos os moradores e vizinhos da dita
cidade, assim e em razão dos ofícios e artes e ocupações, como de outras
atividades quaisquer, para que todos vivam em justiça e em verdade. Por-
que justiça e verdade são os fundamentos das coisas espirituais e temporais,
sem as quais nenhum homem pode viver ou obter a salvação eterna. [...].
Portanto, o dito Conselho, e homens bons e oficiais e artífices dos ofícios dos
tecedores, cardadores e tintureiros da dita cidade fabricante de panos de lã,
se comprometam a agir e governar e praticar, em favor dos habitantes de
Murcia, os conhecimentos que trouxerem de outras partes. [...]. Algumas más
e inescrupulosas pessoas, não temendo a Deus, nem tendo caridade de seu
próximo, por cobiça e ganância usam e têm usado desordenadamente o dito
ofício [...] fazendo algumas coisas mal feitas nos ditos panos, com as quais
prejudicam e causam danos àquelas pessoas que os compram e os vestem [...].
Que a tais pessoas sejam aplicados certos castigos e penas para que se possa
corrigi-las [...] e para que cada um desempenhe bem e lealmente o seu ofício,
de modo que os ditos tecedores, cardadores e tintureiros, pratiquem sua arte
corretamente [...].
Fonte: MARTÍNEZ MARTÍNEZ, María (Ed.). Documentos relativos a los
oficios artesanales en Baja Edad Media. Murcia: Real Academia Alfonso X El
Sabio, 2000.

29
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Referências

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FALCÓN PÉREZ, M. I. Ordenanzas y otros documentos complementarios


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MARTÍNEZ MARTÍNEZ, M. (Ed.). Documentos relativos a los oficios artesanales


en Baja Edad Media. Murcia: Real Academia Alfonso X El Sabio, 2000.

OLIVEIRA, C. R. História do trabalho. São Paulo: Ática, 1987.

PIRENNE, H. As cidades da Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América,


2009.
30
PIRENNE, H. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, As corporações de ofício
na Idade Média
1982.

ROSSIAUD, J. O citadino e a vida nas cidades. In: LE GOFF, J. (Org.). O homem


medieval. Lisboa: Presença, 1989.

SUÁREZ FERNÁNDEZ, L. Historia social y económica de la Edad Media europea.


Madrid: Espasa Calpe, 1984.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) Discorra sobre o funcionamento das Corporações de Ofício na Idade Média.


2) Faça uma análise evidenciando a importância das Corporações de Ofício para a estrutura-
ção da economia urbana medieval.
3) Reflita sobre as condições de trabalho nas oficinas pertencentes às Corporações de Ofício,
estabelecendo uma comparação com as formas de trabalho na indústria moderna.
4) Destaque os motivos que levaram ao enfraquecimento do sistema de Corporações de Ofí-
cios, a partir do século XV.

Anotações

31
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Anotações

32
2 A trajetória das
cidades medievais

José Carlos Gimenez / Vanessa Campos Mariano Ruckstadter

A CIDADE, NO CONTEXTO DE UM CONTINENTE EM TRANSFORMAÇÃO


Estudar sobre o ocidente medieval, mais especificamente sobre a forma de organi-
zação da vida social que não fosse centralizada no espaço urbano é quase impensável.
Entretanto, comumente encontramos, em livros didáticos de História para o Ensino
Fundamental e Médio, que desde a queda do Império Romano ocidental as cidades
deixaram de existir, para depois ressurgirem no século XII. Geralmente esse tópico
dos livros se intitula Renascimento Urbano e Comercial.
Partindo dessa constatação, há que se perguntar até que ponto tal afirmação pode
ser feita. As cidades deixaram de existir durante todo esse período? O que aconteceu
às ruínas das cidades da Antiguidade? Desapareceram? Existiu o fim da cidade, ou a
cidade sem fim?1 Seria a cidade medieval a continuação da cidade antiga e a gênese da
cidade contemporânea? Com o intuito de responder a esses e outros questionamentos
é que este capítulo se apresenta.
No inicio da Idade Média a desestruturação das cidades, provocada pelas inva-
sões bárbaras, é um dos aspectos mais significativos da crise que se abateu sobre
o Império Romano entre os séculos IV e V. No entanto, temos que considerar que
tais acontecimentos ultrapassam a simples ideia de destruição das edificações roma-
nas, e também temos que levar em conta outros aspectos desse desmoronamento.
Principalmente, temos que perguntar qual era o significado de cidade, ou melhor,
de se viver na cidade, para a sociedade daquela época. Quando consideramos esse
fato, aí sim poderemos compreender quais foram as suas reais transformações, uma
vez que os valores representados pelas cidades da antiguidade não iriam ter a sua
equivalência para os homens da Idade Média. Segundo Marcel Roncayolo, a cidade
não pode se restringir a um conjunto de objetos urbanos nem a uma convenção de
funções, pois ela

1 Alusão direta ao título da conclusão do livro Por amor às cidades, de Jacques Le Goff (1988).

33
HISTÓRIA MEDIEVAL II: [...] agrupa uma população caracterizada por certa composição demográfica, ét-
a Baixa Idade Média
nica, ou social; é uma forma de comunidade (em certos casos, de coexistências
de comunidades) ou de coletividades; é, por princípio, essencialmente política
(recordemos aqui a etimologia: polis provém de uma palavra que significa “ci-
dadela” e liga-se a politeía. Civis evoca originalmente o parente, o companhei-
ro ou, ainda melhor, a associação, na cultura clássica do ocidente, das noções
de polis e de cidade). (1986, p. 397).

Portanto, e de acordo com a citação acima, quando estudamos a decadência das


cidades no início da Idade Média não devemos considerar apenas as suas edificações
– palácios, fortalezas, arenas, praças, etc. -, mas também quais eram os valores sociais,
políticos e religiosos que essas construções representavam para os homens da Anti-
guidade, ou seja, apesar da destruição de muitos edifícios, a Antiguidade legou como
herança uma organização e uma experiência humana fundamentadas na organização
das cidades.
Povos como os romanos, por exemplo, foram exímios edificadores de centros urba-
nos e fizeram deles importantes núcleos administrativos, religiosos e culturais2. Neles
a sociedade dinamizava os mercados, as atividades financeiras e artesanais. As cidades
mais importantes da época também funcionavam como locais de encontro e intercâm-
bio com outras cidades, pois elas existiam como células ativas do território, adquirindo
homogeneidade ao serem unificadas suas distintas zonas de domínio. Mesmo aquelas
centradas nas atividades agrícolas, na produção de bens de consumo, bem como de
artigos de luxo ganharam relevância no espaço urbano. Por essa razão, para os povos
antigos a cultura, a religião e as instituições refletiam as imagens dos valores urbanos.
Uma primeira constatação a ser feita sobre a cidade no início do período medieval
é que ela perdeu a sua força motriz em detrimento do campo, principalmente entre
os séculos V e X. A prostração generalizada e o colapso do governo centralizado, no
século V, com o gradual povoamento do Ocidente por invasores germânicos enfraque-
ceram o mundo romano, e, com ele, a cultura urbana. Como resultado desse processo,
muitos centros urbanos perderam a sua vitalidade em detrimento do campo. Contudo,
não houve um aniquilamento total das cidades antigas.

Os antigos edifícios públicos caem em ruínas e seus materiais são muitas vezes
reutilizados para edificar igrejas ou casas particulares. As elites senatoriais, an-
tes associadas ao prestígio da capital, voltam-se para os seus domínios (villae),
enquanto as instituições urbanas (como a cúria, antiga instância de governo
autônomo das cidades) vacilam diante do poder crescente dos bispos. Em
suma, as cidades, e com elas a cultura urbana que compunha o coração da
civilização romana, não são mais do que a sombra delas mesmas. Mas, a des-
peito de seu declínio considerável, as cidades do Ocidente jamais desaparecem

2 Em relação à cidade romana, veja-se: FUNARI, P. P. A. Reflexões em torno da cidade romana. In:
BARBOSA, Sidney (Org.). Tempo, espaços e utopias nas cidades. São Paulo: UNESP, 2004. p. 45-78.

34
completamente. Pode-se mesmo dizer que, aproveitando-se da fraqueza do A trajetória das
controle exercido pelos reis germânicos, elas se matem como os principais ato- cidades medievais
res políticos no nível local, durante os séculos VI a VIII (BASCHET, 2006, p. 55).

Mesmo que as cidades tenham perdido sua vitalidade diante dos invasores, elas se
constituíram num importante local de resistência. Segundo Peter Brown, desde o sécu-
lo III elas já vinham sofrendo transformação, cujos principais sinais eram a construção
de muralhas e basílicas, patrocinadas pelos bispos. Segundo o autor, a população das
cidades necessitava dos bispos cristãos a fim de manter o ânimo e suavizar os efeitos da
crise. Em contraponto à aristocracia secular, decomposta e dispersa, “os edifícios que
faziam parte de cada igreja constituíam um símbolo da determinação quotidiana
das cidades no sentido de sobreviverem e de se mostrarem capazes de sobreviver”
(BROWN, 1999, p. 78-79).
Portanto, ainda que a concepção e os valores da vida urbana entrassem num pro-
cesso de esgotamento, parte deles sobreviveu, e teria certa continuidade sob o con-
trole da Igreja:

[...] O colapso final do governo centralizado no século V e o gradual povoa-


mento do Ocidente por invasores germânicos enfraqueceu a economia urbana
do Império e, com ele, sua cultura. A subseqüente reaglutinação de populações
urbanas é um aspecto significativo da nova cultura da Idade Média, surgida das
ruínas de Roma. Tal mudança nunca foi completa. Em grande parte da Europa
continental, a Igreja cristã manteve tradições de governo romano e, portanto,
algo de vida urbana, na medida em que utilizou as fundações remanescentes
para apoiar-se nelas. A diocesis romana tornou-se uma instituição eclesiástica;
a civitas tribal e as capitais provinciais da Gália, como Paris, Remis ou Tours
tornaram-se sés episcopais (LOYN, 1990, p. 89).

Ainda que os bispos conservem “certa continuidade” da vida citadina, uma mudan-
ça profunda se opera no aspecto religioso ocidental com o processo de ruralização
desencadeado na Europa, a partir do século IV, com a edificação dos mosteiros e com
os ideais da vida monástica. Com eles houve uma marginalização em relação aos ideais
de vida nas cidades, ao trazer para seu interior o centro de gravidade da religiosidade
e ao transformá-lo em símbolos da religião cristã. Peter Brown, em um texto dedicado
a essas transformações, afirma:

O paradigma monástico radical faz os dirigentes clarividentes da comunidade


cristã preverem as destruições ligadas ao definitivo desaparecimento do perfil
clássico da cidade. Os monges e seus admiradores são, com efeito, os primei-
ros cristãos do Mediterrâneo a olharem deliberadamente além da cidade antiga
(BROWN, 1991, p. 1991).

O historiador Jacques Le Goff também pondera sobre a nova configura-


ção da cidade, em decorrência das invasões. Segundo esse historiador, ape-
sar de o Cristianismo se instalar primeiramente nas cidades, ele as modifica

35
HISTÓRIA MEDIEVAL II: e ele mesmo se ruraliza:
a Baixa Idade Média

[...] Se, no desmoronamento político que se abate também sobre a cidade,


o bispo, chefe religioso nela estabelecido, retoma o poder político urbano,
a sociedade monástica, mais poderosa na solidão do campo, da montanha e
dos vales do que na cidade, acompanha com a ruralização da nobreza a trans-
ferência de uma grande parte do poder da cidade para o campo (LE GOFF:
2006, p. 220).

Muitas cidades, mesmo as mais devastadas, não foram completamente abandona-


das, mas ganharam um novo significado ao serem apropriadas e transformadas pela
Igreja em espaços privados, como monastérios e igrejas. Segundo Fumagalli, o fascínio
dos monges pelas cidades e povoações abandonadas se deve a vários fatores: a dispo-
nibilidade de material de construção para seus novos edifícios e a certeza de poder
viver em um território que havia garantido alimento em épocas passadas. Além disso,
tudo aquilo envolvia características de beleza paisagística, de origem bíblica, o que
caracterizava os lugares predestinados à vida espiritual (FUMAGALLI, 1989, p. 18).
Nesse aspecto, a cidade da Antiguidade deixou de existir em sua função econômica,
política e social, e passou a fazer parte de um imaginário envolto entre o sagrado e o
profano, o natural e o sobrenatural. Sobre suas pedras se erigiram verdadeiros refú-
gios, tanto temporais (as fortalezas e seus castelos) quanto espirituais (os mosteiros).
Assim, não se pode afirmar que a cidade antiga e a cidade medieval fossem comparáveis
em suas funções e no significado de seus monumentos. Por exemplo, os anfiteatros
foram abandonados, pois o Cristianismo ocidental não admitia mais a diversão. Outro
espaço que deixou de existir foi o fórum. Entretanto, o mercado resgata a tradição do
fórum, e se tornou, na Idade Média, espaço de recreação (LE GOFF, 1988, p. 9-10).
O êxodo urbano, como afirmamos acima, não extinguiu a cidade mas a tornou
marginal, em uma organização social, política, econômica e cultural agora centrada na
vida do campo. Inclusive, muitas delas foram incorporadas pelo próprio sistema feudal
e passaram a fazer parte das relações de vassalagem estabelecidas entre os aristocratas.

Tradicionalmente, se ha considerado a las ciudades como islotes de libertad


dentro de las estructuras feudales cuyo crecimiento traerá consigo la destrucci-
ón final de estas últimas. Sin embargo, hoy se considera que las urbes medieva-
les, y en una gran proporción todas preindustriales, nunca fueron una realidad
autónoma dentro do sistema feudal (ALONSO apud MORSEL, 2008, p. 268).

De forma geral, a população das cidades diminuiu gradualmente durante os pri-


meiros séculos da Idade Média. Dentre diversos fatores podemos destacar a progres-
siva ruralização da sociedade e, com ela, a secundarização do comércio urbano, em
detrimento das trocas realizadas entre produtos agropastoris.
Todas as transformações na trajetória das cidades medievais devem ser entendidas

36
no contexto conjuntural da Europa ocidental entre os séculos V e X. No conjunto A trajetória das
cidades medievais
dessas mutações, as modificações nos espaços urbanos são apenas uma face de um
processo intenso de ruralização, do qual decorreu uma nova organização social, po-
lítica e econômica, o que a historiografia convencionou chamar de Sociedade Feudal,
ou, mais usualmente, Feudalismo. Nessa forma de organização social pode-se destacar,
além da ruralização, uma economia baseada na agricultura, e com ela a impossibilida-
de de mobilidade social. Somou-se a isso o fracionamento do poder central, que se
caracterizou principalmente pela predominância dos vínculos familiares e das relações
pessoais sobre as institucionais. O desenvolvimento dessas relações de dependência
pessoal foi assegurado pela privatização da defesa militar, centralizada nos castelos.
Nesse sentido, para justificar tal realidade o quadro se completou com a clericalização
da sociedade (FRANCO JÚNIOR, 1986, p. 9-28).
Essas transformações fizeram com que as futuras gerações conhecessem as cidades
apenas por meio dos relatos orais preservados pelos mais velhos. Para a maioria dos
homens medievais a cidade existia apenas em seu imaginário. Um exemplo do que
havia no imaginário do que restou das cidades pode ser constatado a partir do teste-
munho de um bispo francês da província de Remis que viveu no século IX:

Vejo explodir ante vós a cólera de Deus... não há mais que cidades despovoadas,
mosteiros destruídos ou incendiados e campos desertos... Por todas as partes o
poderoso oprime o debilitado e os homens são semelhantes aos peixes do mar,
que se devoram desordenadamente entre si.3

Percebe-se que essa lembrança estava permeada pela desolação e pelo “saudosis-
mo” de uma realidade distante e modificada, pois para os homens daquele período a
vida cotidiana estava voltada para o grande silêncio dos campos. Segundo Fumagalli
(1989, p. 10) as cidades, nesse contexto, estavam reduzidas a fantasmas de si mesmas
Os agrupamentos das aldeias vivam no limite da subsistência, os bosques invadiam as
paisagens urbanas, e as suas antigas edificações, como os teatros, por exemplo, des-
configuravam rapidamente o que o homem criara havia séculos. Só restavam pedras
cobertas pela vegetação. Nas ruínas dos centros urbanos restavam poucas moradias,
e as termas e os anfiteatros romanos foram saqueados pelos povos considerados bár-
baros, que transformaram esses espaços em refúgios, fortalezas e esconderijos. Além
disso, há o caráter de que sob aquelas pedras havia sepulcros e ossos de mortos, e de
cristãos assassinados pelos considerados povos bárbaros.

3 Documento citado por FUMAGALLI, 1989, p. 24. Tradução livre: “Veis estallar ante vos la cólera de
Dios... No hay más que ciudades despobladas, monasterios destruidos o incendiados, campos desier-
tos... Por todas partes el poderoso oprime al débil y los hombres son semejantes a los peces del mar,
que se devoran desordenadamente entre sí”.

37
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Arco/porta de um burgo do século XI – Arco de Olivares en la muralla zamorana – Fonte: Felix Benito
Maritín, p. 159.

Além disso, as antigas cidades se converteram, a partir do século X, em decorrência


da necessidade de defesa de uma nova onda de invasões bárbaras, em edificações,
como muralhas e fortalezas, e se transformaram em edificações militares.

A escala monumental romana é substituída por ambientes mais íntimos. Há,


porém, os diversos sistemas de defesa: muros, muralhas, fossos e torres. Na
medida em que a cidade cresce, novas muralhas são construídas – e estas deli-
mitam forma, tamanho e imagem da cidade. As muralhas anteriores não eram
destruídas, ou ao menos eram deixados vestígios, e estes se tornavam marcos
na cidade (MARTINO; AZEVEDO, 2010, p. 6).

Se para muitos homens da Idade Media a realidade do quotidiano das grandes


cidades, e sua dinâmica populacional, sobrevivia apenas no imaginário, preservado
pela memória do passado, a partir do final do século XI e inicio do XII essa realidade
começou a modificar-se, e significou, na linguagem dos historiadores, o Renascimento
Urbano e Comercial; ou Ressurgimento da vida citadina no Ocidente.
Entretanto, devido à impossibilidade de discutirmos detalhadamente toda a evolu-
ção – política, social, econômica, arquitetônica, entre outras – da cidade a partir do

38
século XI, o objetivo deste capítulo é realizar uma leitura horizontal dessa evolução, A trajetória das
cidades medievais
centrada no próprio homem. Partimos do pressuposto de que as cidades medievais
são a gênese da cidade e do homem modernos, e o seu ”ressurgimento” configura um
importante momento de transição, que produziu uma tomada de consciência urbana
e, consequentemente, transformou a dinâmica social, política e econômica do que se
convencionou chamar de Idade Média. Destarte, analisar as representações da cidade
no imaginário medieval é compreender a própria dinâmica da sociedade nesse perí-
odo, a qual despontava para uma nova realidade, que se configurava à medida que
importantes transformações ocorriam.
Todavia, em meados do século XI esse quadro se modificou, e a renovação do
núcleo urbano – uma realidade distante para a maioria da população – passou a fazer
parte do seu cotidiano. Le Goff afirma:

[...] Esse desenvolvimento urbano faz-se sentir a partir de núcleos. Esses nú-
cleos são dominados, ou por um senhor eclesiástico, o bispo, em geral, nas
cidades episcopais, ou por um senhor leigo, sobretudo o conde, desde a época
carolíngia. Eles governam a partir de seu palácio episcopal ou de seu castelo
[...] Desde o século XII, a evolução das cidades medievais constitui na reunião,
lenta e numa única instituição, do núcleo primitivo da cidade e de um ou dois
burgos importantes. A cidade vai, portanto, lançar seu poder sobre certa ex-
tensão em volta, na qual exercerá direitos mediante coleta de taxas: é isso que
chamamos de subúrbio (1988, p. 16-17).

URBANIZAÇÃO DA SOCIEDADE EUROPEIA


A partir do século XI a Europa ocidental vivenciou um processo de profundas trans-
formações, geradas no interior do próprio regime feudal. Uma das mais significativas, e
que interessa de maneira mais direta ao tema aqui discutido, diz respeito ao aumento
da produção agrícola. Por meio desse aumento foi possível uma melhoria das con-
dições de vida da população, o que propiciou também um excedente de produção,
o qual fomentou o ressurgimento do comércio e a recuperação das antigas cidades,
destruídas e abandonadas, além de criar novos espaços urbanos.
A edificação de novas cidades acompanha o crescimento demográfico europeu des-
se período. De 18 milhões no ano de 800, o continente europeu saltou para cerca de
22 milhões de pessoas por volta do ano 1000; de aproximadamente 26 milhões nas
proximidades do ano 1100 para mais de 34 milhões pelo ano 1200. Próximo do ano
de 1300, esse número cresceu para mais de 50 milhões de habitantes. A curva desse
crescimento somente iria declinar com uma nova epidemia da peste negra nesse con-
tinente, no século XIV.
Diferentemente do mundo rural, que procurava produzir para a autossuficiência,
a cidade medieval pode ser caracterizada e definida pela densidade de povoamento,
a qual superava a capacidade de a comunidade produzir o próprio alimento – um

39
HISTÓRIA MEDIEVAL II: padrão de ocupação que incluía a permuta regular de bens e serviços e uma identidade
a Baixa Idade Média
civil bem definida. Porém, o indício mais acentuado desse desenvolvimento urbano é a
divisão do trabalho, que pode ser analisada a partir do surgimento de novas profissões.
O século XI e a primeira metade do século XII constituíram momentos de um cres-
cimento aleatório e desordenado das cidades, pela propagação de novos segmentos
sociais que tentavam conquistar seu espaço. Nesse sentido, a sua emancipação deve
ser entendida como a conquista de seus habitantes; conquista como resultado de luta
pelas possibilidades que ela oferecia.

As cidades atraíam os homens: os habitantes dos campos vindos por vezes de


longe, bufarinheiros, servidores das administrações senhoriais; com os antigos
ocupantes, formaram uma população nova, os burgueses, de entre os quais
depressa sairiam os comerciantes que recebiam e difundiam as mercadorias
de preço, manejavam muitos numerários, distribuíam o trabalho aos artesãos
(GUILLEMAIN, 1980, p.143).

De modo geral, aqueles que habitavam as cidades utilizavam preferencialmente um


nome: burguesia, ainda que nem todos os moradores desses espaços urbanos perten-
cessem a esse grupo, oriundo dos comerciantes. Tal nome batizaria a classe social que
triunfaria no século XIX, a partir da consolidação do capitalismo, e que promoveria
uma nova revolução urbana: a cidade originada da Revolução Industrial (LE GOFF,
1992, p. 5).
Se por um lado o chamado ressurgimento das cidades produziu consequências
importantes em relação à desarticulação da sociedade feudal (como, por exemplo,
a libertação de muitos servos de suas obrigações com os seus senhores, bem como
o fortalecimento do poder dos reis e príncipes por meio da centralização política),
por outro trouxe um tipo novo de exploração do homem, que o mundo rural não
conhecia. Como resultado desse processo pode-se destacar o aumento da legião dos
excluídos da civilização medieval.
O século XIII acentuou as mudanças ocorridas na trajetória da cidade medieval.
Uma primeira mudança pode ser detectada nas ideias dominantes do período inicial
da Idade Média, tais como penitência, perdão, julgamento por ordálio4 e sanções da
comunidade (tanto por parte do poder dos senhores feudais quanto da Igreja), as
quais passaram, progressivamente, para políticas de perseguição e execução, segrega-
ção e isolamento. As monarquias nacionais e as cidades compartilhavam de um papado

4 Também chamado de judicium Dei ( Juízo de Deus), o ordálio foi um instrumento jurídico amplamen-
te utilizado para sentenciar como culpado ou inocente um réu. Tratava-se de colocar o acusado sob uma
prova extremamente dolorosa, como o fogo, por exemplo. Caso o acusado saísse sem se queimar, ele
seria julgado inocente, e o feito seria visto como milagre. Dessa prática tem origem a expressão “prova
de fogo”.

40
cada vez mais autoritário. As cidades podem ser vistas como sede do poder senhorial, o A trajetória das
cidades medievais
que ocasionou uma luta de poderes nesse espaço (MORSEL, 2008). No século XIII, as
ordens mendicantes, pregando pobreza e humildade, extraíram lições dos movimen-
tos sociais que emergiam naquele espaço citadino,

[...] nos quais as pessoas simples da cidade questionam a atitude dos podero-
sos, e, em particular, a dos senhores, os quais, de seu campo, de suas fortalezas,
continuam a dominar o espaço urbano. Em contraposição, a riqueza se cria de
um modo ainda mais brutal na cidade, com os mercadores, os burgueses e o
comércio. Diante da arrogância dos novos ricos e dos antigos poderosos que
estão sempre aí, para convencer o povo, para não deixá-los rebelar-se contra
a ideologia cristã da época – perdoem-me a expressão -, essas novas ordens
mendicantes querem dar o exemplo (LE GOFF, 1988, p. 18).

Assim, essas ordens passaram a atuar no limite da cidade, pois, mesmo conseguin-
do atrair a atenção e pregar o exemplo no espaço urbano, não representavam o pres-
tígio e o poder atuando nas proximidades da porta da cidade. Instalaram-se, pois, na
periferia, próximo às muralhas.
Além disso, alguns problemas eminentemente urbanos passaram a ser preocupa-
ção central, tanto para as autoridades quanto para os habitantes da cidade, por serem
caracterizados pela segregação de grupos, tais quais: leprosos, prostitutas, homosse-
xuais, judeus, hereges e bruxos (RICHARDS, 1993, p. 25).
Uma segunda mudança se refere ao movimento corporativo urbano, que reabilitou
o conceito de trabalho (do latim tripalium, instrumento de tortura utilizado pelos ro-
manos). Visto como uma penitência durante a Alta Idade Média, passou a ser entendi-
do como útil aos homens, capaz de produzir para os trabalhadores a salvação. Embora
na sociedade tripartida (oratores, laboratores e bellatores, respectivamente, aqueles
que rezavam, aqueles que lutavam e aqueles que trabalhavam, ou ainda, o clero, a no-
breza e os servos) a categoria trabalho se referisse somente aos trabalhos braçais, no
final do século XII e no século XIII ela incorporou também os trabalhadores urbanos.
Desenvolve-se então um outro esquema, que fundamentava ideologicamente o lugar
de cada grupo naquele novo espaço, o das artes mecânicas, isto é, dos ofícios. Essa
mudança fez com que representantes eclesiásticos criassem um novo enquadramento
para tais profissões, e, consequentemente, passou a haver uma distinção entre as pro-
fissões consideradas legais e ilegais, na Idade Média (LE GOFF, 1980).
No tocante às novas profissões, é significativa a mudança de atitude da Igreja em
relação ao usurário.5 Condenado por ela por ganhar dinheiro sem nada produzir, pas-
sou a ter, nessa nova acepção do trabalho, uma possibilidade de salvação. A solução

5 Usurário (usurarius) era aquele que praticava a usura, ou cobrança de juros excessivos.

41
HISTÓRIA MEDIEVAL II: encontrada pelos teólogos do século XII foi a criação do purgatório: uma instância in-
a Baixa Idade Média
termediária entre o inferno e o paraíso. Com esse gesto a Igreja adaptava-se aos novos
tempos, e o usurário poderia, enfim, ser beneficiado com a “vida eterna”, uma vez que
no purgatório poderia pagar por seus pecados, e assim dificilmente iria para o inferno
(LE GOFF, 1995).
A alimentação também mudou: a ida às cidades exigiu a diversificação dos alimentos.
Não era mais baseada quase que exclusivamente em pão e papa de cereais, raras vezes
acompanhadas de carne de porco, ovo e frango, além de peixe salgado ou seco. A alimen-
tação se tornou mais variada, e abrangia uma crescente procura por carnes, passando a
incluir carneiros e vitelos. A base da alimentação, entretanto, continuava a ser o cereal,
que também se enriqueceu em variedade: arroz, trigo mourisco, batata e milho. Todas
essas mudanças estão atreladas ao renascimento comercial, ao contato com outros povos
no próprio continente, o que possibilitou a ampliação do mundo medieval também no
tocante aos sabores. Frutos e legumes passaram a ser cultivados, e houve a inserção de
temperos. Já entre as bebidas, destacava-se o vinho. A variedade foi paulatinamente cres-
cendo quanto mais se aproximava a sociedade hodierna, especialmente entre os séculos
XIV e XV, momento considerado como de transição (WOLFF, 1988, p. 96-104).
Outra importante mudança se refere à regularidade do tempo. Enquanto na exe-
cução do trabalho rural o tempo era marcado pela total interação do camponês com a
natureza, e o seu uso não era feito somente para o trabalho agrícola mas também para
as preces, no trabalho dos artesãos e dos operários assalariados ele era mensurável
em dinheiro, e, sobretudo, no tempo de execução – o tempo tecnológico. O tempo
urbano é, ainda, o tempo do mercador contra o tempo da Igreja:

Ao tempo do mercador, que é condição primordial do ganho, uma vez que


quem tem dinheiro pensa tirar proveito da espera do reembolso de quem o não
tem à sua imediata disposição, pois o mercador fundamenta a sua atividade em
hipóteses em que o tempo funciona como a própria trama – armazenamento
prevendo fomes, compra e revenda nos momentos favoráveis, deduzidos do
conhecimento da conjuntura econômica, das constantes do mercado dos gêne-
ros e do dinheiro, o que implica toda uma rede de informações e de correios,
a esse tempo opõe-se o tempo da Igreja, tempo que só pertence a Deus e não
pode ser objeto de lucro (LE GOFF, 1980, p. 44).

Além de centro de produção econômica, a cidade medieval, que foi palco de in-
tensa produção cultural, criou uma função intelectual nova, diferente daquela dos
mosteiros e da catedral da Alta Idade Média. Houve uma irradiação de novos espíritos
e diferentes visões sobre o mesmo espaço. A cidade estava no mundo e pertencia a
ele; assim, os que nela viviam sentiam-se situados nesse mundo, uma vez que ela era,
ao mesmo tempo, espaço de liberdade e centro de poder. Era ainda o local onde os
homens experimentavam novas emoções e uma impressão de deslumbramento ante

42
as possibilidades que aquele novo espaço urbano oferecia. Nesse sentido, o “ressurgi- A trajetória das
cidades medievais
mento da cidade é uma fonte de vida, de promessas de futuro e provedora de novos
valores” (ZUMTHOR, 1984, p. 124).
Pode-se caracterizar esse espaço como provedor de novos valores com os testemu-
nhos de dois citadinos do século XII: um monge e um bispo, que relataram aspectos
da vida cotidiana em Londres, cujos relatos foram recolhidos de maneira exemplar
por Jacques Rossiaud, para caracterizar a cidade como um espaço de contradições e
de diferentes olhares sobre uma mesma realidade, conforme transcrevemos abaixo.6 O
primeiro relato é do monge Richard Devize sobre a cidade de Londres do século XII:

Esta cidade não me agrada. Há pessoas de todos os gêneros, vindas de todos os


países possíveis; cada raça traz consigo os seus vícios e os seus costumes. Nin-
guém pode viver aqui sem se manchar com um qualquer delito. Os bairros es-
tão repletos de obscenidades revoltantes [...] Quanto mais velhaco é o homem,
mais considerado é. Não se misturem com a gentalha das hospedarias [...] Aí,
os parasitas são infinitos. Actores, bobos, jovens efeminados, mouros adulado-
res, efebos, pederastas, bailarinas especializadas na dança do ventre, feiticeiros,
charlatães, raparigas que cantam e dançam, extorsionários, noctívagos, magos,
mimos, mendigos: eis o gênero de pessoas que enchem as casas. Por isso, se
não quiserem conviver com malfeitores, não venham viver para Londres. Não
digo nada contra as pessoas instruídas, contra os religiosos ou os judeus. Con-
sidero, todavia, que, vivendo no meio de patifes, serão também menos perfeitos
do que em qualquer outro lugar... (DEVISE apud ROSSIAUD, 1989, p. 99).

No segundo testemunho, Guillaume Fitz Stephen, contemporâneo do primeiro,


também relata o cotidiano da mesma cidade, porém com uma visão oposta. Pelo seu
testemunho podemos perceber a exaltação da vida citadina de Londres.

[...] de todas as nobres cidades do mundo, Londres, trono do reino da Ingla-


terra, espalhou por todo o universo a sua glória, e a sua riqueza e as suas mer-
cadorias e vive de cabeça erguida. É uma cidade abençoada pelos céus; o seu
clima saudável, a sua religião, a vastidão das suas fortificações, a sua posição
favorável, a forma de que gozam os seus cidadãos e o decoro dos seus senho-
res, tudo joga em seu favor [...] Os habitantes de Londres são universalmente
apreciados pela finura dos seus modos e dos costumes e pelas delícias da sua
mesa. As outras cidades têm cidadãos; Londres tem senhores. Entre eles, basta
um juramento para se decidir um litígio. As mulheres de Londres são como as
Sabinas (STEPHEM apud ROSSIAUD, 1989, p. 99).

Ainda segundo Roussiaud, essas duas visões da mesma cidade recuperam velhas
imagens, porém cristianizadas: a primeira remete à Babilônia, e a segunda, à Jerusalém.
Entretanto, refletem um imaginário construído a partir da vivência que serve como
protótipo da cidade medieval: amada por uns e odiadas por outros (ROSSIAUD, 1989).
Apesar dessa contradição, pouco a pouco a crescente atividade produtiva e

6 Os dois relatos são citados por ROSSIAUD, 1989, p. 99.

43
HISTÓRIA MEDIEVAL II: comercial impulsionou a vida das cidades e aumentou sua complexidade. As novas
a Baixa Idade Média
formas associativas implicaram que diferentes categorias de pessoas, que compartiam
uma atividade especializada em um espaço limitado comum (artesãos, comerciantes,
oficiais, religiosos, universitários), passassem a ser regidos por estatutos próprios e a
promover entre si pactos das mais variadas natureza e para diversos fins, motivados
pela necessidade de se unirem e se dotarem de instituições especificas para defender
interesses comuns (BAYONA AZNAR, 2009, p, 152).

Festas e jogos urbanos (jeu du “civetino”– sec. XV) – Fonte: Jacques Le Goff – Por amor às cidades, p. 61).

A cidade, no final da Idade Média, tornou-se um lugar de abundância e de efer-


vescência; ela era, para os moralistas da catedral, um lugar de perdição, viciado pela
cupidez, pela glutonaria e pela luxúria. Representa um lugar de prazer, onde todos os
cavaleiros sonham em prolongar sua estada. Representava ainda um espaço de contra-
dições: a alegria de viver caminha a par com a extrema indigência dos muros, à espera
daquilo que se distribuía, ou se jogava fora (DUBY, 1988).
Nesse aspecto, podemos afirmar que a cidade medieval possibilitou a gestação da
cidade moderna. A organização de núcleos e cidades surgidos na Idade Media, que
manteve sua vigência ao longo de mais de um milênio, constitui o embrião da nossa
cultura urbana. Após as profundas crises que provocaram o desmembramento do siste-
ma de assentamentos da antiguidade clássica, uma nova civilização, inicialmente rural

44
e paulatinamente urbana, foi-se gestando no Ocidente medieval europeu. Essa nova A trajetória das
cidades medievais
civilização, esse novo sistema urbano é a origem de um longo ciclo histórico no qual
ainda estamos imersos. Se devemos considerar as cidades anteriores à Idade Média
como situações pretéritas, os núcleos medievais ainda subsistem e constituem, em sua
maioria, o suporte de nossos centros históricos ou de povoações inteiras. Localização,
traçado e muitos vestígios físicos (muralhas, fortalezas, templos) subsistem em grande
parte desses núcleos. Por outro lado, a cidade gerada na Idade Média seguiu consti-
tuindo a “cidade” até o século XIX (BENITO MARTÍN, 2000, p. 13).
Assim, apesar da ruralização durante o período medieval, a cultura urbana que se
consolidou a partir do século XIII, ao possibilitar a criação e o desenvolvimento das
universidades, do relógio mecânico, do tempo laico, do sistema bancário, do Estado,
entre outros elementos, e que continuou se desenvolvendo nos chamados Tempos
Modernos, constitui um importante legado da cidade medieval.

CONCLUSÃO
Pode-se inferir, a partir da trajetória da cidade medieval aqui apresentada, que o
crescimento urbano nos séculos XII e XIII gerou uma desarticulação do esquema ideo-
lógico trifuncional, ao mesmo tempo em que produziu novos valores. Esse novo mun-
do do trabalho que se configurava e as novas ideias advindas desse novo espaço social
produziram um novo homem, e, com ele, a gênese da nova sociedade que se erigiria
no século XV: o mundo moderno. Por essa razão, é possível identificar semelhanças
entre a cidade medieval e a cidade contemporânea dada a construção de uma forma
de organização do trabalho que seria consolidada posteriormente, e que daria origem
a um novo sistema econômico, vigente até nossos dias, o capitalismo.
Naquele espaço urbano houve uma acentuação dos contrastes sociais: parte dos
citadinos era de burgueses, mas outra parte era de desvalidos, aleijados, imigrantes e
pobres. A partir da contradição da coexistência de uma sociedade hierarquizada e de
uma nova possibilidade de flexibilização das relações sociais, percebe-se um dos sinais
mais visíveis da degradação do mundo feudal e do nascimento da sociedade moderna,
centrada nos valores da competição, da disputa comercial e do individualismo.
Portanto, para o homem medieval a cidade e suas contradições representavam um
momento de experimentar e de viver novas (e muitas vezes traumáticas) experiências,
mas ainda sob a égide de uma Igreja e de um Estado que se construíam sob as bases da
centralização do poder real. A cidade se apresentava como a possibilidade da liberdade
do homem do campo. Concomitantemente, revelava-se como espaço de violências e
segregações.

45
HISTÓRIA MEDIEVAL II: EXTRATOs DE DOCUMENTOs PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO
a Baixa Idade Média

Documento 1 - O nascimento de um burgo no século XIII – Bruges


[...] Com a continuação, para satisfazer as faltas e necessidades dos da forta-
leza, começaram a afluir diante da porta, junto da saída do castelo, negociantes,
ou seja, mercadores de artigos custosos, em seguida taberneiros, depois hos-
pedeiros para a alimentação e albergue dos que mantinham negócios com o
senhor, muitas vezes presente, e dos que construíam casas no interior da praça.
O seu dito era: “vamos à ponte”. Os habitantes de tal maneira se agarraram ao
local que em breve aí uma cidade importante que ainda hoje conserva o seu
nome vulgar de ponte, porque brugghe significa ponte em língua vulgar. ( Jean
Lelong, cronista de Sant-Bertin. In: GOTHIER, Louis; TROUX, Albert. Recueils
de textes d´histoire pour l´enseignement secondaire, t. II, p. 105 apud, ES-
PINOSA, Fernanda. Textos históricos medievais. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1972. p. 199).

Documento 2 – A política expansionista de uma cidade lombarda:


Milão
Entre todas as cidades deste povo (os lombardos), Milão detém agora a che-
fia. Está situada entre o Pó e os Pirineus e entre Ticinio e o Adda, que toma a sua
nascente nos mesmos Pirineus e corre para o Pó, criando por isso um certo vale
muito fértil, como uma ilha. [...] Esta cidade é agora considerada (como foi dito)
mais famosa do que outras, não apenas por causa de seu tamanho e ambulância
de homens honrados, mas também pelo fato de ter estendido a sua autoridade
sobre duas cidades vizinhas situadas no mesmo vale, Como e Lodi. Além do
mais – como vulgarmente acontece no nosso lote transitório quando a boa
fortuna nos sorri –, Milão, favorecida pela prosperidade, foi levada a uma tão
audaciosa exaltação que não só hesitou em incomodar os seus vizinhos, como
ousou mesmo recentemente (1155) incorrer na má vontade do príncipe (Frede-
rico Barba Ruiva), por desrespeito à sua majestade. (Otto of Freising, The deeds
of Frederick Barbarossa, tradução e notas de Charles Christopher Mierow e Ri-
chard Emery, New York, 1966, p. 128 e 129 apud ESPINOSA, Fernanda. Textos
históricos medievais. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1972. p. 200-201).

46
A trajetória das
cidades medievais

Referências

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Tempo, espaços e utopias nas cidades. São Paulo: Unesp, 2004. p. 45-78.

GUILLEMAIN, B. O despertar da Europa: do ano mil a 1250. Lisboa: Dom Quixote,


1980.

47
HISTÓRIA MEDIEVAL II: LE GOFF, J. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
a Baixa Idade Média

LE GOFF, J. Cidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. (Coord.).


Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006.

______. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no


ocidente. Lisboa: Estampa, 1980.

______. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora
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LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores,


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ROSSIAUD, J. O citadino e a vida na cidade. In: LE GOFF, J. (Org.). O homem


medieval. Lisboa: Estampa, 1989. p. 99-122.

WOLFF, P. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? Lisboa:


Edições 70, 1988.

48
ZUMTHOR, P. La medida del mundo: representación del espacio en la Edad Media. A trajetória das
cidades medievais
Madrid: Cátedra, 1984.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) A partir da leitura do capítulo e dos dois excertos, escreva um pequeno texto analisando a
trajetória da cidade medieval e sua relação com a cultura urbana da modernidade.
2) Após a leitura do capítulo e da análise documental sobre as cidades medievais, faça uma
análise crítica do tema a partir do livro didático público de História para o Ensino Médio
do Estado do Paraná. Livro disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/
diadia/arquivos/File/livro_e_diretrizes/livro/historia/seed_his_e_book.pdf

Anotações

49
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Anotações

50
3 A universidade
medieval no século xiii:
história e doutrina
Terezinha Oliveira

INTRODUÇÃO
O estudo sobre a Universidade medieval do século XIII, que ora apresentamos, tem
como objetivo analisar essa instituição a partir de três caminhos, uma vez que a história
de suas origens permanece, mesmo em nossos dias, envolta em brumas. Ainda que
ela esteja na origem das atuais universidades, há no Brasil poucos estudos a respeito.
Em virtude desse quase esquecimento apresentaremos, em primeiro lugar, as duas ver-
tentes teóricas que usualmente analisam a Universidade. Em seguida, destacaremos a
importância da ordem dos mendicantes para a consagração do ensino universitário no
século XIII.
A primeira vertente volta-se mais para uma interpretação dos acontecimentos his-
tóricos ligados às principais universidades, das suas origens, dos seus privilégios, dos
vínculos estabelecidos com as cidades. Alguns de seus principais representantes são
Jacques Verger, Jacques Le Goff e D’Irsay. Consideramos essa vertente em virtude do
lócus de onde parte seu discurso, um discurso de historiografia, pois seus autores são
historiadores. A segunda vertente atém-se mais à análise das correntes do pensamento
ou das doutrinas que se originaram no seio das Universidades medievais e que expli-
citam os conflitos internos e as disputas entre as diferentes doutrinas. Alguns de seus
principais representantes são Pieper, Steenberghen e Chenu. Essa corrente tem seu
discurso fundamentado no campo da Filosofia.
Essa diferença no enfoque, histórico ou filosófico, com que é observada essa insti-
tuição condiciona, necessariamente, a forma como se encaram as relações humanas,
e como se posiciona diante dela. Nesse sentido, não estamos preocupados em saber
se uma corrente está correta ou não. Aqui, trata-se de verificar qual é o olhar que nos
permite melhor compreender essa instituição, na sua totalidade. Afinal, qual delas, de
fato, nos possibilita uma compreensão dessa instituição como vinculada às relações
humanas, em sua generalidade. É, pois, esse debate que pretendemos travar acerca dos
estudos sobre a Universidade medieval.

51
HISTÓRIA MEDIEVAL II: De acordo com a historiografia referente às Universidades medievais, o surgimento
a Baixa Idade Média
dessa instituição, na Europa medieval, em fins do século XII e início do XIII, represen-
tou um marco significativo na História da Educação Medieval. Pela primeira vez, após a
dissolução das instituições romanas assistimos ao surgimento e à organização de cen-
tros educacionais com normas e estatutos próprios. Mas o estudo das origens das Uni-
versidades não diz respeito apenas à História da Idade Média, ou seja, ele é importante
também para nós, já que, como bem frisou D’Irsay, as universidades provavelmente são
os mais significativos monumentos que a Idade Média nos legou (1933, p. 1).
A própria designação dessa instituição indica uma forma nova de saber, e de uma
nova modalidade de relação com o saber. O termo Universidade rompe com a ideia
de isolamento presente nos monastérios, nas escolas palacianas, nos castelos feudais;
em síntese, na sociedade medieval como um todo. Os novos centros de saber, que
surgem basicamente nas primeiras décadas do século XIII, trazem a marca de um novo
momento na vida dos homens medievais. É o que sugere D’Irsay. De acordo com esse
autor, ainda que tenham conservado e incorporado em seu seio a preciosa tradição do
mundo antigo, as Universidades representam, desde o seu nascimento, alguma coisa
absolutamente nova (1933, p. 3). Ainda segundo ele, o mundo intelectual mudou pro-
fundamente de caráter a partir do século XII: os homens de saber, que até então viviam
em função dos mosteiros e das abadias passaram, a partir de então, a se preocupar com
as coisas terrenas, com um universo de questões vinculadas ao seu mundo cotidiano.
Estavam, em suma, preocupados em buscar, também por meio da razão e não mais
apenas da religião, a explicação para as suas relações.
A ideia de Universidade, no entanto, não diz respeito somente ao fato de que nessas
instituições o saber adquiriu um novo caráter, ainda que vinculado ao trivium e ao
quadrivium1. Ela diz respeito a um princípio de universalidade dos conhecimentos e
de relações entre as diferentes regiões da Europa.
Nesse sentido, um estudo das origens dessa instituição não pode prescindir do en-
tendimento do que representou o século XII para todo o Ocidente europeu medieval.
Observa Nunes, com razão, que esse século se caracterizou pela existência de grandes
mudanças, verificando-se um progresso nas ideias filosóficas, uma renovação da vida
religiosa, com a eclosão de novos estilos artísticos e a inauguração de novas instituições.
Não hesita, inclusive, em afirmar que teria havido um “renascimento” nesse século (NU-
NES, 1967, p. 56).
Ao observar o renascimento dos espíritos promovido no século XII pelo surgimento

1 Há no Brasil uma coletânea de textos bastante significativa acerca do ensino e do Trivium e do Quadri-
vium medieval. MONGELLI, Lênia Márcia. (Coord.) Trivium e Quadrivium: as artes liberais na Idade
Média. Cotia: Íbis, 1999.

52
das cidades e de todas as suas implicações, Ruy Nunes nos permite observar, mais uma A universidade medieval
no século xiii: história e
vez, que o surgimento das Universidades, no século XIII, não é um fato isolado, mas doutrina

foi resultado de transformações que vinham acontecendo na sociedade, as quais pro-


duziram profundas alterações em todos os níveis das relações sociais, especialmente na
cultura.
Essas mudanças no século XII apontadas por Nunes são também observadas por
medievalistas como Pirenne e Le Goff, quando analisam o renascimento do comércio no
Ocidente medievo. Aliás, ambos chamam a atenção para o fato de que os mercadores,
com esse renascimento, precisaram de uma nova forma de saber.
Pirenne deixa isso bastante explicito no seu artigo L’Instruction des Marchants au
Moyen Âge, ao destacar o fato de a instrução do mercador vincular-se ao cenário comer-
cial dos séculos XII e XIII (PIRENNE, 1951, p. 553). De acordo com Pirenne, a instrução
(ler, escrever, calcular) era condição vital à profissão de mercador. Com isso, o saber não
poderia mais ficar restrito aos homens da Igreja e aos pequenos segmentos da nobreza.
Os rudimentos do conhecimento precisavam fazer parte do arcabouço de formação do
mercador.
Essa mesma questão apareceu mais tarde nas formulações de Le Goff ao tratar da
formação do mercador na Idade Média. Em sua clássica obra Mercadores e Banqueiros,
chama-nos a atenção para as transformações culturais que essa nova atividade produziu
nas cidades e destaca o surgimento de uma cultura laica no seio das cidades medievais.
“Era sobretudo em quatro domínios que essa influência da classe dos mercadores sobre
o ensino devia fazer-se sentir: na escrita, no cálculo, na geografia e nas línguas vivas” (LE
GOFF, 1991, p. 103-104).
Para o autor, os mercadores burgueses, ao criarem novas necessidades, criaram
igualmente uma nova forma de saber, agora ligada à praticidade de suas vidas. Suas
atividades citadinas e mercantis revolucionaram a forma de ensino. As exigências do co-
mércio deram um novo perfil ao saber medievo e, por conseguinte, criaram uma nova
instituição para esse saber: a Universidade. Destarte, para compreender essa instituição
é necessário entender o que estava acontecendo na sociedade de maneira a possibilitar
seu surgimento. É preciso, portanto, estabelecer um vínculo direto entre o renascimen-
to das cidades e do comércio e o surgimento das Universidades.
Assim, para se compreender o fato a partir da perspectiva da historiografia torna-se
importante entender as profundas mudanças sociais que ocorreram no medievo a partir
dos séculos XII e XIII. Tais mudanças, ao mesmo tempo em que propiciaram o surgi-
mento das Universidades, foram profundamente influenciadas por elas. Não é casual
que o auge dessa época histórica seja, igualmente, a época do surgimento e desenvolvi-
mento das Universidades. Junto com elas temos o amadurecimento das cortes feudais,

53
HISTÓRIA MEDIEVAL II: as disputas pela laicização do poder e um crescente desenvolvimento do comércio, o
a Baixa Idade Média
que possibilitou o aparecimento de corporações de ofícios voltadas para a exportação,
ou seja, uma produção em escala crescente para prover o mercado, em diferentes regi-
ões do Ocidente.
É preciso salientar, contudo, um aspecto essencial acerca das relações estabelecidas
entre as Universidades e as demais instituições medievais: porque as Universidades estão
intimamente vinculadas à Idade Média, elas se modificam com as transformações verifica-
das na sociedade dessa época. O processo de desagregação do mundo feudal provocou o
enfraquecimento das Universidades, ao menos daquelas que alguns autores denominaram
espontâneas. Dessa maneira, à medida que aumentava o poder político, pondo fim à frag-
mentação que caracterizou a Idade Média, as Universidades perderam sua independência.
Príncipes e reis começaram a fundar Universidades e a intervir nelas. “As fundações
dos príncipes substituem as associações espontâneas” (D’IRSAY, 1933, p. 6). Em alguns
países, no século XIV, a dependência das Universidades frente ao poder político mostra-
se com evidência. Podemos dizer, pois, que os principais elementos que compõem o
apogeu e a decadência do mundo medieval estão presentes nessa época, no período
áureo do medievo: o século XIII2.
Como observamos acima, com Le Goff, o surgimento das Universidades produz uma
mudança no ensino. É verdade que durante quase toda a Idade Média o ensino esteve
associado à Igreja, e continuou, no século XI, vinculado a ela. A maioria das escolas
existentes, que tinha a marca do catolicismo, tinha por premissa preparar clérigos para
desempenhar suas funções. Nelas eram ensinados os rudimentos da leitura, da escrita e
do cálculo. Segundo Verger (1990), existia um número ínfimo de escolas que poderiam
ser chamadas de escolas superiores, isto é, que davam aos seus alunos uma formação
mais profunda.
É importante observar que ainda predominavam nelas os programas e métodos uti-
lizados por Alcuíno, com as sete artes liberais – trivium (Gramática, Dialética, Retórica)
e quatrivium (Matemática, Geometria, Música, Astronomia). O ensino da teologia co-
roava o estudo, nessa época. Durante toda a Idade Média, especialmente na Alta Idade
Média, o ensino foi caracterizado pela aprendizagem rudimentar desses elementos.
Se ao longo da Alta Média encontramos o ensino da Teologia, as mudanças que ocor-
reram entre os séculos XI e XIII, como já mencionamos, fizeram com que os homens

2. Ruy Nunes também observa essa característica do sistema feudal. Ao mesmo tempo em que se firma
como época de apogeu, os germes de sua decadência estarão presentes: “[...] O Feudalismo, como sis-
tema político, embora surgindo no período merovíngio, entra a caracterizar-se durante a administra-
ção carolíngia, atingindo seu apogeu entre os séculos XI e XIII, mas datando também desse tempo os
germes de sua decadência, com o início da centralização monárquica em que se empenhou a dinastia
dos Capetos. (NUNES, 1967, p. 58-59)

54
buscassem novas formas de aprendizagem. Com efeito, quando os homens começaram A universidade medieval
no século xiii: história e
a estabelecer sua vida nas cidades, em um ritmo cada vez mais intenso, suas diferentes doutrina

atividades foram organizadas sob a forma da corporação de ofício, e com isso podemos
dizer que um novo modo de vida estava sendo produzido.
Mas não é apenas no plano das atividades econômicas que os homens começaram
a adquirir um modo de vida novo. Também no plano político, na relação entre os di-
ferentes segmentos da sociedade, verificamos mudanças significativas. À medida que
os habitantes das comunas adquiriram certa força, começaram a se organizar para se
defender das extorsões e das pilhagens dos senhores feudais, fossem esses laicos ou
clérigos. No momento em que os senhores feudais se interessaram cada vez mais pelos
artigos de luxo, especialmente as especiarias do Oriente, desenvolvendo-se o comércio,
o ensino não poderia mais ser apenas o trivium e o quatrivium.
Em primeiro lugar, a escrita precisava dar conta dos contratos comerciais que eram
redigidos. Ela não poderia mais ter, portanto, a forma dos escritos solenes. Não servia
mais a elegância da escrita de Chancelaria. Ao contrário, precisava ser clara, rápida, e
exprimir “energia, equilíbrio e gosto”. Por último, precisava necessariamente ter a for-
ma cursiva.
Se a escrita precisava demonstrar clareza e facilitar os contatos, o que não dizer da
língua? A língua não poderia mais ser o latim, mas a língua vulgar. Os comerciantes, por
exemplo, passaram a utilizar a língua das regiões onde o comércio estava mais flores-
cente. Em princípio, segundo Le Goff, a língua mais comum do comércio no Ocidente
foi o francês, por causa das feiras de Champagne. Todavia, em breve foi substituída
pelo italiano, e nas regiões onde dominava a Liga Hanseática verificou-se o domínio do
alemão. Ainda segundo Le Goff, a divulgação das línguas nacionais – chamadas línguas
vulgares – deveu-se, em grande medida, às atividades dos mercadores.
Ao lado das mudanças na língua e na escrita, essa sociedade precisava aprender o
cálculo, cujo ensino passou a ser feito de forma simples, com o uso de objetos práticos.
Utilizavam-se, por exemplo, o ábaco e o tabuleiro de xadrez. No que diz respeito ao
ensino de cálculo, Le Goff observa que, a partir do século XIII, proliferou a produção
de manuais de aritmética.
A partir do momento em que a vida passou a ter sua mobilidade nas cidades, tudo
se transformou3. Nas cidades é que surgiram os ofícios comerciais ou artesanais, a partir
da divisão do trabalho. Segundo Brocchieri, a vida nas cidades medievais era regida por
um trabalho subdividido.

3 Acerca das mudanças que ocorrem nas cidades a partir do estabelecimento do sistema feudal é in-
dispensável a leitura do Essai sur l’histoire de la formation et des progrès du Tier État, de Augustin
Thierry.

55
HISTÓRIA MEDIEVAL II: A estrutura e a vida das cidades eram, agora, regidas por um trabalho especiali-
a Baixa Idade Média zado e subdividido e o ensino era mais um desses trabalhos, como as actividades
artesanais e comerciais. Tornava-se, portanto, necessária uma definição precisa
do ensino, o que foi feito mediante a indicação das tarefas, das vantagens e das
áreas em que essa actividade podia ser exercida e dos tempos de trabalho do
docente e do estudante (BROCCHIERI, 1989, p. 126).

Esse trabalho subdividido, citadino, deu ao homem medieval uma nova forma de
organização social, que rompeu com a ideia das três ordens sociais, definidas e imóveis,
do mundo feudal: a dos belatores, oratores e laboratores4. Nas cidades é que floresce-
ram as corporações de ofícios. Os homens das corporações – aprendizes e jornaleiros
– não dependiam estreitamento de seus mestres, como os servos e vassalos dependiam
de seus senhores. Havia, indubitavelmente, uma submissão social entre essas diferentes
categorias profissionais, mas que não impedia que ocorressem mudanças quanto aos
lugares que cada um deles ocupava na escala social, diferentemente das relações esta-
belecidas entre servos e senhores.
Além disso, todas as relações se modificaram no momento em que a vida, aos pou-
cos, foi-se tornando mais urbana, principalmente no que diz respeito ao dinamismo
do mundo. Em virtude de uma produção em escala sempre crescente, em decorrência
de um comércio cada vez mais longínquo, o horizonte dos homens se alargou. A vida
passou a não se restringir mais ao castelo e à propriedade do senhor. As pessoas come-
çaram a perceber, então, que os limites de suas relações não eram mais tão estreitos.
Segundo Le Goff, nesse momento os intelectuais5 viram o mundo e a si mesmos como
um prolongamento das cidades, ‘desta vasta fábrica borbulhante de ruídos e de ofícios’.
O intelectual, como qualquer outro artesão, percebia que a vida se realizava nesse am-
biente agitado de mudanças. Em decorrência dessas transformações precisava-se criar

4 Indubitavelmente, a melhor discussão sobre o surgimento das três ordens sociais na Idade Média é
do historiador francês Georges Duby, na obra Les trois ordres ou l’imaginaire du Féodalisme, onde ele
analisa as razões históricas que conduziram a Igreja a criar uma teoria que representasse e ao mesmo
tempo contemporizasse as diferenças sociais na Idade Média Central.
5 O artigo de Mariateresa F. B. Brocchieri intitulado Intelectual nos dá uma definição do que seria o
intelectual medieval: “[...] O moderno termo <<intelectual>>, que designa não uma qualidade,
mas uma classe de pessoas,aparece muito tarde, na França de finais do século XIX, como o Manifeste
des intellectuels [...] No entanto, esse vocabulário tão recente presta-se às mil maravilhas ao nosso
objetivo, que é caracterizar um tipo de homem que, nos séculos medievais, <<trabalhava com a
palavra e com a mente>>, não vivia de rendimentos da terra nem era obrigado a <<trabalhar
com as mãos>> e, de uma forma ou de outra, tinha consciência da sua <<diversidade>> em
relação às outras categorias humanas.
A razão da adptabilidade do termo <<intelectual>> a um grupo de homens <<medievais>>
reside também num cambiante preciso, ainda que subentendido, do significado do adjetivo <<inte-
lectual>> usado naquela época e que tinha a ver com virtude, conhecimento e prazer. [...] <<inte-
lectual>> significa algo que se considera mais precioso e elevado do que o seu contrário e designa
uma qualidade indiscutivelmente positiva (BROCCHIERI, 1989, p. 125).

56
um novo ensino, não apenas com novas disciplinas, como, por exemplo, a dialética, a A universidade medieval
no século xiii: história e
física e a ética, mas também novas técnicas científicas e artesanais, de que necessitavam doutrina

os homens das cidades. Em última instância, o renascimento das cidades não somente
‘exigia’ dos homens uma nova forma de ensinar mas ainda evidenciava que eles precisa-
vam, fundamentalmente, de aprender.
Para Le Goff, o profissional do saber, o intelectual, precisava vir em socorro dos
demais profissionais. Por ser um homem de ofício, ele tinha que saber fazer a ligação
entre a ciência e o ensino. O ensino também deveria ter uma razão, cumprir um papel
na sociedade. “As escolas são oficinas de onde se exportam as idéias, como se fossem
mercadorias” (LE GOFF, 1984, p. 65-66).
Desse modo, com o renascimento das cidades e com todas as suas implicações, o
intelectual precisava aliar o conhecimento à prática. Deveria, como qualquer profissio-
nal, ligar-se ao mundo prático, ou, como salienta Le Goff, à “[...] grande fábrica que é o
universo“ (LE GOFF, 1984, p. 66).
É nesse momento que verificamos o surgimento das Universidades. Essa institui-
ção constituiu, assim, um desdobramento das mudanças que estavam acontecendo na
sociedade.
A organização das universidades não foi um acontecimento isolado, um ‘grande fei-
to’ dos intelectuais. Os profissionais do saber se organizaram da mesma forma que as
demais profissões, ou seja, na forma de uma corporação cujo nome era universidade.
É sob esse aspecto que podemos entender a afirmação de Le Goff de que o século XIII
é o século das universidades: exatamente porque é o século das corporações de ofício.
Apesar de até o momento termos mostrado a relação direta entre o surgimento das
universidades e o renascimento das cidades, faz-se necessário salientar que, embora
essas sejam consideradas corporações de ofício, existiam diferenças significativas entre
elas e as demais corporações.
As duas grandes diferenças essenciais residem, em primeiro lugar, no fato de as
universidades terem um caráter universalizante, ou seja, enquanto a produção das cor-
porações estava restrita aos seus lugares de origem, especialmente as de Paris e Bolonha
atraíam alunos de todas as partes da Europa. O resultado das atividades intelectuais era,
guardadas as condições da época, amplamente difundido. Em segundo lugar, a diferen-
ça reside no fato de ser uma das únicas corporações da Idade Media, senão a única, que
continua a existir até os nossos dias.
Analisaremos especificamente, a seguir, a forma como alguns autores trataram das
origens das Universidades medievais. Nossa intenção é demonstrar que essas obras, ao
privilegiarem um aspecto da história delas, não nos permitem compreender essa Insti-
tuição no seu âmbito mais geral.

57
HISTÓRIA MEDIEVAL II: HISTÓRIA
a Baixa Idade Média
Principiaremos nossa abordagem pela obra de Verger, As Universidades na Idade
Média. Segundo esse autor, quando se trata das origens das universidades é sempre
bom lembrar que elas tiveram três raízes distintas.
As chamadas Universidades espontâneas, que surgiram a partir do desenvolvimento
das escolas já existentes, por exemplo as chamadas ‘escolas catedrais’, eram ligadas a
bispados importantes. As duas universidades mais famosas que estavam vinculadas a
essas escolas em sua origem são as de Paris e Bolonha.
As Universidades nascidas por migração são aquelas que existiram a partir de ‘seces-
são’, que, ainda segundo Verger, “[...] fora uma das principais armas das jovens univer-
sidades em luta contra as autoridades locais” ( VERGER, 1990, p. 40). Existiria, assim,
um grande centro de estudos em uma determinada região chamado de ‘universidade-
mãe’, que cedia sua organização e seu conhecimento a outras localidades. Um exemplo
importante é a de Cambridge (reconhecida oficialmente em 1318), nascida da secessão
oxfordiana de 1208.
Por último, as Universidades criadas, que surgiram basicamente no início do sé-
culo XIII. Ao contrário das Universidades espontâneas, foram instituídas por meio de
bulas do Papa ou por iniciativa dos imperadores. Essas Universidades criadas tiveram,
segundo Verger, uma importância menor, principalmente se comparadas com as Uni-
versidades espontâneas. No entanto, elas marcaram uma posição política muito clara,
de oposição, por parte do Papa e do Imperador, às Universidades criadas e estimuladas
pelos intelectuais em fins do século XII e início do século XIII.
Essa oposição por parte das autoridades às Universidades criadas pelos intelectuais
mostra uma das faces da luta que foi travada entre as Universidades e a sociedade, ou
seja, entre elas e as demais corporações. Embora as Universidades tenham nascido no
bojo e à semelhança das corporações de ofício, aos poucos foram delas se distanciando.
Passaram a ter certos privilégios que atingiram diretamente as cidades. Ficaram, por
exemplo, isentas de pagar determinados tributos que recaíam sobre os demais segmen-
tos sociais. Os universitários também tinham privilégios, especialmente o da punição
por seus delitos. Em qualquer conflito que envolvesse pessoas ligadas às Universidades,
os bispos e o Imperador ficavam sempre do lado desses, em detrimento dos prejudica-
dos. Aos poucos, seus interesses já não eram os mesmos das demais corporações, e logo
não eram mais os das cidades. Alongamo-nos na análise de Verger sobre as origens da
Universidade porque esse autor é, hoje, um dos maiores pesquisadores sobre a História
da Universidade Medieval.
Contudo, salientamos que a Universidade medieval, especialmente sua origem, é
um tema que produz indagações há muito tempo. Ao menos, verificamos a existência

58
de obras e autores que investigaram temas concernentes a essa instituição, desde o A universidade medieval
no século xiii: história e
século XIX. doutrina

Savigny (1779-1861), jurista e político alemão, publicou, entre outras obras, a mo-
numental Histoire du droit romain au Moyen Âge (1815-1831). Ele dedicou uma parte
dessa obra ao estudo da história da Universidade na Idade Média. Grande parte de sua
análise é dedicada à investigação das origens das Universidades europeias. Tece um qua-
dro das diferentes Universidades, do seu corpo docente, da relação das Universidades
com a Igreja e os reis; enfim, traça um grande perfil dessas instituições (SAVIGNY, 1844,
p. 108).
Para o autor, as Universidades nasceram como resultado do agrupamento de docen-
tes e discentes interessados no saber. Observou, por isso, que não fora uma ‘criação
arbitrária’. Entretanto, à medida que essa agremiação se formava, sua existência era
legitimada pelos privilégios reais concedidos a ela. A esses privilégios Savigny denomina
de fatos históricos (SAVIGNY, 1844, p. 108-109).
Na verdade, ao estabelecer privilégios às pessoas que se dedicavam às ciências, o
rei da Lombardia, Frederico6, legitimava a existência e a importância, aos menos no seu
território, dos centros de saberes e dos homens dedicados a essa atividade. A eles era
permitido viajar livremente. Ao professor de Direito devia-se sempre dirigir com pala-
vras honoríficas, ou seja, as pessoas devotadas às letras tinham deferências especiais da
e na sociedade.
Enquanto na primeira metade do século XIX encontramos Savigny destacando as
dificuldades para se definir as origens das Universidades, explicitando que elas esta-
vam relacionadas às suas origens, na primeira metade do século XX nos deparamos
com René Aigrain buscando definir o próprio sentido da palavra Universidade na Idade
Média, na obra Histoire des Universités. Este último recuperou, na origem da palavra
Universidade, o sentido que ela representou para a sociedade medieval. Tratava-se, por-
tanto, de entender o que significava a ideia de Universidade. Aigrain (1949) evidenciou

6 Paulo Nardi, ao analisar as relações entre as Universidades e os poderes papais reais, no capítulo
intitulado Relações com as Autoridades, destaca essa medida tomada por Frederico I como sendo a
primeira manifestação importante de uma autoridade laica em relação às atividades escolares: “[...] a
Authentica Habita, uma constituição publicada pelo imperador Frederico I, o Barba Roxa, quando foi
à Itália pela primeira vez para receber a coroa. Ele reuniu-se com os mestres e estudantes da escola de
Direito em maio de 1155, perto de Bolonha. Segundo o autor anônimo de <<Carmen de gestis Fre-
derici I>>, aqueles suplicaram ao Imperador que proibisse o exercício do direito de represália contra
os escolares estrangeiros (captura de pessoas ou propriedade para satisfazer dívidas em que incorriam
os seus compatriotas) e que lhes concedesse a todos liberdade de movimento << para que todos os
homens inclinados ao estudo sejam livres de ir e vir e vivam em segurança [...] >> Frederico I, o Barba
Roxa, publicou imediatamente a famosa constituição em que – em primeiro lugar – afirmava o valor
preeminente do saber científico e reconhecia que todas as pessoas que, em busca desse saber, eram
obrigadas a viver longe do seu país, eram dignas de louvor e proteção” (NARDI, 1996, p. 76).

59
HISTÓRIA MEDIEVAL II: que não era qualquer escola que significava Universidade. Diferentemente de Savigny,
a Baixa Idade Média
para Aigrain a ideia de Universidade não nasceu da reunião de professores e alunos. Ao
contrário, só poderia ser considerada como uma instituição legitima dentro de um dado
contexto, de uma dada realidade. Precisamente por isso ele afirmou que ela se caracteri-
zava como corporação quando reunia, em seu interior, várias escolas.
A forma como Aigrain analisou as origens da Universidade medieval é bastante pe-
culiar, porque se desloca das relações sociais para a palavra/conceito Universidade.
Debate-se o sentido, a importância e a origem da palavra; todavia, em última instância
não se discutem os homens que construíram essa instituição. Legitima-se a existência da
Universidade no momento em que ela tem seu status reconhecido pelo seu sinete, pelo
seu estatuto, mas nada se fala de sua história. O autor menciona a Bula Papal Parens
Scientiarum de 1231, menciona os dominicanos, mas não os insere na sua discussão
porque sua preocupação é com a definição do conceito em si. O autor passou ao largo
das inquietações sociais e históricas.
Bastante distinta dessa forma de encarar a Universidade medieval é a monografia
de Ruy Nunes, de 1967, publicada como artigo na Revista de História. Nesse texto, ele
se dispõe a analisar a origem da Universidade de Paris a partir de seu processo “germi-
nativo”, ou seja, a partir de sua trajetória histórica, no interior dos movimentos que a
geraram e não apenas realçando o fato que as criou ou um documento especifico, como
a Bula Parens Scientiarum de 12317 “Em 1215, Roberto de Courçon, legado pontifício,
concedeu ao studium parisiense seus primeiros estatutos oficiais. Apesar de tais me-
didas terem constituído o início da organização jurídica da Universidade, foram, por
outro lado, remate de um lento processo de formação” (NUNES, 1967, p. 55).
De acordo com o autor, para se entender as origens da Universidade de Paris precisa-
se buscar o seu lento processo de formação. A sua criação não foi um ato momentâ-
neo, decorrente da vontade de um príncipe, do Papa ou dos professores e alunos. Ao
contrário, foi um longo processo de desenvolvimento de uma forma de saber que se
corporificou na fundação da Universidade.

A Universidade de Paris não surgiu repentinamente, não foi o resultado de uma


decisão pontifícia ou monárquica. Não se originou de um plano bem arquitetado
nem se inspirou em instituições pré-existentes. [...] ela veio surgindo, durante o
século XII, condicionada por muitos acontecimentos e determinada por múlti-
plos fatores (NUNES, 1967, p. 69).

Para Nunes, a Universidade de Paris foi fruto do desenvolvimento das relações


medievais. Do seu ponto de vista, foi uma criação espontânea, fruto dos embates e

7 Para muitos autores, essa Bula é considerada a carta magna da Universidade.

60
transformações do século XII, oriunda dos novos métodos de ensino, da dialética, das A universidade medieval
no século xiii: história e
Sumas e do aspecto corporativo que ela assumiu. doutrina

Embora Nunes se diferencie de outros autores na maneira como explica as origens


da Universidade, pois procura mostrá-la a partir de sua história, ao limitar tudo como
obra do século XII não considera as grandes transformações que ocorreram no século
XIII e que, de fato, culminaram na construção da Universidade. Até mesmo as corpora-
ções de ofício, que de acordo com os documentos e as análises de medievalistas reno-
mados como Pirenne, Le Goff e Duby foram obra do século XIII, para Nunes trata-se de
um feito do século XII.
Outro aspecto que precisa ser considerado na abordagem de Nunes é o de que ele,
da mesma forma como os demais autores até agora mencionados, define que a Univer-
sidade foi uma corporação de ofício como as demais “[...] a corporação dos mestres e
dos alunos das escolas de Paris, que eram autênticos ‘trabalhadores’ intelectuais, como
trabalhadores eram os membros das outras corporações” (1967, p. 71).
Ao afirmar que as Universidades têm as mesmas características que as demais cor-
porações, e que os intelectuais são trabalhadores como os mercadores, Nunes retirou
o caráter particular dessa Instituição. As atividades desenvolvidas nas Universidades,
especialmente a de Paris, tinham características distintas das atividades desenvolvidas
nas outras corporações, não só no que diz respeito à utilidade do que se produzia mas
ainda em relação à finalidade. Os mestres-artesãos e os mercadores tinham uma fun-
ção: produzir produtos úteis e concretos, ao passo que os mestres das Universidades
buscavam compreender o homem e a natureza, na sua totalidade. As corporações dos
mercadores e as dos universitários tinham em comum a forma de organização, mas
na sua essência eram diferentes, fundamentalmente no que diz respeito ao resultado
social. Enquanto os primeiros cuidavam da manutenção física dos homens, os segun-
dos tratavam de desenvolver os espíritos. Não se trata de considerar um ou outro mais
importante, até porque isso é impossível, na medida em que matéria e espírito são ele-
mentos subjacentes à natureza humana. Contudo, são produções distintas, e que rece-
bem alimentos distintos. Daí afirmarmos que as corporações universitárias só poderiam
ser iguais às demais corporações quanto à forma.
Nesse sentido, as palavras de Walter Rüegg são muito elucidativas. Ao analisar a ques-
tão a Universidade é um modelo da sociedade ou modelada por ela, o autor principia a
reflexão recuperando as origens dessa instituição. Segundo ele, hoje, em geral, discute-
se muito a origem de uma dada Universidade em decorrência das comemorações e dos
jubileus delas. Portanto, assinala que é uma questão mais vinculada ao significado social
e psicológico do que ao fato histórico em si (RÜEGG, 1996, p. 6). Cada uma das prin-
cipais Universidades busca, no entanto, no passado remoto, as suas origens. Bolonha

61
HISTÓRIA MEDIEVAL II: assegura que sua origem remonta ao ano de 423, quando o Imperador Teodósio a insti-
a Baixa Idade Média
tuiu; Paris afirma que seu fundador foi Carlos Magno, que teria buscado a sua forma no
ensino superior romano; Oxford insiste que, quando os troianos conquistaram Albion,
trouxeram consigo filósofos. Todavia, há uma origem mais modesta a respeito, que as-
segura que ela foi fundada por Alfredo o Grande (848-899).
No entanto, para Rüegg a Universidade medieval é fruto de seu meio social. Sua
origem não remontaria ao passado longínquo, mas às relações sociais no medievo.

Todas as características corporativas, os privilégios, os estatutos, os selos, os jura-


mentos, as funções e os títulos dos seus funcionários apresentavam uma grande
afinidade com as formas legais e organizacionais da época. [...] a universidade
medieval, como um todo, é parte e expressão do ambiente social em que está
integrada (RÜEGG, 1996, p. 8).

Ao afirmar que a Universidade foi produto de sua ambiência histórica, o autor coloca
na ordem do dia a originalidade dessa instituição. As Universidades são recentes, por-
tanto não possuíam ainda uma característica definida, como, na verdade, era a situação
de qualquer outra instituição nascente. Residiria nesse fato, na sua origem recente, a
necessidade de os homens envolvidos com a sua fundação procurarem justificar as suas
raízes em um passado longínquo, pois essa tradição asseguraria a sua existência com a
condição de maturidade. Assim, diferentemente de hoje, os medievos teriam uma razão
histórica para buscar as origens das Universidades, porque assim as legitimariam. Atual-
mente, fazer isso sem que se estabeleçam vínculos entre a ação e a atuação dos mestres
do passado, sem contextualizá-los historicamente, sem refletir sobre sua importância e
seu papel torna-se tarefa árdua e iníqua. É preciso retomar o passado para que ele nos
sirva de exemplo, para que saibamos como os homens que já viveram resolveram suas
dúvidas e inquietações. Evidentemente que os problemas atuais são novos e requerem
soluções do presente, mas é sempre bom olhar para o passado para que aprendamos
suas lições.
A reflexão de Rüegg acerca das Universidades medievais tem um olhar distinto dos
demais olhares que estamos apresentando aqui. Sua abordagem revela que nas últimas
décadas está se retomando o passado com uma perspectiva de abordagem mais aberta
para as lições que os nossos pais tenham para nos ensinar.
A Universidade é, para Rüegg, um local especial, voltado para a construção do co-
nhecimento teórico e prático, que se caracteriza, fundamentalmente, pelo desenvol-
vimento intelectual e pelo amor à ciência. Em suma, é um local onde se ultrapassam
os limites da necessidade do momento histórico caractrerizado pelo renascimento do
comércio, pelo nascimento das cidades. O autor chama a atenção para esse aspecto,
observando, então, que não se deve considerar a Universidade medieval como produto
das necessidades sociais daquela época.

62
Se as ‘necessidades sociais’ tivessem sido levadas em conta, as ciências tecnológi- A universidade medieval
cas, tais como a arquitetura, tecnologia militar, construção naval, construção de no século xiii: história e
doutrina
máquinas, engenharia de minas, e as ciências naturais aplicadas (como Agricul-
tura, Medicina Veterinária ou Farmácia) teriam sido as escolhidas. Para que estas
disciplinas, fundamentais para a sociedade medieval, tivessem sido cultivadas,
as classes política e economicamente poderosas teriam de estar tão interessadas
no conhecimento científico e no desenvolvimento da formação de especialistas
nestes campos como estavam no conteúdo das disciplinas daquelas quatro facul-
dades (Rúegg refere-se às Artes, Medicina, Direito e Teologia). Como podemos
ver, de novo, não foi a necessidade de conhecimentos socialmente aplicáveis que
levou à fundação das universidades nem tão-pouco a existência de determinadas
disciplinas que provaram ter valor para o desempenho de certas funções sociais
(RÜEGG, 1996, p. 24).

A análise de Rüegg nos mostra que as Universidades representaram um local onde


os homens buscavam muito mais o conhecimento das coisas em si do que efetivamente
soluções para as suas questões práticas. Se as Universidades medievais tivessem sido
criadas para responder às necessidades imediatas do comércio, das corporações de ofí-
cio, da realeza e das cidades, teria sucumbido juntamente com as demais instituições
que sucumbiram com o final das relações feudais. Vencidas as necessidades daquele
momento, ela teria que desaparecer como ocorre com as instituições e leis que deixa-
ram de responder às exigências sociais. Todavia, isso não ocorreu com a Universidade
medieval porque ela subsiste até hoje; portanto, não podemos explicar essa instituição
somente pelo viés da necessidade histórica.
É, pois, a partir desse aspecto que salientamos, desde o início da análise sobre as
Universidades, que não podemos considerar somente um aspecto da sua história. Pre-
cisamos observar qual foi seu papel formador e a que questões sociais ela atendia, por-
que o studium8 já não respondia às questões do século XIII. Sob certos aspectos, essas
repostas podem ser encontradas quando vemos as Universidades medievais a partir não
só de suas origens, de suas leis, mas fundamentalmente a partir do seu interior, a partir
da forma como os homens a viveram, na sua essência. Assim, passamos para o segundo
momento de nossa abordagem, quando consideraremos autores que estudaram suas
doutrinas e seus mestres.

FILOSOFIA
Principiaremos nossa análise tendo como foco um segundo olhar acerca da Univer-
sidade, destacando o fato de que, enquanto os autores que analisamos até o momento
estavam mais voltados para a História, a partir de agora utilizaremos os que se voltam

8 Algumas das universidades medievais recebiam da Igreja Católica ou de Reis e Imperadores o título
de Studium Generale, que indicava que este era um instituto de excelência internacional; estes eram
considerados os locais de ensino mais prestigiado do continente.

63
HISTÓRIA MEDIEVAL II: a uma perspectiva filosófica a respeito. Lembramos, mais uma vez, que não estamos
a Baixa Idade Média
sobrepondo uma concepção do conhecimento a outra, objetivando mostrar que um de-
tém em si a ‘verdade’ e o outro uma ‘meia verdade’. Ao contrário, como já salientamos,
trata-se de observar qual dessas interpretações nos permite uma visão de totalidade do
objeto que estamos estudando.
Ao analisarmos da perspectiva da Filosofia, percebemos que ela é distinta da perspec-
tiva da historiografia. A Filosofia tem como premissa entender o ser na sua essência. Sua
busca de conhecimento não tem a intenção de analisar uma questão imediata, mas en-
tender o conhecimento em si. Lauand (1987) em sua obra O que é uma Universidade?,
menciona uma passagem de Pieper sobre o mundo do trabalho e as diferenças existentes
entre o conceito de ‘bem comum’ e o de ‘utilidade comum’, o que nos fornece um exem-
plo do que seja o filosofar. “ O mundo do trabalho se dirige à utilidade comum, conceito
que deve ser diferenciado do de bem comum [...]” (LAUAND, 1987, p. 62).
Daí a grande atualidade, também política, da afirmação categórica de que o filosofar
não pertence ao mundo do trabalho, pois “não serve absolutamente para nada” prático,
mas, no entanto, é algo necessário: trata-se de uma clara recusa das pretensões de tota-
lidade do mundo do trabalho e do estabelecimento de um plano quinquenal em norma
absoluta da atividade humana (LAUAND, 1987, p. 62).
Filosofar, desse ponto de vista, não está diretamente vinculado ao mundo do traba-
lho, porque consiste em indagar sobre a essência das coisas e não sobre sua utilidade.
Em decorrência disso, diferencia ‘bem comum’ de ‘utilidade comum’. O filosofar é a
busca e a realização do bem comum; é tentar entender como algo ocorre, porque ocor-
re e de que forma ocorre.
Incidiria nessa perspectiva o fato de que a Filosofia foi a grande responsável pelo
conhecimento humano (estamos nos referindo às ciências humanas) até fins do século
XVIII, quando os acontecimentos eram concebidos e conhecidos a partir de sua tota-
lidade. No início do século XIX, passado o furor das revoluções francesa e americana,
diante das primeiras crises de superprodução do capital e das manifestações operárias
os homens se veem compelidos a se explicar a partir de questões específicas, surgindo,
então, as diferentes ciências para elucidar esses homens: a História, a Antropologia e a
Psicologia, dentre outras.
Passados esses grandes períodos de perturbações, o tempo presente nos oferece
novos problemas, que não nos permitem mais compreender um acontecimento em
si mesmo. Torna-se premente ter consciência de que os problemas são mais gerais e
abrangentes, mais que um fato isolado. Indubitavelmente, não é possível, por exemplo,
analisar o atentado de 11 de setembro nos EUA como uma ação isolada, mas em sua
totalidade.

64
Desse modo, mais uma vez se torna necessário entender as questões, as ações e A universidade medieval
no século xiii: história e
os acontecimentos a partir de um ângulo mais geral, ou seja, a nossa realidade exige doutrina

de nós que tenhamos uma compreensão filosófica dos acontecimentos. Ao afirmarmos


isso não estamos querendo negar o mundo da utilidade, para vivermos apenas no das
ideias. Ao contrário, nosso conceito de Filosofia é, mais uma vez, o que está presente
em Lauand, quando dá sequência à sua análise sobre Pieper. Não é, portanto, a negação
das coisas que possuem uma utilidade em si, no caso o mundo prático do trabalho e o
da rotina diária, mas a compreensão da relação que ultrapassa esse cotidiano do útil e
vê os fatos na sua totalidade, a partir de uma perspectiva de longa duração.
Essa definição do filosofar é muito significativa para nós, porque o que está posto é
que só conseguiremos entender as questões humanas quando as compreendermos em
sua totalidade, quando as virmos a partir do ‘agir humano’, de suas ‘instituições’, da sua
‘linguagem’. É a partir da compreensão que temos do todo que podemos entender indi-
vidualmente as ações e instituições humanas, pois elas não se explicam por si mesmas,
dentro dessa perspectiva do filosofar.
Eis colocado, pois, o caminho que os autores que analisaremos nos permitem tri-
lhar, neste momento. Se eles não nos indicam explicitamente quais foram o papel e a
importância das Universidades na Idade Média, ao menos nos fornecem a possibilidade
de chegar até sua razão de ser.
O primeiro aspecto que merece ser destacado no estudo é a forma como esses au-
tores abordaram a questão. Em geral, neles encontramos uma grande preocupação em
destacar as doutrinas que eram ensinadas nas Universidades; em apontar que foi a en-
trada do pensamento aristotélico que revolucionou, nelas, a forma do saber; a impor-
tância dos dominicanos e franciscanos para o desenvolvimento dessas instituições; os
grandes debates travados entre as diferentes correntes aristotélicas, entre os defensores
da antiga forma do conhecimento, baseada ainda nas formulações de Santo Agostinho,
e as novas correntes, influenciadas pelas obras de Aristóteles. Enfim, os autores citados
buscam explicitar a dinâmica interna dessa instituição e não apenas os fatos que marca-
ram sua origem, suas leis e seus estatutos. Embora também tratem disso, a essência de
suas apreciações não incide nesses aspectos.
Ao considerarmos a análise feita por Pieper, seja quando discute a Escolástica, seja
quando trata de Santo Tomás de Aquino, ele nos deixa entrever o que representou a
Universidade para o século XIII. Essa instituição é o novo espaço que a cristandade
latina encontrou para produzir e buscar o conhecimento. Da mesma forma que os mos-
teiros representaram, no início da Idade Média, um refúgio onde foi possível preservar
e cultivar o saber, um local onde se pudesse buscar a verdade das coisas, a Universida-
de desempenhou papel semelhante no século XIII. No momento o Ocidente também

65
HISTÓRIA MEDIEVAL II: vivia uma nova grande crise, proveniente das mudanças sociais que estavam ocorrendo
a Baixa Idade Média
na sociedade em decorrência de a vida se tornar citadina, em oposição ao mundo ru-
ral feudal, e em virtude da introdução do pensamento aristotélico no mundo cristão.
Contudo, enquanto nos mosteiros os homens se isolavam do mundo para buscar esse
conhecimento, na Universidade os homens se abriam para o mundo, para produzir e
buscar a verdade. Pieper (1989, p. 22-23) menciona uma ideia de Santo Tomás muito
significativa: a de que a cela do monge, no século XIII, não é mais o claustro mas o
próprio interior, porque o monge deve estar aberto para o mundo e conviver com ele.
Eis o que representou a Universidade para o Ocidente medieval: um novo espaço para
preservar e produzir o saber, só que agora aberto para um todo universalizante.
Para o autor, desde a Academia de Platão a palavra universum vinculava-se ao en-
tendimento das coisas divinas e humanas, buscando a profunda unidade contida no
todo. Isso não quer dizer que a instituição Universidade seja a mesma desde sempre. Ao
contrário, Pieper observa que as Universidades atuais são distintas das medievais, como
as medievais certamente foram distintas da Academia de Platão. Contudo, o sentido de
universum não se perdeu em nenhuma delas.
A Universidade, como uma grande instituição humana, só pode ser entendida como
o local onde os homens viveram, vivem e difundem suas experiências mais profundas e
importantes, no que diz respeito à busca do conhecimento total. Ela não é e não deve
ser encarada como uma instituição a mais de ensino, mas é o local em que se conserva a
busca pela universalidade do saber. Assim, não podemos pensar a Universidade medie-
val como uma simples instituição feudal, mas como a instituição criada pelos homens
para preservar e criar o conhecimento universal, um espaço novo onde o conhecimento
cristão assimila, rechaça, convive com o mundo não-cristão e produz um mestre do qui-
late de Tomás de Aquino. Por conceber a Universidade medieval como uma instituição
voltada para a busca do conhecimento universalista é que Pieper pôde afirmar que a
Universidade de Paris era o centro da cristandade, porque nela é que a busca de saber
total se realizava. Enquanto Oxford se voltava para as ciências da experiência e Bolonha
para o Direito, Paris se dedicava ao estudo da Teologia e da Filosofia, ou seja, as duas
áreas do conhecimento que permitiam a compreensão total do homem (PIEPER, 1973,
p. 275-276).
Assim, a Universidade de Paris constituiu o centro de saber da cristandade latina
pelo fato de que nela eram ensinadas as duas áreas do conhecimento que permitiam um
saber totalizante do mundo terreno e divino: a Teologia e a Filosofia, mas, sobretudo,
pelo espírito que animava esse fazer Filosofia e Teologia. Tudo que dizia respeito a um
saber mais universal passava pela Universidade de Paris. De acordo com Pieper, Paris
poderia ser considerada uma nova Atenas, exatamente porque nela a busca da verdade

66
florescia. Não é, pois, gratuito que seja nesse centro de saber que a grande crise do A universidade medieval
no século xiii: história e
século XIII aflorou. doutrina

Segundo Pieper (1973), essa crise espiritual que ocorreu no século XIII resultou da
entrada do pensamento aristotélico nas Universidades do Ocidente, seja por meio das
traduções árabes, seja por intermédio das traduções do próprio grego. Mas, acima de
tudo, no campo do espírito, a invasão do pensamento racional aristotélico trazido pelos
árabes é o que mais atingiu o coração da Europa ocidental, especialmente a Universi-
dade de Paris.
Indubitavelmente, ao lado dessa crise no espírito precisamos considerar as transfor-
mações sociais que ocorreram, nesse período, no Ocidente e que contribuíram para as
alterações sociais. Enfim, há uma multiplicidade de fatores que contribuíram para as al-
terações e crises do século XIII. Contudo, nenhuma delas atingiu tão profundamente o
filosofar cristão como a chegada do pensamento aristotélico (PIEPER, 1973, p. 208-209).
Esse fato alterou o cenário do saber medieval. Não queremos com isso afirmar que
o Ocidente cristão não tivesse tido contato com Aristóteles antes do século XIII. Desde
Boécio, fragmentos de obras de Aristóteles sempre fizeram parte do saber medievo.
Entretanto, até fins do século XI o que dominava, influenciava e determinava o pensa-
mento latino eram as obras de Santo Agostinho e, por conseguinte, a influência neopla-
tônica de suas formulações. Mesmo em Santo Anselmo, o racional de suas formulações
estava amalgamado ao pensamento agostiniano. Encontramos observações sobre isso
em Etienne Gilson, em Pieper, Steenberghen e Ruy Nunes.
No século XII, assistimos a uma influência crescente do pensamento aristotélico em
obras de Pedro Abelardo, Jean de Salisbury, mas ainda estava colocado de forma desor-
denada, ao sabor das discussões e vontades de alguns grandes mestres. A realidade do
século XIII mudou significativamente esse quadro. De um lado, assistiu-se ao floresci-
mento crescente das corporações de ofício, das cidades e o fim das cruzadas. De outro,
as disputas pelo poder assumiram características bastante diferenciadas das até então
vivenciadas pelo Cristianismo latino. Segundo Pieper, em 1214, na batalha de Bouvines,
pela primeira vez um rei nacional alcançou o poder (PIEPER, 1973, p. 209)9.
Esses acontecimentos, que produziram mudanças profundas nas relações sociais,
conduziram os homens a uma releitura do seu universo, e é exatamente a partir da ne-
cessidade desse novo olhar, compelido pelas mudanças, que o pensamento aristotélico
passou a fazer parte do mundo ocidental do século XIII. Paradoxalmente, foi a crise
nas instituições existentes que permitiu a abertura para Aristóteles e, ao mesmo tempo,
a entrada do pensamento aristotélico instaurou, por si mesmo, uma crise ainda mais

9 Acerca da Batalha de Bouvines, é imprescindível a leitura da obra de Duby, O Domingo de Bouvines.

67
HISTÓRIA MEDIEVAL II: profunda na sociedade, porque o mundo cristão e a Filosofia cristã passaram a sofrer as
a Baixa Idade Média
influências e ameaças do racionalismo aristotélico, do paganismo.
Steenberghen, na obra História da Filosofia, observa a crise que assolou o Ocidente
medieval do século XIII em decorrência da entrada do pensamento aristotélico: “No
começo do século XIII, a crise estala em Paris, onde se principiara a ensinar os <<libri
naturales>> de Aristóteles, com as paráfrases de Avicena (c. 1984, p. 89).
As palavras de Steenberghen assinalam o grande conflito que se instaurou no Oci-
dente em virtude da introdução maciça do pensamento aristotélico. A razão e o natura-
lismo presentes nas obras do Filósofo, como o designara Santo Tomás, colocaram em
xeque as estruturas do pensamento cristão. A cristandade latina tinha que interpretar,
assimilar e corrigir o pensamento, e é exatamente esse processo o que gerou a grande
crise do conhecimento medievo. O mundo cristão, elaborado a partir das Escrituras Sa-
gradas, da Bíblia e de uma leitura neoplatônica dos pensadores pagãos, precisava criar
um novo arcabouço teórico que lhe fundamentasse a existência e, substancialmente, o
seu filosofar. Ocorreu, a partir desse grande acontecimento, a divulgação do aristotelis-
mo, uma possibilidade de pluralização do conhecimento. Essa nova forma de realizar
o saber, produzindo o desenvolvimento de novas doutrinas, aprofundou-se ainda mais
a partir da entrada dos mendicantes na Universidade de Paris, especialmente Tomás de
Aquino e Boaventura de Bagnoregio.

OS MENDICANTES
As ordens religiosas, os franciscanos e os dominicanos surgiram em oposição às
condições em que se encontrava a Igreja Cristã no século XIII. Tais ordens pregavam a
pobreza e a evangelização em contraste com a riqueza das grandes catedrais, dos mos-
teiros e com a suntuosidade dos clérigos dirigentes10.
Chenu, na sua obra Santo Tomás de Aquino e a Teologia, ao sinalizar o fato de que
Santo Tomás entrou para a ordem dos dominicanos à revelia de seus familiares, desta-
cou as razões por que os dominicanos atraíam tantos jovens para as suas ordens. Em
primeiro lugar, elas se apresentavam como contestadoras sociais, pois, ao proporem
como máxima o ideal de pobreza, contrapunham-se à riqueza que estava posta na Igreja
e, ao mesmo tempo, apresentavam-se como uma nova perspectiva para o Cristianismo
ao recomendar uma retomada do Evangelho ‘puro’ (CHENU, 1967, p. 11).

10 Uma descrição da suntuosidade de um abade feita pelo dominicano Tomás de Chantimbré não deixa
dúvidas sobre a necessidade de o Cristianismo retomar seus valores primitivos, especialmente o da
pobreza, para poder se aproximar do povo novamente: “Me encontré en la calle a un abad com tantos
caballos y un séquito tan numeroso, que si no le hubiese conocido, antes bien le podría haber tomado
por un duque o conde ... Sólo faltaba que ... hubiese llevado una corona en la cabeza” (CHANTIMPRÉ
apud PIEPER, 1973, p. 232).

68
Ao se oporem à situação estabelecida na Igreja, ao buscarem romper com tradições A universidade medieval
no século xiii: história e
arraigadas na cristandade, como a do luxo e a do poder supremo da Igreja, os mendi- doutrina

cantes atraíram para as suas fileiras os jovens e aqueles descontentes com a posição da
Igreja e com a transformação que fizera dos valores cristãos. Estabeleceu-se um embate
direto entre essas forças religiosas, novas e vigorosas, representadas pelas ordens men-
dicantes, e as tradicionais da Igreja.
De acordo com Pieper, na sua Introducción a Tomas de Aquino, os dominicanos e
franciscanos eram, em síntese, pregadores da palavra cristã, mas, também, uma resposta
do pensamento cristão à crise social do século XIII (1973, p. 210-211). O autor salienta
que as ordens mendicantes se vincularam estreitamente às Universidades e às cidades.
Destaca dois aspectos que expressaram a essência das ordens, especialmente as dos do-
minicanos: a preocupação com o conhecimento e com as ciências, por um lado, e por
outro a preocupação com a evangelização estudio de la Biblia y ciencia (p. 235). É isso
o que aparece quando salienta a atuação dos dois maiores dominicanos do século XIII:
Alberto Magno e Tomás de Aquino. O primeiro, mestre, e o segundo, discípulo, estavam
preocupados em evangelizar e buscar o conhecimento. Alberto Magno viajava a pé, por
toda a Europa, para fazer pregações e investigar a natureza das coisas.
Contudo, há que se salientar um aspecto que diferencia as duas ordens. Enquanto
os dominicanos se voltavam para a evangelização e para o que pressupunham a busca
da verdade por meio da religião, da Filosofia e da investigação científica da natureza, os
franciscanos se dedicavam com muito afinco à tarefa de evangelização (PIEPER, 1973,
p. 235).
Os dominicanos estiveram à frente nas Universidades. Foram mestres e alunos, e se
envolveram efetivamente na busca do conhecimento. Exatamente por esse envolvimen-
to é que vemos os nomes de Alberto Magno e, especialmente, o de Tomás de Aquino
presentes e influentes nas Universidades até nossos dias. Esses dois mestres estiveram
envolvidos e, ao mesmo tempo, criaram um novo filosofar para a humanidade. Indica-
ram a possibilidade de se fundir o pensamento aristotélico à fé cristã. Essa é uma das
razões pelas quais Santo Tomás, o irmão dominicano, é considerado o grande mestre
da Escolástica.
Ao tratar das diferenças entre as duas ordens, Chenu salienta esse mesmo aspecto
apontado por Pieper, ou seja, o fato de que os franciscanos estavam preocupados com
a evangelização. “A primeira, e poder-se-ia dizer a única, regra de S. Francisco são uns
versículos do Evangelho, e não um programa novo de vida apto para competir reli-
giosamente com a regra de Santo Agostinho ou com a de São Bento” (1967, p. 19).
Nesse sentido, eles não propunham nada de novo para se opor ao estado em que se
encontrava a Igreja e o Cristianismo na sociedade medieval do século XIII. Sua única

69
HISTÓRIA MEDIEVAL II: proposta era o ideal de pobreza em oposição à riqueza dominante no seio da Igreja.
a Baixa Idade Média
Sua máxima era uma retomada do Evangelho em seu estado puro. Em contrapartida, os
dominicanos, de acordo com Chenu, devotaram-se à pobreza e ao ato de evangelizar,
mas não se restringiram a isso. Criaram, diferentemente dos franciscanos, uma nova
forma de interpretar o Evangelho e de ver a sociedade “[...] <<uma nova maneira de
pensar, de raciocinar, de fundar a Teologia e de explicar a religião>>. Santo Tomás,
o teólogo, era filho de Domingos o pregador. E os pregadores, sem Tomás de Aquino,
são impensáveis. (CHENU, 1967, p, 21). Nesse sentido, os dominicanos criaram uma
nova doutrina para enfrentar a crise que se instaurara no seio da cristandade latina.
Não se colocavam somente como críticos da ordem estabelecida e não apresentavam
só a pobreza como o caminho. Ao contrário, mergulharam no seio da crise social e do
novo conhecimento que surgia, com grande força, a partir do racionalismo aristotélico
(CHENU, 1967, p. 21).
Chenu destaca o envolvimento dos dominicanos com a sociedade, na medida em
que criaram uma nova forma de interpretar o mundo, tanto no que diz respeito ao
aspecto da religião quanto no que tange ao desenvolvimento do intelecto, porque se
envolveram com os problemas gerais da sociedade, inclusive com um dos temas mais
complexos da época, que é a luta pela liberdade das comunas. Ao fazer essas formu-
lações, o autor não deixa dúvidas a respeito do comprometimento social das ordens
mendicantes, especialmente a dos dominicanos, com o mundo laico.
Em suma, a influência que os mendicantes exerceram no desenvolvimento da ci-
vilização como um todo precisa também ser considerada quando buscamos entender
a Universidade medieval. Afinal, os principais mestres, os lídimos expoentes da Esco-
lástica, emergiram do seio dessas ordens. Foram, pois, esses mestres que marcaram as
grandes disputas universitárias do século XIII, bem como os que sofreram e, algumas
vezes, participaram das condenações feitas às Universidades ao longo do ‘grande século
medieval’.

CONCLUSÃO
A proposta que ora concluímos aqui buscou entender a Universidade medieval a
partir do olhar da historiografia, da Filosofia e dos mendicantes, e teve como intenção
explicitar que nenhuma instituição humana, acontecimento ou pessoa pode ser com-
preendido sob uma única perspectiva. Os homens, tais como suas instituições, são con-
duzidos por caminhos e interesses materiais e espirituais/mentais. Portanto, só pode-
mos entender os acontecimentos históricos, os atos dos indivíduos e a história de suas
instituições se os considerarmos na sua totalidade material e espiritual. Essa perspectiva
acompanhou nosso olhar sobre a Universidade medieval. Como instituição social, ela

70
é filha das mudanças materiais, portanto do comércio, das cidades, das corporações, A universidade medieval
no século xiii: história e
da unidade de interesses; como instituição humana, ela produziu uma nova forma de doutrina

conhecimento, própria também de seu tempo. Assim, ela é, na mesma medida, material
e espiritual.

EXTRATOS DE DOCUMENTOS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO

Documento 01 – Uma Universidade de tipo estudantil: Bolonha


Para o cargo de reitor deverá ser escolhido um estudante da nossa Universida-
de, de qualidades distinguidas e de rigorosa e honesta conduta e moralidade que
possa ser recomendado pela sua prudência, reticência, justiça e utilidade para a
Universidade. Deverá ter atingido o seu vigésimo quinto ano e, no que diz respeito
à idade, se existe qualquer duvida pela parte do seu reitor e do Consiliarii, deverá
corroborar o depoimento por um juramento pessoal. [...] Além disso, o candidato
deverá ser um clérigo, não casado, e usar as vestes clericais, embora não deva ser
membro de uma ordem monástica. [...] Decretamos que a eleição do reitor dos
Ultramontanos tenha lugar no primeiro ano, no primeiro de Maio e de entre uma
das quatro nações, que são os franceses, os espanhóis, os provençais e os ingleses.
No ano seguinte e no segundo dia de Maio, o reitor deverá ser escolhido de entre
uma das oito nações [...] No terceiro ano será escolhido entre os germanos. [...].
(Heinrich Denifle, “Die Statuten der Juristen, apud ESPINOSA, 1981, p. 241-142).

Documento 2 – Regulamentos sobre a utilização da Biblioteca na Universidade de


Oxford (século XIV).
Visto que no decorrer dos tempos o grande e importuno número de estudan-
tes [na biblioteca] é de muitas maneiras prejudicial, e visto que o são propósito
daqueles que desejam aproveitar é prejudicial pela demasiada concorrência de
pessoas barulhentas, a Universidade estabeleceu e decretou que ninguém, salvo
os graduados e os religiosos depois de oito anos de estudo da Filosofia, poderá es-
tudar na biblioteca da Universidade [...] Também para melhor proteção dos livros,
a Universidade estabeleceu e decretou que todos os nela agora graduados e os ou-
tros que por concessão dos Estatutos possam entrar na Biblioteca [...] prestem um
juramento corpóreo perante os comissários delegados para esse fim pelo chanceler,
antes da festa da Natividade do Senhor; [jurando] em como, quando entrarem na
biblioteca comum da Universidade com o objetivo de estudar, pegarão nos livros
que consultarem honestamente, não lhes infligindo qualquer dano ou prejuízo com
rasuras e estragos nos cadernos ou fólios. [...] (Munumenta Acadêmica or Docu-
ments illustrative of Life Studies at Oxford apud ESPINOSA, 1981, p. 244-245).

71
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Referências

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72
NUNES, R. A. C. A origem da Universidade de Paris. Revista de História, São Paulo, A universidade medieval
no século xiii: história e
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VERGER, J. As universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) Discorra sobre a importância das Universidades na Idade Média.


2) Faça uma análise demonstrando o papel do Cristianismo na estruturação das universida-
des medievais.

73
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Anotações

74
4 Heresias e reformas na
Igreja medieval

Paulo Henrique Vieira

INTRODUÇÃO
A ruptura ocorrida no Cristianismo no século XVI, conhecida como Reforma Pro-
testante, marcou o ápice de embates teológicos que estiveram presentes durante toda
a existência da Igreja Católica Apostólica Romana. A heresia de Martinho Lutero (1483-
1546), ao contrário de outros movimentos reformadores, obteve êxito em locais onde
o poder político se posicionou favorável aos seus novos conceitos de homem e de
Igreja. Este texto percorre um pouco da trajetória que a heresia e os movimentos
reformatórios fizeram no interior de uma instituição que abrangia muitas nações e
determinava o modo de pensar de boa parte da humanidade. Enquanto pôde, a Igreja
se manteve coesa e unida; entretanto, sua história mostra que seu destino não era o de
ser o único guia espiritual da cristandade. Nosso intuito é mostrar, aqui, os aspectos
mais gerais dessa trajetória.
Quando pensamos na Reforma Protestante do século XVI, nem sempre temos em
mente os antecedentes desse movimento, que marcou definitivamente o fim da hege-
monia da Igreja Católica na história ocidental. A Reforma iniciada por Lutero em 1517,
quando divulgou suas 95 teses, marcou o coroamento de antigas lutas ocorridas no
interior da própria Igreja para um “retorno aos padrões originais”. As críticas feitas por
ele já haviam sido elaboradas por John Wicliff (1324-1384) e John Huss (1369-1415),
nos séculos anteriores. A doutrina da supremacia papal sempre encontrou opositores
na Antiguidade e na Idade Média. A Igreja se dividiu em ocidental e oriental em me-
ados do século XI, e no século XIV chegou a haver três papas governando ao mesmo
tempo. Tais fatos contribuíram para intensificar o descontentamento com uma Igreja
muito mais secular e opulenta do que espiritual. Esses são apenas alguns exemplos
que mostram a história de uma Igreja que enfrentou uma série de problemas para
permanecer unida.
A Reforma do século XVI esteve mesclada aos interesses políticos e econômicos dos
príncipes alemães que apoiaram Lutero em suas críticas contra o domínio de Roma

75
HISTÓRIA MEDIEVAL II: nos seus territórios. A ruptura com a Igreja podia significar, também, mais liberdade
a Baixa Idade Média
política para príncipes e autoridades, não somente da Alemanha mas também em ou-
tros países da Europa. Era costume na Idade Média, desde a união da Igreja com os
francos1 e o coroamento de Carlos Magno, o Papa consagrar os governantes para enfa-
tizar a origem divina de seu poder, e em contrapartida deviam obrigações, proteção e
obediência a Roma. A Igreja passou a interferir e a controlar paulatinamente o poder
civil e a dominar a política europeia com relativo sucesso, até o surgimento dos Esta-
dos nacionais, que viram na atuação dela um entrave ao seu pleno desenvolvimento.
A Igreja podia ser também uma poderosa fonte de riquezas, advindas do confisco de
suas terras. Com a Reforma, muitos governantes viram a possibilidade de repatriar suas
riquezas promovendo o rompimento com Roma.
Os questionamentos teológicos apresentados por Lutero não foram revolucioná-
rios, nem originais; entretanto, encontraram um ambiente político favorável para seu
êxito. O retorno a uma Igreja primitiva nos moldes apostólicos já havia sido defendido
no segundo século de existência do Cristianismo (ESTRADA, 2005). Desse modo, a
Reforma do início dos tempos modernos foi apenas o coroamento das constantes lutas
internas que ocorreram na Igreja desde seu nascimento.
Para Pierre Chaunu, houve na história da Igreja duas épocas muito férteis para
o surgimento das heresias. A primeira delas ocorreu entre os séculos III e V, num
momento de construção dogmática e de fundamentação dos princípios doutrinários
ortodoxos2. A segunda se deu entre os séculos XIV e XVII, já no período de transição
entre a Idade Média e a Idade Moderna (CHAUNU, 1984)3. As lutas pela hegemonia
e pelo poder foram marcadas por acordos, concílios, cruzadas, inquisições, excomu-
nhões e mortes, que mancharam aquela que se declarava a única representante de
Deus na terra.

A IGREJA
De acordo com João Ribeiro Júnior, “foi sem dúvida a derrota que Constantino in-
fligiu a Maxêncio na batalha da Ponte Milvia (312) que marcou o início da vitória final

1 O reino franco dominou a região que mais tarde se tornaria a futura França, e a Alemanha que hoje co-
nhecemos. O papa Estevão II apoiou Pepino o Breve, em 751, a assumir o trono dos francos, destituindo
o último rei da dinastia dos merovíngios. Para retribuir o favor, Pepino comandou uma expedição contra
os lombardos, que ameaçavam Roma e a Igreja. As terras tomadas dos lombardos foram doadas à Igreja
formando o chamado Patrimônio de São Pedro, base de suas futuras propriedades.
2 Durante esse período ocorreram os primeiros grandes concílios ecumênicos da Igreja para a organi-
zação de sua doutrina e a definição de seus dogmas.
3 Momento em que figuras como Pedro Valdo, John Wicliff e John Huss apareceram no cenário religioso
europeu.

76
do cristianismo” (1989, p. 43)4. Constantino precisava de uma força unificadora, como Heresias e reformas na
igreja medieval
a religião, para resolver os problemas do império e consolidar o seu poder.
Com o Edito de Milão (313 d.C.), o Imperador Constantino (272-337) instituiu
a tolerância religiosa em todo o território dominado por Roma e restituiu os bens
confiscados dos cristãos. Mais do que nunca, era necessário estabelecer uma doutrina
própria e que fosse aceita por todos os crentes, não apenas para o bem da religião mas
também para a paz, o que interessava ao império.
Foi preciso unir os principais líderes cristãos em concílios para que essa tarefa de
unificação do credo pudesse ser realizada. As bases do Cristianismo foram determina-
das mediante a convocação para o primeiro concílio ecumênico da Igreja, no ano 325,
em Niceia, hoje uma pequena cidade da Turquia, e depois em Constantinopla, antiga
capital do Império Romano no Oriente, em 381. O Credo niceno-constantinopolitano,
como ficou conhecido, define a base da doutrina cristã, marcando o início de uma era
em que a Igreja determinou sua ortodoxia. Com a regulamentação do credo, as diver-
sas forças que pululavam em todo o império e que se digladiavam para convencer de
que suas explicações eram as “verdadeiras”, acerca do Cristo e de Sua doutrina, foram
vencidas pela oficialização do credo que todos os cristãos deviam aceitar e ao qual
deviam se submeter.
Heresia vem do grego haíresis, que significa “escolha”. Esse termo surgiu primei-
ramente nos escritos de São Irineu de Lião (130-202), para enumerar as diversas ex-
plicações ou escolhas sobre a natureza de Jesus, diferentemente de sua atual defini-
ção, segundo o dicionário Aurélio: “doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja
em matéria de fé”. De uma possível opção em matéria de fé, em tempos anteriores,
tornou-se, após 381, um indesejável desafio aos parâmetros aprovados e estabelecidos
pela cristandade, ou melhor, pela ortodoxia triunfante.
Para entendermos a noção de heresia, ou seja, as doutrinas contrárias ao que foi
definido pela Igreja em matéria de fé, é imprescindível que tenhamos claro como e
quando surgiu a Igreja Católica Apostólica Romana. Quais foram seus fundamentos?
Porque a igreja de Roma e não outra igreja da Antiguidade obteve a primazia sobre os
cristãos? Somente a partir desse eixo é que iremos compreender a luta daqueles que
não concordavam com a Igreja romana nem com suas doutrinas, e que, por isso, foram
denominados hereges.

4 Batalha que deu a vitória final a Constantino sobre seu maior rival e lhe garantiu a posse de todo o
império do Ocidente. Conta-se que foi na véspera dessa batalha que Constantino teve a visão de uma
cruz luminosa nos céus com os dizeres: com este sinal vencerás. Carregando o símbolo cristão, Cons-
tantino venceu a batalha e creditou ao Deus dos cristãos sua vitória, defendendo o Cristianismo a partir
de então.

77
HISTÓRIA MEDIEVAL II: A primeira questão de importância a ser definida é sobre o primado de Pedro, que
a Baixa Idade Média
por consequência nos conduzirá ao primado de Roma. De onde surge essa primazia
de Pedro? Inicialmente, ela aparece no próprio Evangelho. Pedro é apresentado pelos
evangelistas como o porta-voz dos discípulos, e esteve presente nos momentos mais
importantes da vida pública de Jesus (ESTRADA, 2005). Entretanto, suas aparições nos
evangelhos não foram primordiais para determinarem essa primazia, pois aparecem,
muitas vezes, de forma negativa, como por exemplo na negação de Cristo ou no mo-
mento em que este o admoesta ao encontrá-lo dormindo no horto (BÍBLIA, Mc, 14:
37-41, 1988).
A passagem que serve de fundamento para justificar sua primazia encontra-se em
Mateus 16,16-19: “[...] Portanto, eu afirmo: você é Pedro, e sobre esta pedra construirei
a minha Igreja, e nem a morte poderá vencê-la. Eu lhe darei as chaves do Reino dos
Céus; o que você proibir na terra será proibido no céu, e o que permitir na terra será
permitido no céu”. Para Juan Antonio Estrada, poucas passagens tiveram tanta impor-
tância teológica quanto essa narrada por Mateus, muito embora não estivesse presente
nos outros evangelhos. Pedro aparece nos evangelhos de João, Marcos e Lucas com as
mesmas prerrogativas dos outros discípulos, e sendo convidado à proclamação da Boa
Nova como os demais. No entanto, há um esforço por parte de Mateus em apresentá-lo
como o representante personificado de todos os apóstolos de Cristo (ESTRADA, 2005).
Um dos primeiros testemunhos sobre a primazia de Pedro em Roma é Cipriano
de Cartago (200-258), que utilizou o texto de Mateus para legitimar a autoridade do
bispo, como sendo não apenas de Roma, mas de todas as grandes cidades. Seu argu-
mento, entretanto, foi utilizado contra ele pelo bispo de Roma, Estevão I (210-257), o
qual exigiu que Cipriano deixasse de rebatizar os hereges quando esses ingressassem
na Igreja, utilizando-se de uma autoridade que, segundo ele, provinha de Pedro. Foi a
primeira vez que o texto de Mateus foi utilizado para justificar a primazia do bispo de
Roma sobre os demais (ESTRADA, 2005).
O evangelista João apresenta uma imagem diferente, pois para ele Pedro não era
nem o primeiro nem o mais importante discípulo. João relata a presença do discípulo
amado, um personagem anônimo, que foi o único a permanecer com Jesus diante da
crucificação (BÍBLIA, Jo, 19: 25-27, 1988). João não nega a importância de Pedro, mas
deixa evidente o contraste entre ele e o discípulo amado: “Não pela sua liderança na
comunidade, jamais mencionada, mas pela sua proximidade e intimidade com Jesus,
exatamente o que o evangelista sempre sublinha como o elemento essencial do discí-
pulo” (ESTRADA, 2005, p. 420).
Em textos apócrifos, ou seja, que não foram aceitos pela tradição da Igreja, como o
Evangelho dos hebreus, Tiago aparece como tendo a primazia sobre os demais e como

78
o sucessor de Cristo na igreja de Jerusalém. Nesse texto a aparição de Jesus ressusci- Heresias e reformas na
igreja medieval
tado ocorreu primeiramente a Tiago e não a Pedro, como relatam os textos canônicos.
Tiago também é apresentado como o único que jamais duvidara da ressurreição de
Cristo. “Trata-se de um personagem singular, o único que reúne o parentesco com o
Jesus terreno e a aparição do Ressuscitado” (ESTRADA, 2005, p. 432). Isso mostra as
divergências existentes entre os primeiros cristãos sobre os diferentes pontos relativos
a Jesus, sua missão e sua continuidade apostólica.
O grande problema teológico do Cristianismo primitivo foi que seu fundador não
deixou nada escrito. Tudo o que temos sobre os ensinos de Jesus e sobre Sua vida
foram escritos após Sua morte, por diversas fontes. O trabalho de unificação desses en-
sinos mostra os desacordos iniciais e o problema da escolha daquilo que faria parte da
ortodoxia nascente e seria aceita pela maioria dos cristãos. Nunca houve unanimidade
dentro das diversas comunidades cristãs, centralizadas inicialmente em Constantino-
pla, Jerusalém, Alexandria, Roma e Antioquia, daí porque se instituíram os concílios
para a “escolha” dos textos considerados canônicos e aqueles que seriam renegados e
considerados apócrifos. Juan Estrada sintetizou muito bem esse processo de formação
daquilo que seria considerado como os fundamentos do Cristianismo.

O cânon do Novo Testamento reflete uma grande quantidade de correntes,


teologias e Igrejas. Precisamente porque Jesus não fundou nem determinou
como deveria ser a Igreja, houve um grande espaço para a criatividade das co-
munidades dos apóstolos e dos mestres que escreveram os documentos que
hoje formam o Novo Testamento. Este, assim como a Bíblia em seu conjunto,
não é um livro, mas uma biblioteca, que recolhe os livros canônicos de di-
ferentes comunidades cristãs. O cânon do Novo Testamento é fruto de uma
seleção, na qual acabaram sendo incluídos aqueles escritos que foram aceitos
por todas as Igrejas depois de um longo período de vacilação, dúvidas e discus-
sões, pois nem todos os escritos obtiveram inicialmente um consenso favorável
para transformar-se em escritos fundadores do cristianismo (ESTRADA, 2005,
p. 438).

Assim surgiu o Cristianismo, fruto das discussões e dos acordos feitos entre as
diversas comunidades cristãs da Antiguidade, e resultado de uma Igreja que ainda
não havia definido seu cânon e que ainda não possuía uma liderança universalmente
aceita. A construção da primazia de Pedro, e posteriormente de Roma, surgiu dessa
necessidade organizacional, fundamental para a sobrevivência do Cristianismo.
Os relatos sobre as ações de Pedro em Roma são originários do século III e carecem
de valor histórico. Segundo Estrada, não é possível encontrar, de forma segura, uma
lista dos bispos de Roma a partir de Pedro que possa justificar a sucessão apostólica.
O destaque inicial da Igreja de Roma se dava por sua localização na capital do Império
Romano; portanto, devido à sua importância política e aos recursos econômicos, o que
lhe possibilitava o auxílio a outras igrejas e o que a tornava a mais conhecida de todas.

79
HISTÓRIA MEDIEVAL II: A partir do século IV a centralização começou a ganhar contornos mais nítidos,
a Baixa Idade Média
seguindo o modelo estrutural de poder presente na capital do Império. No Concílio
de Niceia ficou determinado que as igrejas de Roma, Antioquia e Alexandria eram as
mais importantes, e seus bispos podiam nomear bispos para as cidades menores sob
sua jurisdição. No século V, Roma começou a intervir de maneira mais acentuada nas
demais igrejas, buscando transformar sua importância política em supremacia espiri-
tual e material. O imperador Valentiniano III proclamou, em 445, a primazia do bispo
de Roma sobre as demais igrejas, determinação não aceita pelo Imperador do Oriente
Teodósio II, que o reconheceu apenas como o patriarca do Ocidente.
Com a invasão dos bárbaros, a queda do imperador do Ocidente (476) e a fragmen-
tação do Império, a política de centralização da Igreja de Roma recrudesceu, por falta
de apoio político. O bispo de Roma estava então sob a dependência do Imperador do
Oriente, que obviamente dava preferência ao bispo de Constantinopla. Esse problema
começou a ser resolvido com a coroação de Carlos Magno, no ano 800, como Impera-
dor do Ocidente, e com a união da Igreja com os francos. A Igreja legitimou o poder
do Imperador, o qual protegeu militarmente e concedeu territórios a ela. Isto selou a
união entre o poder temporal e espiritual.
Foi assim que, a partir das divergências teológicas e escriturísticas iniciais, a Igreja
deixou de ser a comunidade dos fiéis para se tornar a mais poderosa instituição po-
lítica, econômica, religiosa e cultural da Idade Média. O afastamento de sua origem,
com simplicidade e espiritualidade, foi alvo de críticas severas por parte daqueles que
discordaram da trajetória que o Cristianismo seguiu no Ocidente, os quais ao combatê-
la foram expulsos, excomungados ou assassinados como hereges.
O que define a dogmática cristã é sua concordância com o Credo niceno-constan-
tinopolitano, aprovado no Concílio de Constantinopla em 381. Nesse concílio foram
determinadas as bases do Cristianismo, ou seja, a essência do que é a doutrina cristã
no que se refere à Trindade. Visando à unidade de crença e à paz entre as comunida-
des, esse credo é, na verdade, um acordo feito pelas diversas autoridades cristãs da
Antiguidade, o qual se tornou dominante e defendido contra as chamadas “heresias”,
que divergiam da “escolha” feita pela maioria. Os princípios do Cristianismo estabele-
cidos em Constantinopla são os seguintes:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador do céu e da terra, de todas as


coisas visíveis ou invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho unigênito
de Deus, nascido do Pai, antes de todos os séculos, luz da luz, Deus verdadeiro
do Deus verdadeiro, nascido, não criado, consubstancial com o Pai, por quem
foram feitas todas as coisas; que nós os homens e por nossa salvação desceu
dos céus e se encarnou por obra do Espírito Santo e de Maria Virgem, e se fez
homem e foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado,
ressuscitou no terceiro dia segundo as Escrituras, e subiu aos céus, está sentado

80
à direita do Pai, outra vez há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos; Heresias e reformas na
e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e vivificante, que procede igreja medieval
do Pai, que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, que falou
pelos profetas. Em uma só Santa Igreja Católica e Apostólica. Confessamos um
só batismo para a remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição da carne e a
vida eterna. Amém (DENZINGER, 1997, p. 31)

Em sua longa história a Igreja se transformou profundamente, de uma comunidade


de crentes fervorosos e seguidores de Cristo para uma instituição poderosa e secular,
que dominou a sociedade medieval europeia em quase todos os seus aspectos. O
Grande Cisma, ocorrido em 1054, marcou o rompimento entre as igrejas do Ocidente
(romana) e do Oriente (bizantina), ou entre o Papa de Roma e o patriarca de Cons-
tantinopla. A luta para o estabelecimento de um único rebanho não poderia mais ser
realizado.

As diferenças entre as duas Igrejas já se faziam sentir desde o século IV, e as


causas eram múltiplas: desde as morais (casamento dos padres de Bizâncio,
proibido para os de Roma) até as culturais (tradições greco-orientais, de um
lado, romano-germânico, de outro) e as políticas (supremacia da Igreja ociden-
tal sobre o poder temporal oriental) (RIBEIRO JUNIOR, 1989, p. 61).

O Grande Cisma do Oriente foi antecedido por divergências teológicas desencade-


adas, no século IX, entre Nicolau I (815-867), Papa de Roma, e Fócio I (820-886), pa-
triarca de Constantinopla. Para os orientais, a adição da cláusula Filioque (e do filho)
ao credo niceno-constantinopolitano foi um grave erro cometido pela Igreja de Roma.
Essa cláusula diz respeito à natureza do Espírito Santo, que para Roma provinha do
Pai e do Filho (filioque), mas para Constantinopla provinha apenas do Pai. O impasse
permaneceu por longa data, até que em 1054, numa tentativa de reatar as relações
canônicas, o Papa Leão IX (1002-1054) enviou uma missão a Constantinopla. Miguel
Cerulário (1000-1059), patriarca do Oriente, e o representante de Roma, cardeal Hum-
berto, não conseguiram entrar em acordo, e então o Papa romano foi excomungado
pelo patriarca de Constantinopla, o que marcou definitivamente o rompimento entre
a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Ortodoxa Grega.
Outro episódio que também contribuiu para destruir o universalismo da Igreja foi
o Cativeiro de Avignon, que se encerrou em 1377, o qual havia transferido a sede da
Igreja de Roma para a França. Isso desagradou severamente os ingleses, que viam suas
riquezas serem expropriadas para aquele país, naquele momento seu grande inimigo
na Guerra dos Cem Anos5. Com Gregório XI e seu retorno para Roma, em 1377, che-
gou ao fim o cativeiro da Igreja na França. Entretanto, a morte de Gregório, no ano

5 Série de conflitos ocorridos entre Inglaterra e França, que ficaram conhecidos na história como a
Guerra dos Cem Anos, entre 1337 a 1453.

81
HISTÓRIA MEDIEVAL II: seguinte, daria nascimento ao grande Cisma do Ocidente. A cristandade europeia se
a Baixa Idade Média
dividiu em dois grandes partidos rivais: urbanistas e clementistas. Com Urbano ficaram
Inglaterra, Hungria, Portugal, Itália (exceto Nápoles) e mais os países escandinavos,
enquanto Áustria, França, Castela, Aragão e Nápoles estavam ao lado de Clemente.
Sobre esse episódio e suas consequências para a Igreja relata Oswaldo Schüler:

É dispensável enfatizar os péssimos reflexos que essa terrível crise de universa-


lidade do papado teria sobre o cristianismo. A angústia que se apossou da cris-
tandade era propícia para ensejar reformas tendentes a um retorno à condição
apostólica. A sociedade monística e unitária sonhada pelos canonistas estava a
esfacelar-se, liberando as consciências para a busca de novas direções e novas
soluções (SCHÜLER, 2003, p. 45).

Ao universalismo religioso defendido pela herança de Pedro e seus sucessores


em Roma acrescentou-se o universalismo político patrocinado pela famosa doação
de Constantino6. As pretensões de universalidade da Igreja foram se desfazendo na
medida em que os Estados nacionais iam aparecendo e se fortalecendo na Europa.
Gradualmente, algumas dessas novas e poderosas nações foram percebendo que a
Igreja significava um entrave para seu futuro desenvolvimento, e passaram a lutar para
limitar suas ações dentro de cada país. Boa parte da riqueza nacional era enviada para
Roma em forma de tributos feudais, dízimos e doações, o que a transformou numa
poderosa suserana. Tudo isso exacerbava ainda mais um sentimento antirromano, ou,
anticatólico. Na medida em que os monarcas suseranos se transformavam em sobera-
nos e unificavam politicamente seus domínios, aumentava o seu desejo de se livrarem
das intervenções de Roma. Foi esse novo panorama político europeu que contribuiu
para o sucesso da Reforma e ajudou Lutero a se livrar da morte.
A luta contra os hereges conseguiu uma relativa harmonia doutrinária, à custa de
muitas vidas, debates e concílios, mas não foi o suficiente para manter coesa toda a
cristandade. O domínio político que os sucessores de Pedro detiveram trouxe consigo
as resistências de todos aqueles que discordavam dos caminhos traçados pelos papas
em nome de todos.
A venda de indulgências7, a simonia8, a vida desregrada do clero e o estado de ig-

6 (Constitutum Donatio Constantini ou Constitutum domini Constantini imperatoris, em latim) su-


posta doação do Imperador Constantino I ao Papa Silvestre I de propriedades na Itália e no estrangeiro,
usado pela Igreja para justificar sua influência exercida na política medieval europeia.
7 É o perdão total ou parcial das penas temporais dos cristãos devidas a Deus pelos pecados cometidos.
No século XVI foi criticada por Lutero, pois eram concedidas mediante “auxílio financeiro” para a re-
construção da Basílica de São Pedro em Roma.
8 É a venda de favores divinos e cargos eclesiásticos em troca de dinheiro. O nome origina-se de Simão
Mago, que aparece nos Atos dos Apóstolos tentando comprar de São Pedro os poderes advindos do
Espírito Santo.

82
norância dos quadros eclesiásticos foram algumas das frentes que Lutero atacou para Heresias e reformas na
igreja medieval
defender uma reforma do Cristianismo. A Reforma não foi mais do que o coroamento
de longas batalhas pela diversidade na maneira de interpretar os ensinos de Cristo e
suas consequências para a comunidade dos fiéis.

AS HERESIAS DOS PRIMEIROS SÉCULOS DA IGREJA


A história da Igreja mostra como foi construída essa poderosa instituição que domi-
nou o mundo ocidental por muito tempo, e conta como ela foi ganhando contornos
administrativos semelhantes ao antigo Império Romano. A centralização política na
figura do bispo de Roma, que tomava para si o primado sobre os demais bispos da
cristandade e se autodenominava papa de todos, foi uma batalha que perdurou por
séculos. A unidade pretendida pelos primeiros seguidores de Cristo não foi uma bata-
lha fácil, pois as diversas comunidades espalhadas pelo Império Romano atuaram no
surgimento das várias correntes culturais que acabaram por influenciar o Cristianismo
e por dificultar sua integração, o que, aliás, nunca ocorreu.
As primeiras dissensões surgidas dentro do Cristianismo se digladiaram para tentar
determinar a natureza de Jesus. Ele era um deus? Um homem? Ou ambos? Até que uma
corrente majoritária não decidisse sobre esse ponto, muitas explicações foram dadas
para responder a tais questões. Enquanto os concílios do século IV não fossem realiza-
dos para determinar os fundamentos da doutrina cristã, diversas correntes filosóficas
apareceram para explicar a natureza de Jesus.
O ebionismo, que surgiu nos primeiros anos do Cristianismo, alegava que Jesus
era um homem nascido de Maria e José e que se tornou filho de Deus no ato do ba-
tismo. Para essa corrente do Cristianismo primitivo, Jesus não veio destruir a Lei, mas
confirmá-la, por isso conciliavam os ensinos de Cristo com os textos judaicos. Os ebio-
nitas foram desprezados por cristãos e judeus, que não aceitavam essa vinculação. Os
debates entre a ala judaizante (ebionitas) e a antijudaizante (paulinos) aparecem nos
Atos dos Apóstolos. Eram ainda judeus, mas acreditavam nos ensinamentos de Jesus;
ou ainda, eram cristãos que seguiam as leis de Moisés (BÍBLIA, Atos, 21: 20, 1988). “A
dificuldade que os ebionitas encontravam para conceber a divindade de Jesus reside
na fidelidade ao monoteísmo judaico, isto é, em conciliar a divindade de Jesus com a
revelação bíblica da unidade e unicidade de Deus” (FRANGIOTTI, 1995, p. 20).
O arianismo foi uma corrente da cristologia primitiva defendida pelos seguidores
de Ário, que aceitava a ideia de que Jesus, embora a mais excelente de todas as criatu-
ras, não era o próprio Deus. Para Ário, Jesus e Deus não se confundiam numa mesma
pessoa, pois eram distintos. As controvérsias entre arianismo e trinitarismo, doutrina
que se tornaria dominante e oficialmente aceita pelo Concílio de Niceia, foram as

83
HISTÓRIA MEDIEVAL II: primeiras divergências enfrentadas pela Igreja primitiva. “Por aí se vê que a heresia
a Baixa Idade Média
atacava o centro da doutrina cristã, pois, se o Filho de Deus ( Jesus Cristo) não fosse
Deus, a obra de Redenção perderia seu valor e, conseqüentemente, toda a revelação
cristã não representaria nada” (RIBEIRO JÚNIOR, 1989, p. 45).
O docetismo foi uma doutrina cristã, surgida no século II, que afirmava que Jesus
nunca possuiu um corpo carnal: seu corpo físico era uma ilusão e não tinha existência
real. Também rechaçada pela Igreja primitiva, foi condenada como herética, pois con-
trariava veementemente o primeiro capítulo do texto de João, que afirmava ter o Verbo
se feito carne e habitado entre nós. Atribui-se às correntes gnósticas o surgimento do
docetismo, que defende ser o mundo carnal cheio de maldade e corrupção. Para os
gnósticos a matéria é essencialmente má; portanto, desnecessária e até prejudicial à
salvação. Ela é radicalmente oposta ao espírito, e não se concebe que o espírito perfeito
de Deus, transcendente e imutável, tenha se encarnado no mundo físico, ou seja, era
absurdo admitir a ideia que afirmava que Deus tenha sido feito semelhante ao homem.
Essa doutrina não era aceita pelos gnósticos nem pelos docetistas. O desprezo ao que
é material, tomado da gnose, estabeleceu a base da controvérsia do docetismo sobre a
existência de um Jesus unicamente espiritual e transcendental (FRANGIOTTI, 1995).
O monofisismo é uma doutrina cristológica surgida no século V, portanto após os
dois grandes concílios, de Niceia e de Constantinopla, e admite apenas uma natureza
para Jesus, a divina. O monofisismo também foi considerado uma heresia, pois contra-
riava as decisões do Concílio da Calcedônia (451), que promulgou a doutrina das duas
naturezas de Cristo. Segundo as decisões desse concílio, Jesus Cristo é perfeito em
divindade e perfeito em humanidade, e é verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem ao mesmo tempo.
O nestorianismo também foi uma doutrina herética, surgida no século V, originária
da Antioquia. Para os nestorianos Jesus Cristo possui duas naturezas distintas, uma
divina e outra humana. Essa doutrina foi fundada por Nestor (380-451), monge de
Alexandria, e que assumiu o bispado de Constantinopla. Seu principal interlocutor
foi Cirilo (375-444), bispo de Alexandria, que defendia a tese da unidade entre as na-
turezas divina e humana de Jesus Cristo. Convocados para o Concílio de Éfeso (431),
disputaram sobre a denominação que se daria a Maria. Seria ela mãe de Jesus Cristo,
o ser humano, ou mãe de Deus? As decisões desse Concílio foram favoráveis a Cirilo,
ficando definido que Maria era mãe de Deus.
O miafisismo é uma doutrina que admite apenas uma natureza para Jesus Cristo, tal
como os monofisistas acreditavam, mas como fruto da união entre a natureza humana
e a divina. As igrejas não-calcedônias, assim chamadas por não aceitarem as decisões
do Concílio da Calcedônia, nasceram das discordâncias dos patriarcas de Alexandria,

84
Antioquia e Jerusalém, que se recusaram a aceitar a doutrina das “duas naturezas” Heresias e reformas na
igreja medieval
decretada pelo Concílio. Essas igrejas não calcedônias foram acusadas de monofisistas
pelos católicos e ortodoxos, mas se autodenominavam miafisistas, também contrárias
ao monofisismo.

AS HERESIAS DOS SÉCULOS XIII AO XVI


Os cátaros talvez tenham sido os maiores hereges que a Igreja enfrentou em sua
história9, a tal ponto que uma cruzada foi convocada pelo Papa Inocêncio III para
destruí-los, em 1209. Também conhecidos como albigenses10, acreditavam numa dua-
lidade da criação ou na existência de dois deuses: um que havia criado os espíritos, o
deus bom, e outro que criou a matéria, o deus do mal. Tudo que se relacionava com
a matéria era ruim e não devia ser objeto de desejo ou de devoção por parte dos fiéis
cátaros. Nesse sentido a Igreja Católica, com toda a sua estrutura hierárquica, política
e econômica pertencia ao reino da matéria e, portanto, era criação do deus do mal.
O poderio secular que a Igreja Católica Apostólica Romana adquiriu na sua trajetó-
ria foi alvo de severas críticas surgidas no século XII. “A riqueza e o poder da instituição
religiosa eram apontados como a causa de grandes males e os hereges extraíam disso
argumentos para suas principais acusações contra ela” (MACEDO, 2000, p. 26). Os
valdenses, heresia fundada por Pedro Valdo na cidade de Lyon, na França, afirmavam
que a Igreja havia se mantido pura até a época de Constantino, e que após a sua con-
firmação como religião do império ela havia se perdido no poder que conquistou, em
detrimento das demais igrejas do Cristianismo primitivo. À medida que aumentava seu
poder “espiritual”, aumentavam também seu domínio e seu poder temporal, e conse-
quentemente sua riqueza. Não era mais a Igreja dos apóstolos humildes e pescadores,
mas era a Igreja de poderosos clérigos e homens ricos. “Com Inocêncio III (1198-
1216) o papado atingia seu momento de maior força e prestígio, colocando-se acima
de toda a sociedade. Nas suas próprias palavras, ‘assim como a Lua tira sua luz do Sol,
o poder real tira o esplendor de sua dignidade da autoridade pontifícia’’’ (FRANCO
JÚNIOR, 2001, p. 77).
A fé dualista dos cátaros pregava a existência de dois princípios supremos, o Bem
e o Mal, dentro dos quais o mundo material era o lugar de aprisionamento da alma.
Para eles, o inferno não era mais do que o próprio mundo material, onde a alma se
purificava por meio de várias reencarnações até atingir a pureza que a libertaria desse

9 Do grego Katharós, que signfica “puro”.


10 Por causa da cidade de Albi, localizada no sudoeste da França, reduto de uma das maiores comuni-
dades cátaras da região.

85
HISTÓRIA MEDIEVAL II: ciclo de sofrimento. Pregavam uma vida ascética e contemplativa como meio de atingir
a Baixa Idade Média
a iluminação e o paraíso espiritual. Aqueles que seguissem rigorosamente sua doutrina
e praticassem seus ensinamentos eram chamados de perfeitos e davam testemunho de
sua fé por meio do exemplo e da pregação. Os cátaros também acreditavam que Jesus
Cristo tivesse sido apenas uma aparição e não tivesse tido existência real (docetismo).
Por essas razões, os cátaros ou albigenses foram condenados por heresia, pela Igreja.
O principal rito dos cátaros era o melhoramento (em latim: melioramentum), que
significava a busca incessante da perfeição e do aprimoramento espiritual. Quando um
crente se dirigia a um “perfeito’’ inclinava-se três vezes, pedindo sua benção. Os cren-
tes adoravam esse “perfeito” como se estivessem diante do Espírito Santo, ao mesmo
tempo em que pediam a Deus a graça de serem melhorados, isto é, de serem aperfei-
çoados (NELLI, 1980).
Outro ritual importante para os cátaros era o consolamentum de ordenação, um
rito de iniciação que transformava o crente num “perfeito” por meio da imposição
das mãos, o que simbolizava a transmissão do Espírito Santo. Esse era o verdadeiro
batismo para os cátaros, por meio do qual tinham acesso às ordens cátaras. Existia tam-
bém o consolamentum dos moribundos, que assegurava o perdão dos pecados para
aqueles prestes a adentrar o mundo espiritual, embora não lhes garantisse a salvação.
Para combater seus dissidentes e manter sua unidade doutrinária, a Igreja adotou
novas táticas para derrotar as opiniões divergentes. Além dos concílios, reunidos para
determinar os parâmetros da fé cristã e limitá-los ao campo teológico, foram criados
tribunais de julgamentos eclesiásticos para manter “puro” o ensino da Igreja. Os tribu-
nais da Santa Inquisição foram a resposta encontrada contra um crescente movimento
herético que ameaçava o Cristianismo medieval. Esses tribunais foram criados para
investigar e punir os crimes praticados contra a fé católica.
A Santa Inquisição iniciou suas atividades no ano de 1184, durante o pontificado
do Papa Lúcio III, para combater os cátaros no sul da França. No entanto, ela foi criada
oficialmente em 1229, no Concílio de Toulouse, liderado pelo Papa Gregório IX. Em
1252, o Papa Inocêncio IV publicou o documento intitulado Ad Exstirpanda, que foi
fundamental na execução do plano para exterminar os hereges. Os inquisidores, teó-
logos e defensores incondicionais dos interesses de Roma, utilizaram esse mecanismo
repressor para ampliar seu domínio na Europa (BETHENCOURT, 2000).
Aos acusados não era concedido o direito de apelação, uma vez que toda sentença
formulada era irrevogável. A simples acusação de heresia feita por qualquer pessoa era
suficiente para a abertura de processo e prisão dos acusados, que por sua vez não po-
diam conhecer seus acusadores. Caso não confessassem seus crimes, eram submetidos
a sessões de tortura que os “convenciam” de sua culpa e os obrigavam a admitir seus

86
erros. As penas podiam variar desde prisão, confisco dos bens ou mesmo a pena de Heresias e reformas na
igreja medieval
morte, sobretudo a fogueira, vista como símbolo de purificação espiritual. Os acusados
eram castigados em público para ensinar a todos a se precaverem contra “esse terrível
mal que assolava o mundo cristão”. Sua última vítima pereceu em 1826.
Outro mecanismo utilizado pela Igreja para combater seus inimigos internos e ex-
ternos foram as Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, as quais tinham como objetivo
lutar contra os infiéis muçulmanos e reconquistar a Terra Santa. Desde que os muçul-
manos conquistaram a Palestina e a cidade de Jerusalém, os cristãos não se conforma-
ram em perder os locais em que Jesus viveu e pregou, para eles considerados sagra-
dos. Todos aqueles que morressem no combate contra os infiéis mereciam a salvação.
Usavam a cruz bordada em seus mantos e se consideravam soldados de Cristo. As
cruzadas, também chamadas de peregrinação, podiam servir também para penitência
ou remissão dos pecados. Numa sociedade marcada fortemente pela religiosidade e
pelo misticismo, esses motivos eram suficientes para que reis, nobres e camponeses
participassem da chamada guerra santa.
Foi convocada uma cruzada especial, em 1209, contra os cátaros ou albigenses,
fomentada pelo Papa Inocêncio III, o qual apelou para o rei da França e para os no-
bres para lutar contra os inimigos da cristandade que se encontravam no sul do país.
Aqueles que participassem dessa “guerra santa” receberiam a remissão total de seus
pecados por meio da indulgência de Cruzada. Receberiam também auxílio financeiro
para a expedição e a suspensão temporária de todas as suas dívidas, e, finalmente,
teriam o direito de posse sobre alguns bens eventualmente conquistados dos hereges.
Os apelos e promessas do sumo pontífice foram eficazes para a organização de um
exército secular de milhares de combatentes. A justificativa para o combate armado
contra os inimigos da fé estava pautada na ideia de “guerra justa”, defendida por Santo
Agostinho (354-430) e Isidoro de Sevilha (560-636) desde o início da Idade Média. Por
essa teoria, combater os maus era um ato de justiça e tinha por objetivo maior salvar
as almas, mesmo à custa da aniquilação física (MACEDO, 2000).
Os cátaros se encontravam majoritariamente na região do Languedoc, no sul da
França, uma área que não pertencia ainda, no século XIII, à coroa francesa. A luta
contra os cátaros também teve um mote político, usado pela realeza francesa para au-
mentar seus territórios. No início, a cruzada albigense manteve seu caráter de guerra
religiosa, ou seja, de luta entre os defensores da Igreja e da pureza doutrinária contra
os inimigos da fé cristã. Com o desenvolvimento dos acontecimentos, no entanto, o
aspecto religioso foi se enfraquecendo e cedendo lugar aos interesses materiais. “[...]
a partir de 1211, o conflito assumiu os contornos de uma guerra de conquista contra
toda a feudalidade meridional, inclusive o condado de Toulouse” (MACEDO, 2000, p.

87
HISTÓRIA MEDIEVAL II: 250). A cruzada contra os cátaros, convocada por Inocêncio III, tinha nas forças fran-
a Baixa Idade Média
cesas seu braço secular. Sobre a cruzada contra os cátaros escreveu Stephen O’shea:

A hoste de 1209 ultrapassava de longe, no seu fervor, o exército medieval co-


mum. Havia peregrinos aos milhares, exibindo cruzes cosidas no ombro das
suas grosseiras túnicas. Aos cruzados tinha sido prometido um perdão total
para os seus pecados, uma moratória para as dívidas e uma transferência de
fundos da Igreja para os seus bolsos. A expedição tinha todas as vantagens de
uma campanha na Palestina e nenhum dos inconvenientes da distância. Para
os franceses do Norte, a proximidade do Languedoc era ideal para fazerem a
“quarentena” – os quarenta dias de serviço militar necessários para ganharem
a indulgência de cruzado – regressando depois a casa a tempo das colheitas
e para caçar, felizes por saberem que os portões do céu tinham sido abertos
para lhes acolher a alma. Os guerreiros não consideravam cristãos como eles as
projetadas vítimas da sua cruzada. Os hereges não eram cristãos, eram hereges
(O’SHEA, 2003, p. 65).

A promessa da conquista do paraíso para aqueles que lutassem contra os hereges


atraiu uma multidão de homens para os exércitos cruzados. Reis, nobres, cavaleiros,
camponeses e mendigos, todos buscavam a salvação de suas almas na luta contra os
inimigos de Cristo. A possibilidade da pilhagem também era um atrativo para muitos,
que viam na derrota do inimigo a solução para suas finanças ou para sua pobreza. Os
inimigos, antes identificados pelos infiéis árabes e judeus, também foram encontrados
entre os próprios cristãos europeus cátaros ou albigenses.

Os hereges
Desde Prisciliano de Ávila, o primeiro herege a ser executado na história da Igreja,
em 385, 60 anos após o Concílio de Niceia, a lista não parou de crescer, entre aqueles
que morreram em nome da “verdade”. O último herético condenado pela Igreja Ca-
tólica foi Cayetano Ripoll, em 1826, 309 anos após o início da Reforma Protestante e
47 anos após a Revolução Francesa. A seguir faremos menção a alguns dos principais
nomes que contrariaram a ortodoxia da Igreja Católica entre os séculos XII e XV.
Pedro Valdo (1140?-1217)
Foi um rico comerciante e banqueiro da cidade de Lyon, que, após a morte repen-
tina de um de seus convidados, numa festa em 1160, ficou interessado na salvação de
sua alma e no entendimento do Evangelho. Decidiu doar todos os seus bens após a
leitura e meditação do texto de Mateus, que diz: “Se você quer ser perfeito, vá, venda
tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres e assim terá riquezas no céu. Depois venha
e siga-me” (BÍBLIA, Mt, 19: 21, 1988). Passou a peregrinar e a pregar a Palavra, conquis-
tando adeptos que ficaram conhecidos como “os pobres de Lyon”. Foram excomun-
gados pela Igreja em 1184 e expulsos da cidade, passando a peregrinar para outras
regiões da França e da Europa. Tinham a vantagem de possuir os textos sagrados no

88
vernáculo, pois Valdo havia encomendado a tradução dos Evangelhos do latim para o Heresias e reformas na
igreja medieval
dialeto românico, língua falada pelo povo.
Seus seguidores, imitando seu exemplo, saíam pelas vilas e ruas, pregando em
duplas. Quando o arcebispo de Lyon tentou impedi-los, disseram que obedeciam aos
preceitos de Deus, mais de que a qualquer homem na Terra.

O fundador da nova seita declarou que os clérigos não tinham nenhum direito
de falar em nome do Senhor; que todo fiel era depositário de Espírito Santo
(era um erro comum a muitas heresias da época); que, por conseguinte, cada
um podia comentar a Escritura; que não se encontravam vestígios do sacerdó-
cio no Evangelho; que, além disso, o homem não se santifica coletivamente,
por pertencer a uma Igreja, mas individualmente, apenas sob o olhar de Deus.
Assim, sob muitos aspectos, o valdismo anunciava o que mais tarde seria o
protestantismo (ROPS, 1993, p. 583).

Eles apelaram ao Papa Alexandre III, no Terceiro Concílio de Latrão, em 1179, e lhe
entregaram uma cópia de sua Bíblia traduzida do latim, para aprovar seu modo de vida
e permitir que continuassem pregando. O Papa designou uma comissão, liderada por
Walter Map, para examinar o pedido feito pelos valdenses. Essa comissão condenou-os
por seu modo de viver e os proibiu de pregar. O Sínodo de Verona de 1184 designou-
os como “humiliati”, ou homens pobres de Lyon, colocando-os na mesma categoria
dos cátaros. Sua maior ofensa foi pregarem sem a autorização dos bispos, sendo eles
homens leigos; portanto, sem autoridade para exercerem o sacerdócio (SHAFF, 2010).
Os valdenses nunca quiseram ser mais do que verdadeiros cristãos; aliás, reque-
riam para si esse título, condenando os demais por se afastarem dos ideais cristãos
primitivos. Paulatinamente foram se afastando das orientações da Igreja, rejeitando a
presença real de Cristo na Eucaristia e admitindo apenas a oração do Pai Nosso. Ne-
gavam o direito de a Igreja possuir bens e não admitiam a condenação por parte das
autoridades civis, nem mesmo de criminosos, pois somente a Deus pertencia a justiça.
Esse movimento nunca foi completamente extirpado, como o foram os cátaros em al-
gumas regiões, como nos altos vales dos Alpes. Eram muitos numerosos. Sobreviveram
até nossos dias nessas comunidades valdenses dos Alpes, mais tarde se misturando aos
protestantes do início da modernidade (ROPS, 1993).

John Wicliff (1324-1384)


Entre os séculos XIII e XIV, o exercício do poder por parte da Igreja de Roma apa-
receu com grande força, e seu incrível sistema de julgamento influenciou inteiramente
o governo da Inglaterra. Mesmo os responsáveis pela justiça do reino temiam os tri-
bunais eclesiásticos. Os parlamentares temiam seu poder, enquanto a Igreja, por trás
da autoridade de seus concílios e decretos, desconsiderava o poder civil e confinava

89
HISTÓRIA MEDIEVAL II: à excomunhão os que ousavam perturbar a sociedade. Além disso, as riquezas arre-
a Baixa Idade Média
cadadas, sob diversos pretextos, excediam em quase dois terços o tesouro real. Eram
amealhadas de forma sutil, inicialmente em apelos reiterados, mas que passaram a ter
força de lei e obrigavam os fiéis a pagarem. Quando a Igreja se vinculou a questões de
ordem material, homens como John Wicliff começaram a questioná-la.
Esse reformador nasceu por volta do ano 1324, no reinado de Eduardo II. Seus
pais o mandaram para o Queens-college, em Oxford, então recentemente fundado.
Descontente com essa instituição, Wicliff continuou seus estudos no Merton-college,
onde se dedicou com grande afinco a estudar Aristóteles. A lógica aristotélica o cativou
de tal forma que se tornou o mais sagaz conhecedor, do reino, sobre esse filósofo.
Com seu bom senso ele se desvencilhou da autoridade que a Igreja impunha a todos
como forma de domínio cultural e passou a ter independência para criticar aquilo que
acreditava errado em matéria de fé. Tomou os textos bíblicos e começou a analisá-los
por sua própria conta, construindo para si um novo caminho, que o tornou conhecido
e reconhecido por seus contemporâneos como doutor evangélico.
Para Wicliff, toda teoria que se pretende verdadeira deve ser julgada à luz das Escri-
turas, pois é aí que toda verdade se encontra. Com base na Palavra de Deus contida na
Bíblia, Wicliff antecipou também as críticas que Lutero faria ao papado. “Para Wicliff, a
autoridade da escritura fornecia as bases para a crítica da teologia eucarística, da hie-
rarquia eclesiástica, da organização da Igreja, e da suposta autoridade do clero e das
ordens religiosas” (SCASE, 2004, p. 19). O primeiro texto que o tornaria conhecido
foi seu tratado contra a mendicância, escrito para combater os frades mendicantes
que defendiam ser Jesus Cristo e seus apóstolos também mendicantes. Para Wicliff, a
mendicância de Cristo era diferente daquela praticada pelos frades. Advertia sobre a
obrigação que todo cristão tinha com o trabalho útil, para o bem da sociedade.
A vida escandalosa dos clérigos foi atacada por ele, que estava decidido a não pou-
pá-los. Esses clérigos, que diziam viver sob o manto do Evangelho, haviam se degene-
rado de tal maneira de suas origens que se tornaram uma vergonha para seus fundado-
res, segundo ele. A crítica feita por Wicliff contra os clérigos não havia chegado ainda
ao campo doutrinário. Seus argumentos eram sustentados contra as práticas do clero
da Igreja, e não ainda contra seus dogmas.
Protegido pelo Duque de Lancaster, quarto filho do Rei Eduardo III da Inglaterra,
Wicliff não foi aprisionado pelas forças de Igreja. O próprio Papa havia enviado cinco
bulas para a Inglaterra com o intuito de pôr fim às pregações de Wicliff. Das cinco bu-
las, as três primeiras foram enviadas para o arcebispo de Canterbury e para o bispo de
Londres; a quarta para a Universidade de Oxford e a última para o Rei. Junto às bulas
enviadas aos bispos o Papa mandou cópias dos artigos hereges, e requereu que aqueles

90
prelados confirmassem pessoalmente se Wicliff esposava as doutrinas ali contidas. Em Heresias e reformas na
igreja medieval
caso afirmativo, deveriam providenciar sua imediata prisão, que não foi acatada pelas
autoridades inglesas. Não acostumado com desobediência, o Papa se viu diante de uma
negativa por parte dos poderes civis e dos membros da Universidade. Num momento de
provável guerra com os franceses, o parlamento se viu diante da possibilidade de reter
as rendas que seriam enviadas a Roma para custear sua força militar.
Wicliff foi um grande crítico da Igreja de seu tempo. Para ele, não era preciso viajar
para Roma ou Avignon a fim obter uma decisão ou um conselho papal, desde que o
Deus trino está em toda a parte. “Nosso papa é Cristo”, afirmava o doutor evangélico11.
Para ele, a Igreja continuaria a existir mesmo se não possuísse um líder terreno. Wicliff
foi convocado a um sínodo em Oxford, onde defendeu suas ideias diante dos repre-
sentantes da Igreja, e como ainda gozava de grande apoio da Corte e do parlamento,
os clérigos não conseguiram ambiente propício para sua condenação. Morreu em Lut-
terworth, no ano de 1384, e foi enterrado em solo cristão, por não ter sido considera-
do herege. Entretanto, em 1415, no Concílio de Constança, foi condenado herético,
e seus restos mortais desenterrados e queimados. Trinta e um anos após sua morte, a
Igreja conseguiu expulsar de suas fileiras mais um homem que não se enquadrou em
suas normas e não se dobrou diante de seu poder e hierarquia, John Huss.

John Huss (1369-1415)


João Huss nasceu perto de Praga, na Bohemia, por volta de 1369, numa vila cha-
mada Hussinez. Seu pai era uma pessoa de poucas posses, mas se preocupou além
do que era normal com a educação de seu filho. Em 1396 Huss recebeu o diploma de
mestre de artes e, em seguida, de Teologia. Em 1400 foi escolhido para ser o confessor
da rainha, e oito anos mais tarde foi eleito reitor da Universidade de Praga. John Huss
conheceu os escritos de Wicliff, principalmente aqueles contra a corrupção do clero, e
essas leituras o surpreenderam grandemente.
Huss passaria a criticar a má administração da Igreja e a vida deplorável e corrupta
do clero, enquanto o povo sofria misérias sob o governo da primeira e a influência
do segundo (GILPIN, 1766, p. 182). Um dos seguidores de Huss conseguiu, de forma
habilidosa, mostrar ao povo os abusos do clero de maneira muito eficiente, para a
simplicidade e exiguidade de leitores daqueles tempos. Ele pendurou nas paredes
da Universidade dois grandes quadros, um simbolizando Cristo e seus apóstolos com
toda sua humildade e modéstia; e outro representando o Papa e seus cardeais usando

11 Após 1378 a Igreja conviveu com dois papas simultaneamente: um que se encontrava em Roma e
outro que residia na cidade francesa de Avingnon.

91
HISTÓRIA MEDIEVAL II: vestimentas caríssimas, tal como os reis mais poderosos. Essas imagens eram de fácil
a Baixa Idade Média
entendimento e deixavam clara a diferença entre a Igreja de Jesus e seus discípulos
e a Igreja do Papa e seus cardeais. Esses recursos ajudaram, em muito, a difundir um
descontentamento popular, que se avolumava com os anos.
John Huss tornou-se um opositor declarado do clero da Bohemia, e encontrou logo
no arcebispo de Praga um grande inimigo, que ordenou a entrega de todos os textos
de Wicliff para queimá-los. O fato de ser um homem iletrado agravou ainda mais as
ações do arcebispo, pois não podia ler o conteúdo dos livros que mandara destruir. Em
retaliação, alguns seguidores de Huss queimaram a ordenação do arcebispo em praça
pública. O arcebispo recorreu ao príncipe da Bohemia, Venceslau, que não se mostrou
interessado pelos problemas religiosos enfrentados pelo alto representante da Igreja,
e se limitou a proibir a pregação de Huss na capela de Bethelem. Huss apelou ao Papa
João XXIII, que havia sucedido Alexandre V, mas o Papa, desinteressado pelas questões
religiosas da Bohemia, designou o cardeal de Columna para decidir o caso.
Huss foi convocado para se apresentar em Roma, e foi excomungado pelo Papa,
que assim o fez apenas pelas acusações de seus inimigos. Sua popularidade, entretan-
to, aumentava a cada dia, e entre seus seguidores encontravam-se pessoas das mais
altas classes sociais dispostas a segui-lo. Como a autoridade do Papa parecia de pouco
peso e porque o príncipe da Bohemia não se mostrava interessado no assunto, restou
ao arcebispo apelar para o Imperador. Em sua jornada para se encontrar com o Impe-
rador o religioso caiu doente e morreu.
Huss foi banido de Praga pelo Imperador e retornou à sua terra natal, onde passou
a maior parte do tempo escrevendo e onde elaborou seu famoso tratado: Sobre a Igre-
ja, de onde seus adversários tiraram as acusações que o levariam à morte em 1415. É
também dessa época seu ensaio intitulado: Os seis erros, que fixou no portão da capela
de Bethelem. Nesse ensaio ele escreve contra as seguintes questões: as indulgências;
o abuso da excomunhão; a crença no Papa; a ilimitada obediência paga em forma de
taxas para Roma; a simonia e a transubstanciação do corpo de Cristo na missa (GILPIN,
1766, p. 179-180). Muito difundido na Bohemia, esse ensaio de Huss fez crescer ainda
mais a animosidade popular contra o clero.
Alexandre V foi eleito Papa, em 1409, para encerrar o cisma que a Igreja Católica
sofria por possuir dois papas. A promessa de desistirem do cargo de pontífice máximo
da Igreja feita por Gregório XII e Benedito XIII não foi cumprida por eles. Deste modo,
ao invés de dois papas, a Igreja então, passou a ter três papas: João XXIII, Gregório XII
e Benedito XIII. O Imperador Segismundo convocou um concílio em Constança para
tentar resolver esse problema. Nesse concílio foi solucionado o Grande Cisma do Oci-
dente e buscou-se também remédio para as desordens na Igreja, ou seja, a heresia de

92
Wicliff. Seus livros foram queimados e seus ossos desenterrados e jogados na fogueira. Heresias e reformas na
igreja medieval
O teólogo inglês havia morrido em 1384, e na impossibilidade de puni-lo as ações da
Igreja se voltaram contra seus seguidores, sendo John Huss o principal deles.
Convocado a se apresentar no concílio, Huss deixou a cidade de Praga. Tendo viaja-
do pela Alemanha, era recebido com grande respeito e admiração pelo povo, de modo
surpreendente para ele. Em Constança, tudo estava planejado para sua condenação,
de modo que o salvo-conduto dado pelo Imperador não foi acatado pelas autoridades
religiosas do concílio, que o fizeram prisioneiro. John Huss foi acusado de negar a
transubstanciação do corpo de Cristo na missa e de defender e divulgar as ideias per-
niciosas de Wicliff, entre outras dezenas de acusações.
Em 5 de julho de 1415 foi proferida a sentença dada pela Igreja a John Huss, que foi
expulso e condenado como herético. Teve que abdicar da sua investidura eclesiástica
e depois foi entregue ao poder secular para a execução da pena. Huss foi condenado
à fogueira como seguidor de Wicliff e como inimigo da verdadeira fé. O grande pro-
blema de Huss foi ter difundido alguns princípios da doutrina de Wicliff na Bohemia,
além de ser um crítico contumaz dos abusos do clero. Para Huss, bem como para seu
discípulo Jerônimo de Praga, a igreja da Bohemia era a autêntica Igreja, e se diferen-
ciava de Roma e de todas as outras igrejas espalhadas pelo mundo, que estavam muito
distantes do modelo apostólico (FERNÁNDEZ, 2007).
As pregações de John Huss, no século XV, não incomodaram apenas a Igreja, pois
elas tinham um caráter nacionalista frente à dominação dos alemães na Bohemia de
seu tempo. Mesmo conseguindo o salvo-conduto do Imperador, Huss, àquela altura, já
havia ganhado poderosos inimigos: os alemães, as autoridades eclesiásticas e as auto-
ridades laicas. Foi executado na fogueira em 6 de julho de 1415. Para os tchecos, John
Huss foi um mártir e um herói de sua terra natal, contra a Igreja oficial e a dominação
germânica.

CONCLUSÃO
No início do século XVI, com as 95 teses do doutor Martinho Lutero, a Igreja Cristã
do Ocidente deixou de ser única e se desmantelou em inúmeras outras denominações
religiosas, que protestaram contra a Igreja Católica. Desde então, os protestantes di-
vidiram com os católicos a condução do Cristianismo no Ocidente, deixando clara a
impossibilidade de uma igreja única e universal.
Após a Reforma, os protestantes também continuaram a perseguir aqueles que,
dotados de poderes pelo diabo, tentavam destruir o reino de Deus na terra. Enquanto
tanto líderes católicos quanto protestantes estavam determinados a acabar com as dis-
sidências religiosas, esse projeto foi massivamente retomado após a segunda metade

93
HISTÓRIA MEDIEVAL II: do século XVI, pelo temor de uma conspiração liderada por Satanás e cumprida por
a Baixa Idade Média
grupos de homens e mulheres que haviam recebido poderes mágicos, com o intui-
to de destruir a sociedade cristã. Tal teoria conspiratória teve grande dificuldade em
convencer as autoridades civis dos perigos dessa investidura diabólica. A Reforma,
especialmente com suas manifestações mais radicais, ajudou a convencer príncipes e
magistrados da seriedade das maquinações de Satã ( WAITE, 2003).
A caça às bruxas que se seguiu nos redutos protestantes mostra que a luta pela
purificação do homem e do mundo continuou por longos anos da era moderna, e só
comprova que essa hegemonia teológica e espiritual jamais pôde ser alcançada e ainda
hoje permanece em aberto. Quando pensamos sobre o que foi a Reforma Protestante
do século XVI e o que ela significou para a Europa no início da modernidade, devemos
ter em mente esse longo caminho percorrido pela Igreja desde o seu nascimento. A
transformação de uma religião de simples pescadores judeus na mais poderosa insti-
tuição que a humanidade conheceu deve ser a linha mestra dessas reflexões.
Desde a morte de seu fundador, o Cristianismo lutou para estabelecer suas ba-
ses teológicas, de maneira que se pudesse dar uma característica própria a essa nova
seita, que se apartava do judaísmo. A história do Cristianismo está marcada pela luta
que a Igreja Católica Apostólica Romana travou para preservar a herança deixada por
Jesus Cristo e seus discípulos. Desde o primeiro século de existência, o Cristianismo
enfrentou as mais diversas controvérsias para tentar explicar a natureza de Cristo. As
primeiras heresias surgiram nesse contexto, e não deixaram de aparecer durante toda
a história do Cristianismo e da Igreja de Roma.
Foi uma luta sem ganhadores, pois os cristãos nunca se entenderam completamen-
te, e jamais conseguiram estabelecer um credo que fosse aceito por todos. Ortodoxos,
católicos e protestantes são resultados dos desentendimentos entre os seguidores de
Cristo, marcando definitivamente o caráter multifacetário das doutrinas cristãs e de
seus adeptos. As dissidências se deram, ao longo de sua história, por conta daqueles
que acreditavam estar defendendo a doutrina mais pura e mais fiel que Jesus Cristo
ensinou para seus discípulos. A busca ou a preservação da “verdade” foi o estandarte
levantado em ambos os lados da batalha e em nome de Deus.

94
EXTRATOS DE DOCUMENTOS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO. Heresias e reformas na
igreja medieval

Documento 01 – O Concílio de Calcedônia (451) condenou o mono-


fisismo e o nestorianismo.
[...] Seguindo os santos Padres, todos nós em uníssono ensinamos que o
Filho e Nosso Senhor Jesus Cristo são um só e o mesmo, que Ele é perfeito na
divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem,
com uma alma racional e um corpo, consubstancial com o Pai segundo a sua di-
vindade e consubstancial conosco pela sua humanidade, semelhante a nós em
todas as coisas, sem pecado; nascido do Pai antes de todos os séculos segundo
a Sua divindade; mas nascido da Virgem Maria, a Mãe de Deus (Theotokos)
nestes últimos dias por causa de nós e da nossa salvação, de acordo com a sua
humanidade. Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, em duas natu-
rezas inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis, salva a especificidade
das naturezas e concorrendo numa só pessoa a hipóstase, não separada ou
dividida em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo,
o Senhor Jesus Cristo, como deste o princípio os profetas anunciaram a seu
respeito e como Jesus Cristo, ele mesmo, nos ensinou, e como o credo dos Pa-
dres nos transmitiu. [...] Tendo estas coisas sido expressas por nós com grande
cuidado e atenção, o sagrado sínodo ecumênico decreta que a ninguém seja
permitido divulgar outra fé, nem escrever, compor, pensar ou ensinar [tal coisa]
a outros. ( J. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplíssima collectio, t.
VII, Florentiae, 1767, cols. 107, 115 e 1118, apud ESPINOSA, 1981, p. 58-59).

Documento 02 – A inquisição episcopal e o poder secular: dos de-


cretos do Quarto Concilio de Latrão (1215).
3. [...] Hereges convictos devem ser entregues a seus superiores seculares ou
a seus agentes para o devido castigo. Se forem clérigos, primeiramente devem
ser destituídos. Os bens dos leigos serão confiscados; o dos clérigos, aplicados
nas igrejas das quais recebiam seus subsídios. [...] Se um senhor temporal ne-
gligencia em cumprir o pedido da Igreja de purificar sua terra da contaminação
da heresia, será excomungado pelo metropolitano e pelos bispos da província.

95
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média
[...] 7. Determinamos, além disto, que cada arcebispo ou bispo, em pessoa ou
através de seu arcebispo ou outras pessoas capazes e dignas de confiança, vi-
sitará cada uma das paróquias nas quais se diz que há hereges; fá-lo-á duas
vezes ou, pelo menos, uma vez por ano. Obrigará três ou mais homens de boa
reputação ou, se for necessário, toda a vizinhança a jurar que, se qualquer um
deles souber de algum herege, ou de alguém que freqüente reuniões secretas,
ou de pessoa que pratica coisas e costumes diferentes dos quais são comuns aos
cristãos, que o comunicarão ao bispo. O bispo deve chamar os que forem acusa-
dos para que se lhe apresentem; e, a não ser que se purifiquem da acusação, se
incorrerem no erro anterior, receberão o castigo canônico (BETTENSON, 2007,
p. 207-208).

Referências

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XIX. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

BETTENSON, H. (Editor.). Documentos da Igreja Cristã. São Paulo : Aste, 2007.

BÍBLIA. N.T. Atos, 21: 20. Português. A Bíblia Sagrada. Versão de João Ferreira de
Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

BÍBLIA. N.T. Jo, 19: 25-27 Português. A Bíblia Sagrada. Versão de João Ferreira de
Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

BÍBLIA. N.T. Mc, 14, 37-41. Português. A Bíblia Sagrada. Versão de João Ferreira de
Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

BÍBLIA. N.T. Mt, 19: 21. Português. A Bíblia Sagrada. Versão de João Ferreira de
Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

CHAUNU, P. Le temps des reformes: la crise de la chrétienté 1250-1550. Bruxelles:


Editions Complexe, 1984.

96
DENZINGER, E. El magistério de la Iglesia. Barcelona: Editorial Herder, 1997. Heresias e reformas na
igreja medieval

ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981.

ESTRADA, J. A. Para compreender como surgiu a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.

FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba:


Editora Positivo, 2009.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo:


Brasiliense, 2001.

FRANGIOTTI, R. História das heresias: conflitos ideológicos dentro do cristianismo


(séculos I-VII). São Paulo: Paulus, 1995.

GILPIN, W. The lives of John Wycliff. London: J. Robson, 1766. Disponível em:
<http://books.google.com.br/books>. Acesso em: 15 mai. 2010.

MACEDO, J. R. Heresia, cruzada e inquisição na França medieval. Porto Alegre:


Edipucrs, 2000.

MITRE FERNÁNDEZ, E. Iglesia, herejía y vida política en la Europa medieval.


Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2007.

NELLI, R. Os Cátaros. Lisboa: Edições 70. 1980.

O´ SHEA, S. A heresia dos cátaros: uma revolução medieval. Porto: ASA Editores S.
A., 2003.

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Theolog y. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

97
HISTÓRIA MEDIEVAL II: SCHAFF, P. History of the Christian Church. [S.l.: s.n.], 2010. Disponível em:
a Baixa Idade Média
<http://www.ccel.org/s/schaff/history/5_ch10.htm>. Acesso em: 15 mai. 2010.

SCHÜLER, O. John Wiclif a dissolução do universalismo medieval. Canoas, RS:


Editora da Ulbra, 2003.

WAITE, G. K. Heresy, magic and witchcraft in early modern Europe. New York:
Palgrave MacMillan, 2003.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) Construa um texto demonstrando quais os motivos que levaram os diferentes movimentos


heréticos a se posicionarem contra a Igreja Católica.
2) Quais os principais motivos alegados pela Igreja para combater os movimentos heréticos?

Anotações

98
5 Peste
Nos braços da morte: a
Negra no limiar da
Idade Média

Renata Cristina de Sousa Nascimento

“Deus se prepara mais do que nunca para abrir as comportas de sua ira contra
nossos vícios, afligindo-nos cotidianamente com guerras, efusões de sangue,
extorsões, saques, roubos e opressões; e até com pestilência e doenças des-
conhecidas.” Prédictions et almanachs du XVI siècle in DELUMEAU. Jean. O
Pecado e o Medo: a culpabilização no Ocidente (século 13-18) Volume I, Bauru:
EDUSC. 2003,pág. 10-11.

Jan Van Eyck. The Last Judgment - Fonte: http://www.abcgallery.com/E/eyck/eyck29.html

99
HISTÓRIA MEDIEVAL II: Os séculos XIV e XV são tidos, genericamente, como séculos de transição. Contudo,
a Baixa Idade Média
em sua maioria formam um período cujas referências na historiografia ocidental não
discordam: tempo de crise profunda, ampla, que atingiu indiscriminadamente toda a
sociedade e todos os espaços europeus. Diversas foram as crises que se abateram sobre
o continente durante o fim da Idade Média. Algumas delas foram provocadas e outras
ocorreram naturalmente; quer dizer, foram causadas pelas intempéries climáticas, pe-
las epidemias e pela fome. Entre essas crises estão: A Guerra dos Cem Anos1, O Cisma
do Ocidente2 e a peste negra.
A peste negra, conhecida também como peste bubônica, foi o nome dado à doença
originária do Oriente e que se alastrou na Europa entre os anos de 1347 a 1350. A Europa
já conhecia a doença, presente na Antiguidade e também durante o governo do Impe-
rador Justiniano. A peste justiniana foi assim chamada por ter-se iniciado no Império Bi-
zantino, ao tempo do Imperador Justiniano, no ano de 542 d.C. Espalhou-se pelos países
asiáticos e europeus, porém não teve a importância da grande epidemia do século XIV.

Não obstante a peste, no sentido específico do termo, constituiu um flagelo de


primeira grandeza para as populações da Idade Média, que dela foram vítimas
sob duas formas: peste bubônica e peste pulmonar. A primeira, transmitida pela
pulga do rato, caracteriza-se essencialmente por uma tumefacção muito doloro-
sa dos gânglios da virilha, das axilas ou do pescoço. É mortal em 60 a 80% dos
casos. A segunda transmite-se diretamente de pessoa a pessoa pela respiração ou
pela tosse; é altamente contagiosa e mortal em 100%. Na Idade Média (como na
época moderna), os centros endêmicos da peste (reservatórios de vírus) situam-
se na Ásia Central e no Médio Oriente; é daí que a epidemia se transmite de leste
para oeste, seguindo as grandes vias de circulação (BONNASSIE, 1985, p.169).

Na opinião de Heers (1981), é difícil avaliar exatamente as perdas, mas sabe-se que
impediram qualquer recuperação demográfica e provocaram uma queda no número
de casamentos e nascimentos. “Durante todo o século XV, a peste grassa em estado

1 Outro fator de instabilidade refere-se, no âmbito europeu, à Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que
envolveu ingleses e franceses. A razão inicial desse grande conflito foi de caráter sucessório. Depois
da morte dos três filhos de Felipe, o Belo (1285-1314), que pôs fim à linhagem direta dos capetíngios,
seu neto, Eduardo III da Inglaterra (1307-1327), reivindicou o trono francês, alegando ser seu legítimo
herdeiro. Essa pretensão, somada ao constante problema relacionado à posse do ducado da Aquitânia
(Guiena), estão na gênese do conflito entre as duas nações (Inglaterra e França).
2 Clemente V, um francês escolhido Papa pelos cardeais, em 1305, era considerado fraco e de moral
duvidosa. Influenciado pelo rei francês mudou o papado de Roma para Avinhão, no sul da França, em
1309. Aos olhos do povo da Europa, isso colocava o Papa sob o controle francês. Com exceção de um
período, entre 1367 e 1370, a residência papal continuou sendo Avinhão, até 1377, sob o domínio ab-
soluto dos reis franceses. A piedosa mística Santa Catarina de Siena pressionou Gregório XI para voltar
a Roma, restaurar a ordem e reconquistar o prestígio do papado. Em 1377, ele voltou e pôs fim ao “Ca-
tiveiro Babilônico”. Após a morte de Gregório os cardeais, dominados por uma maioria francesa, foram
obrigados pelo povo de Roma, que não queria perder o papado novamente, a eleger o homem que
tomaria o nome de Urbano VI. A falta de tato de Urbano para com os cardeais tornou-os seus inimigos, e
então eles elegeram Clemente VII como Papa. Clemente mudou imediatamente o papado para Avinhão.

100
endêmico; está presente na mente de cada um e aumenta o sentimento de angústia e Nos braços da morte: a
Peste Negra no limiar da
miséria.” (HEERS, 1981, p. 80). À época, por vezes avaliadores exagerados chegaram a Idade Média

reclamar a perda de 2/3 ou mesmo de 9/10 da população. As consequências demográ-


ficas são aparentemente as mais sentidas, traduzindo-se em movimentos migratórios.
Em Portugal gente do campo muda-se para as cidades, enquanto gente das cidades
menores procura vida melhor em Lisboa ou no Porto. Contraditória migração, pois nas
cidades eram sentidos de forma ainda mais presente os flagelos da peste e da fome.
Virgínia Rau (1986, p. 128) avalia a peste de forma abrangente, incluindo também uma
análise do desespero psicológico que representou. A migração era vista pela população
como uma tentativa de refugiar-se da doença. Fontes como o Livro da Noa do Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra e a Crônica Alcobacense são documentos importantes para
a análise do universo mental da época, marcado pela convivência com a pestilência.
Um fato essencial não passou despercebido aos contemporâneos da doença: seu
caráter contagioso. A ciência da época a identificava como sendo trazida pela poluição
do ar. Hoje se sabe que as medidas tomadas eram inúteis, uma vez que as pessoas
procuravam evitar o contágio:

[...] acendendo fogos purificadores nos cruzamentos das cidades contaminadas,


desinfectando roupas e habitações com enxofre e perfumes violentos, não sain-
do à rua senão de rosto recoberto com uma máscara em forma de cabeça de pás-
saro e cujo bico era cheio com substâncias odoríferas [...] ( WOLFF, 1988, p. 29).

O tratamento mais comum eram as sangrias ou mesmo a aplicação de emplastros


quentes. De toda forma, o contágio da doença foi intenso e logo ela havia se espalhado
por todo o continente.

http://www.galeon.com/projetochronos/chronosmedieval/concilium/pandemia.htm

101
HISTÓRIA MEDIEVAL II: Na Itália, temos a clássica narrativa de Boccaccio:
a Baixa Idade Média

A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste,


quando o sangue saia pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de mor-
te inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas
mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam
como maçãs; outras como um ovo; cresciam umas mais outras menos; chamava-
se o populacho de bubões. Destas duas referidas partes logo o tal tumor mortal
passava a repontar e a surgir por toda a parte. Em seguida, o aspecto da doença
começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos en-
fermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do cor-
po. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras,
eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão
fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram
a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas (2003, 10).

O interessante da narrativa é o comportamento adotado pela população da cidade.


Segundo Boccacio, alguns julgavam que viver com moderação e evitar os prazeres
carnais seriam medidas bastante eficazes contra o mal. Outros declaravam que para
tão imenso mal eram remédios eficazes “o beber abundantemente, o gozar com in-
tensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o
satisfazer os apetites, fosse de qualquer coisa, o rir e troçar do que acontecesse, ou
pudesse suceder.” (2003, p. 11) Várias explicações para a doença estiveram presentes
em todos os espaços europeus. A Igreja via nela uma punição divina aos pecados hu-
manos. Segundo Silva (1995), era bastante popular a que apontava minorias mal vistas,
sobretudo as comunidades judias, como portadoras de atos criminosos premeditados,
tais como o envenenamento de fontes e poços responsáveis pela disseminação da epi-
demia, o que desencadeou massacres impressionantes nos guetos de certas regiões. O
povo queria culpados, e incluía entre eles leprosos e vagabundos, muitos queimados
em praça pública. Segundo Richards,

Talvez não exista na história nenhuma doença que tenha causado tanto medo e
asco quanto a lepra. O próprio termo leproso tornou-se sinônimo de rejeitado.
Na idade Média, esta reação derivava em parte das deformidades físicas, das
feridas supurativas e do odor mefítico causados pela doença. Mas emanava mais
ainda da certeza reconhecida de que a lepra era o sinal externo e visível de uma
alma corroída pelo pecado e, em particular, pelo pecado sexual (RICHARDS,
1993, p. 153).

A morte produzida pela fome, por guerras e doenças aterrorizava as mentes supers-
ticiosas da época. Em tudo se via a ação do diabo, e os tormentos do inferno pairavam
no horizonte da existência. O fato de a cristandade se encontrar sitiada, pelos turcos
de um lado e pelos tártaros de outro, contribuiu ainda mais para o clima de insegu-
rança, uma vez que a “familiaridade” com a morte sem trégua produzia um contínuo
e novo fervor religioso.

102
Essas ameaças constituem incessantes apelos à conversão e à penitência. E elas Nos braços da morte: a
nada mais faziam que acentuar aquela segunda declaração da Igreja segundo a Peste Negra no limiar da
Idade Média
qual Satã está em toda a parte, portanto também no coração de cada um (DE-
LUMEAU, 2003, p. 11).

Em 1349 surgiram os flagelantes, na Alemanha e nos Países Baixos. Esses fanáticos


religiosos oriundos do vale do Reno percorriam as vilas e os campos. O cronista Matias
de Neuenburg nos deixou um claro testemunho sobre suas práticas:

Pouco a pouco, no início das epidemias de peste na Alemanha, as populações


começaram a se espalhar pelas estradas flagelando-se, vieram 700 da Suábia
até Estrasburgo, no ano de 1349, na metade de junho. Haviam designado um
chefe e dois outros mestres e executavam todas as suas ordens. Ao amanhecer,
eles atravessaram o Reno e reunida à multidão, fizeram um grande círculo. No
meio deste – tirando as suas roupas de cima e seus sapatos e tendo como calça
uma espécie de pano das coxas até o calcanhar começaram a formar uma roda
e um depois do outro se jogava no chão com os braços em cruz. Eles passavam
um em cima do outro saltando, começando a golpear com correias aqueles que
já estavam prosternados; os últimos da fila que tinham se abaixado sobre os
primeiros levantavam-se para flagelar-se com correias guarnecidas de nós, com
quatro pontas de ferro e passavam cantando uma canção vulgar, invocando o
Senhor. Três deles colocavam-se no meio do círculo e começavam a cantar um
canto extremamente estridente, apropriado para excitá-los à flagelação, depois
outros também começavam a cantar e continuavam assim até que, ao sinal pre-
ciso de um certo canto, todos caíam de joelhos, com os braços em cruz e o ros-
to contra a terra, orando e chorando (NURENGERG apud PEDRERO-SANCHEZ,
2000, p. 199).

O aspecto proletário da doença também é ressaltado pela historiografia atual. Con-


forme Michael Mollat (1989), a peste negra dizimou os pobres, encontrando neles,
como é de se supor, uma receptividade magnífica. A doença atacou inicialmente os
bairros pobres, por exemplo em Rimini e em Orvieto.

Em Lincoln, os notáveis foram praticamente poupados; em Lubeck, a média de


mortalidade entre os proprietários (25%) corresponde à metade da média geral
(50%) nas cidades alemãs. Quanto à parte norte da França, parece que em 1348-
1349 morreram cerca de dois pobres para cada rico (MOLLAT, 1989, p. 190).

Tal como o regime alimentar considerado adequado na época para evitar a prolife-
ração da doença, os preceitos profiláticos, indicados especialmente pela Faculdade de
Medicina de Paris, encontravam-se totalmente fora do alcance da população carente.
Ao transformar a crise do século XIV em catástrofe, a peste acirrou também o clima
social, acentuado pela inflexão da curva demográfica. A diminuição da renda feudal,
mais as perturbações devidas ao emprego crescente da moeda nos pagamentos dos
rendimentos senhoriais devidos pelos camponeses, colocaram em causa os fundamen-
tos de poder da nobreza, especialmente na zona rural. Ora, não se podem reduzir
os efeitos da doença sobre a escassez de mão de obra durante todo o século XIV;

103
HISTÓRIA MEDIEVAL II: contudo, terá tido realmente a peste negra os efeitos avassaladores sobre as relações
a Baixa Idade Média
no campo ou terá ela sido habilmente utilizada como pretexto para a confecção de leis
que coagissem o camponês a se submeter às baixas pagas e às condições precárias de
vida e trabalho, num momento em que por toda a Europa sofriam-se as consequências
de um processo de transformação geral da sociedade?
Vários autores situam na peste de 1348 o início de uma crise que se alongaria por
todo o continente. Obviamente, deles não discordamos, porém a questão da paga aos
camponeses, tema indissociável da legislação da época, ou mesmo a existência de um
conflito de interesses entre aqueles que pagavam e aqueles que trabalhavam certamen-
te é bem menos recente que essa doença.
Acontece que ao advento dos novos tempos, que representam historicamente os
séculos XIV e XV, no contexto da Idade Média na Europa, corresponde um maior acirra-
mento das relações de trabalho no campo. Embora permanecendo com feição feudal, as
transformações oriundas da época acabariam empurrando os senhores para uma con-
dição de arrendatários, tornando-os vulneráveis às flutuações dos preços e da moeda.
De todos os modos os governos procuraram remediar a situação, compelindo as
pessoas ao trabalho e também tabelando as remunerações. Na Inglaterra, o Estatuto
dos Trabalhadores (1351) ofereceu a seguinte solução:

[...] Que cada homem e mulher do nosso reino da Inglaterra, de qualquer con-
dição que seja, livre ou servo, apto de corpo e com menos de sessenta anos,
que não viva do comércio nem exerça qualquer ofício, nem possua de próprio
com que possa viver, nem terra própria em cujo cultivo se possa ocupar, nem
sirva qualquer outro se for convocado para trabalhar num serviço que lhe seja
adequado, considerada a sua condição, será obrigado a servir aquele que assim
o convoca; e levará apenas o soldo, pagamento, remuneração ou salário que era
costume serem dados nos locais onde era obrigado a servir no vigésimo ano do
nosso reinado em Inglaterra [...] muitos robustos pedintes, enquanto podem
viver pedindo, se recusam a trabalhar, entregando-se ao ócio e ao vício, e por
vezes ao roubo e outras abominações; ninguém sob a mesma pena de prisão
poderá, sob a cor da piedade ou da esmola, dar o que quer que seja àqueles que
podem trabalhar ou tentar auxiliá-los no seu ócio, a fim de que, desta forma,
sejam compelidos a trabalhar para o que lhes é necessário à vida (ESPINOSA,
1981, p. 330-332).

A tentativa do Parlamento inglês de fixar os salários, especialmente ao homem ao


campo, traduziu-se, em 1381, na Revolta dos Camponeses. Em França à famosa Revolta
dos Jacquerie de 1358, foi acentuada pela penúria produzida pelo avanço da Guerra
dos Cem Anos no território. A contestação, em larga escala, dos privilégios feudais tra-
duziu-se numa enorme onda de repressões. Ainda que momentaneamente derrotados,
os levantes dos servos foram tornando inviável a manutenção das relações de servidão.
A partir do final do século XIV, com mais rapidez em algumas regiões e menos em
outras, gradativamente as obrigações feudais foram sendo amenizadas.

104
A Peste em Portugal e a Lei das Sesmarias Nos braços da morte: a
Peste Negra no limiar da
A peste se instalou em Portugal durante o governo de D. Afonso IV. Na circular Idade Média

de 1349, tentou este dar especial atenção à agricultura do reino, considerando como
problema principal a falta de braços provocada pela peste. Argumentava que, devido a
heranças recebidas, muitos trabalhadores “nom querem obrar de seus mestres e seru-
jços como entes fazian. E por esto os dessa vila e termho rrecebem grandes perdas e
danos (MARQUES, 1987, p. 21).
Durante o governo fernandino (1367 - 1383) ocorreram vários problemas que mo-
dificaram em alguns aspectos a estrutura de Portugal. As crises agrícolas alcançaram
seu ponto máximo em 1374, devido, entre outros fatores, às guerras entre Portugal e
Castela, à peste negra, que grassava na época, e ao consequente êxodo rural, o qual
trouxe grandes prejuízos, não somente à coroa portuguesa mas também aos proprie-
tários de terra e aos camponeses. A devastação do solo, somada ao avanço lento das
técnicas de cultivo agrícola, agravaram ainda mais a situação no campo.
As sucessivas crises frumentárias ocorridas em 1371-72 e 1374-76, devido aos
maus anos de colheita, acentuaram a crise, pois, embora não tendo atingido todo o
país, contribuíram para o declínio demográfico. Além disso, devido à escassez de mão
de obra os agricultores que ainda permaneciam no campo exigiam soldadas cada vez
mais altas.
O mundo camponês dividia-se diante da crise. Uma minoria capaz de tirar lucro da
venda de seus excedentes enriqueceu, aumentou suas terras e formou uma camada
privilegiada. A maioria dos camponeses, no entanto, empobreceu. Alguns mais mo-
destos tiveram que trabalhar para outros, acentuando sua dependência econômica.
A diminuição da população do campo, em consequência do êxodo rural, das guerras
e das epidemias intensificou os aforamentos de terras. Os proprietários de terrenos
incultos viam na concessão desses aforamentos uma medida bastante lucrativa, pois,
como não tinham condições de cultivo, garantiam assim a sua renda.
Na política de exploração da terra, sobretudo da senhorial, a administração
direta estava em franco recuo. Não se coadunava com as múltiplas funções e
cargos que os privilegiados desempenhavam, mostrando-se mais rentável arre-
cadar uma renda certa. Cada vez mais não é a posse da terra que determina a
riqueza, mas sim a sua capacidade de exploração (COELHO, 1991, p. 51).

A falta de mantimentos e a subida geral de preços em consequência das sucessivas


desvalorizações monetárias agravaram ainda mais o quadro. O rei estabeleceu almota-
çaria geral, tabelando o preço do alqueire do trigo e da cevada em todas as comarcas;
adotou ainda providências a fim de impedir a exploração do consumidor pelo inter-
mediário, ao colocar cereais no mercado. Determinou que todo pão encovado teria

105
HISTÓRIA MEDIEVAL II: de ser posto à venda pelos preços estabelecidos. No ano de 1372 houve ainda grandes
a Baixa Idade Média
inundações em todo o reino, causadas pelo excesso de chuvas no inverno.
A conjuntura pouco alentadora do governo fernandino impunha a promulgação de
um conjunto de preceitos legais, dotados de força coerciva, a fim de tentar resolver o
problema em toda a sua complexidade. Com esse propósito o Rei, em 1375, promul-
gou a Lei das Sesmarias. Para Virgínia Rau (1982, p. 87), essa Lei representa a maturi-
dade precoce de uma nação europeia em face dos problemas do homem e da terra. A
tentativa da Lei de impelir os trabalhadores à faina agrícola foi total.

Eftabelecemos, hordenamos, e mandamos, que todos os que ham herdades


fuas próprias, ou teverem empazadas, ou afforadas, ou per qualquer outra guifa
ou titulo, per que ajam direiito em effas herdades, fejam pêra as lavrar e femear
[...]
E fe o Senhorio das ditas herdades nom poder per fy lavrar todalas ditas her-
dades lavre parte delaas per fy... e as mais faça lavrar per outrem, ou as dê a
lavraddro, que as lavre e femee por fuá parte...afsy como Fe melhor poder fazer
[...] (LEI, 1792, p 283).

Nesse trecho da lei percebe-se a obrigatoriedade do cultivo agrícola sem restrições.


Os proprietários que não pudessem lavrar suas terras deveriam dá-las a outrem, por
meio de emprazamento3 ou aforamento, para que todas as terras fossem cultivadas.
Outro aspecto da Lei em apreço refere-se ao desvio interno de braços para ativi-
dades menos pesadas e mais bem remuneradas, que se concentravam sobretudo nas
cidades e vilas. Muitos camponeses iam trabalhar nas casas nobres e abastadas das ci-
dades, pois após a promulgação da Lei das Sesmarias os funcionários régios não ousa-
riam buscá-los. Outros, que eram filhos e netos de lavradores, aos quais a Lei obrigava
a exercer o ofício paterno, iam se refugiar nas povoações para aprender os ofícios úteis
previstos, como o de sapateiro e de alfaiate, buscando assim ludibriar o preceito legal:
[...] que todolos que foram ou foyam a feer lavradores, e outro fy os filhos, e
netos dos lavradores, e todolos outros moradores, afsy nas cidades, e villas,
como fora dellas.per que de razon e direito deva feer afectufado de lavrar, ou
fervir na lavoira [...] (LEI, 1792, p. 283).

Os lavradores que não atendessem às determinações seriam açoitados, e caso não


voltassem ao trabalho rural seriam desterrados, além de perder suas propriedades.
No texto da Lei, em todo seu conjunto, nota-se que ela tentou culpar os trabalha-
dores rurais pela carência dos cereais e pelo aumento dos preços, mas em nenhum

3 Segundo Serrão (1993), a palavra enfiteuse, ou emprazamento, ou aforamento designa o mesmo


instituto jurídico. Dá-se o contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse quando o proprietário
de qualquer prédio transfere seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se a pagar-lhe pensão de-
terminada.

106
momento indicou os problemas gerados pela má condução político-econômica do go- Nos braços da morte: a
Peste Negra no limiar da
verno fernandino como responsável pela crise. Por isso, podemos caracterizá-la como Idade Média

tendo tido o intuito de atender aos interesses da nobreza, que a todo custo almejava
sobreviver e manter seus privilégios. A peste negra, que grassava sem controle em toda
a Europa, contribuiu ainda mais para desestabilizar a situação do reino.
Pode-se considerar a Lei das Sesmarias, de um lado, como exemplo de um novo
tempo, pois tentou resolver em seus múltiplos aspectos a questão agrária. Mas, por
outro, também tentou obliterar um processo de transformação que estava ocorrendo
no seio da sociedade portuguesa nos anos 70 do século XIV, pois as transformações
sociais, associadas ao desenvolvimento urbano e mercantil e das corporações de ofício
comprovam que a economia do país já estava passando por nítidas transformações,
que tinham por base as atividades fundamentalmente citadinas, em detrimento das
atividades da zona rural.

Apontamentos sobre o “sentido artístico” da Peste


A par das questões sociopolíticas que envolveram o âmbito da doença existem as
representações oriundas do imaginário, refletidas ao longo dos séculos, a demonstrar
que os flagelos humanos são também um fenômeno de longa duração. As dores hu-
manas e as doenças fazem parte da história porque não são mais do que uma ideia,
algo abstrato numa complexa realidade empírica “A doença pertence não só à História
superficial dos progressos científicos e tecnológicos como também à História profunda
dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às representações, às mentali-
dades” (LE GOFF, 1990. p. 7).
Segundo Bastos, mais do que um fator biológico, a doença é um elemento de
cultura. Ela é o que dela se diz ao longo do milenar contato do homem com os agen-
tes patogênicos. “E o que dela se diz não é unívoco, diacrônica e sincronicamente,
constituindo-a objeto e campo de conflito histórico entre supostas verdades, mais ou
menos divergentes, e até concorrentes” (2005, p. 491).
O reflexo do imaginário da devastação produzida pela peste continuaria a se mani-
festar. Nos séculos seguintes o “terrível flagelo” inspirou a imaginação de vários artis-
tas. A título de exemplo podemos apontar sua inserção no mundo da pintura, no qual
os quadros mais conhecidos são: A peste em Atenas, do pintor belga Michael Sweerts
(1624-1664), A peste em Nápoles, de Domenico Gargiulo (1612-1679), O triunfo da
morte, do pintor belga Peter Breugel (1510-1569), e São Roque, de Bartolomeo Man-
tegna (1450-1523). Na literatura, a obra A peste, de Albert Camus, embora retratada
em período posterior a Idade Média, ajudaria a divulgar as relações complexas entre
cidade e epidemia, entre saber médico e popular.

107
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Fonte: BREUGEL, Peter. O triunfo da morte)

EXTRATOS DE DOCUMENTOS PARA APROFUNDAMENTO TEMATICO:

Documento 1 – A grande peste (1348).


No ano do Senhor, 1348, aconteceu sobre quase toda a superfície do globo
uma tal mortandade que raramente se tinha conhecido semelhante. Os vivos, de
fato, não conseguiram enterrar os mortos, ou os evitavam com horror. Um ter-
ror tão grande tinha-se apoderado de quase todo o mundo, de tal maneira que
no momento que aparecia em alguém uma úlcera ou um inchaço, geralmente
embaixo da virilha ou da axila, a vítima ficava privada de toda assistência, e mes-
mo abandonada por seus parentes. O pai deixava o filho em seu leito, e o filho
fazia o mesmo com o pai. Não é surpreendente, pois, que quando numa casa
alguém tinha sido tocado por este mal e tinha morrido, acontecesse muito fre-
quentemente, todos os outros moradores terem sido contaminados e mortos da
mesma maneira súbita; e ainda mais, coisa horrorosa de ouvir, os cachorros, os
gatos, os galos, as galinhas e todos os outros animais domésticos tiveram o mes-
mo destino. Aqueles que estavam sãos fugiram apavorados de medo. E assim,
muitos morreram por descuido, os quais talvez teriam escapado de outro modo.
Muitos ainda, que pegaram esta doença e dos quais se acreditava que morreriam
com certeza imediatamente sobre o chão foram transportados, sem a mínima
discrição até a fossa de inumação. E assim, um grande número foi enterrado vivo.

108
Nos braços da morte: a
Peste Negra no limiar da
E a este mal acrescentou-se outro: corria boato de que certos criminosos, parti- Idade Média
cularmente judeus, jogavam venenos nos rios e nas fontes, o que fazia aumen-
tar tanto a peste acima mencionada. É a razão pela qual tanto cristãos como
judeus inocentes e pessoas irrepreensíveis foram queimadas e assassinadas e
outras vezes maltratadas em suas pessoas, mesmo que tudo isso procedesse
da constelação ou da vingança divina. E esta peste se prolongou além do ano
anteriormente dito, durante dois anos seguidos, espalhando-se pelas regiões
onde, primeiramente, não tinha acontecido. (Vitae Paparum Avenionensium
Clementis VI, apud PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 194-195).

Referências

BASTOS, M. J. da M. Poder e doença: epidemias em tempo de centralização (Portugal-


séculos XIV / XVI) In: RELAÇÕES de poder, Educação e Cultura na Antiguidade e
Idade Média. São Paulo: Solis, 2005.

Giovanni BOCCACCIO. Decamerão. São Paulo: Círculo do Livro, 2003.

BONNASSIE. P. Dicionário de História Medieval. Lisboa: Dom Quixote. 1985.

COELHO. M. H. da C. História medieval de Portugal: guia de estudo. Porto:


Universidade Portucalense, 1991.

DELUMEAU. J. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13- 18).


Bauru: Edusc, 2003. v. 1-2.

ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981.

HEERS, J. História medieval. São Paulo: EDUSP, 1974.

______. O ocidente nos séculos XIV e XV. São Paulo: Pioneira; EDUSP, 1981.

LEI das Sesmarias. In: ORDENAÇÕES do Senhor Rey D. Affonso V. Coimbra [s.n.],
1792. Livro 4, v. 81, p 281-295.

109
HISTÓRIA MEDIEVAL II: LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983. v.1-2.
a Baixa Idade Média

______. As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1990.

LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

MARQUES, A. H. de O. Nova história de Portugal:. Portugal na crise do século XIV e


XV. Lisboa: Presença, 1987.

MOLLAT. M. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus. 1989.

PEDRERO-SÁNCHEZ. M. G. História da Idade Média: textos e testemunhas. São


Paulo: Unesp, 2000.

RAU, Virginia. Estudos de História Medieval. Lisboa: Presença. 1986

______. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa: Presença, 1982.

RICHARDS. J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1993.

SILVA. V. D. da. A Legislação econômica e social consecutiva à peste negra de 1348


e sua significação no contexto de depressão do fim da Idade Média. Revista de
História da USP, São Paulo, 1995.

VERÍSSIMO. A. A peste negra e os seus reflexos na cultura inglesa. Lisboa:


Universitária Editora, 1997.

WOLFF, P. Outono da idade média ou primavera dos tempos modernos? São


Paulo: Martins Fontes, 1988.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) Elabore um texto evidenciando quais foram as principais mudanças ocorridas na Baixa


Idade Média com o advento da peste negra.

110
Nos braços da morte: a
Peste Negra no limiar da
Idade Média
Anotações

111
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Anotações

112
6 Cultura na
Baixa Idade Média

Marcella Lopes Guimarães

DUAS OU TRÊS PALAVRAS (OU MAIS...) SOBRE ALGUNS CONCEITOS


Cultura
Algumas das grandes preocupações do historiador têm a ver com a precisão dos
conceitos. Nem sempre a etimologia é boa companheira para garantir um exame pre-
ciso, pois ela esclarece sobre a origem e sobre o significado de cada parte que compõe
a palavra, mas não sobre seus usos, diversos e cambiantes. O significado das palavras
muda por diferentes razões, interações múltiplas interferem nesse jogo, por isso é
necessário explicar as acepções que fazem sentido para os exames dos historiadores.
Assim, duas acepções gerais de cultura, oriundas da Filosofia, importam aqui: cultura
como formação do homem e cultura como produto dessa formação. Hoje, em meio
a uma profusão de conceitos, flexões, adjetivações e a um certo desgaste da categoria,
cuja polivalência multiplica a dificuldade para entendê-la, os traços que se repetem
correspondem às necessidades dos grupos humanos e à diversidade de formas como
elas são respondidas; “o conjunto de modos de viver e de pensar cultivados” (ABBAG-
NANO: 2007), práticas e representações, como definiria Roger Chartier, vivências e
interpretações do mundo, sem que esse conjunto signifique uma totalidade coerente.
No campo da História, a vertente cultural já conhece uma tradição que passa por
nomes como o de Johan Huizinga, sobretudo no Outono da Idade Média (1919), e
por Jacob Burckhardt, em A Cultura do Renascimento na Itália (1860); dos desdo-
bramentos ligados à História da Arte, com Aby Warburg (1866-1929), Ernst Gombrich
(1909-2001) e Erwin Panofsky (1892-1968). Outro nome fundamental, no que se refe-
re em especial ao monarca medieval, continua sendo Ernst Kantorowicz, em Os dois
corpos do rei: um estudo sobre a teologia política medieval (1958), obra, aliás, em
que as reflexões sobre cultura se aliam à renovação da História Política. No encontro
com a Literatura, vale a pena nos referirmos à tese de Hans Robert Jauss, A História da
Literatura como provocação à Teoria Literária (1967). Outros nomes ainda poderiam
ser evocados, porque a História Cultural conheceu grande incremento nas últimas

113
HISTÓRIA MEDIEVAL II: décadas do século XX e valoriza elementos que enriquecem o olhar de historiadores
a Baixa Idade Média
de diferentes áreas, como História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea.
Assumindo, portanto, de antemão, a fluidez e a pluralidade da categoria cultura, é
fundamental resgatar a reflexão a respeito dentro dos estudos específicos do medievo.
Assim, com Georges Duby (1919-1996),

a história cultural se propõe observar no passado, entre os movimentos de


conjunto de uma civilização, os mecanismos de produção dos objetos culturais
[...]. O historiador da cultura deve interrogar-se sobre as relações que podem
existir entre os eventos que se produzem (DUBY, 1989, p. 126).

Poderíamos acrescentar os mecanismos de produção e recepção; estes, por sua vez,


mais difíceis de aferir. Assim, a categoria cultura se alimenta “do capital de formas no
qual cada geração se nutre” (DUBY: 1989, p. 127). Por exemplo, os homens que viviam
em torno dos livros no medievo alimentaram-se de uma base de Latim e de filosofia
aristotélica, sem serem exatamente aristotélicos. No baixo-medievo ainda, as lições do
trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, música, geome-
tria, astronomia) sofreram adaptações, e a leitura de manuais, não tão somente dos
clássicos, respondeu a anseios de uma maior aplicabilidade de conhecimentos para as
cortes ocidentais.
No centro da cultura no medievo, a identidade cristã, que se manifesta no difícil
embate com o outro (contra o muçulmano, por exemplo), que inclui apropriações
provenientes, por exemplo, das traduções de textos; na contagem do tempo; na no-
ção de comunidade (por isso é tão dramática a excomunhão; por isso reverbera de
forma espetacular e política a humilhação do imperador Henrique IV diante do papa
Gregório VII, em Canossa, 1077); na organização da vida, através dos sacramentos; nas
necessidades de paz e na motivação para a guerra ou para o frenesi, quando pensamos
na cruzada de Pedro Ermitão (1096); na educação; na moral...
Ora, ainda que os medievalistas examinem documentos que são produções cultu-
rais de um mundo marcado pela identidade cristã, a palavra cultura, no medievo, tem
um sentido específico: agrícola, o que interpõe aos que recorrem à História Cultural
um real paradoxo: os conceitos hodiernos de cultura foram forjados a partir do Renas-
cimento como reação ao “obscurantismo” medieval! Feita a ressalva, que se relaciona
à necessidade de precisão de conceitos com a qual abrimos este capítulo, tanto o
aspecto da formação quanto o do produto dessa formação serão abordados aqui para
demonstrar, mediante a leitura de vestígios culturais do medievo – criações literárias e

114
artísticas, conhecimentos, crenças, atitudes, representações sociais1 –, como os grupos Cultura na Baixa Idade
Média
humanos entenderam e representaram a si e ao mundo em que viveram.

Baixa Idade Média


No recente As raízes medievais da Europa (2007), Jacques Le Goff reafirma a sua
crença na crise que permeia os anos do entardecer medieval. Tal tendência é herdeira
de uma concepção que adquiriu em O outono da Idade Média do já citado Huizinga,
uma feição emblemática. Ainda que nas páginas do clássico sobressaiam ambiguidades
tantas vezes esquecidas, o saldo, a partir do título, aponta para uma natureza soturna,
que os monumentos fúnebres dos séculos XIV e XV só parecem confirmar. A expressão
Baixa Idade Média também não parece gloriosa, ressuma a decadência. Ora, de fato, os
homens e as mulheres do medievo ocidental padeceram de fome no período; endivi-
daram-se; sofreram com a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e seus desdobramentos;
assistiram a movimentações urbanas, as jacqueries, e delas participaram; viram dois
ou até três papas (no Grande Cisma, de 1378-1417), ao mesmo tempo, em Avinhão e
Roma, excomungarem reinos submetidos aos seus rivais; souberam de notícias alar-
mantes no Oriente (Bizâncio sendo abocanhado pelos turcos) e se desesperaram com
a peste negra! Mas quando não temeram a guerra, o inferno, a doença, o outro e as
sublevações?... Os historiadores falam de equilíbrio em períodos anteriores, entre os
séculos XI e XIII, mas a crise tão propalada já não tinha dado pequenas mostras nos
mesmos tempos enaltecidos?

Marcabru (1129-1150)
1. Na fonte do vergel, onde a erva é verde por entre as pedras, à sombra de
uma árvore com frutos, alegre entre as brancas flores e as velhas canções prima-
veris, encontrei sozinha, sem companhia alguma, aquela que não quer minha
consolação.
2. Era uma donzela de corpo formoso, filha de um senhor de castelo; e quando
cuidei que os pássaros, a verdura e a delícia da primavera lhe proporcionavam
alegria, e [supus] que fosse atender às minhas palavras, de súbito a sua fisiono-
mia ficou transfigurada.
3. Seu pranto corria até a fonte e do coração brotavam suspiros dolorosos:
“Jesus, rei do mundo, disse ela, por tua causa sinto crescer minha grande dor,
e mata-me a injúria que te fazem, [subentende-se: deixando teu Sepulcro nas
mãos dos infiéis], pois os melhores deste mundo partem para o teu serviço; seja
feita, porém, a tua vontade.
4. Contigo se vai meu companheiro, formoso, gentil, galhardo e rico; e fico
sozinha numa grande angústia, cheia de saudades e lágrimas. Ah! maldito rei
Luís – que pregou e ordenou esta cruzada, causa da dor que entrou em meu
coração (MARCABRU apud SPINA, 1996, p. 100).

1 Sobre isso, conferir: DUBY, G. “A vulgarização de modelos culturais na sociedade feudal”. In: ______.
A Sociedade Cavaleiresca.

115
HISTÓRIA MEDIEVAL II: No fragmento incompleto acima, da cantiga do trovador Marcabru (século XII), ain-
a Baixa Idade Média
da que a jovem reconheça a grande injúria de os santos lugares do Cristianismo terem
sido ocupados pelos infiéis (sarracenos), amaldiçoa o monarca francês Luís VII (1137-
1180), que levara com ele o seu amado e tantos outros, os “melhores deste mundo”,
para a cruzada. Na cantiga, a narrativa poética do sofrimento de quem fica não é des-
prezível, e lembra àquela sociedade os dramas de quem tinha de sofrer com a saudade,
com a movimentação dos homens que seguiam para os combates distantes, com a
necessidade de reunir condições materiais para isso e com a ausência às vezes muito
prolongada dos defensores, o que, é preciso reconhecer, muitas vezes não é tão lamen-
tado, já que, sem exercício, causavam mais danos às comunidades que benefícios... Na
verdade, o drama da jovem é literariamente composto por um homem – o trovador –,
que imagina a predisposição de uma pessoa naquela condição. Imagina, portanto, uma
situação em que o Rei é amaldiçoado por decidir participar de uma empreitada julgada
pelo seu personagem como temerária. O contexto evocado pela cantiga, que coincide
com a vida de Marcabru, é o da proclamação da 2ª cruzada, que parte em 1147 e cujas
ambições são derrotadas logo depois, em 1149, e o da Reconquista. O trovador viveu
na corte de Guilherme X da Aquitânia, talvez de sua filha Leonor, primeira esposa de
Luís VII, e na Península Ibérica, possivelmente exilado. Ao contrário da 1ª cruzada, na
qual nenhum monarca seguiu, a 2ª contou com a presença do mesmo Rei da França e
do Imperador do ocidente, dentre outras individualidades ilustres. A jovem em ques-
tão poderia exaltar a coragem do amado e até render homenagens ao monarca que se
prontificara a salvar o santo sepulcro, mas execra o empreendimento talvez porque o
poeta já se utilizasse da informação da derrota. Se o trovador utiliza, então, o dado, já
é sabedor de que as forças mais destacadas da cristandade ocidental são impotentes
contra o infiel... Que equilíbrio não seria abalado por essa constatação? Se não utiliza,
ou seja, se a cantiga é anterior à notícia do insucesso, ela também importa pela dúvida
e pela tristeza que manifesta.
Além da repetição enfadonha da crise, imposta pelas generalizações a respeito do
baixo-medievo, outro problema que merece ser lembrado a respeito do estudo desse
contexto é a tendência a vê-lo como etapa que prepara os tempos modernos, ou a
etapa que, vencida, inaugura um mundo novo. Um exemplo: ainda que uma historio-
grafia respeitável e que mereça ser consultada veja no período em estudo elementos
para o nascimento dos Estados, é preciso lembrar que o poder do rei, evidentemente
mais fortalecido que antes, ainda era pessoal, competia com o dos príncipes e grandes
senhores, e que ele continuava a precisar ouvir muito os seus nas assembleias. Os
séculos XIV e XV precisam ser reestudados sob outra chave que não a das razões unica-
mente teleológicas: a da análise de questões concernentes àquela realidade específica,

116
em que, como já reconheceu Jacques Chiffoleau, avanços criativos coexistiram com Cultura na Baixa Idade
Média
cores sombrias (CHIFOLEAU apud BASCHET, 2006, p. 263).
A partir de meados de XIV, o homem medieval teve de lidar com os desdobramen-
tos de uma peste endêmica; em seus intervalos, porém, soube mobilizar esforços para
fazer a vida recomeçar, tanto que o Ocidente parece dar mostras de recuperação de
suas dores em meados de 1450, quando até a aristocracia, que também passara por
dificuldades, encontrou formas de se adaptar. Esse foi um período em que as cida-
des continuaram a se diversificar, mesmo as realistas páginas iniciais do Decamerão
(1353) de Boccaccio, que nos descortinam o quadro de tantas dissoluções que a peste
provocou, não escondem os esforços da cidade de Florença! Houve no período um
refinamento e maior eficácia das técnicas comerciais e de cálculo; novas devoções
nasceram e progressos em campos como os da higiene, que desde XIII já eram per-
ceptíveis, chamam a atenção. Inovações nos campos da ciência e da cultura, como
confirma a invenção da imprensa, o aperfeiçoamento dos instrumentos de navega-
ção – é o mesmo Le Goff quem reconhece que a Europa das descobertas atlânticas
é uma Europa profundamente medieval – e as novas técnicas e equipamentos para a
guerra contribuem para uma maior compreensão do período. Nos séculos XIV e XV,
as fontes sabem nomear sentimentos que evidenciam outros vínculos, concorrentes à
vassalidade, como os sentimentos de pertença a um determinado chão, oriundos de
uma maior clareza das diferenças culturais entre reinos vizinhos. É dessa forma que o
cronista português Fernão Lopes (1385-1460) anuncia, na Crônica de D. João I, o “ser
verdadeiramente português”.
Uma referência quase obrigatória para a compreensão do contexto em que o pro-
palado “declínio” medieval e a “recuperação” do Renascimento se enfrentaram convi-
dou os estudiosos a enveredar pelo caminho de uma regeneração manifesta já no riso
medieval. Evocamos o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) em A Cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Embora seu foco
tenha sido a obra do francês, o autor lembra que os terrores cotidianos e cósmicos dos
séculos XIV e XV não intimidaram o desejo de rever o dogmático. O realismo grotesco,
como rebaixamento das coisas elevadas e o conjunto de imagens da cultura popular
prova, segundo ele, que a morte e a renovação eram inseparáveis do conjunto vital.
Isso pode ser evidenciado, por exemplo, na própria imagem da morte, que entre a
Idade Média e o Renascimento continha elementos cômicos.
Ora, Bakhtin percebeu que as imagens da cultura medieval do contexto que anali-
sou potencializaram a ideia de que o fim devia estar prenhe de um novo começo, e que
essa forma de pensar/agir operava uma liberação do medo. É no fim do medievo que
um conjunto de elementos da cultura cômica popular é elevado ao nível da “grande”

117
HISTÓRIA MEDIEVAL II: literatura. O século XV francês evidenciou uma imensa liberdade verbal, que opor-
a Baixa Idade Média
tunizou, por sua vez, justamente a inserção desses elementos de que falou Bakhtin.
Sangue e vinho; morte e alegre festim; o antigo e o jovem... são reinterpretados e
transformados na praça onde se vive e se encena a prática social complexa da Baixa
Idade Média.
Podemos questionar a insistência de Bakhtin na autonomia das formas populares;
a noção de unidade da cultura cômica popular do fim do medievo e início da época
moderna ou ainda a coesão e unicidade da praça pública de então, em nome das trans-
ferências culturais mais afeitas ao caráter movente da cultura. José Rivair Macedo
exemplifica com a presença do diabo o intercâmbio entre a cultura clerical e a cômica
popular, que no nível performativo se materializava na convivência, ora consentida,
ora impossível de ser reprimida na prática, entre as encenações de caráter risível e
grotesco e as festas religiosas que enalteciam as suas práticas dogmáticas. Embora proi-
bidas no Concílio de Basileia (1431), em Ruão (1445) e ao longo do século XVI as festi-
vidades carnavalescas em igrejas e cemitérios continuou a desafiar todos os interditos.
Entretanto, a análise de Bakhtin convida a pensar que, na celebração do avesso, em
meio às eloquentes evidências da dificuldade com que homens e mulheres lutaram
pela vida, entre os séculos XIV e XV, as pessoas encontraram espaço para a liberação
das verdades terríveis a que estavam sujeitas. O historiador da economia Philippe Wolff
já nos lembrou, em diálogo com a expressão celebrizada por Huizinga – “outono da
Idade Média”: “O outono, certamente, é a aproximação do inverno; mas também são
tão belos os frutos que nele se colhem!” ( WOLFF, 1988, p. 1).

O QUE SEGREDAM AS FONTES DO BAIXO-MEDIEVO?

O Homem pobre não terá pão para comer, a não ser por acaso um pouco de
pão de centeio ou de cevada. Sua pobre mulher dará à luz e terão quatro ou
seis pequenas crianças no lar, ou no fogo, que por acaso será quente e eles
pedirão pão e gritarão com raiva de fome. A pobre mãe não terá o que levar à
boca a não ser um pouco de pão com sal. Ora, deverão suportar esta miséria:
pois virão os saqueadores que levarão tudo. Tudo será pego e apanhado. E
desejarão que pague.
Mas a preocupação constante, a dúvida angustiante e contínua de ser roubados
por príncipes ou gentes de armas deixa-os muito tristes, impacientes e doloro-
samente atormentados: tanto que em nosso tempo, muitos são os que caíram
em desespero, e se mataram. Deus, que horror! Eles se suicidaram, um enforca-
do, o outro afogado, um outro enfiando-se uma faca no coração (GERSON apud
PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 198).

O trecho acima, do teólogo João Gerson (1363-1429), ilustra as dificuldades dos


povos para garantir as condições mínimas de sobrevivência no baixo-medievo e as suas
dores diante da rapina de que eram vítimas, o que só reforçava a condição primeira. A

118
queixa contra as gentes de armas ratifica a ambiguidade desse Estado, que direciona Cultura na Baixa Idade
Média
sua violência para aqueles a quem deveria proteger... A consequência desse rebaixa-
mento duplo é a escolha da morte. O narrador se sensibiliza com a situação, que afinal
não lhe era de todo desconhecida, já que Gerson era filho de camponeses. Sobressai
no trecho acima, além do quadro agravado pela queixa contra os nobres, a opção de-
liberada pelo fim feita por cristãos que, em desespero, faziam aquilo que a sua Igreja
condenava com veemência. Até mesmo entre nobres, como era o meio do cronista
francês Enguerran de Monstrelet (1444), não era difícil encontrar quem reconheces-
se as mazelas a que as gentes de armas condenavam os povos:

‘Gentes de armas’ começaram a aparecer na França por todas as partes, a saber,


de parte do rei da França e daqueles que em seu nome tinham o governo do
reino. E o mesmo, por meio do fisco e da violência sobre os seus, fez o duque
de Borgonha. Por causa disso o pobre povo, nesse tempo, em diversas partes do
reino foi muito minguado e oprimido, e não tinham quem o defendesse, e não
sabiam o que fazer nem tinham outro recurso senão pedir ajuda a Deus, supli-
cando que pela sua graça providenciasse remédio (ENGUERRAN DE MONSTRE-
LET apud PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 200).

Somadas a essas dores, é ainda possível encontrar fontes que mostram ondas de
flagelantes por estradas, tão logo a peste começara a se espalhar:

Pouco a pouco, no início das epidemias de peste na Alemanha, as populações


começaram a se espalhar pelas estradas flagelando-se [...] Eles passavam um
em cima do outro saltando, começando a golpear com correias aqueles que
estavam prosternados; os últimos da fila que tinham se abaixado os primeiros
levantavam-se para flagelar-se com correias guarnecidas de nós, com quatro
pontas de ferro e passavam cantando uma canção vulgar, invocando o Senhor.
(NEUENBURG apud PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 199).

Mas os problemas começaram antes. A falta de colaboração das condições me-


teorológicas, a partir da segunda metade do século XIV, com o frio e a umidade
que castigaram as pessoas foi determinante para uma Europa baseada na terra e
que encontrava desafios na adubação e no abate. As epidemias conheceram terreno
propício à sua disseminação em um meio que já sofria, portanto, de fome, e se as
mortes diminuem as bocas, infectam também os braços capazes para o trabalho. O
que representaria para um mundo de limitados recursos técnicos e modestas ambi-
ções de colheita a conjugação de fatores como esses? Como a guerra e os desmandos
dos homens de armas não abalariam cultivos já debilitados? Como não agravariam a
“normalidade” com a sua destruição desmedida?
As desigualdades sociais também pioraram nesse contexto; afinal os ricos podiam
comprar mais, dosar, especular até. Mas as autoridades monárquicas e municipais
haveriam de reagir, com tabelamento de preços e buscas no exterior por grãos.

119
HISTÓRIA MEDIEVAL II: Também houve expedientes que limitaram ou resguardaram a saída desses grãos
a Baixa Idade Média
preciosos, que alimentavam a todos. Georges Duby já lembrou que, em torno do
ano 1000, a pobreza era um quinhão dividido pelas gentes, mas que depois do
século XII a miséria apareceu nos arredores das cidades: “Vindos dos campos para
aproveitar a forte onda de crescimento que sacode a Idade Média, eles [os margina-
lizados] encontram as portas fechadas” (DUBY, 1998, b, p. 25).
Debilitados pelas carências alimentares do período, os homens e mulheres do
contexto baixo-medieval foram, então, vítimas certeiras da peste, que chegou ao Oci-
dente em 1347. Os historiadores situam a sua origem na Ásia Central, onde existia
em caráter endêmico. O cronista francês Jean Froissart (1337-1410) afirmou que a
peste teria levado à morte a terça parte do mundo. Ainda que isso signifique a terça
parte, talvez já exagerada, de seu mundo, é significativa de como impactou a mente
dos homens que escreviam.
As rivalidades entre capetíngios (França) e plantagenetas (Inglaterra), incluindo
questões específicas, de natureza econômica, e de fundo, como o poder dos ingleses
dentro da França, concretizaram-se em grandes extensões territoriais e acenderam
um conflito que mobilizou um perímetro bem maior que o dos dois reinos direta-
mente envolvidos. Ainda que se possa reconhecer que os anos de paz foram quase
tão numerosos quanto os de guerra, a Guerra dos Cem anos mobilizou exércitos,
técnicas e mentalidades, depauperou bolsos, endividou reis e afligiu os povos já
abalados, sem a iniciativa dos defensores.
Além da conjugação das tragédias da peste, da fome e das guerras, acrescidas aos
dilemas do Cisma, que arremataram a instabilidade geral, o Ocidente Medieval viveu
então: a diminuição da mão de obra; o incremento da vagabundagem; o congela-
mento de preços e salários; a restrição das mobilidades de ofícios e o acirramento
de hostilidades, na tentativa de buscar bodes expiatórios, como contra os judeus e
os muçulmanos, acusados de semear a peste. Ainda que a convivência repetida com
a morte e com a incerteza tivesse o peso que só podemos entrever, tão distantes que
estamos daquele tempo, as ressalvas feitas por Bakhtin nos convidam a pensar que
homens e mulheres viveram experiências ambivalentes nesse período, em que mor-
te e renovação eram inseparáveis. Um dos temas dessa convivência complexa são as
representações da Dança da Morte.

120
Cultura na Baixa Idade
Média

Fonte: http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm (acesso em 22 de abril de 2010).


As duas imagens subsequentes são do mesmo site.

O tema se desdobrou na Literatura e nas Artes Visuais, e foi bastante característico


desses tempos. Geralmente traz à cena um esqueleto, a morte, que, dançando, conver-
sa com personagens de diversas procedências sociais – imperadores, papas, agriculto-
res, burgueses etc. – a quem apresenta um quadro bastante realista, irônico, e às vezes
muito engraçado, da situação em que se encontravam.
A confrontação cotidiana com a morte fez com que as pessoas tivessem diferentes
reações, dentre as quais ou a busca por uma vida pia, ou a entrega à vida desregrada,
já que não adiantava fugir do confronto final. Ora, mesmo que nessa época o saber já
estivesse bastante laicizado, a pena eclesiástica nunca deixou de brilhar; assim, muitas
das obras que eram produzidas a partir desse tema buscavam lembrar que era preciso
garantir uma vida reta para ambicionar a paz eternal. Dessa forma, as representações
da dança da morte não fugiam ao propósito edificante da arte medieval e ainda ofe-
reciam, no contexto dramático da confrontação diária, a certeza de uma justiça que
ignorava, às vezes de forma carnavalesca, as ordenações sociais.

Fonte: http://www.abbaye-chaise-dieu.com/-la-danse-macabre-.html (acesso em 22 de abril de 2010).

Um dos exemplos visuais do tema, mais antigos e citados, é o do Cemitério dos


Inocentes, da primeira metade do século XV. Acima, os painéis da abadia La Chaise-
Dieu (França), possivelmente pintados no mesmo século XV, remetem-nos ao tema
121
HISTÓRIA MEDIEVAL II: da igualdade perante a morte, aqui representada pelos esqueletos, que, com movi-
a Baixa Idade Média
mentos amplos, rodeiam os “viventes”, que, por sua vez, seguem a sua sorte, come-
didos... No painel acima, o dos poderosos, vemos: o Papa, o Imperador, o cardeal,
o Rei e até o cavaleiro. Nos outros, o beneditino, o burguês, o amante, a criança,
o cisterciense e outros, totalizando 24 personagens. Na abadia, em torno desses,
representações de Adão, Eva e de um pregador arrematam a cena edificante para os
peregrinos.
Na anônima Dança da Morte, peça castelhana do século XIV, mantém-se a ence-
nação da diversidade social igualada pela condição de confrontação com a morte, em
uma clara subversão da realidade hierárquica.

Morte
Sou a morte certa de todas as criaturas que estão e estarão no mundo. Com essa
autoridade pergunto: Para que curar da vida, sendo ela tão breve? Não existe
prece suficiente que liberte do meu arco, é mais fácil deixar-se morrer quando
eu lançar minha flecha certeira.
Que loucura esta manifestação! Que pensas tu, homem, que outro morrerá e tu
não, por ser bem composta a tua compleição...? Cedo ou tarde verás teu corpo
vil em chamas a transformar-se em carvão.
Acaso pensas em livrar-te, por seres jovem e valente, ou que o sol o fortalece,
deixando a lua e a escuridão para os velhos impotentes? Ouça bem e com aten-
ção: sendo velho ou ancião eu o levarei, esta é a minha razão.
A experiência mostra que digo a verdade e a Santa Escritura dá sobre tudo sua
firme tenção: “Faça penitência, pois morrerá sem saber quando. Vê aquele frei
que está pregando, atenta para o que diz a sua sapiência”.
[...]
Sendo o Santo Padre um muito alto senhor, como no mundo não há par, desta
minha dança será o guiador. Tirai vosso traje, começai a dançar! Não há tempo
de perdões a dar. Dançai, Padre, sem reclamar.

Papa
Pobre de mim, que tristeza. Eu que prezava tanto a Igreja, terei de guiar essa
dança mortal. Pensava ter beneficiado a todos com meu senhorio, mas de ti, ó
Morte, já não me posso fugir. Valha-me Jesus Cristo e a Virgem Maria!

Morte
Não vos enojei, senhor Padre, para dançar a minha dança, não vos valerá o
manto vermelho, fazer cruzada, ordenar bispos nem conceder benefícios. Aqui
morrereis sem sacrifícios.2

No excerto acima, elementos como a autoridade da morte, ela, a maior senhora;


a gratuidade da vida e a convicção de que cabe ao homem, desprovido ou poderoso,
apenas se conformar com ditames que se lhes escapam são recorrentes. Importa ainda

2 Tradução livremente feita pela autora e pela Profª. Bárbara da Silva Santana Lopes. O texto origi-
nal pode ser encontrado, dentre outros sites, em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/sirveo-
bras/01350520899915296535802/029123_0025.pdf

122
perceber que a morte conhece a vida muito bem, pois a cada vez que chama um per- Cultura na Baixa Idade
Média
sonagem à cena entrega seus segredos menos edificantes:

Rei
Valham-me, meus cavaleiros, não gostaria de seguir esta ignóbil dança. Prote-
jam-me com suas forças e lanças! O que é isso que vejo na balança? Minha vida
diminuída, meus sentidos..., perco a cor com grandes gemidos! Adeus, meus
vassalos, a morte me alcança.

Morte
Rei forte e tirano, sempre roubaste o teu reino. Pouco conheces de justiça, se-
gundo mostra tua comarca. Vem até mim, pois sou eu o monarca, que te enreda
e a outros mais altos, vem para minha dança em um salto.

O rei chama seus homens, pois o monarca medieval sabe que precisa do apoio dos
seus, mas não é atendido..., muitos seguiriam a dança, depois dele. Além disso, a mor-
te segreda a mais decisiva falha do soberano – pouco cuidou da justiça, suprema tarefa
do rei medieval. Já que não soube ser Rei, é destituído pela morte, o que adensa a má-
xima isidoriana repetida nos espelhos de príncipe no contexto: rex eris si recte facias,
si non facias, non eris, que conclama os monarcas a agirem com retidão. O excerto é
uma breve síntese de referências das posições dogmáticas da Igreja, de elementos de
uma literatura de espelhos abundante no período, da política vigente e da subversão
de toda a ordem, que, sem expressar a realidade complexa na sua concretude, oferecia
aos homens e mulheres do medievo um modelo de compreensão para suas vidas. Na
verdade, rebaixado pela morte, o monarca torna-se risível para o público, que ainda
tem a chance de espantar seus temores dos nobres e cavaleiros também pelo riso!
Enquanto expõem as falhas de cada tipo representativo da sociedade, os textos
construídos a partir desse tema oferecem uma apreciação muito realista dos proble-
mas a que todos estavam sujeitos. Importa perceber, então, que a Literatura, sem espe-
lhar o real, nasce de uma prática sem a qual a sua representação não seria compreen-
dida, e apresenta uma maneira de lidar com uma realidade muitas vezes lúgubre mas
sem abrir mão da edificação, da fruição e da graça. Que o tema fosse recorrente ante
o horror dos cadáveres putrefatos que a peste ou a guerra expunham é esperado, mas
que o homem medieval encontrasse meios criativos de encarar a morte e fazê-la nova
senhora de uma sociedade tão agarrada à hierarquia pode surpreender, e certamente
oferece vieses outros de compreensão do período.
A dança da morte, entre as Artes Visuais e a Literatura, é um grande tema do baixo-
medievo, mas Georges Duby já nos lembrou de que, no mesmo período, subsequente
e às vezes coincidente com o esplendor que elevou os templos góticos de Deus a
alturas sublimes, o monumento artístico do século XIV foi o túmulo. Na verdade, essa
constatação também precisa ser mediada por aspectos que não são próprios a esse

123
HISTÓRIA MEDIEVAL II: contexto específico. O século XIII já havia conhecido um incremento dos motivos fú-
a Baixa Idade Média
nebres, e um exemplo disso são as necrópoles reais de Saint-Denis e Royaumont, que,
a partir de Luís IX (1226-1270) de França, abrigaram os reis e os filhos de reis respec-
tivamente. O monarca santo viveu com entrega seus lutos, como o de sua mãe Branca,
o de seu filho primogênito Luís e o do irmão Roberto d’Artois, tentando em vão que o
Papa considerasse mártir seu filho. Le Goff, em sua biografia do monarca, demonstra a
antecipação desse status da morte, em um momento esplendoroso da dinastia capetín-
gia, em que se concentram ambição funerária, o enraizamento da crença no Purgatório
e os sufrágios pelos mortos. Ora, na “plenitude” medieval, Luís IX é um bom exemplo
das ambiguidades que poderiam ter sido gestadas antes do período em estudo: “O rei
tanto é rei dos mortos como dos vivos” (LE GOFF, 2002, p. 689).
Em Portugal, os túmulos do rei Pedro I (1367) e de Inês de Castro (1355) con-
firmam a opinião de Georges Duby sobre o século XIV:

Fonte: Foto de Marcella Lopes Guimarães.

Na foto acima, o túmulo da dama Inês de Castro, amada do rei de Portugal Pedro
I. Sobre o amor dos dois, o cronista português Fernão Lopes escreveu, na Crônica de
Pedro I:

Por que semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente
he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhuum he
tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memória o
gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom já que tanto e
mais que el amarom, assi como Adriana e Dido, e outras que nom nomeamos,
segumdo se lee em suas epistolas, respomdesse que nom fallamos em amores
compostos, os quaaes alguuns autores abastados de eloquemcia, e floreçentes

124
em bem ditar, hordenarom segumdo lhes prougue, dizemdo em nome de taaes Cultura na Baixa Idade
pessoas, razoões que numca nenhuuma dellas cuidou; mas fallamos daquelles Média
amores que se contam e lêem nas estórias, que seu fumdamento teem sobre a
verdade (LOPES, [19--], p. 199).

No fragmento, sobressai a singularidade do amor dos personagens, verdadeiro por-


que venceu a morte e porque teve seu fundamento, não em histórias beneficiadas pelo
talento de seus escritores, mas, na verdade, no que aconteceu, enfim.
Se a história dos amantes não rendeu a desejada felicidade em vida, ou se rendeu
menos do que os envolvidos queriam, foi prolífica em representações artísticas. Desde
que foi escrita até um tempo que ainda não chegou, pois mesmo hoje os artistas se
sentem inspirados a falar de Pedro e Inês, essa tragédia medieval é celebrada em verso
e prosa. Interessantíssima sob muitos pontos de vista, aqui importa refletir sobre o mo-
numento que esculpe o status desejado pelo seu promotor. No túmulo Inês é rainha, o
que vale dizer que, rebaixada pela morte, Inês é elevada pela vida que permanece, a de
Pedro. No túmulo, portanto, estão inscritos o destino trágico daqueles que amam sem
esperança e a vitória do desejo daquele que fica. O seu esplendor libera Inês de uma
verdade dominante – a morte. É Fernão Lopes quem propala o cortejo que até aquele
momento não tinha sido visto em Portugal:

E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho


mais homradamente que se fazer pode, ca ella viinha em huumas andas, muito
bem corregidas pêra tal tempo, as quaaes tragiam gramdes cavalleiros, acom-
panhadas de gramdes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e domzellas, e
muita creelezia. Pelo caminho estavom muitos homeens com círios nas maãos,
de tal guisa hordenados, que sempre o seu corpo foi per todo caminho per
antre círios acesos; e assi chegaron ataa o dito moesteiro, que eram dalli de-
zassete legoas, omde com muitas missas e gram solenidade foi posto em aquel
muimento: e foi esta a mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em
Putugal fora vista (LOPES, [19--]b, p. 201).

Cortejo – memória, luto, festa e triunfo de uma vontade, ambiguidade enfim! No


túmulo de Pedro está também esculpida a história da sua paixão. Como já definiu
António José Saraiva, “o que há de mais extraordinário nestes túmulos é como a união
carnal, donde nasceu uma família, ganha uma dimensão sagrada e se prolonga para
além da morte até o dia do Juízo Final” (SARAIVA, 1998, p. 48).
Seis criaturas, corpos de bicho e caras humanas, três de cada lado, sustentarão a
rainha morta até o fim dos tempos... Para Saraiva, na época todos deviam conhecê-los:
muito provavelmente são os envolvidos no assassinato de Inês que carregam o peso
da sua culpa enquanto o monumento existir. Há cenas representadas nos túmulos:
a história de São Bartolomeu, Pedro e Inês em intimidade e ternura, eles cercados
pelos filhos que tiveram, ela derrubada por um homem hostil... No túmulo de Pedro

125
HISTÓRIA MEDIEVAL II: está escrito: “Aqui espero o fim do mundo”. Outra vez com Saraiva, esse monumento
a Baixa Idade Média
fúnebre enaltece o amor-paixão e a sexualidade, sacraliza o desejo (SARAIVA, 1998, p.
51-54) e, com isso, afirma a vida.
Essa teatralização da morte encontraria palco em outros reinos, como o inglês.
Henrique V (reinado: 1413-1422), com a intenção de provar que o rei Ricardo II
(1400), antecessor de seu pai, estava mesmo morto promoveu uma transladação
única, se pensarmos que afinal seu pai fora um usurpador e assassino do infeliz filho
do Príncipe Negro. O corpo foi carregado por 30 quilômetros e escoltado por uma
multidão de clérigos e cavaleiros. O Rei ainda ordenou que círios fossem queimados
continuamente ao lado do túmulo, que os ofícios fúnebres e missas fossem realizados
e que fosse distribuído dinheiro aos pobres em nome do Rei assassinado (BARKER,
2009, p. 100). De forma menos petulante que o pai, a linhagem de um filho bastardo
de Pedro I de Portugal, D. João I (reinado: 1385-1433), haveria de celebrar a glória de
um novo tempo, misturado aos restos dos seus:

Fonte: Foto de Marcella Lopes Guimarães.

A foto acima oferece a visão do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, o Mosteiro da


Batalha, mandado edificar pelo Rei D. João I, depois da vitória em Aljubarrota (1385)
contra D. Juan de Castela. À direita, a capela do fundador, pai da dinastia de Avis, onde
repousam os seus restos, os da rainha D. Filipa de Lencastre e os dos filhos que tive-
ram, exceto D. Duarte, que jaz em uma capela inacabada, ainda no complexo do mos-
teiro. Nessa edificação estão os traços característicos do gótico: arcos ogivais, abóbada

126
formada pelo cruzamento das ogivas, arcobotantes, contrafortes, paredes com vitrais e Cultura na Baixa Idade
Média
a verticalidade. No caso, os elementos se combinam para representar a glória de uma
dinastia nascente. A glória exaltada no monumento, que se ergue no mesmo contex-
to das dificuldades já aludidas, combinadas, no contexto português, à mudança e à
incerteza políticas, é um outro aspecto interessante sobre esses ambivalentes tempos
baixo-medievais. Em Portugal, essa estética triunfal não se intimidou com a “crise” do
fim do medievo e atravessou o tempo até chegar ao manuelino do Mosteiro dos Jerô-
nimos, em Lisboa.
Para ser o historiador da monarquia portuguesa, o cronista Fernão Lopes, que não
precisou mais escrever em Latim, mas em bom Português, foi erguido a essa con-
dição justamente pela dinastia de Avis. Entre a primeira dinastia (a de Borgonha) e
esta segunda, uma ruptura dramática quase implicou a união das coroas portuguesa
e castelhana, isso em torno dos anos de 1383 e 1385. Os fatos são que essa união não
ocorreu, e um bastardo do rei Pedro I, D. João, o Mestre de Avis, que nem era filho de
Inês de Castro, foi alçado à condição de Rei. A fim de abordar os eventos em torno dos
quais tudo isso se deu, Fernão Lopes construiu uma obra singular, para o entendimen-
to da realidade outonal do medievo em Portugal. De sua pena sobraram três crônicas,
cuja autoria não se discute hoje: A Crônica de D. Pedro I, a Crônica de D. Fernando
e a Crônica de D. João I. Em um dos capítulos da última citada, o cronista caracteriza
de forma notável o tempo que começara com o alçamento do Mestre de Avis. A esse
tempo ele chamou de “Sétima Idade”. A Sétima Idade é uma metáfora, pois o cronista
a enuncia “como quem jogueta per comparaçom”. Depois de reproduzir as eras como
Eusébio (260-339), Beda (672-735), a Bíblia e Padres da Igreja as compreenderam: a
primeira de Adão a Noé; a segunda de Noé até Abraão etc, Fernão Lopes elaborou a
Sétima Idade:

na quall se levamtou um mundo novo, e nova geeraçom de gemtes; porque fi-


lhos dhomeẽs de tam baixa comdiçom que nom compre de dizer, per seu boom
serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdosse logo de
novas linhageẽns e apellidos. Outros se apegarom aas amtiigas fidallguias, de
que já nom era memória, de guisa que per dignidades e honrras e offiçios do
rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e depois que foi Rei, pos, mon-
tarom tanto ao deamte, que seus decendentes oje em dia se chamam doões, e
som theudos em gram comta (LOPES, [19--]a, v. 1, cap. 163).

Mesmo assumindo o caráter metafórico do tema, Fernão Lopes traz para a História
a realização de uma esperança e de expectativas desejosas de melhores dias. Na crise
em torno da qual se elevou D. João I agudizaram-se problemas da nobreza: disparida-
des entre primogênitos e secundogênitos em relação às heranças; alterações da tática e
da estratégia militar e influência sobre a trajetória de muitos nobres. Tudo isso abalou

127
HISTÓRIA MEDIEVAL II: o fraco equilíbrio da balança, em um reino exíguo para as ambições da nobreza. Uma
a Baixa Idade Média
consequência foi que bastardos e filhos segundos de famílias nobres apoiaram a causa
do bastardo de D. Pedro I. Ora, foi esse o contexto em que homens de condições
menos prestigiadas, ainda que nobres, é preciso reconhecer, foram elevados com o
Mestre de Avis, pelo serviço que prestaram à causa que acabou por vencer. A Sétima
Idade é, portanto, uma metáfora de bom agouro, de esperança e renovação.
No século XIV, em 1328, ano da elevação da dinastia Valois na França até 1400, ano
da ascensão dos Lencastre na Inglaterra, quatro mudanças dinásticas – incluindo Cas-
tela em 1369, com os Transtâmara, e 1385, Avis, em Portugal – seriam ressignificadas
pelos seus agentes de propaganda como um tempo de regeneração. O soerguimento
de Henrique V, subseqüente à morte de Henrique IV Bolinbroke, foi propalado como
esperança por um futuro brilhante, que teria em Agincourt (1415) a confirmação béli-
ca celebrada pelos cronistas; bem como Aljubarrota para D. João I de Portugal.
A evocação da esperança não deve, entretanto, significar que enveredamos pela
construção de um novo mito, de tempos outonais, à descoberta de uma primavera
imprevista. Não se trata de mudar de posição os agentes, mas de percebê-los em uma
rede mais complexa de interação. Mesmo em Portugal, reino privilegiado pelos últi-
mos exemplos acima evocados, não se pode afirmar que entre os séculos XIV e XV
homens e mulheres tenham vivido uma extemporânea e “democrática” Sétima Idade.
Até porque, por ela não ter sido democrática, Fernão Lopes falava de nobres... Também
não se pode esquecer de que ele silencia os aspectos mais buliçosos das cortes, os de
que os povos haveriam de reclamar e sofrer muitíssimo com as ações do rei da Boa
Memória. Não se trata, portanto, de trocar seis por meia dúzia ou de crer acriticamente
nas fontes propagandísticas das novas dinastias; trata-se, sim, de elevar a correlação de
elementos que não podem ser desembaraçados, mas que costumam ser ensombrados
por generalizações.

ANTES DO FIM
Na formação de homens e mulheres do Ocidente medieval convergiram o acervo
disponível naqueles tempos para a fundamentação da sua identidade cristã; os con-
teúdos específicos e adaptados do trivium e do quadrivium; as práticas pregadas e
toleradas pelos agentes de propagação dos valores do Cristianismo e experiências,
encontros e desencontros que reinos, comunidades, famílias e individualidades incor-
poraram. Essa formação, marcada pelas continuidades e descontinuidades do baixo-
medievo, pode ser entrevista nos vestígios de produções culturais que sobraram de
então e que nos convidam a decifrar maneiras pelas quais as pessoas interpretaram sua
vida e manifestaram seus desejos, expectativas, medos e deboches.

128
Se a imprensa do fim do medievo tivesse podido inventar jornais tais quais lemos Cultura na Baixa Idade
Média
todos os dias, seríamos mais suscetíveis aos horrores do medievo do que somos aos
que diariamente desfilam diante de nossos olhos? Com o mesmo empenho com que
é desenrolado o avanço da violência nas escolas, chegam às páginas virtuais de notícia
os esforços da ciência, que corre a oferecer vacinas contra as pestes hodiernas... Ambi-
guidades do nosso próprio tempo!
Antes de concluir, convido o leitor a olhar para um pedaço do Oriente no contexto
baixo-medieval. Depois do saque à sua capital empreendido pelo Ocidente, em 1204,
por ocasião da 4ª cruzada, o Império Romano do Oriente viveu uma agonia de três sé-
culos. Reduzido à cidade de Constantinopla no século XV, esse império foi conquista-
do pelos turcos otomanos em 1453, marco tradicional do fim do medievo. Os últimos
imperadores de Bizâncio correram ao Ocidente atrás da ajuda que nunca chegaria,
brilharam nas cortes ostentando a sua erudição, mas não conseguiram conter o avanço
dos muçulmanos. No fim, o último Constantino (o XI) morreria na defesa de um dos
muros da sua cidade/império, e com a sua morte se encerraria a história de mil anos de
uma unidade política autônoma, a bizantina. Três dias depois do saque, da pilhagem
e de outras violências desmedidas, Constantinopla renasceria, transformada em Istam-
bul. O fim do medievo, então, é o fim de uma civilização politicamente autônoma mas
não de uma tradição cultural que, entre mil rotas de fuga, escolheria a Península Itálica
para o que seria conhecido como o grande Renascimento.
Bizâncio, nos esforços desesperados dos últimos três séculos de sua história, pre-
servou o Ocidente de um avanço que, sem essa barreira, o faria outro, ainda que nin-
guém tivesse se dado muito conta disso, então. O fim do medievo, assim, é o fim de um
mundo que preservou a integridade política de outro que não lhe deu importância,
e isso interessa como ponto de reflexão. O Ocidente medieval se surpreendeu com
o fato, mas ficou nisso a sua capacidade de reagir, envolvido que estava nos próprios
problemas. Ora, se no Ocidente essa ruptura importou tão pouco, interessa recolocar
a questão do marco, 1453.
Entre os muçulmanos dos séculos XIV e XV, embora as grandes vitórias tenham
sido uma realidade, elas não escamotearam o fato de a ummah3 ter perdido a uni-
dade da época dos omíadas e dos abássidas. No fim do medievo a abrangência do
poder islâmico era extraordinária, mas em seu mundo houve vozes que se levanta-
ram para lamentar a crise dos valores, como Ibn Khaldun (1406). O que aconteceu
com o mundo que viu nascer Al-Kindi (873), Al-Farabi (950), Avicena (1038) e

3 Comunidade islâmica.

129
HISTÓRIA MEDIEVAL II: Avempace (1138) e Averróis (1198)... a falsafa4?! Mas esse mesmo mundo não cres-
a Baixa Idade Média
ceu apartado do Ocidente por Bizâncio. Ocidente e Oriente encontraram-se na Pe-
nínsula Ibérica, no Califado de Córdoba, e depois nos reinos taifas, que haveriam de
construir uma história de mais de sete séculos de convivência e intolerância. A poesia
medieval, por exemplo, de lirismo occitano e provençal conhecidos, não teria sido be-
neficiada pelo encontro do Duque da Aquitânia, o primeiro trovador, com o príncipe
muçulmano Mitadolus de Saragoça, os quais lutaram juntos contra os Almorávidas?
Alguns indícios apontam que Guilherme IX conhecia a língua árabe...
Para o entendimento da recepção da obra de Aristóteles no Ocidente é importante
levar em conta, ao lado do trabalho de Boécio (525), as traduções e os comentários
de Avicena e Averróis, tendo sido este último, pela grandeza com que abarcou a obra
do estagirita, cognominado o Comentador. Assim via o mestre antigo:

Aristóteles foi o mais sábio dos gregos; instituiu e completou a Lógica, a Física e
a Metafísica. Digo que instituiu estas ciências porque todos os trabalhos anterio-
res a ele sobre estes assuntos não merecem ser mencionados e foram comple-
tamente eclipsados pelos seus escritos. Digo que ele pôs os últimos retoques
nestas ciências, porque nenhum dos que lhe sucederam até a nossa época, [....]
foi capaz de acrescentar nada a seus escritos ou de neles encontrar qualquer
erro de importância. Que tudo isto possa ser reunido num só homem é uma
coisa estranha e milagrosa, merecendo este ente privilegiado ser considerado
mais divino que humano (AVRERRÓIS apud PEDRERO-SANCHEZ, 2000, p. 65).

Na transposição para o mundo latino cristão destacou-se o nome de Miguel Sco-


to, primeiro em Toledo e depois em Nápoles, a partir de 1243. O fato de Aristóteles
ter chegado à cristandade ocidental também via mundo islâmico, que incluiu judeus
tradutores que viviam sob o jugo do Islã, somado aos conteúdos mesmos da filosofia
do estagirita foram responsáveis pelos problemas que essa filosofia enfrentou na Uni-
versidade de Paris. Entretanto, o Ocidente Medieval teve como fonte da sua escolástica
justamente os textos traduzidos e comentados pela falsafa!
Esses conhecimentos filosóficos e científicos impulsionam, por sua vez, a expansão
ultramarina e os descobrimentos geralmente relacionados à época Moderna:

A origem do conhecimento científico que serviu de pano de fundo aos desco-


brimentos provém de uma fonte comum a quase toda a cultura européia. De
fato, é à Escola de Tradutores de Toledo que, entre meados do século XII e todo
o século seguinte, se deve a formulação de algumas das sínteses do conheci-
mento antigo e indo-árabe de que os portugueses se serviram. Assegurando a
tradução dos textos árabes para latim e sua conseqüente difusão, realizou, de
uma maneira única na história da cultura européia, a passagem transcultural
dos discursos científicos da Antiguidade (ALMEIDA, 2001, p. 108-109).

4 A filosofia entre os árabes.

130
Ora, a citação acima alude a uma formação cultural polifônica, que passa por Bizân- Cultura na Baixa Idade
Média
cio e pelo Islã no medievo, entre as experiências e vicissitudes da guerra, das fomes
e da peste que o Ocidente Medieval teve de amargar, e que tem continuidade, não
unidade, no mesmo contexto: formação, experiência e soluções que os vestígios acu-
sam. Seria por isso que muitos historiadores propõem uma longa Idade Média, que se
desdobraria até os séculos XVIII e XIX? Não há consenso, apenas há convite à reflexão,
discussão de critérios e ideologias. O que pode ser considerado um marco? Quem o
considera? Sob qual perspectiva? Se se insiste em 1453, é preciso levantar o significado
de um acontecimento, a conquista dos turcos otomanos, numa chave de ruptura com
um mundo e nascimento de outro.

CONCLUSÃO
A expansão, que apresentou à Europa outros mundos, começou no medieval sé-
culo XIV, ainda antes da peste. A conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415 não
representara, de fato, o encontro com um mundo novo, já que interações entre o
norte de África e o sul da Península Ibérica fizeram parte da mesma história aludida
acima, de convivência e intolerância. Entretanto, é preciso reconhecer, na verdade,
que algumas práticas se transformaram nesse contexto, e a sua reverberação mudou
algumas maneiras de viver.
A Guerra dos Cem Anos contribuiu para alterar o combate e ajudou, com as exem-
plares derrotas francesas, a abalar o status da orgulhosa cavalaria. Esta, ainda que
continuasse a recorrer à belicosidade para se definir, acumulou outros componentes
no medievo, que definiram uma cultura cavaleiresca, de vivências às vezes apartadas
do seu desejo de ser outra coisa, mas ainda assim carregada de valores que faziam a
cabeça das gentes. Como entender a proliferação de ordens da cavalaria no período
– Jarreteira, Fer du prisonnier... ou os nomes dos franceses mortos em Agincourt: Lan-
celol, Perceval, Yvain, Artur, Tristan...? Mercenários, a pólvora, os canhões, a criação do
exército com Carlos VII de França..., os séculos XIV e XV, entretanto, transformaram a
técnica do combate cavaleiresco em algo obsoleto. O que não representaria essa cons-
tatação para uma instituição tão viva quanto celebrada em verso e prosa, nas cortes do
Ocidente? No mínimo, uma necessária redefinição de modelos, que teria como uma
das consequências a escrita do Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes,
em 1605 e 1615.
Em meio aos dramas do exílio de Avinhão e do Cisma, o Ocidente foi abrindo cami-
nho para novas aspirações devocionais e de reforma, que rebentariam no século XVI.
A sociedade também se alterava. Se o modelo trifuncional nunca espelhou a complexa
realidade medieval, entre os séculos XIV e XV ficou ainda mais difícil tentar fazê-la

131
HISTÓRIA MEDIEVAL II: caber nele. O poder real, por sua vez, caminhava a passos acelerados para a centrali-
a Baixa Idade Média
zação, e, no momento em que os reis não consideraram tão relevante ouvir os povos
para as suas decisões, afastamo-nos de vez do monarca feudal, que vivia de conselho
e colaboração.
Transformações... Elas se afirmariam no momento do encontro com diferentes de
fato, com um mundo novo para a Europa ocidental – hemisfério, paisagem e gentes.
O velho mundo haveria de levar para esse encontro as tradições culturais que nos
anos do outono medieval conjugaram vida e morte, flagelos e paixões, dores e alegres
manifestações de subversão, que não gestaram teleologicamente um futuro de outras
possibilidades mas que, na sua especificidade, podem ajudar a avaliar problemas e
soluções de outros tempos ou apenas a desfrutar a intensidade das insolências dos
personagens de Rabelais!

EXTRATOS DE DOCUMENTOS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO

Documento 1 – Uma sátira política: Coplas anónimas contra o rei


Henrique iv (1454 – 1474) de Castela pelo seu mau governo.

Abre, abre as orelhas


escuta, escuta, pastor
que não ouves o clamor
que te fazem as ovelhas.
Suas vozes sobem ao céu
Queixando seu desconsolo,
Que as tosquias ao engano
tantas vezes no ano
que nunca as cobre o pêlo

Tens sacado lã tanta


que se te desse a manha
terias feito uma manta
que cobriria a Espanha.

Ou tu vives enganado,
ou pensas que somos bobos.
Trazendo por meros,
Como medrará o gado?
Andam por essas manadas
as ovelhas degoladas
e comidos os cordeiros

132
Cultura na Baixa Idade
Média
E dos muitos arroídos
que te dão a teus ouvidos
os que andam a teu lado,
ainda que mantem o gado
nunca ouvem seus gemidos...

[In: SANCHES, José Rogério. Antologia de textos castellanos, siglos


XIII al XX. 3. ed. Madrid: 1924, p. 100-102. Ordenada e anotada por
José Rogério Sanches apud ESPINOSA, 1981, p. 255-256].

Documento 2 – Prólogo do Conto do Magistrado

Pobreza odiosa, oh triste condição!


É fome e frio e sede misturados!
Pedir auxílio é grande humilhação;
Não pedir, é sentir nos teus costados
A chaga exposta dos necessitados!
Quem vive na indigência que desola
Toma emprestado, ou rouba, ou pede esmola!

Condenas Cristo amarguradamente,


Vendo que há gente bem aquinhoada;
Acusas teu vizinho injustamente,
Porque tem tudo enquanto não tens nada;
“A conta”, dizes tu, “será ajustada
Quando em brasas teu rabo for cozido,
Porque nunca ajudaste ao desvalido.”

As palavras do sábio ouve e sopesa:


“Melhor morrer que à fome estar sujeito”;
“O teu próprio vizinho te despreza”.
Se fores pobre, adeus a todo respeito!
Por isso é que há também este preceito:
“Aos pobres todo dia é um desaponto”.
Cuidado, pois! Não chegues a esse ponto!

Se acaso és pobre, teu irmão te odeia,


Evitam-te os amigos... Ai, coitado!
Oh mercadores, com bolsa cheia,
Nobres e hábeis. Bem outro é vosso fado!
Não tirais só um ponto em cada dado,
Mas cinco e seis, ganhando sempre mais.
Por isso, alegres, no Natal dançais!

133
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média
Por terra e mar buscais vossas divícias;
Os reinos conheceis, ponto por ponto;
Vós sois os portadores de notícias
E de histórias de paz e de confronto.
Eu mesmo não teria agora um conto,
Se um mercador, nem sei de que lugar,
Não me houvesse ensinado o que contar.

(GEOFFRY CHAUCER (1343-1400). Os contos de Cantuária).

Referências

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Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

1) Em que medida o estudo sobre a cultura medieval contribui para compreendermos os


homens da Idade Média? Citar exemplos retirados do presente capítulo. 

Anotações

136
Cultura na Baixa Idade
Média

Anotações

137
HISTÓRIA MEDIEVAL II:
a Baixa Idade Média

Anotações

138

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